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PEDAGOGIA VICENTINA: AS PRIMEIRAS ESCOLAS CONFESSIONAIS FEMININAS EM MINAS GERAIS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX (MARIANA E DIAMANTINA) Ana Cristina Pereira Lage Professora UNI-BH Doutoranda FAE/UFMG 1 [email protected] Palavras-chave: congregação vicentina – gênero – ensino confessional O presente trabalho parte do levantamento preliminar de referências e fontes para a pesquisa de doutorado desenvolvida em História da Educação na Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisa propõe a comparação e as possíveis conexões entre duas instituições mineiras e uma portuguesa, instaladas no início da segunda metade do século XIX. Neste estudo aqui apresentado, devido ao momento da pesquisa em desenvolvimento, com a coleta parcial de fontes, é proposta a discussão somente sobre as instituições mineiras. A criação das instituições estaria intimamente ligada à vinda das Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo e dentro de uma nova perspectiva de ensino, diferenciado dos recolhimentos católicos anteriores, como também na perspectiva de assistência, principalmente às órfãs, contando inclusive com subvenções da província. Pretende-se comparar as aproximações e as especificidades na instalação do Colégio Providência (1849, em Mariana) e do Colégio Nossa Senhora das Dores (1867, em Diamantina). A metodologia da pesquisa deve centrar-se na História Social, utilizando os conceitos e discussões acerca da história comparada e também dentro das possibilidades das mestiçagens culturais, já que, ao trabalhar com a instalação das freiras vicentinas em espaços diferentes, não seria tratar de uma mesma “Escola” situada em lugares diferentes, mas pensar nas variações possíveis de um modelo escolar e nas apropriações feitas por determinados grupos com características culturais particulares. Supõe–se que as instituições analisadas foram instaladas em com uma intencionalidade de fortalecimento do ideário ultramontano católico na segunda metade

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PEDAGOGIA VICENTINA: AS PRIMEIRAS ESCOLAS CONFESSIONAIS FEMININAS EM MINAS GERAIS NA

SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX (MARIANA E DIAMANTINA)

Ana Cristina Pereira Lage Professora UNI-BH

Doutoranda FAE/UFMG1 [email protected]

Palavras-chave: congregação vicentina – gênero – ensino confessional

O presente trabalho parte do levantamento preliminar de referências e fontes

para a pesquisa de doutorado desenvolvida em História da Educação na Universidade

Federal de Minas Gerais. A pesquisa propõe a comparação e as possíveis conexões entre

duas instituições mineiras e uma portuguesa, instaladas no início da segunda metade do

século XIX. Neste estudo aqui apresentado, devido ao momento da pesquisa em

desenvolvimento, com a coleta parcial de fontes, é proposta a discussão somente sobre

as instituições mineiras.

A criação das instituições estaria intimamente ligada à vinda das Filhas de

Caridade de São Vicente de Paulo e dentro de uma nova perspectiva de ensino,

diferenciado dos recolhimentos católicos anteriores, como também na perspectiva de

assistência, principalmente às órfãs, contando inclusive com subvenções da província.

Pretende-se comparar as aproximações e as especificidades na instalação do Colégio

Providência (1849, em Mariana) e do Colégio Nossa Senhora das Dores (1867, em

Diamantina).

A metodologia da pesquisa deve centrar-se na História Social, utilizando os

conceitos e discussões acerca da história comparada e também dentro das possibilidades

das mestiçagens culturais, já que, ao trabalhar com a instalação das freiras vicentinas em

espaços diferentes, não seria tratar de uma mesma “Escola” situada em lugares

diferentes, mas pensar nas variações possíveis de um modelo escolar e nas apropriações

feitas por determinados grupos com características culturais particulares.

Supõe–se que as instituições analisadas foram instaladas em com uma

intencionalidade de fortalecimento do ideário ultramontano católico na segunda metade

Page 2: PEDAGOGIA VICENTINA- AS PRIMEIRAS ESCOLAS … · Em uma definição bastante esquemática, entende-se por catolicismo romanizado ou ultramontano aquele catolicismo praticado entre

do século XIX em solo mineiro, o qual passou a utilizar as mulheres como instrumentos

de expansão de um novo discurso do catolicismo. A idéia de trabalhar com a

comparação parte do pressuposto de que estas escolas possuíam algo em comum, ligado

ao ensino vicentino feminino, mas também particularidades específicas dos lugares nos

quais foram instaladas. São estas percepções do comum, das particularidades e das

possíveis conexões entre as Instituições estudadas, levando em consideração o

pensamento ultramontano e a necessidade de ampliação do ensino feminino da época

que serão propostos neste estudo.

PENSAMENTO CATÓLICO NO SÉCULO XIX

O ultramontanismo fazia parte de um plano expansionista da Igreja Católica. Do

latim ultramontanus, o termo designou o movimento daqueles fiéis que atribuíam ao

papa um importante papel na direção da fé e do comportamento do homem. Nas

primeiras décadas do século XIX, devido a freqüentes conflitos entre a Igreja e o Estado

em toda a Europa e América Latina, foram chamados de ultramontanos os partidários da

liberdade da Igreja e de sua independência com relação ao Estado.

Este pensamento passou a ser referência para a maioria dos católicos em

diversos países. Aparecia também como uma reação ao mundo em processo de

modernização e como uma orientação política desenvolvida pela Igreja, marcada pelo

centralismo romano, o fechamento sobre si mesma e a recusa do contato com as novas

idéias.

