paulo freire medo e ousadia · 2020. 11. 27. · – paulo freire e ira shor medo e ousadia o...

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  • –PAULOFREIREEIRASHOR

    MEDOEOUSADIAOCONTIDIANODOPROFESSOR

    Tradução:AdrianaLopes

    PAZETERRA

  • 11-05352

    Copyright©HerdeirosPauloFreire

    DireitosdeediçãodaobraemlínguaportuguesanoBrasiladquiridospelaEDITORAPAZETERRA.Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestaobrapodeserapropriadaeestocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrônico,defotocópia,gravaçãoetc.,semapermissãododetentordocopirraite.

    EDITORAPAZETERRALTDARuadoTriunfo,177—StaIfigênia—SãoPauloTel:(011)3337-8399—Fax:(011)3223-6290http://www.pazeterra.com.br

    TextorevistopelonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

    CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAFONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

    Freire,Paulo,1921-1997.

    Medoeousadia[recursoeletrônico]:ocotidianooprofessor/PauloFreire,IraShor;traduçãoAdrianaLopes.-1.ed.-RiodeJaneiro:PazeTerra,2013.recursodigital

    Títulooriginal:Fearanddaring:thedailylifeoftheteacher.BibliografiaFormato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebIncluibibliografiaeíndice

    ISBN978-85-7753-224-7(recursoeletrônico)

    1.Freire,Paulo,1921-1997-Visãopoliticaesocial.2.Educação-Aspectospolíticos.3.Livroseletrônicos.I.Shor,Ira.II.Título.

    CDD-370.1

    http://www.pazeterra.com.br

  • SumárioPREFÁCIOANAMARIASAUL

    AGRADECIMENTOS

    PREFÁCIO:OSONHODOPROFESSORSOBREAEDUCAÇÃOLIBERTADORA

    1 Como pode o professor transformar-se numeducador libertador? De que modo a educação serelacionacomamudançasocial?

    2 Quaisostemoreseosriscosdatransformação?

    3 Existe estrutura e rigor na educação libertadora? Asclasses dialógicas tornam iguais os professores e osalunos?

    4 Oqueé“métododialógico”deensino?Oqueéuma“pedagogiasituada”eoempowerment?

    5 Existeuma“culturadosilêncio”nosEUA?Osalunosnorte-americanos, vivendo numa democraciaabastada,precisamde“libertação”?

    6 Como podem os educadores libertadores superar asdiferenças de linguagem existentes entre eles e osalunos?

  • 7 O sonho da transformação social: como começar asegunda-feirademanhã?Temosodireitodemudaraconsciênciadosalunos?

    BIBLIOGRAFIASELECIONADA

  • PREFÁCIOESTIMADOPAULO,

    Tive o grande prazer de ser uma das primeiras leitoras da edição emportuguêsdestasuaobra,emcoautoriacomIraShor.

    Senti-memuitoestimuladaeidentificadacomoconteúdodestelivro.Porter oprivilégiode trabalhar ao seu lado, nos seminários que vocêdirigenoCurso de Pós-Graduação em Supervisão e Currículo da PUC/SP, pude verdescrito e cuidadosamente analisado o seu trabalho na universidade, desdesuavoltaaoBrasil.

    Encontrei,aolongodoscapítulos,asquestõesqueosnossosalunos,turmaapós turma, lhe propõem. Depareime também com as respostas que você,compaciênciapedagógica, temconstruídoecolocadoemdiscussão.Porém,nos depoimentos apresentados neste livro, não há um simples arrolamentodas posições que você tem expressado em seminários. Notei, sim,coerentemente com o que você propõe a respeito da construção doconhecimento, um conjunto de reflexões recriadas à luz das indagações ediscussões argutas do jovemprofessor daCityUniversity ofNewYork, seubrilhanteinterlocutor.

    Foi surpreendentenotarque asperguntasdos educadoresbrasileiros emtorno da educação libertadora são coincidentes com aquelas expostas pelosprofessores norte-americanos. Ira Shor, ao colecionar as dúvidas deprofessores ao longo dos Estados Unidos e dispondo-se a discuti-las comvocê, tendocomopanode fundoascaracterísticasculturaisdecadaumdospaíses,trouxeàtonaapotencialidade,dimensãoepossibilidadesdaeducaçãolibertadoraparaalémdasfronteirasdoTerceiroMundo.Estelivropropõeumsériodesafioatodosaquelesprofessores,doprimeirograuàuniversidade,quequerem assumir o compromisso com uma sociedade mais justa,desenvolvendo a sua ação pedagógica dentro e fora da escola, conhecendo,porém,oslimitesdaeducaçãonoconjuntogeraldaspráticassociais.Maisdoqueumconviteeumdesafioaumaeducaçãotransformadora,encontreinosseusdepoimentosenosdeIraumcaminhoparaaquelesprofessoresqueestão

  • dispostosafazeratrajetóriatransformando-sedeum“professortransmissor”emum“professorlibertador”.

    Naanálisedessacaminhadadefrontei-mecomotratamentodostemasqueestão necessariamente no bojo do pensar sobre a educação libertadora. Anatureza da educação como ato político, as possibilidades e os limites daeducação, a relação desta com a transformação social, a importância dotrabalhodoprofessornaescola,anecessidadedaatuaçãopedagógicanoníveldaeducaçãoformaleinformal,ascaracterísticasdométododialógico,temastratadosemalgunsmomentosanterioresdesuaobra,adquiriramnestelivroumsignificadoespecial.Estãorecriadoscomocrivodesuaprópriacríticaeacrescidosdeclareza,concretudeeaprofundamentocadavezmaiores.

    Acredito,Paulo,quedentreasdiscussõescontidasnotexto,umadelasédesingularrelevânciaparaoseducadoresbrasileiros.Elaestánofatodequeestetrabalho poderá dirimir muitas das percepções equivocadas sobre o seupensamentonoquedizrespeitoàspossibilidadesdaeducaçãolibertadoranocontexto escolar. Você e Ira demonstram não somente que isso é possível,mas,principalmente,necessário.

    Apartir dessa posição, bastante bem-explicitada, os educadores poderãoapreender as concepções fundamentais sobre o currículo numa perspectivalibertadora.

    Maisdeumavezvocêtemdestacadoqueaprincipalfunçãodocurrículoédesocultar a ideologia dominante.Desta vez, porém, as propostas concretassobre como trabalhar com os objetos do conhecimento reconstruindo-osnuma perspectiva crítica, a partir da cultura do aluno, como expressão declasse social, são retomadas de uma forma bastante profunda e clara.Creioque não restarão dúvidas a respeito do método dialógico utilizado paraconhecer e reconstruir o conhecimento, enessaperspectiva ficoumaisumavezdemonstradoqueessaproposta,aocontráriodeserespontaneísta,comomuitasvisõesmíopesinterpretam,propõe-serigorosaecomhorizontesbemdefinidos.

    Finalmente, Paulo, quero afirmar que percebo este livro extremamenteoportunonomomentoatualdapolíticaedaeducaçãobrasileira.

  • SintoqueElzanãoacompanhearepercussãopositivaqueelecertamenteterá.

    AnaMariaSaul

  • AGRADECIMENTOSESTE LIVRO FOI FEITO DA SEGUINTE FORMA: primeiro, Ira propôs um livro-diálogoemAmherstemfevereirode1984,ondePaulofaziaumaresidêncianaUniversidadedeMassachusetts.NosreunimosnovamenteemAnnArbor,emmarço,eemNovaYork,emmaio,pararepassaraagendadasquestõessobreas quais falaríamos. Depois, em julho, nos reunimos em Vancouver, ondePauloministravaumseminário sobreEducaçãoAdulta,naUniversidadedeBritishColumbia. EmVancouver falamos durante oito dias em sessões queduravamtrêshorascadauma,gravandoasconversas. Ira levouas fitasparaNovaYorkepreparouatranscrição.Nosreunimosnovamentedurantedoisfins de semana em Amherst, em fevereiro e março de 1985, para editar omanuscrito e gravar algumas coisas mais. Depois disso, Ira esboçou umatranscrição, e nos encontramos duas vezes, em julho de 1985, emMassachusetts,paraterminardeeditaromanuscrito.

    Gostaríamosdeagradeceraalgumaspessoasquenosajudaramafazerestelivro.EmVancouver,PazButtedahlnoscedeupreciosamenteoespaçoparafazer as gravações enquanto o seminário que ela organizava com Paulotranscorria. Yam-Tow Shamash, da Universidade de British Columbia, nossocorreucomfitas,umgravadorprofissionalecópias,feitasduranteanoite,dasfitasqueterminavam.HerbPerr,deHunterCollege,foinossofielhomemdo som durante as gravações. Ya-Ya Andrade, da Universidade de BritishColumbia,nosajudounastraduçõesdoportuguêsduranteassessões.CynthiaBrown, Nan Elsasser, Patricia Irvine, Frances Goldin e Arthur Haznin,também,leramrascunhosdatranscriçãoenosauxiliaramimensamentecomsuascríticas.

    IraShorePauloFreire,setembrode1985

  • Prefácio:OSONHODOPROFESSORSOBREAEDUCAÇÃOLIBERTADORAIRA:EMPRIMEIROLUGAR,gostaríamosdedizerporqueoptamosporfazerumlivro deste tipo. Discutiremos questões frequentemente colocadas porprofessoresapropósitodaeducação“libertadora”outransformadora.

    Prepareiumaagendadequestõeslevantadasporprofessoresinteressadosna mudança social e nas classes libertadoras, questões concretas que osprofessores enfrentamna recriaçãoda escola e da sociedade.Essas questõesabrangemmuitacoisa:Oqueéensinolibertador?Comoéqueosprofessoresse transformam em educadores libertadores? Como é que começam atransformaros estudantes?Quaisos temores,os riscos e as recompensasdatransformação?Oqueéensino“dialógico”?Comodevemosprofessoresfalarnum discurso libertador? Uma classe libertadora tem rigor, autoridade eestrutura?Osprofessoreseosalunossãoiguaisnumprogramalibertador?Dequemodoaeducação libertadoraserelacionacoma transformaçãopolítica,dentro da sociedade como um todo? Este processo pode ser aplicado emoutros cursos, além dos de alfabetização e comunicação? Como se podemtransmitirconteúdosatravésdeummétododediálogo?Comoosprofessoreslibertadoresutilizamasprovaseostextos?Oquequerdizerempowerment?1PodemosaplicarnoPrimeiroMundoumapedagogiadoTerceiroMundo?

    Comoostemasraça,sexoeclasseseenquadramnoprocessolibertador?

    Essas questões têm sido muitas vezes colocadas durante cursos quetivemos com professores no exercício do magistério. Elas serão pontosimportantes de nossa conversação. Não possuímos todas as respostas, nemconhecemos todas as perguntas que deveriam ser feitas. Mas estamosdecididosadarcontinuidade,aqui,aumdiálogoqueocorrecomfrequênciasobreateoriaeapráticadapedagogiadialógica.

    Amaior parte dos que trabalham em salas de aula sabe que a docênciaexigemuito de nós. É, também, uma atividademuito prática, embora tudoqueocorreemclassesejaapontadeumicebergteórico.Masosprofessoresseinteressammaispelapráticadoquepelateoria.Apesardetodapráticaterumfundamentoteóricoevice-versa,amaioriadaspesquisasemeducaçãonãoé

  • demuita ajuda nas horas agitadas da sala de aula concreta. Os professoresenfrentamaulasdemais,alunosdemaisecontroleadministrativodemais,detalmodoqueanecessidadedealgumacoisaquefuncioneemclasseémuitomaior do que uma aparente necessidade de teoria. Entretanto, aspreocupantes falhas do sistema escolar exigem novas ideias. Até mesmoprofessores sobrecarregados de trabalho têm curiosidade a respeito dealternativas.Querem saber comousá-las em classe, se ométodododiálogopodeserimportanteemsaladeaula.

    Perguntas semelhantes são feitas por professores sobre as alternativaslibertadoras. Isso é bom, mesmo porque muitos professores enfrentam asmesmasquestões aomesmo tempo. Se estabelecermos comelesumdiálogoatravés deste livro, começamos pelos problemas e pelos dados amplamentereconhecidosefundamentadosnarealidadeprementedadocência.Parece-meseressaautilidadedestenossolivrofalado.

    Assim,háalgunsmeses,sugeriaoPauloquemantivéssemosumdiálogo.Eleachouqueeraumaboaideia.

