enfoque vicentina 2

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VIDA DE CÃO MAGRELAS ENFOQUINHO Abandonados, cachorros adotam a comunidade como lar. Página 4 Conserto de bicicletas é fonte de renda para Seu Derli. Página 9 Crianças viram repórteres no bairro. Página Central O LUXO DO LIXO PLÁSTICO, PAPELÃO E VIDRO SÃO ALGUNS DOS MATERIAIS RECICLADOS NA COOPER VITÓRIA PÁGINA 3 VICENTINA ENFOQUE EDIÇÃO 2 KARINE DALLA VALLE JÚLIA RAMONA CAMILA MORAES LAURA PAVESSI SÃO LEOPOLDO / RS OUTUBRO DE 2014 http://olharesevozes.wix.com/vicentina

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Segunda edição.

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Page 1: Enfoque Vicentina 2

VIDA DE CÃO MAGRELAS ENFOQUINHOAbandonados, cachorros adotam a

comunidade como lar. Página 4Conserto de bicicletas é fonte de

renda para Seu Derli. Página 9Crianças viram repórteres

no bairro. Página Central

O LUXO DO LIXOPLÁSTICO, PAPELÃO E VIDRO SÃO ALGUNS DOS MATERIAIS RECICLADOS NA COOPER VITÓRIA

PÁGINA 3

VICENTINAENFOQUE

EDIÇÃO

2

KARINE DALLA VALLE

JÚLIA RAMONA

CAMILA M

ORAES

LAURA PAVESSI

SÃO LEOPOLDO / RSOUTUBRO DE 2014http://olharesevozes.wix.com/vicentina

Page 2: Enfoque Vicentina 2

2. AMBIENTE ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO | OUTUBRO / 2014 | http://olharesevozes.wix.com/vicentina

Um lixo à parteDescarte irregular incomoda

quem vive nas proximidades do valão do Vicentina

O calor vem che-gando e, com ele, os sentidos se aguçam. Os

cheiros são mais inten-sos, as vistas ficam em-baçadas e o corpo mais instável. Para parte do bairro Vicentina, essas sensações não são nada agradáveis. O nariz per-cebe chorume, dejetos queimados e podridão; os olhos captam uma in-finidade de cores que se misturam num caos de tralhas e descartes; e o corpo não consegue se manter sem reação ao passar pela Rua Afonso Linck, desviando do lixo envolto por mosquitos que ocupa o lugar onde carros deveriam transitar.

Poderia servir de ce-nário para Avenida Bra-sil, novela da Rede Glo-bo de 2012, que teve um dos núcleos ambientado num lixão. Ao caminhar pela rua da cidade de São Leopoldo, é preciso an-dar pelo meio da estrada e manter, ao mesmo tem-po, uma distância segu-ra dos automóveis. Em meio a sofás, armários, roupas, calçados e uma imensidão de materiais descartados, fica difí-cil até mesmo localizar onde está a divisão entre o meio-fio e a rua.

“É uma pouca ver-gonha essa situação. A gente passa tendo que se cuidar dos carros, porque o lixo ocupa o espaço da rua, e temos que andar por cima dele”, re la-ta Rosane da Silva, 53 anos, recicladora que mora no bairro há cer-ca de 20 anos. Segundo ela, o material encon-trado ali não é próprio para reciclagem. “São coisas que a gente não pode vender, não pegam na empresa que recicla”, ela completa.

O Vicentina começou a prosperar a partir da reciclagem. Entretanto, hoje algumas grandes empresas monopolizaram

o negócio. O bairro agora cresce, principalmente, através de pequenos em-preendimentos e outros tipos de indústria. Mesmo com a história de desen-volvimento econômico proveniente da separação e renovação dos dejetos, a realidade está literal-mente suja. “Existe lixão na cidade, mas não cons-cientização. As pessoas insistem em não descartar o lixo no local próprio, dificultando o trabalho de quem recolhe o ma-terial”, ressalva Edson Luís dos Santos, 40 anos, dono de uma companhia de reciclagem no bairro.

Alex Sandro da Silva, 35 anos, não gosta do lixo que vê nas proximidades de casa. “Tem gente que vem de vários lugares tra-zer lixo para cá, não des-tinam ao lixão. Deveriam

colocar placas proibindo. Antes tinham câmeras na rua, mas foram retira-das”, conta o motorista de caminhão. Segundo ele, existe também um projeto que faria da rua um itinerário da linha de ônibus, já que a via liga o Vicentina ao bairro São Miguel. Com todo o lixo acumulado, fica compli-cado até mesmo o trânsito de caminhões no local.

A c o l e t a s e l e t i v a ocorre nos bairros de São Leopoldo uma vez por semana, mas é diária nos bairros Centro e Fião. No Vicentina, a partir das 8h das quintas-feiras, ca-minhões recolhem o lixo doméstico e destinam a locais próprios para re-ciclagem. Ao todo, são sete cooperativas que mantêm convênio com a Prefeitura Municipal da

cidade, sendo uma destas a Aturói Vitória, que está localizada no bairro.

Residindo no Vicenti-na há aproximadamente 4 meses, Tiago Daniel, 27 anos, mudou-se de um apartamento no Centro de São Leopoldo para abrir sua vidraçaria num lu-gar mais amplo. “Patrolas limpam aquele trecho da rua seguidamente, mas nunca permanece limpo. Muita gente traz lixo logo em seguida”, relata. Ele conta também que os amigos antigos, que eram seus vizinhos no outro bairro, se assustam com o cheiro e a sujeira. “Mui-to lixo é queimado aqui também. As labaredas crescem com o vento e chegam a ser assustado-ras”, conta o vidraceiro.

O lixo é solução e transtorno no bairro. En-

quanto garante a sobrevi-vência de alguns, é tam-bém parte da indignação social pela falta de cons-cientização da população. Para muitos moradores, o descarte incorreto está relacionado à falta de bom senso das pessoas. “Se não houver organização para a coleta seletiva por parte dos moradores e incentivo ao descarte consciente, o lixo continuara às mar-gens da rua”, afirma Pedro Flores, 52 anos, presidente da Associação de Mora-dores do Bairro Vicenti-na. Enquanto isso, quem passa pelas imediações do final da Avenida João Cor-rêa vê a cena que infesta o bairro de mau cheiro e é mais um dos problemas da comunidade que são deixados de lado.

à

JÚNIOR MELO DA LUZ-

Acúmulo de dejetos é tanto que

já cobre metade da rua

à

O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Vicentina, de São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

(51) 3591 1122, ramal 1329

[email protected]

http://olharesevozes.wix.com/vicentina

REDAÇÃO – Jornalismo Cidadão – Orientação: Sonia Montaño. Edição e reportagem: Bárbara Müller e Leonardo Vieceli. Reportagem: Cíntia Richter, Diovana Dorneles, Francine Malessa, Guilherme Rovadoschi, Jacson Dantas, Júlia Soares, Júnior Melo da Luz, Pedro de Brito, Sabrina Stieler, Thaciane de Moura, Thiago Santos e Vitória Santos. FOTOGRAFIA – Fotojornalismo – Orientação: Marina Chiapinotto. Fotos: Camila Moraes, Carolina Teixeira Lima, Cassiano Cardoso da Silva, Jéssica Luana Zang, Julia Ramona, Karine Dalla Valle da Silva, Laura Hahn Pavessi, Luiza Marques Veber, Michelle Santos de Oliveira, Priscila Boeira, Renata Cardoso de Almeida e Vitória Padilha Roxo. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) – Projeto gráfico e finalização: Marcelo Garcia. Diagramação: Gabriele Menezes. IMPRESSÃO – Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Bairro Três Figueiras – Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@

unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Gustavo Fischer. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.

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RENATA CARDOSO

Page 3: Enfoque Vicentina 2

COOPERATIVISMO .3

A reciclagem como fonte de rendaProduzindo 20 mil toneladas de

material reciclado, Cooper Vitória é composta por doze recicladores que vivem no Vicentina

As mãos ágeis rasgam os sacos e fazem a separa-ção. Garrafas pet,

vidros, jornais, papelão e os mais diversos tipos de ma-teriais passam pela mesa de reciclagem. Aos poucos, os sacos com materiais seme-lhantes vão ficando cheios. Ali, no galpão improvisado, fica a Cooper Vitória.