Em uma definição bastante esquemática, entende-se por catolicismo

romanizado ou ultramontano aquele catolicismo praticado entre 1800

e 1960, nos pontificados de Pio VII a Pio XII, informado por um

conjunto de atitudes teóricas e práticas, cujo eixo de sustentação se

apoiava em: 1) reforço do tradicional magistério, incluindo-se a

retomada do tomismo como única filosofia válida para o cristão

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aceitável para a Igreja; 2) condenação à modernidade em seu conjunto

(sociedade, economia, política, cultura); 3) centralização de todos os

atos da Igreja em Roma, decretando-se, para isso, a infalibilidade do

Papa, no Concílio do Vaticano I, em 1870, de modo a reforçar a

hierarquia, onde o episcopado foi bastante valorizado, submetendo

todo o laicato ao seu controle; 4) adoção do medievo como paradigma

de organização social, política e econômica. O objetivo dessa política

era, de imediato, preservar a instituição em face das ameaças do

mundo moderno e, a médio e longo prazo, recristianizar a sociedade,

de modo a recolocar a Igreja como centro do equilíbrio mundial.

(MANOEL, 2004, p.45)

No Brasil, principalmente no período que vai da questão dos Bispos (1870-1875)

até a proclamação da República, a Igreja passou então a investir na formação e

reformulação dos quadros clericais, no incentivo à catequese e na criação de novas

associações devocionais católicas dentro deste ideário ultramontano.

Em Minas Gerais, o bispo de Mariana, o padre lazarista Dom Antônio Ferreira

Viçoso2 o qual governou no referido bispado entre 1844 e 1875, foi o responsável por

iniciar o movimento de reforma do clero mineiro nos moldes do ultramontanisno, tendo

ordenado neste período o total de 318 sacerdotes seculares (BEOZZO, 1993).

Segundo Diva Muniz (2003), anterior à reforma do clero empreendida por D.

Viçoso, muitos sacerdotes mineiros adotavam um “comportamento laico”. Devido ao

sistema do padroado eram, na maioria das vezes, mais funcionários do governo do que

pastores da Igreja, complementando seus vencimentos com outras atividades,

trabalhando como fazendeiros, advogados, comerciantes, professores e políticos.

Pelos princípios ultramontanos, cabia ao bispo D. Viçoso trazer os párocos para

dentro da Igreja e torná-los mais preocupados com as questões da fé e do Vaticano.

Quanto aos leigos, já que predominava uma população de fiéis em sua maioria

analfabetos, o seu trabalho centrava-se na intensificação das atividades pastorais,

catequéticas e educacionais.

A reforma do clero em Minas Gerais teve início em 1856, com a recuperação do

Seminário de Mariana (fundado em 1750), e, posteriormente, com a criação do

Seminário Episcopal de Diamantina (1869). A preocupação com os fiéis traduziu-se

principalmente na ação catequética destes novos padres e na implantação de escolas

confessionais. D. Viçoso reformou colégios masculinos já criados (Caraça-1822,

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Congonhas do Campo–1832, e Campo Belo-1827) e trouxe as freiras francesas

vicentinas para instalar os colégios femininos - Providência (1849, em Mariana), Nossa

Senhora das Dores (1867, em Diamantina) 3 - como também reformulou o estatuto do

Recolhimento de Macaúbas (1847).

A implantação do ultramontanismo foi sendo intensificada ao longo do século

XIX principalmente, pelo investimento na educação. Especificamente a educação de

meninas e jovens fazia parte dos conceitos elaborados pela Igreja Ultramontana, pois as

alunas seriam, posteriormente, educadoras dos filhos e da sociedade conforme os

princípios do catolicismo. Era uma estratégia de preparação de futuras “agentes

sociais”.

Segundo Ivan Manoel (1996), a vinda das freiras para o Brasil se constituiu em

uma etapa de um planejamento bem elaborado e em escala mundial do

ultramontanismo. A necessidade de implantação das escolas confessionais não se

restringia somente aos vultosos recursos financeiros arrecadados com o recebimento de

pagamentos das anuidades escolares, mas também em afastar os educandos das idéias

modernas e das propostas de ensino leigo. Particularmente no caso da educação

feminina, o discurso ultramontano ia de encontro às ansiedades da oligarquia brasileira.

Ainda para este mesmo autor, no Brasil do século XIX as idéias católicas

apresentavam uma concepção de sociedade, poder político e relações familiares que

eram convenientes à forma de vida das elites brasileiras. Mesmo que os princípios do

liberalismo pregados pelas elites reforçasse o caráter individualista e o civismo como

força para a implantação de uma “Nação”, a educação católica não fugia a estes

interesses, já que esta sempre ensinou ao católico ser ordeiro, obediente e respeitador da

ordem constituída. A expansão da rede escolar católica no Brasil só foi possível,

portanto, com a aliança entre a Igreja conservadora e as elites locais.

Como o investimento das províncias na educação não era suficiente, a solução

encontrada pelas elites para educar suas filhas era contratar professores para ensinar às

jovens em suas próprias residências ou, preferencialmente, enviá-las para estudar nos

primeiros Colégios Internos. Tais Colégios eram mantidos, na maioria das vezes, pelas

diversas congregações católicas que chegaram ao Brasil na segunda metade do século

XIX. Este tipo de Colégio era importante principalmente para as meninas, pois seriam

retiradas do convívio familiar e educadas dentro dos novos princípios propostos.

A necessidade inicial de educar formalmente as meninas não estaria então dentro

de uma perspectiva de preparação e instrumentalização destas para ganhar o espaço

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público. Algumas até conseguiram exercer profissões fora do espaço privado, como

professoras, mas a necessidade de fortalecimento da educação escolar feminina

continuava ainda dentro da perspectiva de prepará-las para o casamento. Enquadrava-se

à necessidade de educá-las nos moldes escolares para capacitá-las dentro das novas

regras de um mundo com novas características: em processo de urbanização e com

novos valores de civilidade.