    PAULO: Acho válida a ideia de fazer um livro falado, e não escrito. Estelivrofaladomeinteressapordiferentesmotivos.Aquestão,paravocêeparamim, é se seremos capazes de introduzir neste diálogo os possíveis leitoresdesta conversa. Isso vai depender do dinamismo de nossa discussão.Outroaspectointeressanteéqueumlivrodestetipopodesersériosemserpedante.Podemostratardasideias,dosfatosedosproblemas,comrigor,massemprenumestiloleve,próximoaodosdançarinos,umestiloamistoso.

    IRA:Esperoqueencontremosumcertoestilodançante.Assim,seremosaomesmotempopoéticos,divertidoseprofundos.

    Oquenosajudaráamantercontatocomarealidadeépartirdequestõesjápropostas por professores. Nossas experiências pessoais e as de outrosdocentes estão contidas naquilo que dizemos. Não se trata de um assuntoarquivístico sobre educação. Nem estamos respondendo a perguntas quealguém tenha feito. Talvez possamos captar os dramas da vida real naquiloqueaprendemosdentroeforadasaladeaula.Nadamaisconvincentedoqueos fatosdavida real.Oobjetivoprincipal,paramim, équea teoria consigaabrangerocotidiano.

  • Este problema de incorporar o pensamento crítico à vida cotidianaconstituisempreumdesafio.Talvezemlugaralgumissosejamaisimportantedo que no ensino, que é uma experiência humana cheia de momentosimprevisíveis. Quando escrevo um livro sobre educação, sozinho em casa,estousemnenhumcontatocomopúblico,emeperguntoseminhaspalavrastêmalgum sentido.Masquandoos outrosmedizemque, ao lermeu livro,parecia que eu estava falando com eles, então sei que descobri omodoqueestavaprocurandoparadizerascoisas.

    PAULO:Outroaspectomuitoimportantedefazerumlivrofaladoéqueodiálogo é, em si, criativo e recriativo. Isto é, emúltima análise, você está serecriando no diálogo de forma mais ampla do que quando você escreve,solitário,emseuescritórioouemsuapequenabiblioteca.Edopontodevistahumano,anecessidadededialogaré tãograndeque,quandooescritorestásozinhonabiblioteca,olhandoasfolhasembrancoàsuafrente,precisa,pelomenosmentalmente,chegaratéospossíveisleitoresdolivro,mesmoquenãohaja chance alguma de vir a conhecê-los algum dia. O escritor precisaconhecer e interagir com o remoto leitor que provavelmente lerá seu livroquando ele próprio não mais exista. Em nosso caso, aqui, estamos,simbolicamente,diantedeinúmerosleitoresdesconhecidos;masnósestamosumdiante do outro, você e eu. Em certo sentido, sou desde já seu leitor e,desdejá,vocêémeuleitor.

    Na medida em que, enquanto falamos, somos o leitor um do outro,leitores denossas próprias falas, o queocorre aqui é que cadaumdenós éestimulado a pensar e a repensar o pensamento do outro.Assim, creio quenissorepousaadimensão fundamentaldariquezadeumintercâmbiocomoeste. Essa possibilidade comum de nos lermos antes de escrever talvezmelhoreoqueescrevemos,porquenessainteraçãopodemosnostransformarnomomentomesmododiálogo.Emúltimaanálise,dialogarnãoé sódizer“Bom dia, como vai?”. O diálogo pertence à natureza do ser humano,enquantoserdecomunicação.Odiálogoselaoatodeaprender,quenuncaéindividual,emboratenhaumadimensãoindividual.

    Tenho certeza de que através desta experiência, ao tentar responder aalgumasdasperguntasquerecebemosemdiferentesmomentose lugaresdopaís, tambémestamostentandoreaprenderaquiloquepensávamossaberno

  • momento em que as tentamos responder anos atrás. E nossa conversa serámaisimportanteparaospossíveisleitoresdestelivrofaladoseformoscapazes,emseusdiferentesmomentos(mesmoquandoestivermosemsilêncio—eosleitores terão que adivinhar, através da leitura, que num dadomomento oPauloestavaemsilêncio!),deprovocá-losenãosomentederesponderasuasquestões.Seformoscapazesdecriaralgummal-estarentrenossosleitores,delhes propiciar algumas incertezas, então o livro terá sido importante. Sepudermos fazer isso,o livro terá rigor.Seremosrigorosos.Creioquemuitaspessoassãocompletamenteequivocadase ingênuasarespeitodosignificadodapalavrarigor.Eumesintorigorososeprovocovocêaserrigoroso.Origoréalgoqueexistenahistória, feitoatravésdahistória.Porcausadisso,oqueérigorosohojepodenãosê-loamanhã.

    IRA:Você diz que o rigor não é uma coisa permanente, ouuniversal. É,então,ummododeconhecerenraizadono tempoenascondiçõesdequemconhece?

    PAULO: Sim, o rigor não é universal. Universal é a necessidade de serrigoroso.

    IRA: O rigor é um desejo de saber, uma busca de resposta, ummétodocríticodeaprender.Talvezorigorseja,também,umaformadecomunicaçãoqueprovocaooutroaparticipar,ouincluiooutronumabuscaativa.Quemsabeessa seja a razãopelaqual tanta educação formalnas salasdeaulanãoconsiga motivar os estudantes. Os estudantes são excluídos da busca, daatividade do rigor. As respostas lhes são dadas para que asmemorizem.Oconhecimento lhes é dado como um cadáver de informação — um corpomortode conhecimento—, enão comouma conexão viva coma realidadedeles.Horaapóshora,anoapósano,oconhecimentonãopassadeumatarefaimpostaaosestudantespelavozmonótonadeumprogramaoficial.

    PAULO: Você disse algo sobremotivação. Acho que essa é uma questãointeressante. Nunca consegui entender o processo de motivação fora daprática,antesdaprática.Écomose,primeiro,sedevesseestarmotivadopara,depois,entraremação!Vocêpercebe?Essaéumaformamuitoantidialéticadeentenderamotivação.Amotivaçãofazpartedaação.Éummomentodaprópriaação.Istoé,vocêsemotivaàmedidaqueestáatuando,enãoantesdeatuar.

  • Nesse sentido, este livro será bom se seu possível leitor, no momentomesmo em que o leia, for capaz de se sentirmotivado pelo próprio ato daleitura e não por ter lido algo sobre motivação. Mesmo assim, somosresponsáveisporissotambém.Querdizerquedevemostrabalharseriamentenestelivro,que,porora,éumaconversa.

    IRA:Gostariadeacentuarqueamotivaçãotemqueestardentrodopróprioatodeestudar,dentrodoreconhecimento,peloestudante,daimportânciaqueo conhecimento tem para ele. Você pode imaginar o que significa a escolaparaosestudantes.Professoreseadministradoresconstantementelhesfazempreleçõessobrea importânciadaescolaesobreoqueestarepresentaráparaeles em um futuro distante. Toda essa promoção da escola só revela suaincapacidade demotivar. Não é possível pretender que hajamotivação porparte dos estudantes emminha sala de aula, quando começo a lecionar. OproblemadamotivaçãoétãoessencialnaatualcrisedeensinonosEUA,quegerouumasériederelatóriosoficiaisnosúltimostrêsanos.Asituaçãoatualécomovocêdiz,Paulo.Ocurrículopadrãolidacomamotivaçãocomoseestafosse externa ao ato de estudar. As provas, a disciplina, os castigos, asrecompensas,apromessadeempregofuturosãoconsideradososmotoresdamotivação,alienadosdoatodeaprenderaquieagora.Damesmamaneira,a“alfabetização”édefinidacomo“aptidõesbásicas”, isoladasdeumconteúdosério de estudo, isoladas dos assuntos que possuem valor crítico para osestudantes. Primeiro, torne-se apto, depois poderá obter uma educação deverdade!Primeiro,obtenhaumaeducaçãodeverdade,depoispoderáterumbomemprego!Amelhorcoisaésempreaquelaquevocênãoestáfazendonomomento.Nãoédeespantarqueosestudantesnãocooperem.

    PAULO:Frequentementemeperguntamcomomotivarosestudantes.Porquevocênãofalaumpoucomaissobreissoapartirdesuasituação?

    IRA:UmadasgrandescrisesdosEUA,nestemomento,éaresistênciadosestudantes ao currículo oficial. Em outras palavras, os professores e osadministradores se recusam amudar o currículo que aliena o estudante. Areação dos estudantes é recusar-se a trabalhar de acordo com o currículooficial. A pedagogia oficial está motivando os estudantes contra o trabalhointelectual.Essalutadepoderpelocurrículolevouasescolaseuniversidadesaum impasse que vários órgãos oficiais definiram, equivocadamente, como

  • “mediocridade” estudantil. Eu chamo isto de “greve de desempenho” dosestudantes,queserecusamaestudarsobascondiçõessociaisexistentes.Nãomenosimportantesnestaequaçãosãoodesleixodemuitasescolas,assalasdeaulasuperlotadaseofatodequeomundodosnegóciosnãorecompensaráoesforçonos estudos. Sãopoucas as recompensasqueomercadode trabalhooferecepara altosníveis de realização escolar.Os estudantes decidemque étolice jogar sob regras que não os beneficiam e que foram feitas por outraspessoas.

    O problema da motivação paira sobre as escolas como pesada nuvem.Todosnóssabemosqueosestudantes,desmotivadosdentrodaescola,podemtermuitamotivaçãoforadela.Aculturadoconsumomanipulaseushábitosde comprar. Encontram também amplo espaço fora da escola e do lar paraconstruirsuaculturasubjetivadosexo,daamizade,dosesportes,dasdrogas,da música, e assim por diante. Quando os estudantes realmente queremalguma coisa, movem céus e terras para consegui-la. Encontram carrosbaratos,epechinchamosegurodocarro,arranjamempregodemeioperíododurante oNatal, conseguem o aparelho de sommais barato, ou uma novaguitarra,ouoingressoparaumshow,oufazerserrasuradaumanotabaixanauniversidade,ouingressaremcursosfechados,oupassarnumconcursoparao serviço público. Em tais circunstâncias, empenham sua sagacidade. Esseinteressedosestudantesemassuntosnãooficiaismelevouautilizartemasdavidadiáriaparaapesquisacrítica,ondepeçoqueosestudantesescrevamseuspróprioslivrinhos.Introduzo,também,leiturasparadesenvolverumatensãoentre dois tipos de discurso— os textos projetados por eles mesmos e ostextosimpressos—,oquedáaocursosubstancialdinamismo.

    Portanto,quandocomeçoumcurso,nãopossotercomocertaamotivaçãodosestudantes.Procurodescobriroperfildamotivação—a favordoquêecontraoquê.Sópossodescobririssoobservandooqueosestudantesdizem,escreveme fazem.Mas, emprimeiro lugar, devo estabeleceruma atmosferaem que os estudantes concordem em dizer, e escrever, e fazer o que éautênticoparaeles.Paraajudá-losadizermais,contenhominhaprópriafalainicialmente,paradarmaisespaçoàsuafala.Dessemodo,opontodepartidadaeducaçãodoestudanteemclasseé tambémopontodepartidadaminhaeducação. O que mais me importa no início é saber quanto e quãorapidamentepossoaprenderarespeitodosestudantes.Paramim,esteéum

  • momento experimental. Procuro usar exercícios que ao mesmo tempo meeduquemeeduquemosestudantes:leiturasbreves,redações,experiênciasdedebates e reflexão, e mantenho meus planos de curso limitados e frouxos.Façoumvooseminstrumentos,muitasvezessemumplanejamentocompletodocursoouumalistadeleiturasquedeemasegurançadeumaordemcomaqual estou familiarizado. Quero aprender com eles quais seus verdadeirosníveis cognitivos e afetivos, como é sua linguagem autêntica, que grau dealienação trazemparaoestudocríticoequais suascondiçõesdevida,comofundamentosparaodiálogoeoquestionamento.Osestudantes semotivamforadoprocessodeaprendizagemquandoocursoexisteantecipadamentedemaneiracompletanacabeçadoprofessor,noprogramaounalistadeleituras,ounas exigências dos órgãos do governo.Você percebe o quehá demortonisso? A aprendizagem já aconteceu em alguma outra parte. O professorsimplesmente utiliza uma arquitetura construída em outro lugar,simplesmenterelataconclusõesaquesechegouemoutrolugar.Oestudantedecoraoquelheédito.Existemuitapressãoparaqueseensinedessemodotradicional. Em primeiro lugar, porque é familiar e já está funcionando,mesmoquenãodêcertoemclasse.Emsegundolugar,porqueaoafastar-sedoprograma padrão você pode ser tachado de rebelde ou descontente, e estarsujeito a alguma coisa que pode vir dos pequenos aborrecimentos até ademissão.