Composta hoje por 12 recicladores moradores do Vicentina, a cooperativa surgiu no ano de 2002 e inicialmente era formada pelo Grupo Vitória e Grupo Horta Comunitária Santa Marta. Magéria Alves, 57 anos, recicladora e coorde-nadora da Cooper Vitória e Áurea Ponciano Pereira, 49 anos, também recicladora, fizeram parte do grupo que deu inicio ao projeto.

Magéria lembra dos tempos difíceis quando não possuíam um espaço próprio para fazer a reci-clagem. “Passávamos com nosso carrinho recolhendo o lixo, mas o pessoal não res-peitava” explica Magéria.

Localizado na Rua do Carmo, bem próximo à BR 116, a cooperativa já teve outros endereços. “Começa-mos na casa de uma colega nossa. Era uma área com

umas telhas e ali separáva-mos o que encontrávamos” conta Áurea. Quando conse-guiram o auxilio da prefeitu-ra, alugaram um espaço na área central do bairro, mas como ficava perto de casas e estabelecimentos comer-ciais, tiveram que sair após os moradores fazerem um abaixo-assinado, solicitando a mudança da cooperativa.

Já instalado no espaço atual, no dia 28 de feverei-ro de 2009, um incêndio devastou a cooperativa. “Fi-camos desesperados quando chegamos na segunda-feira para trabalhar e encontra-mos tudo destruído”, relem-bra Magéria. O fogo des-truiu todos os materiais que estavam prontos para serem entregues no início daquela semana. Restaram apenas uma prensa e uma balança, que utilizam até hoje. Por determinação do Corpo de Bombeiros, o espaço ficou fechado por quatro meses. Nesse período, os recicla-dores voltaram a trabalhar nas ruas, catando lixo com seus carrinhos.

Desde 2005, o municí-pio de São Leopoldo conta com a coleta seletiva com-partilhada. Desse modo, a cidade foi dividida em sete quadrantes e cada coopera-tiva recebe o lixo de deter-minado quadrante. Todos os dias a cooperativa recebe materiais para reciclagem, tanto da coleta seletiva, quanto de empresas que realizam parcerias.

De acordo com a tesou-reira e recicladora, Cristia-

ne Alves da Rosa, 34 anos, cerca de 20 mil toneladas de lixo são recicladas na cooperativa. “Parece mui-to, mas cada material tem um preço e geralmente é bem baixo. O quilo do vidro custa R$ 0,07” esclarece.

Tudo que é produzido é vendido para empresas da região e tanto os lucros quanto os gastos são divi-didos igualmente entre os doze membros da coopera-tiva. Cristiane explica que com o auxílio da prefeitura é possível cobrir boa parte dos gastos.

ENTENDA O PROCESSO DE RECICLAGEM Cada bairro tem um

dia específico em que é realizada a coleta seletiva. Os moradores separam o

lixo em suas casas e esse material é entregue na co-operativa de reciclagem. Os recicladores separam os materiais de acordo com

cada tipo e então são co-locados na prensa. Ali os materiais são amassados, formando fardos. Esses fardos são vendidos para

empresas específicas que buscam esse material na cooperativa.

à

Um bairro, muitas facesO Vicentina é um lugar

que abriga diversas personali-dades. Do homem que conser-ta bicicletas ao proprietário da loja de motos; do músico José Gomes ao Palhaço Espelhado: pluralidade é uma palavra que se assemelha à vida no bairro. Diariamente, novas histórias são escritas nas ruas e casas dos 13.140 moradores locais – segundo dados do último Censo Demográfico do IBGE. E nós, como estudantes de Jornalismo, temos o dever e o privilégio de contá-las.

O Enfoque, aliás, uniu universitários que possuem a paixão pela comunicação. Antes da primeira edição do jornal, muitos dos relatos sobre o Vicentina provavel-mente estavam fadados ao esquecimento. Entretanto, a felicidade pela realização do projeto parece que vai além da satisfação dos estudantes. O sentimento também é com-

partilhado entre moradores do bairro. Para os repórteres, isso é maravilhoso. Ver o in-teresse da comunidade pelo jornal é animador.

Aos poucos, sem pressa, estamos construindo uma relação amistosa de troca de conhecimento. As matérias trazem aprendizados e lições tanto aos futuros jornalistas quanto aos leitores. Uruguaio, o morador do Vicentina Ra-mon Ariel Bonilla, técnico mecânico e fresador, exempli-fica tal afirmação. Ao contar a sua história para o jornal, ele falou algo que deve ser refletido pelos estudantes.

“O jovem, hoje, busca um estágio pelo valor da bolsa–auxílio, não pela ex-periência que irá adquirir. A maior preocupação deveria ser em aprender, não em re-ceber. Muitos querem iniciar ganhando muito, mesmo sem conhecimento. Só se conquis-

ta algo com aprendizado. Foi assim que alcancei o que te-nho”, disse.

Por outro lado, além de conselhos, as visitas ao Vi-centina fazem com que os repórteres voltem ao passa-do. E relembrem um período em que a grande preocupação deles era brincar. Outubro é o mês das crianças. Sons da garotada se divertindo embe-lezam o bairro e aumentam a vitalidade do local.

Para mostrar que os pe-quenos também têm voz, a re-portagem especial do Enfoque propõe a eles a tarefa de serem repórteres. Ou seja, a ideia é abrir espaço para quem é o futuro do bairro. Crianças que poderão escrever as pró-ximas páginas de um livro chamado Vicentina.

DIOVANA DORNELES-

RECADO DA REDAÇÃO

EDITORESLEONARDO VIECELIBÁRBARA MÜLLER

--

Recicladores em processo

de separação de parte dos materiais da coleta seletiva do município

àDIOVANA DORNELES

KARINE DALLA VALLE

Crianças se tornam

repórteres para saber o que seus pares pensam sobre o bairro

àLAURA PAVESSI

ENFOQUE VICENTINA | SÃO LEOPOLDO | OUTUBRO / 2014 | http://olharesevozes.wix.com/vicentina

Page 4: Enfoque Vicentina 2

4. SOLIDARIEDADE

Maior abandonadoA vida dos cães de ruas

do Vicentina e as histórias de quem abriu o coração e o lar para o amor animal

O latido incessante ecoava ao lon-ge no Vicenti-na. Alto, agudo,

constante. Um som quase que musical. Na calçada da Rua Abílio Fidélis, dois cachorros brincavam e tornavam a soli-dão compartilhada. Um gran-de, dócil e louco para receber carinho. O outro era menor, esguio e desconfiado. Andan-do mais algumas ruas, a cena se repetia. Mais cachorros de rua, de todos os tipos. Uns com o pêlo aparado, outros com as pulgas que o tempo cultivou. Era esse o reflexo do abandono dos animais que não têm um lar, um dono ou, até mesmo, uma esperança.

Os cães cantavam, ou melhor, ladravam em com-panhia. Os ritmos formavam o soneto da solidão. Acuados, latiam por medo, pareciam pedir ajuda. A maioria pare-cia ter a vivência das ruas. O porte alto, imponente. São, definitivamente, os maiores abandonados do Vicentina.

Segundo a Secretaria Mu-nicipal de Proteção Animal de São Leopoldo, existem mais de seis mil animais de rua no município. No Vicentina, em uma rápida caminhada nas vias principais do bairro são mais de 20 cães. Todos ali, vivendo das sobras, do ca-rinho doado por alguém, da luta diária pela sobrevivência.

Os cães não contam com um suporte de canil no bairro, o que dificulta o processo de acolhimento. O Canil de São Leopoldo, por sua vez, abriga cerca de 400 animais, dentre eles não só abandonados, mas também bichos maltratados e machucados por conta de atropelamentos e de eventuais consequências por viverem nas ruas. O local trabalha com sua lotação máxima desde 2013, resultado do pouco in-vestimento em políticas de saúde pública com os animais abandonados.

A cidade ainda conta com o Centro Municipal de Prote-ção Animal e com o Centro de Castração, que visam diminuir a proliferação de animais na rua. Entretanto, os locais fi-cam na região central da ci-dade, ou seja, longe das ruas ensaibradas que servem como cama e abrigo aos andarilhos dos latidos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que só no Brasil exis-tam mais de 30 milhões de animais abandonados, sendo que 20 milhões são cães. Em cidades de grande porte, para cada cinco habitantes há um cachorro, desses, 10% estão abandonados.

