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–PAULOFREIRE

PEDAGOGIADOOPRIMIDO

PAZETERRA

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11-03203

Copyright©HerdeirosPauloFreire

Direitos de edição da obra em língua portuguesa adquiridos pela Editora Paz eTerra. Todos os direitosreservados.Nenhumapartedestaobrapode ser apropriadae estocadaemsistemadebancodedadosouprocessosimilar,emqualquerformaoumeio,sejaeletrônico,defotocópia,gravaçãoetc.,semapermissãododetentordocopirraite.

EDITORAPAZETERRALTDARuadoTriunfo,177—StaIfigênia—SãoPauloTel:(011)3337-8399—Fax:(011)3223-6290http://www.pazeterra.com.br

TextorevistopelonovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa.

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAFONTESINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

Freire,Paulo,1921-1997Pedagogiadooprimido[recursoeletrônico]/PauloFreire.-1.ed.-RiodeJaneiro

:PazeTerra,2013.recursodigital

BibliografiaFormato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebIncluiíndiceISBN978-85-7753-228-5(recursoeletrônico)

1.Educação-Filosofia.2.Sociologiaeducacional.3.Livroseletrônicos.I.Título.

CDD-370.1

Índicesparacatálogosistemático:1.Freire,Paulo:Pedagogiadooprimido:

Educação370.1

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AOSESFARRAPADOSDOMUNDOEAOSQUENELESSEDESCOBREME,ASSIMDESCOBRINDO-

SE,COMELESSOFREM,MAS,SOBRETUDO,COMELESLUTAM.

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Sumário

PREFÁCIO:APRENDERADIZERASUAPALAVRA

PROFESSORERNANIMARIAFIORI

PRIMEIRASPALAVRAS

1Justificativadapedagogiadooprimido

Acontradiçãoopressores-oprimidos.Suasuperação

Asituaçãoconcretadeopressãoeosopressores

Asituaçãoconcretadeopressãoeosoprimidos

Ninguémlibertaninguém,ninguémselibertasozinho:oshomensselibertamemcomunhão

2Aconcepção“bancária”daeducaçãocomoinstrumentodaopressão.Seuspressupostos,suacrítica

Aconcepçãoproblematizadoraelibertadoradaeducação.Seuspressupostos

Aconcepção“bancária”eacontradiçãoeducador-educando

Ninguémeducaninguém,ninguémeducaasimesmo,oshomensseeducamentresi,mediatizadospelomundo

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Ohomemcomoumserinconcluso,conscientedesuainconclusão,eseupermanentemovimentodebuscadosermais

3Adialogicidade:essênciadaeducaçãocomopráticadaliberdade

Educaçãodialógicaediálogo

Odiálogocomeçanabuscadoconteúdoprogramático

Asrelaçõeshomens-mundo,ostemasgeradoreseoconteúdoprogramáticodestaeducação

Ainvestigaçãodostemasgeradoresesuametodologia

Asignificaçãoconscientizadoradainvestigaçãodostemasgeradores.Osváriosmomentosdainvestigação

4Ateoriadaaçãoantidialógica

Ateoriadaaçãoantidialógicaesuascaracterísticas:aconquista,dividirparamanteraopressão,amanipulaçãoeainvasãocultural

Ateoriadaaçãodialógicaesuascaracterísticas:aco-laboração,aunião,aorganizaçãoeasíntesecultural

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Prefácio

APRENDERADIZERASUAPALAVRA

PAULOFREIREÉUMPENSADORcomprometidocomavida:nãopensaideias,pensaa existência. É também educador: existencia seu pensamento numa pedagogiaem que o esforço totalizador da práxis humana busca, na interioridade desta,retotalizar-se como “prática da liberdade”. Em sociedades cuja dinâmicaestrutural conduz à dominação de consciências, “a pedagogia dominante é apedagogia das classes dominantes”. Os métodos da opressão não podem,contraditoriamente, servir à libertação do oprimido. Nessas sociedades,governadaspelosinteressesdegrupos,classesenaçõesdominantes,a“educaçãocomo prática da liberdade” postula, necessariamente, uma “pedagogia dooprimido”.Nãopedagogiaparaele,masdele.Oscaminhosda liberaçãosãoosdooprimidoque se libera: elenãoé coisaque se resgata, é sujeitoque sedeveautoconfigurar responsavelmente. A educação liberadora é incompatível comumapedagogiaque, demaneira conscienteoumistificada, tem sidopráticadedominação. A prática da liberdade só encontrará adequada expressão numapedagogiaemqueooprimidotenhacondiçõesde,reflexivamente,descobrir-seeconquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica. Uma culturatecidacomatramadadominação,pormaisgenerososquesejamospropósitosdeseuseducadores,ébarreiracerradaàspossibilidadeseducacionaisdosquesesituam nas subculturas dos proletários e marginais. Ao contrário, uma novapedagogiaenraizadanavidadessassubculturas,apartirdelasecomelas,seráumcontínuo retomar reflexivo de seus próprios caminhos de liberação; não será

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simples reflexo, senão reflexiva criação e recriação, um ir adiante nessescaminhos:“método”,“práticadeliberdade”que,porsertal,estáintrinsecamenteincapacitadaparao exercíciodadominação.Apedagogiadooprimidoé,pois,liberadora de ambos, do oprimido e do opressor.Hegelianamente, diríamos: averdadedoopressorresidenaconsciênciadooprimido.

Assimapreendemosaideia-fontededoislivros1emquePauloFreiretraduz,emformadelúcidosabersociopedagógico,suagrandeeapaixonanteexperiênciadeeducador.Experiênciaesaberquesedialetam,densificando-se,alongando-see dando, com nitidez cada vezmaior, o contorno e o relevo de sua profundaintuição central: a do educador de vocação humanista que, ao inventar suastécnicaspedagógicas,redescobreatravésdelasoprocessohistóricoemqueeporque se constitui a consciência humana. Ou, aproveitando uma sugestão deOrtega,oprocessoemqueavidacomobiologiapassaaservidacomobiografia.

Talvezsejaesteosentidomaisexatodaalfabetização:aprenderaescreverasua vida como autor e como testemunha de sua história, isto é, biografar-se,existenciar-se, historicizar-se. Por isto, a pedagogia de Paulo Freire, sendométododealfabetização, temcomo ideiaanimadora todaaamplitudehumanada“educaçãocomopráticadaliberdade”,oque,emregimededominação,sósepodeproduziredesenvolvernadinâmicadeuma“pedagogiadooprimido”.

As técnicasdo referidométodoacabampor ser a estilizaçãopedagógicadoprocesso em que o homem constitui e conquista, historicamente, sua própriaforma: a pedagogia faz-se antropologia. Esta conquista não se pode compararcom o crescimento espontâneo dos vegetais: participa da ambiguidade dacondiçãohumanaedialetiza-senascontradiçõesdaaventurahistórica,projeta-se na contínua recriação de um mundo que, ao mesmo tempo, obstaculiza eprovoca o esforço de superação liberadora da consciência humana. Aantropologiaacabaporexigirecomandarumapolítica.

É o que pretendemos insinuar em três relances. Primeiro: o movimentointerno que unifica os elementos do método e os excede em amplitude dehumanismo pedagógico. Segundo: esse movimento reproduz e manifesta oprocessohistóricoemqueohomemsereconhece.Terceiro:osrumospossíveisdesseprocessosãopossíveisprojetose,porconseguinte,aconscientizaçãonãoéapenasconhecimentooureconhecimento,masopção,decisão,compromisso.

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As técnicas do método de alfabetização de Paulo Freire, embora em sivaliosas, tomadas isoladamente não dizem nada do método. Também não seajuntaram ecleticamente segundo um critério de simples eficiência técnico-pedagógica. Inventadas ou reinventadas numa só direção de pensamento,resultam da unidade que transparece na linha axial do método e assinala osentidoeoalcancedeseuhumanismo:alfabetizaréconscientizar.

Ummínimodepalavras,comamáximapolivalênciafonêmica,éopontodepartida para a conquista do universo vocabular. Essas palavras, oriundas doprópriouniversovocabulardoalfabetizando,umaveztransfiguradaspelacrítica,aeleretornamemaçãotransformadoradomundo.Comosaemdeseuuniversoecomoaelevoltam?

Uma pesquisa prévia investiga o universo das palavras faladas, no meiocultural do alfabetizando. Daí são extraídos os vocábulos de mais ricaspossibilidadesfonêmicasedemaiorcargasemântica—osquenãosópermitemrápido domínio do universo da palavra escrita como, também, o mais eficazengajamento de quem a pronuncia, com a força pragmática que instaura etransformaomundohumano.

Estas palavras são chamadas geradoras porque, através da combinação deseus elementos básicos, propiciam a formação de outras. Como palavras douniverso vocabular do alfabetizando, são significações constituídas oureconstituídas em comportamentos seus, que configuram situações existenciaisou,dentrodelas,seconfiguram.Taissignificaçõessãoplasticamentecodificadasemquadros,slides,filminasetc.,representativosdasrespectivassituações,que,daexperiência vivida do alfabetizando, passam para o mundo dos objetos. Oalfabetizando ganha distância para ver sua experiência: “admirar”. Nesseinstante,começaadescodificar.

A descodificação é análise e consequente reconstituição da situação vivida:reflexo, reflexão e abertura de possibilidades concretas de ultrapassagem.Mediadapelaobjetivação,aimediatezdaexperiêncialucidifica-se,interiormente,em reflexãode simesma e crítica animadoradenovosprojetos existenciais.Oqueantesera fechamento,poucoapoucosevaiabrindo;aconsciênciapassaaescutar os apelos que a convocam sempre mais além de seus limites: faz-secrítica.

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Aoobjetivarseumundo,oalfabetizandonelereencontra-secomosoutrosenosoutros,companheirosdeseupequeno“círculodecultura”.Encontram-seereencontram-se todos no mesmo mundo comum e, da coincidência dasintenções que o objetivam, ex-surge a comunicação, o diálogo que criticiza epromoveosparticipantesdocírculo.Assim,juntos,re-criamcriticamenteoseumundo:oqueantesosabsorvia,agorapodemveraorevés.Nocírculodecultura,a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidade de consciências”; não háprofessor, há um coordenador, que tem por função dar as informaçõessolicitadas pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis àdinâmica do grupo, reduzindo aomínimo sua intervenção direta no curso dodiálogo.

A “codificação” e a “descodificação” permitem ao alfabetizando integrar asignificaçãodasrespectivaspalavrasgeradorasemseucontextoexistencial—elea redescobre nummundo expressado em seu comportamento. Conscientiza apalavra como significação que se constitui em sua intenção significante,coincidentecomintençõesdeoutrosquesignificamomesmomundo.Este—ofundo—éolugardoencontrodecadaumconsigomesmoeosdemais.

Aessaalturadoprocesso,arespectivapalavrageradorapodeser,elamesma,objetivadacomocombinaçãodefonemassuscetíveisderepresentaçãográfica.Oalfabetizando já sabe que a língua também é cultura, que o homem é sujeito:sente-se desafiado a desvelar os segredos de sua constituição, a partir daconstrução de suas palavras — também construção de seu mundo. Para esseefeito, como também para a descodificação das situações significadas pelaspalavras geradoras, a que nos referimos, é de particular interesse a etapapreliminar dométodo, quenãohavíamos aindamencionado.Nessa etapa, sãodescodificadas pelo grupo várias unidades básicas, codificações simples esugestivas, que, dialogicamente descodificadas, vão redescobrindo o homemcomosujeitodetodooprocessohistóricodaculturae,obviamente,tambémdacultura letrada. O que o homem fala e escreve e como fala e escreve, tudo éexpressãoobjetivadeseuespírito.Poristo,podeoespíritorefazerofeito,nesteredescobrindooprocessoqueofazerefaz.

Assim, ao objetivar uma palavra geradora — íntegra, primeiro, e depoisdecomposta em seus elementos silábicos—, o alfabetizando já está motivado

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paranãosóbuscaromecanismodesuarecomposiçãoedacomposiçãodenovaspalavras,mastambémparaescreverseupensamento.Apalavrageradora,aindaque objetivada em sua condição de simples vocábulo escrito, não pode maislibertar-se de seu dinamismo semântico e de sua força pragmática, de que oalfabetizandojásefizeraconscientenarepetidadescodificaçãocrítica.

Nãosedeixara,pois,aprisionarnosmecanismosdecomposiçãovocabular.Ebuscará novas palavras, não para colecioná-las namemória, mas para dizer eescrever o seu mundo, o seu pensamento, para contar sua história. Pensar omundo é julgá-lo; e a experiência dos círculos de cultura mostra que oalfabetizando, ao começar a escrever livremente, não copia palavras, masexpressajuízos.Estes,decertamaneira,tentamreproduziromovimentodesuaprópria experiência; o alfabetizando, ao dar-lhes forma escrita, vai assumindo,gradualmente,aconsciênciadetestemunhadeumahistóriadequesesabeautor.Namedidaemqueseapercebecomotestemunhadesuahistória,suaconsciênciasefazreflexivamentemaisresponsáveldessahistória.

O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe adesenvolveracapacidadedepensá-lassegundoasexigênciaslógicasdodiscursoabstrato; simplesmente coloca o alfabetizando em condições de poder re-existenciarcriticamenteaspalavrasdeseumundo,para,naoportunidadedevida,saberepoderdizerasuapalavra.

Eisporque,emumaculturaletrada,aprendealereescrever,masaintençãoúltimacomqueofazvaialémdaalfabetização.Atravessaeanimatodaaempresaeducativa, que não é senão aprendizagem permanente desse esforço detotalização — jamais acabada — através do qual o homem tenta abraçar-seinteiramente na plenitude de sua forma. É a própria dialética em que seexistenciaohomem.Mas,paraisto,paraassumirresponsavelmentesuamissãode homem, há de aprender a dizer a sua palavra, pois, com ela, constitui a simesmoeacomunhãohumanaemqueseconstitui;instauraomundoemquesehumaniza,humanizando-o.

Com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, ohomem assume conscientemente sua essencial condição humana. E ométodoque lhe propicia essa aprendizagem comensura-se ao homem todo, e seus

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princípiosfundamtodapedagogia,desdeaalfabetizaçãoatéosmaisaltosníveisdolaboruniversitário.

Aeducaçãoreproduz,assim,emseuplanopróprio,aestruturadinâmicaeomovimento dialético do processo histórico de produção do homem. Para ohomem,produzir-seéconquistar-se,conquistarsuaformahumana.Apedagogiaéantropologia.

Tudofoiresumidoporumamulhersimplesdopovo,numcírculodecultura,diante de uma situação representada emquadro: “Gosto de discutir sobre istoporquevivoassim.Enquantovivo,porém,nãovejo.Agora sim,observocomovivo.”

Aconsciênciaéessamisteriosaecontraditóriacapacidadequetemohomemdedistanciar-sedascoisasparafazê-laspresentes,imediatamentepresentes.Éapresençaquetemopoderdepresentificar:nãoérepresentação,mascondiçãodeapresentação. É um comportar-se do homem frente ao meio que o envolve,transformando-oemmundohumano.Absorvidopelomeionatural,respondeaestímulos; e o êxito de suas respostas mede-se por sua maior ou menoradaptação: naturaliza-se. Despegado de seu meio vital, por virtude daconsciência, enfrenta as coisas objetivando-as, e enfrenta-se com elas, quedeixamdesersimplesestímulos,parasetornaremdesafios.Omeioenvolventenão o fecha, limita-o — o que supõe a consciência do além-limite. Por isto,porqueseprojetaintencionalmentealémdolimitequetentaencerrá-la,podeaconsciênciadesprender-sedele,liberar-seeobjetivar,transubstanciandoomeiofísicoemmundohumano.

A“hominização”nãoéadaptação:ohomemnãosenaturaliza,humanizaomundo.A“hominização”nãoésóprocessobiológico,mastambémhistória.

A intencionalidade da consciência humana nãomorre na espessura de umenvoltório sem reverso.Ela temdimensão sempremaiordoqueos horizontesqueacircundam.Perpassaalémdascoisasquealcançae,porqueassobrepassa,podeenfrentá-lascomoobjetos.

Aobjetividadedosobjetoséconstituídanaintencionalidadedaconsciência,mas,paradoxalmente,estaatinge,noobjetivado,oqueaindanãoseobjetivou:oobjetimável.Portanto,oobjetonãoésóobjeto,é,aomesmotempo,problema:oqueestáemfrente,comoobstáculoe interrogação.Nadialéticaconstituinteda

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consciência, em que esta se perfaz na medida em que faz o mundo, ainterrogação nunca é pergunta exclusivamente especulativa: no processo detotalização da consciência é sempre provocação que a incita a totalizar-se. Omundo é espetáculo, mas sobretudo convocação. E, como a consciência seconstituinecessariamentecomoconsciênciadomundo,elaé,pois,simultâneaeimplicadamente,apresentaçãoeelaboraçãodomundo.

A intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuarindefinidamente seus horizontes e, dentro deles, ultrapassar osmomentos e assituações,que tentamretê-laeenclausurá-la.Libertapela forçade seu impulsotranscendentalizante, pode volver reflexivamente sobre tais situações emomentos,parajulgá-losejulgar-se.Poristoécapazdecrítica.Areflexividadeéa raiz da objetivação. Se a consciência se distancia do mundo e o objetiva, éporque sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva. Desde o primeiromomento de sua constituição, ao objetivar seu mundo originário, já évirtualmentereflexiva.Épresençaedistânciadomundo:adistânciaéacondiçãoda presença. Ao distanciar-se do mundo, constituindo-se na objetividade,surpreende-se,ela,emsuasubjetividade.Nessalinhadoentendimento,reflexãoemundo, subjetividade e objetividade não se separam: opõem-se, implicando-sedialeticamente. A verdadeira reflexão crítica origina-se e dialetiza-se nainterioridadeda“práxis”constitutivadomundohumano—étambém“práxis”.

Distanciando-sedeseumundovivido,problematizando-o,“descodificando-o”criticamente,nomesmomovimentodaconsciênciaohomemse redescobrecomo sujeito instaurador desse mundo de sua experiência. Testemunhandoobjetivamente sua história, mesmo a consciência ingênua acaba por despertarcriticamente,paraidentificar-secomopersonagemqueseignoravaeéchamadaa assumir seu papel. A consciência do mundo e a consciência de si crescemjuntaseemrazãodireta;umaéaluzinteriordaoutra,umacomprometidacomaoutra.Evidencia-se a intrínseca correlação entre conquistar-se, fazer-semais simesmo,econquistaromundo,fazê-lomaishumano.PauloFreirenãoinventouo homem; apenas pensa e pratica ummétodo pedagógico que procura dar aohomem a oportunidade de re-descobrir-se através da retomada reflexiva dopróprioprocessoemquevaielesedescobrindo,manifestandoeconfigurando—“métododeconscientização”.

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Mas ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência seconstituicomoconsciênciadomundo.Secadaconsciênciativesseoseumundo,asconsciênciassedesencontrariamemmundosdiferenteseseparados—seriammônadas incomunicáveis. As consciências não se encontram no vazio de simesmas,poisaconsciênciaésempre,radicalmente,consciênciadomundo.Seulugar de encontro necessário é o mundo, que, se não for originariamentecomum, não permitirá mais a comunicação. Cada um terá seus próprioscaminhosde entradanessemundocomum,mas a convergênciadas intenções,queosignificam,éacondiçãodepossibilidadedasdivergênciasdosque,nele,secomunicam.Anãoserassim,oscaminhosseriamparaleloseintransponíveis.Asconsciências não são comunicantes porque se comunicam;mas comunicam-seporque comunicantes. A intersubjetivação das consciências é tão origináriaquantosuamundanidadeousuasubjetividade.Radicalizando,poderíamosdizer,em linguagem não mais fenomenológica, que a intersubjetivação dasconsciências é a progressiva conscientização, no homem, do “parentescoontológico”dosseresnoser.Éomesmomistérioquenosinvadeenosenvolve,encobrindo-seedescobrindo-senaambiguidadedonossocorpoconsciente.

Na constituição da consciência, mundo e consciência se põem comoconsciência do mundo ou mundo consciente e, ao mesmo tempo, se opõemcomo consciência de si e consciência do mundo. Na intersubjetivação, asconsciênciastambémsepõemcomoconsciênciasdeumcertomundocomume,nesse mundo, se opõem como consciência de si e consciência do outro.Comunicamo-nosnaoposição,queéaúnicaviadeencontroparaconsciênciasqueseconstituemnamundanidadeenaintersubjetividade.

Omonólogo,enquantoisolamento,éanegaçãodohomem;éfechamentodaconsciência,umavezque consciência é abertura.Na solidão,umaconsciência,que é consciência do mundo, adentra-se em si, adentrando-se mais em seumundo, que, reflexivamente, faz-se mais lúcida mediação da imediatezintersubjetivadasconsciências.Asolidão—nãooisolamento—sósemantémenquantorenovaerevigoraascondiçõesdodiálogo.

Odiálogofenomenizaehistoricizaaessencialintersubjetividadehumana;eleérelacionale,nele,ninguémteminiciativaabsoluta.Osdialogantes“admiram”ummesmomundo;afastam-sedeleecomelecoincidem;nelepõem-seeopõem-

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se.Vimosque,assim,aconsciênciaseexistenciaebuscaperfazer-se.Odiálogonãoéumprodutohistórico,éaprópriahistoricização.Éele,pois,omovimentoconstitutivo da consciência que, abrindo-se para a infinitude, venceintencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, buscareencontrar-se além de si mesma. Consciência do mundo, busca-se ela a simesmanummundoqueécomum;porqueécomumessemundo,buscar-seasimesmaécomunicar-secomooutro.Oisolamentonãopersonalizaporquenãosocializa.Intersubjetivando-semais,maisdensidadesubjetivaganhaosujeito.

Aconsciênciaeomundonãoseestruturamsincronicamentenumaestáticaconsciência do mundo: visão e espetáculo. Essa estrutura funcionaliza-sediacronicamentenumahistória.Aconsciênciahumanabuscacomensurar-seasimesmanummovimento que transgride, continuamente, todos os seus limites.Totalizando-sealémdesimesma,nuncachegaatotalizar-se inteiramente,poissempre se transcendea simesma.Nãoé a consciênciavaziadomundoque sedinamiza,nemomundoésimplesprojeçãodomovimentoqueaconstituicomoconsciência humana. A consciência é consciência do mundo: o mundo e aconsciência, juntos,comoconsciênciadomundo,constituem-sedialeticamentenummesmomovimento—numamesmahistória.Emoutrostermos:objetivaromundo é historicizá-lo, humanizá-lo. Então, o mundo da consciência não écriação, mas, sim, elaboração humana. Esse mundo não se constitui nacontemplação,masnotrabalho.

Naobjetivação transparece,pois, a responsabilidadehistóricado sujeito: aoreproduzi-la criticamente, o homem se reconhece como sujeito que elabora omundo; nele, no mundo, efetua-se a necessária mediação doautorreconhecimentoqueopersonalizaeoconscientizacomoautorresponsávelde sua própria história. O mundo conscientiza-se como projeto humano: ohomem faz-se livre. O que pareceria ser apenas visão é, efetivamente,“provocação”;oespetáculo,emverdade,écompromisso.

Se omundo é omundo das consciências intersubjetivadas, sua elaboraçãoforçosamente há de ser colaboração. Omundo comummediatiza a origináriaintersubjetivação das consciências: o autorreconhecimento plenifica-se noreconhecimento do outro; no isolamento, a consciência modifica-se. Aintersubjetividade, em que as consciências se enfrentam, dialetizam-se,

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promovem-se, é a tessituraúltimadoprocessohistóricodehumanização.Estánasorigensda“hominização”eanunciaasexigênciasúltimasdahumanização.Reencontrar-se como sujeito, e liberar-se, é todo o sentido do compromissohistórico.Jáaantropologiasugerequea“práxis”,sehumanaehumanizadora,éa“práticadaliberdade”.

O círculo de cultura — no método Paulo Freire — re-vive a vida emprofundidade crítica. A consciência emerge do mundo vivido, objetiva-o,problematiza-o, compreende-o como projeto humano. Em diálogo circular,intersubjetivando-semaisemais,vaiassumindo,criticamente,odinamismodesua subjetividade criadora. Todos juntos, em círculo, e em colaboração, re-elaboramomundoe,aoreconstruí-lo,apercebem-sedeque,emboraconstruídotambémporeles,essemundonãoéverdadeiramenteparaeles.Humanizadoporeles, esse mundo não os humaniza. As mãos que o fazem não são as que odominam.Destinadoaliberá-loscomosujeitos,escraviza-oscomoobjetos.

Reflexivamente, retomam o movimento da consciência que os constituisujeitos, desbordando a estreiteza das situações vividas; resumem o impulsodialético da totalização histórica. Presentificados como objetos no mundo daconsciênciadominadora,nãosedavamcontadequetambémerampresençaquepresentifica um mundo que não é de ninguém, porque originariamente é detodos. Restituída em sua amplitude, a consciência abre-se para a “prática daliberdade”: oprocessode “hominização”, desde suasobscurasprofundezas, vaiadquirindoatranslucidezdeumprojetodehumanização.Nãoécrescimento,éhistória:ásperoesforçodesuperaçãodialéticadascontradiçõesqueentretecemodrama existencial da finitude humana.Ométodo de conscientização de PauloFreire refaz criticamente esse processo dialético de historicização. Como todobom método pedagógico, não pretende ser método de ensino, mas sim deaprendizagem; com ele, o homem não cria sua possibilidade de ser livre,masaprendeaefetivá-laeexercê-la.Apedagogiaaceitaa sugestãodaantropologia:impõe-sepensareviver“aeducaçãocomopráticadaliberdade”.

Não foi por acaso que esse método de conscientização originou-se comométododealfabetização.Aculturaletradanãoéinvençãocaprichosadoespírito;surgenomomentoemqueacultura,comoreflexãodesimesma,conseguedizer-se a si mesma, de maneira definida, clara e permanente. A cultura marca o

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aparecimento do homem no largo processo da evolução cósmica. A essênciahumana existencia-se, autodesvelando-se como história. Mas essa consciênciahistórica, objetivando-se reflexivamente, surpreende-se a si mesma, passa adizer-se, torna-se consciência historiadora: o homem é levado a escrever suahistória.Alfabetizar-seéaprendera leressapalavraescritaemqueaculturasedize,dizendo-secriticamente,deixadeserrepetiçãointemporaldoquepassou,para temporalizar-se, para conscientizar sua temporalidade constituinte, que éanúncioepromessadoquehádevir.Odestino,criticamente,recupera-secomoprojeto.

Nessesentido,alfabetizar-senãoéaprenderarepetirpalavras,masadizerasua palavra, criadora de cultura. A cultura letrada conscientiza a cultura: aconsciênciahistoriadora automanifesta à consciência sua condição essencialdeconsciência histórica. Ensinar a ler as palavras ditas e ditadas é uma formademistificar as consciências, despersonalizando-as na repetição— é a técnica dapropagandamassificadora.Aprenderadizerasuapalavraétodaapedagogia,etambémtodaaantropologia.

A “hominização” opera-se no momento em que a consciência ganha adimensãoda transcendentalidade.Nesse instante, liberadadomeioenvolvente,despega-se dele, enfrenta-o, num comportamento que a constitui comoconsciênciadomundo.Nessecomportamento,ascoisassãoobjetivadas, istoé,significadas e expressadas: o homem as diz. A palavra instaura o mundo dohomem.Apalavra,comocomportamentohumano,significantedomundo,nãodesignaapenasascoisas,transforma-as;nãoésópensamento,é“práxis”.Assimconsiderada,asemânticaéexistênciaeapalavravivaplenifica-senotrabalho.

Expressar-se, expressando o mundo, implica o comunicar-se. A partir daintersubjetividade originária, poderíamos dizer que a palavra, mais queinstrumento,éorigemdacomunicação—apalavraéessencialmentediálogo.Apalavraabreaconsciênciaparaomundocomumdasconsciências,emdiálogo,portanto.Nessalinhadeentendimento,aexpressãodomundoconsubstancia-seem elaboraçãodomundo e a comunicação em colaboração. E o homem só seexpressa convenientemente quando colabora com todos na construção domundo comum— só se humaniza no processo dialógico de humanização domundo. A palavra, porque lugar do encontro e do reconhecimento das

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consciências, tambémo édo reencontro edo reconhecimentode simesmo.Apalavra pessoal, criadora, pois a palavra repetida émonólogo das consciênciasque perderam sua identidade, isoladas, imersas na multidão anônima esubmissas a umdestino que lhes é imposto e quenão são capazes de superar,comadecisãodeumprojeto.

É verdade: nem a cultura iletrada é a negação do homem, nem a culturaletrada chegou a ser sua plenitude. Não há homem absolutamente inculto: ohomem “hominiza-se” expressando, dizendo o seu mundo. Aí começam ahistória e a cultura. Mas o primeiro instante da palavra é terrivelmenteperturbador:presentificaomundoàconsciênciae,aomesmotempo,distancia-o. O enfrentamento com o mundo é ameaça e risco. O homem substitui oenvoltório protetor domeio natural por ummundo que o provoca e desafia.Num comportamento ambíguo, enquanto ensaia o domínio técnico dessemundo, tenta voltar a seu seio, imergir nele, enleando-se na indistinção entrepalavraecoisa.Apalavra,primitivamente,émito. Interioraomitoecondiçãosua,ologoshumanovaiconquistandoprimazia,comainteligênciadasmãosquetransformamomundo.Osprimórdiosdessahistóriaaindasãomitologia:omitoéobjetivadopelapalavraqueodiz.Anarraçãodomito,noentanto,objetivandoo mundomítico e entrevendo o seu conteúdo racional, acaba por devolver àconsciência a autonomia da palavra, distinta das coisas que ela significa etransforma. Nessa ambiguidade com que a consciência faz o seu mundo,afastando-odesi,nodistanciamentoobjetivantequeopresentificacomomundoconsciente, a palavra adquire a autonomia que a torna disponível para serrecriadanaexpressãoescrita.Emboranãotenhasidoumprodutoarbitráriodoespírito inventivo do homem, a cultura letrada é um epifenômeno da cultura,que, atualizando sua reflexividade virtual, encontra na palavra escrita umamaneira mais firme e definida de dizer-se, isto é, de existenciar-sediscursivamente na práxis histórica. Podemos conceber a ultrapassagem dacultura letrada: o que, em todo caso, ficará é o sentido profundo que elamanifesta: escrever enão conservar e repetir apalavradita,masdizê-la comaforça reflexiva que sua autonomia lhe dá — a força ingênita que a fazinstauradoradomundodaconsciência,criadoradacultura.

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ComométododePauloFreire,osalfabetizandospartemdealgumaspoucaspalavras que lhes servem para gerar seu universo vocabular. Antes, porém,conscientizamopodercriadordessaspalavras:sãoelasquegeramoseumundo.São significações que se constituem em comportamentos seus; portanto,significações do mundo, mas suas também. Assim, ao visualizarem a palavraescrita,emsuaambíguaautonomia,jáestãoconscientesdadignidadedequeelaéportadora—aalfabetizaçãonãoéumjogodepalavras,éaconsciênciareflexivada cultura, a reconstrução crítica do mundo humano, a abertura de novoscaminhos, oprojetohistóricodeummundo comum, abravuradedizer a suapalavra.

A alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender adizerasuapalavra.Eapalavrahumanaimitaapalavradivina:écriadora.

Apalavraéentendida,aqui,comopalavraeação;nãoéotermoqueassinalaarbitrariamente um pensamento que, por sua vez, discorre separado daexistência.Ésignificaçãoproduzidapelapráxis,palavracujadiscursividade fluida historicidade — palavra viva e dinâmica, não categoria inerte, exânime.Palavraquedizetransformaomundo.

A palavra viva é diálogo existencial. Expressa e elabora o mundo, emcomunicaçãoecolaboração.Odiálogoautêntico—reconhecimentodooutroereconhecimento de si, no outro— é decisão e compromisso de colaborar naconstruçãodomundocomum.Nãoháconsciênciasvazias;por istooshomensnãosehumanizam,senãohumanizandoomundo.

Em linguagem direta: os homens humanizam-se, trabalhando juntos parafazerdomundo,sempremais,amediaçãodeconsciênciasquesecoexistenciamemliberdade.Aosqueconstroemjuntosomundohumano,competeassumirema responsabilidade de dar-lhe direção. Dizer a sua palavra equivale a assumirconscientemente, como trabalhador, a função de sujeito de sua história, emcolaboraçãocomosdemaistrabalhadores—opovo.

AoPovocabedizerapalavradecomandonoprocessohistórico-cultural.Seadireçãoracionaldetalprocessojáépolítica,entãoconscientizarépolitizar.Eacultura popular se traduz por política popular; não há cultura do Povo sempolíticadoPovo.

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O método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de culturapopular: conscientiza e politiza. Não absorve o político no pedagógico, mastambémnãopõeinimizadeentreeducaçãoepolítica.Distingue-as,sim,masnaunidade do mesmo movimento em que o homem se historiciza e buscareencontrar-se, isto é, busca ser livre. Não tem a ingenuidade de supor que aeducação, sóela,decidirádosrumosdahistória,mas tem,contudo,acoragemsuficientepara afirmarque a educaçãoverdadeira conscientiza as contradiçõesdo mundo humano, sejam estruturais, superestruturais ou interestruturais,contradições que impelem o homem a ir adiante. As contradiçõesconscientizadasnãolhedãomaisdescanso,tornaminsuportávelaacomodação.Um método pedagógico de conscientização alcança as últimas fronteiras dohumano.Ecomoohomemsempreseexcede,ométodotambémoacompanha.É“aeducaçãocomopráticadaliberdade”.

Em regime de dominação de consciências, em que os quemais trabalhammenospodemdizerasuapalavraeemquemultidõesimensasnemsequertêmcondiçõesparatrabalhar,osdominadoresmantêmomonopóliodapalavra,comque mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, paradizeremasuapalavra,têmquelutarparatomá-la.Aprenderatomá-ladosqueadetêmearecusamaosdemaiséumdifícil,masimprescindívelaprendizado—éa“pedagogiadooprimido”.

ProfessorErnaniMariaFioriSantiago,Chile,

dezembrode1967

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Nota

1 Paulo Freire,Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967; e Pedagogia dooprimido.RiodeJaneiro:PazeTerra,1967.

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PRIMEIRASPALAVRAS

ASPÁGINASQUESESEGUEMequepropomoscomoumaintroduçãoàPedagogiadooprimido são o resultado de nossas observações nestes cinco anos de exílio.ObservaçõesquesevêmjuntandoàsquefizemosnoBrasil,nosváriossetoresemquetivemosoportunidadedeexerceratividadeseducativas.

Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação quedamos e em que analisamos o papel da conscientização, quer na aplicaçãomesmadeumaeducaçãorealmentelibertadora,éo“medodaliberdade”,aquefaremosreferêncianoprimeirocapítulodesteensaio.

Nãosãorarasasvezesemqueparticipantesdestescursos,numaatitudeemque manifestam o seu “medo da liberdade”, se referem ao que chamam de“perigodaconscientização”.“Aconsciênciacrítica(dizem)éanárquica.”Aoqueoutros acrescentam: “Não poderá a consciência crítica conduzir à desordem?”Há,contudo,osquetambémdizem:“Porquenegar?Eutemiaaliberdade.Jánãoatemo!”

Certa vez, em um desses cursos, de que fazia parte um homem que fora,durantelongotempo,operário,seestabeleceuumadessasdiscussõesemqueseafirmavaa“periculosidadedaconsciênciacrítica”.Nomeiodadiscussão,disseestehomem:“Talvezsejaeu,entreossenhores,oúnicodeorigemoperária.Nãopossodizerquehajaentendidotodasaspalavrasqueforamditasaqui,masumacoisa posso afirmar: cheguei a esse curso ingênuo e, ao descobrir-me ingênuo,comeceiatornar-mecrítico.Estadescoberta,contudo,nemmefazfanático,nemme dá a sensação de desmoronamento.” Discutia-se, na oportunidade, se aconscientizaçãodeuma situação existencial, concreta, de injustiçanãopoderia

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conduziroshomensdelaconscientizadosaum“fanatismodestrutivo”ouauma“sensaçãodedesmoronamentototaldomundoemqueestavamesseshomens”.

Adúvida,assimexpressa, implicitaumaafirmaçãonemsempreexplicitada,noquetemealiberdade:“Melhorseráqueasituaçãoconcretadeinjustiçanãoseconstituanum‘percebido’claroparaaconsciênciadosqueasofrem.”

Na verdade, porém, não é a conscientização que pode levar o povo a“fanatismos destrutivos”. Pelo contrário, a conscientização, que lhe possibilitainserir-senoprocessohistórico,comosujeito,evitaosfanatismoseoinscrevenabuscadesuaafirmação.

“Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfaçõessociais,sedeveaqueestassãocomponentesreaisdeumasituaçãodeopressão.”2

O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seuportador,ofazveroquenãoexiste.Nofundo,oquetemealiberdadeserefugianasegurançavital,comodiriaHegel,3preferindo-aàliberdadearriscada.

Raro,porém,éoquemanifestaexplicitamenteestereceioda liberdade.Suatendência é, antes, camuflá-lo, num jogo manhoso, ainda que, às vezes,inconsciente. Jogoartificiosodepalavrasemqueapareceoupretendeaparecercomooquedefendealiberdadeenãocomooqueateme.

Às suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade.Seriedadedequemfosseozeladordaliberdade.Liberdadequeseconfundecomamanutençãodostatusquo.Poristo,seaconscientizaçãopõeemdiscussãoestestatusquo,ameaça,então,aliberdade.

As afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto dedevaneiosintelectuaisnem,tampouco,deoutro,resultamapenasdeleituras,pormais importantes que elas nos tenham sido. Estão sempre ancoradas, comosugerimosno iníciodestaspáginas, em situações concretas.Expressamreaçõesdeproletários,camponesesouurbanos,edehomensdeclassemédia,quevimosobservando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossaintençãoécontinuarcomestasobservaçõespararetificarouratificar,emestudosposteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente, iráprovocar,emalgunsdeseuspossíveisleitores,reaçõessectárias.

Entreestes,haverá, talvez,osquenãoultrapassarãosuasprimeiraspáginas.Uns, por considerarem a nossa posição, diante do problema da libertação dos

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homens, como uma posição idealista a mais, quando não um “blá-blá-blá”reacionário.“Blá-blá-blá”dequemseperdefalandoemvocaçãoontológica,emamor,emdiálogo,emesperança,emhumildade,emsimpatia.Outros,pornãoquererem ou não poderem aceitar as críticas e a denúncia que fazemos dasituaçãoopressora,situaçãoemqueosopressoresse“gratificam”,atravésdesuafalsagenerosidade.

Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramenteaproximativo, um trabalho para homens radicais.Cristãos oumarxistas, aindaque discordando de nossas posições, em grande parte, em parte ou em suatotalidade,estes,estamoscertos,poderãochegaraofimdotexto.

Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas,“irracionais”, rechaçarão o diálogo que pretendemos estabelecer através destelivro.

Équeasectarizaçãoésemprecastradora,pelofanatismodequesenutre.Aradicalização,pelocontrário,ésemprecriadora,pelacriticidadequeaalimenta.Enquantoasectarizaçãoémítica,poristoalienante,aradicalizaçãoécrítica,poristolibertadora.Libertadoraporque,implicandooenraizamentoqueoshomensfazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço detransformaçãodarealidadeconcreta,objetiva.

Asectarização,porquemíticaeirracional,transformaarealidadenumafalsarealidade,que,assim,nãopodesermudada.

Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação doshomens.Daíquesejadolorosoobservarquenemsempreosectarismodedireitaprovoqueoseucontrário,istoé,aradicalizaçãodorevolucionário.

Nãosãorarososrevolucionáriosquesetornamreacionáriospelasectarizaçãoemquesedeixamcair,aoresponderàsectarizaçãodireitista.

Não queremos, porém, com isto dizer — e o deixamos claro no ensaioanterior4—queoradicalsetornedócilobjetodadominação.

Precisamenteporqueinscrito,comoradical,numprocessodelibertação,nãopodeficarpassivodiantedaviolênciadodominador.

Por outro lado, jamais será o radical um subjetivista. É que, para ele, oaspectosubjetivo tomacorponumaunidadedialéticacomadimensãoobjetivada própria ideia, isto é, comos conteúdos concretos da realidade sobre a qual

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exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, seencontramnaquelaunidadedialéticadequeresultaumconhecersolidáriocomoatuareestecomaquele.Éexatamenteestaunidadedialéticaquegeraumatuareumpensarcertosnaesobrearealidadeparatransformá-la.

O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua“irracionalidade”queocega,nãopercebeounãopodeperceberadinâmicadarealidade,ouapercebeequivocadamente.

Atéquandosepensanadialética,asuaéuma“dialéticadomesticada”.Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita, que, no nosso

ensaioanterior,chamamosde“sectáriodenascença”,pretendefrearoprocesso,“domesticar” o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também por que ohomem de esquerda, ao sectarizar-se, se equivoca totalmente na suainterpretação“dialética”darealidade,dahistória,deixando-secairemposiçõesfundamentalmentefatalistas.

Distinguem-se, na medida em que o primeiro pretende “domesticar” opresente para que o futuro, na melhor das hipóteses, repita o presente“domesticado”, enquanto o segundo transforma o futuro em algopreestabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis.Enquanto,paraoprimeiro,ohojeligadoaopassadoéalgodadoeimutável,parao segundo, o amanhã é algo pré-dado, prefixado inexoravelmente. Ambos sefazemreacionáriosporque, apartirde sua falsavisãodahistória,desenvolvemumeoutroformasdeaçãonegadorasdaliberdade.Équeofatodeumconcebero presente “bem-comportado” e o outro, o futuro como predeterminado, nãosignifica que se tornem espectadores, que cruzem os braços, o primeiro,esperando a manutenção do presente, uma espécie de volta ao passado; osegundo,àesperadequeofuturojá“conhecido”seinstale.

Pelo contrário, fechando-se em um “círculo de segurança”, do qual nãopodemsair,estabelecemambosasuaverdade.Eestanãoéadoshomensnalutaparaconstruirofuturo,correndooriscodestaprópriaconstrução.Nãoéadoshomens lutando e aprendendo, uns com os outros, a edificar este futuro, queaindanãoestádado,comosefossedestino,comosedevesseserrecebidopeloshomensenãocriadoporeles.

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A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro,apropriando-se do tempo, de cujo saber se sentem igualmente proprietários,terminamsemopovo,umaformadeestarcontraele.

Enquantoosectáriodedireita, fechando-seem“sua”verdade,nãofazmaisdoqueoquelheépróprio,ohomemdeesquerda,quesesectarizaetambémseencerra,éanegaçãodosimesmo.

Um,naposiçãoquelheéprópria;ooutro,naqueonega,ambosgirandoemtorno de “sua” verdade, sentem-se abalados na sua segurança, se alguém adiscute.Daí que lhes seja necessário considerar comomentira tudoo quenãosejaasuaverdade.“Sofremambosdafaltadedúvida.”5

Oradical,comprometidocomalibertaçãodoshomens,nãosedeixaprenderem“círculosde segurança”,nosquais aprisione tambéma realidade.Tãomaisradical quanto mais se inscreve nesta realidade para, conhecendo-a melhor,melhorpodertransformá-la.

Não teme enfrentar, não temeouvir, não temeo desvelamento domundo.Nãotemeoencontrocomopovo.Nãotemeodiálogocomele,dequeresultaocrescentesaberdeambos.6Nãosesentedonodotempo,nemdonodoshomens,nemlibertadordosoprimidos.Comelessecompromete,dentrodotempo,paracomeleslutar.

Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, aradicalizaçãoéoprópriodorevolucionário.Daíqueapedagogiadooprimido,que implica uma tarefa radical, cujas linhas introdutórias pretendemosapresentarnesteensaio,eapróprialeituradestetextonãopossamserrealizadasporsectários.

QueremosexpressaraquionossoagradecimentoaElza,demodogeralnossaprimeira leitora,por suacompreensãoeestímulosconstantesanosso trabalho,que também é seu. Agradecimento que estendemos a todos quantos leram osoriginais deste ensaio pelas críticas que nos fizeram, o que não nos retira oudiminuiaresponsabilidadepelasafirmaçõesnelefeitas.

PauloFreireSantiago,Chile,outonode1968

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Notas

2 FranciscoWeffort,emprefácioaPauloFreire,Educaçãocomopráticadaliberdade.

3 […]Anditissolelybyriskinglifethatfreedomisobtained.[…]Theindividual,whohashotstakedhislifemay, no doubt, be recognized as a person; but he has not attained the truth of this recognition as anindependentself-consciousness.GeorgW. F.Hegel,ThePhenomenology ofMind.NovaYork:Harper andRow,1967,p.233.

4 PauloFreire,Educaçãocomopráticadaliberdade.

5 MárcioMoreiraAlves,emconversacomoautor.

6 “Enquantooconhecimento teóricopermanecercomoprivilégiodeunsquantos ‘acadêmicos’dentrodoPartido, este se encontrará em grande perigo de ir ao fracasso.” Rosa Luxemburgo, “¿Reforma oRevolución?”,inWrightMills,Losmarxistas.México:Ed.EraS.A.,1964,p.171.

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1

JUSTIFICATIVADAPEDAGOGIADOOPRIMIDO

RECONHECEMOSAAMPLITUDEdotemaquenospropomostratarnesteensaio,comoqualpretendemos,emcertoaspecto,aprofundaralgunspontosdiscutidosemnosso trabalho anterior, Educação como prática da liberdade. Daí que oconsideremoscomomeraintrodução,comosimplesaproximaçãoaassuntoquenosparecedeimportânciafundamental.

Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, sepropõema simesmos comoproblema.Descobremquepouco sabemde si, deseu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, noreconhecimentodoseupoucosaberdesiumadas razõesdestaprocura.Aoseinstalaremnaquase,senãotrágicadescobertadoseupoucosaberdesi,sefazemproblema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam anovasperguntas.