    Comoéquepossomotivarosestudantes,amenosqueelesatuemcomigo?Inventarumcursoquesedesenvolvacomosestudantesenquantovaisendoministrado ao mesmo tempo é excitante e produz ansiedade. Sinto-meansiosonocorrerdesseprocessocriativo,esperandoparaversetodososfiosvãosejuntar,masseiqueessaaberturaénecessáriaparasuperaraalienaçãodos estudantes, que é omaior problema do aprendizado nas escolas. Ondeaprender a fazer esse tipo de ensino? Fazendo-o. Infelizmente, osdepartamentos acadêmicos e as escolas de educação desestimulam osprofessoresafazerexperiências.

    PAULO:Vocêsabe,Ira,achoquetodasessascoisasquevocêestádizendonestemomentoestãoligadasaumaquestãoepistemológicamuitíssimoséria.Estouconvencidodequeacompreensãodeficientedoquepodemoschamarde ciclo gnosiológico está relacionada a esses mal-entendidos sobre queestamosfalando.

  • Porexemplo,seobservarmosociclodoconhecimento,podemosperceberdoismomentos, enãomaisdoquedois, doismomentosque se relacionamdialeticamente.Oprimeiromomentodociclo,ouumdosmomentosdociclo,éomomentodaprodução,daproduçãodeumconhecimentonovo,dealgonovo. O outro momento é aquele em que o conhecimento produzido éconhecido ou percebido.Ummomento é a produção de um conhecimentonovoeosegundoéaqueleemquevocêconheceoconhecimentoexistente.Oque acontece, geralmente, é que dicotomizamos esses dois momentos,isolamosumdooutro.Consequentemente, reduzimoso atode conhecerdoconhecimentoexistenteaumameratransferênciadoconhecimentoexistente.Eoprofessorsetornaexatamenteoespecialistaemtransferirconhecimento.Então, ele perde algumas das qualidades necessárias, indispensáveis,requeridas na produção do conhecimento, assim como no conhecer oconhecimentoexistente.Algumasdessasqualidadessão,porexemplo,aação,a reflexãocrítica,acuriosidade,oquestionamentoexigente,a inquietação,aincerteza—todasessasvirtudessãoindispensáveisaosujeitocognoscente!

    IRA: O ceticismo e o olhar crítico, o envolvimento apaixonado com aaprendizagem… a motivação de saber que você está descobrindo novosterritórios.Oprofessorprecisaserumaprendizativoecéticonasaladeaula,queconvidaosestudantesaseremcuriososecríticos…ecriativos.

    PAULO:Exatamente!Eoutraquestãoéquequandoseparamosoproduzirconhecimento do conhecer o conhecimento existente, as escolas setransformam facilmente em espaços para a venda de conhecimento, o quecorrespondeàideologiacapitalista.

    IRA: Você quer dizer que as escolas estão montadas como sistemas dedistribuição para comercializar as ideias oficiais e não para desenvolver opensamentocrítico?

    PAULO:Sim!Distribuirserviçossignificaestarsabotandoaquiloquedeveserintegrador.

    IRA: A educação deve ser integradora — integrando os estudantes e osprofessores numa criação e re-criação do conhecimento comumentepartilhadas.Oconhecimento,atualmente,éproduzidolongedassalasdeaula,por pesquisadores, acadêmicos, escritores de livros didáticos e comissões

  • oficiais de currículo,mas não é criado e re-criado pelos estudantes e pelosprofessoresnassalasdeaula.

    PAULO:Eháoutracoisaqueéditaaosprofessores:queoensinonãotemnadaavercomapesquisa,comaproduçãodeconhecimento.Porcausadisso,háummitoquedizquesevocêéumprofessorquenãofaznenhumtipodepesquisa, você perde prestígio. Como se orientar um seminário de umsemestre sobre o conhecimento atual em biologia, ou química, ou filosofia,nãotivesseimportânciaalguma,comosenãoseestivessesendoumaespéciede pesquisador. Quando penso em passar três horas com um grupo deestudantes discutindo a natureza política da educação ou a naturezaeducacional da política, e acho que issonão é pesquisa, então não entendomaisnada! Istoé, estoure-conhecendo aquiloquepenseiqueconhecia, comestudantesqueestãocomeçandoaconheceressasquestões.Masessetipodedicotomiaentreensinoepesquisatambémexplicaadicotomia,dequejáfalei,entre os dois momentos do ciclo do conhecimento: o da produção doconhecimentonovoeodoconheceroconhecimentoexistente.

    IRA: Outra parte do problema é a hierarquia política do conhecimento.Determinado tipode conhecimento émais valorizadodo que outro.Certostipos de conhecimento não conseguem ter reconhecido seu valor, amenosque assumam forma tradicional dentro desta ou daquela disciplina. Porexemplo,atecnologia,paraasgrandesempresaseparaasForçasArmadas,émais importante do que as ciências humanas. A pesquisa de interesseempresarialcontacomrecursosmuitofartos,enquantoqueosestudossobresocialismosãomarginalizados.Alémdisso,oconhecimentoproduzidodentroda universidade émais considerado do que o conhecimento produzido porcientistasautônomosforadauniversidade.

    Maisainda,quandodigoqueumadaspesquisasquefaçoéescutandoosalunos, alguns colegas me perguntam: “Você é linguista?” Há estudosimportantes, comoosdeBisseret eWillis,2 sobre a linguagemdo cotidiano.Eupesquisoaspalavrasfaladaseescritasdosestudantesparasaberoqueelessabem,oqueelesquerem,ecomoelesvivem.Suasfalasetextossãoumacessoprivilegiadoasuasconsciências.Examinoaspalavraseostemasquesãomaisimportantesparaeles,poisassimtereimateriaisdarealidadeparaestudosemclasse. A pior coisa que existe é estar dentro de uma sala de aula onde os

  • estudantes estão em silêncio, ou onde falam e escrevemnaquela linguagemfalsa e defensiva que inventam para tratar com os professores e outrasautoridades.Nós, professores, passamosmuitashorasdesesperadorasdiantedeestudantessilenciososquenosfitamimóveis.Tambémpassamosinúmerasaulas ouvindoos estudantes repetiremnossaprópria linguagemprofessoral.Se não ouço ounão leio a autêntica linguagem-pensamentodeles, sinto-meprejudicado por não poder começar a pesquisar sobre seus assuntos e seusníveisdedesenvolvimento.

    Este tipo de pesquisa bem-fundamentada tem muito pouco valor demercado no mundo acadêmico. Isso é uma pena porque a inteligênciafundamentadaéumadascoisasqueosprofessoresprecisamparaanimarosestudantes.Éainformaçãodebaseparareinventaroconhecimentoemclasse.Esse ensino-pesquisa tem grande valor prático. Ele educa o professor aprojetar um currículo intrinsecamente motivador. Também diminui adistânciaprofissionalentreoprofessoreosalunos.

    Portanto, o primeiro pesquisador, na sala de aula, é o professor queinvestiga seus próprios alunos. Essa é uma tarefa básica da sala de aulalibertadora,embora,porsisó,sejaapenaspreparatória,porqueoprocessodepesquisadeveanimarosestudantesaestudartantoostextosdocursocomosuapróprialinguagemerealidade.3

    Julgo que esse tipo de sala de aula pode produzir conhecimento nãosupervisionado ounão oficial. Isso desafiaria a comercialização da ideologiaoficial feita pela escola. Não iremos soar como os livros didáticos, osprogramas escolares e osmeios de comunicação demassa que assediam osestudantes.Euprocuroparecernatural, emvezdeprofessoral, e crítico, emvezdecerimonial.Oquestionamentocríticopodeproduziruma literaturaapartirdonada,umaeducaçãoparalela,ouclasseparalela,emcontraposiçãoàsclasses oficiais. Esse tipo de ensino pode produzir um conhecimentodivergenteeformasalternativasdeutilizaroconhecimento.

    Aeducaçãoémuitomaiscontrolávelquandooprofessorsegueocurrículopadrãoeosestudantesatuamcomosesóaspalavrasdoprofessorcontassem.Seosprofessoresouosalunosexercessemopoderdeproduzirconhecimentoem classe, estariam então reafirmando seu poder de refazer a sociedade. Aestruturadoconhecimentooficialétambémaestruturadaautoridadesocial.

  • Éporissoquepredominamoprograma,asbibliografiaseasaulasexpositivascomoformaseducacionaisparaconterosprofessoreseosalunosnoslimitesdoconsensooficial.Ocurrículopassivobaseadoemaulas expositivasnãoésomente uma prática pedagógica pobre. É o modelo de ensino maiscompatívelcomapromoçãodaautoridadedominantenasociedadeecomadesativaçãodapotencialidadecriativadosalunos.

    PAULO:Você tem razão a respeitodapolíticado currículooficial.E seoprofessor cita um texto de pesquisa na sala de aula, este deve ser oconhecimentomais importante.Paramim,umdosproblemasmais sérios écomo enfrentar uma poderosa e antiga tradição de transferência deconhecimento.Atéosestudantestêmdificuldadesementenderumprofessorquenãofaztransferênciadeconhecimento.Osestudantesnãoacreditamnumprofessorlibertadorquenãolhesempurreoconhecimentogoelaabaixo.Vejabem,não é que sejamos contra a disciplina intelectual. Ela é absolutamenteindispensável. Como é possível que alguém faça um exercício intelectual senão cria uma disciplina de estudo? Precisamos disso. Precisamos ler comseriedade,mas,acimadetudo,precisamosaprenderoqueélerrealmente!

    Eudigoquelernãoésócaminharsobreaspalavras,etambémnãoévoarsobreaspalavras.Leréreescreveroqueestamoslendo.Édescobriraconexãoentreotextoeocontextodotexto,etambémcomovincularotexto/contextocomomeucontexto,ocontextodoleitor.Eoqueaconteceéquemuitasvezeslemos autoresquemorreramcemanos atrás enão sabemosnada sobre suaépoca.Efrequentementesabemosmuitopoucosobrenossaprópriaépoca!

    Portanto,soufavorávelaqueseexijaseriedadeintelectualparaconhecerotextoeocontexto.Mas,paramim,oqueéimportante,oqueéindispensável,é ser crítico. A crítica cria a disciplina intelectual necessária, fazendoperguntasaoqueselê,aoqueestáescrito,aolivro,aotexto.Nãodevemosnossubmeter ao texto, ser submissosdiantedo texto.Aquestãoébrigar comotexto, apesar de amá-lo, não é? Entrar em conflito com o texto. Emúltimaanálise,éumaoperaçãoqueexigemuito.Assim,aquestãonãoésóimporaosalunosnumerososcapítulosde livros,masexigirqueosalunosenfrentemotextoseriamente.

    Entretanto, se se pede aos estudantes que assumam uma postura deleitores críticos, comoquem reescrevesse o texto que lê, corre-se o risco de

  • que os estudantes não aceitemo convite e que a produção intelectual delescaia. Convidarmos os estudantes a reescrever o texto, mais do quesimplesmente o engolir, pode levá-los a pensar que nosso próprio rigorintelectualéfrágil.Osestudantespodempensarquenãosomosrigorososporlhes pedir que leiam criticamente um único texto, em vez de lhes impor aobrigaçãodelertrezentoslivrosemumsemestre!

    IRA:Esseriscoexiste.Osestudantesestãoacostumadosàtransferênciadeconhecimento.Ocurrículooficialexigequesesubmetamaostextos,àsaulasexpositivaseàsprovas,paraquesehabituemasesubmeteràautoridade.Osestudantessabembemcomoresistiràsexigênciasdaautoridade,mastambémpodemrejeitaraclassenão tradicional.Algunso fazemcommudodesdém,outros resistem ativamente, outros simplesmente saíram para almoçar. Oproblema é facilitar uma transição gradual para longe dos velhos hábitos.Quando presto atenção ao que os estudantes dizem no início do semestre,percebo comoestãodominadospelo velho sistema escolar. Issomepermitever que tipo de pedagogia de transição devo introduzir. Faço algumasconcessões às velhas formas de aprendizagem, para reduzir o nível deansiedade. Determino algumas leituras, alguns trabalhos escritos, ossos dovelho esqueleto em quantidade suficiente para que todos nos sintamos àvontade.