“ME LEVE PRA QUALQUER LADO”

A solidariedade em ver um animal abandonado to-mou conta do coração de Márcia Roselei, que mora há 40 anos no bairro e é auxiliar de serviços gerais na recém inaugurada EMEI Brinco da Princesa. Adotou duas cadelas de rua há dois anos. Deixando a origina-lidade de lado, batizou as companheiras com os no-mes de “Preta” e “Pretinha”. Com o tempo, Márcia viu que as novas moradoras de sua casa estavam prenhas. Dez filhotes tomaram conta do lar, mas a benfeitora não pensou em abandono. “Eu cuidei de todos sempre. Até conseguir doá-los, um a um. Dois dos filhotes morreram logo após o nascimento, mas tive todo o carinho do mundo com eles. Não queria que eles tivessem o mesmo destino anterior da mãe”, afirma, orgulhosa.

Rogério de Oliveira nasceu no Vicentina e mora há quarenta e seis anos na região. Cresceu e viu o bairro se desenvolver, mas frisa que nunca houve uma política pública de ajuda aos animais no local. “Eu adotei três cachorros de rua que encontrei aqui. A Lessie, o Bob e o Tobi. Eles eram bem sarnentos, mas hoje cuido deles com muito amor. São meus parceiros”, declara Oliveira, que trabalha com moldagens em fibra.

O catador de sucata Clóvis Délcio tem em seus cachorros sua companhia diária. Um dos quatro cães, Neymara, cultiva um topete em seu pêlo. Dioli, por sua vez, foi o último cão que foi agregado à família de Dél-cio. “Ele foi chegando, ficando por aqui. Aí coloquei ele pra dentro de casa”, conta o torneiro mecânico que abandonou tudo para trabalhar com sucata.

O casal José Rogério e Lu-ciane de Souza, moradores do Vicentina há 48 anos, enquanto chimarreavam em frente a casa, vigiavam Pretinha, a mascote da família. Com uma espécie de top no cabelo, a cadelinha de porte pequeno pulava no colo de Rogério ao primeiro pedido do dono. “ Talvez exista muita gente que acaba deixando o portão aberto, e os cachorros fogem. Mas eu acredito que não é só o pessoal do bairro que abandona. Tem gente de outros bairros que larga os cães aqui”, avalia o morador.

Repetindo os versos de “Maior abandonado”, de Cazuza, os solitários animais de rua brigam pelas “migalhas dormidas do teu pão” e “estão perdidos sem pai nem mãe, bem na porta da tua casa”. Quem sabe, com esses exemplos, essa não seja a hora de dar “só um pouquinho de proteção a um maior abandonado”?

à

GUILHERME ROVADOSCHI-

Pretinha foi acolhida por José

e Luciane (acima) e é tratada como integrante da família. Rogério (à direita) brinca com Lessie, cadela de rua que foi adotada por ele, assim como outros dois cães. Enquanto isso, muitos outros cachorros esperam um lar

à

JÚLIA RAMONA

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Page 5: Enfoque Vicentina 2

ARTE .5

Mensageiro da alegria Palhaço há cinco anos, Denilson

é reconhecido pela comunidade e sonha em ajudar crianças

O porto-alegrense Denilson Caeta-no Luís, 40 anos, mora no bairro

Vicentina há duas décadas. Depois de se separar, inte-grou a primeira ocupação do Loteamento Cerâmica Anita, fixando residência após o início da construção das moradias populares, em 2009, através da parceria da Prefeitura de São Leopoldo com a Caixa Econômica Fe-deral. “Eu vim para cá com o pessoal e montei minha casa, ficamos até o prefeito fechar acordo com o gover-no federal para a construção das moradias”, lembra. Hoje, trabalha em bicos ofere-cendo planos de telefonia e internet, mas não esconde os dois maiores prazeres: o hip-hop e a alegria de atuar como palhaço.

Há quase dez anos, Denilson decidiu integrar o movimento hip-hop do município. “Eu já escrevia músicas há algum tempo e, quando conheci a cena do hip-hop de São Leopoldo, decidi participar”, comenta. Sob o nome de Mc Cromado, gravou seu próprio álbum, com 13 canções compostas por ele. “Escrevi músicas de conscientização, rela-cionadas à nossa reali-dade, sobre a violência e as drogas. É importante

levar essa mensagem aos jovens”, explica. Dentro da cena, Denilson costuma se apresentar em eventos.

Mas o motivo que o le-vou a ser reconhecido no bairro é outro. Quando per-guntados sobre onde mora o homem que se veste de palhaço, todos os moradores apontam em direção ao lote-amento. Por volta de 2009, Denilson aceitou um convite do amigo de infância Ariel Brandão, conhecido como Palhaço Mortadela. Apren-deu a fazer malabares, bus-cou fantasia e equipamento, como a cama elástica, e assu-miu a identidade do Palhaço Espelhado para animar fes-

tas infantis e outros even-tos. “Quem começa nesse trabalho se apaixona, e eu sempre gostei de crianças”, comenta o artista de sorriso fácil. Para atrair a atenção dos pequenos, Denilson conta com sua vestimenta colorida: um macacão azul e rosa, com franjas verdes nas mangas, além da grande gravata laranja que carrega o nome artístico do palhaço. A peruca colorida e os mala-bares ainda fazem parte da construção do personagem.

O sucesso com as crian-ças o emociona. “Elas gos-tam. Há algum tempo eu sofri um acidente com a moto, fiquei de cama, com

o pé quebrado. As crianças vinham aqui em casa ver se eu estava bem”, lembra o artista. Seu projeto, agora, é montar uma lanchonete na frente de casa, para po-der ajudar nos serviços do bairro mais ativamente. “Eu quero disponibilizar o meu trabalho e equipamentos em

eventos e nas associações, para ajudar as crianças da comunidade”, conta o sim-pático mensageiro da alegria, que gera sorrisos e exclama-ções pelas ruas em que passa, colorindo a vista e o coração dos vizinhos.

à

O som que embala o Vale do SinosO som dos acordes

de um violão quebrava o silêncio da tranquila Rua Antônio da Silva, no bairro Vicentina, em São Leo-poldo. Sentado em uma cadeira de plástico bran-ca, à frente da casa onde mora há três anos, José Gomes, 40 anos, tirava algumas notas no instru-mento que comprara para o filho, Rodrigo, 13 anos. O violão elétrico de cor preta e da marca Tagima custara R$ 700, investi-mento realizado para que a tradição aprendida em casa com os tios e avós seja passada para a nova geração da família.

Além de compor, Go-mes toca vários instrumen-tos, mas é como vocalista e tecladista que ele faz shows todos os finais de semana em cidades do Vale do Sinos. São, no míni-mo, quatro por mês, nos

quais ganha entre R$150 a R$200 por apresentação. Segundo Gomes, o públi-co, que varia entre 600 a mil pessoas em cada show, não fica parado ao embalo de suas releituras de músi-cas dos grupos Os Atuais, Musical JM, Amado Batis-ta e canções gauchescas, além de valsas e samba.

“Um hobby”, assim ele classifica as apresen-tações que realiza desde os 19 anos. Rodrigo, que está seguindo os passos do pai , toca violão e bateria. “Ele sabe tocar melhor do que eu”, fala, orgulhoso. O estilo de música que o filho gosta e toca não é o mesmo. O rock faz parte do re-pertório musical do jo-vem. Gomes alerta que as canções escolhidas por Rodrigo não são as que “levantam o pessoal nas festas”, mas deixa o

garoto seguir seu rumo. Há 10 anos, Gomes

morava em Parobé, mas, com o fim do casamento, abandonou tudo o que ti-nha na cidade, localizada a 75km de Porto Alegre, para viver uma nova vida

em São Leopoldo. Nos braços, trouxe o filho, na época com três anos. Desde então, seu foco está em dar o melhor para o herdeiro. “Tudo o que eu tenho e faço é pelo piá. Até ele se estabilizar e

casar, meu pensamento vai ser dar o melhor para ele”, afirma.