Oproblemadesuahumanização,apesardesempredeverhaversido,deumponto de vista axiológico, o seu problema central, assume, hoje, caráter depreocupaçãoiniludível.7

Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, reconhecer adesumanização, não apenas como viabilidade ontológica, mas como realidadehistórica.Étambém,etalvezsobretudo,apartirdestadolorosaconstataçãoqueos homens se perguntam sobre a outra viabilidade— a de sua humanização.Ambas,naraizdesua inconclusão,os inscrevemnumpermanentemovimentodebusca.Humanizaçãoedesumanização,dentrodahistória,numcontextoreal,

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concreto, objetivo, são possibilidades dos homens como seres inconclusos econscientesdesuainconclusão.

Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o quechamamosdevocaçãodoshomens.Vocaçãonegada,mastambémafirmadanaprópria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, naviolênciadosopressores.Masafirmadanoanseiodeliberdade,dejustiça,delutadosoprimidos,pelarecuperaçãodesuahumanidaderoubada.

Adesumanização,quenão severifica apenasnosque têmsuahumanidaderoubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, édistorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas nãovocaçãohistórica.Naverdade,seadmitíssemosqueadesumanizaçãoévocaçãohistórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar umaatitudecínicaoudetotaldesespero.Alutapelahumanização,pelotrabalholivre,peladesalienação,pela afirmaçãodoshomens comopessoas, como “seresparasi”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização,mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, masresultadodeuma“ordem”injustaquegeraaviolênciadosopressoreseesta,osermenos.

ACONTRADIÇÃOOPRESSORES-OPRIMIDOS.SUASUPERAÇÃO

Aviolênciadosopressores,queosfaztambémdesumanizados,nãoinstauraumaoutravocação—adosermenos.Comodistorçãodosermais,osermenoslevaos oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta lutasomente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar suahumanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamenteopressores,nemsetornam,defato,opressoresdosopressores,masrestauradoresdahumanidade emambos.E aí está a grande tarefahumanista ehistóricadosoprimidos— libertar-se a si e aosopressores.Estes, queoprimem, explorameviolentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força delibertaçãodosoprimidosnemdesimesmos.Sóopoderquenasçadadebilidade

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dosoprimidosserásuficientementeforteparalibertaraambos.Poristoéqueopoder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dosoprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, comojamaisaultrapassa.Osopressores, falsamentegenerosos, têmnecessidade,paraque a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, dapermanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora,permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e damiséria.8

Daí o desespero desta “generosidade” diante de qualquer ameaça, emboratênue, à sua fonte. Não pode jamais entender esta “generosidade” que averdadeira generosidade está em lutar para que desapareçam as razões quealimentamo falso amor.A falsa caridade,daqualdecorre amão estendidado“demitidodavida”,medrosoe inseguro,esmagadoevencido.Mãoestendidaetrêmula dos esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grandegenerosidadeestáemlutarparaque,cadavezmais,estasmãos,sejamdehomensou de povos, se estendammenos em gestos de súplica. Súplica de humildes apoderosos. E se vão fazendo, cada vezmais, mãos humanas, que trabalhem etransformem o mundo. Este ensinamento e este aprendizado têm de partir,porém,dos“condenadosdaterra”,dosoprimidos,dosesfarrapadosdomundoedos que com eles realmente se solidarizem. Lutando pela restauração de suahumanidade estarão, sejam homens ou povos, tentando a restauração dagenerosidadeverdadeira.

Quem,melhor que os oprimidos, se encontrará preparadopara entender osignificadoterríveldeumasociedadeopressora?Quemsentirá,melhorqueeles,os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo anecessidadeda libertação?Libertação aquenão chegarãopelo acaso,maspelapráxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade delutarporela.

Lutaque,pelafinalidadequelhederemosoprimidos,seráumatodeamor,com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, atémesmoquandoestaserevistadafalsagenerosidadereferida.

Anossapreocupação,nestetrabalho,éapenasapresentaralgunsaspectosdoque nos parece constituir o que vimos chamando de pedagogia do oprimido:

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aquelaquetemdeserforjadacomeleenãoparaele,enquantohomensoupovos,na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça daopressãoede suas causasobjetoda reflexãodosoprimidos,deque resultaráoseuengajamentonecessárionalutaporsualibertação,emqueestapedagogiasefaráerefará.

Ograndeproblemaestáemcomopoderãoosoprimidos,que“hospedam”oopressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, dapedagogia de sua libertação. Somente na medida em que se descubram“hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de suapedagogia libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer epareceréparecercomoopressor,éimpossívelfazê-lo.Apedagogiadooprimido,quenãopode ser elaboradapelosopressores, éumdos instrumentosparaestadescoberta crítica— a dos oprimidos por simesmos e a dos opressores pelosoprimidos,comomanifestaçõesdadesumanização.

Háalgo,porém,aconsiderarnestadescoberta,queestádiretamenteligadoàpedagogia libertadora. E que, quase sempre, num primeiro momento destedescobrimento, os oprimidos, em vez de buscar a libertação na luta e por ela,tendemaseropressorestambém,ousubopressores.Aestruturadeseupensarseencontracondicionadapelacontradiçãovividanasituaçãoconcreta,existencial,emque se “formam”.O seu ideal é, realmente, serhomens,mas,para eles, serhomens,nacontradiçãoemquesempreestiveramecujasuperaçãonãolhesestáclara,éseropressores.Estessãooseutestemunhodehumanidade.

Isto decorre, como analisaremosmais adiante, commais vagar, do fato deque, em certomomentode sua experiência existencial, os oprimidos assumemumaposturaquechamamosde “aderência”aoopressor.Nestas circunstâncias,nãochegama“admirá-lo”,oqueoslevariaaobjetivá-lo,adescobri-loforadesi.

Ao fazermos esta afirmação, não queremos dizer que os oprimidos, nestecaso, não se saibam oprimidos. O seu conhecimento de si mesmos, comooprimidos, se encontra, contudo,prejudicadopela “imersão”emque seachamnarealidadeopressora.“Reconhecerem-se”,aestenível,contráriosaooutronãosignificaaindalutarpelasuperaçãodacontradição.Daíestaquaseaberração:umdospolosdacontradiçãopretendendonãoalibertação,masaidentificaçãocomoseucontrário.

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O“homemnovo”,emtalcaso,paraosoprimidos,nãoéohomemanascerdasuperação da contradição, com a transformação da velha situação concretaopressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles, o novohomem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão dohomemnovoéumavisão individualista.A suaaderênciaaoopressornão lhespossibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classeoprimida.

Destaforma,porexemplo,queremareformaagrária,nãoparaselibertarem,mas para passarem a ter terra e, com esta, tornar-se proprietários ou, maisprecisamente,patrõesdenovosempregados.

Raros são os camponeses que, ao serem “promovidos” a capatazes, não setornammais duros opressores de seus antigos companheiros do que o patrãomesmo. Poder-se-á dizer— e com razão—que isto se deve ao fato de que asituação concreta, vigente, de opressão, não foi transformada. E que, nestahipótese,ocapataz,paraassegurarseuposto,temdeencarnar,commaisdurezaainda, adurezadopatrão.Tal afirmaçãonãonega anossa—adeque,nestascircunstâncias,osoprimidostêmnoopressoroseutestemunhode“homem”.

Atéasrevoluções,quetransformamasituaçãoconcretadeopressãoemumanova, em que a libertação se instaura como processo, enfrentam estamanifestação da consciência oprimida. Muitos dos oprimidos que, direta ouindiretamente, participaram da revolução, marcados pelos velhos mitos daestrutura anterior, pretendem fazer da revolução a sua revolução privada.Perdura neles, de certomodo, a sombra testemunhal do opressor antigo. Estecontinuaaseroseutestemunhode“humanidade”.

O “medo da liberdade”,9 de que se fazem objeto os oprimidos, medo daliberdadequetantopodeconduzi-losapretenderseropressorestambém,quantopode mantê-los atados ao status de oprimidos, é outro aspecto que mereceigualmentenossareflexão.

Umdoselementosbásicosnamediaçãoopressores-oprimidoséaprescrição.Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra. Daí osentidoalienadordasprescriçõesquetransformamaconsciênciarecebedoranoquevimoschamandodeconsciência“hospedeira”daconsciênciaopressora.Por

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isto,ocomportamentodosoprimidoséumcomportamentoprescrito.Faz-seàbasedepautasestranhasaeles—aspautasdosopressores.

Os oprimidos, que introjetam a “sombra” dos opressores e seguem suaspautas,tememaliberdade,namedidaemqueesta,implicandoaexpulsãodestasombra,exigiriadelesque“preenchessem”o“vazio”deixadopelaexpulsãocomoutro“conteúdo”—odesuaautonomia.Odesuaresponsabilidade,semoquenão seriam livres.A liberdade, que é uma conquista, e nãoumadoação, exigeumapermanentebusca.Buscapermanentequesóexistenoatoresponsáveldequema faz.Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por elaprecisamenteporquenãoatem.Nãoétambémaliberdadeumpontoideal,foradoshomens, aoqual inclusive eles se alienam.Nãoé ideiaque se façamito.Écondição indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos oshomenscomoseresinconclusos.

Daíanecessidadequeseimpõedesuperarasituaçãoopressora.Istoimplicaoreconhecimentocrítico,a“razão”destasituação,paraque,atravésdeumaaçãotransformadora que incida sobre ela, se instaure uma outra, que possibiliteaquelabuscadosermais.

Nomomento,porém,emquesecomeceaautênticalutaparacriarasituaçãoque nascerá da superação da velha, já se está lutando pelo ser mais. E, se asituação opressora gera uma totalidade desumanizada e desumanizante, queatingeosqueoprimemeosoprimidos,nãovai caber, como jáafirmamos, aosprimeiros,queseencontramdesumanizadossópelomotivodeoprimir,masaossegundos,gerardeseusermenosabuscadosermaisdetodos.

Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própriaengrenagem da estrutura dominadora, temem a liberdade, enquanto não sesentemcapazesdecorreroriscodeassumi-la.Ea temem,também,namedidaemquelutarporelasignificaumaameaça,nãosóaosqueausamparaoprimir,comoseus“proprietários”exclusivos,masaoscompanheirosoprimidos,queseassustamcommaioresrepressões.

Quandodescobrememsioanseioporlibertar-se,percebemqueesteanseiosomentesefazconcretudenaconcretudedeoutrosanseios.

Enquanto tocados pelomedo da liberdade, se negam a apelar a outros e aescutaroapeloqueselhesfaçaouquesetenhamfeitoasimesmos,preferindoa

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gregarização à convivência autêntica. Preferindo a adaptação em que sua nãoliberdade osmantém à comunhão criadora a que a liberdade leva, atémesmoquandoaindasomentebuscada.

Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser.Descobremque,nãosendolivres,nãochegamaserautenticamente.Queremser,mastememser.Sãoeleseaomesmotemposãoooutrointrojetadoneles,comoconsciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou seremduplos. Entre expulsarem ou não o opressor de “dentro” de si. Entre sedesalienarem ou semanterem alienados. Entre seguirem prescrições ou teremopções.Entreseremespectadoresouatores.Entreatuaremouteremailusãodequeatuamnaatuaçãodosopressores.Entredizeremapalavraounãoteremvoz,castradosnoseupoderdecriarerecriar,noseupoderdetransformaromundo.

Esteéotrágicodilemadosoprimidos,queasuapedagogiatemdeenfrentar.Alibertação,poristo,éumparto.Eumpartodoloroso.Ohomemquenasce

destepartoéumhomemnovoquesóéviávelnaepelasuperaçãodacontradiçãoopressores-oprimidos,queéalibertaçãodetodos.

Asuperaçãodacontradiçãoéopartoquetrazaomundoestehomemnovonãomaisopressor;nãomaisoprimido,mashomemlibertando-se.

Estasuperaçãonãopodedar-se,porém,emtermospuramenteidealistas.Sesefazindispensávelaosoprimidos,paraalutaporsualibertação,quearealidadeconcretadeopressãojánãosejaparaelesumaespéciede“mundofechado”(emque se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas umasituação que apenas os limita e que eles podem transformar, é fundamental,então, que, ao reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe,tenham,nestereconhecimento,omotordesuaaçãolibertadora.

Vale dizer, pois, que reconhecerem-se limitados pela situação concreta deopressão,dequeofalsosujeito,ofalso“serparasi”,éoopressor,nãosignificaainda a sua libertação. Como contradição do opressor, que tem neles a suaverdade,comodisseHegel,10somentesuperamacontradiçãoemqueseachamquandooreconhecerem-seoprimidososengajanalutaporlibertar-se.

Nãobastasaberem-senumarelaçãodialéticacomoopressor—seucontrárioantagônico—,descobrindo,porexemplo,quesemelesoopressornãoexistiria

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(Hegel), para estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que seentreguemàpráxislibertadora.

O mesmo se pode dizer ou afirmar com relação ao opressor, tomadoindividualmente,comopessoa.Descobrir-senaposiçãodeopressor,mesmoquesofrapor este fato,não é ainda solidarizar-se comosoprimidos. Solidarizar-secom estes é algomais que prestar assistência a trinta ou a cem,mantendo-osatados, contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter aconsciência de que explora e “racionalizar” sua culpa paternalistamente. Asolidariedade, exigindode quem se solidariza que “assuma” a situaçãode comquemsesolidarizou,éumaatituderadical.

Se o que caracteriza os oprimidos, como “consciência servil” em relação àconsciênciadosenhor,é fazer-sequase“coisa”e transformar-se, comosalientaHegel,11 em “consciênciaparaoutro”, a solidariedade verdadeira comeles estáemcomeleslutarparaatransformaçãodarealidadeobjetivaqueosfazsereste“serparaoutro”.

Oopressorsósesolidarizacomosoprimidosquandooseugestodeixadeserum gesto piegas e sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato deamor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos deixam de ser uma designaçãoabstrataepassamaseroshomensconcretos,injustiçadoseroubados.Roubadosna sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoavendida.Sónaplenitudedesteatodeamar,nasuaexistenciação,nasuapráxis,seconstituiasolidariedadeverdadeira.Dizerqueoshomenssãopessoase,comopessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação seobjetive,éumafarsa.

Damesmaformacomoéemumasituaçãoconcreta—adaopressão—quese instauraacontradiçãoopressor-oprimidos,asuperaçãodestacontradiçãosósepodeverificarobjetivamentetambém.

Daí esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor,quantoparaosoprimidosque,reconhecendo-secontradiçãodaquele,desvelamo mundo da opressão e percebem os mitos que o alimentam — a radicalexigênciadatransformaçãodasituaçãoconcretaquegeraaopressão.

Parece-nosmuitoclaro,nãoapenasneste,masnoutrosmomentosdoensaio,que,aoapresentarmosesta radicalexigência—ada transformaçãoobjetivada

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situação opressora —, combatendo um imobilismo subjetivista quetransformasseoterconsciênciadaopressãonumaespéciedeesperapacientedequeumdiaaopressãodesapareceriaporsimesma,nãoestamosnegandoopapeldasubjetividadenalutapelamodificaçãodasestruturas.

Não sepodepensar emobjetividade semsubjetividade.Nãoháuma semaoutra,quenãopodemserdicotomizadas.

Aobjetividadedicotomizadadasubjetividade,anegaçãodestanaanálisedarealidade ou na ação sobre ela, é objetivismo. Damesma forma, a negação daobjetividade,naanálisecomonaação,conduzindoaosubjetivismoquesealongaemposiçõessolipsistas,negaaaçãomesma,pornegararealidadeobjetiva,desdequeestapassaasercriaçãodaconsciência.Nemobjetivismo,nemsubjetivismooupsicologismo,massubjetividadeeobjetividadeempermanentedialeticidade.

Confundirsubjetividadecomsubjetivismo,compsicologismo,enegar-lheaimportânciaquetemnoprocessodetransformaçãodomundo,dahistória,écairnum simplismo ingênuo. É admitir o impossível: ummundo semhomens, talqualaoutraingenuidade,adosubjetivismo,queimplicahomenssemmundo.

Nãoháumsemosoutros,masambosempermanenteintegração.EmMarx,comoemnenhumpensadorcrítico,realista, jamaisseencontrará

esta dicotomia. O que Marx criticou, e cientificamente destruiu, não foi asubjetividade,masosubjetivismo,opsicologismo.

Arealidadesocial,objetiva,quenãoexisteporacaso,mascomoprodutodaação dos homens, tambémnão se transforma por acaso. Se os homens são osprodutoresdestarealidadeeseesta,na“inversãodapráxis”,sevoltasobreeleseoscondiciona, transformararealidadeopressoraé tarefahistórica,é tarefadoshomens.

Aofazer-seopressora,arealidadeimplicaaexistênciadosqueoprimemedosque são oprimidos. Estes, a quem cabe realmente lutar por sua libertaçãojuntamentecomosquecomelesemverdadesesolidarizam,precisamganharaconsciênciacríticadaopressão,napráxisdestabusca.

Este é um dos problemas mais graves que se põem à libertação. É que arealidadeopressora,aoconstituir-secomoumquasemecanismodeabsorçãodosquenelaseencontram,funcionacomoumaforçadeimersãodasconsciências.12

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Nestesentido,emsimesma,estarealidadeéfuncionalmentedomesticadora.Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersãodela, a volta sobreela.Épor issoque só atravésdapráxis autênticaque,não sendo “blá-blá-blá”,nemativismo,masaçãoereflexão,épossívelfazê-lo.

Hayquehacer laopresión real todaviamásopresivaañadiendoaaquella laconsciencia de la opresión, haciendo la infamia todavia más infamante, alpregonarla.13

Este fazer “a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe aconsciênciadaopressão”, aqueMarx se refere, correspondeà relaçãodialéticasubjetividade-objetividade. Somente na sua solidariedade, em que o subjetivoconstituicomoobjetivoumaunidadedialética,épossívelapráxisautêntica.

A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo paratransformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos.

Desta forma, esta superação exige a inserção crítica dos oprimidos narealidadeopressora,comque,objetivando-a,simultaneamenteatuamsobreela.

Poristo,inserçãocríticaeaçãojásãoamesmacoisa.Poristotambéméqueomeroreconhecimentodeumarealidadequenãoleveaestainserçãocrítica(açãojá) não conduz a nenhuma transformação da realidade objetiva, precisamenteporquenãoéreconhecimentoverdadeiro.

Esteéocasodeum“reconhecimento”decaráterpuramentesubjetivista,queéantesoresultadodaarbitrariedadedosubjetivista,oqual,fugindodarealidadeobjetiva,criaumafalsarealidade“emsimesmo”.Enãoépossíveltransformararealidadeconcretanarealidadeimaginária.

Éoqueocorre,igualmente,quandoamodificaçãodarealidadeobjetivafereosinteressesindividuaisoudeclassedequemfazoreconhecimento.

Noprimeirocaso,nãoháinserçãocríticanarealidade,porqueestaéfictícia;no segundo, porque a inserção contradiria os interesses de classe doreconhecedor.

A tendência deste é, então, comportar-se “neuroticamente”. O fato existe,mastantoelequantooquedele talvezresulte lhepodemseradversos.Daíqueseja necessário, numa indiscutível “racionalização”, não propriamente negá-lo,mas vê-lo de forma diferente.A “racionalização”, comomecanismo de defesa,

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termina por identificar-se com o subjetivismo. Ao não negar o fato, masdistorcersuasverdades,a“racionalização”“retira”asbasesobjetivasdomesmo.Ofatodeixadesereleconcretamenteepassaaserummitocriadoparaadefesadaclassedoque fezoreconhecimento,que,assim,se torna falso.Desta forma,mais uma vez, é impossível a “inserção crítica”, que só existe na dialeticidadeobjetividade-subjetividade.

Aí está uma das razões para a proibição, para as dificuldades — comoveremos no último capítulo deste ensaio —, no sentido de que as massaspopulares cheguema “inserir-se”, criticamente, na realidade. É que o opressorsabemuitobemque esta “inserção crítica”dasmassasoprimidas,na realidadeopressora,emnadapodeaeleinteressar.Oquelheinteressa,pelocontrário,éapermanência delas em seu estado de “imersão” em que, de modo geral, seencontram impotentes em face da realidade opressora, como “situação limite”quelhespareceintransponível.

É interessante observar a advertência que faz Lukács14 ao partidorevolucionáriodeque[…]ildoit,pouremployerlesmotsdeMarx,expliquerauxmasses leur propre action non seulement afin d’assurer la continuité desexpériencesrevolutionnairesduprolétariat,maisaussid’activerconsciemment ledéveloppementultérieurdecesexpériences.

Aoafirmarestanecessidade,Lukácscoloca, indiscutivelmente,aquestãoda“inserçãocrítica”aquenosreferimos.

Expliquerauxmassesleurpropreactionéesclarecereiluminaraação,deumlado,quantoàsuarelaçãocomosdadosobjetivosqueaprovocam;deoutro,noquedizrespeitoàsfinalidadesdaprópriaação.

Quantomaisasmassaspopularesdesvelamarealidadeobjetivaedesafiadorasobreaqualelasdevemincidirsuaaçãotransformadora,tantomaisse“inserem”nelacriticamente.

Desta forma, estarão ativando consciemment le développement ultérieur desuasexperiências.

Équenãohaveriaaçãohumanasenãohouvesseumarealidadeobjetiva,ummundocomo“nãoeu”dohomem,capazdedesafiálo;comotambémnãohaveriaaçãohumanaseohomemnãofosseum“projeto”,ummaisalémdesi,capazdecaptarasuarealidade,deconhecê-laparatransformá-la.

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Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamentesolidários.Masaaçãosóéhumanaquando,maisqueumpurofazer,équefazer,isto é, quando tambémnão se dicotomiza da reflexão. Esta, necessária à ação,está implícita na exigência que faz Lukács da “explicação às massas de suaprópriaação”—comoestáimplícitanafinalidadequeeledáaessaexplicação,ade“ativarconscientementeodesenvolvimentoulteriordaexperiência”.

Paranós, contudo, aquestãonãoestápropriamente emexplicar àsmassas,mas em dialogar com elas sobre a sua ação. De qualquer forma, o dever queLukács reconheceaopartido revolucionáriode “explicar àsmassas a suaação”coincide com a exigência que fazemos da inserção crítica das massas na suarealidadeatravésdapráxis,pelo fatodenenhumarealidadese transformara simesma.15

A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homensempenhando-senalutaporsualibertação,temsuasraízesaí.Etemqueternospróprios oprimidos, que se saibam ou comecem criticamente a saber-seoprimidos,umdosseussujeitos.

Nenhumapedagogiarealmentelibertadorapodeficardistantedosoprimidos,quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um “tratamento”humanitarista,paratentar,atravésdeexemplosretiradosdeentreosopressores,modelos para a sua “promoção”. Os oprimidos hão de ser o exemplo para simesmos,nalutaporsuaredenção.

Apedagogiadooprimido,quebuscaarestauraçãoda intersubjetividade, seapresenta como pedagogia do Homem. Somente ela, que se anima degenerosidade autêntica, humanista e não “humanitarista”, pode alcançar esteobjetivo. Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dosopressoresegoísmocamufladodefalsagenerosidade,fazdosoprimidosobjetosdeseuhumanitarismo,mantémeencarnaaprópriaopressão.Éinstrumentodedesumanização.

Esta é a razão pela qual, como já afirmamos, esta pedagogia não pode serelaboradanempraticadapelosopressores.

Seriaumacontradiçãoseosopressoresnãosódefendessem,maspraticassemumaeducaçãolibertadora.

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Se,porém,apráticadestaeducaçãoimplicaopoderpolíticoeseosoprimidosnãootêm,comoentãorealizarapedagogiadooprimidoantesdarevolução?

Esta é, semdúvida, uma indagaçãodamais alta importância, cuja respostanospareceencontrar-semaisoumenosclaranoúltimocapítulodesteensaio.

Ainda que não queiramos antecipar-nos, poderemos, contudo, afirmar queum primeiro aspecto desta indagação se encontra na distinção entre educaçãosistemática, aque sópode sermudadacomopoder, eos trabalhoseducativos,quedevemserrealizadoscomosoprimidos,noprocessodesuaorganização.

Apedagogiadooprimido,comopedagogiahumanistaelibertadora,terádoismomentosdistintos.Oprimeiro,emqueosoprimidosvãodesvelandoomundoda opressão e vão comprometendo-se, na práxis, com a sua transformação; osegundo, emque, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa deser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo depermanentelibertação.

Emqualquerdestesmomentos,serásempreaaçãoprofunda,atravésdaqualseenfrentará,culturalmente,aculturadadominação.16Noprimeiromomento,por meio da mudança da percepção do mundo opressor por parte dosoprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos criados e desenvolvidos naestrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na estruturanovaquesurgedatransformaçãorevolucionária.

Noprimeiromomento,odapedagogiadooprimido,objetodaanálisedestecapítulo,estamosemfacedoproblemadaconsciênciaoprimidaedaconsciênciaopressora; dos homens opressores e dos homens oprimidos, em uma situaçãoconcretadeopressão.Emfacedoproblemadeseucomportamento,desuavisãodo mundo, de sua ética. Da dualidade dos oprimidos. E é como seres duais,contraditórios, divididos, que temos de encará-los. A situação de opressão emquese“formam”,emque“realizam”suaexistência,osconstituinestadualidade,naqualseencontramproibidosdeser.Basta,porém,quehomensestejamsendoproibidosdesermaisparaqueasituaçãoobjetivaemquetalproibiçãoseverificaseja,emsimesma,umaviolência.Violênciareal,nãoimportaque,muitasvezes,adocicadapelafalsagenerosidadeaquenosreferimos,porquefereaontológicaehistóricavocaçãodoshomens—adosermais.

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Daíque,estabelecidaarelaçãoopressora,esteja inauguradaaviolência,quejamaisfoiatéhoje,nahistória,deflagradapelosoprimidos.

Comopoderiamosoprimidosdarinícioàviolência,seelessãooresultadodeumaviolência?

Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-seobjetivamente,osconstitui?

Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que osconformacomoviolentados,numasituaçãoobjetivadeopressão.

Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não sereconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não sãoreconhecidospelosqueosoprimemcomooutro.

Inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porqueapenasseamam.

Osqueinauguramoterrornãosãoosdébeis,queaelesãosubmetidos,masosviolentosque,comseupoder,criamasituaçãoconcretaemquesegeramos“demitidosdavida”,osesfarrapadosdomundo.

Queminauguraatiranianãosãoostiranizados,masostiranos.Queminauguraoódionãosãoosodiados,masosqueprimeiroodiaram.Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua

humanidadenegada,masosqueanegaram,negandotambémasua.Queminauguraaforçanãosãoosquesetornaramfracossobarobustezdos

fortes,masosfortesqueosdebilitaram.Paraosopressores,porém,nahipocrisiadesua“generosidade”, sãosempre

osoprimidos,queelesjamaisobviamentechamamdeoprimidos,mas,conformese situem, interna ou externamente, de “essa gente” ou de “essamassa cega einvejosa”,oude“selvagens”,oude“nativos”,oude“subversivos”,sãosempreosoprimidos os que desamam. São sempre eles os “violentos”, os “bárbaros”, os“malvados”,os“ferozes”,quandoreagemàviolênciadosopressores.

Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dosoprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor.Conscienteouinconscientemente,oatoderebeliãodosoprimidos,queésempretãoouquasetãoviolentoquantoaviolênciaqueoscria,esteatodosoprimidos,sim,podeinauguraroamor.

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Enquantoaviolênciadosopressoresfazdosoprimidoshomensproibidosdeser, a resposta destes à violência daqueles se encontra infundida do anseio debuscadodireitodeser.

Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podemigualmenteser;osoprimidos,lutandoporser,aoretirar-lhesopoderdeoprimire de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no uso daopressão.

Por isto é que somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar osopressores.Estes,enquantoclassequeoprime,nemlibertam,nemselibertam.

O importante, por isto mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça parasuperaracontradiçãoemqueseacham.Queestasuperaçãosejaosurgimentodohomemnovo—nãomaisopressor,nãomaisoprimido,mashomemlibertando-se. Precisamente porque, se sua luta é no sentido de fazer-se Homem, queestavamsendoproibidosdeser,nãooconseguirãoseapenasinvertemostermosdacontradição.Istoé,seapenasmudamdelugarnospolosdacontradição.

Estaafirmaçãopodepareceringênua.Naverdade,nãooé.Reconhecemosque,nasuperaçãodacontradiçãoopressores-oprimidos,que

somentepodesertentadaerealizadaporestes,estáimplícitoodesaparecimentodosprimeiros,enquantoclassequeoprime.Osfreiosqueosantigosoprimidosdevem impor aos antigos opressores para que não voltem a oprimir não sãoopressão daqueles a estes.Aopressão só existe quando se constitui emumatoproibitivo do ser mais dos homens. Por esta razão, estes freios, que sãonecessários, não significam, em si mesmos, que os oprimidos de ontem setenhamtransformadonosopressoresdehoje.

Os oprimidos de ontem, que detêm os antigos opressores na sua ânsia deoprimir, estarão gerando, com seu ato, liberdade,namedida emque, comele,evitamavoltadoregimeopressor.Umatoqueproíbearestauraçãodesteregimenãopodesercomparadocomoqueocriaeomantém;nãopodesercomparadocomaqueleatravésdoqualalgunshomensnegamàsmaioriasodireitodeser.

Nomomento, porém, em que o novo poder se enrijece em “burocracia”17dominadora, seperdeadimensãohumanistada lutae jánão sepode falar emlibertação.

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Daí a afirmação anteriormente feita, de que a superação autêntica dacontradiçãoopressores-oprimidosnãoestánapuratrocadelugar,napassagemdeumpoloaoutro.Maisainda:nãoestáemqueosoprimidosdehoje,emnomedesualibertação,passematernovosopressores.

ASITUAÇÃOCONCRETADEOPRESSÃOEOSOPRESSORES

Masoqueocorre,aindaquandoasuperaçãodacontradiçãosefaçaemtermosautênticos, com a instalação de uma nova situação concreta, de uma novarealidade inaugurada pelos oprimidos que se libertam, é que os opressores deontemnão se reconheçamem libertação.Pelocontrário,vão sentir-secomoserealmente estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, “formados” naexperiênciadeopressores, tudooquenão seja o seudireito antigodeoprimirsignificaopressãoaeles.Vãosentir-se,agora,nanovasituação,comooprimidosporque, se antes podiam comer, vestir, calçar, educar-se, passear, ouvirBeethoven, enquanto milhões não comiam, não calçavam, não vestiam, nãoestudavam nem tampouco passeavam, quanto mais podiam ouvir Beethoven,qualquer restrição a tudo isto, em nome do direito de todos, lhes parece umaprofunda violência a seu direito de pessoa.Direito de pessoa que, na situaçãoanterior, não respeitavam nos milhões de pessoas que sofriam e morriam defome,dedor,detristeza,dedesesperança.

Éque,paraeles,pessoahumanasãoapenaseles.Osoutros,estessão“coisas”.Paraeles,háumsódireito—oseudireitodeviveremempaz,anteodireitodesobreviverem, que talvez nem sequer reconheçam,mas somente admitam aosoprimidos.Eistoaindaporque,afinal,éprecisoqueosoprimidosexistam,paraqueelesexistamesejam“generosos”…

Esta maneira de proceder, de compreender o mundo e os homens (quenecessariamenteosfazreagiràinstalaçãodeumnovopoder),explica-se,comojádissemos,naexperiênciaemqueseconstituemcomoclassedominadora.

Emverdade,instauradaumasituaçãodeviolência,deopressão,elageratodaumaformadeserecomportar-senosqueestãoenvolvidosnela.Nosopressores

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enosoprimidos.Unseoutros,porqueconcretamentebanhadosnestasituação,refletemaopressãoqueosmarca.

Naanálisedasituaçãoconcreta,existencial,deopressão,nãopodemosdeixarde surpreender o seu nascimento num ato de violência que é inaugurado,repetimos,pelosquetêmpoder.

Estaviolência,comoumprocesso,passadegeraçãoageraçãodeopressores,quesevãofazendolegatáriosdelaeformando-senoseuclimageral.Esteclimacrianosopressoresumaconsciênciafortementepossessiva.Possessivadomundoedoshomens.Foradapossedireta,concreta,material,domundoedoshomens,osopressoresnãosepodementenderasimesmos.Nãopodemser.Delescomoconsciênciasnecrófilas,diriaFrommque, semestaposse,perderianel contactoconelmundo.18Daíquetendamatransformartudooqueoscercaemobjetosdeseu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homensmesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seucomando.

Nestaânsiairrefreadadeposse,desenvolvememsiaconvicçãodequelhesépossível transformar tudo a seu poder de compra. Daí a sua concepçãoestritamentematerialistadaexistência.Odinheiroéamedidadetodasascoisas.Eolucro,seuobjetivoprincipal.

Por isto é que, paraosopressores, oque vale é termais e cada vezmais,àcusta,inclusive,dotermenosoudonadaterdosoprimidos.Ser,paraeles,éteretercomoclassequetem.

Não podem perceber, na situação opressora em que estão, comousufrutuários,que, se ter écondiçãoparaser, estaéumacondiçãonecessáriaatodososhomens.Nãopodemperceberque,nabuscaegoístadotercomoclassequetem,seafogamnaposseejánãosão.Jánãopodemser.

Poristotudoéqueasuagenerosidade,comosalientamos,éfalsa.Poristotudoéqueahumanizaçãoéuma“coisa”quepossuemcomodireito

exclusivo, comoatributoherdado.Ahumanização é apenas sua.Adosoutros,dos seus contrários, se apresenta como subversão.Humanizar é,naturalmente,segundoseupontodevista,subverter,enãosermais.

Termais,naexclusividade,nãoéumprivilégiodesumanizanteeinautênticodosdemaisedesimesmos,masumdireitointocável.Direitoque“conquistaram

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com seu esforço, com sua coragem de correr risco”. Se os outros — “essesinvejosos”—nãotêm,éporquesãoincapazesepreguiçosos,aquejuntamaindauminjustificávelmauagradecimentoaseus“gestosgenerosos”.E,porque“mal-agradecidos e invejosos”, são sempre vistos os oprimidos como seus inimigospotenciaisaquemtêmdeobservarevigiar.

Não poderia deixar de ser assim. Se a humanização dos oprimidos ésubversão, sua liberdade também o é. Daí a necessidade de seu constantecontrole. E, quanto mais controlam os oprimidos, mais os transformam em“coisa”,emalgoqueécomosefosseinanimado.

Estatendênciadosopressoresdeinanimartudoetodos,queseencontraemsuaânsiadeposse, se identifica, indiscutivelmente, coma tendência sadista.Elplacerdeldominiocompletosobreotrapersona(osobreotracreaturaanimada),dizFromm,eslaesenciamismadelimpulsosádico.Otramaneradeformularlamisma idea esdecirque el findel sadismoes convertirunhombre en cosa,algoanimado en algo inanimado, ya quemediante el control completo y absoluto elvivirpierdeunacualidadesencialdelavida:lalibertad.19

O sadismo aparece, assim, como uma das características da consciênciaopressora,nasuavisãonecrófiladomundo.Poristoéqueoseuamoréumamoràsavessas—umamoràmorteenãoàvida.

Namedidaemque,paradominar,seesforçampordeteraânsiadebusca,ainquietação, o poder de criar, que caracterizam a vida, os opressoresmatam avida.

Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, comoinstrumento para suas finalidades. Da tecnologia, que usam como forçaindiscutível de manutenção da “ordem” opressora, com a qual manipulam eesmagam.20

Osoprimidos, comoobjetos, comoquase “coisas”, não têm finalidades.Assuas,sãoasfinalidadesquelhesprescrevemosopressores.

Emfacedetudoistoéquesecolocaanósmaisumproblemadeimportânciainegável a ser observado no corpo destas considerações, que é o da adesão econsequentepassagemque fazem representantesdopoloopressor aopolodosoprimidos.Desuaadesãoàlutadestesporlibertar-se.

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Cabeaelesumpapelfundamental,comosempretemcabidonahistóriadestaluta.

Acontece, porém, que, ao passarem de exploradores ou de espectadoresindiferentesoudeherdeirosdaexploração—oqueéumaconivênciacomela—ao polo dos explorados, quase sempre levam consigo, condicionados pela“cultura do silêncio”,21 toda a marca de sua origem. Seus preconceitos. Suasdeformações, entreestas, adesconfiançadopovo.Desconfiançadequeopovosejacapazdepensarcerto.Dequerer.Desaber.

Deste modo, estão sempre correndo o risco de cair num outro tipo degenerosidade,tãofunestoquantooquecriticamosnosdominadores.

Se estagenerosidadenão senutre, comonocasodosopressores,daordeminjusta que precisa ser mantida para justificá-la; se querem realmentetransformá-la, na sua deformação, contudo, acreditam que devem ser osfazedoresdatransformação.

Comportam-se,assim,comoquemnãocrênopovo,aindaquenelefalem.Ecrernopovoéacondiçãoprévia,indispensável,àmudançarevolucionária.Umrevolucionáriosereconhecemaisporestacrençanopovo,queoengaja,doquepormilaçõessemela.

Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensávelque se revejam constantemente. Esta adesão é de tal forma radical que nãopermiteaquemafazcomportamentosambíguos.

Fazer esta adesão e considerar-se proprietário do saber revolucionário, quedeve,destamaneira,serdoadoouimpostoaopovo,émanter-secomoeraantes.

Dizer-secomprometidocomalibertaçãoenãosercapazdecomungarcomopovo, a quemcontinua considerando absolutamente ignorante, é umdolorosoequívoco.

Aproximar-sedele,massentir,acadapasso,acadadúvida,acadaexpressãosua,umaespéciedesusto,epretenderimporoseustatus,émanter-senostálgicodesuaorigem.

Daí que esta passagem deva ter o sentido profundo do renascer. Os quepassam têm de assumir uma forma nova de estar sendo; já não podem atuarcomoatuavam;jánãopodempermanecercomoestavamsendo.

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ASITUAÇÃOCONCRETADEOPRESSÃOEOSOPRIMIDOS

Será na sua convivência com os oprimidos, sabendo-se também um deles —somente a um nível diferente de percepção da realidade —, que poderácompreenderas formasdeserecomportar-sedosoprimidos,querefletem,emmomentosdiversos,aestruturadadominação.

Uma destas, de que já falamos rapidamente, é a dualidade existencial dosoprimidos que, “hospedando” o opressor, cuja “sombra” eles “introjetam”, sãoeles e ao mesmo tempo são o outro. Daí que, quase sempre, enquanto nãochegam a localizar o opressor concretamente, como também enquanto nãocheguem a ser “consciência para si”, assumam atitudes fatalistas em face dasituaçãoconcretadeopressãoemqueestão.22

Este fatalismo, às vezes, dá a impressão, em análises superficiais, dedocilidade,comocaráternacional,oqueéumengano.Estefatalismo,alongadoemdocilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traçoessencialdaformadeserdopovo.

Quasesempreestefatalismoestáreferidoaopoderdodestinooudasinaoudofado—potênciasirremovíveis—ouaumadistorcidavisãodeDeus.Dentrodo mundo mágico ou místico em que se encontra, a consciência oprimida,sobretudo camponesa, quase imersa na natureza,23 encontra no sofrimento,produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se Ele fosse ofazedordesta“desordemorganizada”.

Na “imersão” em que se encontram, não podem os oprimidos divisar,claramente, a “ordem” que serve aos opressores que, de certa forma, “vivem”neles. “Ordem”que, frustrando-osno seuatuar,muitasvezesos levaa exercerumtipodeviolênciahorizontalcomqueagridemospróprioscompanheiros.24Épossível que, ao agirem assim, mais uma vez explicitem sua dualidade. Aoagrediremseuscompanheirosoprimidosestarãoagredindoneles,indiretamente,oopressortambém“hospedado”nelesenosoutros.Agridem,comoopressores,oopressornosoprimidos.

Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dosoprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida.

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Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienaçãoquerem,atodocusto,parecercomoopressor.Imitá-lo.Segui-lo.Istoseverifica,sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao“homemilustre”dachamadaclasse“superior”.

É interessante observar como Memmi,25 em uma excepcional análise da“consciência colonizada”, se refere à sua repulsa de colonizado ao colonizadormesclada,contudo,de“apaixonada”atraçãoporele.

Aautodesvaliaéoutracaracterísticadosoprimidos.Resultadaintrojeçãoquefazemelesdavisãoquedelestêmosopressores.26

Detantoouviremdesimesmosquesãoincapazes,quenãosabemnada,quenãopodemsaber,quesãoenfermos, indolentes,quenãoproduzememvirtudede tudo isto, terminampor se convencer de sua “incapacidade”.27 Falamde sicomoosquenãosabemedo“doutor”comooquesabeeaquemdevemescutar.Oscritériosdesaberquelhesãoimpostossãoosconvencionais.

Não sepercebem,quase sempre, conhecendo,nas relaçõesque estabelecemcomomundoecomosoutroshomens,aindaqueumconhecimentoaoníveldapuradoxa.

Dentrodosmarcosconcretosemquesefazemduaisénaturalquedescreiamdesimesmos.28

Não são poucos os camponeses que conhecemos em nossa experiênciaeducativaque, apósalgunsmomentosdediscussãovivaem tornodeum temaquelheséproblemático,paramderepenteedizemaoeducador:“Desculpe,nósdevíamosestar caladoseo senhor falando.Osenhoréoque sabe;nós,osquenãosabemos.”

Muitasvezesinsistememquenenhumadiferençaexisteentreeleseoanimale,quandoreconhecemalguma,éemvantagemdoanimal.“Émaislivredoquenós”,dizem.

É impressionante, contudo, observar como, com as primeiras alteraçõesnuma situação opressora, se verifica uma transformação nesta autodesvalia.Escutamos,certavez,umlídercamponêsdizer,emreunião,numadasunidadesdeprodução(asentamiento)daexperiênciachilenadereformaagrária:“Diziamde nós que não produzíamos porque éramos borrachos, preguiçosos. Tudomentira.Agora,queestamossendorespeitadoscomohomens,vamosmostrara

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todos que nunca fomos borrachos, nem preguiçosos. Éramos explorados, istosim”,concluiuenfático.

Enquanto se encontra nítida sua ambiguidade, os oprimidos dificilmentelutam,nemsequerconfiamemsimesmos.Têmumacrençadifusa,mágica,nainvulnerabilidade do opressor.29 No seu poder de que sempre dá testemunho.Nos campos, sobretudo, se observa a força mágica do poder do senhor.30 Éprecisoquecomecemaverexemplosdavulnerabilidadedoopressorparaque,emsi,váoperando-seconvicçãoopostaàanterior.Enquantoistonãoseverifica,continuarãoabatidos,medrosos,esmagados.31

Atéomomentoemqueosoprimidosnãotomemconsciênciadasrazõesdeseu estado de opressão, “aceitam” fatalistamente a sua exploração.Mais ainda,provavelmenteassumamposiçõespassivas,alheadas,comrelaçãoànecessidadede suaprópria lutapela conquistada liberdade ede sua afirmaçãonomundo.Nistoresidesua“convivência”comoregimeopressor.

Poucoapouco,porém,atendênciaéassumirformasdeaçãorebelde.Numquefazer libertador, não se pode perder de vista esta maneira de ser dosoprimidos,nemesquecerestemomentodedespertar.

Dentro desta visão inautêntica de si e do mundo os oprimidos se sentemcomosefossemumaquase“coisa”possuídapeloopressor.Enquanto,noseuafãdepossuir,paraeste,comoafirmamos,seréteràcustaquasesempredosquenãotêm,paraosoprimidos,nummomentodesuaexperiênciaexistencial, sernemsequeréaindaparecercomoopressor,maséestarsobele.Édepender.Daíqueosoprimidossejamdependentesemocionais.32

NINGUÉMLIBERTANINGUÉM,NINGUÉMSELIBERTASOZINHO:OSHOMENSSELIBERTAMEMCOMUNHÃO

ÉestecaráterdedependênciaemocionaletotaldosoprimidosqueospodelevaràsmanifestaçõesqueFrommchamadenecrófilas.Dedestruiçãodavida.Dasuaoudadooutro,oprimidotambém.

Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e seengajamna lutaorganizadaporsua libertação,começamacreremsimesmos,

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superando,assim,sua“convivência”comoregimeopressor.Seestadescobertanãopodeserfeitaemnívelpuramenteintelectual,masdaação,oquenosparecefundamentaléqueestanãosecinjaameroativismo,masestejaassociadaasérioempenhodereflexão,paraquesejapráxis.

Odiálogocríticoe libertador,por istomesmoquesupõeaação,temdeserfeito comosoprimidos, qualquerque sejao grau emque esteja a lutapor sualibertação.Nãoumdiálogoàsescâncaras,queprovocaafúriaearepressãomaiordoopressor.

Oquepodeedevevariar,emfunçãodascondiçõeshistóricas,emfunçãodonível de percepção da realidade que tenham os oprimidos, é o conteúdo dodiálogo.Substituí-lopeloantidiálogo,pelasloganização,pelaverticalidade,peloscomunicados é pretender a libertação dos oprimidos com instrumentos da“domesticação”. Pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato destalibertação é transformá-los emobjetoque sedevesse salvardeum incêndio.Éfazê-loscairnoengodopopulistaetransformá-losemmassademanobra.

Osoprimidos,nosváriosmomentosdesualibertação,precisamreconhecer-secomohomens,nasuavocaçãoontológicaehistóricadesermais.Areflexãoeaação se impõem, quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar oconteúdodaformahistóricadeserdohomem.

Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobresuascondiçõesconcretas,nãoestamospretendendoumjogodivertidoemnívelpuramenteintelectual.Estamosconvencidos,pelocontrário,dequeareflexão,serealmentereflexão,conduzàprática.

Poroutrolado,seomomentojáéodaação,estasefaráautênticapráxisseosaberdelaresultantesefazobjetodareflexãocrítica.Énestesentidoqueapráxisconstituiarazãonovadaconsciênciaoprimidaequearevolução,queinauguraomomentohistóricodesta razão,nãopodeencontrarviabilidade foradosníveisdaconsciênciaoprimida.

Anãoserassim,aaçãoépuroativismo.Desta forma, nem um diletante jogo de palavras vazias — quebra-cabeça

intelectual—que,pornãoserreflexãoverdadeira,nãoconduzàação,nemaçãopela ação. Mas ambas, ação e reflexão, como unidade que não deve serdicotomizada.