Aliava-se ainda às aspirações masculinas de ter uma esposa educada, a

necessidade da Igreja de arregimentar as mulheres como um alicerce seguro para as suas

ações ultramontanas. Soma-se à necessidade de educação feminina por parte da

sociedade, as idéias ultramontanas e também a política de investimentos insuficientes no

ensino público, o que acarretou o incentivo das instituições confessionais femininas no

Brasil.

OS RECOLHIMENTOS

As primeiras instituições religiosas femininas de Minas Gerais, anteriores ao

fortalecimento desta política expansionista educacional feminina, foram os

recolhimentos de Macaúbas (instalado em 1715)4, e de São João da Chapada (instalado

em 1750)5. Pouco se sabe sobre este último recolhimento devido à escassez de fontes,

mas há estudos mais sistemáticos acerca do Recolhimento de Macaúbas, inseridos nas

discussões empreendidas tanto por Leila Algranti (1999), quanto por Diva Muniz

(2003). Estas instituições eram principalmente espaços de devoção e vida

contemplativa, diferenciando-se dos conventos pela ausência dos votos. A fundação de

tais estabelecimentos era facilitada pelo fato de ser exigida somente uma licença

episcopal para o seu funcionamento enquanto os conventos necessitavam de uma ordem

papal.

Utilizava-se, portanto, o termo recolhimento para identificar todas as

instituições femininas de reclusão que não tivessem sido fundadas

como o apoio do papa, mas erguidas com fins devocionistas,

caritativos ou educacionais. Mais do que isso, a análise dos estatutos

dos conventos e recolhimentos estudados revela que, com exceção do

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aspecto legal e dos votos solenes, não havia diferenças entre eles.”

(ALGRANTI, 1999, p. 78)

O ensino nos recolhimentos era desenvolvido seguindo os dispositivos de todas

as comunidades religiosas. As meninas eram mais preparadas para a prática religiosa do

que para a vida em sociedade. “... As lições escolares estavam igualmente inscritas num

contexto essencialmente conventual, já que entremeadas de orações, ladainhas, cânticos,

leituras de textos espirituais, silêncios e penitências.” (MUNIZ, 2003, p. 169)

Houve a tentativa de instalar uma educação mais formal no Recolhimento de

Macaúbas por uma determinação Régia de D. Maria I, em 1789 6 mas foi somente em

1847 que a instituição reformulou os seus princípios e adotou a prática educativa

efetiva. D.Viçoso e os lazaristas foram responsáveis por conseguir a referida

reformulação.

A CONGREGAÇÃO DAS FILHAS DE CARIDADE DE SÃO VICENTE DE PAULO E SUA INSTALAÇÃO EM MINAS GERAIS

A Congregação das Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo foi fundada na

França em 1633 por São Vicente de Paulo (1581-1660) e Santa Luísa de Marillac

(1591-1660). Anteriormente São Vicente já havia fundado a Congregação das Missões

(também conhecidos como Lazaristas), vertente masculina das vicentinas. Para o

fundador, “(...) a vocação do missionário é de fazer amar a Deus. (...) Para explicar

como se deve amar a Deus, isto é, desejar a sua maior glória e honra, Vincent de Paul

definia duas formas de amor: afetivo e efetivo.” (LOPES, 1993, p. 30)

Ainda segundo esta autora, o amor efetivo seria o exercício das obras de

caridade7. As caridades seriam em número de sete: “(...) dar de comer a quem tem fome

e água a quem tem sede, abrigar os peregrinos, visitar os prisioneiros, visitar os doentes,

vestir os que estão nus e preparar os mortos.” (LOPES, 1993, p. 30)

Imbuídas neste espírito, as filhas de caridade tiveram permissão de circular pela

cidade de Paris, característica particular desta ordem religiosa no momento de sua

fundação. Também está contida em seus estatutos a subordinação direta ao Superior dos

Padres das Missões e não ao Bispo da localidade de instalação da Casa, o que

demonstra uma atitude inovadora para esta Congregação.

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O caráter educacional da Congregação já estava presente desde o século XVII.

Ainda segundo Eliane Marta T. Lopes, diversos textos dos fundadores mostram uma

dupla tarefa exercida pelas Filhas de Caridade: servir aos pobres doentes e cuidar de

crianças abandonadas.

... a Companhia das Filhas de Caridade foi estabelecida para amar a

Deus, servir e honrar o Nosso Senhor, e a Santa Virgem.” E como

honrá-los? Sua regra acrescenta: para fazer conhecer o desejo de Deus

na sua implantação; “(...) para servir aos pobres doentes

corporalmente, administrando-lhes tudo o que for necessário; e

espiritualmente, procurando que eles vivam e morram em bom

estado.8

Quanto à educação das crianças órfãs (enfants trouves) São Vicente diz que as

Filhas de Caridade foram escolhidas por Deus para educá-los. Neste assunto, devem

perceber a importância ao serem escolhidas por Deus e de realizar um trabalho que

aproxima as vicentinas de Nossa Senhora: são virgens e mães ao mesmo tempo.9

Anterior à instalação das irmãs vicentinas em Minas Gerais, a preocupação com

as questões assistenciais estava diretamente associada às irmandades. Tais irmandades

estavam isentas de jurisdição eclesiástica, submetendo-se às autoridades civis coloniais.