    Existem outros problemas da transição a partir da transferência deconhecimento.Osprofessoresfrequentementeentramnasaladeaulaepedemqueosestudantesescrevamumtrabalhosobreumlivro,umartigoderevistaouumaquestãosocial.Osestudantesquasesempreperguntam:“Vocêqueraminhaopinião?”Osprofessoresrespondem:“Claro,vocêdeveescreveroquepensa.” Os estudantes, então, escrevem trabalhos extremamentedesinteressantes e cheios de erros. Em geral, não escrevem com verdadeiraprofundidade.Muitos professores já se consideram frustrados no desejo deconseguir que os alunos pensem criticamente. Um dos problemas é que omaterial que o professor apresenta desorienta os alunos. Quase sempre, éescritoemlinguagemacadêmica,umalínguaqueelesnãousam.Trataquasesempre de temas irrelevantes às suas experiências e que não estãosincronizados com o ritmo perceptual da cultura de massa, um ambienteeletrônico e acelerado. E o que é pior, as relações sociais da sala de aulaprovocamalienaçãoesilêncio.Odistanciamentofrioentrealunoseprofessor

  • afastaosestudantesdomaterialdeestudo.Omodopeloqualaclassechegaaum texto impresso e a própria natureza do texto precisam ser analisados.Temosdereinventaraleituraemumcontextoqueimpedeumaleituraséria.

    PAULO:Tambémháprofessoresquedizemaos alunosparanãopenetrarna intimidadedos livros, na almado texto, a fimdediscuti-lodopontodevista do estudante.Ao contrário, dizem aos alunos para apenas descrever otexto.Frequentementepedemqueosalunosdescrevamumsegundoobjeto,aprópriasociedade.Osestudantessódevemdescreveroqueveemnumtextoounasociedade,enadaalémdisso,porqueosprofessoresdizemquenãocabeaoscientistasinterpretar,masapenasdescrever.Éclaroqueirãomaislongeedirão que aos cientistas não compete sequer pensar emmudar a realidade,mas apenas descrevê-la. Nesse tipo de compreensão ideológica do ato doconhecimento,issoéoquechamamosde“neutralidade”ou“objetividade”daciência.

    IRA: Essa ideia do questionamento não valorativo é comum em minhacultura,mascoexiste,também,comaaceitaçãodanaturezacomprometidadoconhecimento. As forças políticas nos EUA usam a pesquisa científica emapoioasuasreivindicaçõesoupolíticas.Mas,nasescolaseuniversidades,oscursos de ciências, engenharia, tecnologia e ciências sociais geralmenteapresentamoconhecimentocomonãovalorativo, isentode ideologiaoudepolítica. Quando não são apresentados assim, então esses assuntos sãoapresentadosdopontodevistadoestablishment.Osestudantessãoformadospara ser operários ou profissionais liberais que deixam a política para ospolíticos profissionais. Esses currículos falsamente neutros formam osestudantes para observar as coisas sem julgá-las, ou para ver o mundo doponto de vista do consenso oficial, para executar ordens sem questioná-las,como se a sociedade existente fosse fixa e perfeita. Os cursos enfatizam astécnicas e não o contato crítico com a realidade. Isso impede uma análisepolíticadas forçasqueconstroemoscurrículos,bemcomoosarranha-céus.Umcientista,umprofissional,mantémafacelimpaficandoforadapolítica,deixando de fazer perguntas que contenham críticas às decisões de seussuperioresouaoimpactodeseuprópriotrabalho.

    PAULO: E, desse ponto de vista que não é omeu, quantomais você usaluvasparanãosecontaminarcomarealidade,melhorcientistavocêé.

  • Através da educação libertadora, não propomos meras técnicas para sechegar à alfabetização, à especialização, para se conseguir qualificaçãoprofissional, ou pensamento crítico.Osmétodos da educação dialógica nostrazem à intimidade da sociedade, à razão de ser de cada objeto de estudo.Através do diálogo crítico sobre um texto ou um momento da sociedade,tentamos penetrá-lo, desvendá-lo, ver as razões pelas quais ele é como é ocontexto político e histórico em que se insere. Isso é paramim um ato deconhecimento e não uma mera transferência de conhecimento, ou meratécnicaparaaprenderoalfabeto.Ocursolibertador“ilumina”arealidadenocontextododesenvolvimentodotrabalhointelectualsério.

    IRA:Gostodessaideia,Paulo:“iluminar”arealidade.Econcordotambémquea educação libertadoranãoéummanualdehabilidade técnica; é antes,porém,umaperspectivacríticasobreaescolaeasociedade,oensinovoltadoparaatransformaçãosocial.

    PAULO:Alémdeumatodeconhecimento,aeducaçãoé tambémumatopolítico.Éporissoquenãohápedagogianeutra.

    IRA: Todas as pedagogias têm uma forma e um conteúdo que estãorelacionadoscomasociedade,etodastêmrelaçõessociaisdentrodassalasdeaulaqueserelacionamcomopodereadominação?

    PAULO:Sim.Penso,porexemplo,queaideologiadominante“vive”dentrodenósetambémcontrolaasociedadeforadenós.Seessadominaçãointernae externa fosse completa, definitiva, nunca poderíamos pensar natransformação social.Mas a transformação é possível porque a consciêncianãoéumespelhodarealidade,simplesreflexo,maséreflexivaerefletoradarealidade.

    Enquanto seres humanos conscientes, podemos descobrir como somoscondicionados pela ideologia dominante. Podemos distanciar-nos da nossaépoca.Podemosaprender,portanto,comonoslibertaratravésdalutapolíticana sociedade. Podemos lutar para ser livres, precisamente porque sabemosquenãosomoslivres!Éporissoquepodemospensarnatransformação.

    IRA: Gosto da ironia da consciência, que torna possível a libertação.Podemos aprender a ser livres, estudando nossa falta de liberdade. Esta é adialética da sala de aula libertadora. É um lugar em que pensamos

  • criticamente sobre as forças que interferem em nosso pensamento crítico.Assim, as salas de aula libertadoras iluminam as condições em que nosencontramosparaajudar-nosasuperaressascondições.

    PAULO:Esteéoconvitequefazemosaosestudantes.

  • Notas1 Devido à riqueza da palavra empowerment, que significa a) dar poder a, b) ativar a potencialidadecriativa, c) desenvolver a potencialidade criativa do sujeito, d) dinamizar a potencialidadedo sujeito,manteremosapalavranooriginaleemgrifo.

    2 NoelleBisseret,Education,ClassLanguageandIdeology.Londres:RoutledgeeKiganPaul,1979;PaulWillis, Learning to Labor: How Working Class Kids Get Working Class Jobs. Nova York: ColumbiaUniversity Press,1981. Cf. também Richard Ohmann, “Reflections on Class and Language”. CollegeEnglish, v. 44,n. 1, janeirode 1982, pp. 1-17.O textodeOhmann,English inAmerica,Cambridge eOxford:OxfordUniversityPress,1976,éoutrotexto-chavesobrelinguagemepolítica.

    3 Paraumbomexemplodesaladeaulasobrecomoprovocarapesquisacríticadoestudantearespeitodesuascondiçõesesualinguagem,cf.NanElsasserePatriciaIrvine,“EnglishandCreole:theDialecticof Choice in a College Writing Program”, das professoras do College of the Virginia Islands. Emmanuscrito.

  • 1COMOPODEOPROFESSORTRANSFORMAR-SENUMEDUCADORLIBERTADOR?DEQUEMODOAEDUCAÇÃOSERELACIONACOMAMUDANÇASOCIAL?IRA:ESTANOITE,PAULO,gostariadecomeçarcomquestõesqueosprofessorese os alunos colocam frequentemente:Como transformar-menum educadorlibertador?Comoreciclar-me?

    Osprofessorestêmpoucasoportunidadesdeversalasdeaulalibertadoras.Osprogramasdeformaçãodeprofessoressãoquasesempretradicionaiseasescolas que eles frequentam não estimulam a experimentação. Assim, oproblema dos modelos é a primeira questão que os professores levantam.Partedesseproblemaenvolveoutrasquestões:Comoaeducação libertadorase diferencia da educação tradicional? Como se relaciona com a mudançasocial?

    PAULO:TambémmetemsidofeitoessetipodeperguntatantonaAméricadoNortecomonaEuropa.

    IRA: Talvez seja uma boa ideia discutir nossa própria aprendizagem ereaprendizagem, para perceber de que modo chegamos à pedagogialibertadora.

    PAULO:Achobom.Vocêcomeçaedepoiseufaloalgumacoisasobreisso.

    IRA:Recebiumaeducaçãomuitotradicional.Quandomeninonãogostavadaescola,masadoravaestudar,especialmentemapasantigos,culturasantigas,astronomia.Assim,euliasozinho,faziaaliçãodecasa,emeressentiadeterde ir à escola.O tédiome fez silencioso, eme transformeinoque chamam“problemadisciplinar”.Entretanto,tinhaumagrandecuriosidadeemrelaçãoàs coisas,muito embora a escolame entediasse, como entediava os demaisgarotos também.Éramosmuitomais espertos do que a escola nos permitiaser.Éramostratadoscomoimbecisenos transformavamemrobôs,eeumerebeleicontraaestupidez.

  • Osoutrosestudantes,meusamigos,tambémnãoestavamfelizes.Tambémcriavam problemas, mas eu me transformei, aos onze anos, num líder daresistênciaestudantil.Comeceiapublicarum jornalzinhoextraoficial,queodiretorproibiusemdemora.Essafoiaprimeiraliçãoquetivesobreliberdadedeimprensa,muitodiferentedoqueolivrodeleituracontava.Lembro-medeterlidoarespeitodaliberdadedeimprensanostermosdoqueumimpressorcolonial, chamado Peter Zunger, fez em 1735! Naquela época, os inglesesmalvados o prenderamporque ele tinha publicado artigos sem autorização;masagoraéramostodoslivres!

    Aomesmotempo,eueracortejadopelosprofessores,quemediziamqueeu era mais esperto do que o resto dos garotos, e que diziam para mecomportar conforme as regras, para dessa forma assegurar umbom futuro.Minhamãe teve de ir à escola para falar sobremeu comportamento com aprofessoraefizerammuitapressãoparaqueeumecalasse.Minhamãefaltouao trabalho e reclamou que a escola estava me aborrecendo, mas minhaprofessora deixou-a constrangida ao dizer que, se eu precisava frequentarclasses especiais, ela teria que arranjar dinheiro para me pôr numa escolaparticular. Envergonhada por pertencer à classe trabalhadora, minha mãerecuou e me disse para obedecer aos professores. Eu me retraí e silencieidurantemuito tempo, tornei-me um estudante exemplar e aluno dileto dosprofessores. Esta foi uma bela virada da mesa do poder: os professorescomeçaramameadoraremeusamigoscomeçaramamedetestar.Eu tinhamudadodeladonaguerraculturaldaescola.Continueiassim,dentrodeumcasulo,sendobomeficandoquieto,atéquechegouaagitaçãodosanos1960,comomovimentodosdireitoscivis.Comeceiamilitaremedeixeipenetrarpela nova cultura do protesto. Eramaravilhoso voar novamente e protestarjuntocomoutros.

    Nos anos 1960, muita gente começou a discutir um tipo diferente deeducação.Novasformasdeensinoemergiram,comoomovimentodeescolasalternativas, as escolas livres, experimentosde ensino radical, seminários deprofessores,seminários informaisvinculadosaumououtromovimento.Fizalgumasexperiências,noensinosuperior,comoprofessordepós-graduação.Devoconfessarqueaprendimuitosobrepolítica,Vietnã,racismo,sexismoecapitalismo,masmuitopoucosobrepedagogia,emuitopoucosobreculturade massa e conscientização. Mais tarde, em 1971, quando fui para uma

  • faculdadeoperáriaemNovaYork,osmovimentosdosanos1960estavamemdeclínio,enquantoqueasclassesdeminhafaculdadepermaneciamabertasàexperimentação.Comeceiminhasexperiênciaspedagógicasnomeiodanovalutaemdefesado“livreingresso”,umapolíticarecentedaCityUniversitydeNovaYorkqueadmitiaestudantesquenãofossemdaelite,apesardeummaudesempenhonosegundograu.Comessaaberturahistóricadauniversidadeaestudantestrabalhadores,nãotinhaideiadecomoensinar.

