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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCAÇÃO E SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA CAROLINE MACHADO MOMM SOBRE INFÂNCIA E SUA EDUCAÇÃO: WALTER BENJAMIN E HANNAH ARENDT Florianópolis 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE CINCIAS DA EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO NCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCAO E

    SOCIEDADE CONTEMPORNEA

    CAROLINE MACHADO MOMM

    SOBRE INFNCIA E SUA EDUCAO: WALTER BENJAMIN E HANNAH ARENDT

    Florianpolis 2011

  • CAROLINE MACHADO MOMM

    SOBRE INFNCIA E SUA EDUCAO: WALTER BENJAMIN E HANNAH ARENDT

    Tese submetida ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Universi-dade Federal de Santa Catarina para a obteno do Grau de Doutorado em Educao. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Fer-nandez Vaz

    Florianpolis

    2011

  • Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da

    Universidade Federal de Santa Catarina

    M733s Momm, Caroline Machado Sobre infncia e sua educao [tese] : Walter Benjamin e Hannah A-

    rendt / Caroline Machado Momm ; orientador, Alexandre Fernandez Vaz. - Florianpolis, SC, 2011. 176 p.

    Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Cincias da Educao. Programa de Ps-Graduao em Educao.

    Inclui referncias

    1. Benjamin, Walter, 1892-1940. 2. Arendt, Hannah, 1906-1975. 3. Educao. 4. Educao infantil. 5. Pedagogia. I. Vaz, Ale-xandre Fernandez. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Educao. III. Ttulo.

    CDU 37

  • CAROLINE MACHADO MOMM

    INFNCIA E CONTEMPORANEIDADE: WALTER BENJAMIN E HANNAH ARENDT

    Esta Tese foi julgada adequada para obteno do Ttulo de Doutora em Educao, e aprovada em sua forma final pelo Programa de Ps-Graduao em Educao do Centro de Cincias da Educao.

    Florianpolis, 01 de dezembro de 2011.

    ________________________

    Profa. Dra. Clia Regina Vendramini, Coordenadora do Curso

    Banca Examinadora:

    ________________________

    Prof. Dr. Alexandre Fernandez Vaz Orientador

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________

    Prof. Dr. Felipe Quinto de Almeida Examinador

    Universidade Federal do Esprito Santo

    ________________________

    Profa. Dra. Franciele Bete Petry Examinadora

    Universidade Federal da Fronteira Sul

    ________________________

    Prof. Dr. Jaison Jos Bassani Examinador

    Universidade Federal de Santa Catarina

  • ________________________

    Profa. Dra. Roselane Ftima Campos Examinadora

    Universidade Federal de Santa Catarina

    ________________________

    Prof. Dr. Christian Muleka Mwewa Examinador

    Universidade do Sul de Santa Catarina

    ________________________

    Prof. Dr. Valter Bracht Suplente

    Universidade Federal do Esprito Santo

  • AGRADECIMENTOS

    Esse trabalho foi gestado no mbito do Ncleo de Estudos e Pesquisas Educao e Sociedade Contempornea, e se articula com outras pesquisas desenvolvidas sob coordenao/orientao do Prof. Alexandre Fernandez Vaz. Reconheo que ele no seria possvel sem os fecundos debates ali travados. Agradeo as sugestes, crticas, conhecimentos partilhados.

    Nesse sentido, agradeo Lisandra Invernizzi pelo auxlio com a organizao e normatizao das referncias e com a gravao dessa apresentao.

    Bruna vila, que nos encontros para discutir partes da obra de Hannah Arendt, insistia em lanar perguntas desconcertantes me fazendo retomar o conhecido e reelabor-lo. Dedico-lhe o terceiro captulo.

    Outras duas colegas do Ncleo, mais que isso, duas queridas amigas, merecem um reconhecimento especial. Agradeo Ana Cristina Richter, que mesmo do outro lado do Atlntico se fez to presente nos ltimos dias de escrita. Agradeo as vrias leituras, indicaes, correes, contribuies. Agradeo a amizade, o cuidado amoroso e a inspirao para ousar na relao com as ideias. Por partilharmos da paixo pelos poticos textos de Walter Benjamin, dedico-lhe o segundo captulo.

    Josiana Piccolli, pela amizade. Por todo calor, todo afeto, toda cor, que essa palavra comporta. Pelas leituras compartilhadas, por todo abrigo que generosamente ofertou s minhas ideias, s minhas indecises, pela parceria no trabalho e na vida, ofereo-lhe o primeiro captulo.

    Ao professor Alexandre Vaz, agradeo por insistir na realizao desse trabalho, por oferecer-me todas as condies para realiz-lo, mesmo diante de minhas oscilaes. Agradeo por toda gentileza com que sempre acolheu e ajudou a dar forma aos meus pensamentos saltitantes, errantes. Pela pacincia com meu ritmo, minhas escolhas. Mais do que conceitos ou ideias, ensinou-me a pensar. Esse trabalho certamente no corresponde totalmente a sua orientao sria, precisa, qualificada.

    Agradeo s professoras Roselane Campos e Franciele Petry e aos professores Jaison Bassani, Felipe Quinto de Almeida e Christian Muleka Mwewa por disporem-se a contribuir com esta pesquisa junto

  • banca examinadora. Certamente o convite foi-lhes dirigido por admirar a competncia terica, mas tambm porque, de diferentes maneiras, acompanharam minha trajetria acadmica como interlocutores/as, incentivadores/as, companheiros/as.

    As/aos colegas e amigos do Ncleo de Desenvolvimento Infantil agradeo o apoio logstico e afetivo, fundamentais na concluso desse trabalho.

    Agradeo minha famlia pelo suporte em diferentes momentos e situaes. Ao Fernando e Maria Lusa sou grata por compreenderem minhas ausncias, agradeo pela pacincia em lidar com minha ansiedade, pelo carinho e acolhida em momentos difceis.

    Agradeo ainda CAPES, pela concesso da bolsa de estudos, sem a qual a realizao dessa pesquisa seria prejudicada.

  • Mas quando um moderno poeta diz que para cada homem existe uma imagem em cuja contemplao o mundo inteiro desaparece, para quantas pessoas essa imagem no se levanta de uma velha caixa de brinquedos?

    (BENJAMIN)

    Esta felicidad que yo recuerdo viene acompaada de otra felicidad, la de poder recordalo. Ya no me es posible separar una de otra. Es como si fuera un pequeo regalo del instante el hecho de que tal regalo no slo se me concede, sino que, adems, s que nunca lo perder, por mucho tiempo que pase entre uno e otro momento de su evocacin.

    (BENJAMIN)

  • RESUMO

    A investigao das noes de infncia e sua educao no debate contemporneo nos tm movido a buscar compreender como o tema se insere no que se convencionou chamar de crise da modernidade e crise da razo. Com esse intuito, tomamos como ponto de partida para a presente investigao dois movimentos pedaggicos contemporneos: um pauta-se no cuidado/educao do sujeito criana, buscando compreender a infncia por meio das vozes infantis em suas mltiplas linguagens (uma Pedagogia da Infncia); outro que defende, contra esse modelo que adjetivado antiescolar, a escolarizao como condio para a humanizao plena e como um direito inalienvel das crianas pequenas, seres em formao. Como respostas alternativas a essa disputa, encontramos, recolocando o problema da infncia e sua educao, as obras de Walter Benjamin e Hannah Arendt. Elas nos oferecem linhas de fuga, principalmente no que se refere posio que a infncia adquire nas concepes desses pensadores sobre a modernidade. Em Benjamin trata-se da construo do par conceitual infncia-experincia como simultaneamente expresso da modernidade e de seu declnio, quando a infncia se torna uma experincia entre a memria pessoal e a narrativa histrica materializada em seus objetos (brinquedos e livros); em Arendt o par conceitual central se refere relao infncia-poltica, da incompatibilidade objetiva e da complementaridade possvel de ambas, abordadas na investigao do conceito de poltica em tenso com a educao, aspectos constituintes da condio humana. Em ambos, fundamenta-se a conservao de um dilogo crtico com a tradio, de maneira que a relao entre as geraes se constitua no como dominao, mas possibilidade do novo, chance que nos conferida a cada nascimento.

    Palavras-chave: Educao e infncia. Educao infantil. Infncia e modernidade. Pedagogias contemporneas. Infncia e filosofia. Benjamin, Walter. Infncia e poltica. Arendt, Hannah.

  • ABSTRACT

    Childhood and Education in the Contemporary makes us to look for the sense of those concepts in relation in the crisis of modernity and in the crisis of reason. Our stand point are two contemporary pedagogic tendencies: the first one dedicates its efforts in caring and education children as subjects, toward understanding childhood as a multiple voices plexus (a Childhood Pedagogy). Against that model, which has been seen as a kind of anti-scholar movement, the second one defends the school as a right for little children in their formation process. We put in relief two answers to this contend. They come from the work of two very important thinkers of 20th Century, specially from their contributions on education and childhood as subjects of modernity: Walter Benjamin and Hannah Arendt. By Benjamin emerge the concepts of childhood and experience as signatures of modernity and its decadence. Childhoods appears, in its own possessions - toys and books - as an experience between personal memory and historic narrative. By Arendt childhood and politics are non compatible, but complementary concepts, in that politics and education are searched as tensioned components of Human Condition. By both authors is the dialogue with tradition a central point, in sense of thinking the relations between generations not as sovereignty, but as chance of new order what is renewed in each birth.

    Keywords: Education and Childhood. Childhood Education. Childhood and Modernity. Contemporary Pedagogies. Childhood and Philosophy. Benjamin, Walter. Childhood and Politic. Arendt, Hannah

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    ANPEd

    Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao

    ANPOCS Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais

    ANPOH CAPES

    Associao Nacional de Histria Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior

    CEB Cmara de Educao Bsica CNE Conselho Nacional de Educao CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento

    Cientfico e Tecnolgico DCNEI Diretrizes Nacionais para a Educao Infantil ECA Estatuto da Criana e do Adolescente GT Grupo de Trabalho LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educao LDBEN

    PIs

    Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional Parques Infantis

    PNE Plano Nacional de Educao RCNEI Referencial Curricular Nacional para a

    Educao Infantil SBP Sociedade Brasileira de Psicologia SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da

    Cincia TDAH Desenvolvimento da Ateno e

    Hiperatividade UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

  • SUMRIO

    NOTAS INICIAIS

    19

    CAPTULO I - EDUCAO DA INFNCIA NO CONTEMPORNEO

    23 1.1 INFNCIA E MODERNIDADE 25 1.2 ALGUNS IMPASSES SOBRE A INFNCIA NO CONTEMPORNEO

    39

    CAPTULO 2 - UMA RESPOSTA BENJAMINIANA 59 2.1 INTRODUO 61 2.2 ASPECTOS DE UMA ARQUEOLOGIA DA MODERNIDADE

    62 2.3 BRINQUEDOS (E LIVROS COMO BRINQUEDOS):

    OBJETOS DA INFNCIA

    74 2.4 MMESIS, LINGUAGEM 79 2.5 MMESIS, MAGIA, RACIONALIDADE 89 2.6 MMESIS, MAGIA, RACIONALIDADE 96 2.7 COLEO, IMAGEM, PROFANAO 105

    CAPTULO 3 - UMA RESPOSTA ARENDTIANA 119 3.1 INTRODUO 121 3.2 A TRIPARTIO DA CONDIO HUMANA 122 3.3 EDUCAO COMO PROBLEMA POLTICO 133

    NOTAS FINAIS 151

    REFERNCIAS 161

  • 19

    NOTAS INICIAIS

    Paralelamente ao crescente interesse pela infncia caminha a preocupao com sua institucionalizao. Pensar a infncia contemporaneamente faz-lo considerando tambm a sua educao. Documentos como a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA) de 1990, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN) de 1996 e, mais recentemente, aquele que reformula as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (DCNEI) de 2009, evidenciam uma preocupao com a infncia e com a educao da criana. Especialmente nos ltimos vinte anos, no campo educacional ganham destaque estudos relacionados infncia como categoria social, especialmente com o reconhecimento de suas especificidades na esfera pblica (mas tambm na esfera privada, como fazem ver as discusses contemporneas sobre se permitido que os pais batam nas crianas).