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Para isto, contudo, é preciso que creiamos nos homens oprimidos.Que osvejamoscomocapazesdepensarcertotambém.

Seestacrençanosfalha,abandonamosaideia,ounãoatemos,dodiálogo,dareflexão,dacomunicaçãoecaímosnosslogans,noscomunicados,nosdepósitos,no dirigismo. Esta é uma ameaça contida nas inautênticas adesões à causa dalibertaçãodoshomens.

A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, “ação cultural”paraaliberdade,poristomesmo,açãocomeles.Asuadependênciaemocional,frutodasituaçãoconcretadedominaçãoemqueseachamequegeratambémasua visão inautêntica do mundo, não pode ser aproveitada a não ser peloopressor.Esteéqueseservedestadependênciaparacriarmaisdependência.

A ação libertadora, pelo contrário, reconhecendo esta dependência dosoprimidos como ponto vulnerável, deve tentar, através da reflexão e da ação,transformá-laemindependência.Esta,porém,nãoédoaçãoqueumaliderança,por mais bem-intencionada que seja, lhes faça. Não podemos esquecer que alibertaçãodosoprimidosé libertaçãodehomensenãode“coisas”.Por isto, senãoéautolibertação—ninguémselibertasozinho—,tambémnãoélibertaçãodeunsfeitaporoutros.

Nãosepoderealizarcomoshomenspela“metade”.33E,quandootentamos,realizamosasuadeformação.Mas,deformadosjáestando,enquantooprimidos,nãopodeaaçãodesualibertaçãousaromesmoprocedimentoempregadoparasuadeformação.

Ocaminho,por istomesmo,paraumtrabalhode libertaçãoaserrealizadopela liderança revolucionária não é a “propaganda libertadora”. Não está nomero ato de “depositar” a crença da liberdade nos oprimidos, pensandoconquistarasuaconfiança,masnodialogarcomeles.

Precisamosestarconvencidosdequeoconvencimentodosoprimidosdequedevem lutar por sua libertação não é doação que lhes faça a liderançarevolucionária,masresultadodesuaconscientização.

Énecessárioquealiderançarevolucionáriadescubraestaobviedade:queseuconvencimento da necessidade de lutar, que constitui uma dimensãoindispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado por ninguém, se éautêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser

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transformado em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, dereflexãoedeação.

Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou àcríticadestamesmasituaçãoeaoímpetodetransformá-la.

Assim também é necessário que os oprimidos, que não se engajamna lutasem estar convencidos e, se não se engajam, retiram as condições para ela,cheguem, como sujeitos, e não comoobjetos, a este convencimento. É precisoquetambémseinsiramcriticamentenasituaçãoemqueseencontramedequeseachammarcados.Eistoapropagandanãofaz.Seesteconvencimento,semoqual,repitamos,nãoépossívelaluta,éindispensávelàliderançarevolucionária,que se constitui a partir dele, o é também aos oprimidos. A não ser que sepretendafazerparaelesa transformação,enãocom eles—somentecomonospareceverdadeiraestatransformação.34

Ao fazermos estas considerações, outra coisa não estamos tentando senãodefenderocarátereminentementepedagógicodarevolução.

Seos líderes revolucionáriosde todosos tempos afirmamanecessidadedoconvencimentodasmassasoprimidasparaqueaceitemalutapelalibertação—oquederestoéóbvio—,reconhecemimplicitamenteosentidopedagógicodestaluta. Muitos, porém, talvez por preconceitos naturais e explicáveis contra apedagogia, terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na“educação” que serve ao opressor. Negam a ação pedagógica no processo delibertação,masusamapropagandaparaconvencer…

Desde o começo mesmo da luta pela humanização, pela superação dacontradição opressor-oprimidos, é preciso que eles se convençam de que estalutaexigedeles,apartirdomomentoemqueaaceitam,asuaresponsabilidadetotal.Équeestalutanãosejustificaapenasemquepassematerliberdadeparacomer,mas“liberdadeparacriareconstruir,paraadmirareaventurar-se”.Talliberdaderequerqueoindivíduosejaativoeresponsável,nãoumescravonemuma peça bem-alimentada da máquina. Não basta que os homens não sejamescravos;seascondiçõessociaisfomentamaexistênciadeautômatos,oresultadonãoéoamoràvida,masoamoràmorte.35Osoprimidosquese“formam”noamoràmorte,quecaracterizaoclimadaopressão,devemencontrar,nasualuta,

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ocaminhodoamoràvida,quenãoestáapenasnocomermais, sebemqueoimpliquetambémedelenãopossaprescindir.

É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como “coisas”. Éprecisamenteporquereduzidosaquase“coisas”,narelaçãodeopressãoemqueestão, que se encontram destruídos. Para reconstruir-se é importante queultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta comoquase “coisas” para depois serem homens. É radical esta exigência. Aultrapassagemdesteestado,emquesedestroem,paraodehomens,emquesereconstroem, não é a posteriori. A luta por esta reconstrução começa noautorreconhecimentodehomensdestruídos.

Apropaganda,odirigismo,amanipulação,comoarmasdadominação,nãopodemserinstrumentosparaestareconstrução.36

Nãoháoutrocaminhosenãoodapráticadeumapedagogiahumanizadora,em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos econtinuarmantendo-os como quase “coisas”, com eles estabelece uma relaçãodialógicapermanente.

Prática pedagógica em que o método deixa de ser, como salientamos nonosso trabalho anterior, instrumento do educador (no caso, a liderançarevolucionária), com o qual manipula os educandos (no caso os oprimidos)porqueéjáaprópriaconsciência.

“O método é, na verdade (diz o professor Álvaro Vieira Pinto), a formaexterior e materializada em atos, que assume a propriedade fundamental daconsciência: a sua intencionalidade. O próprio da consciência é estar com omundoeesteprocedimentoépermanenteeirrecusável.Portanto,aconsciênciaé,emsuaessência,um‘caminhopara’algoquenãoéela,queestáforadela,queacircunda e que ela apreende por sua capacidade ideativa. Por definição, aconsciência é, pois, método, entendido este no seu sentido de máximageneralidade.Taléaraizdométodo,assimcomotaléaessênciadaconsciência,quesóexisteenquantofaculdadeabstrataemetódica.”37

Porqueassimé,aeducaçãoaserpraticadapelaliderançarevolucionáriasefazcointencionalidade.

Educadoreeducandos(liderançaemassas),cointencionadosàrealidade,seencontramnumatarefaemqueambossãosujeitosnoato,nãosódedesvelá-lae,

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assim,criticamenteconhecê-la,mastambémnoderecriaresteconhecimento.Aoalcançarem,nareflexãoenaaçãoemcomum,estesaberdarealidade,se

descobremcomoseusrefazedorespermanentes.Destemodo,apresençadosoprimidosnabuscadesualibertação,maisque

pseudoparticipação,éoquedeveser:engajamento.

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Notas

7 Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo atual, que necessariamente revelampeculiaridadesdosespaçosondesedão,manifestam,emsuaprofundidade,estapreocupaçãoemtornodohomemedoshomens,comoseresnomundoecomomundo.Emtornodoqueedecomoestãosendo.Aoquestionarem a “civilização do consumo”; ao denunciarem as “burocracias” de todos os matizes; aoexigirematransformaçãodasuniversidades,dequeresultem,deumlado,odesaparecimentodarigideznasrelaçõesprofessor-aluno;deoutro,ainserçãodelasnarealidade;aoproporematransformaçãodarealidademesma para que as universidades possam renovar-se; ao rechaçarem velhas ordens e instituiçõesestabelecidas,buscandoaafirmaçãodoshomenscomosujeitosdedecisão,todosestesmovimentosrefletemosentidomaisantropológicodoqueantropocêntricodenossaépoca.

8 “Talvezdêsesmolas.Mas,deondeastiras,senãodetuasrapinascruéis,dosofrimento,daslágrimas,dossuspiros?Seopobresoubessedeondevemoteuóbolo,eleorecusariaporqueteriaaimpressãodemorderacarnedeseusirmãosedesugarosanguedeseupróximo.Eletediriaestaspalavrascorajosas:nãosaciesaminhasedecomaslágrimasdemeusirmãos.Nãodêsaopobreopãoendurecidocomossoluçosdemeuscompanheirosdemiséria.Devolveateusemelhanteaquiloquereclamasteeeutesereimuitograto.Dequevale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?” São Gregório de Nissa (330-395), “Sermão contra osusurários”.

9 Estemedoda liberdade tambémse instalanosopressores,mas,obviamente,demaneiradiferente.Nosoprimidos,omedodaliberdadeéomedodeassumi-la.Nosopressores,éomedodeperdera“liberdade”deoprimir.

10 Thetruthoftheindependentconsciousnessis(accordingly)theconsciousnessofthebondsman.Hegel,op.cit.,p.237.

11 Referindo-se à consciência senhorial e à consciência servil, dizHegel: the one is independent, and itsessentialnature is tobe for itself; theother isdependentand its essence is lifeor existence foranother.TheformeristheMaster,orLord,thelattertheBondsman.Op.cit.,p.234.

12 “AaçãoLibertadoraimplicaummomentonecessariamenteconscienteevolitivo,configurando-secomoaprolongaçãoea inserçãocontinuadasdestenahistória.Aaçãodominadora,entretanto,nãosupõeestadimensãocomamesmanecessariedade,poisaprópriafuncionalidademecânicaeinconscientedaestruturaémantenedoradesimesmae,portanto,dadominação.”DeumtrabalhodeJoséLuizFiori,aquemoautoragradeceapossibilidadedacitação.

13 KarlMarxeFriedrichEngels,Lasagradafamiliayotrosescritos.México:Grijalbo,1962,p.6.(Ogrifoénosso.)

14 GyörgyLukács,Lenine.Paris:ÉtudesetDocumentationInternationales,1965,p.62.

15 Lateoriamaterialistadequeloshombressonproductodelascircunstanciasydelaeducación,ydeque,por tanto, los hombres modificados son producto de circunstancias distintas y de una educación distinta,olvida que las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres y que el proprio educador

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necesitasereducado.KarlMarx,“TerceraTesis sobreFeuerbach”, inKarlMarxeFriedrichEngels,Obrasescogidas.Moscou:EditorialProgresso,1966,v.II,p.404.

16 Estenospareceseroaspectofundamentalda“revoluçãocultural”.

17 Este enrijecimento não se confunde, pois, com os freios referidos anteriormente e que têm de serimpostosaosantigosopressores,paraquenãorestauremaordemdominadora.Édeoutranatureza.Implicaarevoluçãoque,estagnando-se,volta-secontraopovo,usandoomesmoaparatoburocráticorepressivodoEstado,quedeviatersidoradicalmentesuprimido,comotantasvezessalientouMarx.

18 ErichFromm,Elcorazóndelhombre,breviario.México:FondodeCulturaEconómica,1967,p.41.

19 Fromm,op.cit.,p.30.(Osgrifossãonossos.)

20 Apropósitodas“formasdominantesdecontrolesocial”,cf.HerbertMarcuse,L’HommeundimensioneleErosetCivilisation.Paris:ÉditionsdeMinuit,1968-1961,obrasjátraduzidasparaoportuguês.

21 A propósito de “cultura do silêncio”, cf. “Paulo Freire: ação cultural para libertação”, Cambridge,Massachusetts, Center for the Study of Development and Social Change, 1970. Este ensaio apareceuprimeiramenteemHarvardEducationalReview,nosseusnúmerosdemaioeagostode1970;épublicadonoBrasilem1976,pelaPazeTerra,nolivroAçãoculturalparaaliberdadeeoutrosescritos.

22 “Ocamponês,queéumdependente, começaa ter ânimopara superar suadependênciaquando sedáconta de sua dependência.Antes disto, segue o patrão e diz quase sempre: ‘Que posso fazer, se sou umcamponês?’”—Palavrasdeumcamponêsduranteentrevistacomoautor,noChile.

23 Cf.CândidoMendes,Mementodosvivos:aesquerdacatólicanoBrasil.RiodeJaneiro:TempoBrasileiro,1966.

24 FrantzFanon,Loscondenadosdelatierra.México:FondodeCulturaEconómica,1965:[…]elcolonizadonodejadeliberarseentrelasnuevedelanocheylasseisdelamañana.Esaagresividadsedimentadaensusmúsculosvaamanifestarlaalcolonizadoprimerocontralossuyos.(p.46)

25 Howcouldthecolonizerlookafterhisworkerswhileperiodicallygunningdownacrowdofthecolonized?How could the colonizeddenyhimself so cruelly yetmake such excessivedemands?How couldhehate thecolonizers and yet admire them so passionately? (I too felt this admiration, diz Memmi, in spite ofmyself).AlbertMemmi,TheColonizerandtheColonized.Boston:BeaconPress,1967,p.X.Emportuguês,Retratodocolonizadoprecedidopeloretratodocolonizador,2aed.RiodeJaneiro:PazeTerra,1977.

26 “O camponês se sente inferior ao patrão porque este lhe parece comoo que temomérito de saber edirigir.”(Entrevistadoautorcomumcamponês.)

27 Cf.aesterespeitoolivrocitadodeAlbertMemmi.

28 “Porqueosenhor(dissecertavezumcamponêsparticipantedeum‘círculodecultura’aoeducador)nãoexplicaprimeiramenteosquadros (referia-seàscodificações)?Assim(concluiu)noscustarámenosenãonosdóiacabeça.”

29 “Ocamponêstemummedoquaseinstintivodopatrão.”(Entrevistacomumcamponês.)

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30 Recentemente,numpaíslatino-americano,segundodepoimentoquenosfoidadoporsociólogoamigo,umgrupodecamponeses,armados,seapoderoudolatifúndio.Pormotivosdeordemtática,sepensouemmanter o proprietário como refém. Nenhum camponês, contudo, conseguiu dar guarda a ele. Só suapresença já os assustava. Possivelmente também a açãomesma de lutar contra o patrão lhes provocassesentimentodeculpa.Opatrão,naverdade,estava“dentro”deles…

31 Nestesentido,cf.RegisDebray,Revoluçãonarevolução.SãoPaulo:CentroEd.Latino-americano,1967.

32 “Ocamponêséumdependente.Nãopodeexpressaroseuquerer.Antesdedescobrirsuadependência,sofre.Desabafasua‘pena’emcasa,ondegritacomosfilhos,bate,desespera-se.Reclamadamulher.Achatudomal.Nãodesabafa sua ‘pena’ como patrão porque considera um ser superior. Emmuitos casos, ocamponêsdesabafasua‘pena’bebendo.”(Entrevista.)

33 Referimo-nos à reduçãodosoprimidos à condiçãodemerosobjetosda ação libertadoraque, assim, érealizadamaissobreeparaelesdoquecomeles,comodeveser.

34 NocapítuloIVvoltaremosdetidamenteaestespontos.

35 Fromm,op.cit.,pp.54-5.

36 NoCapítuloIVvoltaremospormenorizadamenteaestetema.

37 ÁlvaroVieiraPinto,Ciênciaeexistência,2aed.RiodeJaneiro:PazeTerra,1986.Deixamosaquionossoagradecimento ao mestre brasileiro por nos haver permitido citá-lo antes da publicação de sua obra.Consideramos o trecho citado de grande importância para a compreensão de uma pedagogia daproblematização,queestudaremosnocapítuloseguinte.

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ACONCEPÇÃO“BANCÁRIA”DAEDUCAÇÃOCOMOINSTRUMENTODAOPRESSÃO.SEUSPRESSUPOSTOS,SUACRÍTICA

QUANTO MAIS ANALISAMOS as relações educador-educandos, na escola, emqualquerdeseusníveis(ouforadela),parecequemaisnospodemosconvencerdequeestasrelaçõesapresentamumcaráterespecialemarcante—odeseremrelaçõesfundamentalmentenarradoras,dissertadoras.

Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou afazer-se algo quasemorto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade.Narração ou dissertação que implica um sujeito — o narrador — e objetospacientes,ouvintes—oseducandos.

Há uma quase enfermidade da narração. A tônica da educação épreponderantementeesta—narrar,semprenarrar.

Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem-comportado, quandonão falar oudissertar sobre algo completamente alheio àexperiência existencial dos educandos, vem sendo, realmente, a supremainquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparececomo seu indiscutível agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é“encher” os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que sãoretalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e emcuja visão ganhariam significação.A palavra, nestas dissertações, se esvazia da

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dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, emverbosidadealienadaealienante.Daíquesejamaissomquesignificaçãoe,assim,melhorserianãodizê-la.

Poristomesmoéqueumadascaracterísticasdestaeducaçãodissertadoraéa“sonoridade” da palavra e não sua força transformadora.Quatro vezes quatro,dezesseis; Pará, capital Belém, que o educando fixa, memoriza, repete, semperceberoquerealmentesignificaquatrovezesquatro.Oqueverdadeiramentesignificacapital,naafirmação,Pará,capitalBelém.BelémparaoParáeParáparaoBrasil.38

A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos àmemorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração ostransforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador.Quantomaisvá “enchendo”os recipientescomseus “depósitos”, tantomelhoreducador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhoreseducandosserão.

Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que oseducandossãoosdepositárioseoeducador,odepositante.

Emlugardecomunicar-se,oeducadorfaz“comunicados”edepósitosqueoseducandos,meras incidências, recebempacientemente,memorizam e repetem.Eisaíaconcepção“bancária”daeducação,emqueaúnicamargemdeaçãoqueseofereceaoseducandoséadereceberemosdepósitos,guardá-losearquivá-los.Margemparaseremcolecionadoresoufichadoresdascoisasquearquivam.Nofundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor dashipóteses) equivocada concepção “bancária” da educação.Arquivados, porque,foradabusca,foradapráxis,oshomensnãopodemser.Educadoreeducandosse arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não hácriatividade,nãohátransformação,nãohásaber.Sóexistesabernainvenção,nareinvenção,nabuscainquieta,impaciente,permanente,queoshomensfazemnomundo,comomundoecomosoutros.Buscaesperançosatambém.

Navisão“bancária”daeducação,o“saber”éumadoaçãodosquesejulgamsábiosaosquejulgamnadasaber.Doaçãoquesefundanumadasmanifestaçõesinstrumentais da ideologia da opressão— a absolutização da ignorância, que

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constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta seencontrasemprenooutro.

O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas,invariáveis.Serásempreoquesabe,enquantooseducandosserãosempreosquenãosabem.Arigidezdestasposiçõesnegaaeducaçãoeoconhecimentocomoprocessosdebusca.

O educador se põe frente aos educandos como sua antinomia necessária.Reconhecenaabsolutizaçãodaignorânciadaquelesarazãodesuaexistência.Oseducandos,alienados,porsuavez,àmaneiradoescravonadialéticahegeliana,reconhecem em sua ignorância a razão da existência do educador, mas nãochegam, nem sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-seeducadoresdoeducador.

Na verdade, como mais adiante discutiremos, a razão de ser da educaçãolibertadora está no seu impulso inicial conciliador. Daí que tal forma deeducação implique a superação da contradição educador-educandos, de talmaneiraquesefaçamambos,simultaneamente,educadoreseeducandos.

Naconcepção“bancária”queestamoscriticando,paraaqualaeducaçãoéoato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não severifica nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletindo asociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a “educação”“bancária”mantémeestimulaacontradição.

Daí,então,quenela:

a. oeducadoréoqueeduca;oseducandos,osquesãoeducados;b. oeducadoréoquesabe;oseducandos,osquenãosabem;c. oeducadoréoquepensa;oseducandos,ospensados;d. o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam

docilmente;e. oeducadoréoquedisciplina;oseducandos,osdisciplinados;f. o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos, os que

seguemaprescrição;g. oeducadoréoqueatua;oseducandos,osquetêmailusãodequeatuam,na

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atuaçãodoeducador;h. oeducadorescolheoconteúdoprogramático;oseducandos,jamaisouvidos

nestaescolha,seacomodamaele;i. oeducadoridentificaaautoridadedosabercomsuaautoridadefuncional,

queopõeantagonicamenteàliberdadedoseducandos;estesdevemadaptar-seàsdeterminaçõesdaquele;

j. o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, merosobjetos.

Se o educador é o que sabe, se os educandos são os que nada sabem, cabeàqueledar,entregar,levar,transmitiroseusaberaossegundos.Saberquedeixadeserde“experiênciafeito”paraserdeexperiêncianarradaoutransmitida.

Nãoédeestranhar,pois,quenestavisão“bancária”daeducação,oshomenssejamvistoscomoseresdaadaptação,doajustamento.Quantomaisseexercitemos educandosno arquivamentodosdepósitos que lhes são feitos, tantomenosdesenvolverão em si a consciência crítica de que resultaria a sua inserção nomundo,comotransformadoresdele.Comosujeitos.

Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, emlugar de transformar, tendem a adaptar-se aomundo, à realidade parcializadanosdepósitosrecebidos.

Namedidaemqueestavisão“bancária”anulaopodercriadordoseducandosouominimiza,estimulandosua ingenuidadeenãosuacriticidade, satisfazaosinteressesdosopressores:para estes, o fundamentalnão éodesnudamentodomundo, a sua transformação.O seu “humanitarismo”, e não humanismo, estáem preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita amanutençãodesuafalsagenerosidade,aquenosreferimosnocapítuloanterior.Poristomesmoéquereagem,atéinstintivamente,contraqualquertentativadeuma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranharpelasvisõesparciaisda realidade,buscandosempreosnexosqueprendemumpontoaoutro,ouumproblemaaoutro.

Naverdade,oquepretendemosopressores“étransformaramentalidadedosoprimidosenãoasituaçãoqueosoprime”,39eistoparaque,melhoradaptando-

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osaestasituação,melhorosdominem.Paraistoseservemdaconcepçãoedaprática“bancárias”daeducação,aque

juntam toda uma ação social de caráter paternalista, em que os oprimidosrecebem o nome simpático de “assistidos”. São casos individuais, meros“marginalizados”,quediscrepamdafisionomiageraldasociedade.“Estaéboa,organizada e justa. Os oprimidos, como casos individuais, são patologia dasociedade sã, que precisa, por isto mesmo, ajustá-los a ela, mudando-lhes amentalidadedehomensineptosepreguiçosos.”

Comomarginalizados,“seresforade”ou“àmargemde”,asoluçãoparaelesestaria emque fossem “integrados”, “incorporados” à sociedade sadia de ondeumdia“partiram”,renunciando,comotrânsfugas,aumavidafeliz.

Sua solução estaria em deixarem a condição de ser “seres fora de” eassumiremade“seresdentrode”.

Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos,jamaisestiveramforade.Sempreestiveramdentrode.Dentrodaestruturaqueostransformaem“seresparaoutro”.Suasolução,pois,nãoestáem“integrar-se”,em“incorporar-se”a esta estruturaqueosoprime,mas em transformá-laparaquepossamfazer-se“seresparasi”.

Este não pode ser, obviamente, o objetivo dos opressores. Daí que a“educação bancária”, que a eles serve, jamais possa orientar-se no sentido daconscientizaçãodoseducandos.

Na educaçãode adultos,por exemplo,não interessa a esta visão “bancária”propor aos educandos o desvelamento do mundo, mas, pelo contrário,perguntar-lhes se “Ada deu o dedo ao urubu”, para depois dizer-lhes,enfaticamente,quenão,que“Adadeuodedoàarara”.

A questão está em que pensar autenticamente é perigoso. O estranhohumanismodestaconcepção“bancária”sereduzàtentativadefazerdoshomensoseucontrário—oautômato,queéanegaçãodesuaontológicavocaçãodesermais.

O que não percebem os que executam a educação “bancária”,deliberadamente ou não (porque há um sem-número de educadores de boavontade,queapenasnãosesabemaserviçodadesumanizaçãoaopraticaremo“bancarismo”), é que nos próprios “depósitos” se encontram as contradições,

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apenasrevestidasporumaexterioridadequeasoculta.Eque,cedooutarde,ospróprios“depósitos”podemprovocarumconfrontocomarealidadeemdeveniredespertaroseducandos,atéentãopassivos,contraasua“domesticação”.

Asua“domesticação”eadarealidade,daqualselhesfalacomoalgoestático,podedespertá-loscomocontradiçãodesimesmosedarealidade.Desimesmos,aosedescobrirem,porexperiênciaexistencial,emummododeserinconciliávelcom a sua vocação de humanizar-se.Da realidade, ao perceberem-na em suasrelaçõescomela,comodevenirconstante.

ACONCEPÇÃOPROBLEMATIZADORAELIBERTADORADAEDUCAÇÃO.SEUSPRESSUPOSTOS

É que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica éhumanizar-se,podem,cedooutarde,perceberacontradiçãoemquea“educaçãobancária”pretendemantê-loseengajar-senalutaporsualibertação.

Um educador humanista, revolucionário, não há de esperar estapossibilidade.40 Sua ação, identificando-se, desde logo, com a dos educandos,deve orientar-se no sentido da humanização de ambos.Do pensar autêntico enãonosentidodadoação,daentregadosaber.Suaaçãodeveestarinfundidadaprofundacrençanoshomens.Crençanoseupodercriador.

Isto tudo exige dele que seja um companheiro dos educandos, em suasrelaçõescomestes.

A educação “bancária”, em cuja prática se dá a inconciliação educador-educandos, rechaça este companheirismo. E é lógico que seja assim. Nomomentoemqueoeducador“bancário”vivessea superaçãodacontradição jánão seria “bancário”. Jánão fariadepósitos. Jánão tentariadomesticar. Jánãoprescreveria.Sabercomoseducandos,enquantoestessoubessemcomele,seriasuatarefa.Jánãoestariaaserviçodadesumanização.Aserviçodaopressão,masaserviçodalibertação.

ACONCEPÇÃO“BANCÁRIA”EACONTRADIÇÃOEDUCADOR-EDUCANDO

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Esta concepção “bancária” implica, além dos interesses já referidos, outrosaspectosqueenvolvemsuafalsavisãodoshomens.Aspectosoraexplicitados,oranão,emsuaprática.

Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmentenomundo e não comomundo e comos outros.Homens espectadores e nãorecriadoresdomundo.Concebeasuaconsciênciacomoalgoespacializadonelese não aos homens como “corpos conscientes”. A consciência como se fossealguma seção “dentro” dos homens, mecanicistamente compartimentada,passivamente aberta ao mundo que a irá “enchendo” de realidade. Umaconsciência continente a receber permanentemente os depósitos que omundolhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Como se os homensfossemumapresadomundoeeste,umeternocaçadordaqueles,quetivessepordistração“enchê-los”depedaçosseus.

Para esta equivocada concepçãodoshomens,nomomentomesmo emqueescrevo,estariam“dentro”demim,comopedaçosdomundoquemecircunda,amesaemqueescrevo,oslivros,axícaradecafé,osobjetostodosqueaquiestão,exatamentecomodentrodestequartoestouagora.

Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada naconsciência.Amesaemqueescrevo,oslivros,axícaradecafé,osobjetosquemecercam estão simplesmente presentes à minha consciência, e não dentro dela.Tenhoaconsciênciadelesmasnãoostenhodentrodemim.

Mas, separaaconcepção“bancária”aconsciênciaé, emsuarelaçãocomomundo,esta“peça”passivamenteescancaradaaele,àesperadequeentrenela,coerentementeconcluiráqueaoeducadornãocabenenhumoutropapelquenãoodedisciplinaraentradadomundonoseducandos.Seutrabalhoserá,também,o de imitar o mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de“encher”oseducandosdeconteúdos.Éode fazerdepósitosde“comunicados”—falsosaber—queeleconsideracomoverdadeirosaber.41

Eporqueoshomens,nestavisão,aoreceberemomundoquenelesentra,jásão seres passivos, cabe à educação apassivá-los mais ainda e adaptá-los aomundo. Quanto mais adaptados, para a concepção “bancária”, tanto mais“educados”,porqueadequadosaomundo.

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Estaéumaconcepçãoque,implicandoumaprática,somentepodeinteressaraosopressores,queestarãotãomaisempaz,quantomaisadequadosestejamoshomens ao mundo. E tão mais preocupados, quanto mais questionando omundoestejamoshomens.

Quantomais se adaptamas grandesmaiorias às finalidades que lhes sejamprescritas pelas minorias dominadoras, de tal modo que careçam aquelas dodireitodeterfinalidadespróprias,maispoderãoestasminoriasprescrever.

Aconcepçãoeapráticadaeducaçãoquevimoscriticandoseinstauramcomoeficientes instrumentos para este fim. Daí que um dos seus objetivosfundamentais,mesmoquedelenãoestejamadvertidosmuitosdoquearealizam,sejadificultar,emtudo,opensarautêntico.Nasaulasverbalistas,nosmétodosdeavaliaçãodos “conhecimentos”,no chamado “controlede leitura”,nadistânciaentre o educador e os educandos, nos critérios de promoção, na indicaçãobibliográfica,42 em tudo, há sempre a conotação “digestiva” e a proibição aopensarverdadeiro.

Entrepermanecerporquedesaparece,numaespéciedemorrerparaviver,edesaparecerpelaenaimposiçãodesuapresença,oeducador“bancário”escolhea segunda hipótese. Não pode entender que permanecer é buscar ser, com osoutros.É conviver, simpatizar.Nunca sobrepor-se,nem sequer justapor-se aoseducandos,dessimpatizar.Nãohápermanêncianahipertrofia.

Mas, emnadadistopodeo educador “bancário” crer.Conviver, simpatizarimplicam comunicar-se, o que a concepção que informa sua prática rechaça eteme.

Nãopodeperceberquesomentenacomunicaçãotemsentidoavidahumana.Que o pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade dopensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto, naintercomunicação.Poristo,opensardaquelenãopodeserumpensarparaestesnemaestesimposto.Daíquenãodevaserumpensarnoisolamento,natorredemarfim,masnaepelacomunicação,emtorno,repitamos,deumarealidade.

E,seopensarsóassimtemsentido,setemsuafontegeradoranaaçãosobreomundo, oqualmediatiza as consciências emcomunicação,não serápossível asuperposiçãodoshomensaoshomens.

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Esta superposição, que é uma das notas fundamentais da concepção“educativa” que estamos criticando, mais uma vez a situa como prática dadominação.

Dela,quepartedeumacompreensãofalsadoshomens—reduzidosamerascoisas—,nãosepodeesperarqueprovoqueodesenvolvimentodoqueFrommchamadebiofilia,masodesenvolvimentodeseucontrário,anecrofilia.

Mientraslavida(dizFromm)secaracterizaporelcrecimientodeunamaneraestructurada, funcional, el individuonecrófiloama todo loqueno crece, todo loque es mecánico. La persona necrófila es movida por un deseo de convertir loorgánico en morgánico, do mirar la vida mecánicamente, como si todas laspersonasvivientesfuezencosas.Todoslosprocesos,sentimientosypensamientosdevidasetransformanencosas.Lamemoriaynolaexperiencia;tenerynoseresloquecuenta.Elindividuonecrófilopuederealizarseconunobjeto—unaflorounapersona—únicamentesilaposee;enconsecuenciaunaamenazaasuposesiónesunaamenazaaélmismo,sipierdelaposesión,pierdeelcontactoconelmundo.E,maisadiante:Amaelcontrolyenelactodecontrolar,matalavida.43

Aopressão, que éumcontrole esmagador, énecrófila.Nutre-sedo amor àmorteenãodoamoràvida.

Aconcepção“bancária”,queaelaserve, tambémoé.Nomomentomesmoemquesefundanumconceitomecânico,estático,espacializadodaconsciênciaeem que transforma, por isto mesmo, os educandos em recipientes, em quasecoisas,nãopodeescondersuamarcanecrófila.Nãosedeixamoverpeloânimodelibertaropensamentopelaaçãodoshomensunscomoutrosnatarefacomumderefazeremomundoedetorná-lomaisemaishumano.

Seu ânimo é justamente o contrário— o de controlar o pensar e a ação,levandooshomensaoajustamentoaomundo.Éinibiropoderdecriar,deatuar.Mas,ao fazer isto,aoobstaculizaraatuaçãodoshomens,comosujeitosdesuaação,comoseresdeopção,frustra-os.

Quando,porém,porummotivoqualquer,oshomenssesentemproibidosdeatuar,quandosedescobremincapazesdeusarsuasfaculdades,sofrem.

Este sofrimento provém “do fato de se haver perturbado o equilíbriohumano”(Fromm).Mas,onãopoderatuar,queprovocaosofrimento,provoca

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tambémnoshomenso sentimentoderecusaà sua impotência.Tentam,então,“restabelecerasuacapacidadedeatuar”(Fromm).

“Pode,porém,fazê-lo?Ecomo?”,perguntaFromm.“Ummodo,responde,ésubmeter-seaumapessoaouaumgrupoquetenhapodereidentificar-secomeles. Por esta participação simbólica na vida de outra pessoa, o homem tem ailusãodequeatua,quando,emrealidade,nãofazmaisquesubmeter-seaosqueatuameconverter-seempartedeles.”44

Talvez possamos encontrar nos oprimidos este tipo de reação nasmanifestaçõespopulistas.Sua identificaçãocomlíderescarismáticos,atravésdequemsepossamsentiratuantese,portanto,nousodesuapotência,bemcomoasuarebeldia,quandodesuaemersãonoprocessohistórico,estãoenvolvidasporesteímpetodebuscadeatuaçãodesuapotência.

Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que é ameaça a elas, tem o seuremédio em mais dominação — na repressão feita em nome, inclusive, daliberdade e no estabelecimento da ordem e da paz social. Paz social que, nofundo,nãoéoutrasenãoapazprivadadosdominadores.

Por istomesmo é que podem considerar— logicamente, do seu ponto devista—umabsurdo the violenceof a strikebyworkersand (can) callupon thestateinthesamebreathtouseviolenceinputtingdownthestrike.45

Aeducaçãocomopráticadadominação,quevemsendoobjetodestacrítica,mantendo a ingenuidade dos educandos, o que pretende, em seu marcoideológico(nemsemprepercebidopormuitosdosquearealizam),éindoutriná-losnosentidodesuaacomodaçãoaomundodaopressão.

Aodenunciá-la,nãoesperamosqueas elitesdominadoras renunciemà suaprática.Seriademasiadoingênuoesperá-lo.

Nossoobjetivoéchamaraatençãodosverdadeiroshumanistasparaofatodequeelesnãopodem,nabuscada libertação, servir-sedaconcepção“bancária”,sobpenadesecontradizerememsuabusca.Assimcomotambémnãopodeestaconcepçãotornar-selegadodasociedadeopressoraàsociedaderevolucionária.

A sociedade revolucionáriaquemantenhaapráticadaeducação“bancária”ouseequivocounestamanutenção,ousedeixou“morder”peladesconfiançaepela descrença nos homens. Em qualquer das hipóteses, estará ameaçada peloespectrodareação.

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Disto, infelizmente, parece que nem sempre estão convencidos os que seinquietam pela causa da libertação. É que, envolvidos pelo clima gerador daconcepção “bancária” e sofrendo sua influência, não chegam a perceber o seusignificado ou a sua força desumanizadora. Paradoxalmente, então, usam omesmoinstrumentoalienador,numesforçoquepretendemlibertador.Eháatéosque,usandoomesmoinstrumentoalienador,chamamaosquedivergemdestapráticadeingênuosousonhadores,quandonãodereacionários.

Oquenospareceindiscutíveléque,sepretendemosalibertaçãodoshomens,não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertaçãoautêntica,queéahumanizaçãoemprocesso,nãoéumacoisaquesedepositanoshomens.Nãoéumapalavraamais,oca,mitificante.Épráxis,queimplicaaaçãoeareflexãodoshomenssobreomundoparatransformá-lo.

Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica daconsciência, que a vê como algo vazio a ser enchido, um dos fundamentosimplícitosnavisão“bancária”criticada,équenãopodemosaceitar,também,quea ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, dapropagandadosslogans,dos“depósitos”.

Aeducaçãoqueseimpõeaosqueverdadeiramentesecomprometemcomalibertaçãonãopodefundar-senumacompreensãodoshomenscomoseresvaziosaquemomundo“encha”deconteúdos;nãopodebasear-senumaconsciênciaespecializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como“corposconscientes”enaconsciênciacomoconsciênciaintencionadaaomundo.Nãopodeseradodepósitodeconteúdos,masadaproblematizaçãodoshomensemsuasrelaçõescomomundo.

Ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora, respondendo àessênciadoserdaconsciência,queésuaintencionalidade,negaoscomunicadose existencia a comunicação. Identifica-se com o próprio da consciência que ésempre ser consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos, mastambém quando se volta sobre si mesma, no que Jaspers46 chama de “cisão”.Cisãoemqueaconsciênciaéconsciênciadeconsciência.

Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser oato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir“conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da

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educação“bancária”,masumatocognoscente.Comosituaçãognosiológica,emqueoobjetocognoscível,emlugardeserotérminodoatocognoscentedeumsujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado,educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, aexigência da superação da contradição educador-educandos. Sem esta, não épossível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitoscognoscentes,emtornodomesmoobjetocognoscível.

O antagonismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”, que serve àdominação; outra, a problematizadora, que serve à libertação, toma corpoexatamente aí. Enquanto a primeira, necessariamente, mantém a contradiçãoeducador-educandos,asegundarealizaasuperação.

Para manter a contradição, a concepção “bancária” nega a dialogicidadecomo essência da educação e se faz antidialógica; para realizar a superação, aeducaçãoproblematizadora—situaçãognosiológica—afirmaadialogicidadeesefazdialógica.

NINGUÉMEDUCANINGUÉM,NINGUÉMEDUCAASIMESMO,OSHOMENSSEEDUCAMENTRESI,MEDIATIZADOSPELOMUNDO

Emverdade,nãoseriapossívelàeducaçãoproblematizadora,querompecomosesquemasverticaiscaracterísticosdaeducaçãobancária,realizar-secomopráticadaliberdade,semsuperaracontradiçãoentreoeducadoreoseducandos.Comotambémnãolheseriapossívelfazê-loforadodiálogo.

Éatravésdestequeseoperaasuperaçãodequeresultaumtermonovo:nãomais educador do educando, nãomais educandodo educador,mas educador-educandocomeducando-educador.

Destamaneira,oeducadorjánãoéoqueapenaseduca,masoque,enquantoeduca, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, tambémeduca.Ambos, assim, se tornamsujeitosdoprocessoemquecrescem juntos eem que os “argumentos de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se,funcionalmente,autoridade,senecessitadeestarsendocomas liberdadesenãocontraelas.

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Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a simesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática “bancária”, sãopossuídospeloeducadorqueosdescreveouosdepositanoseducandospassivos.

Esta prática, que a tudo dicotomiza, distingue, na ação do educador, doismomentos. O primeiro, em que ele, na sua biblioteca ou no seu laboratório,exerce um ato cognoscente frente ao objeto cognoscível, enquanto se preparapara suas aulas.O segundo, emque, frente aos educandos,narraoudisserta arespeitodoobjetosobreoqualexerceuoseuatocognoscente.

Opapelquecabeaestes,comosalientamosnaspáginasprecedentes,éapenaso de arquivarem a narração ou os depósitos que lhes faz o educador. Destaforma, em nome da “preservação da cultura e do conhecimento”, não háconhecimento,nemculturaverdadeiros.

Não pode haver conhecimento pois os educandos não são chamados aconhecer,mas amemorizar o conteúdo narrado pelo educador. Não realizamnenhum ato cognoscitivo, uma vez que o objeto que deveria ser posto comoincidência de seu ato cognoscente é posse do educador e nãomediatizador dareflexãocríticadeambos.

Apráticaproblematizadora,pelocontrário,nãodistingueestesmomentosnoquefazerdoeducador-educando.

Nãoésujeitocognoscenteemum,esujeitonarradordoconteúdoconhecidoemoutro.

É sempreumsujeitocognoscente,querquandoseprepara,querquandoseencontradialogicamentecomoseducandos.

Oobjetocognoscível,dequeoeducadorbancárioseapropria,deixadeser,para ele, uma propriedade sua, para ser a incidência da reflexão sua e doseducandos.

Deste modo, o educador problematizador re-faz, constantemente, seu atocognoscente, na cognoscitividade dos educandos. Estes, em lugar de seremrecipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogocomoeducador,investigadorcrítico,também.

Namedidaemqueoeducadorapresentaaoseducandos,comoobjetodesua“ad-miração”, o conteúdo, qualquer que ele seja, do estudo a ser feito, “re-ad-

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mira”a“ad-miração”queantesfez,na“ad-miração”quefazemoseducandos.Pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma situação

gnosiológica, o papel do educador problematizador é proporcionar, com oseducandos,ascondiçõesemquesedêasuperaçãodoconhecimentononíveldadoxapeloverdadeiroconhecimento,oquesedánoníveldologos.

Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica umaespécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educaçãoproblematizadora,decaráterautenticamentereflexivo,implicaumconstanteatodedesvelamentodarealidade.Aprimeirapretendemanteraimersão;asegunda,pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserçãocríticanarealidade.

Quantomaisseproblematizamoseducandos,comoseresnomundoecomomundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto maisobrigadosaresponderaodesafio.Desafiados,compreendemodesafionaprópriaação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como umproblemaem suas conexões comoutros,numplanode totalidade enão comoalgo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentementecrítica,poristo,cadavezmaisdesalienada.

Através dela, que provoca novas compreensões de novos desafios, que vãosurgindo no processo da resposta, se vão reconhecendo, mais e mais, comocompromisso.Assiméquesedáoreconhecimentoqueengaja.

Aeducaçãocomopráticadaliberdade,aocontráriodaquelaqueépráticadadominação, implica anegaçãodohomemabstrato, isolado, solto,desligadodomundo,assimcomotambémanegaçãodomundocomoumarealidadeausentedoshomens.

Areflexãoquepropõe,porserautêntica,nãoésobreestehomemabstraçãonemsobreestemundosemhomens,massobreoshomensemsuasrelaçõescomomundo.Relaçõesemqueconsciênciaemundosedãosimultaneamente.Nãoháumaconsciênciaanteseummundodepoisevice-versa.

“Aconsciênciaeomundo”,dizSartre,“sedãoaomesmotempo:exteriorporessênciaàconsciência,omundoé,poressência,relativoaela”.47

Por isto éque, certa vez,numdos “círculosde cultura”do trabalhoque serealiza no Chile, um camponês, a quem a concepção bancária classificaria de

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“ignoranteabsoluto”,declarou,enquantodiscutia,atravésdeuma“codificação”,o conceito antropológico de cultura: “Descubro agora quenãohámundo semhomem.”Equandooeducadorlhedisse:“Admitamos,absurdamente,quetodosos homens domundomorressem,mas ficasse a terra, ficassem as árvores, ospássaros,osanimais,osrios,omar,asestrelas,nãoseriatudoistomundo?”

“Não!”, respondeu enfático, “faltaria quem dissesse Isto é mundo”. Ocamponês quis dizer, exatamente, que faltaria a consciência do mundo que,necessariamente,implicaomundodaconsciência.

Naverdade,nãoháeuqueseconstituasemumnãoeu.Porsuavez,onãoeuconstituintedoeuseconstituinaconstituiçãodoeuconstituído.Destaforma,omundo constituinte da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual seintenciona. Daí, a afirmação de Sartre, anteriormente citada: “consciência emundosedãoaomesmotempo.”

Namedidaemqueoshomens,simultaneamenterefletindosobresiesobreomundo,vãoaumentandoocampodesuapercepção,vãotambémdirigindosua“mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes ao que Husserlchamade“visõesdefundo”,48nãosedestacavam,“nãoestavampostosporsi”.

Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos evoltandosuareflexãosobreeles.

O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suasimplicaçõesmaisprofundase,àsvezes,nemsequererapercebido,se“destaca”eassumeocaráterdeproblemas,portanto,dedesafio.

Apartirdestemomento,o“percebidodestacado”jáéobjetoda“admiração”doshomens,e,comotal,desuaaçãoedeseuconhecimento.

Enquanto,naconcepção“bancária”—permita-se-nosarepetiçãoinsistente—,oeducadorvai“enchendo”oseducandosdefalsosaber,quesãoosconteúdosimpostos,napráticaproblematizadora, vãoos educandosdesenvolvendoo seupoder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suasrelações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como umarealidadeemtransformação,emprocesso.

Atendência,então,doeducador-educandocomodoseducandos-educadoreséestabeleceremumaformaautênticadepensareatuar.Pensar-seasimesmoseaomundo,simultaneamente,semdicotomizarestepensardaação.

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Aeducaçãoproblematizadora se faz, assim,umesforçopermanenteatravésdoqualoshomensvãopercebendo,criticamente,comoestãosendonomundocomqueeemqueseacham.

Se,defato,nãoépossívelentendê-losforadesuasrelaçõesdialéticascomomundo, se estas existem independentemente de se eles as percebem ou não, eindependentementedecomoaspercebem,éverdadetambémqueasuaformadeatuar,sendoestaouaquela,éfunção,emgrandeparte,decomosepercebamnomundo.

Mais uma vez se antagonizam as duas concepções e as duas práticas queestamosanalisando.A“bancária”,poróbviosmotivos,insisteemmanterocultascertasrazõesqueexplicamamaneiracomoestãosendooshomensnomundoe,para isto, mistifica a realidade. A problematizadora, comprometida com alibertação, se empenha na desmitificação. Por isto, a primeira nega o diálogo,enquantoasegundatemneleoselodoatocognoscente,desveladordarealidade.

Aprimeira“assistencializa”;a segunda,criticiza.Aprimeira,namedidaemque,servindoàdominação,inibeacriatividadee,aindaquenãopodendomatara intencionalidade da consciência como um desprender-se ao mundo, a“domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica dehumanizar-se.Asegunda,namedidaemque,servindoàlibertação,sefundanacriatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre arealidade,respondeàsuavocação,comoseresquenãopodemautenticar-seforadabuscaedatransformaçãocriadora.