    O problema da pedagogia se impôs para mim nessa nova situação:estudantesnãoacadêmicosemmassanaeducaçãosuperior,umfortechoquede culturas. Antigamente, só uma parcela pequena de estudantestrabalhadores, como eu, tinha sido admitida na academia. Agora, erammilhões que ingressavam. Que tipo de ensino poderia provocar umconhecimentocrítico?Asituaçãopareciafadadaaofracasso—poucasverbas,classesgrandes,instalaçõesinsuficientes—,asautoridadessemovimentavamno sentidode fechar o acesso àuniversidade aos estudantes que vinhamdebaixo.

    Tenho dificuldade em dizer isso, mas confesso que comecei numauniversidademunicipal como professor tradicional. Dava aulas de redação.Comeceiensinandogramática,preocupadocomousocorretodalíngua.

    PAULO(rindo): Sim!Meu começo também foi assim, fazmuitos anos.Agrande diferença é que, primeiro, fui professor de sintaxe portuguesa.Adorava fazer aquilo! Claro que, naquele tempo, eu estava longe dacompreensão necessária do condicionamento social da linguagem. Mascomeceicomovocê.

    IRA:Eugostava de gramática quando era garoto!Eraumquebra-cabeça.Aprendi as estruturas e fazia experiências com frases.Mas a gramática e aescrita não eram só quebra-cabeças criativos para mim. Eu as usei comodegrausparaascendersocialmente.Oestudo intelectualeraomeucaminhode ascensão. Eu fazia parte daquele 1% de meninos pertencentes à classetrabalhadoraquechegariama terumdoutorado,demodoquetinhagrandeinteressesocialnautilizaçãocorretadasregrasgramaticais.Elaseramomeubilhetedeingressonaescolademedicina,eupensava,porquesabiaque,parasermédico,teriadelereescrevercomoaelite.

  • Quando comecei a lecionar para estudantes trabalhadores, eu queriatransferir meu próprio conhecimento para eles. Percebe qual o problema?Ingenuamente, impunha sobre elesminha própria experiência.Não sabia oqueerareinventaroconhecimentodemaneiracríticacomeles,apartirdesuaposiçãonasociedade.Eutinhaumarelaçãosocialcomasregrasdagramáticadiferente da deles, porque eles quando muito eram aceitos em faculdadesmunicipais,enquantoeuestavaládepoisdepassarporduasuniversidadesdeelite.Eleseramtudo,menosalunosbrilhantesouprediletosdosprofessores.Portanto,comoéquepodiamteromesmointeresseporessasregras?Comoéqueacorreçãogramaticalpoderiaseinseriremsuasvidasdaformacomoeuacultivei? Eu não sabia como colocar a educação na experiência deles. Nãoentendiasualinguagem,nemsuasexpectativas.Entretanto,sabiaexatamentecomolhesensinar!

    Leveiváriosanosparadescobrirosverdadeirosobstáculosàaprendizagemcrítica, entre os quaisminha ignorância, assim como a imersão deles numacultura de massa que os incapacitava. Mas no começo, devido a minhainexperiência, pensava que já que eu engolira as regras da gramática, elestambém deveriam engoli-las. É claro, Paulo, que eu tinha racionalizaçõesmaravilhosas para justificar o que estava fazendo! Eu me considerava um“gramático criativo”. Ensinaria a gramática de forma tão emocionante quetodomundoiriaadoraragramática!(Rindo)Queequívoco!

    PAULO(rindo):É!Équaseimpossível,nãoé?Emcertomomento,vocêtemque lutar contra a gramática, para ter liberdade para escrever. Eu tambémpensavacomovocê, aosdezenoveanosde idade.Mas, agora, lembro-medecomoescreviamal,naqueletempo.Apesardisso,estavaseguindoospadrõeschamados“literários”dalíngua.

    IRA:Eraoqueeufazia,também.E,alémdisso,escreviapoesia!Exatamentecomo a poesia pré-romântica do século XVIII na Inglaterra. Escrevia essespoemas horrorosos, copiando as formas corretas que aprendi na escola,completamente desinformado sobre a liberdade da poesia moderna.Simplesmente copiava qualquer coisa que via impressa num papel. Meuprofessor de redação na faculdade admirava-se com a precisão com que euimitavaGrayouCollins.Eletinhacertezadequeeuhaviacopiadoseusversospré-românticoseosentregaracomosefossemmeus!Eletambémmeolhava

  • comdesprezo,comoumapessoatãopoucorefinadaoriundadaclasseerrada.Edessemodocomeceiaensinar,apartirdasformasimpressasdaescrita.

    PAULO:Issoéinteressante:noBrasil,houvealgunsautoresmuitobonsquemesalvaram.Salvei-meatravésdaleituradessesautores,quandotinhavinteepoucosanos. JoséLinsdoRegoeGracilianoRamossãodoisdessesautores.JorgeAmado,GilbertoFreyre,ograndesociólogoeantropólogo,queescrevemuitobem,foioutrainfluênciaimportanteparamim.Masessesautoresnãoestavam preocupados em seguir a gramática! O que procuravam em suasobraseraummomentoestético.Euos limuito.Edessa formaeles tambémme recriaram, como jovem professor de gramática, devido à criatividadeestética de sua linguagem. Eume lembro hoje, sem dúvida, comomudei oensinodasintaxe,quandotinhamaisoumenosvinteanos.

    A questão, naquela época, não era só negar as regras. Quando jovem,aprendiqueabelezaeacriatividadenãopodiamviverescravasdadevoçãoàcorreção gramatical. Essa compreensão me ensinou que a criatividadeprecisava de liberdade. Então, mudei minha pedagogia, como jovemprofessor,nosentidodaeducaçãocriativa.Issofoiumfundamento,também,para que eu soubesse, depois, como a criatividade na pedagogia estárelacionadacomacriatividadenapolítica.Umapedagogiaautoritária,ouumregimepolíticoautoritário,nãopermitealiberdadenecessáriaàcriatividade,eéprecisocriatividadeparaseaprender.

    Masantesqueeufaledeminhaprópriatransformação,tenhocuriosidadeemouvirmaisarespeitodecomovocêmudoudaeducaçãotradicionalparaalibertadora.

    IRA: Quando comecei como jovem professor, recém-saído de pós-graduação, euprogramavameus cursoshoraporhora.Eu tinhaum roteiroprecisodoqueseriaasegunda-feiraouaquarta-feira.Estudavamuitosobrecomo apresentar as regras da gramática, as formas corretas, e a arte deescrever. Os resultados não eram muito inspiradores, e então eu meperguntavaoqueestavaerrado,poucosresultadosparatantoesforço.Reunia-me, quase que semanalmente, com outros jovens professores, para discutirnossas aulas, num programa experimental. Juntos, como uma equipe,ajudávamosunsaosoutros, ensinávamosunsaosoutros,nos reeducávamosno próprio local de trabalho, ano após ano. Os professores que querem

  • transformar sua prática podem se beneficiar imensamente do apoio de umgrupocomoesse.

    Enquanto procurava me reciclar como professor, pelo menos euenfrentava menor hostilidade por parte dos estudantes. Muitas vezes mepergunteiporqueosestudanteseramtãotolerantes,apesardosmeustropeçosedelhesapresentarumcardápiodegramáticaederetóricacujamaiorparteeles já tinhamvisto antes.Achoquemeuentusiasmo lhesmostravaminhasboas intenções, mesmo que eu não soubesse o que estava fazendo. Elestoleravamminhaconfusãodeformamuitogenerosa!Eumesentiaagradecidoporelesmepermitiremaprenderàssuascustas.Estavacontentedeestarnasalacomeles,portanto,nãoosdesprezavaporseremalunosuniversitáriosquenãopertenciamàelite,enãodesprezavaamimmesmo,porserumprofessor-doutor que lecionava numa faculdade marginal, de massa. Eu queria estarexatamente onde estava, numa sala de aula, dando aula para estudantestrabalhadoresentreosquaiseucresci.Asagitaçõesdosanos1960mefizeramdesejar amudança social, e euopteipor trabalharnuma faculdadedegentecomum. Pelo menos tive o bom-senso de não falar sobre política com osalunos. Eu estava à esquerda deles, mas não lhes fazia preleções sobrecapitalismo,guerra,eassimpordiante—intuitivamente,sabiaqueissoexigiadiscussão, e que estudaríamos redação escrevendo sobre temas que fossemrelevantesparaeles.

    Namicropolítica da sala de aula,minha atitude era a de que estávamosfazendo algo de muito importante. Isso fazia diferença. Apesar depedagogicamenteestarconfusoquantoamétodos,tinhaalgumavisãopolíticasobrepodereclassediantedosestudantesdo“livreingresso”,osprimeirosemsuas famílias a frequentar uma faculdade, os quais, até então, detestavam aescola,dadaasuaeducaçãodesativadoradacapacidadecriativa,cercadosporumaculturademassaincapacitadora.Comeceiaestudarsualinguagemesuarealidade junto com eles, para descobrir o que estava bloqueando o estudocrítico.

    Vocêpode imaginarminha confusãonosprimeirosmeses.Atravesseiosanos1960,emesmoassimvinhaàsaladeaulaparaensinargramática!Tudoisso é incrível e embaraçoso agora,mas, como se diz, aquele era um outro

  • país,ouainda,sãoáguaspassadas.Qualquerquesejaametáfora,estoufelizdequetudotenhaficadoparatrás.

    Naquelaépoca,parecia-nosqueumaarruinadacidadedeNovaYorkesuadespedaçada City University estivessem desmoronando a nossos pés,justamentequandoalgunsdenósestávamosinventandoafronteirado“livreingresso”.Cadareuniãoemsaladeaulaouasamargasreuniõesdeprofessorespareciam prestes a explodir rumo ao colapso. O protesto dos estudantesforçouauniversidadeaadotaro“livreingresso”cincoanosantesdoprevistoe a permitir o acesso dos estudantes que não eram de elite aos cursos dasmelhoresfaculdades.Quandocheguei,em1971,acrisetinhadesintegradoomundo dos negócios, como sempre acontece, abrindo um espaço, nãosupervisionado, para experiências, um momento maravilhoso que asautoridadesdeixaramparcial e temporariamentevazio.A tradiçãoestavanadefensiva,eporissotínhamosalgumaliberdadeparaexperimentar.Em1976,as autoridades retomaram a ofensiva, e o período de experimentaçãoterminoucomarestauraçãodoconservadorismo.

    Mas aprendi muito nos anos de abertura, especialmente de outrosprofessores que faziam experiências e da linguagem dos estudantes. Aspessoas dos grupos dominados falam diversos idiomas, dependendo dasituação em que se encontram. Quando as autoridades estão por perto,empregam uma linguagem defensiva, cheia de maneirismos e construçõesartificiaispara“safar-se”.Essasformasdediscursosãoosaspectoslinguísticosdalutamaisamplapelopodernasociedade.Euouviaessesdiferentesidiomasesentiaqueaclasseestavaindobemquandoseexpressavapormeiodefalasnão defensivas. Eles faziam isso com suficiente frequência para que euaprendesse sobre suacultura, sobre suaconsciência.Eles sãomuitoespertosparaseesconderdoprofessor,paradizeroqueoprofessorquerouvir,paraconfundiroprofessorcomafirmaçõesdefensivaserespostasquesoamcomose fossem as próprias palavras do professor. Essa linguagem defensiva nãopermitequeosprofessoresdescubramoqueosestudantesrealmentesabemepodemfazer.

    Comoeradeseprever,quandoosestudantesfalavam,paramimouparaoutros, sobre sua realidade, eles se tornavam muito mais animados. Era amotivação intrínsecadequevocê falava emnossaprimeira sessão,Paulo.A

  • motivação estava na relação deles com amatéria e nas relações sociais emclasse. O crescimento de sua instrução não podia ser subtraído do contatocrítico com os temas de seu mundo. Percebi, lentamente, o que eu estavafazendo. Os temas da realidade sobre os quais nos debruçávamos estavamsaturadosdequestionamentocrítico,apontodeentrarmosesairmosdavidacotidianaaomesmotempo,estudandoocomumcomatençãoincomum.