O relógio marca 10h da manhã de sábado, 27 de setembro. Entre as folhas de um caderno, o músico retira as notas fiscais dos produtos que comprara durante a semana. De se-gunda à sexta-feira, Go-mes é serralheiro em uma empresa que abriu com o pai, Osnildo de Castro Pereira, 56 anos, na Vila Campina: a De Pai e Filho. Há menos de um ano, ele decidiu utilizar a expe-riência de uma década e meia como funcionário para empreender em um negócio próprio. “Não dá para viver de música. Tem que trabalhar!”, relata. O conselho é partilhado com o filho, que sonha em ser lutador de Muay Thai.

PEDRO DE BRITO-

JACSON DANTAS-

Os malabares e a vestimenta

colorida compõem o personagem criado pelo morador do Vicentina para alegrar as crianças

à

MICHELLE OLIVEIRA

O contato com a música é

passado de geração à geração na família Gomes

à

VITÓRIA PADILHA

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Page 6: Enfoque Vicentina 2

6. INFÂNCIA .7

Se essa Vicentina

fosse minha

O Vicentina sob o olhar das crianças

Imagine uma crian-ça, ou melhor, um gru-po de crianças podendo governar por um dia. Se elas tivessem a oportu-nidade de, pelo menos, pensar e promover me-lhorias no seu bairro e fosse este, o Vicentina. Os pequenos nem sem-pre tem uma voz que é ouvida, principalmente se estiverem longe dos grandes centros, mas tenha certeza, eles po-dem saber melhor do que nós mesmos. Afi-nal, os adultos estão sempre envolvidos com problemas maiores.

Então, e se o Vicen-tina fosse deles? Bom, eles não pensam em ladrilhar as ruas com “pedrinhas de brilhan-tes”, mas contam com “um bosque que se chama solidão”. Eles querem uma pista de skate, para não preci-sar mais ir até o Cen-tro. Sonham com um espaço de lazer, para poderem ser crianças em um mundo que está cada vez mais adulto.

Acredito que se o Vicentina fosse deles,

encontrariam uma so-lução simples para al-guns problemas que são realmente simples. Por que não construir uma nova praça para eles ou reforçar a segurança e manutenção do Parque do Trabalhador? Assim, o clima de insegurança dos pais seria ameniza-do. Por que não pro-mover a limpeza dos bueiros que acabam ge-rando inundações das ruas em dias de chuva forte e que impede al-guns deles de chegarem até a escola?

Talvez, tentando pensar agora como c r i ança , r ea lmen te seria mais fácil que os governantes man-tivessem seus olhares infantis, pensando em soluções e buscando melhor ias s imples , como num toque de mágica. Queria eu que esse Vicentina fosse destes pequenos, assim pelo menos veríamos mais sorrisos e brinca-deiras e menos grades pelas ruas do bairro.

Irmãos assumem o papel de repórter

e vão para a rua saber como é ser criança no Vicentina

No mês das crian-ças, o Enfoque Vicentina propôs a dois irmãos,

Luciano dos Santos de Ca-margo, 13 anos, e Natália Beis de Camargo, 9 anos, o desafio de assumirem o papel do repórter e ques-tionarem outras crianças a respeito do bairro. O con-vite foi aceito de imediato, e além da orientação da reportagem, a dupla mirim de repórteres contou ainda com o apoio do pai, o ven-dedor Gilmar de Camargo, 40 anos. O trabalho ainda teve um gostinho a mais para os pequenos, que de-monstraram o desejo de se tornarem jornalistas quan-do crescerem.

Entre os assuntos abor-dados nas perguntas esta-vam a segurança, a edu-cação, a infraestrutura, o meio ambiente e o lazer. Melissa dos Santos Brassi, 9 anos, estava brincando de esconde-esconde com os amigos, na rua, em frente à casa de Luciano e Natália. Ao ser abordada, a estudante do terceiro ano do Ensino Fundamental, da Escola Municipal Cas-tro Alves, diz que acha o bairro legal e afirmou que o colégio é bom. Porém,

ela acredita que o Parque do Trabalhador – único espaço que conta com uma praça e área de la-zer - seja inseguro. Além disso, Melissa também reclamou do alagamento em dias de chuva.

Já Cleiton Soares, 13 anos, estava andando de skate na rua. Ele também relatou a insegurança e a falta de lugar para lazer. Segundo o garoto, o único espaço em que ele pode andar com seus amigos é na rua, porém, como o asfalto apresenta algumas erosões, também não é um local indicado. “A gente vai para o Centro”, relata.

Até mesmo no final de semana quem circula pe-las ruas do Vicentina nota que a maioria das crianças brincam dentro do pátio. Assim como os irmãos Ma-teus de Oliveira da Silva, 7 anos, e Evelyn de Oliveira da Silva, 9 anos. O mais novo conta que à tarde, depois que sai da escola, brinca em casa, “porque na rua é perigoso”. Já para Evelyn, “se tivesse segurança no parque ia ser melhor”. No entanto, num contexto geral, a me-nina acha a comunidade muito boa. Questionada sobre como é ser criança no bairro, ela responde ra-pidamente: “é bom”.

Mesmo ressaltando a insegurança e a falta de opções de lazer no bair-ro, a resposta das crian-

ças sobre a localidade é positiva. Todos afirmam que o Vicentina é bonito e calmo. Talvez, quem sabe, seja esta magia nos olhos das crianças que faz com que eles enxerguem um mundo belo, mesmo que seja do lado de dentro do seu pátio.

A OPINIÃO DOS REPÓRTERES:

Aos 13 anos, Luciano já percebe bem as conse-quências da falta de se-gurança. Uma familiar foi assassinada no bairro. “Ser criança no Vicentina é saber se cuidar, porque aqui tem muita violência. À noite, não tem como sair. Acho, também, que a Pre-feitura deveria vir olhar esta questão dos bueiros e dos alagamentos”, declara o repórter mirim.

Sua irmã, um pouco mais tímida, gostou da ex-periência e notou que não foi uma tarefa tão fácil en-trevistar as outras pessoas. “Não é uma tarefa muito fácil ser criança, porque tem que ajudar os pais. Ir à escola e brincar é fácil, mas temos que nos cuidar para atravessar a rua. No entanto, para brincar, tem que ter segurança, então, tem que ser dentro do pátio. Seria bom ter uma pracinha e uma pista de skate”, finaliza.

Sonhos: as expectativas das crianças para si e para o bairroSegundo o Censo 2010, o

Vicentina tem uma população de aproximadamente 4,3 mil jovens e crianças, entre zero e 14 anos. Entretanto, o bairro não oferece um lugar seguro para brincar. Duas escolas municipais de en-sino fundamental, Ruy Barbosa e Castro Alves, e uma estadual, a escola Parque do Trabalhador, que fica dentro do parque, são os três locais com pracinhas para o lazer infantil em todo o bairro. De acordo com as crianças e morado-res entrevistados, a única pracinha que fica aberta fora do horário de aula, no bairro, está no Parque do Trabalhador, considerado um dos locais mais inseguros da região pela maioria dos moradores.

A reportagem do Enfoque foi ao Vicentina e perguntou às crian-ças sobre seus sonhos em relação a si próprias e ao seu bairro. Em sua grande maioria, elas responderam que sentem falta de um espaço para brincar. Quando não estão na escola, só podem brincar em suas casas, ou na rua.

FRANCINE MALESSA-FRANCINE MALESSA-

à

Luciano e Natália

questionam as crianças sobre o que pode ser melhorado no bairro

à

LAURA PAVESSI

Segundo Eduarda Vitória de Melo Moraes, nove anos, estudante do 3º ano do ensino fundamental, na Escola Municipal Castro Alves, seu principal desejo para o bairro onde nasceu é ter um lugar seguro onde possa brincar com suas amigas. “A gente brinca dentro de casa, ou na rua mesmo. Só podemos brincar na pra-cinha quando estamos na escola”, conta.

Já Rafaela Aparecida dos Reis Carniel, 10 anos, estudante do 4º ano, também na Castro Alves, queria ver o Parque do Trabalhador melhorado, com mais segurança e acessível a todos. “Eu só brinco na pracinha da escola, ou na biblioteca, que fica no centro. Gosto muito da pracinha do parque, mas só vamos de vez em quando”, relata. Sua mãe lhe prometeu uma bicicleta para esse ano, mas Rafaela não vai ter lugar onde andar, senão a rua em frente à sua casa, ou o parque, onde não pode ir sozinha.