OHOMEMCOMOUMSERINCONCLUSO,CONSCIENTEDESUAINCONCLUSÃO,ESEU

PERMANENTEMOVIMENTODEBUSCADOSERMAIS

A concepção e a prática “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam pordesconhecer os homens como seres históricos, enquanto a problematizadoraparte exatamente do caráter histórico e da historicidade dos homens. Por istomesmoéqueosreconhececomoseresqueestãosendo,comoseresinacabados,inconclusosemecomumarealida-deque,sendohistóricatambém,éigualmente

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inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenasinacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm aconsciênciadesua inconclusão.Aíseencontramasraízesdaeducaçãomesma,comomanifestaçãoexclusivamentehumana.Istoé,nainconclusãodoshomensenaconsciênciaquedelatêm.Daíquesejaaeducaçãoumquefazerpermanente.Permanentemente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir darealidade.

Destamaneira,aeducaçãosere-fazconstantementenapráxis.Paraser temqueestarsendo.

Sua“duração”—nosentidobergsonianodo termo—,comoprocesso,estánojogodoscontráriospermanência-mudança.

Enquanto a concepção “bancária” dá ênfase à permanência, a concepçãoproblematizadorareforçaamudança.

Destemodo, a prática “bancária”, implicando o imobilismo a que fizemosreferência,sefazreacionária,enquantoaconcepçãoproblematizadora,que,nãoaceitando um presente “bem-comportado”, não aceita igualmente um futuropré-dado,enraizando-senopresentedinâmico,sefazrevolucionária.

A educação problematizadora, que não é fixismo reacionário, é futuridaderevolucionária. Daí que seja profética e, como tal, esperançosa.49 Daí quecorrespondaàcondiçãodoshomenscomosereshistóricoseàsuahistoricidade.Daí que se identifique com eles como seresmais alémde simesmos— como“projetos” —, como seres que caminham para frente, que olham para frente;comoseresaquemoimobilismoameaçademorte;paraquemoolharparatrásnãodeve seruma formanostálgicadequerervoltar,masummododemelhorconheceroqueestásendo,paramelhorconstruirofuturo.Daíqueseidentifiquecom o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, comoseres que se sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seupontodepartida,oseusujeito,oseuobjetivo.

Opontodepartidadestemovimentoestánoshomensmesmos.Mas, comonãoháhomens semmundo, semrealidade,omovimentoparte

das relações homens-mundo.Daí que este ponto de partida esteja sempre noshomens no seu aqui e no seu agora que constituem a situação em que seencontramoraimersos,oraemersos,orainsertados.

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Somenteapartirdestasituação,quelhesdeterminaaprópriapercepçãoquedelaestãotendo,équepodemmover-se.

E,parafazê-lo,autenticamente,énecessário,inclusive,queasituaçãoemqueestãonãolhesapareçacomoalgofataleintransponível,mascomoumasituaçãodesafiadora,queapenasoslimita.

Enquantoaprática“bancária”,portudooquedeladissemos,enfatiza,diretaou indiretamente, a percepção fatalista que estejam tendo os homens de suasituação, a prática problematizadora, ao contrário, propõe aos homens suasituaçãocomoproblema.Propõeaelessuasituaçãocomoincidênciadeseuatocognoscente,atravésdoqual serápossívela superaçãodapercepçãomágicaouingênuaquedelatenham.Apercepçãoingênuaoumágicadarealidadedaqualresultava a postura fatalista cede seu lugar a uma percepção que é capaz deperceber-se.Eporqueécapazdeperceber-seenquantopercebearealidadequelhepareciaemsiinexorável,écapazdeobjetivá-la.

Destaforma,aprofundandoatomadadeconsciênciadasituação,oshomensse “apropriam” dela como realidade histórica, por isto mesmo, capaz de sertransformadaporeles.

Ofatalismocede,então,seulugaraoímpetodetransformaçãoedebusca,dequeoshomenssesentemsujeitos.

Seria, realmente, uma violência, como de fato é, que os homens, sereshistóricos e necessariamente inseridos nummovimento de busca, com outroshomens,nãofossemosujeitodeseuprópriomovimento.

Por istomesmoéque,qualquerque sejaa situaçãoemquealgunshomensproíbamaosoutrosquesejamsujeitosdesuabusca, se instauracomosituaçãoviolenta.Nãoimportamosmeiosusadosparaestaproibição.Fazê-losobjetoséaliená-losdesuasdecisões,quesãotransferidasaoutroouaoutros.

Estemovimentodebusca,porém,sósejustificanamedidaemquesedirigeaosermais, à humanizaçãodoshomens.E esta, comoafirmamosnoprimeirocapítulo, é sua vocação histórica, contraditada pela desumanização que, nãosendo vocação, é viabilidade, constatável na história. E, enquanto viabilidade,deveapareceraoshomenscomodesafioenãocomofreioaoatodebuscar.

Esta busca do ser mais, porém, não pode realizar-se no isolamento, noindividualismo,mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja

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impossíveldar-senasrelaçõesantagônicasentreopressoreseoprimidos.Ninguém pode ser, autenticamente, proibindo que os outros sejam. Esta é

umaexigênciaradical.Osermaisquesebusquenoindividualismoconduzaotermais egoísta, forma de ser menos. De desumanização. Não que não sejafundamental—repitamos—terparaser.Precisamenteporqueé,nãopodeoterde alguns converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo opoder dos primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua escassez depoder.

Para a prática “bancária”, o fundamental é, no máximo, amenizar estasituação, mantendo, porém, as consciências imersas nela. Para a educaçãoproblematizadora, enquantoumquefazerhumanistae libertador,o importanteestáemqueoshomenssubmetidosàdominaçãolutemporsuaemancipação.

Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazemsujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando oautoritarismo do educador “bancário”, supera também a falsa consciência domundo.

Omundo,agora, jánãoéalgosobreque se falacomfalsaspalavras,masomediatizadordossujeitosdaeducação,aincidênciadaaçãotransformadoradoshomens,dequeresulteasuahumanização.

Estaéarazãoporqueaconcepçãoproblematizadoradaeducaçãonãopodeserviraoopressor.

Nenhuma“ordem”opressorasuportariaqueosoprimidostodospassassemadizer:“Porquê?”

Se esta educação somente pode ser realizada, em termos sistemáticos, pelasociedadeque feza revolução, istonão significaquea liderança revolucionáriaespereachegadaaopoderparaaplicá-la.

Noprocessorevolucionário,aliderançanãopodeser“bancária”,paradepoisdeixardesê-lo.50

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Notas

38 Poderá dizer-se que casos como estes já não sucedem nas escolas brasileiras. Se realmente estes nãoocorrem,continua,contudo,preponderantemente,ocaráternarradorqueestamoscriticando.

39 SimonedeBeauvoir,Elpensamientopolíticodeladerecha.BuenosAires:EdicionesSigloVeinte/S.R.L.,1963,p.34.

40 Não fazemos esta afirmação ingenuamente. Já temos afirmado que a educação reflete a estrutura dopoder,daíadificuldadequetemumeducadordialógicodeatuarcoerentementenumaestruturaquenegaodiálogo.Algofundamental,porém,podeserfeito:dialogarsobreanegaçãodoprópriodiálogo.

41 Aconcepçãodosaber,daconcepção“bancária”,é,nofundo,oqueSartre(Elhombreylascosas.BuenosAires: Losada S.A., 1965, pp. 25-6.) chamaria de concepção “digestiva” ou “alimentícia” do saber. Este écomosefosseo“alimento”queoeducadorvaiintroduzindonoseducandos,numaespéciedetratamentodeengorda…

42 Háprofessoresque,aoindicarumarelaçãobibliográfica,determinamaleituradeumlivrodapágina10àpágina15,efazemistoparaajudarosalunos.

43 Fromm,op.cit.,pp.28-9.

44 Id.,ibid.,pp.28-9.

45 ReinholdNiebuhr,MoralManandImmoralSociety.NovaYork:CharlesScribner’sSons,1960,p.130.

46 Thereflexionofconsciousnessuponitself isasself-evidentandmarvelousas is its intentionality. Iamatmyself;Iambothoneandtwofold.Idonotexistasathingexists,butinaninnersplit,asmyownobject,andthusinmotionandinnerunrest.KarlJaspers,Philosophy,v.1.TheUniversityofChicagoPress,1969,p.50.

47 J.-P.Sartre,op.cit.,pp.25-6.

48 EdmundHusserl, Ideas Pertaining to A Pure Phenomenology and to A Phenomenological Philosophy:GeneralIntroductiontoAPurePhenomenology,3aed.Londres:CollierBooks,1969,pp.103-6.

49 EmAçãoculturalparaaliberdadeeoutrosescritos,discutimosmaisamplamenteestesentidoproféticoeesperançoso da educação (ou ação cultural) problematizadora. Profetismo e esperança que resultam docaráterutópicodetalformadeação,tomando-seautopiacomoaunidadeinquebrantávelentreadenúnciaeo anúncio.Denúnciadeuma realidadedesumanizante e anúnciodeuma realidade emqueoshomenspossamsermais.Anúncioedenúncianãosão,porém,palavrasvazias,mascompromissohistórico.

50 NoCapítuloIVanalisamosdetidamenteesteaspecto,aodiscutirmosasteoriasantidialógicaedialógicadaação.

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ADIALOGICIDADE:ESSÊNCIADAEDUCAÇÃOCOMOPRÁTICADALIBERDADE

AO INICIAR ESTE CAPÍTULO SOBRE a dialogicidade da educação, com o qualestaremoscontinuandoasanálisesfeitasnosanteriores,apropósitodaeducaçãoproblematizadora, parece-nos indispensável tentar algumas considerações emtorno da essência do diálogo. Considerações com as quais aprofundemosafirmaçõesquefizemosarespeitodomesmotemaemEducaçãocomopráticadaliberdade.51

Quandotentamosumadentramentonodiálogocomofenômenohumano,senos revela algo que já poderemos dizer ser ele mesmo: a palavra.Mas, aoencontrarmos a palavra, na análise do diálogo, como algomais que ummeioparaqueelesefaça,senosimpõebuscar,também,seuselementosconstitutivos.

Estabuscanos levaasurpreender,nela,duasdimensões:açãoereflexão,detalformasolidárias,emumainteraçãotãoradicalque,sacrificada,aindaqueemparte,umadelas,seressente,imediatamente,aoutra.Nãohápalavraverdadeiraque não seja práxis.52 Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar omundo.53

Apalavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar arealidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementosconstituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação,sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma empalavreria,verbalismo,blá-blá-blá.Portudoisto,alienadaealienante.Éumapalavraoca,da

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qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois que não há denúnciaverdadeirasemcompromissodetransformação,nemestesemação.

Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício dareflexão, a palavra se converte em ativismo. Este, que é ação pela ação, aominimizarareflexão,negatambémapráxisverdadeiraeimpossibilitaodiálogo.

Qualquer destas dicotomias, ao gerar-se em formas inautênticas de existir,geraformasinautênticasdepensar,quereforçamamatrizemqueseconstituem.

Aexistência,porquehumana,nãopodesermuda,silenciosa,nemtampoucopode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que oshomenstransformamomundo.Existir,humanamente,épronunciaromundo,émodificá-lo. Omundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aossujeitospronunciantes,aexigirdelesnovopronunciar.

Nãoénosilêncio54queoshomenssefazem,masnapalavra,notrabalho,naação-reflexão.

Mas,sedizerapalavraverdadeira,queétrabalho,queépráxis,étransformaromundo,dizerapalavranãoéprivilégiodealgunshomens,masdireitodetodosos homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeirasozinho,oudizê-laparaosoutros,numatodeprescrição,comoqual roubaapalavraaosdemais.

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, parapronunciá-lo,nãoseesgotando,portanto,narelaçãoeu-tu.

Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem apronúnciadomundoeosquenãoaquerem;entreosquenegamaosdemaisodireito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É precisoprimeiroqueosqueassimseencontramnegadosnodireitoprimordialdedizerapalavra reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizantecontinue.

Se é dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, os homens otransformam,odiálogose impõecomocaminhopeloqualoshomensganhamsignificaçãoenquantohomens.

Poristo,odiálogoéumaexigênciaexistencial.E,seeleéoencontroemquese solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados aomundo a sertransformadoehumanizado,nãopodereduzir-seaumatodedepositarideiasde

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um sujeitono outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a seremconsumidaspelospermutantes.

Nãoétambémdiscussãoguerreira,polêmica,entresujeitosquenãoaspiramacomprometer-secomapronúnciadomundo,nemabuscaraverdade,masaimporasua.

Porque é encontro de homens que pronunciam o mundo, não deve serdoaçãodopronunciardeunsaoutros.Éumatodecriação.Daíquenãopossaser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para a conquista dooutro.Aconquistaimplícitanodiálogoéadomundopelossujeitosdialógicos,nãoadeumpelooutro.Conquistadomundoparaalibertaçãodoshomens.

EDUCAÇÃODIALÓGICAEDIÁLOGO

Nãohádiálogo,porém,senãoháumprofundoamoraomundoeaoshomens.Nãoépossível apronúnciadomundo,queéumatode criaçãoe recriação, senãoháamorqueainfunda.55

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que sejaessencialmente tarefa de sujeitos e que não possa verificar-se na relação dedominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em quem domina;masoquismonosdominados.Amor,não.Porqueéumatodecoragem,nuncademedo, o amor é compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes,oprimidos, o atode amor está emcomprometer-se comsua causa.A causadesualibertação.Mas,estecompromisso,porqueéamoroso,édialógico.

Comoatodevalentia,nãopodeserpiegas;comoatodeliberdade,nãopodeserpretextopara amanipulação, senão geradordeoutros atosde liberdade.Anãoserassim,nãoéamor.

Somentecomasupressãodasituaçãoopressoraépossívelrestauraroamorquenelaestavaproibido.

Senãoamoomundo,senãoamoavida,senãoamooshomens,nãomeépossívelodiálogo.

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Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. A pronúncia domundo,comqueoshomensorecriampermanentemente,nãopodeserumatoarrogante.

Odiálogo,comoencontrodoshomensparaatarefacomumdesaberagir,serompe,seseuspolos(ouumdeles)perdemahumildade.

Comopossodialogar,sealienoaignorância,istoé,seavejosemprenooutro,nuncaemmim?

Comopossodialogar,semeadmitocomoumhomemdiferente,virtuosoporherança,diantedosoutros,meros“isto”,emquemnãoreconheçooutroseu?

Comopossodialogar,semesintoparticipantedeumguetodehomenspuros,donosdaverdadeedosaber,paraquemtodososqueestãoforasão“essagente”,ousão“nativosinferiores”?

Como posso dialogar, se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa dehomens seletos e que a presença das massas na história é sinal de suadeterioraçãoquedevoevitar?

Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamaisreconheço,eatémesintoofendidocomela?

Comoposso dialogar se temo a superação e se, só empensar nela, sofro edefinho?

A autossuficiência é incompatível como diálogo.Os homens que não têmhumildadeouaperdemnãopodemaproximar-sedopovo.Nãopodemserseuscompanheiros de pronúncia domundo. Se alguém não é capaz de sentir-se esaber-setãohomemquantoosoutros,équelhefaltaaindamuitoquecaminhar,para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não háignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão,buscamsabermais.

Não há também diálogo se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seupoderdefazerederefazer.Decriarerecriar.Fénasuavocaçãodesermais,quenãoéprivilégiodealgunseleitos,masdireitodoshomens.

Afénoshomenséumdadoaprioridodiálogo.Poristo,existeantesmesmodequeeleseinstale.Ohomemdialógicotemfénoshomensantesdeencontrar-se frente a frente com eles. Esta, contudo, não é uma ingênua fé. O homemdialógico,queécrítico,sabeque,seopoderdefazer,decriar,detransformar,é

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um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situação concreta,alienados, ter este poder prejudicado. Esta possibilidade, porém, em lugar dematarnohomemdialógicoa sua fénoshomens, aparecea ele,pelo contrário,comoumdesafioaoqualtemderesponder.Estáconvencidodequeestepoderde fazer e transformar, mesmo que negado em situações concretas, tende arenascer. Pode renascer. Pode constituir-se.Não gratuitamente,mas na e pelalutaporsualibertação.Comainstalaçãodotrabalhonãomaisescravo,maslivre,quedáaalegriadeviver.

Semestafénoshomensodiálogoéumafarsa.Transforma-se,namelhordashipóteses,emmanipulaçãoadocicadamentepaternalista.

Aofundar-senoamor,nahumildade,nafénoshomens,odiálogosefazumarelação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é consequênciaóbvia.Seriaumacontradiçãose,amoroso,humildeecheiodefé,odiálogonãoprovocasse este clima de confiança entre seus sujeitos. Por isto inexiste estaconfiançanaantidialogicidadedaconcepção“bancária”daeducação.

Se a fénoshomens éumdadoapriori do diálogo, a confiança se instauracom ele. A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez maiscompanheirosnapronúnciadomundo.Sefalhaestaconfiança,équefalharamascondiçõesdiscutidasanteriormente.Umfalsoamor,umafalsahumildade,umadebilitada fé nos homens não podem gerar confiança. A confiança implica otestemunho que um sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções.Nãopodeexistir,seapalavra,descaracterizada,nãocoincidecomosatos.Dizerumacoisae fazeroutra,nãolevandoapalavraasério,nãopodeserestímuloàconfiança.

Falar,porexemplo,emdemocraciaesilenciaropovoéumafarsa.Falaremhumanismoenegaroshomenséumamentira.

Não existe, tampouco, diálogo sem esperança.A esperança está na própriaessência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca.Uma talbusca, como jávimos,não se fazno isolamento,masnacomunicaçãoentreoshomens—oqueéimpraticávelnumasituaçãodeagressão.

O desespero é uma espécie de silêncio, de recusa do mundo, de fuga. Noentanto a desumanização que resulta da “ordem” injusta não deveria ser uma

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razãodaperdadaesperança,mas,aocontrário,umarazãodedesejaraindamais,edeprocurarsemdescanso,restaurarahumanidadeesmagadapelainjustiça.

Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me naesperançaenquantolutoe,selutocomesperança,espero.

Se o diálogo é o encontrodoshomenspara sermais, não pode fazer-se nadesesperança. Se os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já nãopodehaverdiálogo.Oseuencontroévazioeestéril.Éburocráticoefastidioso.

Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos umpensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomiamundo-homens,reconheceentreelesumainquebrantávelsolidariedade.

Este é um pensar que percebe a realidade como processo, que a capta emconstantedevenir enão comoalgo estático.Não sedicotomiza a simesmonaação.“Banha-se”permanentementedetemporalidadecujosriscosnãoteme.

Opõe-seaopensaringênuo,quevêo“tempohistéricocomoumpeso,comouma estratificação das aquisições e experiências do passado”,56 de que resultadeverseropresentealgonormalizadoebem-comportado.

Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hojenormalizado. Para o crítico, a transformação permanente da realidade, para apermanentehumanizaçãodoshomens.Paraopensarcrítico,diriaPierreFurter,“a meta não será mais eliminar os riscos da temporalidade, agarrando-se aoespaço garantido,mas temporalizar o espaço.Ouniversonão se revela amim(dizaindaFurter)noespaço,impondo-meumapresençamaciçaaquesópossome adaptar, mas como um campo, um domínio, que vai tomando forma namedidademinhaação”.57

Para o pensar ingênuo, a meta é agarrar-se a este espaço garantido,ajustando-seaelee,negandoatemporalidade,negar-seasimesmo.

Somenteodiálogo,queimplicaumpensarcrítico,écapaz,também,degerá-lo.

Semelenãohácomunicaçãoesemestanãoháverdadeiraeducação.Aque,operando a superação da contradição educador-educandos, se instaura comosituaçãognosiológica, emqueos sujeitos incidem seu ato cognoscente sobreoobjetocognoscívelqueosmediatiza.

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ODIÁLOGOCOMEÇANABUSCADOCONTEÚDOPROGRAMÁTICO

Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidadecomece, não quando o educador-educando se encontra com os educando-educadoresemumasituaçãopedagógica,masantes,quandoaqueleseperguntaemtornodoquevaidialogarcomestes.Estainquietaçãoemtornodoconteúdododiálogoéainquietaçãoemtornodoconteúdoprogramáticodaeducação.

Para o “educador-bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta,obviamente,nãoéapropósitodoconteúdododiálogo,queparaelenãoexiste,mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus alunos. E a estaperguntaresponderáelemesmo,organizandoseuprograma.

Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdoprogramáticodaeducaçãonãoéumadoaçãoouumaimposição—umconjuntode informes a ser depositado nos educandos—,mas a devolução organizada,sistematizadaeacrescentadaaopovodaqueleselementosqueeste lheentregoudeformadesestruturada.58

Aeducaçãoautêntica,repitamos,nãosefazdeAparaBoudeAsobreB,masdeAcomB,mediatizadospelomundo.Mundoqueimpressionaedesafiaaunseaoutros,originandovisõesoupontosdevistasobreele.Visõesimpregnadasdeanseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicitam temassignificativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo programático daeducação.Umdosequívocosdeumaconcepçãoingênuadohumanismoestáemque,naânsiadecorporificarummodeloidealde“bomhomem”,seesquecedasituação concreta, existencial, presente, dos homens mesmos. “O humanismoconsiste (diz Furter) em permitir a tomada de consciência de nossa plenahumanidade,comocondiçãoeobrigação:comosituaçãoeprojeto.”59

Simplesmente,nãopodemoschegaraosoperários,urbanosoucamponeses,estes, de modo geral, imersos num contexto colonial quase umbilicalmenteligados ao mundo da natureza de que se sentem mais partes quetransformadores, para, à maneira da concepção “bancária”, entregar-lhes“conhecimento” ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido noprogramacujoconteúdonósmesmosorganizamos.

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Não seriam poucos os exemplos que poderiam ser citados, de planos, denatureza política ou simplesmente docente, que falharam porque os seusrealizadorespartiramdeumavisãopessoaldarealidade.Porquenãolevaramemconta, num mínimo instante, os homens em situação a quem se dirigia seuprograma,anãosercompurasincidênciasdesuaação.

Para o educador humanista ou o revolucionário autêntico, a incidência daaçãoéarealidadeasertransformadaporelescomosoutroshomensenãoestes.

Quematuasobreoshomenspara,doutrinando-os,adaptá-loscadavezmaisàrealidadequedevepermanecerintocadasãoosdominadores.

Lamentavelmente, porém, neste “conto” da verticalidade da programação,“conto”daconcepção“bancária”,caemmuitasvezesliderançasrevolucionárias,noseuempenhodeobteraadesãodopovoàaçãorevolucionária.

Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podemcorresponderàsuavisãodomundo,masnãonecessariamenteàdopovo.60

Esquecem-se de que o seu objetivo fundamental é lutar com o povo pelarecuperação da humanidade roubada e não conquistar o povo. Este verbo nãodeve caber na sua linguagem, mas na do dominador. Ao revolucionário cabelibertarelibertar-secomopovo,nãoconquistá-lo.

As elites dominadoras, na sua atuação política, são eficientes no uso daconcepção“bancária” (emqueaconquistaéumdos instrumentos)porque,namedidaemqueestadesenvolveumaaçãoapassivadora,coincidecomoestadode “imersão” da consciência oprimida. Aproveitando esta “imersão” daconsciênciaoprimida,estaselitesvãotransformando-anaquela“vasilha”dequefalamosepondonelaslogansqueafazemmaistemerosaaindadaliberdade.

Um trabalho verdadeiramente libertador é incompatível com esta prática.Através dele, o que se há de fazer é propor aos oprimidos os slogans dosopressores, como problema, proporcionando-se, assim, a sua expulsão de“dentro”dosoprimidos.

Afinal,oempenhodoshumanistasnãopodeserodeoporosseusslogansaosdos opressores, tendo como intermediários os oprimidos, como se fossem“hospedeiros”dosslogansdeunsedeoutros.Oempenhodoshumanistas,pelocontrário,estáemqueosoprimidostomemconsciênciadeque,pelofatomesmo

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de que estão sendo “hospedeiros” dos opressores, como seres duais, não estãopodendoser.

Estapráticaimplica,poristomesmo,queoacercamentoàsmassaspopularessefaça,nãoparalevar-lhesumamensagem“salvadora”,emformadeconteúdoaserdepositado,mas,para,emdiálogocomelas,conhecer,nãosóaobjetividadeemqueestão,masaconsciênciaquetenhamdestaobjetividade;osváriosníveisdepercepçãodesimesmosedomundoemqueecomqueestão.

Por isto é que não podemos, a não ser ingenuamente, esperar resultadospositivosdeumprograma,sejaeducativonumsentidomaistécnicooudeaçãopolítica, se, desrespeitando a particular visão do mundo que tenha ou estejatendo o povo, se constitui numa espécie de “invasão cultural”, ainda que feitacomamelhordasintenções.Mas“invasãocultural”sempre.61

ASRELAÇÕESHOMENS-MUNDO,OSTEMASGERADORESEOCONTEÚDOPROGRAMÁTICODESTAEDUCAÇÃO

Seráapartirdasituaçãopresente,existencial,concreta,refletindooconjuntodeaspirações do povo, que poderemos organizar o conteúdo programático daeducaçãooudaaçãopolítica.

O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certascontradiçõesbásicas,suasituaçãoexistencial,concreta,presente,comoproblemaque,porsuavez,odesafiae,assim,lheexigeresposta,nãosónonívelintelectual,masnoníveldaação.62

Nuncaapenasdissertarsobreelaejamaisdoar-lheconteúdosquepoucoounada tenham a ver com seus anseios, com suas dúvidas, com suas esperanças,comseus temores.Conteúdosque,àsvezes,aumentamestes temores.Temoresdeconsciênciaoprimida.

Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão domundo, ou tentarimpô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa. Temos de estarconvencidosdequeasuavisãodomundo,quesemanifestanasváriasformasdesuaação,refleteasuasituaçãonomundo,emqueseconstitui.Aaçãoeducativa

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epolíticanãopodeprescindirdoconhecimentocríticodessasituação,sobpenadesefazer“bancária”oudepregarnodeserto.

Por istomesmoéque,muitasvezes,educadoresepolíticos falamenãosãoentendidos.Sualinguagemnãosintonizacomasituaçãoconcretadoshomensaquemfalam.Esuafalaéumdiscursoamais,alienadoealienante.

Équealinguagemdoeducadoroudopolítico(ecadaveznosconvencemosmais de que este háde tornar-se tambémeducadorno sentidomais amplodaexpressão), tanto quanto a linguagem do povo, não existem sem um pensar eambos, linguagem e pensar, sem uma realidade a que se encontrem referidos.Desta forma, para que haja comunicação eficiente entre eles, é preciso queeducadorepolíticosejamcapazesdeconhecerascondiçõesestruturaisemqueopensarealinguagemdopovo,dialeticamente,seconstituem.

Daítambémqueoconteúdoprogramáticoparaaação,queédeambos,nãopossaserdeexclusivaeleiçãodaqueles,mas,delesedopovo.

Énarealidademediatizadora,naconsciênciaquedelatenhamos,educadoresepovo,queiremosbuscaroconteúdoprogramáticodaeducação.

O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação comoprática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do quechamamos de universo temático63 do povo ou o conjunto de seus temasgeradores.

Esta investigação implica,necessariamente,umametodologiaquenãopodecontradizer a dialogicidade da educação libertadora. Daí que seja igualmentedialógica.Daíque,conscientizadoratambém,proporcione,aomesmotempo,aapreensãodos“temasgeradores”ea tomadadeconsciênciados indivíduosemtornodosmesmos.

Estaéarazãopelaqual(emcoerênciaaindacomafinalidadelibertadoradaeducaçãodialógica)nãosetratadeternoshomensoobjetodainvestigação,dequeoinvestigadorseriaosujeito.

Oquesepretendeinvestigar,realmente,nãosãooshomens,comosefossempeças anatômicas, mas o seu pensamento-linguagem referido à realidade, osníveis de sua percepção desta realidade, a sua visão do mundo, em que seencontramenvolvidosseus“temasgeradores”.

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Antes de perguntar-nos o que é um “tema gerador”, cuja resposta nosaclarará o que é o “universo mínimo temático”, nos parece indispensáveldesenvolveralgumasreflexões.

Emverdade,oconceitode“temagerador”nãoéumacriaçãoarbitrária,ouumahipótesede trabalhoquedeva sercomprovada.Seo“temagerador” fosseumahipótesequedevesse ser comprovada, a investigação,primeiramente,nãoseriaemtornodele,masdesuaexistênciaounão.

Nestecaso,antesdebuscarapreendê-loemsuariqueza,emsuasignificação,emsuapluralidade,emseudevenir,emsuaconstituiçãohistórica,teríamosqueconstatar,primeiramente,suaobjetividade.Sódepois,então,poderíamostentarsuacaptação.

Aindaqueestapostura—adeumadúvidacrítica—sejalegítima,nospareceque a constatação do tema gerador, como uma concretização, é algo a quechegamos através, não só da própria experiência existencial, mas também deuma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens,implícitasnasprimeiras.

Detenhamo-nos neste ponto.Mesmo que possa parecer um lugar-comum,nunca será demasiado falar acerca dos homens comoos únicos seres, entre os“inconclusos”,capazesdeter,nãoapenassuaprópriaatividade,masasimesmos,como objeto de sua consciência, o que os distingue do animal, incapaz deseparar-sedesuaatividade.

Nesta distinção, aparentemente superficial, vamos encontrar as linhas quedemarcamoscamposdeunsedeoutros,dopontodevistadaaçãodeambosnoespaçoemqueseencontram.

Aonãopoderseparar-sedesuaatividadesobreaqualnãopodeexercerumatoreflexivo,oanimalnãoconsegueimpregnaratransformação,querealizanomundo,deumasignificaçãoquevámaisalémdesimesmo.

Na medida em que sua atividade é uma aderência dele, os resultados datransformação operada através dela não o sobrepassam. Não se separam dele,tantoquantosuaatividade.Daíqueelacareçadefinalidadesquesejampropostaspor ele. De um lado, o animal não se separa de sua atividade, que a ele seencontraaderida;deoutro,opontodedecisãodestaseachaforadele:naespécieaquepertence.Pelofatodequesuaatividadesejaeleeelesejasuaatividade,não

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podendodelaseparar-se,enquantoseupontodedecisãoseachaemsuaespécieenãonele, o animal se constitui, fundamentalmente, comoum“ser fechado emsi”.

Aonãoterestepontodedecisãoemsi,aonãopoderobjetivar-senemàsuaatividade, ao carecer de finalidades que se proponha e queproponha, ao viver“imerso”no “mundo”aquenãoconseguedar sentido, aonão terumamanhãnemumhoje, por viver numpresente esmagador, o animal é a-histórico. Suavida a-histórica sedá,nãonomundo tomadoem sentido rigoroso,poisqueomundonãoseconstituiemum“nãoeu”paraele,quesejacapazdeconstituí-locomoeu.

Omundohumano,queéhistórico,sefaz,parao“serfechadoemsi”,merosuporte. Seu contornonão lhe éproblemático,mas estimulante. Sua vidanão éum correr riscos, uma vez que não os sabe correndo. Estes, porque não sãodesafiosperceptíveisreflexivamente,maspuramente“notados”pelossinaisqueos apontam, não exigem respostas que impliquem ações decisórias.O animal,poristomesmo,nãopodecomprometer-se.Suacondiçãodea-históriconãolhepermiteassumiravida,e,porquenãoaassume,nãopodeconstruí-la.E,senãoconstrói,nãopode transformaro seucontorno.Nãopode, tampouco, saber-sedestruídoemvida,poisnãoconseguealongarseusuporte,ondeelasedá,emummundosignificativoesimbólico,omundocompreensivodaculturaedahistória.Estaéarazãopelaqualoanimalnãoanimalizaseucontornoparaanimalizar-se,nem tampouco se desanimaliza.No bosque, como no zoológico, continua um“serfechadoemsi”—tãoanimalaqui,comolá.

Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e domundo emque estão, ao atuarem em funçãode finalidades que propõem e sepropõem,aoteremopontodedecisãodesuabuscaemsieemsuasrelaçõescommundo, e com os outros, ao impregnarem omundo de sua presença criadoraatravés da transformação que realizam nele, na medida em que dele podemseparar-se e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário doanimal,nãosomentevivem,masexistem,esuaexistênciaéhistórica.

Seavidadoanimalsedáemumsuporteatemporal,plano,igual,aexistênciadoshomenssedánomundoqueelesrecriame transformamincessantemente.Se,navidadoanimal,oaquinãoémaisqueumhabitataoqualele“contata”,na

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existênciadoshomensoaquinãoésomenteumespaçofísico,mastambémumespaçohistórico.

Para o animal, rigorosamente, não há um aqui, um agora, um ali, umamanhã, um ontem, porque, carecendo da consciência de si, seu viver é umadeterminação total. Não é possível ao animal sobrepassar os limites impostospeloaqui,peloagoraoupeloali.

Oshomens,pelocontrário,porquesãoconsciênciadesie,assim,consciênciadomundo,porquesãoum“corpoconsciente”,vivemumarelaçãodialéticaentreoscondicionamentosesualiberdade.

Aosesepararemdomundo,queobjetivam,aosepararemsuaatividadedesimesmos,ao teremopontodedecisãodesuaatividadeemsi, emsuas relaçõescomomundoecomosoutros,oshomensultrapassamas“situações-limite”,quenão devem ser tomadas como se fossembarreiras insuperáveis,mais alémdasquaisnada existisse.64Nomomentomesmo emque os homens as apreendemcomo freios, em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, setransformamem“percebidosdestacados”emsua“visãodefundo”.Revelam-se,assim, como realmente são: dimensões concretas e históricas de uma dadarealidade.Dimensõesdesafiadorasdoshomens, que incidem sobre elas atravésde ações queVieira Pinto chama de “atos-limite”— aqueles que se dirigem àsuperação e à negação do dado, em lugar de implicarem sua aceitação dócil epassiva.

Esta é a razão pela qual não são as “situações-limite”, em si mesmas,geradorasdeumclimadedesesperança,masapercepçãoqueoshomenstenhamdelasnumdadomomentohistórico, comoum freioa eles, comoalgoqueelesnãopodemultrapassar.Nomomentoemqueapercepçãocríticaseinstaura,naação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva oshomensaseempenharemnasuperaçãodas“situações-limite”.

Esta superação, que não existe fora das relações homens-mundo, somentepodeverificar-seatravésdaaçãodoshomenssobrearealidadeconcretaemquesedãoas“situações-limite”.

Superadas estas, com a transformação da realidade, novas surgirão,provocandooutros“atos-limite”doshomens.

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Desta forma, o próprio dos homens é estar, como consciência de si e domundo,emrelaçãodeenfrentamentocomsuarealidadeemque,historicamente,se dão as “situações-limite”. E este enfrentamento com a realidade para asuperaçãodosobstáculossópodeserfeitohistoricamente,comohistoricamenteseobjetivamas“situações-limite”.

No“mundo”doanimal,quenãosendorigorosamentemundo,massuporteemqueestá,nãohá“situações-limite”,pelocarátera-históricodosegundo,queseestendeaoprimeiro.

Não sendo o animal um “ser para si”, lhe falta o poder de exercer “atos-limite”,queimplicamumaposturadecisóriafrenteaomundo,doqualoserse“separa”, e, objetivando-o, o transforma com sua ação. Preso organicamente aseusuporte,oanimalnãosedistinguedele.

Desta forma, em lugarde “situações-limite”, que sãohistóricas, é o suportemesmo,maciçamente,queo limita.Oprópriodoanimal,portanto,nãoéestarem relação com seu suporte — se estivesse, o suporte seria mundo —, masadaptadoaele.Daíque,comoum“serfechado”emsi,ao“produzir”umninho,uma colmeia, um oco onde viva, não esteja realmente criando produtos quetivessem sido o resultado de “atos-limite” — respostas transformadoras. Suaatividade produtora está submetida à satisfação de uma necessidade física,puramenteestimulanteenãodesafiadora.Daíqueseusprodutos,foradedúvida,“pertençamdiretamenteaseuscorposfísicos,enquantoohomemélivrefrenteaseuproduto”.65

Somente namedida em que os produtos que resultam da atividade do ser“não pertençam a seus corpos físicos”, ainda que recebam o seu selo, darãosurgimentoàdimensãosignificativadocontextoque,assim,sefazmundo.

Daíemdiante,esteser,quedestaformaatuaeque,necessariamente,éumserconsciência de si, um ser “para si”, não poderia ser, se não estivesse sendo, nomundocomoqualestá,comotambémestemundonãoexistiria,seestesernãoexistisse.

A diferença entre os dois, entre o animal, de cuja atividade, porque nãoconstitui“atos-limite”,nãoresultaumaproduçãomaisalémdesi,eoshomensque, através de sua ação sobre o mundo, criam o domínio da cultura e dahistória,estáemquesomenteestessãoseresdapráxis.Práxisque,sendoreflexão

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e ação verdadeiramente transformadorada realidade, é fontede conhecimentoreflexivo e criação. Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada sempráxis,nãoimplicacriação,atransformaçãoexercidapeloshomensaimplica.

E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suaspermanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bensmateriais,ascoisassensíveis,osobjetos,mastambémasinstituiçõessociais,suasideias,suasconcepções.66

Através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, oshomens,simultaneamente,criamahistóriaesefazemsereshistórico-sociais.

Porque,aocontráriodoanimal,oshomenspodemtridimensionaro tempo(passado-presente-futuro) que, contudo, não são departamentos estaques, suahistória, em função de suas mesmas criações, vai se desenvolvendo empermanentedevenir,emqueseconcretizamsuasunidadesepocais.Estas,comoo ontem, o hoje e o amanhã, não são como se fossem pedaços estanques detempo que ficassem petrificados e nos quais os homens estivessemenclausurados. Se assim fosse, desapareceria uma condição fundamental dahistória:suacontinuidade.Asunidadesepocais,pelocontrário,estãoemrelaçãoumascomasoutras67nadinâmicadacontinuidadehistórica.

Umaunidade epocal se caracteriza pelo conjuntode ideias, de concepções,esperanças,dúvidas,valores,desafios,eminteraçãodialéticacomseuscontrários,buscando plenitude. A representação concreta de muitas destas ideias, destesvalores,destasconcepçõeseesperanças,comotambémosobstáculosaosermaisdoshomens,constituemostemasdaépoca.

Estes, não somente implicam outros que são seus contrários, às vezesantagônicos,mastambémindicamtarefasaseremrealizadasecumpridas.Destaforma, não há como surpreender os temas históricos isolados, soltos,desconectados,coisificados,parados,masemrelaçãodialéticacomoutros,seusopostos.Comotambémnãoháoutro lugarparaencontrá-losquenãosejanasrelações homens-mundo. O conjunto dos temas em interação constitui o“universotemático”daépoca.

Frente a este “universo” de temas que dialeticamente se contradizem, oshomens tomam suas posições também contraditórias, realizando tarefas emfavor,uns,damanutençãodasestruturas,outros,damudança.

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Namedida em que se aprofunda o antagonismo entre os temas que são aexpressão da realidade, há uma tendência para amitificação da temática e darealidademesma,oque,demodogeral,instauraumclimade“irracionalismo”edesectarismo.

Esteclimaameaçaesgotaros temasde suasignificaçãomaisprofunda,pelapossibilidadederetirar-lhesaconotaçãodinâmicaqueoscaracteriza.

No momento em que uma sociedade vive uma época assim, o próprioirracionalismomitificador passa a constituir um de seus temas fundamentais,que terá, como seuoposto combatente, a visão crítica e dinâmicada realidadeque,empenhando-seemfavordoseudesvelamento,desmascarasuamitificaçãoe busca a plena realização da tarefa humana: a permanente transformação darealidadeparaalibertaçãodoshomens.

Os temas68 se encontram, em última análise, de um lado, envolvidos, deoutro,envolvendoas“situações-limite”,enquantoas tarefasqueeles implicam,quandocumpridas,constituemos“atos-limite”aosquaisnosreferimos.

Enquantoostemasnãosãopercebidoscomotais,envolvidoseenvolvendoas“situações-limite”, as tarefas referidas a eles, que são as respostas dos homensatravésdesuaaçãohistórica,nãosedãoemtermosautênticosoucríticos.

Nestecaso,ostemasseencontramencobertospelas“situações-limite”,queseapresentamaoshomenscomosefossemdeterminanteshistóricas,esmagadoras,emfacedasquaisnãolhescabeoutraalternativasenãoadaptar-se.Destaforma,os homens não chegam a transcender as “situações-limite” e a descobrir ou adivisar,maisalémdelaseemrelaçãocomelas,oinéditoviável.

Em síntese, as “situações-limite” implicam a existência daqueles a quemdiretaouindiretamente“servem”edaquelesaquem“negam”e“freiam”.

Nomomentoemqueestesaspercebemnãomaiscomouma“fronteiraentreosereonada,mascomoumafronteiraentreosereomaisser”,sefazemcadavezmais críticos na sua ação, ligada àquela percepção. Percepção emque estáimplícitooinéditoviávelcomoalgodefinido,acujaconcretizaçãosedirigirásuaação.

Atendênciaentão,dosprimeiros,évislumbrarnoinéditoviável,aindacomoinéditoviável, uma “situação-limite” ameaçadora que, por istomesmo, precisa

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nãoconcretizar-se.Daíqueatuemnosentidodemanterema “situação-limite”quelheséfavorável.69

Destaforma,seimpõeàaçãolibertadora,queéhistórica,sobreumcontexto,tambémhistórico,aexigênciadequeestejaemrelaçãodecorrespondência,nãosó com os temas geradores,mas com a percepção que deles estejam tendo oshomens.Esta exigêncianecessariamente se alonganoutra: ada investigaçãodatemáticasignificativa.

Os temas geradores podem ser localizados em círculos concêntricos, quepartemdomaisgeralaomaisparticular.

Temas de caráter universal, contidos na unidade epocal mais ampla, queabarca toda uma gama de unidades e subunidades, continentais, regionais,nacionais etc., diversificadas entre si. Como tema fundamental desta unidademaisampla,quepoderemoschamar“nossaépoca”,seencontra,anossover,odalibertação, que indica o seu contrário, o tema da dominação. É este temaangustiantequevemdandoànossaépocaocaráterantropológicoaquefizemosreferênciaanteriormente.

Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem odesaparecimentodaopressãodesumanizante, é imprescindível a superaçãodas“situações-limite”emqueoshomensseachamquasecoisificados.

Emcírculosmenosamplos,nosdeparamoscom temase “situações-limite”,característicos de sociedades de um mesmo continente ou de continentesdistintos,quetêmnestestemasenestas“situações-limite”similitudeshistóricas.

A “situação-limite”do subdesenvolvimento, aoqual está ligadooproblemadadependência,éafundamentalcaracterísticadoTerceiroMundo.Atarefadesuperar tal situação,queéuma totalidade,poroutra, adodesenvolvimento, é,porsuavez,oimperativobásicodoTerceiroMundo.

Se olhamos, agora, uma sociedade determinada em sua unidade epocal,vamosperceberque,alémdestatemáticauniversal,continentaloudeummundoespecífico de semelhanças históricas, ela vive seus temas próprios, suas“situações-limite”.

Emcírculomais restrito, observaremosdiversificações temáticas, dentrodeumamesmasociedade,emáreasesubáreasemquesedivide,todas,contudo,emrelação com o todo de que participam. São áreas e subáreas que constituem

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subunidades epocais. Em uma unidade nacional mesma, encontramos acontradiçãoda“contemporaneidadedonãocoetâneo”.

Nassubunidadesreferidas,ostemasdecaráternacionalpodemseroudeixarde ser captados em sua verdadeira significação, ou simplesmente podem sersentidos.Àsvezes,nemsequersãosentidos.

Oimpossível,porém,éainexistênciadetemasnestassubunidadesepocais.Ofato de que indivíduos de uma área não captem um tema gerador, sóaparentementeoculto,ouofatodecaptá-lodeformadistorcida,podesignificar,já, a existência de uma “situação-limite” de opressão em que os homens seencontrammaisimersosqueemersos.

AINVESTIGAÇÃODOSTEMASGERADORESESUAMETODOLOGIA

Demodogeral,aconsciênciadominada,nãosópopular,quenãocaptouaindaa“situação-limite” em sua globalidade, fica na apreensão de suas manifestaçõesperiféricas, àsquais empresta a forca inibidoraque cabe, contudo, à “situação-limite”.70

Esteéumfatodeimportânciaindiscutívelparaoinvestigadordatemáticaoudetemagerador.

Aquestão fundamental, neste caso, está emque, faltando aoshomensumacompreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em pedaços nosquaisnãoreconhecemainteraçãoconstituintedamesmatotalidade,nãopodemconhecê-la.Enãoopodemporque,para conhecê-la, serianecessáriopartirdoponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada docontexto para, em seguida, separarem ou isolarem os elementos ou asparcialidadesdocontexto,atravésdecujacisãovoltariamcommaisclaridadeàtotalidadeanalisada.

Este é um esforço que cabe realizar, não apenas na metodologia dainvestigação temática que advogamos, mas, também, na educaçãoproblematizadora que defendemos. O esforço de propor aos indivíduos

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dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilitereconhecerainteraçãodesuaspartes.

Desta maneira, as dimensões significativas que, por sua vez, estãoconstituídasdepartesem interação,aoseremanalisadas,devemserpercebidaspelosindivíduoscomodimensõesdatotalidade.Destemodo,aanálisecríticadeuma dimensão significativo-existencial possibilita aos indivíduos uma novapostura, também crítica, em face das “situações-limite”. A captação e acompreensão da realidade se refazem, ganhando um nível que até então nãotinham.Oshomenstendemaperceberquesuacompreensãoequea“razão”darealidade não estão fora dela, como, por sua vez, ela não se encontra delesdicotomizada, comose fosseummundoàparte,misteriosoe estranho,queosesmagasse.

Nestesentidoéqueainvestigaçãodotemagerador,queseencontracontidono“universotemáticomínimo”(ostemasgeradoreseminteração),serealizadapor meio de uma metodologia conscientizadora, além de nos possibilitar suaapreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica depensaremseumundo.

Na medida, porém, em que, na captação do todo que se oferece àcompreensão dos homens, este se lhes apresenta como algo espesso que osenvolveequenãochegamavislumbrar,sefazindispensávelqueasuabuscaserealizeatravésdaabstração.Istonãosignificaareduçãodoconcretoaoabstrato,oqueserianegarasuadialeticidade,mastê-loscomoopostosquesedialetizamnoatodepensar.

Na análise de uma situação existencial concreta, “codificada”,71 se verificaexatamenteestemovimentodopensar.