Como a presença da Igreja em Minas Gerais sofria restrições (a proibição da instalação

de ordens religiosas e o funcionamento do sistema de padroado), ela teve que atrelar-se

às irmandades leigas tanto para a evangelização, quanto para o assistencialismo e até

para a construção de seus templos. Dentro do espírito assistencialista, destacam-se as

Misericórdias, que “(...) adquiriram traço peculiar ao se transformarem em irmandades

predominantemente assistencialista, aquelas assumiram o ônus da construção e

manutenção de hospitais. O seu lado espiritual ficou em segundo plano, em detrimento

do aspecto social” (BOSCHI, 1986, p. 66)

A criação dos colégios confessionais femininos em Minas Gerais estaria

intimamente ligada à vinda das Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo e dentro de

uma nova perspectiva tanto de ensino, diferenciado dos recolhimentos anteriores, como

também de assistência, principalmente às órfãs, contando inclusive com subvenções da

província. No Relatório de Presidente da Província de 1871, aparece a informação de

que havia uma subvenção da província para o Colégio das Irmãs de Caridade de

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Mariana (MG) que mantinha neste momento 176 alunas, e para as irmãs de Diamantina

(MG), com 145 alunas.

A importância da abertura de tais instituições em Minas Gerais, particularmente

do Colégio Providência em Mariana, com caráter caritativo e educacional verifica-se

nos jornais locais:

Não é nada mais nem nada menos do que a modesta e pobre fundação

da primeira casa no Brasil, dirigida pelas heroinas filhas de S. Vicente

de Paulo, contendo trez estabelecimentos em um só edificio debaixo

da protecção e denominação da Providencia, que são o Collegio, o

recolhimento das orphãs e o hospital; de maneira que não se pode

chamar de providencia uma e trina. Em um só edificio, dirigidas por

uma só Superiora as mesmas Irmãs se multiplicam nos cuidados e

penosissimos trabalhos destas trez distinctas fundações.

Ah! Quanto de penuria e provações ellas curtem pela escassez dos

meios, sem contudo faltar, como até o presente não faltou, o restricto

necessario?!....Já se sabe: sem luxo, sem pompa, sem até o confortavel

para as benemeritas heroinas que despendem tudo quanto lhes

offerece a Providencia em proveito dos que se abrigam sob o tecto

dessa proverbial caridade, sem ter ellas muitas vezes o indispensavel á

suas debeis compleições no que toca a comodidades, utensilios, etc...

E Deus sabe se não levam o heroismo a ponto de privarem-se do

sustento conveniente para que melhor possam tratar de suas alumnas,

de suas pupillas, de seus doentes.

O fructo de há muito collhido por esta sancta instituição dó por Deus

pode ser aquilatado. Quantas mães de familia dignas de veneração?!..

(...) não se pode o immenso bem que esta pobre e quasi desconhecida

obra de D. Viçoso tem feito, faz e continuará a fazer á humanidade

carecedora! Por um influxo ou inspiração divina, o que não raras

vezes concede Deus a seus eleitos, é que D. Viçoso projectou e

realizou essa fundação. Plantou elle um jardim, contendo trez

canteiros, do que fez entrega e doação á Divina Providencia. ... (Jornal

O Viçoso, 19/09/1894. P.04)

Percebe-se também que estas instituições abrigavam dois tipos de alunas:

aquelas filhas de pais abastados, que eram preparadas para as funções de esposa e mãe;

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como também meninas órfãs ou muito pobres que necessitavam ser “adestradas” de

forma adequada para as transformações exigidas com o fortalecimento das noções

civilidade e urbanidade. Para conseguir a manutenção das instituições assistenciais,

seria necessário também o ensino de meninas da elite, pagantes.

A diferenciação entre as alunas pobres e as mais abastadas verificada já no

ensino do período imperial brasileiro e desde as primeiras escolas religiosas do período

moderno europeu era uma necessidade que vinculava - se à modernização da sociedade,

à higienização da família e à construção da cidadania dos jovens. Havia também uma

preocupação em afastar do conceito de trabalho toda a carga de degradação que lhe era

associada por causa da escravidão, o que levou os condutores da sociedade a

arregimentar também as mulheres das camadas populares para a educação. Elas

deveriam ser honestas, ordeiras, asseadas; a elas caberia controlar seus maridos e formar

os novos trabalhadores e trabalhadoras do país. Àquelas que seriam as futuras mães dos

líderes também se atribuía a tarefa de manutenção de um lar afastado dos distúrbios e

perturbações do mundo exterior. Esta separação no tipo de educação oferecida às

mulheres de distintas classes sociais era um reflexo da influência francesa no ensino

brasileiro.10

Esta influência e diferenciação do ensino entre as classes sociais não era um

princípio somente das instituições confessionais femininas francesas, mas também

passava pelo próprio pensamento iluminista. Segundo Carlota Boto (1996), o

pensamento iluminista francês foi responsável por dar continuidade e fortalecer as

diretrizes deste ensino diferenciado já que os pensadores iluministas preocupavam-se

com a possibilidade de oferecer uma educação irrestrita para o povo e assim desviá-los

dos serviços braçais. Tornava-se necessário o fortalecimento de uma diferenciação no

ensino para as classes sociais e, ainda, a valorização de uma preparação para o trabalho.

Em Minas Gerais, na segunda metade do século XIX, O Bispo de Mariana Dom

Antônio Viçoso preocupava-se com as questões relativas à valorização do trabalho

feminino, em uma sociedade em que estas idéias eram particularmente depreciadas pela

exploração da escravidão. O trabalho passa a ser visto como uma “salvação” da

corrupção e do ócio.

O trabalho livra o homem da servidão, e salva a mulher das ciladas da

corrupção. Quantas creaturas miseraveis que são hoje a escoria da

sociedade, seriào mulheres honestas, se tivessem occupado suas mãos

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em ligeiros trabalhos, e seo espirito em bons pensamentos! Porque a

preguiça do espirito he tão perigosa como a do corpo. (Selecta

Catholica, 15/11/1846. apud. ASSIS, 2004, p. 239)

Quando pensamos em uma educação diferenciada no seio das instituições

escolares, ou seja, uma formatação escolar de preparação de algumas alunas da elite

para o papel de “boas mães e esposas” e diretoras da casa, e de outras, pobres e/ou órfãs

para o trabalho doméstico, compreende-se então a necessidade de Dom Viçoso em

defender a idéia de valorização do trabalho feminino. Paralelo às questões do

assistencialismo, as instituições confessionais femininas tornaram-se ambientes

propícios para a preparação de trabalhadoras domésticas, quer seja no Brasil ou na

Europa.