    Emnossasdiscussões,ouvia algumaspalavras e frasesquenãoentendia.Algumas vezes, eu dizia frases que os estudantes não entendiam. Então,interrompiaaconversaparapedirquemeexplicassemsualinguagemouparaexplicar o que estava dizendo. Isso ajudava a criar um terreno linguísticocomum.Eu tentava reconstruirminha linguageme, também, superaroquenos separava. Eu falava um idioma intelectual que tinha aprendido nauniversidade. Eles falavam a linguagem da cultura de massa. Ambos osidiomaseramprodutosdeumasociedadedivididasegundoraça,sexoeclassesocial. Assim, você pode ver o projeto a favor do discurso libertador,inventando comunicações democráticas, que concebo como intercâmbiosverbais que contradizem a hierarquia, transformando a separação de poderqueexisteentreprofessoresealunos.

    Oquepesou,euacho,foirecusar-meainstauraralinguagemdoprofessorcomo único idioma válido dentro da sala de aula. Minha linguagemimportava,masadelestambém.Minhalinguagemmudoueadelestambém.Essa democratização da expressão estabeleceu uma atmosfera comum queencorajava os estudantes a falarem abertamente, sem temer o ridículo ou ocastigoporserem“burros”.Gostariadepoderreproduzirparavocêasurpresaquedemonstravamcadavezqueeumeinteressavaporsuaspalavras,pelasuacultura.Dificilmente algumprofessor os levara tão a sério,mas a verdade équeeles,também,nuncatinhamselevadotãoasério.

    Eles também tinhammuito o que dizer. Tinham problemas de família,problemasdetrabalho,problemasdeescola,problemasdetransporte,eassimpor diante.O trabalho de convencê-los de que eram infelizes não erameu.Que coisa tola isso seria — algo como ser um cruzado ao inverso. Crieicondiçõesemclasseparaqueaspessoaspudessemfalardesuasvidas.Osqueatendiam a esse convite revelavam as áreas de problemas que mais lhesinteressavam.Euquestionavasuasafirmações,propunhaproblemascríticose

  • tentavameeducararespeitodoquesignificavamaquelasfalas,comojanelasabertas para a consciência de massa e caminhos que apontavam para atransformação.Avidaea linguagemdosestudanteseramtextos sociaisquenemelesnemeuentendíamos,masquemeapresentavammodelos,motivos,temas, personagens, e imaginário, como pistas para seu significado. Assim,tudosomado,talveztenhapercebidoqueosprofessoreseramumajanelaeumcaminho para os alunos, para que vissem suas próprias condições evislumbrassem um destino diferente. O rosto e a fala do professor podemconfirmar a dominação, ou refletir possibilidades de realização. Se osestudantes veem e ouvem o desprezo, o tédio, a impaciência do professor,aprendem,umavezmais,quesãopessoasqueinspiramdesgostoeenfado.Sepercebem o entusiasmo do professor quando este lida com seus própriosmomentosdevida,podemdescobriruminteressesubjetivonaaprendizagemcrítica.

    O reconhecimento dessas questões me ocorreu depois de tê-lasexperimentado em classe durante muito tempo. Primeiro experimentei,depois refleti. Depois, Paulo, li seus livros e consegui o enquadramentofilosóficodaquiloqueestavafazendo.

    PAULO: E na medida em que você desativava a forma tradicional de serelacionarcomosestudantes,amaneiradeabordaroobjetoaserconhecidopelosestudantes,quetipodereaçãoelesdemonstraramaessasmudanças?

    IRA:Houveumasériedereações.Algunsestudantesqueriamdizer“Ondeestevevocêdurantetodaaminhavida?”,umaexpressãoqueseusanosEUA.Durantetodaavidavocêcarreganecessidadesquenãoconseguesatisfazereque não pode entender exatamente. Quando você atinge um ponto queconseguesatisfazeressasnecessidades,diz:“Ondeestevevocê,durantetodaaminha vida?” Finalmente, você pode se revelar à pessoa que você é, masnenhuma das situações de sua vida tinha permitido que você tivesse essasensação.Essafoiumareaçãoquepercebi.

    Houve, também, raiva e ansiedade. Os estudantes, certamente, queriamperguntar gritando: “Que diabo você quer? Por que você não preenche ohorário com uma conversa-de-professor eme deixa copiar as respostas emsilêncio, enquanto olho para você com olhos vazios, fazendo de conta queestou ouvindo suas palavras, que flutuam no ar, quando de fato estou

  • sonhandocomcervejaousexo,oudrogas,ouaFlórida,oujogodefutebol,oua festa deste fim de semana.” Há muito tempo os estudantes estãoacostumadoscomaaprendizagempassiva,oquefaziacomquealgunsdelespensassemque eunão tinhadireito de lhes fazer exigências críticas.Ameuver, a sala de aula libertadora é exigente, e não permissiva. Exige que vocêpensesobreasquestões,escrevasobreelas,discuta-asseriamente.Osistemaescolarconvenceumuitosestudantesdequeaescolanãoos levavaasério,epor issodeixaramde ser sériosna escola.Certos estudantesnãoconseguemsuperarodesgostoqueadquiriramcomotrabalhointelectualnaescola.

    Depois,havia tambémalgunsestudantesqueenxergavamapossibilidadede existência de uma classe dinamizadora,mas não conseguiam falar sobreissonasdiscussões.Euliaseustrabalhos,masnãoconseguiasuaparticipaçãonosdebatesemclasse.Eutinhaderespeitaradistânciaquecolocavam.Outrotipo de reação dos estudantes era nem muita participação, nem muitaresistência;masvoltariamparamaisumoudoissemestres,embuscadeumaatmosferaqueosatraía.Elesmediziam:“Foiautêntico!”Achoqueissoqueriadizerqueocursolhespropicioucontatocomsuaprópriasubjetividadeecomminhasubjetividade,emvezdebloquearocontatoentrenósenossocontatocom a realidade. Eu nãome apresentava de forma distante ou professoral,nemesperavaqueelesfossempersonagensincapacitadosnumacenadeescolatradicional.Éramoslivresparasermosnaturais.

    Outros, ainda, eram abertamente hostis, contestando-me de modo ainterromper o avanço crítico da classe. Tinham aderido à tradição eencaravamaclassecomoumaameaçaaseusvaloresestabelecidos.Àsvezes,formavam um bloco grande o suficiente para obrigar-me a ser tradicionalduranteumdadocurso.Seeupercebiaqueoapelolibertadorerarejeitadoporumgrupograndedeestudantes,via-meforçadoaretrocederaospadrõesdoensino-transferência. Não posso impor a pedagogia libertadora contra avontadedequemnãoquerrecebê-la.Eradecepcionanteoantiquadoensino-transferência,masbastante fácil deministrar, aindaquenão funcionasse.Ogrupo de estudantes que o aceitava, reagia de forma diferente às vezes,trazendocomelesamigos,namoradoseparentes.

    O que me ajudou nos piores momentos foi compreender os limites domeu próprio poder. Era verdade, frequentemente, que minhas aulas eram

  • umaexperiênciaúnicanavidadosalunos.Poroutrolado,umcursoéapenasumcursodentrodeumcurrículomaisabrangente,eaeducaçãoéapenasumaparte da sociedade como um todo. A cultura demassa socializa as pessoasparasepoliciaremcontrasuapróprialiberdade.Portanto,eracompreensívelquealgumasclassesrejeitassemoconvitelibertadorqueeulhesfazia.Oquefazemos em classe não é ummomento isolado, separado domundo “real”.Estátotalmentevinculadoaomundoreal,eestemundorealéqueconstituiopodereoslimitesdequalquercursocrítico.

    Talvezeudevessedizertambémqueashabilidadesparaatransformaçãodistribuem-sedeformadesigual.Semeapresentodiantedeumanovaclasse,nãoposso suporque essa classe repitaodesenvolvimentooua transiçãodaclasseanterior.Nemquerepitaaresistênciaàtransformaçãodaclassequeaprecedeu. Tenho que redescobrir a distância que esse novo grupo podepercorrer.Podeserqueresistaàtransiçãootempotodo,mesmoqueeuestejalecionando o mesmo curso que, no período anterior, produziu umatransformação notável. Posso prever muito pouco o que sucederá de umaclasseparaaseguinte.

    Essa reação imprevisível dos estudantes representava uma notícia má eboa, aomesmo tempo.Amá notícia era ter de se esperar pelo que desse eviesse,semnenhumacondiçãodetrabalhoedesenvolvimentouniforme.Essefoiomeuaprendizadoda“pedagogiasituada”,oucomosituaroprocessodeaprendizagemnascondiçõesreaisdecadagrupo.Poroutrolado,pelofatodequeaconsciênciadosestudantesassimdeterminavaosresultadosdequalquerclasse,podiaparardemeculparpelasquenãochegassemapartealguma.Seumaclassenãodavacerto, issonãoinvalidavaoprocessodediálogo.Seumcursonãotranscendiaapedagogiadatransferênciadeconhecimento,issonãomefaziasentirfracassado.Apenasconcluíaqueaquelasituaçãonãopodiaserutilizadaparaatransformação.Ossereshumanosenvolvidosnoprocessonãopodiam iniciar a transformação naquele momento, naquele lugar e atravésdaquelesmeios.

    Achoqueesseéumpontomuitoimportanteparaosprofessoresporque,sevocêexperimentaumatransiçãonadireçãodaeducaçãolibertadora,talvezvocêprecisedeconstantesêxitospara seconvencerdeque tomouadecisãocorreta.

  • PAULO (rindo): Muito bom! A ideologia tradicional é tão poderosa queprecisamos de êxitos para sentir que estamos certos, sobretudo os jovensprofessores.

    IRA:Epodeserqueosêxitosnãocheguemnoprimeiroano.Oquevocêfaz então?Você precisa de alguémque lhe garanta que eles poderão vir nosegundo,ounoterceiroanoe,mesmoentão,quandovocêestivermaisbempreparado para o ensino de transformação, poderá não ser, ainda, umaexperiência uniforme. Isso me faz pensar que a “mudança” é inevitável naexperiência humana, mas que a transformação libertadora estápotencialmente disponível algumas vezes. Quando possível, ela não énecessariamente realizadapelosmeiosusadosemoutrocontexto.Épor issoqueoensinolibertadornãopodeserpadronizado.Éaaçãocriativa,situada,experimental,quecriaascondiçõesparaatransformação,testandoosmeiosdetransformação.

    Assim, Paulo, isso é o que eu acho sobre a minha transição para aeducaçãolibertadora.Contevocêagorasobreseudesenvolvimento.Oquefezquevocêsedecidisseaserumprofessor,nasuaadolescência.

    PAULO: Antes demais nada, devo dizer que ser um professor tornou-seuma realidade, para mim, depois que comecei a lecionar. Tornou-se umavocação,paramim,depoisquecomeceiafazê-lo.Comeceiadaraulasmuitojovem, é claro, para conseguir dinheiro, um meio de vida, mas quandocomeceialecionar,crieidentrodemimavocaçãoparaserumprofessor.Euensinavagramáticaportuguesa,mas comecei a amar abelezada linguagem.Nuncaperdi essavocaçãopeloensino.Nãopossodizerqueaos seisou seteanostinhaemmenteviraserprofessor.Istoacontece,éclaro.Massentiqueensinarerabomquandopelaprimeiravezensineiaalguémquesabiamenosdoqueeu.Tinhadezoitoanos,talvez,davaaulasparticularesaestudantesdosegundograu,ouajovensquetrabalhavamnaslojas.Elesqueriamaprendergramática.

    Ensinando,descobriqueeracapazdeensinarequegostavamuitodisso.Comeceiasonharcadavezmaisemserumprofessor.Aprendicomoensinarnamedidaemquemaisamavaensinaremaisestudavaarespeito.

    IRA:Quandovocêcomeçouasetransformarnumadireçãolibertadora?

  • PAULO: É muito interessante recordar isso agora. Lembro que quandoensinava português em escolas de segundo grau, de formamuito dinâmica,alguns alunos vieram e me disseram que as aulas os faziam se sentir maislivres.Costumavammedizer:“Paulo,agoraeuseiquepossoaprender!”Issosignifica, sem dúvida, um tipo de libertação de alguma coisa. No planoindividual, alguns alunos estavam sofrendoumautobloqueio, devido aumarestrição externa que vinha de outros professores que lhes diziam que nãoeramcapazesde aprender.Namedida emque, aodesafiá-los, pudeprovar-lhesquepodiamaprender,elessesentirammaislivres.Eupercebiaessetipodeprogressodosestudantes,masnaqueletempoeuaindaestavamuitolongedeveroladopolíticodessasituação.