A descodificação da situação existencial provoca esta postura normal, queimplicaumpartirabstratamenteatéoconcreto;queimplicaumaidadaspartesaotodoeumavoltadesteàspartes,queimplicaumreconhecimentodosujeitonoobjeto(asituaçãoexistencialconcreta)edoobjetocomosituaçãoemqueestáosujeito.72

Estemovimentodeidaevolta,doabstratoaoconcreto,quesedánaanálisedeumasituaçãocodificada,sebem-feitaadescodificação,conduzàsuperaçãoda

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abstração com a percepção crítica do concreto, já agora não mais realidadeespessaepoucovislumbrada.

Realmente, em face de uma situação existencial codificada (situaçãodesenhada ou fotografada que remete, por abstração, ao concreto da realidadeexistencial), a tendência dos indivíduos é realizar uma espécie de “cisão” nasituação que se lhes apresenta. Esta “cisão”, na prática da descodificação,corresponde à etapa que chamamos de “descrição da situação”. A cisão dasituação figurada possibilita descobrir a interação entre as partes do todocindido.

Este todo, que é a situação figurada (codificada) e que antes havia sidoapreendidodifusamente,passaaganharsignificaçãonamedidaemquesofrea“cisão” e em que o pensar volta a ele, a partir das dimensões resultantes da“cisão”.

Como,porém,acodificaçãoéarepresentaçãodeumasituaçãoexistencial,atendência dos indivíduos é dar o passo da representação da situação(codificação)àsituaçãoconcretamesmaemqueecomqueseencontram.

Teoricamente,é lícitoesperarqueos indivíduospassemacomportar-seemfacedesuarealidadeobjetivadamesmaforma,doqueresultaquedeixedeserela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio ao qual oshomenstêmqueresponder.

Emtodasasetapasdadescodificação,estarãooshomensexteriorizandosuavisãodomundo, sua formadepensá-lo, suapercepção fatalistadas“situações-limite”, sua percepção estática ou dinâmica da realidade. E, nesta formaexpressada de pensar o mundo fatalistamente, de pensá-lo dinâmica ouestaticamente,namaneiracomorealizamseuenfrentamentocomomundo, seencontramenvolvidosseus“temasgeradores”.

Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue a expressarconcretamenteumatemáticageradora,oquepodeparecerinexistênciadetemassugere, pelo contrário, a existência de um tema dramático:o tema do silêncio.Sugere uma estrutura constituinte do mutismo ante a força esmagadora de“situações-limite”,emfacedasquaisoóbvioéaadaptação.

É importante reenfatizar que o tema gerador não se encontra nos homensisoladosdarealidade,nemtampouconarealidadeseparadadoshomens.Sópode

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sercompreendidonasrelaçõeshomens-mundo.Investigar o tema gerador é investigar, repitamos, o pensar dos homens

referidoàrealidade,éinvestigarseuatuarsobrearealidade,queésuapráxis.A metodologia que defendemos exige, por isto mesmo, que, no fluxo da

investigação, se façam ambos sujeitos da mesma — os investigadores e oshomensdopovoque,aparentemente,seriamseuobjeto.

Quantomaisassumamoshomensumaposturaativanainvestigaçãodesuatemática, tanto mais aprofundam a sua tomada de consciência em torno darealidadee,explicitandosuatemáticasignificativa,seapropriamdela.

Poderá dizer-se que o fato de serem os homens do povo, tanto quanto osinvestigadores, sujeitos da busca de sua temática significativa, sacrifica aobjetividadedainvestigação.Queosachadosjánãoserão“puros”porqueterãosofridoumainterferênciaintrusa.Nocaso,emúltimaanálise,daquelesquesãoosmaioresinteressados—oudevemser—emsuaprópriaeducação.

Istorevelaumaconsciênciaingênuadainvestigaçãotemática,paraaqualostemas existiriam em sua pureza objetiva e original, fora dos homens, como sefossemcoisas.

Ostemas,emverdade,existemnoshomens,emsuasrelaçõescomomundo,referidos a fatos concretos. Um mesmo fato objetivo pode provocar, numasubunidadeepocal,umconjuntodetemasgeradores,e,noutra,nãoosmesmos,necessariamente.Há, pois, uma relação entre o fato objetivo, a percepção quedeletenhamoshomenseostemasgeradores.

Éatravésdoshomensqueseexpressaatemáticasignificativae,aoexpressar-se,numcertomomento,podejánãoser,exatamente,oqueantesera,desdequehajamudado sua percepção dos dados objetivos aos quais os temas se achamreferidos.

Dopontodevistadoinvestigadorimporta,naanálisequefaznoprocessodainvestigação,detectaropontodepartidadoshomensnoseumododevisualizara objetividade, verificando se, durante o processo, se observou ou não algumatransformaçãonoseumododeperceberarealidade.

Arealidadeobjetivacontinuaamesma.Seapercepçãodelavariounofluxoda investigação, istonão significaprejudicar emnada suavalidade.A temática

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significativa aparece, de qualquermaneira, como seu conjuntodedúvidas, deanseios,deesperanças.

É preciso que nos convençamos de que as aspirações, os motivos, asfinalidades que se encontram implicitados na temática significativa sãoaspirações, finalidades, motivos humanos. Por isto, não estão aí, num certoespaço,comocoisasputrificadas,masestãosendo.São tãohistóricosquantooshomens.Nãopodemsercaptadosforadeles,insistamos.

Captá-loseentendê-loséentenderoshomensqueosencarnamearealidadea eles referida.Mas, precisamente porque não é possível entendê-los fora doshomens,éprecisoqueestestambémosentendam.Ainvestigaçãotemáticasefaz,assim,umesforçocomumdeconsciênciadarealidadeedeautoconsciência,queainscrevecomopontodepartidadoprocessoeducativo,oudaaçãoculturaldecaráterlibertador.

ASIGNIFICAÇÃOCONSCIENTIZADORADAINVESTIGAÇÃODOSTEMASGERADORES.OSVÁRIOSMOMENTOSDAINVESTIGAÇÃO

Por isto é que, para nós, o risco da investigação não está em que os supostosinvestigados se descubram investigadores, e, desta forma, “corrompam” osresultadosdaanálise.Oriscoestáexatamentenocontrário.Emdeslocarocentroda investigação, que é a temática significativa, a ser objeto da análise, para oshomens mesmos, como se fossem coisas, fazendo-os assim objetos dainvestigação.Esta,àbasedaqualsepretendeelaboraroprogramaeducativo,emcujapráticaeducadores-educandoseeducandos-educadoresconjuguemsuaaçãocognoscentesobreomesmoobjetocognoscível,temdefundar-se,igualmente,nareciprocidadedaação.Eagora,daaçãomesmadeinvestigar.

A investigação temática, que se dá no domínio do humano e não no dascoisas, não pode reduzir-se a um ato mecânico. Sendo processo de busca, deconhecimento, por isto tudo, de criação, exige de seus sujeitos que vãodescobrindo, no encadeamento dos temas significativos, a interpenetração dosproblemas.

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Poristoéqueainvestigaçãosefarátãomaispedagógicaquantomaiscríticaetãomaiscríticaquanto,deixandodeperder-senosesquemasestreitosdasvisõesparciaisdarealidade,dasvisões“focalistas”darealidade,sefixenacompreensãodatotalidade.

Assim é que, no processo de busca da temática significativa, já deve estarpresente a preocupação pela problematização dos próprios temas. Por suasvinculaçõescomoutros.Porseuenvolvimentohistórico-cultural.

Assimcomonãoépossível—oquesalientamosnoiníciodestecapítulo—elaborarumprogramaaserdoadoaopovo,tambémnãooéelaborarroteirosdepesquisadouniversotemáticoapartirdepontosprefixadospelosinvestigadoresquesejulgamasimesmosossujeitosexclusivosdainvestigação.

Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve tem de ser umaoperação simpática, no sentido etimológico da expressão. Isto é, tem deconstituir-senacomunicação,nosentircomumumarealidadequenãopodeservista mecanicistamente compartimentada, simplistamente bem-“comportada”,mas,nacomplexidadedeseupermanenteviraser.

Investigadores profissionais e povo, nesta operação simpática, que é ainvestigaçãodotemagerador,sãoambossujeitosdesteprocesso.

O investigador da temática significativa que, em nome da objetividadecientífica, transforma o orgânico em inorgânico, o que está sendo no que é, ovivonomorto,temeamudança.Temeatransformação.Vênesta,quenãonega,mas que não quer, não um anúncio de vida, mas um anúncio de morte, dedeterioração.Querconheceramudança,nãoparaestimulá-la,paraaprofundá-la,masparafreá-la.

Mas, ao temer a mudança e ao tentar aprisionar a vida, ao reduzi-la aesquemasrígidos,aofazerdopovoobjetopassivodesuaaçãoinvestigadora,aovernamudançaoanúnciodamorte,mataavidaenãopodeescondersuamarcanecrófila.

A investigação da temática, repitamos, envolve a investigação do própriopensardopovo.Pensarquenão sedá foradoshomens,nemnumhomemsó,nemnovazio,masnoshomenseentreoshomens,esemprereferidoàrealidade.

Nãopossoinvestigaropensardosoutros,referidoaomundo,senãopenso.Mas, não penso autenticamente se os outros também não pensam.

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Simplesmente,nãopossopensarpelos outrosnempara os outros, nem semosoutros.A investigaçãodopensar dopovonãopode ser feita semopovo,mascomele,comosujeitodeseupensar.Eseseupensarémágicoouingênuo,serápensandooseupensar,naação,queelemesmosesuperará.Easuperaçãonãosefaznoatodeconsumirideias,masnodeproduzi-lasedetransformá-lasnaaçãoenacomunicação.

Sendooshomensseresem“situação”,seencontramenraizadosemcondiçõestempo-espaciaisqueosmarcameaqueelesigualmentemarcam.Suatendênciaérefletirsobresuaprópriasituacionalidade,namedidaemque,desafiadosporela,agem sobre ela.Esta reflexão implica, por istomesmo, algomais que estar emsituacionalidade,queéasuaposiçãofundamental.Oshomenssãoporqueestãoem situação.E serão tantomais quantonão sópensemcriticamente sobre suaformadeestar,mascriticamenteatuemsobreasituaçãoemqueestão.

Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a própria condição deexistir. Um pensar crítico através do qual os homens se descobrem em“situação”. Só na medida em que esta deixa de parecer-lhes uma realidadeespessaqueosenvolve,algomaisoumenosnubladoemqueesobqueseacham,um beco sem saída que os angustia e a captam como a situação objetivo-problemáticaemqueestão, équeexisteoengajamento.Da imersão emqueseachavam, emergem, capacitando-se para se inserirem na realidade que se vaidesvelando.

Desta maneira, a inserção é um estado maior que a emersão e resulta daconscientizaçãodasituação.Éaprópriaconsciênciahistórica.

Daíquesejaaconscientizaçãooaprofundamentodatomadadeconsciência,característica,porsuavez,detodaemersão.

Nestesentidoéquetodainvestigaçãotemáticadecaráterconscientizadorsefazpedagógicaetodaautênticaeducaçãosefazinvestigaçãodopensar.

Quantomaisinvestigoopensardopovocomele,tantomaisnoseducamosjuntos.Quantomaisnoseducamos,tantomaiscontinuamosinvestigando.

Educação e investigação temática, na concepção problematizadora daeducação,setornammomentosdeummesmoprocesso.

Enquantonaprática“bancária”daeducação,antidialógicaporessência,poristo, não comunicativa, o educador deposita no educando o conteúdo

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programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, napráticaproblematizadora,dialógicaporexcelência, este conteúdo,que jamais é“depositado”, seorganizaeseconstituinavisãodomundodoseducandos,emqueseencontramseustemasgeradores.

Por tal razão é que este conteúdo há de estar sempre renovando-se eampliando-se.

Atarefadoeducadordialógicoé,trabalhandoemequipeinterdisciplinaresteuniverso temático recolhido na investigação, devolvê-lo, como problema, nãocomodissertação,aoshomensdequemrecebeu.

Se,naetapadaalfabetização,aeducaçãoproblematizadoraedacomunicaçãobuscaeinvestigaa“palavrageradora”,73napós-alfabetização,buscaeinvestigaotemagerador.

Numa visão libertadora, nãomais “bancária” da educação, o seu conteúdoprogramático jánãoinvolucrafinalidadesaseremimpostasaopovo,mas,pelocontrário,porqueparteenascedele,emdiálogocomoseducadores,refleteseusanseioseesperanças.Daía investigaçãoda temáticacomopontodepartidadoprocessoeducativo,comopontodepartidadesuadialogicidade.

Daítambémoimperativodedeverserconscientizadoraametodologiadestainvestigação.

Que fazermos, por exemplo, se temos a responsabilidade de coordenar umplano de educação de adultos em uma área camponesa, que revele, inclusive,umaaltaporcentagemdeanalfabetismo?Oplanoincluiráaalfabetizaçãoeapós-alfabetização.Estaríamos,portanto,obrigadosarealizartantoainvestigaçãodaspalavras geradoras quanto a dos temas geradores, à base de que teríamos oprogramaparaumaeoutraetapasdoplano.

Fixemo-nos, contudo, apenas na investigação dos temas geradores ou datemáticasignificativa.74

Delimitada a área em que se vai trabalhar, conhecida através de fontessecundárias,começamosinvestigadoresaprimeiraetapadeinvestigação.

Esta, como todo começo em qualquer atividade no domínio do humano,pode apresentar dificuldades e riscos. Riscos e dificuldades normais, até certoponto,aindaquenemsempreexistentes,naaproximaçãoprimeiraquefazemosinvestigadoresaosindivíduosdaárea.

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É que, neste encontro, os investigadores necessitam obter que um númerosignificativo de pessoas aceite uma conversa informal com eles, em que lhesfalarãodosobjetivosdesuapresençanaárea.Naqualdirãooporquê,ocomoeoparaquêdainvestigaçãoquepretendemrealizarequenãopodemfazê-losenãoseestabeleceumarelaçãodesimpatiaeconfiançamútuas.

Nocasodeaceitaremareunião,edenestaaderirem,nãosóà investigação,masaoprocessoquesesegue,75devemosinvestigadoresestimularospresentespara que, dentre eles, apareçam os que queiram participar diretamente doprocessoda investigação como seus auxiliares.Desta forma, esta se inicia comumdiálogoàsclarasentretodos.

Uma série de informações sobre a vida na área, necessárias à suacompreensão, terá nestes voluntários os seus recolhedores. Muito maisimportante, contudo, que a coleta destes dados, é sua presença ativa nainvestigação.

Aoladodestetrabalhodaequipelocal,osinvestigadoresiniciamsuasvisitasàárea, sempre autenticamente, nunca forçadamente, como observadoressimpáticos. Por isso mesmo, com atitudes compreensivas em face do queobservam.

Seénormalqueosinvestigadorescheguemàáreadainvestigaçãomovendo-seemummarcoconceitualvalorativoqueestarápresentenasuapercepçãodoobservado, isto não deve significar, porém, que devem transformar ainvestigaçãotemáticanomeioparaimporemestemarco.

Aúnicadimensãoquesesupõedevamterosinvestigadores,nestemarconoqualsemovem,queseesperasefaçacomumaoshomenscujatemáticasebuscainvestigar, é a da percepção crítica de sua realidade, que implica ummétodocorretodeaproximaçãodoconcretoparadesvelá-lo.Eistonãoseimpõe.

Neste sentido é que, desde o começo, a investigação temática se vaiexpressandocomoumquefazereducativo.Comoaçãocultural.

Emsuasvisitasosinvestigadoresvãofixandosua“mirada”críticanaáreaemestudo, como se ela fosse, para eles, uma espécie de enorme e sui generis “codificação”aovivo,queosdesafia.Por istomesmo,visualizandoaáreacomototalidade, tentarão, visita após visita, realizar a “cisão” desta, na análise dasdimensõesparciaisqueosvãoimpactando.

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Neste esforço de “cisão” com que, mais adiante, voltarão a adentrar-se natotalidade,vãoampliandoasuacompreensãodela,nainteraçãodesuaspartes.

Na etapa desta igualmente sui generis descodificação, os investigadores oraincidem sua visão crítica, observadora, diretamente, sobre certosmomentos daexistência da área, ora o fazem através de diálogos informais com seushabitantes.

Namedidaemquerealizama“descodificação”desta“codificação”viva,sejapelaobservaçãodos fatos, sejapelaconversação informalcomoshabitantesdaárea,irãoregistrandoemseucadernodenotas,àmaneiradeWrightMills,76ascoisas mais aparentemente pouco importantes. A maneira de conversar doshomens; a sua forma de ser. O seu comportamento no culto religioso, notrabalho.Vãoregistrandoasexpressõesdopovo; sua linguagem,suaspalavras,suasintaxe,quenãoéomesmoquesuapronúnciadefeituosa,masa formadeconstruirseupensamento.77

Estadescodificaçãoaovivo implica,necessariamente,queos investigadores,emsuafase,surpreendamaáreaemmomentosdistintos.Éprecisoqueavisitememhorasde trabalhonocampo;queassistamareuniõesdealgumaassociaçãopopular,observandooprocedimentode seusparticipantes, a linguagemusada,as relações entrediretoria e sócios; opapel quedesempenhamasmulheres, osjovens. É indispensável que a visitem em horas de lazer; que presenciem seushabitantesematividadesesportivas;queconversemcompessoasemsuascasas,registrando manifestações em torno das relações marido-mulher, pais-filhos;afinal, que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para esta compreensãoprimeiradaárea.

Apropósitodecadaumadestasvisitasdeobservaçãocompreensivadevemosinvestigadores redigir um pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pelaequipe, em seminário, no qual se vão avaliando os achados, quer dosinvestigadoresprofissionais,querdos auxiliaresda investigação, representantesdopovo,nestasprimeirasobservaçõesquerealizaram.Daíqueestesemináriodeavaliaçãodevarealizar-se,sepossível,naáreadetrabalho,paraquepossamestesparticipardele.

Observa-sequeospontosfixadospelosváriosinvestigadores,sóconhecidospor todos na reunião de seminário avaliativo, demodo geral coincidem, com

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exceçãodeumououtroaspectoqueimpressionoumaissingularmenteaumouaoutroinvestigador.

Estasreuniõesdeavaliaçãoconstituem,emverdade,umsegundomomentoda“descodificação”aovivo,queosinvestigadoresestãorealizandodarealidadequeselhesapresentacomoaquela“codificação”suigeneris.

Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos expondo comoperceberame sentiramesteouaquelemomentoquemaisos impressionou,noensaio “descodificador”, cada exposição particular, desafiando a todos comodescodificadores da mesma realidade, vai re-presentificando-lhes a realidaderecém-presentificadaàsuaconsciênciaintencionadaaela.Nestemomento,“re-admiram”suaadmiraçãoanteriornorelatoda“ad-miração”dosdemais.

Destaforma,a“cisão”quefezcadaumdarealidade,noprocessoparticularde sua descodificação, os remete, dialogicamente, ao todo “cindido” que seretotaliza e se oferece aos investigadores a umanova análise, à qual se seguiránovoseinárioavaliativoecrítico,dequeparticiparão,comomembrosdaequipeinvestigadora,osrepresentantespopulares.

Quantomaiscindemotodoeore-totalizamnare-admiraçãoquefazemdesuaad-miração,maisvãoaproximando-sedosnúcleoscentraisdascontradiçõesprincipaisesecundáriasemqueestãoenvolvidososindivíduosdaárea.

Poderíamos pensar que, nesta primeira etapa da investigação, ao seapropriarem, através de suas observações, dos núcleos centrais daquelascontradições, os investigadores já estariam capacitados para organizar oconteúdoprogramáticodaaçãoeducativa.Realmente,seoconteúdodestaaçãoreflete as contradições, indiscutivelmente estará constituído da temáticasignificativadaárea.

Nãotememos,inclusive,afirmarqueamargemdeacertoparaaaçãoquesedesenvolvesse a partir destes dados seria muito mais provável que a dosconteúdosresultantesdasprogramaçõesverticais.

Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual os investigadores sedeixemseduzir.

Na verdade, o básico, a partir da inicial percepção deste núcleo decontradições,entreasquaisestará incluídaaprincipaldasociedadecomouma

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unidadeepocalmaior,éestudaremqueníveldepercepçãodelasseencontramosindivíduosdaárea.

No fundo, estas contradições se encontram constituindo “situações-limite”,envolvendotemaseapontandotarefas.

Se os indivíduos se encontram aderidos a estas “situações-limite”,impossibilitados de “separar”-se delas, o seu tema a elas referido seránecessariamenteodofatalismoea“tarefa”aeleassociadaéadequasenãoteremtarefa.

Por isto é que, embora as “situações-limite” sejam realidades objetivas eestejamprovocandonecessidadesnosindivíduos,seimpõeinvestigar,comeles,aconsciênciaquedelastenham.

Uma “situação-limite”, como realidade concreta, pode provocar emindivíduos de áreas diferentes, e até de subáreas de umamesma área, temas etarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação programática para o seudesvelamento.

Daí que a preocupação básica dos investigadores deva centrar-se noconhecimento do que Goldmann78 chama de “consciência real” (efetiva) e“consciênciamáximapossível”.

Realconsciousnessistheresultofthemultipleobstaclesanddeviationsthatthedifferentfactorsofempiricalrealityputintooppositionandsubmitforrealizationbythispotentialconsciousness.Daíque,aonívelda“consciênciareal”,oshomensseencontrem limitadosnapossibilidadedepercebermaisalémdas “situações-limite”,oquechamamosde“inéditoviável”.

Poristoéque,paranós,o“inéditoviável”[quenãopodeserapreendidononível da “consciência real” ou efetiva] se concretiza na “ação editanda”, cujaviabilidadeantesnãoerapercebida.Háumarelaçãoentreo“inéditoviável”ea“consciênciareal”eentrea“açãoeditanda”ea“consciênciamáximapossível”.

A “consciênciapossível” (Goldmann)parecepoder identificarse comoqueNicolai79chamade“soluçõespraticáveisdespercebidas”(nosso“inéditoviável”),em oposição às “soluções praticáveis percebidas” e às “soluções efetivamenterealizadas”,quecorrespondemà“consciênciareal”(ouefetiva)deGoldmann.

Esta é a razão por que o fato de os investigadores, na primeira etapa dainvestigação, terem chegado à apreensão mais ou menos aproximada do

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conjuntodecontradições,nãoosautorizaapensarnaestruturaçãodoconteúdoprogramáticodaaçãoeducativa.

Até então, esta visão é deles ainda, e não a dos indivíduos em face de suarealidade.

A segunda fase da investigação começa precisamente quando osinvestigadores, com os dados que recolheram, chegam à apreensão daqueleconjuntodecontradições.

A partir deste momento, sempre em equipe, escolherão algumas destascontradições, com que serão elaboradas as codificações que vão servir àinvestigaçãotemática.

Namedida em que as codificações (pintadas ou fotografadas e, em certoscasos, preferencialmente fotografadas)80 são o objeto que, mediatizando ossujeitos descodificadores, se dá à sua análise crítica, sua preparação deveobedecer a certos princípios que são apenas os que norteiam a confecção daspurasajudasvisuais.

Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessariamente, devemrepresentarsituaçõesconhecidaspelos indivíduoscujatemáticasebusca,oqueas faz reconhecíveis por eles, possibilitando, desta forma, que nelas sereconheçam.

Nãoseriapossível,nemnoprocessodainvestigação,nemnasprimeirasfasesdoquea ele se segue,odadevoluçãoda temática significativacomoconteúdoprogramático,proporrepresentaçõesderealidadesestranhasaosindivíduos.

E que este procedimento, embora dialético, pois que os indivíduos,analisando uma realidade estranha, comparariam com a sua, descobrindo aslimitaçõesdesta,nãopodeprecederaumoutro,exigívelpeloestadodeimersãodos indivíduos:aqueleemque,analisandosuaprópriarealidade,percebemsuapercepção anterior, do que resulta uma nova percepção da realidadedistorcidamentepercebida.

Igualmentefundamentalparaasuapreparaçãoéacondiçãodenãopoderemter as codificações, de um lado, seu núcleo temático demasiado explícito; deoutro,demasiadoenigmático.Noprimeirocaso,corremoriscodetransformar-se em codificações propagandísticas, em face das quais os indivíduos não têmoutra descodificação a fazer, senão a que se acha implícita nelas, de forma

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dirigida.No segundo, o risco de fazer-se um jogo de adivinhação ou “quebra-cabeça”.

Namedidaemquerepresentamsituaçõesexistenciais,ascodificaçõesdevemsersimplesnasuacomplexidadeeoferecerpossibilidadespluraisdeanálisesnasua descodificação, o que evita o dirigismo massificador da codificaçãopropagandística. As codificações não são slogans, são objetos cognoscíveis,desafiossobrequedeveincidirareflexãocríticadossujeitosdescodificadores.81

Ao oferecerem possibilidades plurais de análises, no processo de suadescodificação,ascodificações,naorganizaçãodeseuselementosconstituintes,devem ser uma espécie de “leque temático”. Desta forma, namedida em quesobre elas os sujeitos descodificadores incidam sua reflexão crítica, irão“abrindo-se”nadireçãodeoutrostemas.

Esta abertura, que não existirá no caso de seu conteúdo temático estardemasiadoexplicitadooudemasiadoenigmático,éindispensávelàpercepçãodasrelaçõesdialéticasqueexistementreoquerepresentameseuscontrários.

Paraatender,igualmente,aestaexigênciafundamental,éindispensávelqueacodificação, refletindo uma situação existencial, constitua objetivamente umatotalidade. Daí que seus elementos devam encontrar-se em interação, nacomposiçãodatotalidade.

No processo da descodificação os indivíduos, exteriorizando sua temática,explicitamsua“consciênciareal”daobjetividade.

Namedidaemque,aofazê-lo,vãopercebendocomoatuavamaoviveremasituaçãoanalisada,chegamaoquechamamosantesdepercepçãodapercepçãoanterior.

Aoteremapercepçãodecomoantespercebiam,percebemdiferentementearealidade, e, ampliando o horizonte do perceber, mais facilmente vãosurpreendendo, na sua “visão de fundo”, as relações dialéticas entre umadimensãoeoutradarealidade.

Dimensões referidas ao núcleo da codificação sobre que incide a operaçãodescodificadora.

Como a descodificação é, no fundo, um ato cognoscente, realizado pelossujeitos descodificadores, e como este ato recai sobre a representação de umasituação concreta, abarca igualmente o ato anterior com o qual os mesmos

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indivíduos haviam apreendido a mesma realidade, agora representada nacodificação.

Promovendo a percepção da percepção anterior e o conhecimento doconhecimentoanterior,adescodificação,destaforma,promoveosurgimentodenovapercepçãoeodesenvolvimentodenovoconhecimento.

A nova percepção e o novo conhecimento, cuja formação já começa nestaetapadainvestigação,seprolongam,sistematicamente,naimplantaçãodoplanoeducativo,transformandoo“inéditoviável”na“açãoeditanda”,comasuperaçãoda“consciênciareal”pela“consciênciamáximapossível”.

Por tudo isto é que mais uma exigência se impõe na preparação dascodificações — é que elas representem contradições tanto quanto possível“inclusivas”deoutras,comoadverteJoséLuísFiori.Quesejamcodificaçõescomum máximo de “inclusividade” de outras que constituem o sistema decontradiçõesda área emestudo.Mais ainda epor istomesmo,preparadaumadestas codificações “inclusivas”, capaz de “abrir-se” em “leque temático” noprocesso de sua descodificação, que se preparem as demais “incluídas” nela,como suas dimensões dialetizadas. A descodificação das primeiras terá umailuminaçãoexplicativamentedialéticanadescodificaçãodassegundas.

Nestesentido,umjovemchileno,GabrielBode,82quehámaisdedoisanostrabalhacomométodonaetapadepós-alfabetização, trouxeumacontribuiçãodamaisaltaimportância.

Na sua experiência, observou que os camponeses somente se interessavampela discussão quando a codificação dizia respeito, diretamente, a aspectosconcretosde suasnecessidades sentidas.Qualquerdesvionacodificação, comoqualquer tentativa do educador de orientar o diálogo, na descodificação, paraoutros rumos que não fossemos de suas necessidades sentidas, provocavamoseusilêncioeoseuindiferentismo.

Por outro lado, observava que, embora a codificação se centrasse nasnecessidadessentidas(codificação,contudo,não“inclusiva”,nosentidodeJoséLuísFiori),oscamponesesnãoconseguiam,noprocessodesuaanálise,fixar-se,ordenadamente, na discussão, “perdendo-se”, não raras vezes, sem alcançar asíntese. Assim também não percebiam, ou raramente percebiam, as relações

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entre suasnecessidades sentidaseas razõesobjetivasmaispróximasoumenospróximasdasmesmas.

Faltava-lhes, diremos nós, a percepção do “inédito viável” mais além das“situações-limite”,geradorasdesuasnecessidades.

Não lhes era possível ultrapassar a sua experiência existencial focalista,ganhandoaconsciênciadatotalidade.

Desta forma, resolveu experimentar aprojeção simultâneade situações, e amaneira como desenvolveu seu experimento é que constitui a contribuiçãoindiscutivelmenteimportantequetrouxe.

Inicialmente, projeta a codificação (muito simples na constituição de seuselementos)deumasituaçãoexistencial.Aestacodificaçãochamade“essencial”—aquela que representa onúcleo básico e que, abrindo-se em leque temáticoterminativo,seestenderánasoutras,queelechamade“codificaçõesauxiliares”.

Depois de descodificada a “essencial”, mantendo-a projetada como umsuportereferencialparaasconsciênciasaelaintencionadas,vai,sucessivamente,projetandoaseuladoascodificações“auxiliares”.

Comestas,queseencontramemrelaçãodiretacoma“essencial”,conseguemantervivoointeressedosindivíduos,queemlugarde“perder-se”nosdebates,chegamàsíntesedosmesmos.

No fundo, o grande achado de Gabriel Bode está em que ele conseguiupropor à cognoscitividade dos indivíduos, através da dialeticidade entre acodificação “essencial” e as “auxiliares”, o sentidoda totalidade.Os indivíduosimersos na realidade, com a pura sensibilidade de suas necessidades, emergemdelae,assim,ganhamarazãodasnecessidades.

Desta forma, muito mais rapidamente, poderão ultrapassar o nível da“consciênciareal”,atingindooda“consciênciapossível”.

Se este é o objetivo da educação problematizadora que defendemos, ainvestigação temática,quea elamaisque serve,porquedela éummomento, aesteobjetivonãopodefugirtambém.

Preparadas as codificações, estudados pela equipe interdisciplinar todos ospossíveis ângulos temáticosnelas contidos, iniciamos investigadores a terceirafasedainvestigação.

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Nesta, voltam à área para inaugurar os diálogos descodificadores, nos“círculosdeinvestigaçãotemática”.83

Namedidaemqueoperacionalizamestescírculos,84comadescodificaçãodomaterialelaboradonaetapaanterior,vãosendogravadasasdiscussõesqueserão,naquesesegue,analisadaspelaequipeinterdisciplinar.Nasreuniõesdeanálisedeste material, devem estar presentes os auxiliares de investigação,representantesdopovo,ealgunsparticipantesdos“círculosdeinvestigação”.Oseusubsídio,alémdeserumdireitoquelhescabe,éindispensávelàanálisedosespecialistas. É que, tão sujeitos quanto os especialistas do ato do tratamentodestes dados, serão ainda, e por isto mesmo, retificadores e ratificadores dainterpretaçãoquefazemestesdosachadosdainvestigação.

Do ponto de vistametodológico, a investigação que, desde o seu início, sebaseianarelaçãosimpáticadequefalamos,temmaisestadimensãofundamentalparaasuasegurança—apresençacríticaderepresentantesdopovodesdeseucomeçoatésuafasefinal,adaanálisedatemáticaencontrada,queseprolonganaorganização do conteúdo programático da ação educativa, como ação culturallibertadora.

A estas reuniões de descodificação nos “círculos de investigação temática”,além do investigador como coordenador auxiliar da descodificação, assistirãomaisdoisespecialistas—umpsicólogoeumsociólogo—cujatarefaéregistrarasreaçõesmaissignificativasouaparentementepoucosignificativasdossujeitosdescodificadores.

No processo da descodificação, cabe ao investigador, auxiliar desta, nãoapenasouvirosindivíduos,masdesafiá-loscadavezmais,problematizando,deumlado,asituaçãoexistencialcodificadae,deoutro,asprópriasrespostasquevãodandoaquelesnodecorrerdodiálogo.

Desta forma, os participantes do “círculo de investigação temática” vãoextrojetando,pela forçacatárticadametodologia,umasériedesentimentos,deopiniões,desi,domundoedosoutros,quepossivelmentenãoextrojetariamemcircunstânciasdiferentes.

Numa das investigações realizadas em Santiago (esta infelizmente nãoconcluída), ao discutir um grupo de indivíduos residentes num “cortiço”(conventillo) uma cena em que apareciam um homem embriagado, que

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caminhava pela rua, e, em uma esquina, três jovens que conversavam, osparticipantesdocírculodeinvestigaçãoafirmavamque“aíapenaséprodutivoeútilànaçãooborrachoquevemvoltandoparacasa,depoisdotrabalho,emqueganhapouco,preocupadocomafamília,acujasnecessidadesnãopodeatender.Éoúnicotrabalhador.Éumtrabalhadordecentecomonós,quetambémsomosborrachos”.

O interesse do investigador, o psiquiatra Patrício Lopes, a cujo trabalhofizemosreferêncianonossoensaioanterior,eraestudaraspectosdoalcoolismo.Provavelmente, porém, não haveria conseguido estas respostas se se tivessedirigido àqueles indivíduos com um roteiro de pesquisa elaborado por elemesmo. Talvez, ao serem perguntados diretamente, negassem, atémesmo quetomavam, vez ou outra, o seu trago. Frente, porém, à codificação de umasituaçãoexistencial,reconhecívelporeleseemquesereconheciam,emrelaçãodialógicaentresiecomoinvestigador,disseramoquerealmentesentiam.

Hádoisaspectosimportantesnasdeclaraçõesdesteshomens.Deumlado,arelação expressa entre ganhar pouco, sentirem-se explorados, comum “salárioque nunca alcança”, e se embriagarem. Embriagarem-se como uma espécie defuga à realidade, como tentativa de superação da frustração do seu não atuar.Uma solução, no fundo, autodestrutiva, necrófila. De outro, a necessidade devalorizaroquebebe.Erao“únicoútilànação,porquetrabalhava,enquantoosoutrosoque faziamera falarmaldavidaalheia”.E,apósavalorizaçãodoquebebe, a sua identificação com ele, como trabalhadores que também bebem. Etrabalhadoresdecentes.

Imaginemos, agora, o insucesso de um educador do tipo que Niebuhr85chama de “moralista”, que fosse fazer prédicas a esses homens contra oalcoolismo,apresentando-lhescomoexemplodevirtudeoque,paraeles,nãoémanifestaçãodevirtude.

Oúnicocaminhoaseguir,nestecomoemoutroscasos,éaconscientizaçãodasituação,asertentadadesdeaetapadainvestigaçãotemática.

Conscientização, é óbvio, que não para, estoicamente, no reconhecimentopuro, de caráter subjetivo, da situação, mas, pelo contrário, que prepara oshomens,noplanodaação,paraalutacontraosobstáculosàsuahumanização.

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Em outra experiência, de que participamos, esta, com camponeses,observamos que, durante toda a discussão de uma situação de trabalho nocampo,atônicadodebateerasempreareivindicaçãosalarialeanecessidadedeseunirem,decriaremseusindicatoparaestareivindicação,nãoparaoutra.

Discutiram três situaçõesneste encontro e a tônica foi sempre amesma—reivindicaçãosalarialesindicatoparaatenderaestareivindicação.

Imaginemos, agora, um educador que organizasse o seu programa“educativo” para estes homens e, em lugar da discussão desta temática, lhespropusessealeituradetextosque,certamente,chamariade“sadios”,enosquaissefala,angelicalmente,deque“aasaédaave”.

Eistoéoquesefaz,emtermospreponderantes,naaçãoeducativacomonapolítica,porquenãoselevaemcontaqueadialogicidadedaeducaçãocomeçanainvestigaçãotemática.

A sua última etapa se inicia quando os investigadores, terminadas asdescodificaçõesnoscírculos,dãocomeçoaoestudosistemáticoeinterdisciplinardeseusachados.

Numprimeiroinstante,ouvindogravaçãoporgravação,todasasqueforamfeitasdasdescodificaçõesrealizadas,eestudandoasnotasfixadaspelopsicólogoe pelo sociólogo, observadores do processo descodificador, vão arrolando ostemas explícitos ou implícitos em afirmações feitas nos “círculos deinvestigação”.

Estes temasdevemser classificadosnumquadrogeralde ciências, semqueisto signifique, contudo, que sejam vistos, na futura elaboração do programa,comofazendopartededepartamentosestanques.

Significa, apenas, que há uma visão mais específica, central, de um tema,conformeasuasituaçãonumdomínioqualquerdasespecializações.

Otemadodesenvolvimento,porexemplo,aindaquesituadonodomíniodaeconomia, não lhe é exclusivo. Receberia, assim, o enfoque da sociologia, daantropologia, como da psicologia social, interessadas na questão do câmbiocultural,namudançadeatitudes,nosvalores,queinteressam,igualmente,aumafilosofiadodesenvolvimento.

Receberia o enfoque da ciência política, interessada nas decisões queenvolvemoproblema,oenfoquedaeducaçãoetc.

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Destaforma,ostemasqueforamcaptadosdentrodeumatotalidade jamaisserãotratadosesquematicamente.Seriaumalástimase,depoisdeinvestigadosnariqueza de sua interpenetração com outros aspectos da realidade, ao serem“tratados”,perdessemestariqueza,esvaziando-sedesuaforça,naestreitezadosespecialismos.

Feitaadelimitaçãotemática,caberáacadaespecialista,dentrodeseucampo,apresentaràequipeinterdisciplinaroprojetode“redução”deseutema.

No processo de “redução” deste, o especialista busca os seus núcleosfundamentais que, constituindo-se em unidades de aprendizagem eestabelecendoumasequênciaentresi,dãoavisãogeraldotema“reduzido”.

Na discussão de cada projeto específico, se vão anotando as sugestões dosvários especialistas. Estas ora se incorporam à “redução” em elaboração, oraconstarãodos pequenos ensaios a serem escritos sobre o tema “reduzido”, oraumacoisaeoutra.

Estes pequenos ensaios, a que se juntam sugestões bibliográficas, sãosubsídios valiosos para a formação dos educadores-educandos que trabalharãonos“círculosdecultura”.

Nesteesforçode“redução”datemáticasignificativa,aequipereconheceráanecessidadedecolocaralgunstemasfundamentaisque,nãoobstante,nãoforamsugeridospelopovo,quandodainvestigação.

A introdução destes temas, de necessidade comprovada, corresponde,inclusive, à dialogicidade da educação, de que tanto temos falado. Se aprogramação educativa é dialógica, isto significa o direito que também têmoseducadores-educandos de participar dela, incluindo temas não sugeridos. Aestes,porsuafunção,chamamos“temasdobradiça”.

Como tais, ora facilitam a compreensão entre dois temas no conjunto daunidadeprogramática,preenchendoumpossívelvazioentreambos,oracontêm,emsi,asrelaçõesaserempercebidasentreoconteúdogeraldaprogramaçãoeavisão do mundo que esteja tendo o povo. Daí que um destes temas possaencontrar-seno“rosto”deunidadestemáticas.

O conceito antropológico de cultura é um destes “temas dobradiça”, queprendem a concepção geral do mundo que o povo esteja tendo ao resto do

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programa. Esclarece, através de sua compreensão, o papel dos homens nomundoecomomundo,comoseresdatransformaçãoenãodaadaptação.86

Feita a “redução”87 da temática investigada, a etapa que se segue, segundovimos,éadesua“codificação”.Adaescolhadomelhorcanaldecomunicaçãopara este ou aquele tema “reduzido” e sua representação. Uma “codificação”pode ser simples ou composta.No primeiro caso, pode-se usar o canal visual,pictóricoougráfico,o tátilouocanalauditivo.Nosegundo,multiplicidadedecanais.88

Aescolhadocanalvisual,pictóricoougráfico,dependenãosódamatériaacodificar, mas também dos indivíduos a quem se dirige. Se têm ou nãoexperiênciadeleitura.

Elaboradooprograma,comatemáticajáreduzidaecodificada,confecciona-se omaterial didático. Fotografias, slides, film strips, cartazes, textos de leituraetc.

Naconfecçãodestematerialpodeaequipeescolheralgunstemas,ouaspectosdealgunsdelese,se,quandoeondesejapossível,usandogravadores,propô-losaespecialistas como assunto para uma entrevista a ser realizada com um dosmembrosdaequipe.

Figuremos, entre outros, o tema do desenvolvimento. A equipe procurariadois oumais especialistas (economistas), inclusive de escolas diferentes, e lhesfalaria de seu trabalho, convidando-os a dar uma contribuição que seria aentrevistaemlinguagemacessívelsobretaispontos.Seosespecialistasaceitam,faz-se a entrevista de dez a quinze minutos. Pode-se, inclusive, tirar umafotografiadoespecialista,enquantofala.Nomomentoemquesepropusesseaopovooconteúdodaentrevista,sediria,antes,queméele.Oquefez.Oquefaz.Oque escreveu, enquanto se poderia projetar sua fotografia em slides. Se é umprofessordeuniversidade,aodeclinar-sesuacondiçãodeprofessoruniversitáriojásepoderiadiscutircomopovooquelheparecemasuniversidadesdeseupaís.Comoasvê.Oquedelasespera.

O grupo estaria sabendo que, após ouvir a entrevista, seria discutido o seuconteúdo,oqualpassariaafuncionarcomoumacodificaçãoauditiva.

Do debate realizado, faria posteriormente a equipe um relatório aoespecialista em torno de como o povo reagiu à sua palavra.Destamaneira, se

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estariam vinculando intelectuais,muitas vezes de boa vontade,mas, não raro,alienados da realidade popular, a esta realidade. E se estaria tambémproporcionandoaopovoconhecerecriticaropensamentodointelectual.

Podemaindaalgunsdestestemasoualgunsdeseusnúcleosserapresentadosatravés de pequenas dramatizações, que não contenhamnenhuma resposta.Otemaemsi,nadamais.

Funcionaria a dramatização como codificação, como situaçãoproblematizadora,aqueseseguiriaadiscussãodeseuconteúdo.

Outrorecursodidático,dentrodeumavisãoproblematizadoradaeducaçãoenão“bancária”,seriaaleituraeadiscussãodeartigosderevistas,dejornais,decapítulos de livros, começando-se por trechos.Comonas entrevistas gravadas,aquitambém,antesdeiniciaraleituradeartigooudocapítulodolivro,sefalariadeseuautor.Emseguida,serealizariaodebateemtornodoconteúdodaleitura.

Na linhadoempregodestesrecursos,parece-nos indispensávelaanálisedoconteúdodoseditoriaisdaimprensa,apropósitodeummesmoacontecimento.Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre ummesmofato?Queopovoentãodesenvolvaoseuespíritocríticoparaque,aolerjornaisouaoouvironoticiáriodasemissorasderádio,ofaçanãocomomeropaciente,como objeto dos “comunicados” que lhes prescrevem, mas como umaconsciênciaqueprecisalibertar-se.

Preparado todo estematerial, a que se juntariampré-livros sobre toda estatemática,estaráaequipedeeducadoresaptaadevolvê-loaopovo,sistematizadaeampliada.Temáticaque,sendodele,voltaagoraaele,comoproblemasaseremdecifrados,jamaiscomoconteúdosaseremdepositados.

Oprimeirotrabalhodoseducadoresdebaseseráaapresentaçãodoprogramageraldacampanhaainiciar-se.Programaemqueopovoseencontrará,dequenãosesentiráestranho,poisquedelesaiu.

Fundadosnaprópriadialogicidadedaeducação,oseducadoresexplicarãoapresença,noprograma,dos“temasdobradiça”edesuasignificação.

Como fazer,porém,nocaso emquenão sepossadispordos recursosparaestapréviainvestigaçãotemática,nostermosanalisados?

Com um mínimo de conhecimento da realidade, podem os educadoresescolher alguns temas básicos que funcionariam como “codificações de

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investigação”. Começariam assim o plano com temas introdutórios aomesmotempo em que iniciariam a investigação temática para o desdobramento doprograma,apartirdestestemas.

Umdeles,quenosparece,comojádissemos,umtemacentral,indispensável,é o do conceito antropológico de cultura. Sejam homens camponeses ouurbanos, em programa de alfabetização ou de pós-alfabetização, o começo desuasdiscussõesembuscademaisconhecer,nosentidoinstrumentaldotermo,éodebatedesteconceito.

Na proporção em que discutem omundo da cultura, vão explicitando seuníveldeconsciênciadarealidade,noqualestão implicitadosvários temas.Vãoreferindo-seaoutrosaspectosdarealidade,quecomeçaaserdescobertaemumavisão crescentemente crítica. Aspectos que envolvem também outros tantostemas.

Coma experiência quehoje temos, podemos afirmarque, bem-discutidooconceitodecultura,emtodasouemgrandepartedesuasdimensões,nospodeproporcionarváriosaspectosdeumprogramaeducativo.Mas,alémdacaptação,quediríamosquaseindireta,deumatemática,nahipóteseagorareferida,podemoseducadores,depoisdealgunsdiasderelaçõeshorizontaiscomosparticipantesdo“círculodecultura”,perguntar-lhesdiretamente:

“Queoutrostemasouassuntospoderíamosdiscutiralémdeste?”Namedidaemque foremrespondendo, logodepoisdeanotararesposta,a

propõemaogrupocomumproblematambém.Admitamosqueumdosmembrosdogrupodiz:“Gostariadediscutirsobreo

nacionalismo.” “Muito bem (diria o educador, após registrar a sugestão, eacrescentaria): “Que significa nacionalismo? Por que pode interessar-nos adiscussãosobreonacionalismo?”