    A proclamao das crianas como sujeitos, centro do processo educacional, produtoras de cultura, desafia pesquisadores e professores: como articular as culturas infantis com a cultura institucional (chamada, a partir dos anos iniciais, de escolar)? Como inserir as crianas, mesmo as bem pequenininhas, na cultura de um tempo, considerando as suas singularidades ao se relacionarem com o mundo das coisas e pessoas que as circundam? Como lidar com os impasses que a educao da infncia passa contemporaneamente, superando a ideia de sua impossibilidade, mas tambm a de que os pequenos so seres j autnomos?

    preciso investigar se, ao contrrio da promessa de emancipar as crianas e libert-las dos padres originrios que seriam impostos pelo mundo adulto, a pedagogia talvez esteja ocultando, sob a suposio da uma autonomia infantil, o fato de que as crianas so seres em formao e que, por isso, necessitam do cuidado e proteo adultas frente aos desafios do mundo. correto pensar que, ao proclamar as crianas como sujeitos de direitos, a pedagogia periga enfraquecer, de fato, o direito dos pequenos privacidade e proteo necessrias para a introduo segura e gradativa na esfera pblica? Esse perigo foi objeto de advertncia de Hannah Arendt, j nos anos 1950, em sua crtica a certo pragmatismo educacional, mas talvez permanea e se faa mais atual do que nunca.

    Se as questes da infncia se colocam como expresso dos dilemas que desembocam nas relaes entre educao e poltica, a razo

  • 20

    e a sua recusa, linguagem e pensamento, ento preciso verificar como uma parte representativa do pensamento contemporneo se ocupa do tema. A indeterminao da infncia exige no apenas que a conheamos, mas que tambm analisemos o que possvel pensar sobre ela na trama que envolve o pensamento moderno em suas vicissitudes1.

    A investigao das noes de infncia e sua educao no debate contemporneo nos tem movido a buscar compreender como o tema se insere no que se tem convencionado chamar de crise da modernidade e crise da razo. Nesse quadro, o debate sobre a educao da infncia no tem sido, stricto sensu, nosso problema de pesquisa. Ainda que tomemos vrios exemplos da educao de zero a cinco/seis anos como ponto de partida, configura-se como uma espcie de sombra ou de motor, que acompanha/impulsiona/provoca o pensar.

    Nesse sentido, o objetivo da pesquisa aqui proposta investigar lugares da infncia e sua educao nos interstcios da crtica modernidade na obra de dois autores: Walter Benjamin e Hannah Arendt. Nesse contexto, pretendemos observar possveis contribuies de ambos para as questes contemporneas que se colocam como desafios formao institucional dos pequenos.

    Dois estrangeiros. Walter Benjamin, um estrangeiro de nacionalidade indeterminada, mas de origem alem (GAGNEBIN, 1999), que fez da transitoriedade um modo de vida. Como observa Arendt (2008b, p. 135), nas poucas vezes em que se preocupou em definir o que fazia, considerou-se um crtico literrio, mas no escondeu sua aspirao de tornar-se o nico verdadeiro crtico da literatura alem. Hannah Arendt, a menina vinda do estrangeiro: com esses versos de Schiller, como estrangeira, quem vem de longe, desconhecida, costumava referir-se a si (DUARTE, 2008). Desde muito cedo assumiu a condio de algum que procura seu lugar no mundo abstendo-se de rtulos, movimento que gerou a incompreenso de muitos, mas que fez com que outros observassem que sua perspectiva terica no se pautava nos conceitos polticos tradicionais: Nem liberal, nem marxista ou

    1 Dessa forma, infncia aqui tomada como categoria para possvel compreenso da sociedade

    e do pensamento contemporneo. E, nesse sentido, esta tese integra-se ao programa de pesquisas Teoria crtica, racionalidades e educao III, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e dirigida por Alexandre Fernandez Vaz junto ao Ncleo de Estudos e Pesquisas Educao e Sociedade Contempornea da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela d certa continuidade ao nosso trabalho de mestrado (MOMM, 2006), entre outros desenvolvidos no interior do programa, e se coloca tambm como um fundamento terico para uma perspectiva de investigao a ser desenvolvida nos prximos anos.

  • 21

    conservador, o trao do pensamento arendtiano assumiu a insgnia do amor pelo mundo. (DUARTE, 2008, p. 46).

    Dois crticos do seu tempo a compor tradies que so crticas ao projeto moderno: o primeiro radica-se na crtica dialtica ao Iluminismo, a segunda elabora sua anlise buscando os fundamentos da democracia e suas possibilidades. Apesar de toda barbrie que presenciaram e o totalitarismo , para ambos, a expresso mxima de uma sociedade alienada, destituda de sua humanidade e contra qualquer possibilidade de retorno a um estado original que teria sido degradado pela modernidade, empreendem uma filosofia contra o esquecimento. Dessa compreenso resulta a postura diante das questes que o seu tempo lhes colocou, de que o pensamento deve encontrar-se enraizado na experincia, na tradio, condio para sua relevncia e expresso.

    Preocupados com os vindouros, os novos. As reflexes desses dois pensadores se voltam para o passado da humanidade, a tradio, para o passado do homem, a criana. Neles depositam suas esperanas, ainda que um tanto utpicas, seguramente em nada idealizadas. Mantm uma esperana revolucionria pelo novo.

    O trabalho est organizado em trs captulos que podem ser lidos em sua interconexo, mas tambm como textos com relativa independncia entre si. O de abertura trata da educao da infncia no contemporneo, apresentando sumariamente o debate entre dois movimentos que, no Brasil, mas fazendo eco com o debate internacional e encontrando materialidade em dispositivos legais de nosso pas, detm pressupostos e bases tericas distintas. Procuramos trazer alguns dos principais argumentos de cada uma das pedagogias a partir do que anunciam para, em seguida, coloc-las sob tenso, apontar seus limites, apresentar questes. Antes disso, elaboramos uma introduo mais geral sobre as relaes entre infncia e modernidade.

    Nos captulos seguintes procuramos nas obras de Walter Benjamin e Hannah Arendt, esboar alguns aspectos da posio que a infncia adquire nas concepes desses pensadores na modernidade. Trata-se de textos que encontram extenses diferentes, mais ou menos correspondentes ao lugar que o tema da infncia alcana em cada uma das duas obras.

    O captulo sobre Walter Benjamin toma como ponto de partida o par conceitual infncia-experincia como simultaneamente expresso da modernidade e de seu declnio, investigando em sua obra como a infncia se torna um territrio entre a memria pessoal e a narrativa histrica a partir da relao entre a ela e seus objetos (brinquedos e

  • 22

    livros). O carter mimtico das prticas infantis, em combinao com os instrumentos de brincar (Spielzeugen) o fio condutor do texto, alcanando temas como linguagem, coleo, profanao.

    O terceiro captulo trata do mapeamento do tema da infncia e sua educao em obras de Hannah Arendt. O par conceitual central se refere relao infncia-poltica, da incompatibilidade objetiva e da complementaridade possvel de ambas, abordadas na investigao do conceito de poltica em sua relao com a educao e com os elementos constituintes da condio humana.

    Na ltima parte, procuramos retomar elementos apresentados ao longo do trabalho, que se entende como um comentrio, buscando sintetizar (recolocando questes em outro plano) algumas das principais contribuies de Walter Benjamin e Hannah Arendt no que se refere infncia e sua educao. O leitor convidado no a seguir um caminho linear em direo a grandes snteses ou conceitos em que possa se apegar, mas a trilhar um caminho cheio de sendas e desvios. Afinal, saber orientar-se fcil, difcil perder-se em caminhos aparentemente conhecidos. Ou, por outra, mtodo desvio.

  • 23

    Desprovida da palavra, incapaz da paragem certa, hesitante quanto aos objetos do seu interesse, inapta no clculo dos seus benefcios, insensvel razo comum, a criana eminentemente humana, pois sua aflio anuncia e promete os possveis. O seu atraso inicial sobre a humanidade, que a torna refm da comunidade adulta, igualmente o que manifesta a esta ltima a falta de humanidade de que sofre e o que a chama a tornar-se mais humana. [...] Esta a dvida que temos para com a infncia e que no saldada. Mas basta no a esquecer para resistir e, talvez, para no ser injusto. Esta a tarefa da escrita, do pensamento, da literatura, das artes, aventurar-se a prestar testemunho.

    (LYOTARD, 1997, p. 11-15)

    EEDDUUCCAAOO DDAA IINNFFNNCCIIAA NNOO CCOONNTTEEMMPPOORRNNEEOO

    CCAAPPTTUULLOO II

  • 24

  • 25

    1.1 INFNCIA E MODERNIDADE

    A subjetivao do mundo um parmetro de distino entre os pensamentos antigo e moderno. Mesmo se seguirmos a sugesto de Horkheimer e Adorno (1985), segundo a qual o sujeito se coloca desde o primeiro momento em que um ser humano se separou, pela conscincia e pela ao correspondente, da natureza, possvel dizer que a modernidade inaugura um outro tipo de relao entre sujeito e objeto. Dito de forma algo esquemtica, essa demarcada, entre outros aspectos, pela mediao da razo como absoluta, pela cincia como forma de operao, pela posio do humano, e no mais de uma instncia exterior e superior, como centro do mundo. No casual que a liberdade poltica evocada pelas revolues, assim como a centralidade do desejo, tal como erigir a Psicanlise, sejam marcas da experincia moderna. De um momento de vidncia passa-se a outro, de evidncia, como reza o ttulo de um ensaio sobre Benjamin (MATOS, 2008) autor, alis, no Limiar do moderno2, que mantm acesa a melancolia por um tempo outro, de prticas e saberes mimticos.