As escolas de caridade, as escolas de aldeia e as petites écoles que se

desenvolveram a partir de meados do século XVII podem bem ter sido

responsáveis pela elevação dos padrões de educação exigidos às

raparigas que se propunham ir servir. Em Inglaterra, seguramente, a

rapariga que tivesse freqüentado as escolas de caridade gozava de

algumas solidas vantagens em relação a outros candidatos a lugares

em casas abastadas. A educação aí recebida valorizava as virtudes da

limpeza e de uma apresentação pessoal cuidada. ... À rapariga que

tivesse freqüentado a escola de caridade também havia sido ensinada a

deferência e o respeito pela honestidade e pela sobriedade. No mundo

do serviço doméstico, estes eram atributos que contavam. (HUFTON,

1991, p.34)

REVISÃO DA LITERATURA

Após o levantamento de livros e artigos que tratam da instalação das instituições

aqui analisadas em Minas Gerais, verifica - se os poucos estudos apontados nesta

direção até então. Pretende-se aqui dialogar e questionar esta produção bibliográfica.

Várias respostas só virão após o aprofundamento da pesquisa e a comparação entre as

duas instituições.

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Na publicação Educação em Revista foram encontrados três artigos que levam a

pensar na instalação das instituições confessionais femininas vicentinas em Minas

Gerais. O primeiro artigo analisado, escrito por Júnia e Marcos Lobato Martins (1993),

discorre sobre o Colégio Nossa Senhora das Dores de Diamantina em 1867. Inicia com

uma explanação acerca do cenário mineiro entre 1860 e 1940. Segundo eles, as

modificações nas estruturas sociais e culturais da região diamantinense para este

período aconteceram lentamente. Deve-se ao isolamento do norte/nordeste mineiro em

relação às demais áreas do Estado. Neste espaço geográfico predominava uma produção

destinada ao auto - consumo e com poucas ligações mercantis com o restante do Estado

e com a Bahia. Mas Diamantina influenciava toda a região dos Vales do Jequitinhonha e

Mucuri, principalmente no âmbito cultural, recebendo na cidade diversos filhos das

famílias mais abastadas para serem educados institucionalmente. Pergunta-se: a

instalação do Colégio Nossa Senhora das Dores em Diamantina não seria então um

motor de desenvolvimento econômico e cultural para a cidade de Diamantina?

Quanto à pesquisa acerca do Colégio Nossa Senhora das Dores, consultaram os

livros de registros de matrícula da Instituição e recorreram também à História Oral, sem

delimitar o período para o trabalho. Conseguiram levantar informações sobre a

proveniência das educandas, tanto quanto a procedência, quanto às diferenças entre as

meninas de elite e as órfãs pobres. Os espaços ocupados, o tipo de ensino, o

relacionamento com as freiras, eram diferenciados entre estes dois grupos.

Concentrando a pesquisa sobre as órfãs, conseguiram fazer um levantamento do

cotidiano destas, principalmente com relação à questão do trabalho (faziam bordados,

enxovais, flores artificiais e realizavam a limpeza da Instituição). Acrescentam que

algumas dessas moças, quando alcançavam a idade de 21 anos, iam trabalhar na Fábrica

de Tecidos de Biribiri, pertencente à família do bispo D. João Antônio dos Santos.

Outras casavam, ou iam exercer a carreira religiosa. Esta diferenciação entre a educação

das alunas também estaria presente nas demais instituições gerenciadas pelas vicentinas,

no caso específico de Mariana? Em que ponto eram semelhantes ou diferenciavam nas

atividades educacionais? E por que acontecia (ou não) esta diferenciação?

Em outro artigo publicado na Educação e Revista, as atenções estão voltadas

para a Casa da Providência, instalada em Mariana no ano de 1849. Eliane Marta

Teixeira Lopes (1987) propõe elaborar uma metodologia de pesquisa que se aplique à

pesquisa do cotidiano na referida escola durante o século XIX. Embora aponte que o

material não foi totalmente pesquisado, mostra caminhos para o que é possível

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pesquisar e como se deve proceder. Começa analisando a bibliografia sobre a educação

em Minas Gerais nos séculos XIX e XX, a qual considera rara e escassa, salientando um

maior número de obras sobre história do que sobre educação. Analisando as Revistas do

Arquivo Público Mineiro, constata que não há nenhum artigo ou transcrição documental

sobre o Colégio Providência.

Segundo a autora, a ida ao Colégio foi infrutífera no momento de

desenvolvimento da pesquisa, já que as freiras informaram que não havia um arquivo.

Visitou um pequeno Museu do Colégio, mas recebeu a informação de que este seria

ampliado e instalado um Museu Pedagógico. Sabe-se que hoje o Museu Pedagógico já

está concluído, colocando-se assim como uma possibilidade da atual pesquisa.

Foi na Cúria Arquidiocesana de Mariana que Eliane Marta T. Lopes conseguiu

coletar o material mais expressivo sobre o momento de criação do Colégio e da

mentalidade religiosa de Minas Gerais. Mas considera as entrevistas como momentos

importantes na pesquisa. Utiliza o relato de 12 pessoas, direta ou indiretamente ligadas

ao Colégio entre 1915 e 1960. Dentro dessa possibilidade apontada pela autora,

pergunta-se: como pensar o momento da instalação do Colégio Providência em Mariana

no ano de 1849, intitulando o texto com o século XIX e utilizando entrevistadas que

viveram no século XX? Não seria anacrônico?