Éprovável que, comaproblematizaçãoda sugestão ao grupo,novos temassurjam. Assim, namedida em que todos vão semanifestando o educador vaiproblematizando,umaauma,assugestõesquenascemdogrupo.

Se,porexemplo,numaáreaemque funcionamtrinta“círculosdecultura”,namesmanoite,todosos“coordenadores”(educadores)procedemassim,teráaequipe central um rico material temático a estudar, dentro dos princípiosdescritosnaprimeirahipótesedeinvestigaçãodatemáticasignificativa.

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O importante, do ponto de vista de uma educação libertadora, e não“bancária”, éque, emqualquerdos casos,oshomens se sintamsujeitosde seupensar, discutindo o seu pensar, sua própria visão do mundo, manifestadaimplícitaouexplicitamente,nassuassugestõesenasdeseuscompanheiros.

Porque esta visão da educação parte da convicção de que não pode sequerpresentearoseuprograma,mastemdebuscá-lodialogicamentecomopovo,éque se inscreve como uma introdução à pedagogia do oprimido, de cujaelaboraçãodeveeleparticipar.

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Notas

51 RiodeJaneiro:PazeTerra,1967[33aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].

52

Palavra(açã)

=Práxis.(reflexão)

Sacrifíciodaaçã)palavreria,verbalismo,blá-=lá-blá-blá

(dereflexão)=ativismo

53 Algumasdestasreflexõesnosforammotivadasemnossosdiálogoscomoprof.ErnaniMariaFiori.

54 Nãonosreferimos,obviamente,aosilênciodasmeditaçõesprofundasemqueoshomens,numaformasóaparente de sair domundo, dele “afastando-se” para “admirá-lo” em sua globalidade, com ele, por isto,continuam. Daí que estas formas de recolhimento só sejam verdadeiras quando os homens nela seencontrem“molhados”derealidadeenãoquando,significandoumdesprezoaomundo,sejammaneirasdefugirdele,numaespéciede“esquizofreniahistórica”.

55 Cadaveznosconvencemosmaisdanecessidadedequeosverdadeirosrevolucionáriosreconheçamnarevolução,porqueumatocriadorelibertador,umatodeamor.Paranós,arevolução,quenãosefazsemteoriadarevolução,portanto,semciência,nãotemnestaumainconciliaçãocomoamor.Peloconrário,arevolução, que é feita pelos homens, o é em nome de sua humanização. Que leva os revolucionários aaderiremaosoprimidos,senãoacondiçãodesumanizadaemqueseachamestes?Não é devido à deterioração a que se submete a palavra amor nomundo capitalista que a revolução vádeixar de ser amorosa, nem os revolucionários fazer silêncio de seu caráter biófilo. Guevara, ainda quetivessesalientadoo“riscodeparecerridículo”,nãotemeuafirmá-lo.Déjemedecirle(declaroudirigindo-seaCarlos Quijano) a riesgo de parecer ridículo que el verdadero revolucionário es animado por fuertessentimientosdeamor.Esimposiblepensarunrevolucionarioautentico,sinestacualidad.ErnestoGuevara,Obrarevolucionaria.México:EdicionesEraS.A.,1967,pp.637-38.

56 Trechodecartadeumamigodoautor.

57 PierreFurter,Educaçãoevida.Petrópolis:Vozes,1966,pp.26-7.

58 EmumalongaconversaçãocomMalraux,declarouMao:Voussavezque jeproclamedepuis longtemps:nous devons enseigner aux masses avec précision ce que nous avons reçu d’elles avec confusion. AndréMalraux, Anti-memoires. Paris: Gallimard, 1967, p. 531. Nesta afirmação de Mao está toda uma teoriadialógicadeconstituiçãodoconteúdoprogramáticodaeducação,quenãopodeserelaboradoapartirdasfinalidadesdoeducador,doquelhepareçaseromelhorparaseuseducandos.

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59 P.Furter,op.cit.,p.165.

60 Pourétablirune liaisonavec lesmasses,nousdevonsconformerà leursdésirs.Danstouttravailpour lesmasses,nousdevonspartirdeleursbesoins,etnondenospropresdésirs,silouablessoient-ils.Ilarrivesouventquelesmassesaientobjetivementbesoindetellesoutellestransformations,maisquesubjetivement,ellesnesoientconscientsdecebesoin,qu’ellesn’aientnilavolonténiledésirdelesréaliser;danscecas,nousdevonsattendre avec patience; c’est seulement lorsque, à la suíte de notre travail, les masses seront, dans leursmajoritéconscientesdelanécessitédecestransformations,lorsqu’ellesaurontlavolontéetledésirdelesfaireaboutirqu’onpourralesrealiser;sinon,l’onrisquedesecouperdesmasses.[…]Deuxprincipesdoiventnousguider:premièrement,lesbesoinsréelsdesmassesetnonlesbesoinsnésdenotreimagination;deuxièment,ledésir librementexprimépar lesmasses, les resolutionsqu’ellesontprises ellesmêmesetnoncellesquenousprenonsàleurplace.MaoTsé-Tung,“LeFrontunidansletravailculturel”,inŒuvreschoisiesdeMaoTse-Toung.Pequim:Ed.duPeuple,1966.

61 Nocapítuloseguinte,analisaremosdetidamenteestaquestão.

62 Nestesentido,é tãocontraditórioquehomensverdadeiramentehumanistasusemaprática“bancária”quantoquehomensdedireitaseempenhemnumesforçodeeducaçãoproblematizadora.Estessãosempremaiscoerentes—jamaisaceitamumapedagogiadaproblematização.

63 Comamesmaconotação,usamosaexpressãotemáticasignificativa.

64 O prof. Álvaro Vieira Pinto analisa, com bastante lucidez, o problema das “situações-limite”, cujoconceito aproveita, esvaziando-o, porém, da dimensão pessimista que se encontra originariamente emJaspers.ParaVieiraPinto,as“situações-limite”nãosão“ocontornoinfranqueávelondeterminamaspossibilidades,masamargemrealondecomeçamtodasaspossibilidades”;nãosão“afronteiraentreosereonada,masafronteiraentreosereosermais”(maisser).ÁlvaroVieiraPinto,Consciênciaerealidadenacional.RiodeJaneiro:ISEB,1960,v.2,p.284.

65 KarlMarx,Manuscritoseconômico-filosóficoseoutrostextosescolhidos.SãoPaulo:AbrilCultural,1974.

66 Apropósitodesteaspecto,cf.KarelKosik,Dialéticadoconcreto,3aed.RiodeJaneiro:PazeTerra,1985.

67 Em torno de épocas históricas, cf.Hans Freyer,Teoría de la época actual.México: Fondo deCulturaEconómica,1958.

68 Estestemassechamamgeradoresporque,qualquerquesejaanaturezadesuacompreensão,comoaaçãoporelesprovocada,contêmemsiapossibilidadededesdobrar-seemoutrostantostemasque,porsuavez,provocamnovastarefasquedevemsercumpridas.

69 A libertação desafia, de forma dialeticamente antagônica, oprimidos e opressores. Assim, enquanto é,para os primeiros, seu “inédito viável”, que precisam concretizar, se constitui, para os segundos, como“situação-limite”,quenecessitamevitar.

70 Esta forma de proceder se observa, não raramente, entre homens de classe média, ainda quediferentemente de como se manifesta entre camponeses. Seu medo da liberdade os leva a assumirmecanismos de defesa e, através de racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental enegam a realidade concreta. Em face de um problema cuja análise remete à visualização da “situação-

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limite”, cuja crítica lhes é incômoda, sua tendência é ficar na periferia dos problemas, rechaçando todatentativa de adentramento no núcleomesmo da questão. Chegam, inclusive, a irritar-se quando se lheschama a atenção para algo fundamental que explica o acidental ou o secundário, aos quais estão dandosignificaçãoprimordial.

71 A codificação de uma situação existencial é a representação desta, com alguns de seus elementosconstitutivos,eminteração.Adescodificaçãoéaanálisecríticadasituaçãocodificada.

72 O sujeito se reconhece na representação da situação existencial “codificada”, ao mesmo tempo quereconhecenesta,objetoagoradesuareflexão,oseucontornocondicionanteemecomqueestá,comoutrossujeitos.

73 Cf.PauloFreire,Educaçãocomopráticadaliberdade.

74 Apropósitodainvestigaçãoedo“tratamento”daspalavrasgeradoras,cf.Id.,ibid.

75 “Narazãomesmaemquea‘investigaçãotemática’(dizasociólogaMariaEdyFerreira,numtrabalhoempreparação) só se justifica enquanto devolva ao povo o que a ele pertence; enquanto seja, não o ato deconhecê-lo,masodeconhecercomelearealidadequeodesafia.”

76 WrightMills,TheSociologicalImagination.Oxford:OxfordUniversityPress,1963.

77 NestesentidoGuimarãesRosanospareceumexemplo—egenialexemplo—decomopodeumescritorcaptar fielmente, não a pronúncia, não a corruptela prosódica, mas a sintaxe do povo das Gerais — aestrutura de seu pensamento. O educador brasileiro Paulo de Tarso escreveu um ensaio, cujo valor einteressedestacamos,sobreaobradeGuimarãesRosa,ondeanalisaopapeldesteautorcomodescobridordostemasfundamentaisdohomemdosertãobrasileiro.

78 LucienGoldmann,TheHumanSciencesandPhilosophy.Londres:TheChancerPress,1969,p.118.

79 AndréNicolaj,Comportementéconomiqueetstructuressociales.Paris:PUF,1960.

80 Ascodificações tambémpodemserorais.Consistem,nestecaso,naapresentação, empoucaspalavras,quefazemosinvestigadores,deumproblemaexistencialeaqueseseguesua“descodificação”.AequipedoInstituto de Desarrollo Agropecuario, Chile, vem usando-os com resultados positivos em investigaçõestemáticas.

81 Ascodificações,deumlado,sãoamediaçãoentreo“contextoconcretooureal”,emquesedãoosfatos,eo “contexto teórico”, emque são analisadas; deoutro, sãooobjeto cognoscível sobreo queo educador-educandoeoseducandos-educadores,comosujeitoscognoscentes, incidemsuareflexãocrítica.Cf.PauloFreire,Açãoculturalparaa liberdadeeoutrosescritos.Riode Janeiro:PazeTerra,1976 [13aedição,SãoPaulo:PazeTerra,2011].

82 Funcionário especializado de uma dasmais sérias instituições governamentais chilenas, o Instituto deDesarrollo Agropecuario (INDAP), em cuja direção até bem pouco esteve o economista, de formaçãoautenticamentehumanista,JacquesChonchol.

83 JoséLuísFiori,emseuartigojácitado,retificoucomestadesignação,adequadaàinstituiçãoemqueseprocessaaaçãoinvestigadoradatemáticasignificativa,aqueanteslhedávamos,realmentemenosprópria,

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de“círculodecultura”,quepodia,ainda,estabelecerconfusãocomaquelaemqueserealizaaetapaquesesegueàdainvestigação.

84 Em cada “círculo de investigação” deve haver ummáximo de vinte pessoas, existindo tantos círculosquantosasomadeseusparticipantesatinjaadapopulaçãodaáreaoudasubáreaemestudo.

85 R.Niebuhr,op.cit.

86 Apropósitodaimportânciadaanálisedoconceitoantropológicodecultura,cf.PauloFreire,Educaçãocomopráticadaliberdade.

87 Se encaramos o programa em sua extensão, observamos que ele é uma totalidade cuja autonomia seencontranasinter-relaçõesdesuasunidadesquesão,também,emsi,totalidades,aomesmotempoemquesãoparcialidadesdatotalidademaior.Ostemas,sendoemsitotalidades,tambémsãoparcialidadesque,eminteração, constituem as unidades temáticas da totalidade programática.Na “redução” temática, que é aoperaçãode“cisão”dostemasenquantototalidades,sebuscamseusnúcleosfundamentais,quesãoassuasparcialidades.Destaforma,“reduzir”umtemaécindi-loemsuaspartespara,voltando-seaelecomototalidade,melhorconhecê-lo.Na“codificação”seprocurare-totalizarotemacindido,narepresentaçãodesituaçõesexistenciais.Na“descodificação”,osindivíduos,cindindoacodificaçãocomototalidade,apreendemotemaouostemasnelaimplícitosouaelareferidos.Esteprocessode“descodificação”que,nasuadialeticidade,nãomorrenacisão, que realizam na codificação como totalidade temática, se completa na re-totalização de totalidadecindida, comquenãoapenasa compreendemmais claramente,mas tambémvãopercebendoas relaçõescomoutrassituaçõescodificadas,todaselasrepresentaçõesdesituaçõesexistenciais.

88 CODIFICAÇÃO

a)Simples { canalvisualcanaltátilcanalauditivo

{ pictóricográficocriador

b)Composta { simultaneidadedecanais

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ATEORIADAAÇÃOANTIDIALÓGICA

NESTECAPÍTULO,EMQUEPRETENDEMOSanalisarasteoriasdaaçãoculturalquesedesenvolvem a partir da matriz antidialógica e da dialógica, voltaremos, nãorarasvezes,aafirmaçõesfeitasnocorpodesteensaio.

Serão repetições ou voltas a pontos já referidos, ora com a intenção deaprofundá-los, ora porque se façam necessários ao esclarecimento de novasafirmações.

Destamaneira,começaremosreafirmandoqueoshomenssãoseresdapráxis.São seres do quefazer, diferentes, por istomesmo, dos animais, seres do purofazer. Os animais não “admiram” o mundo. Imergem nele. Os homens, pelocontrário, como seres do quefazer “emergem” dele e, objetivando-o, podemconhecê-loetransformá-locomseutrabalho.

Osanimais,quenãotrabalham,vivemnoseu“suporte”particular,aquenãotranscendem.Daíquecadaespécieanimalvivano“suporte”quelhecorrespondeequeestes“suportes”sejamincomunicáveisentresi,enquantoquefranqueáveisaoshomens.

Mas,seoshomenssãoseresdoquefazeréexatamenteporqueseufazeréaçãoe reflexão.Épráxis.É transformaçãodomundo.E,na razãomesmaemqueoquefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria quenecessariamenteoilumine.Oquefazeréteoriaeprática.Éreflexãoeação.Nãopodereduzir-se,comosalientamosnocapítuloanterior,aotratarmosapalavra,nemaoverbalismo,nemaoativismo.

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AtãoconhecidaafirmaçãodeLênin:89“Semteoriarevolucionárianãopodehavermovimento revolucionário” significaprecisamentequenãohá revoluçãocomverbalismos,nemtampoucocomativismo,mascompráxis,portanto,comreflexãoeaçãoincidindosobreasestruturasaseremtransformadas.

Oesforçorevolucionáriodetransformaçãoradicaldestasestruturasnãopodeter, na liderança, homens do quefazer e, nas massas oprimidas, homensreduzidosaopurofazer.

Este é umponto que deveria estar exigindode todos quantos realmente secomprometem com os oprimidos, com a causa de sua libertação, umapermanenteecorajosareflexão.

Se o compromisso verdadeiro com eles, implicando a transformação darealidade em que se acham oprimidos, reclama uma teoria da açãotransformadora,estanãopodedeixardereconhecer-lhesumpapelfundamentalnoprocessodatransformação.

Não é possível à liderança tomar os oprimidos como meros fazedores ouexecutoresdesuasdeterminações;comomerosativistasaquemnegueareflexãosobreoseuprópriofazer.Osoprimidos,tendoailusãodequeatuam,naatuaçãoda liderança, continuam manipulados exatamente por quem, por sua próprianatureza,nãopodefazê-lo.

Por isto, na medida em que a liderança nega a práxis verdadeira aosoprimidos,seesvazia,consequentemente,nasua.

Tende, desta forma, a impor sua palavra a eles, tornando-a, assim, umapalavrafalsa,decaráterdominador.

Instala, com este proceder, uma contradição entre seumodo de atuar e osobjetivosquepretende,aonãoentenderque,semodiálogocomosoprimidos,nãoépossívelpráxisautêntica,nemparaestesnemparaela.

Oseuquefazer,açãoereflexão,nãopodedar-sesemaaçãoeareflexãodosoutros,seseucompromissoéodalibertação.

A práxis revolucionária somente pode opor-se à práxis das elitesdominadoras.Eénaturalqueassimseja,poissãoquefazeresantagônicos.

Oquenãosepoderealizar,napráxisrevolucionária,éadivisãoabsurdaentreapráxisdaliderançaeadasmassasoprimidas,deformaqueadestasfosseadeapenasseguirasdeterminaçõesdaliderança.

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Estadicotomiaexiste,comocondiçãonecessária,nasituaçãodedominação,emqueaelitedominadoraprescreveeosdominadosseguemasprescrições.

Napráxisrevolucionáriaháumaunidade,emquealiderança—semqueistosignifique diminuição de sua responsabilidade coordenadora e, em certosmomentos,diretora—nãopodeternasmassasoprimidasoobjetodesuaposse.

Daí quenão sejampossíveis amanipulação, a sloganização, o “depósito”, acondução, a prescrição, como constituintes da práxis revolucionária.Precisamenteporqueosãodadominadora.

Paradominar,odominadornão temoutrocaminhosenãonegaràsmassaspopulares a práxis verdadeira. Negar-lhes o direito de dizer sua palavra, depensarcerto.

As massas populares não têm que, autenticamente, “admirar” o mundo,denunciá-lo,questioná-lo,transformá-loparaasuahumanização,masadaptar-se à realidade que serve ao dominador. O quefazer deste não pode, por istomesmo,serdialógico.Nãopodeserumquefazerproblematizantedoshomens-mundooudoshomens em suas relações comomundoe comoshomens.Nomomento em que se fizesse dialógico, problematizante, ou o dominador sehaveria convertido aos dominados e já não seria dominador, ou se haveriaequivocado. E se, equivocando-se, desenvolvesse um tal quefazer, pagaria caroporseuequívoco.

Domesmomodo,umaliderançarevolucionária,quenãosejadialógicacomas massas, ou mantém a “sombra” do dominador “dentro” de si e não érevolucionária, ou está redondamente equivocada e, presadeuma sectarizaçãoindiscutivelmentemórbida,tambémnãoérevolucionária.

Pode ser até que chegue ao poder,mas temos nossas dúvidas em torno darevoluçãomesmaqueresultadestequefazerantidialógico.

Impõe-se,pelocontrário,adialogicidadeentrealiderançarevolucionáriaeasmassas oprimidas, para que, em todo o processo de busca de sua libertação,reconheçamnarevoluçãoocaminhodasuperaçãoverdadeiradacontradiçãoemque se encontram, comoumdos polos da situação concreta de opressão.Valedizerquedevemseengajarnoprocessocomaconsciênciacadavezmaiscríticadeseupapeldesujeitosdatransformação.

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Se são levadas ao processo como seres ambíguos,90 metade elas mesmas,metade o opressor “hospedado” nelas, e se chegam ao poder vivendo estaambiguidade que a situação de opressão lhes impõe, terão, a nosso ver,simplesmente,aimpressãodequechegaramaopoder.

A sua dualidade existencial pode, inclusive, proporcionar o surgimento deum clima sectário— ou ajudá-lo— que conduz facilmente à constituição de“burocracias”quecorroemarevolução.Aonãoconscientizarem,nodecorrerdoprocesso, esta ambiguidade, podem açoitar sua “participação” nele com umespíritomaisrevanchista91querevolucionário.

Podem aspirar à revolução como um meio de dominação também e nãocomo um caminho de libertação. Podem visualizar a revolução como a suarevolução privada, o que mais uma vez revela uma das características dosoprimidos,sobrequefalamosnoprimeirocapítulodesteensaio.

Se uma liderança revolucionária, encarnando, desta forma, uma visãohumanista — de um humanismo concreto e não abstrato —, pode terdificuldadeseproblemas,muitomaioresdificuldadeseproblemasteráaotentar,pormaisbem-intencionadaqueseja,fazerarevoluçãoparaasmassasoprimidas.Istoé,fazerumarevoluçãoemqueocomasmassasésubstituídopelosemelas,porque trazidas ao processo através dos mesmos métodos e procedimentosusadosparaoprimi-las.

Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é umaexigência radical de toda revolução autêntica. Ela é revolução por isto. Dosgolpes,seriaumaingenuidadeesperarqueestabelecessemdiálogocomasmassasoprimidas.Deles,oquesepodeesperaréoengodoparalegitimar-seouaforçaquereprime.

Averdadeirarevolução,cedooutarde,temdeinaugurarodiálogocorajosocom asmassas. Sua legitimidade está no diálogo com elas, nãono engodo, namentira.92Nãopode temer asmassas, a sua expressividade, a sua participaçãoefetivanopoder.Nãopodenegá-las.Nãopodedeixardeprestar-lhesconta.Defalardeseusacertos,deseuserros,deseusequívocos,desuasdificuldades.

A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, maisrevoluçãoserá.

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Estediálogo,comoexigênciaradicaldarevolução,respondeaoutraexigênciaradical—adoshomens como seresquenãopodem ser forada comunicação,pois que são comunicação. Obstaculizar a comunicação é transformá-los emquase“coisa”eistoétarefaeobjetivodosopressores,nãodosrevolucionários.

É preciso que fique claro que, por istomesmo que estamos defendendo apráxis, a teoria do fazer, não estamos propondo nenhuma dicotomia de queresultassequeestefazersedividisseemumaetapadereflexãoeoutra,distante,deação.Açãoereflexãosedãosimultaneamente.

O que pode ocorrer, ao exercer-se uma análise crítico-reflexiva sobre arealidade, sobre suascontradições,équesepercebaa impossibilidade imediatadeumaformadeterminadadeaçãoouasuainadequacidadeaomomento.

Desdeo instante,porém,emquea reflexãodemonstraa inviabilidadeouainoportunidade de uma forma tal ou qual de ação, que deve ser adiada ousubstituídaporoutra,não sepodenegaraaçãonosque fazemesta reflexão.Équeestaseestádandonoatomesmodeatuar—étambémação.

Se, na educação como situação gnosiológica, o ato cognoscente do sujeitoeducador(tambémeducando)sobreoobjetocognoscívelnãomorre,ouneleseesgota,porque,dialogicamente,seestendeaoutrossujeitoscognoscentes,detalmaneiraqueoobjetocognoscívelsefazmediadordacognoscitividadedosdois,na teoria da ação revolucionária se dá o mesmo. Isto é, a liderança tem, nosoprimidos, sujeitos tambémda ação libertadora e,na realidade, amediaçãodaação transformadora de ambos. Nesta teoria da ação, exatamente porque érevolucionária, não é possível falar nem em ator, no singular, nem apenas ematores,noplural,masematoresemintersubjetividade,emintercomunicação.

Negá-la, no processo revolucionário, evitando, por isto mesmo, o diálogocom o povo em nome da necessidade de “organizá-lo”, de fortalecer o poderrevolucionário,deassegurarumafrentecoesaé,nofundo,temeraliberdade.Étemeroprópriopovoounãocrernele.Mas,aosedescrerdopovo,aotemê-lo,arevoluçãoperdesuarazãodeser.Équeelanempodeserfeitaparaopovopelaliderança, nem por ele, para ela,mas por ambos, numa solidariedade que nãopode ser quebrada. E esta solidariedade somente nasce no testemunho que aliderançadáaele,noencontrohumilde,amorosoecorajosocomele.

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Nem todos temos a coragem deste encontro e nos enrijecemos nodesencontro, no qual transformamos os outros em puros objetos. E, ao assimprocedermos,nostornamosnecrófilos,emlugardebiófilos.Matamosavida,emlugardealimentarmosavida.Emlugardebuscá-la,corremosdela.

Matar a vida, freá-la, coma reduçãodoshomensapuras coisas, aliená-los,mistificá-los,violentá-lossãooprópriodosopressores.

Talvez se pense que, ao fazermos a defesa deste encontro dos homens nomundopara transformá-lo,que éodiálogo,93 estejamos caindonuma ingênuaatitude,numidealismosubjetivista.

Nãohánada,contudo,demaisconcretoerealdoqueoshomensnomundoecom omundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimem eclassesoprimidas.

Oquepretendearevoluçãoautênticaétransformararealidadequepropiciaesteestadodecoisas,desumanizantedoshomens.

Afirma-se,oqueéumaverdade,queesta transformaçãonãopode ser feitapelos que vivem de tal realidade, mas pelos esmagados, com uma lúcidaliderança.

Quesejaesta,pois,umaafirmaçãoradicalmenteconsequente, istoé,quesetorneexistenciadapelaliderançanasuacomunhãocomopovo.Comunhãoemque crescerão juntos e em que a liderança, em lugar de simplesmenteautonomear-se,seinstauraouseautenticanasuapráxiscomadopovo,nuncanodesencontroounodirigismo.

Muitos, porque aferrados a uma visão mecanicista, não percebendo estaobviedade, adequea situaçãoconcreta emqueestãooshomens condicionaasuaconsciênciadomundoeestaassuasatitudeseoseuenfrentamento,pensamquea transformaçãodarealidadesepode fazeremtermosmecânicos.94 Isto é,sem a problematização desta falsa consciência do mundo ou sem oaprofundamento de uma já menos falsa consciência dos oprimidos, na açãorevolucionária.

Nãohárealidadehistórica—maisoutraobviedade—quenãosejahumana.Nãoháhistória sem homens, comonãoháumahistóriaparaoshomens,masumahistóriadehomensque,feitaporeles,tambémosfaz,comodisseMarx.

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E é precisamente, quando—às grandesmaiorias— se proíbe o direito departiciparem como sujeitos da história, que elas se encontram dominadas ealienadas.Ointentodeultrapassagemdoestadodeobjetosparaodesujeitos—objetivodaverdadeirarevolução—nãopodeprescindirnemdaaçãodasmassas,incidentenarealidadeasertransformada,nemdesuareflexão.

Idealistas seríamosse,dicotomizandoaaçãodareflexão,entendêssemosouafirmássemosqueasimplesreflexãosobrearealidadeopressora,quelevasseoshomens ao descobrimento de seu estado de objetos, já significasse serem elessujeitos. Não há dúvida, porém, de que, se este reconhecimento ainda nãosignifica que sejam sujeitos, concretamente, “significa, disse um aluno nosso,serem sujeitos em esperança”.95 E esta esperança os leva à busca de suaconcretude.

Falsamenterealistasseremosseacreditarmosqueoativismo,quenãoéaçãoverdadeira,éocaminhoparaarevolução.

Críticos seremos, verdadeiros, se vivermos a plenitude da práxis. Isto é, senossa ação involucrauma crítica reflexãoque, organizando cada vez o pensar,nos leva a superar um conhecimento estritamente ingênuo da realidade. Esteprecisa alcançar um nível superior, com que os homens cheguem à razão darealidade. Mas isto exige um pensar constante, que não pode ser negado àsmassaspopulares,seoobjetivovisadoéalibertação.

Se a liderança revolucionária lhesnegar estepensar se encontrarápreteridade pensar também, pelo menos de pensar certo. É que a liderança não podepensarsemasmassas,nemparaelas,mascomelas.

Quem pode pensar sem as massas, sem que se possa dar ao luxo de nãopensar em torno delas, são as elites dominadoras, para que, assim pensando,melhorasconheçame,melhorconhecendo-as,melhorasdominem.Daíqueoquepoderiaparecerumdiálogodestas comasmassas,umacomunicação comelas, sejam meros “comunicados”, meros “depósitos” de conteúdosdomesticadores.Asuateoriadaaçãosecontradiriaasimesmase,emlugardaprescrição,implicasseacomunicação,adialogicidade.

Porquenãofenecemaselitesdominadorasaonãopensaremcomasmassas?Exatamente porque estas são o seu contrário antagônico, a sua “razão”, na

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afirmação de Hegel, já citada. Pensar com elas seria a superação de suacontradição.Pensarcomelassignificariajánãodominar.

Poristoéqueaúnicaformadepensarcertodopontodevistadadominaçãoénãodeixarqueasmassaspensem,oquevaledizer:énãopensarcomelas.

Em todas as épocas os dominadores foram sempre assim — jamaispermitiramàsmassasquepensassemcerto.

“Um tal Mr. Giddy”, diz Niebuhr, que foi posteriormente presidente dasociedade real, fez objeções (refere-se ao projeto de lei que se apresentou aoParlamentobritânicoem1807,criandoescolassubvencionadas)quesepodiamterapresentadoemqualqueroutropaís:“Porespecialquepudesseseremteoriaoprojetodedareducaçãoàsclasses trabalhadorasdospobres, seriaprejudicialpara suamoral e sua felicidade; ensinaria a desprezar suamissão na vida, emlugardefazerdelesbonsservosparaaagriculturaeoutrosempregos;emlugarde ensinar-lhes subordinação os faria rebeldes e refratários, como se pôs emevidêncianoscondadosmanufatureiros,habilitá-los-iaa lerfolhetossediciosos,livrosperversosepublicaçõescontraacristandade; torná-los-ia insolentesparacom seus superiores e, empoucos anos, se farianecessário à legislaturadirigircontraelesobraçofortedopoder.”96

Nofundo,oqueotalMr.Giddy,citadoporNiebuhr,queria,tantoquantoosdehoje,quenãofalamtãocínicaeabertamentecontraaeducaçãopopular,équeas massas não pensassem. OsMr. Giddy de todas as épocas, enquanto classeopressora,aonãopoderempensarcomasmassasoprimidas,nãopodemdeixarqueelaspensem.

Desta forma, dialeticamente, se explica por quê, não pensando com, masapenasemtornodasmassas,aselitesopressorasnãofenecem.

Não é omesmoo que ocorre com a liderança revolucionária. Esta, ao nãopensar com asmassas, fenece. Asmassas são a suamatriz constituinte, não aincidênciapassivadeseupensar.Aindaquetenhatambémdepensaremtornodas massas para compreendê-las melhor, distingue-se este pensar do pensaranterior.Edistingue-seporque,nãosendoumpensarparadominaresimparalibertar,pensandoemtornodasmassas,aliderançasedáaopensardelas.

Enquantoooutroéumpensardesenhor,esteéumpensardecompanheiro.E só assim pode ser. É que, enquanto a dominação, por suamesma natureza,

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exige apenas um polo dominador e um polo dominado, que se contradizemantagonicamente, a libertação revolucionária, que busca a superação destacontradição,implicaaexistênciadessespolose,mais,umaliderançaqueemergeno processo desta busca. Esta liderança, que emerge, ou se identifica com asmassaspopulares,comooprimidatambém,ounãoérevolucionária.

Assim é que, não pensar com elas para, imitando os dominadores, pensarsimplesmente em torno delas, não se dando a seu pensar, é uma forma dedesaparecercomoliderançarevolucionária.

Enquanto, no processo opressor, as elites vivem da “morte em vida” dosoprimidos e só na relação vertical entre elas e eles se autenticam, no processorevolucionáriosóháumcaminhoparaaautenticidadedaliderançaqueemerge:“morrer”parareviveratravésdosoprimidosecomeles.

Naverdade,enquantonoprimeiroélícitodizerquealguémoprimealguém,nosegundo,jánãosepodeafirmarquealguémlibertaalguém,ouquealguémseliberta sozinho, mas os homens se libertam em comunhão. Com isto, nãoqueremos diminuir o valor e a importância da liderança revolucionária. Pelocontrário, estamos enfatizando esta importância e este valor. E haveráimportância maior que conviver com os oprimidos, com os esfarrapados domundo,comos“condenadosdaterra”?

Nisto, a liderança revolucionária deve encontrar não só a sua razãode ser,masarazãodeumasãalegria.Porsuanatureza,elapodefazeroqueaoutro,porsuanatureza,seproíbedefazer,emtermosverdadeiros.

Daíquetodaaproximaçãoqueaosoprimidosfaçamosopressores,enquantoclasse, os situa inexoravelmente na falsa generosidade a que nos referimos noprimeirocapítulodestetrabalho.Istonãopodefazeraliderançarevolucionária:serfalsamentegenerosa.Nemtampoucodirigista.

Se as elites opressoras se fecundam, necrofilamente, no esmagamento dosoprimidos, a liderança revolucionária somente na comunhão com eles podefecundar-se.

Esta é a razão pela qual o quefazer opressor não pode ser humanista,enquantoo revolucionárionecessariamenteo é.Tantoquantoodesumanismodosopressores,ohumanismorevolucionárioimplicaaciência.Naquele,estaseencontraaserviçoda“reificação”;nesta,a serviçodahumanização.Mas, seno

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usodaciênciaeda tecnologiapara“reificar”,osinequadestaaçãoé fazerdosoprimidos sua pura incidência, já não é omesmo o que se impõe no uso daciência e da tecnologia para a humanização.Aqui os oprimidos, ou se tornamsujeitos,também,doprocesso,oucontinuam“reificados”.

Eomundonãoéumlaboratóriodeanatomianemoshomenssãocadáveresquedevamserestudadospassivamente.

Ohumanistacientíficorevolucionárionãopode,emnomedarevolução,ternosoprimidosobjetospassivosdesuaanálise,daqualdecorramprescriçõesqueelesdevamseguir.

Isto significa deixar-se cair num dos mitos da ideologia opressora, o daabsolutizaçãodaignorância,queimplicaaexistênciadealguémqueadecretaaalguém.

No ato desta decretação, quem o faz, reconhecendo os outros comoabsolutamente ignorantes, se reconhece e à classe aquepertence comoosquesabem ou nasceram para saber. Ao assim reconhecer-se tem nos outros o seuoposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua passa a ser a palavra“verdadeira”, que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre osoprimidos,roubadosdesuapalavra.

Desenvolve-se no que rouba a palavra dos outros umaprofunda descrençaneles, considerados como incapazes.Quantomais diz a palavra sem a palavradaquelesqueestãoproibidosdedizê-la,tantomaisexercitaopodereogostodemandar,dedirigir,decomandar.Jánãopodeviversenãotemalguémaquemdirijasuapalavradeordem.

Destaforma,éimpossívelodiálogo.Istoéprópriodaselitesopressorasque,entreseusmitos,têmdevitalizarmaiseste,comoqualdominammais.

A liderança revolucionária, pelo contrário, científico-humanista, não podeabsolutizaraignorânciadasmassas.Nãopodecrernestemito.Nãotemsequerodireitodeduvidar,porummomento,dequeistoémito.

Nãopodeadmitir,comoliderança,quesóelasabeequesóelapodesaber—o que seria descrer das massas populares. Ainda quando seja legítimoreconhecer-se emumnível de saber revolucionário, em função de suamesmaconsciência revolucionária, diferente do nível de conhecimento ingênuo dasmassas,nãopodesobrepor-seaeste,comoseusaber.

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Poristomesmoéquenãopodesloganizarasmassas,masdialogarcomelasparaqueoseuconhecimentoexperiencialemtornodarealidade,fecundadopeloconhecimentocríticodaliderança,sevátransformandoemrazãodarealidade.

Assimcomoseriaingênuoesperardaselitesopressorasadenúnciadestemitoda absolutização da ignorância dasmassas, é uma contradição que a liderançarevolucionárianãoofaçae,maiorcontradiçãoainda,queatueemfunçãodele.

Oquetemdefazeraliderançarevolucionáriaéproblematizaraosoprimidos,não só este, mas todos os mitos de que se servem as elites opressoras paraoprimir.Seassimnãosecomporta, insistindoemimitarosopressoresemseusmétodos dominadores, provavelmente duas respostas possam dar as massaspopulares.Emdeterminadascircunstânciashistóricas,sedeixarem“domesticar”porumnovoconteúdonelasdepositado.Noutras,seassustaremdiantedeuma“palavra”queameaçaoopressor“hospedado”nelas.97

Em qualquer dos casos, não se fazem revolucionários. No primeiro, arevoluçãoéumengano;nosegundo,umaimpossibilidade.

Há os que pensam, às vezes, com boa intenção, mas equivocamente, “quesendodemoradooprocessodialógico98—oquenãoéverdade—sedevefazerarevoluçãosemcomunicação,atravésdoscomunicados”e,depoisdefeita,então,sedesenvolveráumamploesforçoeducativo.Mesmoporque,continuam,nãoépossívelfazereducaçãoantesdachegadaaopoder.Educaçãolibertadora”.

Há alguns pontos fundamentais a analisar nas afirmações dos que assimpensam.

Acreditam (não todos) na necessidade do diálogo com asmassas,mas nãocreemna sua viabilidade antes da chegada ao poder.Ao admitiremquenão épossível uma forma de comportamento educativo-crítica antes da chegada aopoderporparte da liderança, negamo caráter pedagógicoda revolução, comorevolução cultural. Por outro lado, confundem o sentido pedagógico darevoluçãocomanovaeducaçãoaserinstaladacomachegadaaopoder.

A nossa posição, já afirmada e que se vem afirmando em todas as páginasdesteensaio,équeseriarealmenteingenuidadeesperardaselitesopressorasumaeducaçãodecaráter libertário.Mas,porquearevoluçãotem, indubitavelmente,um caráter pedagógico que não pode ser esquecido, na razão em que élibertadoraounãoérevolução,achegadaaopoderéapenasummomento,por

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mais decisivo que seja. Enquanto processo, o “antes” da revolução está nasociedadeopressoraeéapenasaparente.

Arevoluçãosegeranelacomosersociale,poristo,namedidaemqueéaçãocultural, não pode deixar de corresponder às potencialidades do ser social emquesegera.

Équetodosersedesenvolve(ousetransforma)dentrodesimesmo,nojogodesuascontradições.

Os condicionamentos externos, ainda que necessários, só são eficientes secoincidemcomaquelaspotencialidades.99

Onovodarevoluçãonascedasociedadevelha,opressora,que foisuperada.Daí que a chegada ao poder, que continua processo, seja apenas, como antesdissemos,ummomentodecisivodeste.

Poristoéque,numavisãodinâmicaenãoestáticadarevolução,elanãotemum antes e umdepois absolutos, de que a chegada ao poder seria o ponto dedivisão.

Gerando-se nas condições objetivas, o que busca é a superação da situaçãoopressora com a instauração de uma sociedade de homens em processo depermanentelibertação.

Osentidopedagógico,dialógico,darevolução,queafaz“revoluçãocultural”também,temdeacompanhá-laemtodasassuasfases.

Éeleaindaumdoseficientesmeiosdeevitarqueopoderrevolucionárioseinstitucionalize, estratificando-se em “burocracia” contrarrevolucionária, poisque a contrarrevolução também é dos revolucionários que se tornamreacionários.100

E,senãoépossívelodiálogocomasmassaspopularesantesdachegadaaopoder, porque falta a elas experiência do diálogo, também não lhes é possívelchegar ao poder, porque lhes falta igualmente experiência dele. Precisamenteporque defendemos uma dinâmica permanente no processo revolucionário,entendemos que é nesta dinâmica, na práxis das massas com a liderançarevolucionária, que elas e seus líderesmais representativos aprenderão tanto odiálogoquantoopoder.Istonosparecetãoóbvioquantodizerqueumhomemnãoaprendeanadarnumabiblioteca,masnaágua.

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Odiálogocomasmassasnãoéconcessão,nempresente,nemmuitomenosumatáticaaserusada,comoasloganizaçãooé,paradominar.Odiálogo,comoencontro dos homens para a “pronúncia” do mundo, é uma condiçãofundamentalparaasuarealhumanização.

Se“umaaçãolivresomenteoénamedidaemqueohomemtransformaseumundoeasimesmo,seumacondiçãopositivaparaaliberdadeéodespertardaspossibilidades criadoras humanas, se a luta por uma sociedade livre não o é amenos que, através dela, seja criado um sempre maior grau de liberdadeindividual”,101 se há de reconhecer ao processo revolucionário o seu carátereminentementepedagógico.Deumapedagogia problematizante enãodeuma“pedagogia”dos“depósitos”,“bancária”.Poristoéqueocaminhodarevoluçãoéo da abertura às massas populares, não o do fechamento a elas. É o daconvivênciacomelas,nãoodadesconfiançadelas.E,quantomaisa revoluçãoexijaa sua teoria, comosalientaLênin,mais sua liderança temdeestarcomasmassas,paraquepossaestarcontraopoderopressor.

ATEORIADAAÇÃOANTIDIALÓGICAESUASCARACTERÍSTICAS:ACONQUISTA,DIVIDIRPARAMANTERAOPRESSÃO,AMANIPULAÇÃOEAINVASÃOCULTURAL

Destas considerações gerais, partamos, agora, para uma análise mais detida apropósitodasteoriasdaaçãoantidialógicaedialógica.

Aprimeira,opressora;asegunda,revolucionário-libertadora.

Conquista

Oprimeirocaráterquenosparecepodersersurpreendidonaaçãoantidialógicaéanecessidadedaconquista.

O antidialógico, dominador, nas suas relações com o seu contrário, o quepretendeéconquistá-lo,cadavezmais,atravésdemilformas.Dasmaisdurasàs

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maissutis.Dasmaisrepressivasàsmaisadocicadas,comoopaternalismo.Todo ato de conquista implica um sujeito que conquista e um objeto

conquistado. O sujeito da conquista determina suas finalidades ao objetoconquistado,quepassa,poristomesmo,aseralgopossuídopeloconquistador.Este,porsuavez,imprimesuaformaaoconquistadoque,introjetando-o,sefazumserambíguo.Umser,comodissemosjá,“hospedeiro”dooutro.

Desdelogo,aaçãoconquistadora,ao“reificar”oshomens,énecrófila.Assimcomoaaçãoantidialógica,dequeoatodeconquistaréessencial,éum

simultâneo da situação real, concreta, de opressão, a ação dialógica éindispensávelàsuperaçãorevolucionáriadasituaçãoconcretadeopressão.

Não se é antidialógico ou dialógico no “ar”, mas no mundo. Não se éantidialógicoprimeiroeopressordepois,massimultaneamente.Oantidialógicose impõe ao opressor, na situação objetiva de opressão, para, pela conquista,oprimir mais, não só economicamente, mas culturalmente, roubando aooprimidoconquistadosuapalavratambém,suaexpressividade,suacultura.

Instauradaasituaçãoopressora,antidialógicaemsi,oantidialógicosetornaindispensávelparamantê-la.

A conquista crescente do oprimido pelo opressor aparece, pois, como umtraçomarcante da ação antidialógica. Por isto é que, sendo a ação libertadoradialógica em si, não pode ser o diálogo um a posteriori seu, mas umconcomitante dela. Mas, como os homens estarão sempre libertando-se, odiálogo102setornaumpermanentedaaçãolibertadora.

Odesejodeconquista,talvezmaisqueodesejo,anecessidadedaconquista,acompanhaaaçãoantidialógicaemtodososseusmomentos.

Através dela e para todos os fins implícitos na opressão, os opressores seesforçampormatarnoshomensa suacondiçãode“ad-miradores”domundo.Como não podem consegui-lo, em termos totais, é preciso, então,mitificar omundo.

Daíqueosopressoresdesenvolvamumasériederecursosatravésdosquaispropõemà“ad-miração”dasmassasconquistadaseoprimidasumfalsomundo.Ummundodeengodosque,alienando-asmaisainda,asmantenhapassivasemfacedele.Daíque,naaçãodaconquista,nãosejapossívelapresentaromundo

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comoproblema,mas,pelocontrário,comoalgodado,comoalgoestático,aqueoshomenssedevemajustar.

Afalsa“ad-miração”nãopodeconduziràverdadeirapráxis,poisqueéapuraespectação das massas, que, pela conquista, os opressores buscam obter portodos os meios. Massas conquistadas, massas espectadoras, passivas,gregarizadas.Portudoisto,massasalienadas.

Épreciso,contudo,chegaratéelaspara,pelaconquista,mantê-lasalienadas.Este chegar até elas, na ação da conquista, não pode transformar-senum ficarcomelas. Esta “aproximação”, quenão pode ser feita pela comunicação, se fazpelos“comunicados”,pelos“depósitos”dosmitosindispensáveisàmanutençãodostatusquo.

Omito,porexemplo,dequeaordemopressoraéumaordemdeliberdade.Dequetodossãolivresparatrabalharondequeiram.Senãolhesagradaopatrão,podementãodeixá-lo e procurar outro emprego.Omitodeque esta “ordem”respeitaosdireitosdapessoahumanaeque,portanto,édignadetodoapreço.Omito de que todos, bastando não ser preguiçosos, podem chegar a serempresários — mais ainda, o mito de que o homem que vende, pelas ruas,gritando: “docedebanana e goiaba” éumempresário tal qual odonodeumagrande fábrica. Omito do direito de todos à educação, quando o número debrasileirosquechegamàsescolasprimáriasdopaíseodosquenelasconseguempermaneceréchocantementeirrisório.Omitodaigualdadedeclasse,quandoo“sabecomquemestáfalando?”éaindaumaperguntadosnossosdias.Omitodoheroísmodas classes opressoras, comomantenedoras da ordemque encarna a“civilizaçãoocidentalecristã”,queelasdefendemda“barbáriematerialista”.Omitodesuacaridade,desuagenerosidade,quandooquefazem,enquantoclasse,é assistencialismo, que se desdobra nomito da falsa ajuda que, no plano dasnações,mereceu segura advertência de João XXIII.103 Omito de que as elitesdominadoras,“noreconhecimentodeseusdeveres”,sãoaspromotorasdopovo,devendoeste,numgestodegratidão,aceitarasuapalavraeconformar-secomela. Omito de que a rebelião do povo é um pecado contra Deus. Omito dapropriedadeprivada,comofundamentododesenvolvimentodapessoahumana,desde, porém, que pessoas humanas sejam apenas os opressores. O mito da

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operosidade dos opressores e o da preguiça e desonestidade dos oprimidos.Omitodainferioridade“ontológica”desteseodasuperioridadedaqueles.104

Todos estes mitos e mais outros que o leitor poderá acrescentar, cujaintrojeçãopelasmassaspopularesoprimidas ébásicaparaa suaconquista, sãolevadosaelaspelapropagandabem-organizada,pelosslogans,cujosveículossãosempre os chamados “meios de comunicação com as massas”.105 Como se odepósitodesteconteúdoalienantenelasfosserealmentecomunicação.

Em verdade, finalmente, não há realidade opressora que não sejanecessariamenteantidialógica,comonãoháantidialogicidadeemqueopolodosopressores não se empenhe, incansavelmente, na permanente conquista dosoprimidos.