    Ao se ocuparem da questo de como possvel saber sobre o real, os modernos colocam entre o conhecimento e o objeto de forma distinta daquela dos medievais e dos antigos a figura do sujeito (GHIRALDELLI JR., 1997). Descartes funda o pensamento moderno caracterizando a subjetividade como aquilo que se articula em torno do pensamento, algo que encontraremos tambm em Kant, na formulao que se tornou lema do Iluminismo: Sapere Aude! Tem coragem de fazer uso de teu prprio entendimento. Esclarecimento (Aufklrung) a sada do homem de sua menoridade de que ele mesmo culpado. A menoridade a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientao de outrem responde Kant ([1783?], p. 1) na abertura do opsculo Resposta pergunta: o que o esclarecimento?. As relaes entre infncia, subjetividade e pedagogia se reordenam quando o pensamento moderno volta seu interesse para a figura do sujeito, quando a subjetividade passa a constituir um problema filosfico e no mais uma soluo na busca pela verdade (GHIRALDELLI JR., 1997).

    O projeto iluminista introduz uma preocupao com a infncia e sua educao, segundo a qual a razo seria o meio para livrar os homens da ignorncia, do mito. Se, na poca moderna, o esclarecimento condio para autonomia, a pedagogia vai tratar de educar a criana para

    2 Ttulo de livro de Ernani Chaves.

  • 26

    retir-la de sua situao de incompletude, inabilidade, desorientao, inferioridade. A criana, segundo uma tradio, marcada pela irracionalidade, mero esboo do homem. A educao meio fundamental para sua humanizao. escola caber a tarefa de preparar as crianas para a sociedade moderna, tomando a infncia como material da poltica.

    A Histria Cultural no interior da qual desponta a obra essencial de Aris (1981) nos mostra que a infncia algo que podemos circunscrever como uma experincia que nasce na modernidade. O estudo iconogrfico realizado por aquele autor localiza, entre os sculos XVI e XVII, o aparecimento de um novo sentimento em relao s crianas, que corresponde conscincia da particularidade dos pequenos e do qual emerge a noo de infncia3. O que se entende por infncia vem, desde ento, se diferenciando em virtude desse conceito estar diretamente vinculado s condies geogrficas, histricas, culturais e sociais. Podemos falar de uma produo social da infncia. Dependendo do contexto em que se desenvolvem, as crianas so constitudas e constituem-se diferentemente.

    A ausncia de capacidade, de completude, de fala e, portanto, de razo, que marca a infncia ganhou diversas significaes no decorrer da histria. No Medievo foi interpretada como terreno privilegiado do pecado, territrio primordial do erro e de todos os vcios de pensamento dos quais devemos nos libertar. Essa linha de pensamento, que atravessa a pedagogia crist com Santo Agostinho e nos alcana por meio de Descartes, coloca a infncia como um mal necessrio e as crianas como seres privados da razo que necessitam ser corrigidos em suas tendncias egostas, selvagens e irrefletidas. Concomitantemente, essa ausncia revela a infncia como nico solo no qual a razo que lhe falta, mas que detm em potncia pode desenvolver-se, desde que, segundo uma tradio que tambm tem origem em Plato, cruza o Renascimento

    3 O trabalho clssico de Aris (1981) aqui mencionado como uma referncia sobre as origens

    do sentimento da infncia na Modernidade. Lembre-se, no entanto, que no se pode considerar que toda a infncia do incio do perodo moderno aquela tratada pelo autor, visto ter feito ele um recorte especfico nas fontes iconogrficas que retratavam uma das camadas sociais de ento. Alm disso, as contribuies de Aris (1981) no devem sugerir que anteriormente no houvesse propriamente, ou no se tivesse pensado, a infncia e sua educao. Ao estudar o conceito em parte da obra de Plato, Kohan (2003) apresenta elementos que problematizam a viso j consolidada entre os historiadores da infncia em grande parte influenciados por ries desta como inveno moderna. Ao apresentar uma infncia que remeteria aos antigos, Kohan mostra que no se pode falar sobre ela apenas no mundo moderno, mas numa espcie de reinveno do seu lugar scio-histrico.

  • 27

    com Montaigne e chega at ns por meio do Romantismo de demarcao rousseauniana, no seja sufocada pelo acmulo de informaes obscuras e contraditrias. Que possa, respeitando o ritmo e interesse prprios de cada criana, desenvolver-se naturalmente (GAGNEBIN, 1997).

    A reflexo filosfica, nesse sentido, revela uma representao paradoxal da infncia como sendo, simultaneamente, o outro ameaador da razo, mas tambm o terreno exclusivo de sua ecloso. (GAGNEBIN, 1997, p. 91). justamente sobre a possibilidade anunciada pela ausncia de linguagem e, portanto, de razo (logos denota indistintamente ambos conceitos) que o pensamento filosfico, mas tambm o pedaggico, se encontram com uma problemtica da Paidia, da necessria formao da criana, do in-fans.

    A institucionalizao da infncia modernamente (re)coloca o problema da formao. A proteo infncia, em dado momento histrico, impulsiona a criao de uma srie de associaes e instituies para cuidar da criana sob diferentes aspectos: da sua sade e sobrevivncia, com os ambulatrios obsttricos e peditricos; da sua moralizao, dos seus direitos sociais, com as propostas de legislao e de associaes de assistncia (algo derivado da Doutrina dos Direitos Humanos); da sua educao e instruo, tanto no ambiente privado, na famlia, como no espao pblico, nas instituies de educao infantil e na escola primria (KUHLMANN JR., 2005).

    Podemos dizer que h, na modernidade, um interesse pela infncia, se lembrarmos Horkheimer e Adorno (1985) ao se referiram ao corpo. Esse processo mostra suas credenciais na veiculao de produtos destinados s crianas, como sugere Ghiraldelli Jr. (1997), notvel, nos diferentes segmentos sociais: brinquedos, roupas, produtos de beleza, alimentos, msica, literatura, filmes, programas televisivos, espaos para diverso e festas infantis. Paralelamente ao crescente interesse econmico, caminha a preocupao com sua institucionalizao. Pensar a infncia contemporaneamente pensar tambm a sua educao nos espaos institucionalizados, que demarcam uma preocupao com ela tambm fora dos marcos privados.

    Diferentes reas do conhecimento (psicologia, pedagogia, sociologia, nutrio, educao fsica etc. ou mesmo nomeadas de outra maneira, como pediatria, puericultura, economia, e psicopedagogia, entre tantas outras) tomam a criana como objeto de investigao cientfica legitimado por um modelo de conhecimento especificamente moderno, universalizante e baseado na crena da razo, como sugere

  • 28

    Ghiraldelli Jr. (1997) baseado em Foucault, como instrumento de domnio da natureza por meio da tcnica. Esse movimento pode ser lido como um conjunto de dispositivos disciplinares cujo objetivo seria, pela produo de discursos sobre a infncia, constitu-la como objeto e como sujeito. Conhecer, cuidar e educar, certamente, mas, tambm, dominar corpos, desejos, projetos, pensamentos das crianas.

    A histria da educao institucionalizada da infncia no Brasil revela esse projeto de dominao, como apontam alguns estudos, com destaque para os de Kuhlmann Jr. (1998, 1999, 2000, 2005). Em seu bojo observamos que a questo educacional atravessada por polticas assistenciais cientificamente organizadas atreladas a temas como a mortalidade infantil e a ideia de infncia moralmente abandonada. Creches, escolas maternais e jardins de infncia fizeram parte do conjunto de instituies modelares de uma sociedade civilizada.

    A expanso da Educao Infantil no Brasil tem ocorrido de forma crescente nas ltimas dcadas, acompanhando a intensificao da urbanizao, a participao da mulher no mercado de trabalho e as mudanas na organizao e estrutura das famlias (KUHLMANN JR., 1998). A conjuno desses fatores ensejou um movimento da sociedade civil e de rgos governamentais para que o atendimento s crianas de zero a seis anos fosse reconhecido como educacional, como de fato aconteceu, na Constituio Federal de 1988. A partir de ento, a educao infantil em creches e pr-escolas passou a ser um dever do Estado e um direito da criana. Assim se l na Carta Magna:

    Art. 208. O dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de: IV - atendimento em creches e pr-escolas s cri-anas de zero a seis anos de idade. (BRASIL, 1990a, p. 35) Art. 227. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, a-limentao, educao, ao lazer, profissionali-zao, cultura, dignidade, ao respeito, liber-dade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-lo a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso. (BRASIL, 1990a, p. 37)

    O Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990, destaca tam-bm o direito da criana a este atendimento. Ao regulamentar o artigo

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    227 da Constituio Federal, insere-as no mundo dos direitos, mais es-pecificamente no dos Direitos Humanos4. Nesse nterim, temos a apro-vao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional /LDBEN, de 1996, documento em que a Educao Infantil passa a ser considerada a primeira etapa da educao bsica, tendo como finalidade o desenvol-vimento integral da criana at seis anos de idade. O texto legal marca ainda a complementaridade entre as instituies de educao infantil e a famlia.

    Art. 29. A educao infantil, primeira etapa da educao bsica, tem como finalidade o desenvol-vimento integral da criana at os seis anos de i-dade, em seus aspectos fsico, psicolgico, inte-lectual e social, complementando a ao da fam-lia e da sociedade. (BRASIL, 1996, p. 25-26).

    Outro importante trecho tambm coloca mais um elemento a constituir uma identidade para esse segmento da educao. Ao apresen-tar uma diretriz para a avaliao na educao infantil, coloca-se em opo-sio a uma educao preparatria e aos modelos avaliativos dos demais segmentos:

    Art. 31. Na educao infantil a avaliao far-se- mediante acompanhamento e registro do seu de-senvolvimento, sem o objetivo de promoo, mesmo para o acesso ao ensino fundamental. (BRASIL, 1996, p. 26).

    Quando a educao se torna um direito legal da criana, o Ministrio da Educao passa a elaborar documentos subsidiadores e mandatrios para a educao infantil, dentre os quais podemos destacar:

    a) os Critrios para um atendimento em creche que respeite os direitos fundamentais das crianas (BRASIL, 1995);

    b) os Subsdios para credenciamento e funcionamento de Instituies de Educao Infantil no Brasil (BRASIL, 1998a);

    c) o Referencial Curricular Nacional para a

    4 Sobre o tema da doutrina dos direitos humanos e sua incorporao pela educao infantil,

    consulte D'AFONSECA (2006).

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    Educao Infantil (RCNEI) (BRASIL, 1998b); d) as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

    Educao Infantil e Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formao Docente da Educao Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental ambas mandatrias (BRASIL, 2009, 1999);

    e) o Plano Nacional de Educao (PNE) (BRASIL, 2001);

    f) os Parmetros Nacionais de Qualidade Para a Educao Infantil (BRASIL, 2006).