Finalizando a revisão da literatura, ainda pequena, devido aos poucos estudos

realizados sobre o início da educação confessional feminina em Minas Gerais na

segunda metade do século XIX, está o livro de Diva Muniz (2003). Esta obra analisa a

educação feminina em Minas Gerais entre 1835 e 1892, pesquisando a partir do Colégio

Providência, do Colégio Nossa Senhora das Dores, do Recolhimento de Macaúbas e

também da instrução pública.

A autora trabalhou com diferentes tipos de registros, o que foi possível analisar

os currículos diferenciados a partir das relações de classe e gênero, direcionados para a

preparação de alunas com papéis já prescritos: mãe, esposa e educadora. Buscou ainda

perceber o lugar das mulheres na sociedade mineira. Aponta fontes documentais e

também particularidades acerca das instituições estudadas, especialmente o Colégio

Nossa Senhora das Dores e o Colégio Providência, mas muitas vezes coloca na mesma

análise as duas instituições, levando em consideração um eixo comum: a direção das

vicentinas. Não percebe as particularidades dos locais (Mariana e Diamantina) no qual

as duas instituições foram instaladas. Além disso, fala muito pouco sobre a educação

diferenciada entre alunas pagantes e órfãs pobres no interior de cada uma das

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instituições. Esta diferenciação acarreta diretamente a formação de um novo papel de

educanda: a trabalhadora. Tendo como ponto de partida as discussões levantadas aqui,

pergunta-se então: como perceber a educação no interior das escolas confessionais

femininas instaladas pelas vicentinas em Mariana e Diamantina?

METODOLOGIA

A metodologia da pesquisa centra-se na História Social, já que são analisadas as

instituições educacionais em suas perspectivas sociais, tanto nas relações exteriores,

com a sociedade dos locais estudados, quanto nas relações interiores, entre as Irmãs de

Caridade e suas respectivas educandas (pagantes ou órfãs). Tem-se como pressuposto de

que é um estudo dos particulares, mas que não deve perder de vista o geral. Além das

questões educacionais, de gênero e religiosas tratadas, deve-se também pensar as

questões políticas, econômicas e sociais.

Atualmente é possível caracterizar a história social como uma forma de

abordagem que “(...) prioriza a experiência humana e os processos de diferenciação e

individuação dos comportamentos e identidades coletivos – sociais – na explicação

histórica.” (CASTRO, 1997, p. 54) Propõe também uma redução da escala de análise,

não buscando estabelecer microcosmos exemplares do social, mas pensando em um

movimento mais amplo, explicativo de uma análise maior.

Dentro desta perspectiva, na pesquisa aqui proposta, ao comparar dois núcleos

sociais (O Colégio Providência e a cidade de Mariana, O Colégio Nossa Senhora das

Dores e Diamantina) em suas particularidades, torna-se necessário perceber as

diferenciações, individuações e identidades coletivas presentes nestas comunidades,

para assim compreender a necessidade de instalação e de fortalecimento do ensino

confessional feminino em contextos mais amplos.

Peter Burke (2002) analisa modelos e métodos comuns entre dois campos (a

história e as ciências sociais), caracterizando abordagens genéricas às duas disciplinas.

A primeira delas seria a comparação. Durkheim considerou dois tipos de comparação:

entre sociedades que fundamentalmente têm a mesma estrutura; ou entre sociedades

basicamente diferentes. Inicialmente, os historiadores tenderam a rejeitar a comparação,

interessados apenas no específico. Mas seria a partir da comparação que “(...)

conseguimos ver o que não está lá; em outras palavras, entender a importância de uma

ausência específica. (...) Observar o que fenômenos aparentemente diferentes têm em

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comum, entretanto, é, sem a menor dúvida, uma virtude intelectual tão valiosa como

observar o quanto fenômenos aparentemente similares diferem entre si.” (BURKE,

2002, pp. 40-41)

Aponta ainda dois riscos da história comparativa: a tendência a fazer uma análise

evolucionista ou estática das sociedades; ou o etnocentrismo. “(...) Os comparatistas

enfrentam um dilema. Ao comparar características culturais específicas, nos fixamos em

algo preciso, podendo notar sua presença ou ausência, mas corremos o risco de

superficialidade. Já a busca entre análogo leva a comparações entre sociedades inteiras.”

(BURKE, 2002, pp.45-46).

Segundo Ana Isabel Madeira (2007) seriam pontos de resistência aos estudos

históricos comparados em educação as questões espaço - temporais e as questões

teórico–conceituais. Levando em consideração um período específico da educação

portuguesa, analisa que a maior parte da historiografia da educação utiliza balizas

políticas, negligenciando as particularidades do campo educativo, com marcos

específicos e temporalidades próprias.

... Por outro lado, revela que esses mecanismos de adaptação

produzem respostas localizadas, “indigenizadas” e híbridas cuja

compreensão apenas se torna possível mediante uma remissão do

enfoque aos problemas do quotidiano, às experiências vividas dos

actores, às culturas institucionais e relativamente circunscritas de

processos de escolarização-formação. (MADEIRA, 2007, p. 39)

Dentro desta perspectiva comparativa para a história da educação, ao propor

trabalhar com a instalação das freiras vicentinas em espaços diferentes, não seria tratar

de uma mesma Escola situada em lugares diferentes, mas pensar nas variações possíveis

de um modelo escolar nas apropriações feitas por grupos com características culturais

particulares. Para além das comparações, estabelecer também as conexões possíveis

entre as instituições e os meios nos quais elas foram implantadas. Deve-se levar em

consideração ainda a presença de sociedades culturalmente mestiçadas no interior da

escola – já que na pesquisa salienta – se principalmente a presença de freiras francesas,

meninas da elite mineira, órfãs e pobres.