Gabriel Henrique Ferrei-ra tem 12 anos e é cheio de ideias. Ele e sua irmã, Kauane Nicolly Ferreira, nove anos, gostariam de ver menos sujeira na sua rua, e menos cachorros soltos também. Segundo Kaua-ne, “quem joga lixo no chão tem que juntar. Minha mãe e minha vó ensinaram que devemos respeitar os espaços co-muns”. Ambos apontam quem acreditam ser o responsável óbvio por essas melhorias: a admi-nistração municipal.

Filipe Fortes dos Santos, cinco anos, luta Taekwondo, e já sabe o que quer ser quando crescer: paleontólogo. Para ele, duas coisas faltam no seu bairro: “queria uma pracinha para brincar e uma pista para andar de bicicleta”.JÚLIA SOARES-

CASSIANO CARDOSO

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8. COMUNIDADE

Luta por moradiaMais de cem famílias ocupam

há oito meses um terreno no Vicentina em busca da casa própria

Atrás da cerca bai-xa de madeira, que serve mais para demarcar

a área do que para prote-ger, encontra-se um mo-saico de pequenas casas, construídas de restos de construção e de lonas coloridas, que formam a ocupação Cerâmica Ani-ta, no bairro Vicentina. A ocupação já dura oito me-ses e é sinal de resistência daqueles que buscam a casa própria. Vilciane Fer-nanda Oliveira Polônio, 35 anos, conta sobre a luta por moradia das mais de cem famílias que ocupam o terreno destinado para construção de uma praça, cujo projeto nunca saiu do papel.

Mãe de três meninas, a mais velha com 14, a do meio com 13 e a ca-çula de apenas 9 meses, Fernanda, como prefe-re ser chamada, vende doces, salgados e tortas para ajudar no sustento da família. Seu marido está no seguro desemprego e ajuda nas obras da ocupa-ção. No galpão levantado com madeiras e protegido por lona azul, em meio a sofás velhos, Fernan-da fala sobre o início da ocupação. “No dia dois

de fevereiro, ocupamos o terreno aí da frente. De manhã, éramos cerca de 40 famílias. À noite, che-gamos a 189”. As famílias vieram de vários lugares de São Leopoldo, a maio-ria do próprio Vicentina. “Eram pessoas que não tinham mais condições de pagar aluguel, moravam no quintal de alguém ou de favor na casa de pa-rentes”, explica Fernanda, que morava nos fundos da casa da mãe.

O primeiro terreno em que as famílias se instala-ram é destinado à constru-ção de uma creche, projeto que nunca passou da pro-messa do governo munici-pal. Por questões de segu-rança, a própria Secretaria de Habitação solicitou a saída dos ocupantes do local. Resolveram, então, levantar acampamento na área da frente, destinada à construção da praça. “As pessoas não precisam de praça, precisam de casa”, desabafa Fernanda, com tom de indignação sobre o projeto que também nunca se concretizou.

O acampamento com lonas durou cerca de um mês até iniciar a constru-ção das casas que hoje abitam. Sem luz e água, os moradores puxaram “gatos” do abastecimento público. “No início não ti-nha luz. Durante o dia era tranquilo, mas de noite era horrível. Tínhamos que acender lanternas, velas, luz de emergências e até

usar bateria de carro para poder enxergar”, relata a cozinheira. O encanamen-to do esgoto também foi instalado pelos próprios moradores, depois de oito meses alojados no local.

Questionada sobre as situações mais difíceis que a ocupação já vivenciou, Fernanda cita os avisos de reintegração de posse e o falecimento de uma criança no local. A crian-

ça de três anos sofria de microcefalia e vivia em cima de uma cama. A mãe da menina, que tem ou-tra filha de quatro meses, nunca recebeu ajuda para morar em condições nas quais a doença pudesse ser tratada.

Durante todo o tem-po em que os moradores permanecem no local, o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM) os apoia, dando informações e ajudando na organização dos pró-ximos passos e projetos para a conquista da casa própria. “Enviamos um projeto habitacional para a prefeitura. Até agora não recebemos reposta”, diz Fernanda. O pedido do projeto foi do pró-prio governo municipal, depois que os ocupantes exigiram, através de um ato feito no prédio da pre-feitura, reunião com os órgãos competentes para falar sobre a situação.

Sobre o sonho, ela não tem dúvida da importân-cia que é ter um teto para chamar de seu. “Tu tem que ter um sonho e correr atrás dele, não importa o que tu tem que fazer, des-de que seja honestamente, sem passar por cima de ninguém. O tempo que vai levar não importa, quero que meus filhos tenham um lar decente e que possam bater no peito e dizer ‘isso é meu’”.

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Humilde e ilustre: Seu ZéEle já foi presidente

de Associação de Mo-radores e da Paróquia na Igreja Católica. Foi candidato a vereador e integrou o grupo de pa-tronagem do CTG. Hoje, entretanto, se diz afasta-do de qualquer atividade. Enquanto conversa de forma tranquila, sendo cumprimentado por qua-se todos que passam pela rua, se dispõe a apresen-tar sua comunidade. Esse é José Goularte, morador do bairro Vicentina, em São Leopoldo.

A conversa de Seu Zé, como é conhecido por todos no bairro, é calma, mas recheada de histórias de alguém que já passou por situações difíceis. Residente no bairro há quase 30 anos, aos 18, após o término do serviço militar, começou a trabalhar como meta-

lúrgico. “Comia comida de sal uma vez por dia. E quando teve a greve dos metalúrgicos, quase fui para rua”, recorda.

Aos 21 anos passou pelo momento que mu-dou sua vida. Enquanto percorria um cruzamen-to, montado em sua mo-tocicleta, foi atingido por um caminhão que havia avançado o s i -nal vermelho. Ficou 30 dias no hospital e depois dois anos usando muleta. Hoje, mais de 26 anos depois do fato, ele ainda tem dificuldades para ca-minhar. Após o episódio, teve que se aposentar por invalidez. Sobre o acidente, ele não lem-bra de muita coisa: “Me disseram que o caminhão foi arrastando tudo, por-que eu não lembro o que aconteceu depois do cho-que”, explica.

Apesar dos proble-mas, Seu Zé tocou sua vida em frente. Em 1989 casou com Vera Lucia de Matos Goularte, com

quem teve seu filho, Lu-ciano, hoje com 25 anos e também metalúrgico. Em 2002, após pedido de vizinhos e conhecidos do bairro candidatou-se a vereador. “Não fiz cam-panha, mas o pessoal do bairro fez uma comissão, levantou uns problemas e queria um representante na prefeitura, então me pediram pra concorrer”, explica. Com 447 votos não conseguiu ser eleito, na época precisaria de 860.

Por seis anos José foi presidente da Paróquia Nossa Senhora da Media-neira da igreja católica. Em 2010 assumiu a pre-sidência da Associação de Moradores da comu-nidade, a AMBAVI, onde realizou a reforma dos banheiros e as pinturas externas e internas do prédio. Também foi inte-

grante da administração do CTG Tapera Velha, onde ajudou a promover jantares benef icentes com o intuito de auxi-liar as crianças carentes do bairro.

Quando questionado sobre a convivência com os vizinhos, Seu Zé reve-la: “Uma vez, juntei um pessoal daqui do bairro para uma pescaria, mas na viagem bati o carro, ninguém ficou ferido, porém, o veículo ficou todo amassado. Então, o pessoal da vizinhança se reuniu e fez um almoço beneficente, arrecada-ram dois mil reais para a reforma do meu car-ro”, explica o morador do Vicentina, mas também retribui: “O que eu puder fazer para ajudar as pes-soas, eu faço”, conclui.

SABRINA STIELER-

THIAGO SANTOS-

Famílias conseguem casa própria, mas

ainda tem o desafio de conseguir a aprovação do projeto habitacional. Fernanda e suas filhas lutam por esse direito

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CAROLINA TEIXEIRA

Engajado nos assuntos relacionados

à comunidade, morador do Vicentina conta um pouco de sua história

à

JÉSSICA LUANA ZANG

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BIOGRAFIA .9

Sem caminhão, com bicicletasCriada por morador, a

oficina Central Peças, uma das primeiras da cidade, funciona há 45 anos no Vicentina

Derli Delfino da Sil-va tinha 21 anos quando saiu de General Câmara

- a cerca de 80 quilômetros de Porto Alegre - e veio para São Leopoldo. Na terra natal, o jovem, que estudou até a 3ª série do Ensino Funda-mental, deixou para trás o sonho de ser caminhoneiro e conhecer a realidade das rodovias pelo Brasil afora.