    De certa forma, cada um deles procura estabelecer critrios de qualidade para o atendimento das crianas e constituir-se como referncia para (re)elaborao, organizao, articulao, desenvolvimento e avaliao de propostas pedaggicas para as instituies de educao infantil, tendo como princpio fundamental a garantia dos direitos das crianas educao. A publicao destes documentos pelo Conselho Nacional de Educao (CNE) reafirma uma preocupao e investimento em favor da defesa dos direitos das crianas, destacando os pequenos como alvo de um amplo conjunto de polticas pblicas.

    Diante dessas transformaes, a Educao Infantil passa por um intenso processo de reviso de concepes sobre a educao das crianas. O Parecer CNE/CEB (Cmara de Educao Bsica) - 20/2009, que antecede as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil, destaca como prioritrias as discusses sobre como encaminhar o trabalho junto s crianas at trs anos, e como articular o trabalho realizado com aquelas que tm entre quatro e cinco/seis (conforme as novas orientaes que diminuem essa etapa em um ano), com o realizado nos primeiros anos do ensino fundamental, sem perder de vista as especificidades que compem cada um desses segmentos.

    So as crticas ideia de dominao e disciplinamento da infncia, da criana como ser incompleto e passivo no processo de ensino-aprendizagem ainda amplamente determinante das prticas educativas, que colocam a necessidade de reafirmar a concepo de criana como sujeito de direitos especficos, que produzida na relao com a cultura e se coloca como ser ativo nesse processo. A reviso das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil anteriormente aprovadas (Resoluo CNE/CEB n 1/99 e Parecer

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    CNE/CEB n 22/98) se revelara fundamental para responder novos desafios do campo, tais como: a ampliao das matrculas, a regularizao do funcionamento das instituies, a reduo no nmero de docentes no-habilitados na Educao Infantil.

    Esse processo que culmina, de certa forma, na elaborao das diretrizes, revela a contribuio de diferentes reas do conhecimento (sobretudo da Sociologia da infncia) no delineamento de uma concepo que assume a infncia como categoria histrica e como construo social. A contribuio mais significativa desta viso no contexto das polticas de Educao Infantil a concepo de criana como cidad, sujeito de direitos, entendida como produtora de cultura e que produzida na cultura.

    A publicao das Diretrizes Nacionais para a Educao Infantil (BRASIL, 2009), apesar de demarcar importantes avanos legais em relao garantia dos direitos das crianas a uma Educao Infantil de qualidade a ser assegurada pelo poder pblico, no revela uma unanimidade da rea. Expressa, por outro lado, a indefinio de uma identidade pela qual o campo da Educao Infantil passa contemporaneamente. A proclamao das crianas como sujeitos sociais de direitos especficos (que no sejam aqueles relacionados ao direito da famlia), como centro do planejamento curricular, coloca novas questes que desafiam o campo educacional. H um importante debate terico-metodolgico instalado que indica uma necessria reflexo no cruzamento dos conceitos de infncia e educao.

    Em meio ao processo de legitimao dos direitos infantis como prprios, do reconhecimento das especificidades dessa faixa etria nos documentos legais, podemos acompanhar um movimento que toma as crianas como atores sociais de pleno direito. (PINTO; SARMENTO, 1997, p. 20). Nessa direo, alguns/algumas pesquisadores tm se esforado em buscar no universo infantil respostas aos impasses que a condio moderna da infncia coloca ao campo educacional, com a finalidade de construir um novo dizer, um outro discurso sobre ela. Sem desconsiderar seus antecedentes5, reconhecemos que na tese de doutoramento de Elosa Rocha (1999), intitulada A pesquisa em

    5 preciso enfatizar que o trabalho citado apresenta e d forma ao que anunciam outros que o

    antecederam, a exemplo da pesquisa de Ana Lcia Goulart Faria (1994), inspirados, sobretudo, nos trabalhos desenvolvidos em algumas regies da Itlia registrados, especialmente, no Manual de educao infantil: de 0 a 3 anos, organizado por Bondioli e Mantovani (1998), e nos estudos sociolgicos sobre a infncia, com destaque para Pinto e Sarmento (1997); Sarmento (2004, 2005).

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    educao infantil no Brasil: trajetria recente e perspectivas de consolidao de uma pedagogia, que se renem os pilares para uma pedagogia da infncia.

    Na pesquisa de Faria (1994, 1999) sobre os parques infantis administrados por Mario de Andrade em So Paulo, j encontramos argumentos semelhantes aos de Rocha (1999), ao destacar perspectivas para a constituio do que chamar de Pedagogia da Infncia. Abaixo apresentamos alguns excertos sobre o protagonismo infantil, a complementaridade entre o que denomina de espao coletivo de convvio com a famlia e com a escola, sobre a cultura infantil, a educao como direito especfico das crianas (vrios desses termos estaro presentes nos documentos de referncia para a Educao Infantil produzidos pelo Ministrio da Educao). Referindo-se aos Parques Infantis, Faria (1999, p. 69-70) escreve:

    Podemos dizer que esse espao coletivo de conv-vio entre crianas (de vrias idades, meninos e meninas, de origens culturais diversas), entre a-dultos (educadoras sanitrias, instrutoras, mdi-cos, vigilantes, zeladores, mes) e entre adultos e crianas pode ter dado origem a uma pedagogia das diferenas, uma pedagogia das relaes, qual pretendemos dar continuidade e na qual a criana a protagonista. [...] seu enfoque era na prpria criana, e no a-penas no direito trabalhista de sua me. [...] Dessa maneira, os PIs [Parques Infantis] j eram um es-pao educativo complementar (e no substituto) famlia e tambm escola. (grifo nosso).

    Sobre a concepo de cultura, novamente a mesma autora, assim se manifesta:

    Mrio de Andrade acreditava que a criana no s aprende e consome a cultura do seu tempo, como tambm produz cultura, seja a cultura infantil de sua classe, seja reconstruindo a cultura qual tem acesso. (FARIA, 1999, p. 70, grifo nosso).

    Rocha (1999), por sua vez, realiza um mapeamento das publicaes sobre a educao das crianas de zero a seis anos entre 1990 e 1996 apresentadas nas reunies anuais de relevantes associaes de

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    pesquisadores6 e, a partir da contribuio de diferentes reas do conhecimento, procura observar elementos que contribuam para constituir um campo particular na rea da Pedagogia, uma Pedagogia da Infncia, cujo objetivo principal seria delimitar a especificidade do trabalho em instituies de Educao Infantil procurando diferenci-lo da dinmica escolarizante que tem lugar no ensino fundamental, bem como do carter assistencialista e compensatrio que nasce junto com as primeiras instituies para os pequenos. O que prope delimitar as especificidades do campo a partir do que anunciam as vozes das crianas pequenas sobre seu modo de agir e compreender o mundo, seus processos de constituio como seres humanos em diferentes contextos sociais, sua cultura, suas capacidades intelectuais, criativas, estticas, expressivas e emocionais. (ROCHA, 1999, p. 61).

    Em trabalho posterior, Rocha (2002, p. 96) procura somar novos contornos para o quadro, ao afirmar que:

    [...] o conhecimento produzido nos diferentes campos cientficos vem permitindo identificar uma produo cientfica neste campo particular, e sua intrnseca relao com a realidade dinmica, numa via de mo dupla, que transforma e trans-formada, num movimento que nos coloca como pesquisadores frente ao desafio de tomar posio em favor da histria, do original, do inesperado e da esperana em construir uma Pedagogia que corresponda diversidade e a heterogeneidade das infncias considerando, sobretudo, a plenitude das possibilidades humanas tal como nos inspiram os povos originais atravs do convvio entre adul-tos e crianas, e entre as crianas sem separao etria; na aventura e na descoberta do mundo, no movimento e na livre expresso, na experincia esttica e na ao criativa.

    Esse movimento, do qual consideramos o trabalho de Rocha no somente o propulsor, mas tambm o mais expressivo tem alcanado, desde sua divulgao, significativo espao nas discusses da rea, bem

    6Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Educao (ANPED), Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias Sociais (ANPOCS), Associao Nacional de Histria (ANPUH), Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia (SBPC).

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    como apoio de pesquisadores que seguem semelhante linha de pensa-mento, numa tentativa mesmo de consolidao de uma pedagogia multi-disciplinar7 que de fato leve a infncia em considerao a partir do que seria um ponto de vista das crianas.

    Rocha (1999, p. 32) recorre a Kuhlmann Jr. (1997, p. 10) para in-dicar como se deve examinar a infncia:

    [...] considerar a infncia como uma condio da criana. O conjunto de experincias vividas por elas em diferentes lugares histricos, geogrficos e sociais muito mais do que uma representao dos adultos sobre esta fase da vida. preciso conhecer as representaes de infncia e considerar as crianas concretas, localiz-las nas relaes sociais, etc., reconhec-las como produtoras da histria.

    Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil (BRASIL, 2009) recentemente revisadas8 localizamos diversas marcas que sinalizam uma consonncia entre tal documento e o discurso da Pe-dagogia da Infncia. J no incio do texto da resoluo, no Art. 4, en-contramos o conceito de criana expresso nos textos dos autores que se articulam em torno da referida abordagem:

    [...] a criana, centro do planejamento curricular, sujeito histrico e de direitos que, nas interaes, relaes e prticas cotidianas que vivencia, cons-tri sua identidade pessoal e coletiva, brinca, ima-gina, fantasia, deseja, aprende, observa, experi-menta, narra, questiona e constri sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2009, p. 1, grifo nosso).

    Esta preocupao se evidencia, sobretudo, em um aspecto: a busca por constituir uma nova metodologia de pesquisa e interveno para o campo da educao da infncia que corresponda concepo que advoga. Como observa Rocha (1999, p. 161):

    7 Em nota explicativa, Rocha (1999, p. 5) define o termo multidisciplinar como nada mais que o conjunto que abrange muitas disciplinas, ou as mltiplas disciplinas que esto de alguma forma envolvidas em torno de um tema ou estudo. 8 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Infantil tm sua primeira verso

    publicada em 1999.

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    Uma perspectiva de enquadramento social, baseada em sujeitos idealizados e contextos naturalizados ou concretizada em pesquisas que privilegiam o indivduo e o estabelecimento de padres de desenvolvimento e aprendizagem, vem cedendo lugar nestes anos noventa a uma pesquisa que cada vez mais leva em conta em suas abordagens as dimenses contextuais do objeto estudado.

    Entretanto, apesar da considerao da heterogeneidade da crian-a, no perodo delimitado para o estudo da autora (1990 a 1996) ainda so poucos os trabalhos em que a criana em suas variadas linguagens tomada como fonte de anlise. O estado da arte realizado por Rocha (1999, 2008) impulsiona estudos que procuram dar voz s crianas. Po-demos observar esse movimento em vrias produes recentes que to-mam a infncia e suas expresses como objeto de estudo, buscando o desvelamento de infncias (no plural) a partir de si prprias. Em ou-tras palavras, torna-se cada vez mais frequente no debate sobre a educa-o infantil o uso de expresses e o emprego de prticas pedaggicas delas derivadas que do conta da criana como sujeito de direitos, das culturas infantis, da necessidade de observar os pequenos, mesmo os bem pequenos (de zero a trs anos) como dotados de autonomia e capacidade de produzir mltiplas linguagens, para alm da oral, reco-nhecendo e garantindo sua participao no espao pblico ao qual foram destinadas9.