JáaselitesdominadorasdavelhaRomafalavamnanecessidadededar“pãoecirco”àsmassasparaconquistá-las,amaciando-as,comaintençãodeassegurarasuapaz.Aselitesdominadorasdehoje,comoasdetodosostempos,continuamprecisando da conquista como uma espécie de “pecado original”, com “pão ecirco” ou sem eles. Os conteúdos e os métodos da conquista variamhistoricamente,oquenãovaria,enquantohouverelitedominadora,éestaânsianecrófiladeoprimir.

Dividirparamanteraopressão

Estaéoutradimensãofundamentaldateoriadaaçãoopressora,tãovelhaquantoaopressãomesma.

Namedidaemqueasminorias, submetendoasmaiorias a seudomínio, asoprimem, dividi-las e mantê-las divididas são condição indispensável àcontinuidadedeseupoder.

Nãosepodemdaraoluxodeconsentirnaunificaçãodasmassaspopulares,quesignificaria,indiscutivelmente,umasériaameaçaàsuahegemonia.

Daí que toda ação que possa, mesmo incipientemente, proporcionar àsclasses oprimidas o despertar para que se unam é imediatamente freada pelos

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opressoresatravésdemétodos,inclusive,fisicamenteviolentos.Conceitos, como os de união, de organização, de luta, são timbrados, sem

demora, como perigosos. E realmente o são,mas para os opressores. É que apraticizaçãodestesconceitoséindispensávelàaçãolibertadora.

Oqueinteressaaopoderopressoréenfraquecerosoprimidosmaisdoquejáestão,ilhando-os,criandoeaprofundandocisõesentreeles,atravésdeumagamavariadademétodoseprocessos.

Desdeosmétodosrepressivosdaburocratizaçãoestatal,àsuadisposição,atéas formas de ação cultural pormeio das quaismanejam asmassas populares,dando-lhesaimpressãodequeasajudam.

Umadas característicasdestas formasde ação, quasenuncapercebidasporprofissionais sérios,mas ingênuos,que sedeixamenvolver, é a ênfasenavisãolocalistadosproblemasenãonavisãodelescomodimensãodeumatotalidade.

Quantomaissepulverizeatotalidadedeumaáreaem“comunidadeslocais”,nostrabalhosde“desenvolvimentodecomunidade”,semqueestascomunidadessejam estudadas como totalidades em si, que são parcialidades de outratotalidade (área, regiãoetc.)que,por suavez, éparcialidadedeuma totalidademaior (o país, como parcialidade da totalidade continental), tanto mais seintensificaaalienação.E,quantomaisalienados,maisfácildividi-losemantê-losdivididos.

Estasformasfocalistasdeação,intensificandoomodofocalistadeexistênciadas massas oprimidas, sobretudo rurais, dificultam sua percepção crítica darealidadeeasmantêmilhadasdaproblemáticadoshomensoprimidosdeoutrasáreasemrelaçãodialéticacomasua.106

Omesmo se verifica nos chamados “treinamentos de líderes” que, emboraquandorealizadossemestaintençãopormuitosdosqueospraticam,servem,nofundo,àalienação.

O básico pressuposto desta ação já é, em si, ingênuo. Fundamenta-se napretensão de “promover” a comunidade por meio da capacitação dos líderes,como se fossem as partes que promovem o todo e não este que, promovido,promoveaspartes.

Naverdade,osquesãoconsideradosemníveldeliderançanascomunidades,para que assim sejam tomados, necessariamente, refletem e expressam as

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aspiraçõesdosindivíduosdasuacomunidade.Estãoemcorrespondênciacomaformadeseredepensararealidadedeseus

companheiros,mesmoquerevelandohabilidadesespeciaisquelhesdãoostatusdelíderes.

Nomomentoemque,depoisderetiradosdacomunidade,aelavoltam,comuminstrumentalqueantesnão tinham,ouusamesteparamelhorconduzirasconsciências dominadas e imersas, ou se tornam estranhos à comunidade,ameaçando,assim,sualiderança.

Suatendênciaprovavelmenteserá,paranãoperderemaliderança,continuar,agora,commaiseficiência,nomanejodacomunidade.

Isto não ocorre quando a ação cultural, como processo totalizado etotalizador, abarca a comunidade e não seus líderes apenas. Quando se fazatravésdosindivíduoscomosujeitosdoprocesso.

Neste tipo de ação se verifica o contrário. A liderança anterior ou crescetambémaoníveldocrescimentodotodoouésubstituídapelosnovoslíderesqueemergem,àalturadanovapercepçãosocialqueseconstitui.

Daí, também, que aos opressores não interesse esta forma de ação, mas aprimeira, enquanto ela, mantendo a alienação, obstaculiza a emersão dasconsciênciaseasuainserçãocríticanarealidadedosoprimidoscomoclasse.

Esteéoutroconceitoqueaosopressoresfazmal,aindaque,asimesmos,seconsideremcomoclasse,nãoopressora,obviamente,mas“produtora”.

Nãopodendonegar,mesmoqueotentem,aexistênciadasclassessociais,emrelaçãodialéticaumascomasoutras,emseusconflitos,falamnanecessidadedecompreensão, de harmonia, entre os que compram e os que são obrigados avenderoseutrabalho.107

Harmonia,nofundo,impossívelpeloantagonismoindisfarçávelqueháentreumaclasseeoutra.108

Pregamaharmoniadeclassescomoseestasfossemaglomeradosfortuitosdeindivíduosqueolhassem,curiosos,umavitrinanumatardededomingo.

Aharmoniaviáveleconstatadasópodeseradosopressoresentresi.Estes,mesmodivergentese,atéemcertasocasiões,emlutaporinteressesdegrupos,seunificam,imediatamente,anteumaameaçaàclasse.

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Da mesma maneira, harmonia do outro polo só é possível entre seusmembrosnabuscadesualibertação.Sóemcasosexcepcionais,nãosóépossível,mas até necessária, a harmonia de ambos para, passada a emergência que osuniu, voltarem à contradição que os delimita e que jamais desapareceu naemergênciadestaunião.

Anecessidade de dividir para facilitar amanutençãodo estado opressor semanifesta em todas as ações da classe dominadora. Sua interferência nossindicatos, favorecendo certos “representantes” da classe dominada que, nofundo, são seus representantes, e não de seus companheiros; a “promoção” deindivíduosque,revelandocertopoderdeliderança,podiamsignificarameaçaeque,“promovidos”,setornam“amaciados”;adistribuiçãodebenessesparaunsededurezapara outros, tudo são formasdedividir paramanter a “ordem”quelhesinteressa.

Formasdeaçãoqueincidem,diretaouindiretamente,sobreumdospontosdébeis dos oprimidos: a sua insegurança vital que, por sua vez, já é fruto darealidadeopressoraemqueseconstituem.

Insegurosnasuadualidadedeseres“hospedeiros”doopressor,deumlado,rechaçando-o; de outro, atraídos por ele, em certomomento da confrontaçãoentreambos,éfácilàquelepoderobterresultadospositivosdesuaaçãodivisória.

Mesmo porque os oprimidos sabem, por experiência, o quanto lhes custaaceitaremo“convite”querecebemparaevitarqueseunamentresi.Aperdadoempregoeoseunomenuma“listanegra”,quesignificaportasquesefechamaelesparanovosempregos,sãoomínimoquelhespodesuceder.

A sua insegurança vital, por istomesmo, se encontra diretamente ligada àescravizaçãodesuapessoa,comosublinhouobispoSplit,anteriormentecitado.

E que, somente namedida em que os homens criam o seumundo, que émundohumano,eocriamcomseutrabalhotransformador,elesserealizam.Arealizaçãodoshomens,enquantohomens,está,pois,narealizaçãodestemundo.Destamaneira, se seuestarnomundodo trabalhoéumestaremdependênciatotal, em insegurança, em ameaça permanente, enquanto seu trabalho não lhepertence,nãopodemrealizar-se.Otrabalhonãolivredeixadeserumquefazerrealizadordesuapessoa,paraserummeioeficazdesua“reificação”.

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Todauniãodosoprimidosentre si,que já sendoação,apontaoutrasações,implica,cedoou tarde,quepercebendoelesoseuestadodedespersonalização,descubram que, divididos, serão sempre presas fáceis do dirigismo e dadominação.

Unificados e organizados,109 porém, farão de sua debilidade forçatransformadora,comquepoderãorecriaromundo,tornando-omaishumano.

Omundomaishumanodesuas justasaspirações, contudo,éacontradiçãoantagônica do “mundo humano” dos opressores—mundo que possuem comdireitoexclusivo—eemquepretendema impossívelharmoniaentreeles,que“coisificam”,eosoprimidos,quesão“coisificados”.

Comoantagônicos,oqueserveaunsnecessariamentedesserveaosoutros.Dividirparamanterostatusquoseimpõe,pois,comofundamentalobjetivo

dateoriadaaçãodominadora,antidialógica.Como auxiliar desta açãodivisória, encontramosnela uma certa conotação

messiânica,atravésdaqualosdominadorespretendemaparecercomosalvadoresdoshomensaquemdesumanizam.

Nofundo,porém,omessianismocontidonasuaaçãonãopodeesconderoseuintento.Oqueelesqueremésalvar-seasimesmos.Esalvarsuariqueza,seupoder,seuestilodevida,comqueesmagamaosdemais.

Oseuequívocoestáemqueninguémsesalvasozinhonemcomoindivíduo,nem como classe opressora,mas com os oprimidos, pois estar contra eles é oprópriodaopressão.

Numa psicanálise da ação opressora talvez se pudesse descobrir, no quechamamos, no primeiro capítulo, de falsa generosidade do opressor, uma dasdimensões de seu sentimento de culpa. Com esta generosidade falsa, além deestar pretendendo a manutenção de uma ordem injusta e necrófila, estaráquerendo“comprar”asuapaz.Acontecequepaznãosecompra,sevivenoatorealmente solidário, amoroso, e este não pode ser assumido, encarnado, naopressão.

Por istomesmo é que estemessianismo existente na ação antidialógica vaireforçaraprimeiracaracterísticadestaação—osentidodaconquista.

Namedidaemqueadivisãodasmassasoprimidasénecessáriaàmanutençãodostatusquo,portanto, àpreservaçãodopoderdosdominadores,urgequeos

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oprimidosnãopercebamclaramenteestejogo.Nestesentido,maisumavezéimperiosaaconquistaparaqueosoprimidos

realmente se convençam de que estão sendo defendidos. Defendidos contra aaçãodemoníacade“marginaisdesordeiros”,“inimigosdeDeus”,poisqueassimsãochamadososhomensqueviveramevivem,arriscadamente,abuscavalentedalibertaçãodoshomens.

Destamaneira,paradividir,osnecrófilossenomeiamasimesmosbiófiloseaos biófilos, de necrófilos.Ahistória, contudo, se encarrega sempre de refazerestas“nomeações”.

Hoje, apesar de a alienação brasileira continuar chamandooTiradentes deinconfidenteeaomovimentolibertadorqueencarnou,deInconfidência,oheróinacionalnãoéoqueochamoudebandidoeomandouenforcareesquartejar,eespalharpedaçosdeseucorposangrandopelasvilasassustadas,comoexemplo.O herói é ele. A história rasgou o “título” que lhe deram e reconheceu o seugesto.

Osheróissãoexatamenteosqueontembuscavamauniãoparaalibertaçãoenãoosque,comoseupoder,pretendiamdividirparareinar.

Manipulação

Outracaracterísticadateoriadaaçãoantidialógicaéamanipulaçãodasmassasoprimidas. Como a anterior, a manipulação é instrumento da conquista, emtornodequetodasasdimensõesdateoriadaaçãoantidialógicavãogirando.

Através damanipulação, as elites dominadoras vão tentando conformar asmassas populares a seus objetivos. E, quanto mais imaturas, politicamente,estejam elas (rurais ou urbanas), tanto mais facilmente se deixam manipularpelaselitesdominadorasquenãopodemquererqueseesgoteseupoder.

Amanipulação se faz por toda a série demitos a quenos referimos. Entreeles, mais este: o modelo que a burguesia se faz de si mesma às massas com

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possibilidadedesuaascensão.Paraisto,porém,éprecisoqueasmassasaceitemsuapalavra.

Muitas vezes esta manipulação, dentro de certas condições históricasespeciais, se verifica através de pactos entre as classes dominantes e asmassasdominadas.Pactosquepoderiamdaraimpressão,numaapreciaçãoingênua,deumdiálogoentreelas.

Na verdade, estes pactos não são diálogo porque, na profundidade de seuobjetivo,estáinscritoointeresseinequívocodaelitedominadora.Ospactos,emúltima análise, sãomeios de que se servem os dominadores para realizar suasfinalidades.110

Oapoiodasmassaspopularesàchamada“burguesianacional”paraadefesadoduvidosocapitalnacional foiumdestespactos,dequesempreresulta,cedooutarde,oesmagamentodasmassas.

E os pactos somente se dão quando estas, mesmo ingênuas, emergem noprocessohistóricoe,comsuaemersão,ameaçamaselitesdominantes.

Basta a sua presença no processo, nãomais como puras espectadoras,mascom os primeiros sinais de sua agressividade, para que as elites dominadoras,assustadascomessapresençaincômoda,dupliquemastáticasdemanejo.

Amanipulaçãoseimpõenestasfasescomoinstrumentofundamentalparaamanutençãodadominação.

Antes da emersão das massas, não há propriamente manipulação, mas oesmagamento total dos dominados.Na sua imersão quase absoluta, não se faznecessáriaamanipulação.

Esta,na teoriaantidialógicadaação,éumarespostaqueoopressor temdedaràsnovascondiçõesconcretasdoprocessohistórico.

A manipulação aparece como uma necessidade imperiosa das elitesdominadoras, com o fim de, através dela, conseguir um tipo inautêntico de“organização”,comqueeviteoseucontrário,queéaverdadeiraorganizaçãodasmassaspopularesemersaseemergindo.111

Estas, inquietas ao emergir, têm duas possibilidades: ou são manipuladaspelaselitesparamanteradominaçãoouseorganizamverdadeiramenteparasualibertação.Éóbvio,então,queaverdadeiraorganizaçãonãopossaserestimuladapelosdominadores.Istoétarefadaliderançarevolucionária.

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Acontece, porém, que grandes frações destas massas populares, já agoraconstituindo um proletariado urbano, sobretudo nos centros maisindustrializados do país, ainda que revelando uma ou outra inquietaçãoameaçadora,carentes,contudo,deumaconsciênciarevolucionária,seveemasimesmascomoprivilegiadas.

Amanipulação, com toda a sua sériede engodos epromessas, encontra aí,quasesempre,umbomterrenoparavingar.

Oantídotoaestamanipulaçãoestánaorganizaçãocriticamenteconsciente,cujopontodepartida,poristomesmo,nãoestáemdepositarnelasoconteúdorevolucionário, mas na problematização de sua posição no processo. Naproblematizaçãodarealidadenacionaledaprópriamanipulação.

Bemrazão temWeffort112 quandodiz: “Todapolíticade esquerda se apoianas massas populares e depende de sua consciência. Se vier a confundi-la,perderáasraízes,pairaránoaràesperadaquedainevitável,aindaquandopossater, como no caso brasileiro, a ilusão de fazer a revolução pelo simples giro àvolta do poder” e, esquecendo-se dos seus encontros com as massas para oesforço de organização, perdem-se num “diálogo” impossível com as elitesdominadoras. Daí que também terminemmanipuladas por estas elites de queresulta cair, não raramente, num jogo puramente de cúpula, que chamam derealismo.

Amanipulação,na teoriadaaçãoantidialógica, tal comoaconquistaaqueserve,temdeanestesiarasmassaspopularesparaquenãopensem.

Seasmassasassociamàsuaemersão,àsuapresençanoprocesso,sobresuarealidade,entãosuaameaçaseconcretizanarevolução.

Chame-se a este pensar certo de “consciência revolucionária” ou de“consciênciadeclasse”,éindispensávelàrevolução,quenãosefazsemele.

As elites dominadoras sabem tão bemdisto que, em certos níveis seus, atéinstintivamente,usamtodososmeios,mesmoaviolênciafísica,paraproibirqueasmassaspensem.

Têmumaprofundaintuiçãodaforçacriticizantedodiálogo.Enquantoque,paraalgunsrepresentantesdaliderançarevolucionária,odiálogocomasmassaslhes dá a impressão de ser um quefazer “burguês e reacionário”, para os

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burgueses, o diálogo entre as massas e a liderança revolucionária é uma realameaça,quehádeserevitada.

Insistindo as elites dominadoras na manipulação, vão inoculando nosindivíduosoapetiteburguêsdoêxitopessoal.

Estamanipulaçãose fazoradiretamenteporestaselites,ora indiretamente,atravésdos líderespopulistas.Estes líderes,comosalientaWeffort,medeiamasrelaçõesentreaselitesoligárquicaseasmassaspopulares.

Daíqueopopulismoseconstitua, comoestilodeaçãopolítica, exatamentequando se instala o processo de emersão das massas em que elas passam areivindicarsuaparticipação,mesmoqueingenuamente.

O líder populista, que emerge neste processo, é também um ser ambíguo.Precisamenteporqueficaentreasmassaseasoligarquiasdominantes,eleécomosefosseumseranfíbio.Vivena“terra”ena“água”.Seuestarentreoligarquiasdominadorasemassaslhedeixamarcasdasduas.

Enquantopopulista,porém,namedidaemquesimplesmentemanipulaemlugarde lutarpelaverdadeiraorganizaçãopopular,estetipode líderempoucoouquasenadaserveàrevolução.

Somentequandoolíderpopulistasuperaoseucaráterambíguoeanaturezadual de sua ação e opta decididamente pelas massas, deixando assim de serpopulista, renuncia à manipulação e se entrega ao trabalho revolucionário deorganização. Neste momento, em lugar de mediador entre massas e elites, écontradição destas, o que leva as elites a arregimentar-se para freá-lo tãorapidamentequantopossam.

É interessante observar a dramaticidade com que Vargas falou às massasobreiras,numprimeirodemaiodesuaúltimaetapadegoverno,conclamando-asaunir-se.

“Querodizer-vos, todavia (afirmouVargasnocélebrediscurso),queaobragigantescaderenovação,queomeugovernoestácomeçandoaempreender,nãopodeserlevadaabomtermosemoapoiodostrabalhadoreseasuacooperaçãocotidianaedecidida.”Apósreferir-seaosprimeirosnoventadiasdeseugoverno,aoquechamava“deumbalançodasdificuldadesedosobstáculosque,daquiedali, se estão levando contra a ação governamental”, dizia em linguagemdiretíssima ao povo o quanto lhe calavam “na alma o desamparo, amiséria, a

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carestiadevida,ossaláriosbaixos…osdesesperosdosdesvalidosdafortunaeasreivindicaçõesdopovoquevivenaesperançademelhoresdias”.

Emseguida,seuapelosevaifazendomaisdramáticoeobjetivo:“Venhodizerque, neste momento, o governo ainda está desarmado de leis e de elementosconcretosdeaçãoimediataparaadefesadaeconomiadopovo.Épreciso,pois,que o povo se organize, não só para defender seus próprios interesses, mastambém para dar ao governo o ponto de apoio indispensável à realização dosseus propósitos.” E prossegue: “Preciso de vossa união, preciso de que vosorganizeis solidariamente em sindicatos; preciso que formeis um bloco forte ecoeso ao lado do governo para que este possa dispor de toda a força de quenecessitapararesolverosvossosprópriosproblemas.Precisodevossauniãoparaque possa lutar contra os sabotadores, para que não fique prisioneiro dosinteresses dos especuladores e dos gananciosos em prejuízo dos interesses dopovo”. E, com amesma ênfase: “Chegou, por istomesmo, a hora do governoapelar para os trabalhadores e dizer-lhes: uni-vos todos nos vossos sindicatos,como forças livres e organizadas. Na hora presente nenhum governo poderásubsistiroudispordeforçasuficienteparaassuasrealizaçõessenãocontarcomoapoiodasorganizaçõesoperárias.”113

Aoapelarveementementeàsmassasparaque seorganizassem,paraque seunissemna reivindicaçãode seusdireitos e aodizer-lhes, coma autoridadedechefe de Estado, dos obstáculos, dos freios, das dificuldades inúmeras pararealizarumgovernocomelas,foiindo,daíemdiante,oseugoverno,aostrancosebarrancosatéodesfechotrágicodeagostode1954.

Se Vargas não tivesse revelado, na sua última etapa de governo, umainclinaçãotãoostensivaàorganizaçãodasmassaspopulares,consequentementeligada a uma série demedidas que tomou no sentido da defesa dos interessesnacionais,possivelmenteaselitesreacionáriasnãotivessemchegadoaoextremoaquechegaram.

Isto ocorre com qualquer líder populista ao aproximar-se, ainda quediscretamente, das massas populares, não mais como exclusivo mediador dasoligarquias,seestasdispõemdeforçaparafreá-lo.

Enquanto a açãodo líder semantémnodomíniodas forçaspaternalistas esua extensão assistencialista, pode haver divergências acidentais entre ele e

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grupos oligárquicos feridos em seus interesses, dificilmente, porém, diferençasprofundas.

É que estas formas assistencialistas, como instrumento da manipulação,servemàconquista.Funcionamcomoanestésico.Distraemasmassaspopularesquanto às causas verdadeiras de seus problemas, bem como quanto à soluçãoconcreta destes problemas. Fracionam as massas populares em grupos deindivíduoscomaesperançaderecebermais.

Há,contudo,emtodaestaassistencializaçãomanipuladora,ummomentodepositividade.

Équeosgruposassistidosvãosemprequerendo indefinidamentemaiseosindivíduosnãoassistidos,vendooexemplodosqueosão,passamainquietar-seporseremassistidostambém.

E,comonãopodemaselitesdominadorasassistencializaratodos,terminamporaumentarainquietaçãodasmassas.

Aliderançarevolucionáriadeveriaaproveitaracontradiçãodamanipulação,problematizando-aàsmassaspopulares,comoobjetivodesuaorganização.

Invasãocultural

Finalmente, surpreendemos na teoria da ação antidialógica uma outracaracterística fundamental— a invasão cultural que, como as duas anteriores,serveàconquista.

Desrespeitandoaspotencialidadesdoseraquecondiciona,ainvasãoculturalé a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos,impondo a estes sua visão domundo, enquanto lhes freiam a criatividade, aoinibiremsuaexpansão.

Neste sentido, a invasão cultural, indiscutivelmente alienante, realizadamaciamente ou não, é sempre uma violência ao ser da cultura invadida, queperdesuaoriginalidadeousevêameaçadodeperdê-la.

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Poristoéque,nainvasãocultural,comoderestoemtodasasmodalidadesdaação antidialógica, os invasores são os autores e os atores do processo, seusujeito; os invadidos, seus objetos. Os invasores modelam; os invadidos sãomodelados.Os invasoresoptam;os invadidosseguemsuaopção.Pelomenoséestaaexpectativadaqueles.Osinvasoresatuam;osinvadidostêmailusãodequeatuam,naatuaçãodosinvasores.

Ainvasãoculturaltemumaduplaface.Deumlado,éjádominação;deoutro,étáticadedominação.

Naverdade,todadominaçãoimplicaumainvasão,nãoapenasfísica,visível,masàsvezes camuflada, emqueo invasor seapresentacomose fosseoamigoque ajuda. No fundo, invasão é uma forma de dominar econômica eculturalmenteoinvadido.

Invasãorealizadaporumasociedadematriz,metropolitana,numasociedadedependente, ou invasão implícita na dominação de uma classe sobre a outra,numamesmasociedade.

Como manifestação da conquista, a invasão cultural conduz àinautenticidade do ser dos invadidos. O seu programa responde ao quadrovalorativodeseusatores,aseuspadrões,asuasfinalidades.

Daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz antidialógica eideológica, jamaispossaser feitaatravésdaproblematizaçãodarealidadeedosprópriosconteúdosprogramáticosdosinvadidos.

Aos invasores, na sua ânsia de dominar, de amoldar os invadidos a seuspadrões,aseusmodosdevida,sóinteressasabercomopensamosinvadidosseuprópriomundoparadominá-losmais.114

É importante, na invasão cultural, que os invadidos vejam a sua realidadecomaóticadosinvasoresenãocomasua.Quantomaismimetizadosfiquemosinvadidos,melhorparaaestabilidadedosinvasores.

Umacondiçãobásicaaoêxitodainvasãoculturaléoconhecimentoporpartedosinvadidosdesuainferioridadeintrínseca.

Como não há nada que não tenha seu contrário, na medida em que osinvadidosvãoreconhecendo-se“inferiores”necessariamenteirãoreconhecendoa “superioridade” dos invasores. Os valores destes passam a ser a pauta dosinvadidos.Quantomaisseacentuaainvasão,alienandooserdaculturaeoser

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dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles,vestiràsuamaneira,falaraseumodo.

Oeusocialdosinvadidos,que,comotodoeusocial,seconstituinasrelaçõessocioculturais que se dão na estrutura, é tão dual quanto o ser da culturainvadida.

É esta dualidade, já várias vezes referida, que explica os invadidos edominados, em certo momento de sua experiência existencial, como um euquase“aderido”aotuopressor.

É preciso que o eu oprimido rompa esta quase “aderência” ao tu opressor,dele“afastando-se”,paraobjetivá-lo,somentequandosereconhececriticamenteemcontradiçãocomaquele.

Estamudançaqualitativadapercepçãodomundo,quenãoserealizaforadapráxis, nãopode jamais ser estimuladapelos opressores, comoumobjetivodesuateoriadaação.

Pelocontrário,amanutençãodostatusquoéoquelhesinteressa,namedidaemqueamudançanapercepçãodomundo,queimplica,nestecaso,ainserçãocríticanarealidade,osameaça.Daíainvasãoculturalcomocaracterísticadaaçãoantidialógica.

Há,contudo,umaspectoquenospareceimportantesalientarnaanálisequeestamosfazendodaaçãoantidialógica.Équeesta,enquantomodalidadedeaçãocultural de caráter dominador, nem sempre é exercida deliberadamente. Emverdade, muitas vezes os seus agentes são igualmente homens dominados,“sobredeterminados”pelaprópriaculturadaopressão.115

Comefeito,namedidaemqueumaestruturasocialsedenotacomoestruturarígida,defeiçãodominadora,asinstituiçõesformadorasquenelaseconstituemestarão, necessariamente, marcadas por seu clima, veiculando seus mitos eorientandosuaaçãonoestiloprópriodaestrutura.

Oslareseasescolas,primárias,médiaseuniversitárias,quenãoexistemnoar,masnotempoenoespaço,nãopodemescaparàsinfluênciasdascondiçõesobjetivas estruturais. Funcionam, em grande medida, nas estruturasdominadoras,comoagênciasformadorasdefuturos“invasores”.

As relações pais-filhos, nos lares, refletem, de modo geral, as condiçõesobjetivo-culturais da totalidade de que participam. E, se estas são condições

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autoritárias,rígidas,dominadoras,penetramoslares,queincrementamoclimadaopressão.116

Quantomaissedesenvolvemestasrelaçõesdefeiçãoautoritáriaentrepaisefilhos, tanto mais vão os filhos, na sua infância, introjetando a autoridadepaterna.

Discutindo, com a clareza que o caracteriza, o problema da necrofilia e dabiofilia,Frommanalisaascondiçõesobjetivasquegeramumaeoutra,quernoslares,nasrelaçõespais-filhos,noclimadesamorosoeopressor,comoamorosoelivre,quernocontextosociocultural.

Criançasdeformadasnumambientededesamor,opressivo,frustradasnasuapotência,comodiriaFromm,senãoconseguem,najuventude,endereçar-senosentido da rebelião autêntica, ou se acomodam numa demissão total do seuquerer,alienadosàautoridadeeaosmitosdequelançamãoestaautoridadeparaformá-las,oupoderãoviraassumirformasdeaçãodestrutiva.

Estainfluênciadolarsealonganaexperiênciadaescola.Nela,oseducandoscedo descobrem que, como no lar, para conquistar alguma satisfação, têm deadaptar-seaospreceitosverticalmenteestabelecidos.Eumdestespreceitosénãopensar.

Introjetandoaautoridadepaternaatravésdeumtiporígidoderelações,queaescolaenfatiza,suatendência,quandosefazemprofissionais,peloprópriomedoda liberdade que neles se instala, é seguir os padrões rígidos em que sedeformaram.

Isto, associado à sua posição classista, talvez explique a adesão de grandenúmerodeprofissionaisaumaaçãoantidialógica.117

Qualquer que seja a especialidade que tenham e que os ponha em relaçãocom o povo, sua convicção quase inabalável é a de que lhes cabe “transferir”,“levar”,ou“entregar”aopovoosseusconhecimentos,assuastécnicas.

Veem-se,a simesmos,comoospromotoresdopovo.Osprogramasdasuaação, como qualquer bom teórico da ação opressora indicaria, involucram assuasfinalidades,assuasconvicções,osseusanseios.

Nãoháqueouviropovoparanada,poisque,“incapazeinculto,precisasereducadoporelesparasairdaindolênciaqueprovocaosubdesenvolvimento”.

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Para eles, a “incultura do povo é tal ‘que lhes’ parece um absurdo falar danecessidade de respeitar a ‘Visão do mundo’ que ele esteja tendo. Visão domundotêmapenasosprofissionais”…

Damesma forma, absurda lhes parece a afirmação de que é indispensávelouviropovoparaaorganizaçãodoconteúdoprogramáticodaaçãoeducativa.Éque,paraeles,“aignorânciaabsoluta”dopovonãolhepermiteoutracoisasenãoreceberosseusensinamentos.

Quando, porém, os invadidos, em certo momento de sua experiênciaexistencial, começam, desta ou daquela forma, a recusar a invasão a que, emoutro momento, se poderiam haver adaptado, para justificar o seu fracasso,falamna“inferioridade”dosinvadidos,porque“preguiçosos”,porque“doentes”,porque“mal-agradecidos”eàsvezes,também,porque“mestiços”.

Os bem-intencionados, isto é, aqueles que usam a “invasão” não comoideologia,maspelasdeformações a quenos referimospáginas atrás, terminampor descobrir, em suas experiências, que certos fracassos de sua ação não sedevemaumainferioridadenaturaldoshomenssimplesdopovo,masàviolênciadeseuatoinvasor.

Este,demodogeral, éummomentodifícilporquepassamalgunsdosquefazemtaldescoberta.

Sentem a necessidade de renunciar à ação invasora, mas os padrõesdominadoresestãodetalformametidos“dentro”deles,queestarenúnciaéumaespéciedemorrerumpouco.

Renunciaraoatoinvasorsignifica,decertamaneira,superaradualidadeemqueseencontram—dominadosporumlado;dominadores,poroutro.

Significa renunciar a todos os mitos de que se nutre a ação invasora eexistenciarumaaçãodialógica.Significa,por istomesmo,deixardeestar sobreou“dentro”,como“estrangeiros”,paraestarcom,comocompanheiros.

O “medoda liberdade”, então, neles se instala.Durante todo esse processotraumático,suatendênciaé,naturalmente,racionalizaromedo,comumasériedeevasivas.

Este “medo da liberdade”, em técnicos que não chegaram sequer a fazer adescobertade suaação invasora, émaiorainda,quandose lhes falado sentidodesumanizantedestaação.

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Nãosãorarasasvezes,noscursosdecapacitação,sobretudonomomentoda“descodificação” de situações concretas feita pelos participantes, em que,irritados,perguntamaocoordenadordadiscussão:“Aonde,afinal,osenhorquernos levar?”Naverdade,o coordenadornãoestáquerendoconduzi-los.Ocorresimplesmenteque,aoproblematizar-lhesumasituaçãoconcreta,elescomeçamaperceberque,seaanálisedestasituaçãosevaiaprofundando,terãodedesnudar-sedeseusmitos,ouafirmá-los.

Desnudar-se de seus mitos e renunciar a eles, no momento, são uma“violência”contrasimesmos,praticadaporelespróprios.Afirmá-losérevelar-se. A única saída, como mecanismo de defesa também, é transferir aocoordenador o que é a prática normal: conduzir, conquistar, invadir,118 comomanifestaçãodesuaantidialogicidade.

Esta mesma fuga acontece, ainda que em escala menor, entre homens dopovo, na proporção em que a situação concreta de opressão os esmaga e sua“assistencialização”osdomestica.

UmadaseducadorasdoFullCircle,deNovaYork,instituiçãoquerealizaumtrabalho educativode real valor, nos relatouo seguinte caso: aoproblematizaruma situação codificada a umdos grupos das áreas pobres deNovaYork quemostrava,naesquinadeumarua—aruamesmaemquesefaziaareunião—,umagrandequantidadedelixo,disseimediatamenteumdosparticipantes:“VejoumaruadaÁfricaoudaAméricaLatina”.

“EporquenãodeNovaYork?”,perguntouaeducadora.“Porque,afirmou,somososEstadosUnidoseaquinãopodehaveristo.”Indubitavelmente,estehomemealgunsdeseuscompanheiros,quecomele

concordavam, com uma indiscutível “manha da consciência”, fugiam a umarealidadequeosofendiaecujoreconhecimentoatéosameaçava.

Submetidos ao condicionamento de uma cultura do êxito e do sucessopessoal,reconhecer-senumasituaçãoobjetivadesfavorávelparaumaconsciênciaalienadaéfrearaprópriapossibilidadedoêxito.

Quer neste, quer no caso dos profissionais, se encontra patente a força“sobredeterminante”daculturaemquesedesenvolvemosmitosqueoshomensintrojetam.

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Em ambos os casos, é a cultura da classe dominante obstaculizando aafirmaçãodoshomenscomoseresdadecisão.

Nofundo,nemosprofissionaisaquenosreferimos,nemosparticipantesdadiscussãocitadanumbairropobredeNovaYorkestãofalandoeatuandoporsimesmos,comoatoresdoprocessohistórico.

Nemunsnemoutrossãoteóricosouideólogosdadominação.Pelocontrário,sãoefeitosquesefazemtambémcausadadominação.

Esteéumdossériosproblemasquearevoluçãotemdeenfrentarnaetapaemquechegaaopoder.

Etapa que, exigindo de sua liderança ummáximode sabedoria política, dedecisão e de coragem, exige, por tudo isto, o equilíbrio suficiente para não sedeixarcairemposiçõesirracionalmentesectárias.

Éque,indiscutivelmente,osprofissionais,deformaçãouniversitáriaounão,de quaisquer especialidades, são homens que estiveram sob a“sobredeterminação” de uma cultura de dominação, que os constituiu comoseresduais.Poderiam,inclusive,tervindodasclassespopulares,eadeformação,no fundo, seria a mesma, se não pior. Estes profissionais, contudo, sãonecessários à reorganização da nova sociedade. E, como grande número entreeles,mesmotocadosdo“medodaliberdade”erelutandoemaderiraumaaçãolibertadora, emverdade sãomais equivocados queoutra coisa, nos parece quenãosópoderiam,masdeveriamserreeducadospelarevolução.

Isto exige da revolução no poder que, prolongando o que antes foi açãocultural dialógica, instaure a “revolução cultural”. Desta maneira, o poderrevolucionário, conscientizado e conscientizador, não apenas é umpoder,masumnovo poder; um poder que não é só freio necessário aos que pretendiamcontinuarnegandooshomens,mastambémumconvitevalenteatodososquequeiramparticipardareconstruçãodasociedade.

Nestesentidoéquea“revoluçãocultural”éacontinuaçãonecessáriadaaçãoculturaldialógicaquedeveserrealizadanoprocessoanterioràchegadaaopoder.

A“revoluçãocultural”tomaasociedadeemreconstruçãoemsuatotalidade,nosmúltiplosquefazeresdoshomens,comocampodesuaaçãoformadora.

Areconstruçãodasociedade,quenãosepodefazermecanicistamente, tem,na cultura que culturalmente se refaz, por meio desta revolução, o seu

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instrumentofundamental.Como a entendemos, a “revolução cultural” é o máximo de esforço de

conscientização possível que deve desenvolver o poder revolucionário, com oqualatinjaatodos,nãoimportaqualsejaasuatarefaacumprir.

Por istomesmo é que este esforço não se pode contentar com a formaçãotecnicista dos técnicos, nem cientificista dos cientistas, necessários à novasociedade.Estanãopodedistinguir-se,qualitativamente,daoutra(oquenãosefaz repentinamente, como pensam os mecanicistas em sua ingenuidade), deformaparcial.

Não é possível à sociedade revolucionária atribuir à tecnologia as mesmasfinalidadesquelheeramatribuídaspelasociedadeanterior.Consequentemente,nelasvaria,igualmente,aformaçãodoshomens.

Neste sentido, a formação técnico-científica não é antagônica à formaçãohumanista dos homens, desde que ciência e tecnologia, na sociedaderevolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de suahumanização.

Desdeessepontodevista,a formaçãodoshomens,paraqualquerquefazer,umavezquenenhumdelessepodedaranãosernotempoenoespaço,estáaexigiracompreensão:a)daculturacomosuperestruturae,nãoobstante,capazde manter na infraestrutura, revolucionariamente transformando-se,“Sobrevivências”dopassado;119eb)doquefazermesmo,comoinstrumentodatransformaçãodacultura.

Namedida emque a conscientização,na epela “revolução cultural”, se vaiaprofundandonapráxiscriadoradasociedadenova,oshomensvãodesvelandoas razões do permanecer das “sobrevivências” míticas, no fundo, realidades,forjadasnavelhasociedade.

Maisrapidamente,então,poderãolibertar-sedestesespectrosquesãosempreumsérioproblemaatodarevolução,enquantoobstaculizamaedificaçãodanovasociedade.

Atravésdestas“sobrevivências”asociedadeopressoracontinua“invadindo”e,agora,“invadindo”aprópriasociedaderevolucionária.

Esta é, porém, uma terrível “invasão”, porque não é feita diretamente pelavelha elite dominadora que se reorganizasse para tal, mas pelos homens que,

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inclusive,tomarampartenarevolução.“Hospedeiros”doopressor,resistemcomose fossemesteamedidasbásicas

quedevemsertomadaspelopoderrevolucionário.Como seres duais, porém, aceitam também, ainda em função das

“sobrevivências”,opoderqueseburocratizaeviolentamenteosreprime.Este poder burocrático, violentamente repressivo, por sua vez, pode ser

explicado através do que Althusser120 chama de “reativação de elementosantigos”,todavezquecircunstânciasespeciaisofavoreçam,nanovasociedade.

Portudoistoéquedefendemosoprocessorevolucionáriocomoaçãoculturaldialógicaqueseprolongueem“revoluçãocultural”comachegadaaopoder.E,emambas,oesforçosérioeprofundodaconscientização,comqueoshomens,atravésdeumapráxisverdadeira,superamoestadodeobjetos,comodominados,eassumemodesujeitodaHistória.

Na revolução cultural, finalmente, a revolução, desenvolvendo a prática dodiálogo permanente entre liderança e povo, consolida a participação deste nopoder.

Desta forma, na medida em que ambos — liderança e povo — se vãocriticizando, vai a revolução defendendo-se mais facilmente dos riscos dosburocratismosque implicamnovas formasdeopressãoede“invasão”,quesãosempre as mesmas. Seja o invasor um agrônomo extensionista — numasociedade burguesa ou numa sociedade revolucionária —, um investigadorsocial,umeconomista,umsanitarista,umreligioso,umeducadorpopular,umassistentesocialouumrevolucionário,queassimsecontradiz.

A invasão cultural, que serve à conquista e à manutenção da opressão,implica sempre a visão focal da realidade, a percepção desta como estática, asuperposiçãodeumavisãodomundonaoutra.A“superioridade”doinvasor.A“inferioridade”do invadido.A imposiçãode critérios.Aposse do invadido.Omedodeperdê-lo.

A invasão cultural implica ainda, por tudo isto, que o ponto de decisão daaçãodos invadidosestá foradelesenosdominadores invasores.E, enquantoadecisãonãoestáemquemdevedecidir,masforadele,esteapenastemailusãodequedecide.

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Estaéarazãoporquenãopodehaverdesenvolvimentosocioeconômicoemnenhumasociedadedual,reflexa,invadida.

Éque,parahaverdesenvolvimento,énecessário:1)quehajaummovimentode busca, de criatividade, que tenha, no sermesmo que o faz, o seu ponto dedecisão;2)queessemovimentosedênãosónoespaço,masnotempoprópriodoser,doqualtenhaconsciência.

Daíque,setododesenvolvimentoétransformação,nemtodatransformaçãoédesenvolvimento.

Atransformaçãoqueseprocessanoserdeumasementeque,emcondiçõesfavoráveis,germinaenasce,nãoédesenvolvimento.

Do mesmo modo, a transformação do ser de um animal não édesenvolvimento. Ambos se transformam determinados pela espécie a quepertencemenumtempoquenãolhespertence,poisqueétempodoshomens.

Estes, entre os seres inconclusos, são os únicos que se desenvolvem.Comosereshistóricos,como“seresparasi”,autobiográficos,suatransformação,queédesenvolvimento,sedánotempoqueéseu,nuncaforadele.

Esta é a razãopela qual, submetidos a condições concretasdeopressão emque se alienam, transformados em “seres para outro” do falso “ser para si” dequemdependem,oshomenstambémjánãosedesenvolvemautenticamente.Éque,assimroubadosnasuadecisão,queseencontranoserdominador,seguemsuasprescrições.

Os oprimidos só começam a desenvolver-se quando, superando acontradiçãoemqueseacham,sefazem“seresparasi”.

Se, agora, analisamos uma sociedade também como ser, parece-nosconcludenteque,somentecomosociedade“serparasi”,sociedadelivre,poderádesenvolver-se.

Não é possível o desenvolvimento de sociedades duais, reflexas, invadidas,dependentesdasociedademetropolitana,poisquesãosociedadesalienadas,cujoponto de decisão política, econômica e cultural se encontra fora delas — nasociedade metropolitana. Esta é que decide dos destinos, em última análise,daquelas,queapenassetransformam.

Como “seres para outro”, a sua transformação interessa precisamente àmetrópole.

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Portudoisto,éprecisonãoconfundirdesenvolvimentocommodernização.Esta, sempre realizada induzidamente, ainda que alcance certas faixas dapopulaçãoda“sociedadesatélite”,nofundointeressaàsociedademetropolitana.

A sociedade simplesmente modernizada, mas não desenvolvida, continuadependentedocentroexterno,mesmoqueassuma,pormeradelegação,algumasáreasmínimasdedecisão.Istoéoqueocorreeocorrerácomqualquersociedadedependente,enquantodependente.

Estamosconvencidosdeque,paraaferirmosseumasociedadesedesenvolveounão,devemosultrapassaroscritériosquesefixamnaanálisedeseusíndicesper capita de ingresso que, “estatisticados”, não chegam sequer a expressar averdade,bemcomoosquesecentramnoestudodesuarendabruta.Parece-nosqueocritériobásico,primordial,estáemsabermosseasociedadeéounãoum“serparasi”.Senãoé,todosestescritériosindicarãosuamodernização,masnãoseudesenvolvimento.

A contradição principal das sociedades duais é, realmente, esta — a dasrelações de dependência que se estabelecem entre elas e a sociedademetropolitana.Enquantonãosuperamestacontradição,nãosão“seresparasi”e,nãoosendo,nãosedesenvolvem.

Superada a contradição, o que antes era mera transformação“assistencializadora” em benefício, sobretudo, da matriz, se tornadesenvolvimentoverdadeiro,embenefíciodo“serparasi”.

Por tudo istoéqueas soluçõespuramente reformistasqueestas sociedadestentam,algumasdelaschegandoaassustareatémesmoaapavorarafaixasmaisreacionáriasdesuaselites,nãochegamaresolversuascontradições.

Quase sempre, senão sempre, estas soluções reformistas são induzidas pelaprópriametrópole,comoumarespostanovaqueoprocessohistóricolheimpõe,nosentidodemantersuahegemonia.

É como se ametrópole dissesse e não precisa dizer: “façamos as reformas,antesqueassociedadesdependentesfaçamarevolução”.

E,paralográ-lo,asociedademetropolitananãotemoutroscaminhossenãoaconquista,amanipulação,a invasãoeconômicaecultural (àsvezes,militar)dasociedadedependente.

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Invasão econômica e cultural em que as elites dirigentes da sociedadedominada são, em grande medida, puras metástases das elites dirigentes dasociedademetropolitana.

Após estas análises em torno da teoria da ação antidialógica, a que damoscaráterpuramente aproximativo, repitamosoquevimos afirmandoem todoocorpo deste ensaio: a impossibilidade de a liderança revolucionária usar osmesmos procedimentos antidialógicos de que se servem os opressores paraoprimir. Pelo contrário, o caminhodesta liderançahá de ser o dialógico, o dacomunicação,cujateorialogomaisanalisaremos.

Antes, porém, de fazê-lo, discutamos um ponto que nos parece de realimportânciaparaummaioresclarecimentodenossasposições.

Queremos referir-nos ao momento de constituição da liderançarevolucionária e algumas de suas consequências básicas, de caráter histórico esociológico,paraoprocessorevolucionário.

Desdelogo,demodogeral,estaliderançaéencarnadaporhomensque,destaoudaquelaforma,participavamdosestratossociaisdosdominadores.

Emumdadomomentode sua experiência existencial, em certas condiçõeshistóricas,estes,numatodeverdadeirasolidariedade(pelomenosassimsedeveesperar),renunciamàclasseàqualpertencemeaderemaosoprimidos.

Sejaestaadesãooresultadodeumaanálisecientíficadarealidadeounão,elaimplicita,quandoverdadeira,umatodeamor,derealcompromisso.121

Esta adesão aos oprimidos importa uma caminhada até eles. Umacomunicaçãocomeles.

Asmassas populares precisam descobrir-se na liderança emersa e esta nasmassas.

No momento em que a liderança emerge como tal, necessariamente seconstituicomocontradiçãodaselitesdominadoras.

Contradição objetiva destas elites são também as massas oprimidas, que“comunicam”estacontradiçãoàliderançaemersa.

Istonãosignifica,porém,quejátenhamasmassasalcançadoumgrautaldepercepçãoemtornodesuaopressão,dequeresultassesaber-secriticamenteemantagonismocomaquelas.122

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Podem estar naquela postura anteriormente referida de “aderência” aoopressor.