Ao chegar ao Vale do Si-nos, há 52 anos, Derli exer-ceu primeiramente a função de “prenseiro” em duas em-presas. Um acidente, porém, mudou completamente o seu futuro profissional. À épo-ca, Derli cortou-se em uma máquina enquanto fabrica-va tampas para chaleiras. Precisou tomar 53 pontos na mão esquerda. E perdeu parte dos dedos anelar e mé-dio. “Fiquei com medo de me acidentar de novo. Vi que não conseguiria mais e pedi para sair da empre-sa”, relembra, mostrando, por meio de gestos, como a situação ocorreu.

Mal sabia Derli que o destino o levaria a trabalhar com veículos. Não com ca-minhões, como sonhara no passado, mas com bicicle-tas. Há aproximadamente 45 anos – ele não se lembra da data exata –, fundou a Central Peças no Vicentina. Segundo o comerciante, essa foi a primeira oficina de bi-cicletas do bairro. “Naquela época, existiam só umas três em São Leopoldo”, recorda.

Hoje com 73 anos, Seu Derli conta com a compa-nhia do filho, Alexandre, no estabelecimento. Ambos consertam bikes, além de venderem peças e acessórios de segunda-feira a sábado. O dono da oficina, entretanto, queixa-se de alguns fatores que diminuíram os lucros do negócio. Rodeado por pneus, guidões e outras mer-cadorias que estão à venda no local, Seu Derli diz que a concorrência aumentou con-sideravelmente. Aposentado, ele classifica a profissão de quatro décadas como um “quebra-galho”. “Se depen-desse apenas dela para viver hoje, não teria nem como pagar tanto imposto”, afirma.

Apesar das dificuldades, o comerciante poucas vezes tira o sorriso dos lábios, abai-xo do bigode de tom escu-ro. Com orgulho, Seu Derli menciona nunca ter feito al-gum tipo de propaganda para atrair clientes no Vicentina - onde o tráfego de bicicletas é constante pelas ruas. Por outro lado, ele frisa que a

sua relação com as bikes é meramente profissional. “De vez em quando, dou uma voltinha de bicicleta, mas não gosto muito”, confessa.

PROBLEMAS LOCAIS

O bairro que abriga o seu estabelecimento, na visão do comerciante, é tranquilo tanto para residir quanto para trabalhar. O carinho pelo Vi-centina é tamanho que Seu Derli já rechaçou convites para viver em outros luga-res. “Morar aqui é bom”, resume. Todavia, a expressão mais séria alerta para um problema que prejudica a vida no local atualmente: “A violência daqui é resultado das drogas, né, tchê?”.

O comerciante, aliás, sentiu na pele a dor que o uso de entorpecentes pode causar a uma família. Teve

dois de seus sete filhos as-sassinados por conta do en-volvimento com substâncias ilícitas. “Lutei bastante para tirar eles disso. Chegaram a ser internados em clínicas, mas não adiantou”, ressalta.

Tal realidade não afe-ta somente bairros como o Vicentina. Conforme o Levantamento Nacional de Famílias dos Dependentes Químicos (Lenad Família), realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Uni-fesp), ao menos 28 milhões de pessoas no Brasil têm algum familiar que é de-pendente químico.

Além da violência rela-cionada às drogas, os olhos claros de Seu Derli presen-ciaram, ao longo de quase cinco décadas no Vicenti-na, o descaso com o local por parte de postulantes a cargos públicos. De acordo

com ele, candidatos políticos do município procuram os moradores do bairro apenas durante períodos eleitorais. “Não dão muito valor para a gente depois que chegam lá”, critica.

FÉ ANTIGA E FUTURO INCERTO

Talvez a perseverança do comerciante para enfrentar obstáculos cotidianos resi-da em suas crenças. E uma delas relaciona-se à fé. Há duas décadas, Seu Derli fre-quenta a Igreja Evangélica Quadrangular. Antes disso, era católico, porém, não participava assiduamente de rituais religiosos. “Re-cebi um convite (da Igreja Evangélica Quadrangular). Eu me lembro do primeiro culto. Foi em um domingo. Fiquei das 21h até a meia-

noite”, recorda.Em relação à conti-

nuidade das atividades na oficina, ele salienta que não tem planos estruturados. Para Seu Derli, o futuro é “imprevisível”. Contudo, o comerciante sorri e admite: está largando o trabalho aos poucos. “Vou parar mes-mo quando eu não der mais conta do serviço”, pondera.

A vida construída no Vicentina não tornou possível a ele o desejo de viajar. O empresário não conhece nenhuma cidade fora do Rio Grande do Sul. Entretanto, as manchas de graxa nas mãos do empre-endedor indicam que o seu trabalho fez com que vá-rias pessoas conhecessem o Vicentina – e outros bair-ros – pedalando.

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LEONARDO VIECELI-

Seu Derli fundou oficina

de bicicletas depois de se acidentar em empresa

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CAMILA MORAES

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10. COMÉRCIO

Uma comunidade empreendedoraRuas do Vicentina estão

ganhando novos estabelecimentos comerciais

O B r a s i l o c u p a atualmente a ter-ceira posição no ranking de empre-

endedorismo: um em cada quatro brasileiros é dono do próprio negócio. Com apro-ximadamente 27 milhões de pessoas envolvidas em negócios próprios, o pais ficou atrás da China (369 milhões de empresários) e dos Estados Unidos (39 milhões de empreendedo-res). O dado é da pesquisa realizada pelo Global Entre-preneurship Monitor (GEM) - levantamento anual feito por instituições de ensino e pesquisa em 54 países.

O Vicentina comprova os resultados da pesquisa, que foi feita com pessoas entre 18 e 64 anos. Ao ca-minhar pela rua principal do bairro de São Leopoldo, é possível ver como o co-mércio de empreendimentos locais tomou conta da pai-sagem visual. A cerca de cada dois prédios, há um comércio. São açougues, mercearias, minimercados, farmácias, padarias, borra-charias, lojas de autopeças, agropecuárias, entre tantas outras variedades de empre-endimentos pessoais.

Em um espaço alugado, Maximiliano Gonçalves de Ávila, 28 anos, abriu uma agropecuária. Com o auxilio da esposa e do cunhado – que trabalhavam no ramo em Esteio –, ele toca o ne-gócio, que existe há quatro anos. Max, como prefere ser chamado, diz que sempre quis montar uma agrope-cuária. Para ter um diferen-cial em relação às outras do bairro, o comerciante abriu junto a ela uma pet shop.

Atrás dos produtos agropecuários da “Toca dos Bichos”, Max atende os animais. Os funcionários, todos vestindo jalecos bran-cos, dão banho em vários cães. “O movimento é muito bom, temos muitos clientes e o pessoal cuida bem dos seus animais”, ressalta ele.

A pesquisa feita pelo GEM trouxe a informação de que seis milhões de em-preendedores estão na faixa dos 45 aos 54 anos. Dirceu Ziliane é um exemplo desse número. Junto com a espo-sa, o comerciante de 45 anos abriu três tipos de comércio no Vicentina. Ao entrar na “Ro Rô Modas”, Dirceu é encontrado em meio às peças para a nova estação. “Desculpem a bagunça, mas estamos trocando as roupas de inverno pelas de prima-vera”, conta.

Da ideia da esposa de

abrir uma loja de vestuário, surgiu também a oportu-nidade de expandir os ne-gócios devido aos clientes que frequentam o local. Montaram então o salão de cabeleireiro no espaço ao lado da loja de confec-ções. Em seguida, abriram no prédio ao lado um bazar de utilidades. Dirceu fala que “o poder aquisitivo dos moradores do bairro aumen-tou nos últimos anos, e isso fez com que o comércio pu-desse se expandir, tornando possível uma rede chamada Ro Rô”.

O perfil da economia brasileira mudou. Atu-almente, quase 44% dos brasileiros sonham em ter o negócio próprio confor-me a pesquisa do GEM. Na Rua Capitão Armindo Bier, considerada a principal do Vicentina, o comércio se alastrou. O bairro, que ini-

ciou com a produção de ca-tadores de lixo e empresas de reciclagem abriu mer-cado para outros negócios.