    Osestudantesmefalavamsobreseussentimentosdeliberdade,dentrodesalasdeaulacomtrintaou35alunos,tantoquantoindividualmente,quandolhes ensinava em suas casas. Eles me transmitiam sentimentos muitodinâmicos. Meu ensino, então, era uma mistura de formas didáticastradicionaisecríticas.Euexplicavaasregrasdacorreçãogramaticalnasaladeaula,mas,acimadetudo,estimulava-osaescreverpequenostrabalhos,queeulia e depois usava como texto, um por vez, durante toda uma aula, usandoseuspróprios escritos como exemplosde gramática e sintaxe, analisandoostemas sobreos quais escreviam.Eu lhes ensinava gramática a partir doqueescreviam, e não de um compêndio. E utilizava também textos de bonsautoresbrasileiros.

    IRA:Sobrequetipodeassuntovocêpediaqueescrevessem?

    PAULO: Perguntava o que tinham feito no fim de semana, por exemplo.Nãolhespediaparaescreversobrecoisasabstratasouconceitos.Sempreacheierrado esse tipo de exercício. Tomava questões concretas, às vezes sobrealgumas páginas de algum texto que estávamos lendo, às vezes sobremomentos de sua própria experiência. E as horas de aula eram discussõessobreostemasetambémsobreasredações,masumadiscussãocríticasobreoquediziameescreviam,enãoumaliçãodemanual.

    Desde o início, eu estava convencido de que deveria dialogar com osestudantes.Sevocêmeperguntasseseeutinhaumanoçãosistemáticadoquesignificava o diálogo, eu lhe diria que não. Não construíra nenhumaepistemologia para planejar o que ensinar. Eu tinha intuição. Achava que

  • deveriacomeçarfalandocomeles.Istoé,nãoapenaslhesdaraulas,explicar-lhescoisas,mas,aocontrário,provocá-loscriticamentearespeitodoqueeupróprio dizia. Finalmente, depois de deixar o ensino de segundo grau,comecei a ensinar trabalhadores adultos emRecife. Lá, fortaleci todas essasideias.Essefoiosegundomomentodeminhaformação,entretrabalhadoresecamponesesdeRecife.Cometi erros.Euera tradicional,maseracapazde iralém.

    MeutrabalhoemRecifeera,então,numainstituiçãoparticularembairrosda cidade e em áreas rurais, bem comona universidade também.Trabalheimuito tentando estabelecer a relação entre as escolas e a vida dostrabalhadoresecamponeses.Quantomaisdiscutiacomelesosproblemasdasescolas e das crianças, mais me convencia de que deveria estudar suasexpectativas.Todasessascoisasqueagoraprocuroteorizarnãoocorreramderepenteouacidentalmente.Vieramdeumasériedeexperiências.

    Eupoderiadestacartrêsouquatromomentosdomeudesenvolvimento.Oprimeiro,quandoeraaindaestudante,naminhainfância,parteemRecifee,depois, em Jaboatão. Minha família deixou Recife para sobreviver à criseeconômicadadepressãode1930.Ummomentoimportantedaminhavidafoiaexperiênciada fome.Euprecisavacomermais.Comominha família tinhaperdidostatus econômico, eunão apenas tinha fome, como tinha, também,grandesamigosdaclassemédiaedaclasseoperária.Atravésdaamizadecomos garotos da classe operária, aprendi a diferenciar as classes, observandocomosualinguagem,suaroupa,todaasuavidaexpressavamatotalidadedodistanciamentoentreasclassesnasociedade.Essemomentodaminhavidafoimuito bom.Cada vez queme lembrodele, aprendo alguma coisa.Graças àpobreza,aprendi,atravésdaexperiência,oquequeriadizerclassesocial.

    O segundo momento importante foi na adolescência. Queria muitoestudar, mas não podia porque nossa condição econômica não o permitia.Tentavalerouprestaratençãonasaladeaula,masnãoentendianada,porqueafomeeragrande.Nãoéqueeufosseburro.Nãoerafaltadeinteresse.Minhacondiçãosocialnãopermitiaqueeutivesseumaeducação.Aexperiênciameensinou,maisumavez, a relação entre classe social e conhecimento.Então,devidoaosmeusproblemas,meuirmãomaisvelhocomeçouatrabalharenosajudar,eeucomeceiacomermais.Naquelaépoca,estudavanosegundoou

  • terceiro ano do colegial, sempre com dificuldades. À medida que comiamelhor, comecei a compreendermelhoroque lia.Foi aí,precisamente,quecomeceiaestudargramática,porqueadoravaosproblemasdalinguagem.Euestudava filosofia da linguagem por conta própria, preparando-me, aosdezoito ou dezenove anos, para entender o estruturalismo e a linguística.Comecei,então,aensinargramáticaportuguesa,comamorpelalinguagemepela filosofia, e com a intuição de que deveria compreender as expectativasdosestudantesefazê-losparticipardodiálogo.Emalgummomento,entreosquinze e os 23 anos, descobri o ensino como minha paixão. Naquelemomento,tambémfoi importante,paraaminhavidaafetiva,conhecerElza,queeraminhaaluna,edepoisnoscasarmos.Eueraseuprofessorparticulareaajudavanapreparaçãoparaumconcursoparadiretoradeescola, emcujoprogramahaviaumapartedesintaxe.

    Naquelemomento, fuiconvidadoparatrabalharnuminstituto industrialparticular,emRecife,oquemepermitiuconhecertrabalhadoresadultos.Nainfância,haviatidoamigosqueeramgarotosdaclassetrabalhadora.Conhecernaquele momento trabalhadores adultos foi, para mim, agora como jovemadulto,umaredescobertadoqueeujásabiaantes.Foiumasegundachancedetornar a conhecer o que eu aprendia da vida do trabalho. Nesse novocontexto,comeceiaaprenderliçõesdiferentes,ummomentonovodaminhatransformação. Foi exatamente minha relação com trabalhadores ecamponeses nessa ocasião que me levou à compreensão mais radical daeducação.

    Claro que eles não pretendiamme ensinar o que eu aprendia emmeutrabalhocomeles!Masfoiaíqueaprendi,naminharelaçãocomeles,queeudeveria ser humilde em relação a sua sabedoria. Eles me ensinaram, pelosilêncio, que era absolutamente indispensável que eu unisse meuconhecimento intelectual com sua própria sabedoria. Ensinaram-me, semnada dizer, que eu nunca deveria dicotomizar esses dois conjuntos deconhecimento:omenosrigorosodomuitomaisrigoroso.Ensinaram-me,semnadadizer,quesualinguagemnãoerainferioràminha.Asintaxequeusavamera tão bela quanto aminha, quando eu analisava sua estrutura e a ouvia.Claroqueelesnuncapoderiamdizeroqueosanalistascríticossabemsobrelinguagemeclassesocial,masmeintroduziramnabelezadasualinguagemesabedoria, através do seu testemunho, e não através de relações sobre essas

  • coisas.Muitasvezesalgunsdelesmechamaramaatençãoparaaexploraçãoconcretaquesofriamcomotrabalhadores.

    O povo pode ensinar-nos muitas coisas, mas a maneira de ensinar dodominadoédiferentedamaneiradeensinardodominador.Ostrabalhadoresensinamemsilêncio,porseuexemplo,porsuacondição.Nãoatuamconoscocomo professores. Por isso, nós, enquanto seus professores, devemos estarcompletamente abertos para sermos seus alunos, para aprender pelaexperiênciacomeles,numarelaçãoeducacionalqueé,emsimesma,informal.

    IRA:Foiassimqueaprendi—informalmente,ouvindoeestudandocomosestudantes que não sabiam que eram meus professores. Você aprendeu,naquele momento, enquanto jovem, que a realidade era construídasocialmente, e que poderia ser reconstruída, que nós nos transformamosnaquiloquesomos?

    PAULO:Sim!Éclaro!Esse foiumtipodeconhecimentoqueadquiricomeles de formamuito concreta—nãona universidade,mas lecionando paratrabalhadores.Sevocêestudaciênciassociaisnauniversidade,segundocertaabordagem, aprende que a realidade é uma coisa, uma pesquisa, ou ummodeloestatístico.Outracoisa,porém,éaprendersentindoarealidadecomoalgo de concreto. Para aprender esse sentimento concreto, nadamelhor doque ter trabalhadores como seus professores. Eles vivem a experiência dascoisasquedevemosestudar.

    IRA:Éimportanteaprenderatravésdarealidade,porémmaisdoque“iratéa realidade”, você aceitou seus alunos trabalhadores como professores seus.Isso acrescenta profundidade ao conhecimento pela experiência, que é umaideia comumna educaçãoprogressiva.Oprofessor aprendedos alunos, e oprofessor universitário é informalmente educado pelos trabalhadores. Esseprograma é diferente do currículo tradicional emais democrático do que oensinocentradonoaluno.

    Se entendi bem, sua educação informal entre os trabalhadores desviouvocêdeumacarreirapuramenteacadêmicaemlinguísticaouepistemologia.Qualfoiomomentoseguintedesuatransição?

    PAULO: O momento seguinte foi ao ser convidado pelo governo dopresidente Goulart para coordenar uma campanha de alfabetização de

  • adultos, em 1963. Até então, eu trabalhava na universidade e também naperiferia da cidade, continuandomeu trabalho entre trabalhadores adultos,camponeses, tendo-os comomeus professores aomesmo tempo que comoalunos.Esse foi paramim, emRecife, um longoperíodode quinze anosdebuscasilenciosa,organizandomentalmentealgunsdosprincipaisaspectosquevim a expor em meus livros. Levei aqueles quinze anos para poder dizer:“Vejam!Háalgodiferenteparaensinaraspessoasalereescrever!”Essesanosparecemrepresentarumhiatoemminhavida,quandopesquisavaativamentesobreumapedagogiaquenãoeraumainvençãodegêniomas,aocontrário,algoda experiência comumque indicavauma formade educaçãodiferente,combonsresultadosiniciais.

    Então,em1963,fuiconvidadopeloMinistériodaEducaçãoparaorganizarum programa de alfabetização de adultos, que iniciou um período públiconovo, quando me tornei conhecido no Brasil. Mas esse período foi muitocurto,menosdeumano,porcausadoGolpedeEstado,eeudeixeioBrasil.Omomentoseguintederadicalização,ou transformação,meureconhecimentodequeumeducador é tambémumpolítico, veio logodepoisdoGolpe, emmeuexílionoChile.Oexíliofoioúltimoperíododemeudesenvolvimentonapedagogiaenapolítica,paraaminhacompreensãodapolíticadaeducação.

    Talvez eu pudesse dizer alguma coisa sobre meu desenvolvimento nosanosdeexílio.Oexíliopermitiu-merepensararealidadedoBrasil.Poroutrolado,meuconfronto comapolítica e ahistóriadeoutros lugares,noChile,AméricaLatina,EstadosUnidos,África,Caribe,Genebra,meexpôsamuitascoisasquemelevaramareaprenderoqueeusabia.Éimpossívelquealguémestejaexpostoa tantasculturasepaísesdiferentes,numavidadeexílio, semqueaprendacoisasnovasereaprendavelhascoisas.OdistanciamentodomeupassadonoBrasileomeupresenteemcontextosdiferentes,estimulouminhareflexão.

    IRA: Que tipo de lições você aprendeu no exílio, especialmente sobre oGolpeeaeducação?

    PAULO: O que aprendi, refletindo sobre o Golpe de 1964, foi sobretudoumaliçãosobreoslimitesglobaisdaeducação.ÉclaroqueoGolpenoBrasile,depois,osgolpesnaAméricaLatinamelevavamaperceberclaramenteoslimitesdaeducação.Nãodigoqueantesde1964euestivesseabsolutamente

  • convencidodequeaeducaçãopoderiaseroinstrumentodetransformaçãodasociedade.Mas,detodomodo,nãoestavaseguroaesserespeito.Jácritiqueiminhaingenuidadesobreoslimitesglobaisdoensino,numensaioescritoem1974.4MasoGolpedeEstadocolocouestaquestãocommuitaclareza,emeensinou os limites. Evidentemente, isso não quer dizer que devemos ter,constantemente,golpesparaaprendercoisasboas!(Rindo)

    Masaverdadeéque,após1964,tornei-memaisconscientedoslimitesdaeducação na transformação política da sociedade. Entretanto, através daeducação, podemos de saída compreender o que é o poder na sociedade,iluminando as relações de poder que a classe dominante torna obscuras.Também podemos preparar e participar de programas para mudar asociedade.