    Em busca de superar os modelos influenciados por certa Psicolo-gia do Desenvolvimento, que marcariam uma interveno pautada na padronizao das crianas, a Pedagogia se lanou em busca das contri-buies de outras reas do conhecimento aproximando-se principalmen-te de uma certa Sociologia e de certa Antropologia que fossem capazes de auxiliar na compreenso e reconhecimento da pluralidade das crian- as e do modo como vivem suas infncias10.

    9 Podemos citar alguns desses trabalhos: Quinteiro (2000), Batista (1998), Prado (1998),

    Oliveira (2001), Coutinho (2001, 2002, 2010), Agostinho (2003, 2010), Martins Filho (2005), Mller (2010), Cerisara (1999), Schmitt (2008). 10

    Compreender a infncia como uma construo histrica que se d de forma no linear significa admitir que, ao mesmo tempo, h conflitos e contradies entre diferentes concepes sobre ela.

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    [...] porque cada qual em seu mbito apresenta e-lementos relativos diferena e influncia de contextos especficos na construo da diversida-de, como afirmao positiva e contrria ao estabe-lecimento de padres de normalidade na constitui-o do ser humano, e da infncia em particular. (ROCHA, 1999, p.76).

    A aproximao com os campos da Sociologia da Infncia e da Antropologia da Criana justificada pelo incremento na compreenso da diversidade infantil em relao ao adulto, ou seja, no se trataria, em relao aos pequenos, de ausncia de algo presente apenas nos adultos, mas de diferena, presena de outras caractersticas.

    Esses trabalhos apoiam-se em estudos que consideram a criana como ator social e, portanto, capaz no s de se apropriar, mas tambm de produzir cultura. As obras de Montandon (2001), Sirota (2001), Corsaro (2011), Pinto e Sarmento (1997), Sarmento (2004, 2005) so referncias para pensar a constituio de uma Sociologia da Infncia. No texto A emergncia de uma sociologia da infncia no Brasil, Quinteiro (2003) apresenta os principais argumentos desses autores e aponta o crescente interesse pelos estudos relacionados infncia a partir do Congresso Mundial de Sociologia que reunira, em sua edio de 1990, inmeros socilogos para debater sobre os vrios aspectos que envolvem o processo de socializao da criana e a influncia exercida sobre esta pelas instituies e agentes sociais com vistas sua integrao na sociedade contempornea (QUINTEIRO, 2003, p. 1). Segundo Quinteiro (2003, p. 2), a principal questo que emerge dos balanos realizados por Sirota (2001) e Montandon (2001) a construo social da infncia como um novo paradigma, com nfase na necessidade de se elaborar a reconstruo deste conceito marcado por uma viso ocidental e adultocntrica de criana. Em busca de uma etnografia das culturas infantis, a autora apresenta, sem desenvolver, o argumento de que a cultura imediatamente linguagem (QUINTEIRO, 2003, p. 12), no pode ser reduzida s expresses orais e escritas. Esses trabalhos contribuem para justificar a necessidade de se construir uma metodologia que conseguisse compreender os modos prprios de manifestao infantil considerando suas mltiplas linguagens, suas cem linguagens11.

    11 Esta expresso utilizada em referncia poesia de Loris Malaguzzi, frequentemente citada

    em trabalhos que tratam da defesa da noo de culturas infantis.

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    A Antropologia da Criana, por sua vez, tambm contribuiria no reconhecimento da capacidade de atuao das crianas como criadoras de seu prprio sistema simblico e viso de mundo, construindo uma identidade para si e para os outros. Nas palavras de Clarice Cohn (2005, p. 21):

    Ao contrrio de seres incompletos, treinando para a vida adulta, encenando papis sociais enquanto so socializados ou adquirindo competncias e formando sua personalidade social, passam a ter um papel ativo na definio de sua prpria condio.

    Esta autora, uma das principais referncias da rea da Antropologia para a Pedagogia da Infncia, interpreta a criana como produtora de cultura e como uma agente que teria muito o que ensinar, j que expressa questes que os adultos normalmente no tm em seu escopo, ou o fazem de forma distinta. Novamente surge uma afirmao da diferena num sentido positivo de que as crianas no sabem menos, mais sim outras coisas a respeito do mundo. Sobre o aprendizado das crianas Xikrin, Cohn (2002, p. 28) observa que elas no simplesmente aprendem as relaes sociais em que tm e tero que se engajar ao longo da vida, mas atuam em sua configurao.

    Em recente reviso da trajetria do Grupo de Trabalho - GT07 - da Educao da Criana de 0 a 6 anos - da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao no Brasil (ANPEd), Rocha (2008) reafirma todo esse itinerrio, afirmando que nas dcadas de 1990 e 2000 a infncia passa a ser compreendida como uma categoria social, a criana como ser concreto e real, sujeito social heterogneo que se constitui nas relaes sociais como reprodutora e produtora de cultura (ROCHA, 2008). Destaca as contribuies da Sociologia, em especial as da Sociologia da Infncia, notadamente em relao

    [...] afirmao dos direitos das crianas, o reconhecimento da ao social das crianas e, especialmente, reafirmao do conceito de cultura infantil, cultura essa no compreendida num sentido absoluto, autnomo ou independente em relao s configuraes estruturais e simblicas do mundo adulto, nem tampouco como mera reproduo. (ROCHA, 2008, p. 58).

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    a compreenso da criana como ator social que, afirmando-a em sua inteligibilidade, coloca ao campo investigativo a necessidade de considerar as culturas infantis, os modos prprios das crianas de compreenso e atuao no mundo, apontado a necessidade de procedimentos metodolgicos nas pesquisas com elas que possam recolher/acolher as manifestaes prprias da infncia (ROCHA, 2008).

    Isso implica, dentre outras demandas, pensar num espao educativo que atenda s necessidades desse sujeito produtor de cultura recm reconhecido como tal pelos estudos apontados. Observa-se a incompatibilidade entre as possibilidades e especificidades desse sujeito com o espao de educao a ele destinado. Torna-se necessria, portanto, a defesa de um espao educativo que contemple as necessidades da criana em termos de possibilitar a expresso de suas mltiplas dimenses. Conforme Faria (1999, p. 69)

    Uma pedagogia da educao infantil que garanta o direito infncia e o direito melhores condies de vida para todas as crianas (pobres e ricas, brancas, negras e indgenas, meninos e meninas, estrangeiras e brasileiras, portadoras de necessidades especiais, etc.) deve, necessariamente, partir da nossa diversidade cultural e, portanto, a organizao do espao deve contemplar a gama de interesses da sociedade, das famlias e prioritariamente das crianas atendendo as especificidades de cada demanda possibilitando identidade cultural e sentido de pertencimento.

    Encontramos no trabalho de Agostinho (2003, 2004) a defesa da necessidade de participao das crianas na transformao das creches em lugares de brincadeira, liberdade, movimento, encontro e quietude:

    As crianas, ao se apropriarem do espao da cre-che, vo dando a ele novos sentidos e significa-dos, inventando outros jeitos de lidar com o cho, paredes, teto, objetos, arranjos, colegas e adultos, criando solues, para viver um lugar de brinca-deira, liberdade, movimento, encontro e de quie-tude. Transformam, mudam o espao, fazendo coisas para alm da imposio do trao arquitet-

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    nico e do que o adulto prope. (AGOSTINHO, 2004, p. 15).

    Os modelos padronizados, segundo a autora, desfavorecem as in-teraes e minimizam as possibilidades de reao frente ao estabelecido, reduzindo as possibilidades de construo de sentido de pertencimento. Por essa razo, em sua pesquisa, Agostinho (2003, 2004) objetiva rom-per com o que denomina de ditadura da mesmice: os mesmos espa-os, as mesmas configuraes fsicas, creches que se repetem e que, por sua vez, repetem a escola (AGOSTINHO, 2004, p. 1), defendendo que se busque nas crianas

    [...] as respostas para nossas indagaes, apostan-do que nos dariam sinais que indicassem os cami-nhos possveis para a construo de um espa-o/lugar da creche que respeite os seus direitos, sentimentos, desejos, jeitos e trejeitos. (AGOSTI-NHO, 2004, p. 3).

    Contra a homogeneizao proporcionada s crianas por prticas pedaggicas naturalizantes, adultocentradas, descontextualizadas, por uma arquitetura padronizada baseadas numa concepo de infncia como porvir, da criana como ser incapaz, incompleto, passivo como alternativa para superar o carter assistencialista e, concomitantemente, o modelo escolar com centralidade na dimenso cognitiva, a Pedagogia da Infncia procura se afirmar como um campo de pesquisa e interven-o fundamentado na pluralidade da infncia, no reconhecimento de suas competncias polticas, no binmio cuidado-educao, na ateno afirmao da infncia como categoria histrico-social e s manifestaes das crianas, suas culturas.

    1.2 ALGUNS IMPASSES SOBRE A INFNCIA E SUA EDUCAO NO CONTEMPORNEO

    Tem-se a um campo de batalha nitidamente de-marcado: de um lado, entrincheirada, encontra-se a pedagogia antiescolar da educao infantil; do outro lado a pedagogia escolar do ensino bsico e mdio que, por sua vez, alvo constante do ass-dio sedutor das idias construtivistas e ps-

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    modernas, alm de ser vtima da deteriorizao das condies objetivas do trabalho docente pro-duzida pelas polticas educacionais neoliberais. (ARCE, 2004, p. 158).

    Contra o que Arce (2004) tem adjetivado de pedagogia antiescolar, se coloca o que, de forma geral, podemos chamar, atendendo a uma denominao consagrada por Dermeval Saviani (1991), Pedagogia histrico-crtica. Tomamos como principal material de anlise e reflexo, no que se refere especificamente ao tema da infncia e sua educao, os recentes trabalhos dessa autora. Neles podemos observar um empenho em demonstrar o quanto a Pedagogia da Infncia, ao se colocar em defesa dos direitos das crianas, daria menor peso, no entanto, a um direito fundamental: o ensino. Ao colocar a centralidade da criana no processo educativo (como sujeito ativo e produtor de cultura), a Pedagogia da Infncia, segundo o argumento de Arce, enfraquece a figura do professor como transmissor do conhecimento.