Há oito anos, Gilmar Neves da Silva, 59 anos, já tinha seu comércio instalado na Rua Capitão Armindo Bier. O negócio começou como uma madeireira e uma ferragem.Atualmen-te, a primeira está fechada. Porém, a ferragem mantém as portas abertas. “Vende-mos muito bem, o negócio tem prosperado. Primeiro fazíamos casas, mas agora trabalhamos só no ramo da ferragem”, explica Gilmar.

PROTAGONISMO FEMININO

Na pesquisa do GEM, houve destaque para as mu-lheres, pois, de cada 100 empreendimentos iniciais no país, 49 têm comando

feminino. Em um dos mer-cados do Vicentina, há atrás do balcão uma mulher sim-pática e sorridente. Aguar-dando ao lado do caixa, que tem uma fila relativamente grande, o cliente é atendido por Roseli Rodrigues, 29 anos, que se tornou comer-ciante em 2010.

Segundo a comerciária, foi por meio de uma profe-cia do pastor da igreja Evan-gélica que surgiu a ideia de montar o minimercado “Marcellus”. Roseli expli-ca que trabalha no negócio com o marido. “Temos um açougue e uma fruteira, mas também vendemos o que as pessoas procuram. Então aqui tem um pouco de tudo”, diz ela.

O surgimento da Lei Geral da Micro e Pequena Empresa, do Supersimples – que reduz, em média, 40% da carga tributária dos pe-

quenos empreendimentos – e a criação do Microem-preendedor Individual, que permite a formalização de negócios que faturam até R$ 60 mil por ano, aumentou a possibilidade de abertura do próprio comércio. Ademais, o brasileiro está buscando aperfeiçoamento profissio-nal, pois passou a identificar demandas de negócios, além de saber o que está em falta.

Os coloridos das facha-das dos prédios do comércio local dão um tom novo ao bairro. A diversidade apre-sentada retrata a expansão do país e a ascensão da clas-se média, que desponta com grande poder de consumo. Os moradores do Vicenti-na só reclamam da falta de bancos no local, porque dos demais serviços estão bem “servidos”.

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VITÓRIA SANTOS-

Roseli (acima à esquerda), Dirceu

(acima à direita), Gilmar (abaixo à esquerda) e Max (abaixo à direita) movimentam o comércio no Vicentina

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RENATA CARDOSO

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EMPREENDEDORISMO .11

Da brincadeira ao ofícioMorador une o trabalho à paixão

de infância na criação da Evandro Motos

Desde pequeno, ele se interessa por motocicletas. Com o passar do

tempo, a predileção por esse universo vira profissão. Assim se resume a vida de Evandro Vianna Tavares, de 33 anos, morador do Vi-centina. Ele é o proprietário da Evandro Motos, ofici-na mecânica que também oferece design das motos - tanto as de passeio quanto as de competição -.

Sua afinidade com esse campo surgiu quando, ainda criança, via o pai consertar o carro em casa. Aos 14 anos, comprou uma Mobilete, a experiência mais parecida com a de um veículo moto-rizado até então. Três anos depois, comprou a primeira motocicleta. “Eu sempre me criei com moto, então sem-pre tive gosto”, explica.

Evandro teve de levar o veículo à oficina para fazer alguns reparos. Ele explica que ficava muito atento a cada ajuste. Por acaso (ou destino), o problema acon-teceu novamente. Repetiu os procedimentos que havia observado e, pela primeira vez, fez um conserto.

A partir desse momento, arrumava suas motos sem-pre que estragavam. Com o tempo, prestando pequenos serviços aos amigos, abriu a primeira oficina. Ela fun-

cionou na garagem de sua casa por cerca de três anos e era voltada apenas à parte mecânica.

Com o aumento da pro-cura, Evandro instalou a loja no endereço atual, na Rua Capitão Armindo Bier, 962. O terreno de seus pais se transformou na Evan-dro Motos há mais de oito anos. Foi ali que ele passou a atuar com o design de motocicletas.

Durante os dois pri-meiros anos neste local, trabalhou sem alvará de fun-cionamento, nem Plano de Prevenção Contra Incêndio

(PPCI). Quando o Corpo de Bombeiros o procurou para vistoriar o espaço, ele rece-beu intimação para que tudo fosse regularizado. Depois disso, buscou a Prefeitura e, desde então, a situação da loja é legal.

Ainda nesse período, buscou especialização. O empresário menciona que precisava fazer um curso para “comprovar que sa-bia mexer” nos motores. Ele é técnico em mecânica pela unidade do SENAI de Campo Bom. Ainda assim, acredita que “na verdade, o que te faz mecânico é a

prática, não é o papelzinho”.Desde então, concilia

a rotina profissional com outro viés do gosto pelas duas rodas: as trilhas. O mo-toqueiro começou a fazê-las ainda de bicicleta. Com o tempo, passou aos rallys de motocicleta.

Após um tempo de rallys foi obrigado a pa-rar por cerca de um ano. Ele se acidentou e preci-sou ficar longe do veículo por um tempo. “Cheguei a vender a moto. Mas, as-sim que me senti melhor, comprei outra”, explica o empreendedor.

Ainda sobre as dificul-dades, o mecânico relem-bra que, há cerca de quatro anos, teve uma fase ruim na Evandro Motos. Não houve procura alguma du-rante dois meses e pensou em desistir, mas já estava no mercado há quatro anos e decidiu continuar. Na oficina mecânica, todos os tipos de moto são conser-tados e personalizados. “O que tu me pedir eu faço”, costuma dizer o proprie-tário aos clientes. Ainda assim, ele deixa claro que a parte técnica tem suas limitações.

O empresário, que tem quatro filhos, não se importa caso nenhum deles queira seguir o negócio. Sua von-tade é que eles continuem estudando e tenham sua es-colha depois. Segundo ele, os filhos têm que escolher a profissão que os fizer feliz, assim como ele fez. Isso não disfarça, porém, o sorriso no rosto ao comentar que um dos filhos, de 9 anos, dá indícios de querer seguir no ramo. Assim como seu pai fez, ele repassa ao filho aquilo que sabe sem esperar nada em troca.

Evandro não deixa que adversidades o atrapalhem. Segue em busca de um fu-turo melhor para a família. Ele é mais um exemplo de alguém que sempre morou no Vicentina e conquistou aquilo que tem hoje através de um espírito empreende-dor e muito trabalho.

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Um bairro vaidoso O setor de beleza vem

crescendo. Atualmente, o Brasil se configura como o terceiro maior mercado do mundo de produtos de higiene e beleza, segundo a Associação Brasileira da Indústria da Higiene Pesso-al, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC). Para os pró-ximos anos, a perspectiva de crescimento é otimista e, de certa forma, aumenta os desafios no setor. No Vi-centina, comércios do ramo conquistaram seu espaço.

Morador do bairro des-de 1991, Alcione Fiuza, 40 anos, mais conhecido como Vagner e Vavá, aceitou os incentivos de amigos e abriu o seu próprio negócio no bairro. Pelo fato de ter interesse na área de beleza e estética, fez cursos para se tornar cabeleireiro e, em 2004, montou o Fiuza Hair.

O cabeleireiro, que tra-balhou no ramo hoteleiro

antes de abrir o salão, se preocupa em investir na infraestrutura e também na segurança do salão, prin-cipalmente depois de ter o estabelecimento assaltado. Fiuza faz planos para co-locar câmeras de vigilân-cia e só atende aos clientes com hora marcada. Graças à fidelidade do público, ele mantém o estabelecimento em funcionamento. Cliente do salão, Natália Rodrigues, estudante de 21 anos, faz “progressiva” com o cabe-leireiro há três anos. “Adoro o trabalho dele, sempre passa confiança”, explica.

Na frente do Fiuza Hair, há outro salão, que presta ser-viços de cabelo, manicure e depilação. A proprietária do local, Lessi Silveira, 51 anos, trabalha há cinco anos em sua própria residência. Ela fez curso de manicure e ca-belereira há dez anos, quando ainda trabalhava nas áreas de

limpeza e cozinha em uma Faculdade de Teologia. Pre-ocupada com a possibilidade de demissão, resolveu fazer cursos na área de beleza para realizar seu sonho.