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... A investigação sobre a cultura e as práticas escolares, por exemplo,

demonstra a riqueza de situações que podem ser compreendidas à luz

dos mediadores culturais no contexto da sociedade culturalmente

mestiçada. Por que não pensar na intensidade das trocas que envolvem

a escola, na verdade ela mesma um importante elemento mediador?

(FONSECA, 2003, p. 71)

Temos dificuldades em enxergar e analisar as mestiçagens no momento da

pesquisa. Torna-se pertinente realizar tais indagações nas discussões acerca das

instituições aqui analisadas: “(...) por intermédio de qual alquimia as culturas se

misturam? Em que condições? Em que circunstancias? Segundo quais modalidades?

Em que ritmo?” (GRUZINSKI, 2001,18)

A presença das freiras vicentinas francesas tanto na sociedade marianense,

quanto na sociedade diamantinense do século XIX provocaram mudanças, apropriações

e mestiçagens nas sociedades locais. As freiras não só instituíram uma nova forma de

comportar-se entre as meninas/mulheres, como também realizaram uma aproximação

com as culturas locais.

Ainda relativamente pouco explorada e, portanto, pouco familiar aos

nossos espíritos, a mistura dos seres humanos e dos imaginários é

chamada de mestiçagem, sem que se saiba exatamente o que o termo

engloba, e sem que nos interroguemos sobre as dinâmicas que ele

designa. Misturar, mesclar, amalgamar, cruzar, interpenetrar,

superpor, justapor, interpor, imbricar, colar, fundir etc., são muitas as

palavras que se aplicam à mestiçagem e afogam sob uma profusão de

vocábulos a imprecisão das descrições e a indefinição do

pensamento.(GRUZINSKI, 2001, 42)

É um trabalho complexo para compreender historicamente o que pertence a uma

cultura vicentina e é implantado em Mariana ou Diamantina... Como ao mesmo tempo

pode ser implantado em Paris, Lisboa, ou qualquer outra instituição da Congregação

implantadas na segunda metade do século XIX. Perceber, portanto, as possíveis

conexões entre estas instituições. Por outro lado, compreender as especificidades de

cada uma delas nas sociedades em que são implantadas, já que trabalha-se com a

perspectiva das misturas, cruzamentos, mesclagens...Só a comparação entre estes dois

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espaços propostos torna possível a percepção das particularidades e conexões entre as

duas instituições aqui analisadas.

POSSÍVEIS DIFERENÇAS E SEMELHANÇAS ENTRE MARIANA E DIAMANTINA

Embora instaladas como núcleos urbanos mineiros já no período colonial,

Mariana e Diamantina distanciam-se não só espacialmente, mas também em suas

particularidades econômicas, políticas, sociais e culturais. Compreender as

particularidades destes dois núcleos possibilita a compreensão das particularidades e as

conexões das instituições educacionais aqui analisadas.

Mariana foi fundada em 1696, devido à exploração do ouro. Tornou-se a

primeira Vila da Capitania de Minas Gerais (1711), tornando-se também sede

administrativa da região. Logo em 1720, com a separação de Minas da capitania de São

Paulo, a administração passou para Vila Rica, local próximo de Mariana. Mesmo

perdendo o poder político, a cidade não deixou de influenciar a região, pois em 1745 foi

criado o primeiro bispado neste local, o que leva a considerarmos a cidade como berço

da religiosidade católica de Minas Gerais, ou seja, já não tem poder político

administrativo, mas forte poder religioso. Se levarmos em consideração que política e

religião não são dissociadas no Brasil até a proclamação da República devido ao sistema

do Padroado, é possível perceber a importância de Mariana nas questões políticas,

econômicas e culturais em todo o período colonial e imperial de Minas Gerais,

influenciando, inclusive, a instalação da primeira instituição vicentina feminina, o

Colégio Providência.

Já Diamantina teve uma fundação posterior (1714) e, devido à exploração dos

diamantes, difere-se das demais vilas criadas pela exploração aurífera. Por causa da

raridade e do valor, não foi possível a livre exploração das pedras preciosas, sendo

estabelecida a figura do Contratador de Diamantes (1740), que recebia da Coroa

portuguesa o direito de explorar as lavras. A influência política, econômica e social da

região ficava nas mãos de poucos homens, influenciando inclusive no processo de

urbanização da cidade. Enquanto Mariana se caracterizava pela construção de um rico

casario, Diamantina construía poucas casas luxuosas para os poucos poderosos locais.

Somente em 1831 o Arraial tornou-se vila. Para Goodwin Jr.(2007), Diamantina

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conheceu o seu florescimento no século XIX, no momento em que diminuía a

exploração dos diamantes, mas que liberava a sua exploração e diversificava - se

economicamente, tornando-se pólo comercial para o restante da região norte - mineira.

... Em 1831, finalmente foi reconhecido o desenvolvimento do arraial,

com sua elevação a categoria de Vila em 13 de outubro, sede de

município, com o nome de Diamantina; a elevação a cidade data de 06

de março de 1838. A autonomia política foi o mote para o inicio de

uma disputa entre as elites diamantinenses e do Serro no campo

político, econômico e principalmente cultural. A extinção formal da

Real Extração em 1832 (efetivada na prática em 1841) liberou o

garimpo do diamante, que se manteve em um nível razoável,

acompanhado em menor escala do ouro; o algodão transformou-se em

outra fonte de riqueza, exportado para o mercado inglês.