    Arce (2001) vincula a Pedagogia da Infncia aos iderios ps-moderno e neoliberal. O primeiro, segundo afirma, decreta o fim de algumas bandeiras levantadas pelo Iluminismo: razo, sujeito, histria, verdade12. Em seu lugar, assume o relativismo, o efmero, o fragmentrio, a incerteza, o particular. O segundo seria uma exacerbao do processo de subjetivao expresso na ideia de que o conhecimento um atributo individual, e Arce (2001, p. 24) o percebe incutido na concepo de professor crtico-reflexivo, desse profissional que apesar da formao fragmentria que recebe, seria considerado como capaz de refletir sobre sua prtica e a partir dela produzir conhecimentos.

    Segundo a autora esse recuo da teoria13, que exprime o fim de um dos principais pilares do Iluminismo, a razo, d lugar, entre outros, ao pragmatismo. No campo educacional, esse movimento poderia ser traduzido numa expresso cada vez mais corrente, o imperativo-lema aprender a aprender. educao, encarada como poltica social, caberia a tarefa de formar o novo indivduo condizente com a nova poltica neoliberal: competitivo, flexvel. O Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (BRASIL, 1998b), segundo Arce

    12 Sem condies de discutirmos esse posicionamento de Arce sobre o "ps-moderno",

    remetemos leitura de Almeida e Vaz (2011). 13

    Empresta o termo de Moraes (2003). Segundo essa autora, a celebrao do fim da teoria um movimento que toma por base a experincia imediata ou o conceito corrente de prtica reflexiva; acompanhado da utopia pragmtica de que basta saber fazer.

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    (2001), o principal veiculador desse iderio. Ressalte-se que as crticas aos conceitos de criana, professor e conhecimento veiculados nesse documento tambm so dirigidas Pedagogia da Infncia. Sobre os documentos produzidos pelo Ministrio da Educao como referncias tanto para a formao de professores como para delimitar conhecimentos a serem trabalhados na educao infantil, ressalta a autora:

    Temos a nossa frente um kit desastroso constitudo pelo neoliberalismo e que vem travestido de modernidade e progresso, atravs do aprender a aprender e que est sendo vendido para o professor com a garantia de que, comprando, ele ganhar grtis um novo estatuto profissional e mais liberdade para seu trabalho, ao ser considerado como capaz de refletir sobre sua prtica e a partir dela produzir conhecimentos. Resistir a este kit nosso dever moral e profissional, cabe aos intelectuais denunciarem as conseqncias nefastas para a educao que o neoliberalismo e seu discurso tm trazido, auxiliando a classe dos professores a no se tornar escrava dentro de seu prprio ambiente de trabalho: a escola. (ARCE, 2001, p. 24).

    Arce critica a concepo de criana defendida pela Pedagogia da Infncia, especialmente, porque, ao conceber a criana como foco do processo educativo, essa pedagogia enfatizaria a relao entre pares, retirando o peso daquela entre crianas e adultos. Segundo a interpreta-o dessa autora, no Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (BRASIL, 1998b), a criana aparece como ser capaz de constru-ir conhecimento na interao com o meio e com as outras pessoas de forma ativa, marcando o meio em que vive (produzindo cultura) e sendo marcada por ele e a brincadeira espontnea aparece como linguagem principal da infncia; na interao criana-criana que se pauta a aqui-sio das habilidades cognitivas de maneira prazerosa.

    A concepo de criana como produtora de cultura objeto de debate do texto de Arce escrito em parceria com Baldan (2009 que tem como ttulo a seguinte questo: A criana menor de trs anos produz cultura? As autoras defendem que a apropriao da cultura, entendida como a sntese da produo humana trazida nos fenmenos do mundo objetivo por meio da cultura material (instrumentos de trabalho) e da

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    cultura intelectual (a linguagem, as cincias e as artes) (ARCE; BAL-DAN, 2009, p. 189), constitui o processo de humanizao, o nascimento social do homem. Esse processo ocorre por intermdio das relaes com os outros homens e por meio da comunicao, dentro de um pro-cesso de educao. (ARCE; BALDAN, 2009, p. 189).

    A escolarizao, no mesmo movimento descrito no pargrafo an-terior, aparece nos textos de Arce como condio para a humanizao plena e como um direito inalienvel das crianas, seres em formao. Seu desejo de (re)colocar o ensino com eixo norteador do trabalho pe-daggico aparece bem destacado no livro organizado em parceria com Ligia Martins Quem tem medo de ensinar na educao infantil? em defesa do ato de ensinar (ARCE; MARTINS, 2007) em que o ttulo traduz com certa ironia sua denncia do que seria um espontanesmo reinante na Educao Infantil, em que a autora afirma contundentemente que no o professor que deve seguir a criana, que o ensino direito desta.

    A autora recorre a Saviani na defesa da escola (e entende que a educao infantil deve ser tomada tambm como espao de escolariza-o, de ensino) como lugar do saber sistematizado, no espontneo, do trabalho pedaggico como ato carregado de intencionalidade que com-preende a transmisso de conhecimentos.

    Consequentemente, o trabalho educativo o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivduo singular, a humanidade que produzida histrica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim o objeto da educao diz respeito, de um lado, identificao dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivduos da espcie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado, concomitantemente, descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. (SAVIANI, 1991, p. 17).

    Apropriar-se dessa cultura produzida e acumulada pelos homens ao longo do tempo o que humanizaria a criana, traduzindo seu nascimento como ser social como funo da escola. Baseada nos preceitos da Pedagogia histrico-crtica e da Psicologia histrico-

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    social14, Arce defende a transmisso planejada dos conhecimentos historicamente sistematizados (ARCE; MARTINS, 2007, p. 7). Nessa direo, a autora prope-se a fornecer subsdios para a elaborao de Projetos Polticos Pedaggicos para a educao infantil que se organizem mediante objetivos representativos de uma intencionalidade deliberada de promover o desenvolvimento das complexas habilidades humanas pela mediao da aprendizagem escolar. (ARCE; MARTINS, 2007, p. 7).

    A meta da autora (e os dois livros destacados servem a esse objetivo) iniciar a estruturao de um outro currculo para a Educao Infantil15, fornecendo subsdios para a elaborao de projetos polticos pedaggicos, no intento de romper com o que classifica de iderios naturalizantes, abstratos, aistricos e romnticos que, segundo ela, imperam nesse espao desde sua origem, uma vez que os modelos de educao infantil at agora implementados no so representativos daquilo que deveria ser o trabalho educativo com essa faixa etria. (ARCE; MARTINS, 2007, p. 5-6).

    Retomamos as palavras de Rocha para, na sequncia, tomar elementos que esto anunciados no excerto abaixo para um breve cotejamento com as crticas apresentadas por Arce, procurando demonstrar como as perspectivas de ambas expressam tenses do campo da Educao Infantil.

    Enquanto a escola se coloca como o espao

    14 No que se refere Psicologia histrico-social, o dilogo de Arce , em grande medida, com a

    interpretao de Newton Duarte, com o qual, alis, organizou livro (DUARTE; ARCE, 2006). Ver tambm, entre outros, Duarte (2000). 15

    No livro Quem tem medo de ensinar na educao infantil?: em defesa do ato de ensinar (ARCE; MARTINS, 2007a), encontramos oito contribuies que procuram cumprir o objetivo destacado acima, priorizando o trabalho proposto para crianas de quatro a seis anos. As tem-ticas apresentadas variam entre alfabetizao, desenvolvimento da ateno e hiperatividade (TDAH), linguagem, contao de histrias, matemtica, desenvolvimento afetivo-cognitivo, ensino fundamental de nove anos e uma anlise do RCNEI. Dois anos depois, Arce organiza (novamente com a colaborao de Lgia Martins) o livro Ensinando aos pequenos de zero a trs anos (ARCE; MARTINS, 2009a) enfatizando a necessidade de as professoras organizarem sistematicamente o processo de ensino-aprendizagem das crianas Nesse livro, apresenta, com a colaborao de outras autoras, temas que variam entre a investigao do cotidiano das institu-ies de educao infantil, a formao de professoras, o ensino e o desenvolvimento, conside-raes morfofuncionais do desenvolvimento do sistema nervoso, agressividade, finalizando com duas questes: possvel ensinar no berrio? e A criana menor de trs anos produz cultura?

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    privilegiado para o domnio dos conhecimentos bsicos, as instituies de educao infantil se pem, sobretudo com fins de complementaridade educao da famlia. Portanto, enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como o objeto fundamental o ensino nas diferentes reas, atravs da aula; a creche e a pr-escola tm como objeto as relaes educativas travadas num espao de convvio coletivo que tem como sujeito a criana de 0 a 6 anos de idade (ou at o momento em que entra na escola). (ROCHA, 1999, p. 60, grifo nosso).

    Uma importante questo que se coloca diz respeito funo das instituies de educao infantil. Se a escola, segundo Rocha (1999), sempre teve em vista o domnio dos conhecimentos bsicos, a transmisso do conhecimento em diferentes reas, seria preciso lanar-se na consolidao de um espao diferenciado que rompesse com uma viso baseada na valorizao extremada das expresses oral e escrita. Deste modo, creches e pr-escolas deveriam organizar seu tempo-espao tendo como princpio atender as necessidades da criana por meio de prticas que contemplassem indissociavelmente o cuidar e o educar.

    A associao entre esses dois princpios, no entanto, tem dificuldades de se estabelecer devido educao assistencialista, historicamente disseminada, que priorizaria o cuidado (entendido como proteo e bem-estar, tcnicas de higiene, alimentao e sade) em detrimento dos aspectos pedaggicos s crianas pequenas nas creches e pr-escolas. De outro lado, apresenta-se a nfase na aprendizagem por meio do domnio da leitura, da escrita e do clculo preconizados pelas instituies escolares (representados no termo ensino). No por outra razo, tem-se unido esforos em defender que o cuidado e a educao so fundamentais para a construo da identidade e da autonomia da criana. Entendido numa relao de complementaridade indispensvel, o binmio cuidar-educar pretende ultrapassar os limites colocados em cada um dos plos (assistncia e ensino) para fundamentar as relaes educativaspedaggicas no mbito das instituies de educao coletiva. (ROCHA, 1999, p. 7).

    A funo da Educao Infantil de cuidado e educao aparece demarcada em diferentes pontos das Diretrizes Nacionais para a Educao Infantil (DCNEI). No Art. 5, lemos:

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    A Educao Infantil, primeira etapa da Educao Bsica, oferecida em creches e pr-escolas, as quais se caracterizam como espaos institucionais no domsticos que constituem estabelecimentos educacionais pblicos ou privados que educam e cuidam de crianas de 0 a 5 anos de idade no pe-rodo diurno, em jornada integral ou parcial, regu-lados e supervisionados por rgo competente do sistema de ensino e submetidos a controle social. (BRASIL, 2009, p. 1, grifo nosso).