Lessi atende em torno de cinco clientes por dia. Satis-feita com sua remuneração, a proprietária procura apri-morar seus conhecimentos com cursos e workshops que vai fazendo por todo o país.

A empreendedora não se importa com a concorrência, porque conquista as clien-tes com bom atendimento, simpatia e instrumentos de trabalho atualizados, limpos e esterilizados. Como boa profissional, Lessi sabe que há muitos concorrentes na área em São Leopoldo.

Em uma coisa, os dois cabelereiros concordam: a mulher do Vicentina está cada vez mais vaidosa.

THACIANE DE MOURA-

CÍNTIA RICHTER-

Desde jovem, empresário

alimenta sua paixão por motocicletas

à

Alcione, o Vavá (abaixo), aposta

no atendimento personalizado, e Lessi busca atualizar os conhecimentos no ramo, além de diversificar os serviços oferecidos

à

CASSIANO CARDOSO

PRISCILA BOEIRA

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Amor em quatro rodasNo Brasil há 39 anos, uruguaio

fabrica peças de carros no Vicentina

Todos nós temos uma paixão, um sonho, algo que nos motiva a que-

rer realizar algo. Ramon Ariel Bonilla, 70 anos, é apaixonado por automobi-lismo. “Alguns gostam de futebol. Eu prefiro os carros desde pequeno”, confessa em “portunhol”, que acusa a nacionalidade estrangeira.

Natural do Uruguai, Bonilla é técnico mecâ-nico e fresador formado pela Universidad del Tra-bajo del Uruguay, uma es-pécie de SENAI do país. Aos 15 anos, teve o seu primeiro estágio. Para ele, foi o passo crucial da sua carreira.

“O jovem, hoje, busca um estágio pelo valor da bolsa–auxílio, não pela experiência que irá adqui-rir. A maior preocupação deveria ser em aprender, não em receber. Muitos querem iniciar ganhando

muito, mesmo sem conhe-cimento. Só se conquista algo com aprendizado. Foi assim que alcancei o que tenho”, justifica.

A ideia de vir ao Bra-sil surgiu em 1975, após receber o convite do pi-loto Voltaire Moog para

abrir um negócio em São Leopoldo, com a justifi-cativa de que o mercado brasileiro era mais amplo. “Eu tive a sorte de conhe-cer um filho dessa cidade, nos conhecemos em uma pista de automobilismo, no Uruguai. Ele precisava

de uma caixa de câmbio especial, que somente eu fabricava”, conta.

Levou cerca de um ano para que Seu Ramon se instalasse de maneira fixa aqui, com a esposa e os três filhos – duas meninas e um menino. O destino, talvez, tenha contribuído para que ele viesse a São Leopoldo, mas escolher o Vicentina, entre os 24 bairros da cidade, foi uma decisão própria. “Fui apresentado ao prefeito da época, Henrique Prie-to, que me prestou todo o auxílio necessário”, revela emocionado ao lembrar-se do amigo que não vê há alguns anos.

Em 1985, com a che-gada de pick-ups no Bra-sil, a empresa iniciou a fabricação de capotas de fibra de vidro para camionetes nacionais e importadas. Daí surgiu o nome Maxxum Capotas, que possui abrangência nacional. “Produzimos es-ses produtos até hoje, mas o pessoal ainda procura pelos reboques barraca. Tenho um novo projeto

para isso, com barracas automáticas, feitas de fi-bra, e não mais de tecido, mas está faltando mão de obra”, explica.

Seu Ramon conta que também auxiliou na cons-trução do autódromo do Velopark, em Nova Santa Rita, do qual um dos pro-prietários é o seu filho: “Construí quiosques e má-quinas de limpeza de pista para o Velopark. Fabriquei 15 carros de corrida para eles”. Além disso, o uru-guaio já trabalhou para uma das personalidades mais conhecidas na área: Nelson Piquet. “Fiz um carro com fibra de carbo-no e algumas peças para ele”, diz.

Com o cabelo grisalho e três quartos de século, Seu Ramon se conside-ra um homem realizado, mas não pretende parar de trabalhar por enquan-to. Diante de tantos pro-jetos que tem em mente, ele pensa que seria ideal viver mais 70 anos para tirá-los do papel.

à

Valeu cada hora de sono perdidaNaquele dia, acordei às 4h20. O

ônibus de Garibaldi para São Leopoldo partiria em uma hora. Suspirei profun-damente e amaldiçoei todos os santos ao jogar o corpo para fora cama. Tudo o que eu queria era dormir todas as noites de sono perdidas na semana. Eu sabia que seria um dia cansativo. E foi, de fato. O que eu não imaginava era poder relembrar com tanta saudade, disposta a trocar novamente algumas horas de sono por cada detalhe sentido no Vicentina.

Confesso que, a princípio, a primeira pauta me decepcionou um pouco. Segui pelas ruas na companhia da repórter Thaciane de Moura, à procura de perso-nalidades do bairro. Quando chegamos na casa da filha de uma benzedeira já falecida, esperava encontrar um cená-rio místico, repleto de ervas, patuás e santos. Infelizmente, tanto a filha como a neta não herdaram o dom da cura. Fiz alguns retratos, mas ainda assim faltava alguma coisa. De repente ouvi “Noite Feliz” ao som de uma flauta doce. A música vinha de fora da casa. Na janela, estava a pequena Giane, neta da benzedeira, tocando compenetrada. Em cada lado da janela, estava uma gaiola, uma com o canarinho Chico e outra com a calopsita Neimara. O que me surpreendeu é que, assim como eu, os pássaros também estavam contemplando

a candura da música. A cena era poesia da vida cotidiana.

A segunda pauta abordava a situa-ção dos moradores que haviam se muda-do há uma semana para um loteamento oriundo de um projeto governamental. Lá moram pessoas de baixa renda, mui-tas delas são casais acima de 50 anos de idade. Como é o caso de José e Nelci Krin. O repórter Pedro de Brito e eu fomos dando bom dia. Estendi a mão, mas Seu José preferiu um longo abraço.

Pedro encerrou a entrevista. Estáva-mos em cima da hora. No caminho de volta, uma senhora comendo maçã, com uma máscara cirúrgica abaixo do quei-xo, nos abordou: “O que estão fazendo aqui?”. Em poucos minutos, estávamos dentro da casa de Dona Geci, já bem organizada para alguém que a recebeu em menos de uma semana e não poderia fazer esforço por estar se recuperando de um transplante de pulmão.

Saímos de lá trocando abraços e beijos de despedida, prometendo vol-tar para almoçar e provar o bolo de chocolate que Geci fará para vender pelo bairro.

Na segunda visita ao Vicentina, já me sentia em casa. Assim que a repórter Cíntia Richter comentou a ideia de ir aos salões de beleza, decidi ir com ela. Caminhamos poucos metros e avistamos uma placa com o desenho de uma tesou-

ra, no segundo andar de um mercado. Subimos a escada. O cabelereiro Alcione nos atendeu, com um olhar desconfiado, mas que logo se desarmou quando teve certeza de que éramos inofensivas.

Durante a entrevista, ele revelou que foi assaltado e torturado há um mês. “Para trabalhar, só com porta trancada. Preciso garantir a segurança dos clientes também”, disse. Isso me paralisou a mente. Fotografei no modo automático por alguns minutos. Fiquei revoltada com a injustiça. Para a última entrevista, atravessamos a rua. A con-versa foi com uma manicure.

Horas depois, dentro do ônibus de volta para casa, pensei em tudo o que vi. Nunca volto indiferente de uma entrevista desse gênero. Acredito que a gente só se transforma em repórter quando aprende a extrair o que há de mais genuíno em cada pessoa.

PRISCILA BOEIRA

BÁRBARA MÜLLER

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Seu Ramon fabricou carros

para o Velopark e hoje cria capotas de fibra de vidro, a produção acontece em um galpão anexo à sua casa

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ENFOQUE VICENTINA EDIÇÃOSÃO LEOPOLDO / RS 2OUTUBRO DE 2014

AUTOMOBILISMO

EM PRIMEIRA PESSOA

BÁRBARA MÜLLER

PRISCILA BOEIRA

“A gente só se transforma em

repórter quando aprende a extrair o que há de mais genuíno em cada pessoa”

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