Essas transformações fizeram com que as elites diamantinenses do

inicio do século XIX vivessem um período de enriquecimento e

refinamento que chegou a impressionar até viajantes estrangeiros,

como o francês Saint – Hilaire ou o alemão Von Eschwege - que veio

a residir e trabalhar na cidade. As transformações de hábitos e

costumes vividos pelas elites ocorreram desde a chegada da Côrte

portuguesa em 1808, intensificando-se com a abertura para influências

britânicas e o processo de independência. (GOODWIN Jr., 2007, p.48)

A implantação do Bispado na cidade, segundo de Minas Gerais, ocorreu em

1853, por uma forte campanha empreendida por D. Viçoso em seu processo de aumento

da religiosidade nos moldes do ultramontanismo. A figura principal para a instalação

desta política religiosa diamantinense foi D. Antonio de Almeida, discípulo direto de D.

Viçoso e responsável, dentre outras frentes católicas, por implantar o Colégio Nossa

Senhora das Dores na cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe aqui salientar novamente que esta é uma discussão preliminar. O

levantamento de fontes para esta pesquisa ainda está no seu estágio inicial,

comprometendo principalmente as percepções acerca da comparação entre as duas

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instituições. Mas principalmente com o auxilio do levantamento e da leitura

bibliográfica apontada, é possível perceber algumas conexões e diferenças entre o

Colégio Providência de Mariana e o Colégio Nossa Senhora das Dores de Diamantina.

O Colégio de Mariana (1849) foi a primeira instituição confessional feminina

educacional em Minas Gerais e a sua experiência influenciou diretamente a fundação do

Colégio em Diamantina alguns anos depois (1867). Ambos foram fundados pelas freiras

vicentinas, solicitadas pelos bispos locais, vindas diretamente da França para exercer

tanto funções educacionais, quanto caritativas. Praticavam também uma educação

diferenciada para alunas pagantes e órfãs.

Os pontos levantados acima apontariam para a análise de possíveis aproximações

entre as instituições. E onde estaria a diferença nesta comparação? Estaria presente na

análise da história das sociedades locais, nas personagens que ocuparam os espaços

pesquisados, ou seja, na percepção das particularidades das freiras e das alunas, e nas

possíveis mestiçagens da cultura local com as novas instituições de ensino femininas.

Talvez nesta análise comparada, que aponte semelhanças e diferenças entre as

duas instituições, seja possível apontar caminhos para compreender até o motivo do

fechamento do Colégio Nossa Senhora das Dores na década de 1960 e a manutenção do

Colégio Providência até os dias atuais.

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REFERÊNCIAS: ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia – condição feminina nos conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. 2a. ed., Rio de Janeiro: José Olympio,1999 ASSIS, Raquel Martins de. Psicologia, educação e reforma dos costumes: lições da Selecta Catholica. Tese de Doutorado. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: 2004

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LOPES, Eliane Marta Teixeira. Educadoras de mulheres: as filhas de caridade de São Vicente de Paulo: servas de pobres e doentes, espirituais, professoras. In: Educação em Revista. Belo Horizonte:1993

MADEIRA, Ana Isabel. Estudos comparados em História da Educação e educação colonial: algumas considerações sobre a comparação no espaço da língua portuguesa. In: Sísifo. Revista de Ciências da Educação. Universidade de Lisboa, Lisboa, Pt: no. 01, set/dez 2006. pp. 37-56. Disponível em: sisifo.fpce.ul.pt, acesso em 08 de outubro de 2007

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(1780). In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto: Imprensa Oficial de Minas Gerais, V. 02, 1897. Disponível em: www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/rapm/brtacervo.php?cid=75 . Acesso em 24 de novembro de 2007. P.353) 6 “(...) somente em 1789, após extenuante peregrinação burocrática pelas repartições da Corte, foi obtido o almejado benefício régio, através de despacho da Rainha Da. Maria I, que finalmente aprovou o estabelecimento e o tomou sob sua proteção. (...) O ato régio de aprovação de Macaúbas apenas foi despachado favoravelmente depois de predominar ali a intenção de se estabelecer um instituto educacional, sendo bastante explícitas as determinações da Rainha de que se reformassem os Estatutos do Recolhimento para se elaborar um plano completo de educação para as meninas.” (FARIA, 1977, p.134) 7 Na Enciclopédia Católica, a caridade se define como: “(...) un hábito divinamente infundido, que inclina al humano a amar a Dios por él mismo sobre todas las cosas, y al hombre por amor a Dios”.Divide-se entre o amor a Deus e o amor aos homens (amor próprio e amor ao próximo). Caridad. In: Enciclopedia Católica. Disponível em: http://www.enciclopediacatolica.com/a.htm . Acesso em 25 de novembro de 2007 8 Conférence du 19 juillet 1640, . Saint Sur la vocation de fille de la Charité Vincent de Paul.Entretiens aux filles de la charité. Tome IX. Disponível em: http://www.famvin.org/fr. Acesso em 08 de outubro de 2007. Livre tradução.

9 Conférence Du 07 Décembre 1643, Sur l’oeuvre dês enfants trouves.. Saint Vincent de Paul.Entretiens aux filles de la charité. Tome IX. Disponível em: http://www.famvin.org/fr. Acesso em 08 de outubro de 2007

10 “No que diz respeito à história da educação, a França do século XIX herdou mais o patrimônio educativo do Ancien Règime que o legado da Revolução e, ainda, acrescentou às desigualdades culturais, as de caráter social e sexual. O sistema educacional francês, calcado no princípio que a educação deve ser adaptada, tanto quanto possível, ao futuro social dos indivíduos, não apenas segregou o ensino feminino, como, também, criou perspectivas de instrução distintas entre as próprias mulheres.” (CARVALHO, 2003. p. 124)