    Eudiriaque,antesdoGolpe,atribuíacertospoderesàeducação,que,defato, a ultrapassavam,mas isso nummomento que era demuito otimismo.Comexceção feitaaalgunsgruposdeesquerda,haviaumaquasecertezadeque chegaríamos ao poder.Havia uma grande e generalizada esperança, dequeeuparticipava.Nessaatmosfera,nãoeradifícilensinarosestudantes.Omomento era extraordinário. Os jovens estavam absolutamente motivadoshistoricamente para participar da transformação. Lembro-me de que, umavez, precisávamos de seiscentos estudantes para trabalhar como professoresna alfabetização de adultos numa área do Rio de Janeiro. Pusemos umanúncio no jornal e apareceram 6 mil candidatos! (Ira ri) Foi terrível!Tivemosqueentrevistá-losnumestádioparaselecionarosseiscentos,emfinsde1963.Foiumtempodefantásticamobilizaçãopopular,eaeducaçãofaziapartedela,eraumdeseuselementosprincipais,atéqueveiooGolpe.

    IRA: No final dos anos 1960, nos EUA, a educação também era algo deradicalizador na sociedade. Aqui, Paulo, eu me pergunto se os anos 1960mostraram o poder que a educação tinha de radicalizar a sociedade, ou oslimitesdaeducaçãona transformaçãodasociedade,ouambasascoisas.EmtermosdoGolpede1964, sevocêvissea educaçãodamesma formaqueosmilitaresviramseutrabalhosobrealfabetizaçãodeadultos,poderiadizerqueaeducaçãoéumainadmissívelameaçaàoligarquia,àdesigualdade,aoregimeautoritário. Os militares e seus aliados da classe alta concluíram que aeducação não poderia ser ignorada. Fazia parte da mobilização popular e

  • devia ser reprimida. Isso indica que o papel da educação na transformaçãosocialeramuitosignificativo.

    PAULO:Éinteressante.Hojetalvezeudissessequeprecisamenteporqueaeducaçãodeveriaseraalavancadatransformaçãosocial,elanãopodeser!

    IRA:Vocêquerdizerquenãolhepermitirãoquesejaoquedeveriaser?Asforçasdominantesdasociedadenãopermitirãoqueaeducaçãotransformeaestruturapolítica?

    PAULO: Sim! (Rindo) Se a educação pudesse ter uma conversa com abiologia, por exemplo, e dizer: “Tenho que compreender quão limitadameobrigamaser,dadosos limitespolíticosquenãomepermitemultrapassar”,então seria mais fácil perceber a realidade dos limites sociais! Comecei aentenderanaturezados limitesdaeducaçãoquandoexperimenteiochoquedoGolpedeEstado.DepoisdoGolpe, realmentenasci outra vez, comumanovaconsciênciadapolítica,daeducaçãoedatransformação.Vocêpodeverissonomeuprimeirolivro,Aeducaçãoparaaconsciênciacrítica(1969).Nele,nãofaçoreferênciaànaturezapolíticadaeducação.Issorevelaumpoucodaminha ingenuidade naquele tempo. Mas, depois daquilo, pude aprenderhistória. Todas essas coisas me ensinaram o quanto precisávamos de umapráticapolíticanasociedadequefosseumprocessopermanentenadireçãodaliberdade,oqualincluiriaumaeducaçãoquefosselibertadora.

    IRA: Como podem essas lições auxiliar os professores em suatransformação?

    PAULO:Paraqueosprofessoressetransformem,precisamos,antesdemaisnada,entenderocontextosocialdoensino,eentãoperguntarcomoéqueessecontexto distingue a educação libertadora dos métodos tradicionais.Retomemos aquele importante ponto que se tornoumuito claro paramimdepois doGolpe: a educação não é, por si só, a alavanca da transformaçãorevolucionária.Osistemaescolarfoicriadoporforçaspolíticascujocentrodepoder está distante da sala de aula. Se a educação não é a alavanca datransformação, como é que podemos compreender a educação libertadora?Quandovocêchegaaestadúvida,vocêdevepararerefletirdeoutromodo.

    Aeducaçãolibertadoraé,fundamentalmente,umasituaçãonaqualtantoos professores como os alunos devem ser os que aprendem; devem ser os

  • sujeitoscognitivos,apesardeseremdiferentes.Esteé,paramim,oprimeirotestedaeducaçãolibertadora:quetantoosprofessorescomoosalunossejamagentescríticosdoatodeconhecer.

    Outro ponto é que a educação é um momento no qual você tentaconvencer-sedealgumacoisa, e tenta convencerosoutrosdealgumacoisa.Por exemplo, senão estou convencidodanecessidadedemudar o racismo,nãosereiumeducadorqueconvençaalguém.Independentementedapolíticadoprofessor,cadacursoapontaparaumadireçãodeterminada,nosentidodecertas convicções sobre a sociedade e sobre o conhecimento. A seleção domaterial, a organização do estudo, e as relações do discurso, tudo isso semoldaemtornodasconvicçõesdoprofessor.Issoémuitointeressantedevidoà contradição que enfrentamos na educação libertadora. No momentolibertador, devemos tentar convencer os educandos e, por outro lado,devemosrespeitá-losenãolhesimporideias.

    Atravésdesuabuscaparaconvencerosalunosdeseuprópriotestemunhosobre a liberdade, da sua certeza na transformação da sociedade, você devesalientar, indiretamente,queasraízesdoproblemaestãomuitoalémdasaladeaula,estãonasociedadeenomundo.Exatamenteporisso,ocontextodatransformaçãonãoésóasaladeaula,masencontra-seforadela.Seoprocessofor libertador, os estudantes e os professores empreenderão umatransformaçãoqueincluiocontextoforadasaladeaula.

    Porqueoquerealmenteacontecenumseminário,sevocêéumprofessorengajadonaeducação libertadora,équevocêdáseutestemunhoderespeitopela liberdade,umtestemunhoafavordademocracia,avirtudedeconvivercomasdiferenças e respeitá-las.No contextoda salade aula, vocêdá todasessasprovas, aprovada sua radicalidade,masnuncade sectarismo.Mesmoassim,vocêsabequea lutapolíticaparamudarasociedadenãoacontecesódentrodaescola,apesardeaescolaserpartedalutapelamudança.Assim,emúltima análise, a educação libertadora deve ser compreendida como ummomento,ouumprocesso,ouumapráticaemqueestimulamosaspessoasasemobilizarouaseorganizarparaadquirirpoder.

    IRA: Uma pergunta que surge com frequência é a conexão entre amobilizaçãodentroeforadasaladeaula.Concordoquevincularotrabalhoemsaladeaulacomtransformaçãodasociedadeébásicoparaatransiçãodo

  • professor para osmétodos libertadores, embora a sala de aula e o resto dasociedadepermaneçamáreasdapráticafisicamentedistintas.

    Afirmoamimmesmo,enquantoprofessorderedação,deliteratura,oudemeios de comunicação, que vou descobrir quanto de transição é possívelnumadeterminadaclasse,dependendodasituaçãoemqueeueosalunosnosencontramos.Nãopossosaberdeantemãocomoobteremosumaconsciênciacrítica através do curso. Digo uma coisa muito norte-americana sobre osresultados: há transformações de todo tamanho.Minhameta é a mudançasocial, mas trabalho no sentido de provocar as transformações possíveisdentrodecadaclasse.Frequentemente,omáximoquepossoalcançaremumcursoéummomentodetransiçãodapassividade,ouingenuidade,paraumacerta percepção crítica. Algumas vezes, quase não consigo nada contra odomínioqueaculturademassatemsobreasexpectativasdosmeusalunos.Seosestudantesseenvolvemunscomosoutrosemumdiálogocrítico,encaroissocomoumatodemobilização,porquedecidiramtornar-sesereshumanosque investigam juntos sua própria realidade. Se examinam criticamentealguns textos ou artigos que apresento, vejo nisso um sinal de que a suaresistência em relação à cultura crítica está diminuindo, e até que a suaimersãonaculturademassaestáseenfraquecendo.Seestudamseriamenteoracismo,ouo sexismo,ou a corrida armamentista, percebo aíumpontodepartida da transformação que pode desenvolver-se, a longo prazo, em suaopçãopelamudança social.Refletindo sobreoqueuma classepode atingir,vejoumagradaçãodemomentosdetransformação.

    PAULO:Sim,hádiferentesníveisdetransformação.

    IRA: Busco o desenvolvimento gradual do diálogo em classe e percebo amudança dos estudantes diante da pesquisa crítica. Observo as interaçõessociais,paraverseasatitudesingênuasoufatalistasestãomudando.Seráquediscutem eles a faculdade, o transporte, o trabalho ou a vida familiar comreconhecimento distinto? Tenho refletido longamente sobre os canais pelosquais qualquer grupo pode demonstrar suas transformações. Se o professornãopensaremtermosdegradualidade,podecairnaciladaimobilizadoradedizerqueoutudoémudadodeumasóvez,ounãovaleapenatentarmudarnada.Aovisarapenasasgrandesmudanças,osprofessorespodemperderocontatocomopotencialtransformativodecadaatividade.

  • PAULO:Suasconsideraçõesmelevamaoutrotipodereflexão.Oeducadorlibertador temqueestaratentoparao fatodequea transformaçãonãoé sóumaquestãodemétodosetécnicas.Seaeducaçãolibertadorafossesomenteuma questão de métodos, então o problema seria mudar algumasmetodologias tradicionais por outras mais modernas. Mas não é esse oproblema. A questão é o estabelecimento de uma relação diferente com oconhecimentoecomasociedade.

    Acríticaqueaeducaçãolibertadoratemparaoferecerenfaticamentenãoéacríticaqueterminanosubsistemadaeducação.Pelocontrário,acríticanasaladeaulalibertadoravaialémdosubsistemadaeducaçãoesetornaacríticada sociedade. Não há dúvida de que o movimento da Escola Nova, omovimento progressivo, ou da Escola Moderna, deram muito boascontribuiçõesparaoprocessoeducacional,masacríticadaEscolaNovaficou,emgeral,noníveldaescolaenãoseestendeuàsociedadecomoumtodo.

    Umadascaracterísticasdeumaposiçãoséria,naeducaçãolibertadora,é,paramim,oestímuloàcríticaqueultrapassaosmurosdaescola. Istoé,emúltimaanálise, aocriticar as escolas tradicionais,oquedevemoscriticar éosistemacapitalistaquemodelouessasescolas.Aeducaçãonãocriouasbaseseconômicas da sociedade. Não obstante, sendo modelada pela economia, aeducaçãopode transformar-senuma forçaque influencia a vida econômica.Em termos dos limites da educação libertadora, devemos compreender opróprio subsistema da educação. Isto é, como se constitui ou se constrói aeducação sistemática no quadro geral do desenvolvimento capitalista?Precisamos entender a natureza sistemática da educação para atuareficientementedentrodoespaçodasescolas.

    Sabemosquenãoéaeducaçãoquemodelaasociedade,mas,aocontrário,asociedadeéquemodelaaeducaçãosegundoosinteressesdosquedetêmopoder. Se é assim, não podemos esperar que a educação seja a alavanca datransformação destes últimos. Seria ingênuo demais pedir à classe dirigentenopoderquepusesseempráticaumtipodeeducaçãoquepodeatuarcontraela.Sesepermitisseàeducaçãodesenvolver-sesemfiscalizaçãopolítica, issotraria infindáveisproblemasparaosqueestãonopoder.Masasautoridadesdominantesnãopermitemqueissoaconteçaefiscalizamaeducação.

  • Nosanos1970,tivemosdiversasteoriastentandocompreenderaeducaçãocomo parte da reprodução da sociedade, tema que Henry Giroux estudoumuito bem.5 O fato é que as relações entre o subsistema da educação e osistema global da sociedade não sãomecânicas. São relações históricas. Sãodialéticas e contraditórias. Isso significa que, do ponto de vista da classedirigente, das pessoas que estão no poder, a tarefa principal da educaçãosistemáticaéreproduziraideologiadominante.

    Dialeticamente,há,noentanto,outratarefaasercumprida,qualsejaadedenunciaredeatuarcon