    Destaca-se ainda no trecho acima a demarcao tambm presente em outros documentos, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educao (BRASIL, 1996), da Educao Infantil como primeira etapa da Educa-o Bsica, ponto fundamental na defesa do carter educacional do tra-balho desenvolvido junto aos pequenos. O princpio da indissociabilida-de entre cuidado e educao, que define a funo da educao infantil, demarcando seu carter educacional distinto dos segmentos posteriores (que tm o ensino como eixo do trabalho pedaggico), aparece expresso no documento, indicando a necessidade de assegurar uma educao que considere a inseparabilidade das diferentes dimenses humanas (expres-sivo-motora, afetiva, cognitiva, lingustica, tica, esttica e sociocultural da criana). Essas afirmativas parecem estar na mesma direo do texto de Rocha (1999, p. 62):

    [...] o aspecto cognitivo privilegiado no trabalho com o contedo escolar, no caso da educao in-fantil, no deve ganhar uma dimenso maior do que as demais dimenses envolvidas no processo de constituio do sujeito/criana, nem reduzir a educao ao ensino. De fato, em meu entender, is-to deveria valer tambm para as sries iniciais do ensino fundamental, embora seja o ensino o seu objetivo precpuo.

    Em contrapartida, no trabalho de Arce encontramos argumentos que se colocam na contramo desse modelo representativo do que adje-tiva como anti-escolares, desqualificadores dos saberes clssicos pass-veis de aprendizagem por essa faixa etria e, consequentemente, do tra-balho docente nesse segmento educacional. (ARCE; MARTINS, 2007a, p. 6). A autora afirma ainda que a essencialidade das escolas de

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    educao infantil no se garante pela suposta superao, articulao ou resoluo entre cuidar e educar (ARCE; MARTINS, 2007, p. 7).

    Nesse sentido Arce defende o emprego do termo ensino (trans-misso de conhecimento) para caracterizar a funo da educao infantil em oposio expresso cuidar e educar apresentada por Rocha por considerar ser

    [...] imprescindvel a conscincia de que tais fun-es no se cumprem na heterogeneidade de aes espontneas, fortuitas e casuais que meramente reproduzem, no mbito da creche, as aes em-preendidas no mbito familiar domstico (ARCE; MARTINS, 2009, p. 17).

    Sobre o que significa colocar o ensino como eixo do trabalho pe-daggico, considera:

    Obviamente que a transmisso desse saber erudito se adequar especificidade da faixa etria com a qual se trabalha. No se procurar ensinar equa-es de segundo grau para crianas de 5 anos, ou se tentar ensinar adio com dezenas a bebs de 4 meses. Queremos, apenas, reiterar a importncia do ato de transmitir cultura sistematizada. [...] Co-locar o ensino como eixo articulador do trabalho pedaggico na educao de crianas menores de seis anos significa afirmar que a instituio de Educao Infantil uma escola, e isso no algo perverso. As crianas so alunos (aprendizes), e o trabalho pedaggico tem como pilar a transmisso de conhecimentos para revolucionar o desenvol-vimento infantil sem perder de vista as peculiari-dades do mesmo (ARCE, 2007, p. 34).

    Rocha (1999) destaca a importncia de diferenciar a escola da creche e da pr-escola na funo que cada segmento assume: num caso, de ensino, no outro, de complementaridade educao da famlia ponto que tambm consta na LDB e retomado nas Diretrizes (DCNEI). No segundo inciso do Artigo 7 desse documento, encontramos a obser-vao de que a proposta pedaggica da instituio de educao infantil deve garantir que cumpra sua funo sociopoltica e pedaggica assu-mindo a responsabilidade de compartilhar e complementar a educao e

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    cuidado das crianas com as famlias (BRASIL, 2009, p. 2). Nesse sen-tido, deve-se assegurar a participao, o dilogo e a escuta cotidiana das famlias, o respeito e a valorizao de suas formas de organizao. (BRASIL, 2009, p. 2).

    A complementaridade da educao das crianas em parceria com as famlias como princpio da educao infantil defendida por Rocha e expressa nas Diretrizes Nacionais, segundo Arce e Martins (2007), ca-racteriza esse projeto educacional como substancialmente domstico.

    A educao infantil, definida por Rocha (1999) como espao de educao complementar educao familiar, divergente do modelo es-colarizante dos nveis escolares subseqentes, tambm criticada por Arce por sua suposta ausncia de diretividade. Segundo essa autora, na Pedagogia da Infncia predomina a viso construtivista de conhecimen-to: a criana constri conhecimento, no h espao para sua transmisso. Portanto, a centralidade do trabalho pedaggico passa a ser organizar, acompanhar sem intervir: oferecer recursos e ambiente para que a prin-cipal linguagem infantil, a brincadeira, se desenvolva de forma espont-nea, prazerosa. Na medida em que tomada como ser histrico produtor de cultura, sujeito de direitos, a interao criana-criana privilegiada.

    Na abertura das Diretrizes Educacionais Pedaggicas para a Edu-cao Infantil (FLORIANPOLIS, 2010)16 organizadas e distribudas pela Prefeitura Municipal de Florianpolis, encontramos um texto de Eloisa Rocha que, ao retomar elementos presentes em sua tese de douto-ramento e no documento orientador da rede municipal Princpios Peda-ggicos para a Educao Infantil (FLORIANPOLIS, 2000), objetiva a ampliao e o esclarecimento dos aspectos centrais dos documentos orientadores: da funo social da Educao Infantil, dos ncleos da ao pedaggica e das implicaes desses aspectos para uma definio do carter da docncia. De certa forma, podemos encontrar no documento uma tentativa de resposta s crticas de Arce.

    Em relao funo dos espaos de educao infantil, Rocha (2010, p. 12) salienta:

    16 O objetivo deste documento estabelecer diretrizes para o sistema educacional, no que se

    refere organizao e funcionamento das instituies de Educao Infantil. [...] As Diretrizes Educacionais-Pedaggicas foram elaboradas pela professora Elosa Acires Candal Rocha, que retoma os Princpios Pedaggicos para a Educao Infantil, produzidos em 2000, com o objetivo de ampliar, esclarecer e atualizar as bases tericas j definidas [...] o documento est organizado em duas partes. Na parte um, so apresentados os textos elaborados pelos professores conferencistas, e na parte dois, as experincias praticadas nas unidades educativas da rede. (FLORIANPOLIS, 2010, p. 9).

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    [...] sustenta-se no respeito aos direitos fundamen-tais das crianas e na garantia de uma formao integral orientada para as diferentes dimenses humanas (lingustica, intelectual, expressiva, e-mocional, corporal, social e cultural), realizando-se atravs de uma ao intencional orientada de forma a contemplar cada uma destas dimenses como ncleos da ao pedaggica.

    Dessa forma, a autora prope o que define como uma pedagogia comprometida com a infncia, orientada por quatro ncleos da ao pe-daggica:

    a) Linguagem: gestual-corporal, oral, sonoromusical, plstica e escrita;

    b) Relaes sociais e culturais: contexto espacial e temporal; identidade e origens culturais e sociais;

    c) Natureza: manifestaes, dimenses, elementos, fe-nmenos fsicos e naturais;

    d) Relaes pedaggicas.

    Vale retomar nota da autora em que explicita a razo da termino-logia adotada, demarcando mais uma vez a distino do trabalho peda-ggico proposto s crianas na educao infantil em relao ao realizado no ensino fundamental que, segundo j afirmara, tem como primeiro objetivo a aprendizagem atravs do domnio da leitura, da escrita e do clculo, aliados a uma certa forma de organizao e tratamento (RO-CHA, 1999, p. 6), em que o conhecimento tomado numa verso esco-lar17:

    O termo: contedo da ao definido aqui com o objetivo de detalhar os ncleos/mbitos da ao pedaggica, diferente do contedo curricular da escola tradicional, por no constituir-se nesta eta-pa educativa, por um programa disciplinar, com fins de estabelecer um padro de terminalidade e concluso de apropriao conceitual. Visa aqui es-

    17 A autora utiliza o termo para identificar a forma parcializada e fragmentada que o

    conhecimento toma ao ser traduzido para o currculo e o ensino na escola. (ROCHA, 1999, p. 61).

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    tabelecer e dar visibilidade para os diferentes m-bitos pedaggicos que orientam a ao docente na direo da atividade infantil (ROCHA, 2010, p. 19).

    nesse sentido que Rocha indica a necessidade de construir uma metodologia diferenciada que possa assegurar a heterogeneidade carac-terstica dessa faixa etria, o que seria possvel mediante o respeito s necessidades infantis reveladas pelas prprias crianas. Em outras pala-vras, o conhecimento didtico, que analisa e subsidia a interveno do professor em relao ao processo de ensino-aprendizagem, no seria adequado para analisar os espaos pedaggicos no escolares.

    [...] a dimenso que os conhecimentos assumem na educao das crianas pequenas coloca-se nu-ma relao extremamente vinculada aos processos gerais de constituio da criana: a expresso, o afeto, a sexualidade, a socializao, o brincar, a linguagem, o movimento, a fantasia, o imagin-rio,... as suas cem linguagens. (ROCHA, 2010, p. 19).

    O argumento de Rocha (1999) segundo o qual o ensino no o objetivo final da educao da criana pequena, mas apenas parte e con-seqncia das relaes que a criana estabelece com o meio natural e social, pelas relaes sociais mltiplas entre as crianas e destas com diferentes adultos (e destes entre si) (ROCHA, 1999, p. 61), servir de base para a denncia empreendida por Arce do recuo da teoria (MO-RAES, 2003) nas instituies de educao infantil e na formao dos/as professores/as.

    Arce defende que, independente da idade daqueles que atende, a escola (a escolha do termo caracterizaria o trabalho pedaggico sistema-ticamente ancorado nos domnios da cincia) deveria garantir a apropri-ao do patrimnio cultural historicamente produzido pela humanidade, de maneira justa e equitativa. A efetivao dessa premissa seria funda-mental na garantia de uma educao infantil de qualidade. Do contrrio, os iderios que fetichizam a existncia das crianas pequenas, imbuin-do-as de supostas caractersticas autnomas em relao qualidade dos processos interpessoais e intrapsquicos a elas dirigidos (ARCE; MARTINS, 2009, p. 16) serviriam, especialmente por parte dos adultos que lhes educam, para a perpetuao das desigualdades sociais.

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    Arce destaca ainda que muito importante romper com a educa-o informal, no escolarizante, preconizada para a educao infantil a fim de que se possa, de fato, integrar esse segmento ao Ensino Funda-mental, questo que novamente ganha protagonismo com a discusso sobre a implantao do Ensino Fundamental de nove anos. Arce sustenta a ideia de que o ensino, como eixo do trabalho pedaggico, seria o fator articulador entre os dois segmentos.

    Rocha, no entanto, vislumbra uma educao para a infncia (0-10 anos) que tome como objeto as relaes educativaspedaggicas no mbito das instituies de educao coletiva, independentemente das fronteiras institucionais:

    [...] no entanto, esta perspectiva s ser vivel uma vez que fiquem bem demarcadas as especifi-cidades da educao da criana pequena. Por en-quanto, esta distino [entre a educao infantil e o ensino fundamental] necessria. Sejamos mais cautelosos, sem perder de vista a ousadia, e pen-semos numa perspectiva que no seja o que a edu-cao infantil tem em comum com o ensino fun-damental (porque correramos novamente o risco de tomar como referncia a escola). Nosso esforo deve ser tambm o de marcar aquilo que prprio da educao das crianas de 0 a 6 anos, para s depois fazer o movimento inverso numa tentativa de tambm influenciar a escola. (ROCHA, 1999, p. 7).

    Ainda:

    Ousaria at dizer que uma mesma orientao nes-ses nveis [creche, a pr-escola e o ensino funda-mental] poderia favorecer o rompimento com pa-rmetros pedaggicos estabelecidos apenas a par-tir de uma infncia em situao escolar, incor-porando parmetros resultantes das novas formas de insero social da criana em instituies edu-cativas tais como a creche e outras modalidades nesta faixa etria. Alguns exemplos destes novos parmetros seriam, o fortalecimento da relao com a famlia na gesto e no projeto pedaggico, bem como a nfase nos mbitos de formao rela-

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    cionados expresso e s artes. (ROCHA, 1999, p. 62).

    A autora aponta a necessidade de demarcar as especificidades dos diferentes mbitos, mas tambm de construir uma pedagogia que tenha como eixo articulador a educao e no o ensino. Rocha esclarece por que prefere o termo educar no contexto da educao infantil: Este termo parece dar um carter mais amplo que o termo ensinar que, em geral, refere-se mais diretamente ao processo ensino aprendizagem no contexto escolar. (ROCHA, 1999, p. 62).

    Rocha recorre, como que a retomar algo um tanto deixado de lado nas discusses que influenciou nos ltimos dez anos, base da Psicologia Histrico-cultural a fim de explicitar a especificidade do trabalho realizado na Educao Infantil, diferenciando-o do modelo escolar:

    L. S. Vygotsky foi o primeiro a colocar a questo referente ao carter programtico do ensino pr-escolar, e fundamentou o princpio da sistematiza-o dos conhecimentos para os pr-escolares, re-fletidos no programa, assim como tambm a dife-rena do programa de ensino pr-escolar em rela-o ao escolar. Ele analisou o papel do ensino no desenvolvimento da criana pr-escolar e a prepa-rao do mesmo para o ensino na escola, e con-clamou a no copiar os contedos e mtodos de trabalho da escola (SAMORUKOVA; LOGUI-NOVA citado por ROCHA, 2010, p. 17).

    Retoma, portanto, o argumento segundo o qual o conhecimento didtico no seria adequado para analisar espaos educacionais no es-colares, para ressalvar que isso no significa [afirmar] que o conheci-mento e a aprendizagem no pertenam ao universo da educao infan-til. (ROCHA, 1999, p. 61). A crtica dirigida ao modelo escolar e an-tecipao da escolarizao no se identifica, segundo Rocha (2010, p. 17) com qualquer negao da funo da formao intelectual das crian-as e de apropriao cognitiva de outros saberes. Seria preciso, no en-tanto, que os responsveis pela ao pedaggica observassem e analisas-sem as manifestaes infantis, no como meras reprodues, mas como produo de significaes acerca da prpria vida das crianas e das pos-sibilidades de construo da sua existncia concreta. Neste sentido,

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    [...] a definio dos projetos educacionais peda-ggicos exige tomar as crianas como fonte per-manente e privilegiada da orientao da ao. In-serem-se, assim, na docncia da Educao Infan-til, ferramentas imprescindveis da ao: a obser-vao permanente e sistemtica, o registro e a do-cumentao como forma de avaliar o proposto, conhecer o vivido e replanejar os mbitos de ex-perincias atravs de ncleos de ao pedaggica a serem privilegiados e as formas de organizao dos espaos dos tempos e dos materiais para estes fins. (ROCHA, 2010, p. 18).

    Dessa forma, articulada discusso sobre a funo das institui-es de educao infantil, coloca-se o debate sobre a formao de pro-fessores. Rocha reconhece a necessidade de formao diferenciada da que vem sendo oferecida para que os professores possam acompanhar a proposta de superao do carter escolar (em especial, a passividade ou participao restrita reservada s crianas), pois na maioria dos casos essa formao foi realizada anteriormente perspectiva de uma pedago-gia da educao infantil.

    Respondendo a crtica de que a Pedagogia da Infncia, em conso-nncia com o RCNEI, propaga um modelo educacional espontanesta em que o exerccio da docncia estaria isento de intencionalidade peda-ggica, Rocha (2010, p. 13) afirma que

    A responsabilidade de dirigir o desenvolvimento da ao educativa envolve, para ns, um compro-misso com o desenvolvimento e a aprendizagem das crianas a partir da ampliao das experin-cias prximas e cotidianas, em direo apropria-o de conhecimentos no mbito mais ampliado e plural, porm, sem finalidade cumulativa ou com carter de terminalidade em relao elaborao de conceitos.

    As crticas de Arce (2001) ao Referencial Curricular Nacional para a Educao Infantil (RCNEI), com o qual a autora identifica a Pedagogia da Infncia dizem respeito, sobretudo, ao carter instrumentalizador da prtica pedaggica junto s crianas de 0 a 6 anos. Segundo Arce (2001), o documento no fomenta a formao docente, ao contrrio, imporia chaves que so multiplicados por

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    profissionais treinados em servio. Alis, essa a grande preocupao evidenciada em seus textos: a formao dos professores (inconsistente teoricamente) e a decorrncia disso para o ensino. A autora ressalta a predominncia de prticas espontanestas em relao ao ensino (dirigidas, sobretudo, aos menos favorecidos), especialmente porque a formao de professores estaria fragilizada na desvinculao entre educao infantil e ensino e aprendizagem, legitimando a desintelectualizao docente, a banalizao e o aligeiramento de sua formao e, consequentemente, o esvaziamento de seu trabalho. (ARCE; MARTINS, 2009, p. 18).

    Arce (2001) afirma que com o pragmatismo regendo a formao aligeirada e o trabalho desses profissionais, a tendncia ocorrer uma gradativa perda de controle sobre o exerccio profissional. A prtica pedaggica, esvaziada de uma teoria que a subsidiasse e sustentasse, e ainda a ideia de que o qu se precisa saber ser aprendido fazendo, determina, nesse contexto, uma valorizao dos atributos pessoais em detrimento da formao. Nas palavras de Arce (2001, p. 1):

    Conclui-se que as tendncias deste processo so o aligeiramento da formao de professores, a gradativa perda de controle dos mesmos sobre seu exerccio profissional e a transformao das salas de educao infantil em laboratrios de implementao dos iderios pedaggicos, afinados com o neoliberalismo e o ps-modernismo.

    Ainda: [...] o professor no necessita ser um intelectual com uma base terica e prtica fortemente funda-mentada em princpios filosficos, histricos, me-todolgicos [...] retira-se definitivamente do pro-fessor o conhecimento, acaba-se com a dicotomia existente entre teoria e prtica, eliminando a teoria no momento em que esta se reduz a meras infor-maes. (ARCE, 2001, p. 12).

    Na interpretao da autora, o conhecimento seria esvaziado pelo lema aprender a aprender, dando lugar a um didatismo exacerbado; o professor, de intelectual, reduzido a prtico-reflexivo, mediador, parceiro mais experiente. Na Educao Infantil o fato agrava-se, pois, segundo Arce, a poltica de formao em servio segue nessa direo, fortalecendo o amadorismo e a improvisao num campo j repleto

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    desses adjetivos ao longo de sua histria. A autora lembra que a trajetria desse segmento da educao demarcada pela interveno de profissionais sem formao adequada, algo que resume na expresso: na falta da me... a tia! (ARCE; MARTINS, 2007, p. 5).

    s crianas, subtradas to precocemente do convvio familiar em tempo integral, seriam dispensados os cuidados bsicos com segurana, alimentao e higiene, e uma acolhida afetiva, convertidos em palavras de ordem nesses contextos, cujas demandas requeriam pouqussima ou nenhuma profissionalizao. Bastava ser mulher, a quem, historicamente, foi delegada a educao dos filhos (ARCE; MARTINS, 2007, p. 5-6).

    Ao professor, nesse contexto (do RCNEI e da Pedagogia da In-fncia), cabe ofertar materiais, organizar o espao e o tempo para o de-senvolvimento das brincadeiras infantis. Na educao infantil, nesses moldes, predominariam as brincadeiras prazerosas como supor-te/justificativa para o espontanesmo. Arce (2004) aponta ainda para um reducionismo e um processo de naturalizao do conceito de brincadei-ra, uma ausncia de dilogo com teorias que, de fato, explicassem a im-portncia dessa atividade para a constituio do pensamento e da lin-guagem, da conscincia. Tais teorias e a autora recorrer em diferentes textos Psicologia histrico-social devem alicerar um trabalho inten-cional do professor.

    Nessa pedagogia da infncia, centrada nas rela-es e nas mltiplas linguagens, transformando-se assim numa pedagogia das diferenas, das rela-es, da escuta e da animao, o professor sofre um violento processo de descaracterizao, dei-xando de ensinar e reduzindo sua interferncia na sala de aula a uma mera participao. O prprio uso da palavra professor chega a ser colocado em questo na rea, no havendo consenso quanto a adequao ou no desse termo, posto que ele carrega resqucios da idia de educao escolar e de algum que ensina [...] Pode-se dizer que essa pedagogia faz do adulto um escravo da infncia

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    transformada em fetiche dos educadores. (ARCE, 2004, p. 160).

    O RCNEI expressaria essa viso construtivista de conhecimen-to (o conhecimento construdo na interao entre as crianas), no dei-xando espao para a sua transmisso. Segundo Arce (2007, p. 27),

    O ato de planejar ganha novo sentido, trata-se do trabalhar junto, sonhar junto, o professor deixa seu diretivismo de lado e cede espao para a voz da criana no cotidiano. Ganham fora os projetos temticos de trabalho que atendem aos interesses e desejos das crianas, sendo assim, os professo-res seguem as crianas. Cumpre-se atravs dessa viso de conhecimento, uma das preocupaes fundamentais do documento que no vincular a educao infantil s prticas de escolarizao rea-lizadas no ensino fundamental.

    Nessa dinmica, no haveria como planejar a transmisso do co-nhecimento, pois as crianas determinam o que, como e quando apren-der (ARCE, 2007, p. 27). E contra as noes de criana, professor e conhecimento apresentadas no Referencial (em sintonia com os pilares da Pedagogia da Infncia), que se colocam contrrias ao ensino como eixo do trabalho pedaggico na educao infantil, que se ope. A autora critica a ideia de culturas infantis, de uma cultura de pares, defendida pela Pedagogia da Infncia sob influncia dos estudos da Sociologia da Infncia e recoloca a centralidade na figura do professor, no ato inten-cional de ensinar.

    A interao criana-criana tem sua importncia nesse processo, ent