Épossível,também,emfunçãodecertascondiçõeshistóricasobjetivas,quejátenham chegado, senão à visualização clara de sua opressão, a uma quase“claridade”desta.

Se,noprimeirocaso,asua“aderência”ou“quaseaderência”aoopressornãolhes possibilita localizá-lo fora delas,123 no segundo, localizando-o, sereconhecem,emnívelcrítico,emantagonismocomele.

No primeiro, como opressor “hospedado” nelas, a sua ambiguidade as fazmais temerosas da liberdade. Apelam para explicações mágicas ou para umavisão falsa de Deus (estimulada pelos opressores), a quem fatalisticamentetransferemaresponsabilidadedeseuestadodeoprimidos.124

Sem crerem em si mesmas, destruídas, desesperançadas, estas massasdificilmente buscam a sua libertação, em cujo ato de rebeldia podem ver,inclusive,umarupturadesobedientecomavontadedeDeus—umaespéciedeenfrentamento indevido com o destino. Daí a necessidade, que tantoenfatizamos,deproblematizá-lasemtornodosmitosdequeaopressãoasnutre.

No segundo caso, isto é, quando já ganharam a “clareza” ou uma quase“clareza”daopressão,oqueas levaa localizaroopressor fora delas, aceitamaluta para superar a contradição em que estão. Neste momento, superam adistância que medeia as objetivas “necessidades de classe” da “consciência declasse”.

Naprimeirahipótese,aliderançarevolucionáriasefaz,dolorosamente,semoquerer,contradiçãodasmassastambém.

Na segunda, ao emergir a liderança, recebe a adesão quase instantânea esimpática das massas, que tende a crescer durante o processo da açãorevolucionária.

Ocaminho,então,quealiderançafazatéelaséespontaneamentedialógico.Háumaempatiaquaseimediataentreasmassasealiderançarevolucionária.Ocompromissoentreelasseselaquaserepentinamente.Sentem-seambas,porquecoirmanadasnamesmarepresentatividade,contradiçãodaselitesdominadoras.

Daí em diante, o diálogo entre elas se instaura e dificilmente se rompe.Continua com a chegada ao poder, em que as massas realmente se sentem e

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sabemqueestão.Istonãodiminuiemnadaoespíritodeluta,acoragem,acapacidadedeamar,

oarrojodaliderançarevolucionária.AliderançadeFidelCastroedeseuscompanheiros,naépocachamadosde

“aventureiros irresponsáveis” por muita gente, liderança eminentementedialógica,se identificoucomasmassassubmetidasaumabrutalviolência,adaditaduradeBatista.

Comistonãoqueremosafirmarqueestaadesãosedeutãofacilmente.Exigiuotestemunhocorajoso,avalentiadeamaropovoeporelesacrificarse.Exigiuotestemunho da esperança nunca desfeita de recomeçar após cada desastre,animadospelavitóriaque, forjadaporelescomopovo,nãoseriaapenasdeles,masdelesedopovo,oudelesenquantopovo.

Fidel polarizou pouco a pouco a adesão das massas que, além da objetivasituaçãode opressão emque estavam, já haviam, de certamaneira, começado,emfunçãodaexperiênciahistórica,arompersua“aderência”comoopressor.

O seu “afastamento” do opressor estava levando-as a “objetivá-lo”,reconhecendo-se,assim,comosuacontradiçãoantagônica.DaíqueFideljamaisse haja feito contradição delas. Uma ou outra deserção, uma ou outra traiçãoregistradasporGuevaranoseuRelatosde laGuerraRevolucionária, emqueserefereàsmuitasadesõestambém,eramdeseresperadas.

Destamaneira,acaminhadaquefazaliderançarevolucionáriaatéasmassas,em função de certas condições históricas, ou se realiza horizontalmente,constituindo-seambasemumsócorpocontraditóriodoopressorou,fazendo-setriangularmente, leva a liderança revolucionária a “habitar” o vértice dotriângulo,contradizendotambémasmassaspopulares.

Estacondição,comojávimos,lheéimpostapelofatodeasmassaspopularesnão terem chegado, ainda, à criticidade ou à quase criticidade da realidadeopressora.

Quase nunca, porém, a liderança revolucionária percebe que está sendocontradiçãodasmassas.

Realmente,édolorosaestapercepçãoe,talvezporummecanismodedefesa,elaresistaempercebê-lo.

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Afinal,nãoéfácilàliderança,queemergeporumgestodeadesãoàsmassasoprimidas,reconhecer-secomocontradiçãoexatamentedecomquemaderiu.

Parece-nos este um dado importante para analisar certas formas decomportamento da liderança revolucionária que, mesmo sem o querer, seconstituicomocontradiçãodasmassaspopulares,emboranãoantagônica,comojáoafirmamos.

A liderança revolucionáriaprecisa, indubitavelmente,da adesãodasmassaspopularesparaarevolução.

Na hipótese em que as contradiz, ao buscar esta adesão e ao surpreendernelas um certo alheamento, uma certa desconfiança, pode tomar estadesconfiança e aquele alheamento como se fossem índices de uma naturalincapacidadedelas.Reduz,então,oqueéummomentohistóricodaconsciênciapopular ao que seria deficiência intrínseca dasmassas. E, comoprecisa de suaadesão à luta para que possa haver revolução, mas desconfia das massasdesconfiadas, se deixa tentar pelos mesmos procedimentos que a elitedominadorausaparaoprimir.

Racionalizandoasuadesconfiança,falanaimpossibilidadedodiálogocomasmassaspopularesantesdachegadaaopoder, inscrevendo-se,destamaneira,nateoriaantidialógicadaação.Daíque,muitasvezes, talqualaelitedominadora,tente a conquista dasmassas, se façamessiânica, use amanipulação e realize ainvasão cultural. E, por estes caminhos, caminhos de opressão, ou não faz arevoluçãoou,seafaz,nãoéverdadeira.

Opapelda liderançarevolucionária, emqualquercircunstância,maisaindanesta, está em estudar seriamente, enquanto atua, as razões desta ou daquelaatitudededesconfiançadasmassasebuscarosverdadeiroscaminhospelosquaispossachegaràcomunhãocomelas.Comunhãonosentidodeajudá-lasaqueseajudemnavisualizaçãodarealidadeopressoraqueasfazoprimidas.

A consciência dominada existe, dual, ambígua, com seus temores e suasdesconfianças.125

EmseudiáriosobrealutanaBolívia,ocomandanteGuevaraserefereváriasvezes à falta de participação camponesa, afirmando textualmente: Lamobilización campesina es inexistente, salvo en las tareas de información quemolestanalgo,peronosonmuyrápidosnieficientes; lospodremosanular.Eem

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outro momento: Falta completa de incorporación campesina aunque nos vanperdiendoelmiedoyselogralaadmiracióndelescampesinos.Esunatarealentaypaciente.126

Explicando este medo e esta pouca eficiência dos camponeses, vamosencontrarneles,comoconsciênciasdominadas,oseuopressorintrojetado.

As próprias formas comportamentais dos oprimidos, a sua maneira deestaremsendo,resultantedaopressãoequelevamoopressor,paramaisoprimir,à prática da ação cultural que acabamos de analisar, estão a exigir dorevolucionárioumaoutrateoriadaação.

O que distingue a liderança revolucionária da elite dominadora não sãoapenasseusobjetivos,masoseumododeatuardistinto.Seatuamigualmenteosobjetivosseidentificam.

Por esta razão é que afirmamos antes ser tão paradoxal que a elitedominadoraproblematizeasrelaçõeshomens-mundoaosoprimidos,quantooéquealiderançarevolucionárianãoofaça.

Entremos, agora, na análise da teoria da ação cultural dialógica, tentando,comonocasoanterior,surpreenderseuselementosconstitutivos.

ATEORIADAAÇÃODIALÓGICAESUASCARACTERÍSTICAS:ACO-LABORAÇÃO,AUNIÃO,AORGANIZAÇÃOEASÍNTESECULTURAL

Co-laboração

Enquanto na teoria da ação antidialógica a conquista, como sua primeiracaracterística, implica um sujeito que, conquistando o outro, o transforma emquase “coisa”, na teoria dialógica da ação, os sujeitos se encontram para atransformaçãodomundoemco-laboração.

O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado,nummero“isto”.127

Oeudialógico,pelo contrário, sabeque é exatamenteo tu queo constitui.Sabetambémque,constituídoporumtu—umnãoeu—,essetuqueoconstitui

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seconstitui,porsuavez,comoeu,aoternoseueuumtu.Destaforma,oeueotupassama ser,nadialéticadestas relaçõesconstitutivas,dois tu que se fazemdoiseu.

Nãohá, portanto, na teoria dialógica da ação, um sujeito que domina pelaconquistaeumobjetodominado.Emlugardisto,hásujeitosqueseencontramparaapronúnciadomundo,paraasuatransformação.

Se asmassas populares dominadas, por todas as considerações já feitas, seachamincapazes,numcertomomentohistórico,deatenderàsuavocaçãodesersujeito, serápelaproblematizaçãode suaprópria opressão,que implica sempreumaformaqualquerdeação,queelaspoderãofazê-lo.

Istonãosignificaque,noquefazerdialógico,nãohajalugarparaaliderançarevolucionária.

Significa, apenas, que a liderança não é proprietária dasmassas populares,pormaisque a ela se tenhade reconhecerumpapel importante, fundamental,indispensável.

A importânciade seupapel, contudo,não lhedáodireitode comandar asmassaspopulares,cegamente,paraasualibertação.Seassimfosse,estaliderançarepetiriaomessianismosalvadordaselitesdominadoras,aindaque,noseucaso,estivessemtentandoa“salvação”dasmassaspopulares.

Mas,nestahipótese,alibertaçãooua“salvação”dasmassaspopularesestariasendoumpresente,umadoaçãoaelas,oqueromperiaovínculodialógicoentrea liderança e elas, convertendo-as de coautoras da ação da libertação, emincidênciadestaação.

Aco-laboração,comocaracterísticadaaçãodialógica,quenãopodedar-seanãoserentresujeitos,aindaquetenhamníveisdistintosdefunção,portanto,deresponsabilidade,somentepoderealizar-senacomunicação.

O diálogo, que é sempre comunicação, funda a co-laboração.Na teoria daação dialógica, não há lugar para a conquista das massas aos ideaisrevolucionários,masparaasuaadesão.

Odiálogonãoimpõe,nãomaneja,nãodomestica,nãosloganiza.Não significa isto que a teoria da ação dialógica conduza ao nada. Como

também não significa deixar de ter o dialógico uma consciência clara do quequer,dosobjetivoscomosquaissecomprometeu.

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Aliderançarevolucionária,comprometidacomasmassasoprimidas,temumcompromisso com a liberdade. E, precisamente porque o seu compromisso écomasmassasoprimidas,paraquese libertem,nãopodepretenderconquistá-las,masconseguirsuaadesãoparaalibertação.

Adesão conquistada não é adesão porque é aderência do conquistado aoconquistadoratravésdaprescriçãodesteàquele.

Aadesãoverdadeiraéacoincidêncialivredeopções.Nãopodeverificar-seanãosernaintercomunicaçãodoshomens,mediatizadospelarealidade.

Daíque,aocontráriodoqueocorrecomaconquista,nateoriaantidialógicada ação, que mitifica a realidade para manter a dominação, na co-laboração,exigida pela teoria dialógica da ação, os sujeitos dialógicos se voltam sobre arealidademediatizadoraque,problematizada,osdesafia.Arespostaaosdesafiosda realidade problematizada é já a ação dos sujeitos dialógicos sobre ela, paratransformá-la.

Problematizar,porém,nãoésloganizar,éexercerumaanálisecríticasobrearealidadeproblema.

Enquanto na teoria antidialógica asmassas são objetos sobre que incide aaçãodaconquista,nateoriadaaçãodialógicasãosujeitostambémaquemcabeconquistaromundo.Se,noprimeirocaso,cadavezmaissealienam,nosegundo,transformamomundoparaaliberdadedoshomens.

Enquanto na teoria da ação antidialógica a elite dominadora mitifica omundoparamelhordominar,ateoriadialógicaexigeodesvelamentodomundo.Se,namitificaçãodomundoedoshomens,háumsujeitoquemitificaeobjetosquesãomitificados,jánãosedáomesmonodesvelamentodomundo,queéasuadesmitificação.

Aqui,propriamente,ninguémdesvelaomundoaooutroe,aindaquandoumsujeitoiniciaoesforçodedesvelamentoaosoutros,éprecisoqueestessetornemsujeitosdoatodedesvelar.

Odesvelamentodomundoedesimesmas,napráxisautêntica,possibilitaàsmassaspopularesasuaadesão.

Estaadesãocoincidecomaconfiançaqueasmassaspopularescomeçamateremsimesmasenaliderançarevolucionária,quandopercebemasuadedicação,asuaautenticidadenadefesadalibertaçãodoshomens.

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Aconfiançadasmassasnaliderançaimplicaaconfiançaqueestatenhanelas.Esta confiança nasmassas populares oprimidas, porém, não pode ser uma

confiançaingênua.A liderançahádeconfiarnaspotencialidadesdasmassasaquemnãopode

tratar como objetos de sua ação.Há de confiar em que elas são capazes de seempenharnabuscadesualibertação,mashádedesconfiar,sempredesconfiar,daambiguidadedoshomensoprimidos.

Desconfiar dos homens oprimidos, não é, propriamente, desconfiar delesenquantohomens,masdesconfiardoopressor“hospedado”neles.

Destamaneira,quandoGuevara128chamaaatençãoaorevolucionárioparaa“necessidadededesconfiarsempre—desconfiardocamponêsqueadere,doguiaque indica os caminhos, desconfiar até de sua sombra”, não está rompendo acondiçãofundamentaldateoriadaaçãodialógica.Estásendo,apenas,realista.

Équeaconfiança,aindaquebásicaaodiálogo,nãoéumapriorideste,masumaresultantedoencontroemqueoshomenssetornamsujeitosdadenúnciadomundo,paraasuatransformação.

Daí que, enquanto os oprimidos sejammais o opressor “dentro” deles queeles mesmos, seu medo natural à liberdade pode levá-los à denúncia, não darealidadeopressora,masdaliderançarevolucionária.

Poristomesmo,estaliderança,nãopodendoseringênua,temdeestaratentaquantoaestaspossibilidades.

NorelatojácitadoquefazGuevaradalutaemSierraMaestra,relatoemqueahumildadeéumanotaconstante,secomprovamestaspossibilidades,nãoapenasemdeserçõesdaluta,masnatraiçãomesmaàcausa.

Algumasvezes,noseurelato,aoreconheceranecessidadedapuniçãoaoquedesertouparamanteracoesãoeadisciplinadogrupo,reconhecetambémcertasrazões explicativas da deserção. Uma delas, diremos nós, talvez a maisimportante,éaambiguidadedoserdodesertor.

Éimpressionante,dopontodevistaquedefendemos,umtrechodorelatoemqueGuevaraserefereàsuapresença,nãoapenascomoguerrilheiro,mascomomédico,numacomunidadecamponesadeSierraMaestra.“Ali(dizele)começouafazer-secarneemnósaconsciênciadanecessidadedeumamudançadefinitivanavidadopovo.A ideiada reformaagrária se feznítida e a comunhãocomo

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povodeixoudeser teoriaparaconverter-seempartedefinitivadenossoser.Aguerrilhaeocampesinato,continua, se iam fundindonumasómassa, semqueninguém possa dizer em que momento se fez intimamente verídico oproclamadoefomospartesdocampesinato.Sósei(dizaindaGuevara),noqueamimmerespeita,queaquelasconsultasaoscamponesesdaSierraconverteramadecisãoespontâneaealgolíricaemumaforçadedistintovaloremaisserena.

Nunca suspeitaram (conclui com humildade) aqueles sofridos e leaispovoadores da SierraMaestra o papel que desempenharam como forjadores denossaideologiarevolucionária”.129

Observe-se como Guevara enfatiza a comunhão com o povo como omomentodecisivoparaatransformaçãodoqueerauma“decisãoespontâneaealgolírica,emumaforçadedistintovaloremaisserena”.Eexplicitaque,apartirdaquela comunhão, os camponeses, ainda que não o percebessem, se fizeram“forjadores”desua“ideologiarevolucionária”.

Foi assim, no seu diálogo com as massas camponesas, que sua práxisrevolucionáriatomouumsentidodefinitivo.Mas,oquenãoexpressouGuevara,talvez por sua humildade, é que foram exatamente esta humildade e a suacapacidade de amar que possibilitaram a sua “comunhão” como povo. E estacomunhão,indubitavelmentedialógica,sefezco-laboração.

Veja-se comoum líder comoGuevara, quenão subiu a Sierra comFidel eseus companheiros àmaneira de um jovem frustrado em busca de aventuras,reconhecequeasua“comunhãocomopovodeixoudeserteoriaparaconverter-seempartedefinitivadeseuser”(notexto:nossoser).

Até no seu estilo inconfundível de narrar os momentos da sua e daexperiência dos seus companheiros, de falar de seus encontros com oscamponeses“leaisehumildes”,numalinguagemàsvezesquaseevangélica,estehomemexcepcionalrevelavaumaprofundacapacidadedeamarecomunicar-se.Daíaforçadeseutestemunhotãoardentequantoodesteoutroamoroso—“osacerdoteguerrilheiro”—,CamiloTorres.

Semaquelacomunhão,quegeraaverdadeiracolaboração,opovoteriasidoobjetodofazerrevolucionáriodoshomensdaSierra.

E,comoobjeto,aadesãoaqueeletambémsereferenãopoderiadar-se.Nomáximo,haveria“aderência”e,comesta,nãosefazrevolução,masdominação.

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Oqueexigeateoriadaaçãodialógicaéque,qualquerquesejaomomentodaação revolucionária, ela não pode prescindir desta comunhão com as massaspopulares.

Acomunhãoprovocaaco-laboraçãoquelevaliderançaemassasàquelafusãoaqueserefereograndelíderrecentementedesaparecido.Fusãoquesóexisteseaação revolucionária é realmente humana,130 por isto, simpática, amorosa,comunicante,humilde,paraserlibertadora.

Arevoluçãoébiófila,écriadoradevida,aindaque,paracriá-la,sejaobrigadaadetervidasqueproíbemavida.

Nãohávidasemmorte,comonãohámortesemvida,mashátambémuma“morteemvida”.Ea“morteemvida”éexatamenteavidaproibidadeservida.

Acreditamosnão sernecessário sequerusardados estatísticosparamostrarquantos, no Brasil e na América Latina em geral, são “mortos em vida”, são“sombras” de gente, homens, mulheres, meninos, desesperançados esubmetidos131aumapermanente“guerrainvisível”emqueopoucodevidaquelhes resta vai sendo devorado pela tuberculose, pela esquistossomose, peladiarreia infantil,pormilenfermidadesdamiséria,muitasdasquaisaalienaçãochamade“doençastropicais”…

Emfacedesituaçõescomoestas,dizopadreChenu,“[…]muitos,tantoentreospadresconciliarescomoentrelaicosinformados,tememque,naconsideraçãodas necessidades e misérias do mundo, nos atenhamos a uma abjuraçãocomovedora para paliar a miséria e a injustiça em suas manifestações e seussintomas,semquesechegueàanálisedascausas,atéàdenúnciadoregimequesegregaestainjustiçaeengendraestamiséria”.132

Oquedefende a teoriadialógicada ação éque adenúnciado “regimequesegregaestainjustiçaeengendraestamiséria”sejafeitacomsuasvítimasafimdebuscaralibertaçãodoshomensemco-laboraçãocomeles.

Unirparaalibertação

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Se,nateoriaantidialógicadaação,seimpõeaosdominadores,necessariamente,adivisãodosoprimidoscomque,maisfacilmente,semantémaopressão,nateoriadialógica,pelocontrário,aliderançaseobrigaaoesforçoincansáveldauniãodosoprimidosentresi,edelescomela,paraalibertação.

Oproblema central que se temnesta, como emqualquerdas categoriasdaaçãodialógica,équenenhumadelassedáforadapráxis.

Se,paraaelitedominadora,lheéfácil,oupelomenosnãotãodifícil,apráxisopressora,jánãoéomesmooqueseverificacomaliderançarevolucionária,aotentarapráxislibertadora.

Enquanto a primeira conta com os instrumentos do poder, a segunda seencontrasobaforçadestepoder.

Aprimeiraseorganizaasimesmalivrementee,mesmoquandotenhaassuasdivisõesacidentaisemomentâneas,seunificarapidamenteemfacedequalquerameaçaaseusinteressesfundamentais.Asegunda,quenãoexistesemasmassaspopulares,namedidaemqueécontradiçãoantagônicadaprimeira, tem,nestamesmacondição,oprimeiroóbiceàsuaprópriaorganização.

Seriaumainconsequênciadaelitedominadoraseconsentissenaorganizaçãodasmassaspopularesoprimidas,poisquenãoexisteaquelasemauniãodestasentresiedestascomaliderança.Enquantoque,paraaelitedominadora,asuaunidadeinterna,quelhereforçaeorganizaopoder,implicaadivisãodasmassaspopulares, para a liderança revolucionária, a sua unidade só existe na unidadedasmassasentresiecomela.

Aprimeiraexistenamedidadeseuantagonismocomasmassas;asegunda,narazãodesuacomunhãocomelas,que,poristomesmo,têmdeestarunidasenãodivididas.

Aprópria situação concreta de opressão, ao dualizar o eu do oprimido, aofazê-loambíguo,emocionalmenteinstável,temerosodaliberdade,facilitaaaçãodivisória do dominador nas mesmas proporções em que dificulta a açãounificadoraindispensávelàpráticalibertadora.

Maisainda,asituaçãoobjetivadedominaçãoé,emsimesma,umasituaçãodivisória. Começa por dividir o eu oprimido namedida em que,mantendo-onuma posição de “aderência” à realidade, que se lhe afigura como algo todo-poderoso,esmagador,oalienaaentidadesestranhas,explicadorasdestepoder.

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Partedeseueuseencontranarealidadeaqueseacha“aderido”,partefora,na ou nas entidades estranhas, às quais responsabiliza pela força da realidadeobjetiva,frenteàqualnadalheépossívelfazer.Daíquesejaeste,igualmente,umeudivididoentreopassadoeopresenteiguaiseofuturosemesperançaque,nofundo,nãoexiste.Umeuquenãosereconhecesendo,poristoquenãopodeter,noqueaindavem,afuturidadequedeveconstruirnauniãocomoutros.

Na medida em que seja capaz de romper a “aderência”, objetivando emtermos críticos a realidade de que assim emerge, se vai unificando como eu,comosujeito,emfacedoobjeto.Éque,nestemomento,rompendoigualmenteafalsaunidadedoseuserdividido,seindividuaverdadeiramente.

Destamaneira,se,paradividir,énecessáriomanteroeudominado“aderido”àrealidadeopressora,mitificando-a,paraoesforçodeunião,oprimeiropassoéadesmitificaçãodarealidade.

Se,paramanterdivididososoprimidossefazindispensávelumaideologiadaopressão,paraasuauniãoéimprescindívelumaformadeaçãoculturalatravésdaqualconheçamoporquêeocomodesua“aderência”àrealidadequelhesdáumconhecimentofalsodesimesmosedela.Énecessáriodesideologizar.

Por isto é que o empenho para a união dos oprimidos não pode ser umtrabalho de pura sloganização ideológica. É que este, distorcendo a relaçãoautênticaentreosujeitoearealidadeobjetiva,dividetambémocognoscitivodoafetivoedoativoque,nofiando,sãoumatotalidadenãodicotomizável.

O fundamental, realmente, na açãodialógico-libertadora, não é “desaderir”os oprimidos de uma realidade mitificada em que se acham divididos, para“aderi-los”aoutra.

O objetivo da ação dialógica está, pelo contrário, em proporcionar que osoprimidos,reconhecendooporquêeocomodesua“aderência”,exerçamumatodeadesãoàpráxisverdadeiradetransformaçãodarealidadeinjusta.

Significando a união dos oprimidos, a relação solidária entre eles nãoimportam os níveis reais em que se encontrem como oprimidos, implicatambém,indiscutivelmente,consciênciadeclasse.

A “aderência” à realidade, contudo, em que se encontram, sobretudo osoprimidos que constituem as grandes massas camponesas da América Latina,

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estáaexigirqueaconsciênciadeclasseoprimidapasse,senãoantes,pelomenosconcomitantemente,pelaconsciênciadehomemoprimido.

Propor a um camponês europeu, como um problema, a sua condição dehomem,lheparecerá,possivelmente,algoestranho.

Jánãoéomesmo fazê-loacamponeses latino-americanos,cujomundo,demodo geral, se “acaba” nas fronteiras do latifúndio, cujos gestos repetem, decertamaneira, os animais e as árvores e que, “imersos”no tempo,não raro seconsideramiguaisàqueles.

Estamosconvencidosdeque,parahomensdetalforma“aderidos”ànaturezaeàfiguradoopressor,éindispensávelquesepercebamcomohomensproibidosdeestarsendo.

A“culturadosilêncio”,quesegeranaestruturaopressora,dentrodaqualesobcuja forçacondicionantevêmrealizandosuaexperiênciade“quase-coisas”,necessariamenteosconstituidestaforma.

Descobrirem-se, portanto, através de uma modalidade de ação cultural,adialógica,problematizadoradesimesmosemseuenfrentamentocomomundo,significa,numprimeiromomento,quesedescubramcomoPedro,Antônio,comJosefa,comtodaasignificaçãoprofundaquetemestadescoberta.Nofundo,elaimplica uma percepção distinta da significação dos signos. Mundo, homens,cultura, árvore, trabalho, animal, vão assumindo a significação verdadeira quenãotinham.

Reconhecem-se, agora, como seres transformadores da realidade, para elesantesalgomisterioso,etransformadorespormeiodeseutrabalhocriador.

Descobremque,comohomens,jánãopodemcontinuarsendo“quase-coisas”possuídase,daconsciênciadesicomohomensoprimidos,vãoàconsciênciadeclasseoprimida.

Quando a tentativa de união dos camponeses se faz à base de práticasativistas, que giram em torno de slogans e não penetram estes aspectosfundamentais,oquesepodeobservaréajustaposiçãodosindivíduos,quedáàsuaaçãoumcaráterpuramentemecanicista.

Auniãodosoprimidos éumquefazerque sedánodomíniodohumanoenãonodascoisas.Verifica-se,poristomesmo,narealidade,quesóestarásendo

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autenticamente compreendida quando captada na dialeticidade entre a infra esuperestrutura.

Para que os oprimidos se unam entre si, é preciso que cortem o cordãoumbilical,de carátermágicoemítico, atravésdoqual se encontram ligadosaomundodaopressão.

Auniãoentreelesnãopodeteramesmanaturezadassuasrelaçõescomessemundo.

Estaéarazãoporque,realmenteindispensávelaoprocessorevolucionário,auniãodosoprimidosexigedesteprocessoqueeleseja,desdeseucomeço,oquedeveser:açãocultural.

Ação cultural, cuja prática para conseguir a unidade dos oprimidos vaidependerdaexperiênciahistóricaeexistencialqueelesestejamtendo,nestaounaquelaestrutura.

Enquantooscamponesesseachamemumarealidade“fechada”,cujocentrodecisório da opressão é “singular” e compacto, os oprimidos urbanos seencontramnumcontexto“abrindo-se”,emqueocentrodecomandoopressorsefazpluralecomplexo.

No primeiro caso, os dominados se acham sob a decisão da figuradominadora que encarna, em sua pessoa, o sistema opressor mesmo; nosegundo, se encontram submetidos a uma espécie de “impessoalidadeopressora”.

Em ambos os casos há uma certa “invisibilidade” do poder opressor. Noprimeiro,pelasuaproximidadeaosoprimidos;nosegundo,pelasuadiluição.

Asformasdeaçãocultural,emsituaçõesdistintascomoestas,têm,contudo,omesmoobjetivo:aclararaosoprimidosasituaçãoobjetivaemqueestão,queémediatizadoraentreeleseosopressores,visívelounão.

Somente estas formas de ação que se opõem, de um lado, aos discursosverbalistas e aos bla-bla-blás inoperantes e, de outro, ao ativismomecanicista,podemopor-se,também,àaçãodivisóriadaselitesdominadorasedirigir-senosentidodaunidadedosoprimidos.

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Organização

Enquanto,nateoriadaaçãoantidialógica,amanipulação,queserveàconquista,seimpõecomocondiçãoindispensávelaoatodominador,nateoriadialógicadaação,vamosencontrar, comoseuopostoantagônico,aorganizaçãodasmassaspopulares.

Aorganizaçãonãoapenasestádiretamente ligadaàsuaunidade,maséumdesdobramentonaturaldestaunidadedasmassaspopulares.

Desta forma, ao buscar a unidade, a liderança já busca, igualmente, aorganizaçãodasmassaspopulares,oque implicao testemunhoquedevedaraelasdequeoesforçodelibertaçãoéumatarefacomumaambas.

Este testemunho constante, humilde e corajoso do exercício de uma tarefacomum — a da libertação dos homens — evita o risco dos dirigismosantidialógicos.

O que pode variar, em função das condições históricas de uma dadasociedade, é o modo como testemunhar. O testemunho em si, porém, é umconstituintedaaçãorevolucionária.

Por istomesmo é que se impõe a necessidade de um conhecimento tantoquantopossívelcadavezmaiscríticodomomentohistóricoemquesedáaação,da visão do mundo que tenham ou estejam tendo as massas populares, dapercepção clara de qual seja a contradição principal e o principal aspecto dacontradição que vive a sociedade, para se determinar o que e o como dotestemunho.

Sendohistóricasestasdimensõesdotestemunho,odialógico,queédialético,nãopodeimportá-lassimplesmentedeoutroscontextossemumapréviaanálisedoseu.Anãoserassim,absolutizaorelativoe,mitificando-o,nãopodeescaparaalienação.

Otestemunho,nateoriadialógicadaação,éumadasconotaçõesprincipaisdocaráterculturalepedagógicodarevolução.

Entre os elementos constitutivos do testemunho, que não variamhistoricamente,estãoacoerênciaentreapalavraeoatodequemtestemunha,aousadiadoque testemunha,queo levaaenfrentaraexistênciacomoumrisco

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permanente,aradicalização,nuncaasectarização,naopçãofeita,quelevanãosóoquetestemunha,masaquelesaquemdáotestemunho,cadavezmaisàação.Avalentia de amar que, segundo pensamos, já ficou claro não significar aacomodação ao mundo injusto mas a transformação deste mundo para acrescentelibertaçãodoshomens.Acrençanasmassaspopulares,umavezqueéaelasqueotestemunhosedá,aindaqueotestemunhoaelas,dentrodatotalidadeemque estão, em relaçãodialética comas elites dominadoras, afete tambémaestas,queaelerespondemdentrodoquadronormaldesuaformadeaturar.

Todotestemunhoautêntico,poristocrítico,implicaousadiadecorrerriscos— um deles, o de nem sempre a liderança conseguir de imediato, dasmassaspopulares,aadesãoesperada.

Um testemunho que, em certo momento e em certas condições, nãofrutificou,nãoestáimpossibilitadode,amanhã,virafrutificar.Éque,namedidaemqueotestemunhonãoéumgestonoar,masumaação,umenfrentamento,comomundo e comoshomens, não é estático.É algodinâmico, quepassa afazer parte da totalidade do contexto da sociedade em que se deu. E, daí emdiante,jánãopara.133

Enquanto, na ação antidialógica, a manipulação, “anestesiando” as massaspopulares, facilita sua dominação, na ação dialógica, a manipulação cede seulugar à verdadeira organização. Assim como, na ação antidialógica, amanipulaçãoserveàconquista,nadialógica,o testemunho,ousadoeamoroso,serveàorganização.Esta,porsuavez,nãoapenasestáligadaàuniãodasmassaspopularescomoéumdesdobramentonaturaldestaunião.

Poristoéqueafirmamos:aobuscaraunião,aliderançajábusca,igualmente,aorganizaçãodasmassaspopulares.

Éimportante,porém,salientarque,nateoriadialógicadaação,aorganizaçãojamais será a justaposição de indivíduos que, gregarizados, se relacionemmecanicistamente.

Esteéumriscodequedeveestarsempreadvertidooverdadeirodialógico.Se,paraaelitedominadora,aorganizaçãoéadesimesma,paraaliderança

revolucionária,aorganizaçãoéadelacomasmassaspopulares.No primeiro caso, organizando-se, a elite dominadora estrutura cada vez

maisoseupodercomquemelhordominaecoisifica;nosegundo,aorganização

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sócorrespondeàsuanaturezaeaseuobjetivoseé,emsi,práticadaliberdade.Neste sentido é que não é possível confundir a disciplina indispensável àorganizaçãocomaconduçãopuradasmassas.

Éverdadeque,semliderança,semdisciplina,semordem,semdecisão,semobjetivos, sem tarefas a cumprir e contas a prestar, nãohá organização e, semesta,sediluiaaçãorevolucionária.Nadadisso,contudo, justificaomanejodasmassaspopulares,asua“coisificação”.

Oobjetivodaorganização,queélibertador,énegadopela“coisificação”dasmassas populares, se a liderança revolucionária as manipula. “Coisificadas” jáestãoelaspelaopressão.

Nãoécomo“coisas”,jádissemos,eébomquemaisumavezdigamos,queosoprimidosselibertam,mascomohomens.

A organização das massas populares em classe é o processo no qual aliderança revolucionária, tão proibida quanto estas, de dizer sua palavra,134instaura o aprendizado da pronúncia domundo, aprendizado verdadeiro, poristo,dialógico.

Daíquenãopossaaliderançadizersuapalavrasozinha,mascomopovo.Aliderança que assimnãoproceda, que insista em impor suapalavra de ordem,nãoorganiza,manipulaopovo.Nãoliberta,nemseliberta,oprime.

Ofato,contudo,denateoriadialógica,noprocessodeorganização,nãoteraliderança o direito de impor arbitrariamente sua palavra, não significa deverassumirumaposiçãoliberalista,quelevariaasmassasoprimidas—habituadasàopressão—alicenciosidades.

Ateoriadialógicadaaçãonegaoautoritarismocomonegaalicenciosidade.E,aofazê-lo,afirmaaautoridadeealiberdade.

Reconheceque,senãoháliberdadesemautoridade,nãohátambémestasemaquela.

Afontegeradora,constituintedaautoridadeautêntica,estánaliberdadeque,em certo momento se faz autoridade. Toda liberdade contém em si apossibilidade de vir a ser, em circunstâncias especiais (e emníveis existenciaisdiferentes), autoridade. Não podemos olhá-las isoladamente, mas em suasrelações,nãonecessariamenteantagônicas.135

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É por isto que a verdadeira autoridade não se afirma como tal na puratransferência,masnadelegação ounaadesão simpática. Se segeranumatodetransferência, oude imposição “anti-pática” sobre asmaiorias, sedegenera emautoritarismoqueesmagaasliberdades.

Somenteaoexistenciar-secomoliberdadequefoiconstituídaemautoridade,podeevitarseuantagonismocomasliberdades.

Toda hipertrofia de uma provoca a atrofia da outra. Assim como não háautoridadesemliberdadeeestasemaquela,nãoháautoritarismosemnegaçãodasliberdadeselicenciosidadesemnegaçãodaautoridade.

Nateoriadaaçãodialógica,portanto,aorganização,implicandoautoridade,nãopodeserautoritária;implicandoliberdade,nãopodeserlicenciosa.

Pelocontrário,éomomentoaltamentepedagógico,emquea liderançaeopovofazemjuntosoaprendizadodaautoridadeeda liberdadeverdadeirasqueambos,comoumsócorpo,buscaminstaurar,comatransformaçãodarealidadequeosmediatiza.

Síntesecultural

Era todo o corpo deste capítulo se encontra firmado, ora implícita, oraexplicitamente, que toda ação cultural é sempre uma forma sistematizada edeliberadadeaçãoqueincidesobreaestruturasocial,oranosentidodemantê-lacomoestáoumaisoumenoscomoestá,oranodetransformá-la.

Por isto, como forma de ação deliberada e sistemática, toda ação cultural,segundo vimos, tem sua teoria, que, determinando seus fins, delimita seusmétodos.

A ação cultural ou está a serviço da dominação — consciente ouinconscientementeporpartede seus agentes—ou está a serviçoda libertaçãodoshomens.

Ambas, dialeticamente antagônicas, se processam, como afirmamos, na esobreaestruturasocial,queseconstituinadialeticidadepermanência-mudança.

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Istoéoqueexplicaqueaestruturasocial,paraser; tenhadeestarsendoou,emoutraspalavras:estarsendoéomodoquetemaestruturasocialdedurar,naacepçãobergsonianadotermo.136

O que pretende a ação cultural dialógica, cujas características estamosacabando de analisar, não pode ser o desaparecimento da dialeticidadepermanência-mudança (o que seria impossível, pois que tal desaparecimentoimplicaria o desaparecimento da estrutura social mesma e o desta, no doshomens),massuperarascontradiçõesantagônicasdequeresultealibertaçãodoshomens.

Por outro lado, a ação cultural antidialógica pretende mitificar o mundodestascontradiçõespara,assim,evitarouobstaculizar, tantoquantopossível, atransformaçãoradicaldarealidade.

Nofundo,oqueseachaexplícitaouimplicitamentenaaçãoantidialógicaéaintençãodefazerpermanecer,na“estrutura”social,assituaçõesquefavorecemseusagentes.

Daíqueestes,nãoaceitandojamaisatransformaçãodaestrutura,quesupereascontradiçõesantagônicas,aceitemasreformasquenãoatinjamseupoderdedecisão, de que decorre a sua força de prescrever suas finalidades às massasdominadas.

Este é o motivo por que esta modalidade de ação implica a conquista dasmassas populares, a sua divisão, a sua manipulação e a invasão cultural. E étambém por isto que é sempre, como um todo, uma ação induzida, jamaispodendosuperarestecaráter,quelheéfundamental.

Pelo contrário, o que caracteriza, essencialmente, a ação cultural dialógica,comoumtodotambém,éasuperaçãodequalqueraspectoinduzido.

No objetivo dominador da ação cultural antidialógica se encontra aimpossibilidadede superaçãode seu caráterde ação induzida, assimcomo,noobjetivolibertadordaaçãoculturaldialógica,seachaacondiçãoparasuperaraindução.

Enquantonainvasãocultural,comojásalientamos,osatoresretiramdeseumarco valorativo e ideológico, necessariamente, o conteúdo temático para suaação, partindo, assim, de seu mundo, do qual entram no dos invadidos, na

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síntesecultural,osatores,desdeomomentomesmoemquechegamaomundopopular,nãoofazemcomoinvasores.

E não o fazem como tais porque, ainda que cheguem de “outro mundo”,chegam para conhecê-lo com o povo e não para “ensinar”, ou transmitir, ouentregarnadaaopovo.

Enquanto, na invasão cultural, os atores—quenem sequernecessitamde,pessoalmente,iraomundoinvadido,suaaçãoémediatizadacadavezmaispelosinstrumentos tecnológicos — são sempre atores que se superpõem, com suaação, aos espectadores, seus objetos, na síntese cultural, os atores se integramcomoshomensdopovo,atores, também,daaçãoqueambosexercemsobreomundo.

Nainvasãocultural,osespectadoresearealidade,quedevesermantidacomoestá, são a incidência da ação dos atores. Na síntese cultural, onde não háespectadores, a realidade a ser transformada para a libertação dos homens é aincidênciadaaçãodosatores.

Isto implica que a síntese cultural é a modalidade de ação com que,culturalmente, se fará frenteà forçadaprópriacultura,enquantomantenedoradasestruturasemqueseforma.

Destamaneira,estemododeaçãocultural,comoaçãohistórica,seapresentacomoinstrumentodesuperaçãodaprópriaculturaalienadaealienante.

Neste sentido é que toda revolução, se autêntica, tem de ser tambémrevoluçãocultural.

A investigação dos temas geradores ou da temática significativa do povo,tendocomoobjetivofundamentalacaptaçãodosseustemasbásicos,sóapartirdecujoconhecimentoépossívelaorganizaçãodoconteúdoprogramáticoparaqualqueraçãocomele,seinstauracomopontodepartidadoprocessodaação,comosíntesecultural.

Daíquenãosejapossíveldividir,emdois,osmomentosdesteprocesso:odainvestigaçãotemáticaeodaaçãocomosíntesecultural.

Estadicotomiaimplicariaqueoprimeiroseriatodoeleummomentoemqueopovoestariasendoestudado,analisado, investigado,comoobjetopassivodosinvestigadores,oqueéprópriodaaçãoantidialógica.Destemodo,estaseparaçãoingênuasignificariaqueaação,comosíntese,partiriadaaçãocomoinvasão.

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Precisamente porque, na teoria dialógica, esta divisão não se pode dar, ainvestigação temática tem como sujeitos de seu processo não apenas osinvestigadores profissionais, mas também os homens do povo, cujo universotemáticosebusca.

Nestemomentoprimeirodaação,comosíntesecultural,queéainvestigação,sevai constituindooclimadacriatividade,que jánão sedeterá, eque tendeadesenvolver-senasetapasseguintesdaação.

Este clima inexiste na invasão cultural que, alienante, amortece o ânimocriador dos invadidos e os deixa, enquanto não lutam contra ela,desesperançadosetemerososdecorreroriscodeaventurar-se,semoquenãohácriatividadeautêntica.

Por isto é que os invadidos, qualquer que seja o seu nível, dificilmenteultrapassamosmodelosquelhesprescrevemosinvasores.

Como, na síntese cultural, não há invasores, não hámodelos impostos, osatores,fazendodarealidadeobjetodesuaanálisecrítica,jamaisdicotomizadadaação,sevãoinserindonoprocessohistórico,comosujeitos.

Em lugar de esquemas prescritos, liderança e povo, identificados, criamjuntosaspautasparasuaação.Umaeoutro,nasíntese,decertaformarenascemnumsaberenumaaçãonovos,quenãosãoapenasosabereaaçãodaliderança,mas dela e do povo. Saber da cultura alienada que, implicando a açãotransformadora,darálugaràculturaquesedesaliena.

Osabermaisapuradodaliderançaserefaznoconhecimentoempíricoqueopovotem,enquantoodesteganhamaissentidonodaquela.

Isto tudo implicaque,nasíntesecultural, se resolve—esomentenela—acontradição entre a visão do mundo da liderança e a do povo, com oenriquecimentodeambos.

A síntese cultural não nega as diferenças entre uma visão e outra, pelocontrário,sefundanelas.Oqueelanegaéainvasãodeumapelaoutra.Oqueelaafirmaéoindiscutívelsubsídioqueumadáàoutra.

A liderança revolucionária não pode constituir-se fora do povo,deliberadamenteoqueaconduzàinvasãoculturalinevitável.

Por istomesmoéque,aindaquandoa liderança,nahipótese referidanestecapítulo,porcertascondiçõeshistóricas,aparececomocontradiçãodopovo,seu

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papel é resolver esta contradição acidental. Jamais poderá fazê-lo através da“invasão”,queaumentariaacontradição.Nãoháoutrocaminhosenãoasíntesecultural.

Muitoserroseequívocoscometealiderançaaonãolevaremcontaestacoisatão real, que é a visão domundo que o povo tenha ou esteja tendo.Visão domundoemquesevãoencontrarexplícitose implícitososseusanseios,as suasdúvidas,a suaesperança,a sua formadevera liderança,a suapercepçãode simesmoedoopressor,assuascrençasreligiosas,quasesempresincréticas,oseufatalismo, a sua reação rebelde. E tudo isto, como já afirmamos, não pode serencarado separadamente, porque, em interação, se encontra compondo umatotalidade.

Paraoopressor,oconhecimentodestatotalidadesólheinteressacomoajudaà sua ação invasora, para dominar ou manter a dominação. Para a liderançarevolucionária,oconhecimentodesta totalidade lheé indispensávelà suaação,comosíntesecultural.

Esta,na teoriadialógicadaação,por istomesmoqueé síntese,não implicaque devem ficar os objetivos da ação revolucionária amarrados às aspiraçõescontidasnavisãodomundodopovo.

Aoserassim,emnomedorespeitoàvisãopopulardomundo,respeitoquerealmente deve haver, terminaria a liderança revolucionária apassivada àquelavisão.

Nem invasão da liderança na visão popular domundo, nem adaptação daliderançaàsaspirações,muitasvezesingênuas,dopovo.

Concretizemos. Se, emumdadomomento histórico, a aspiração básica dopovo não ultrapassa a reivindicação salarial, a nosso ver, a liderança podecometerdoiserros.Restringirsuaaçãoaoestímuloexclusivodestareivindicação,ousobrepor-seaestaaspiração,propondoalgoqueestámaisalémdela.Algoquenãochegouaseraindaparaopovoum“destacadoemsi”.

Noprimeirocaso,incorreriaaliderançarevolucionárianoquechamamosdeadaptação ou docilidade à aspiração popular. No segundo, desrespeitando aaspiraçãodopovo,cairianainvasãocultural.

A solução está na síntese.Deum lado, incorporar-se aopovona aspiraçãoreivindicativa.Deoutro,problematizarosignificadodaprópriareivindicação.

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Aofazê-lo,estaráproblematizandoasituaçãohistóricareal,concreta,que,emsuatotalidade,tem,nareivindicaçãosalarial,umadimensão.

Destemodo,ficaráclaroqueareivindicaçãosalarial,sozinha,nãoencarnaasolução definitiva. Que esta se encontra, como afirmou o bispo Split, nodocumentojácitadodosbisposdoTerceiroMundo,emque“seostrabalhadoresnão chegam, de algumamaneira, a ser proprietários de seu trabalho, todas asreformasestruturaisserãoineficazes”.

O fundamental, por isto, insiste o bispo, é que eles devem chegar a ser“proprietáriosenãovendedoresdeseutrabalho”,porque“todacompraouvendadotrabalhoéumaespéciedeescravidão”.

Teraconsciênciacríticadequeéprecisoseroproprietáriodeseutrabalhoedeque“esteconstituiumapartedapessoahumana”equea“pessoahumananãopode ser vendida nem vender-se” é dar um passo mais além das soluçõespaliativaseenganosas.Éinscrever-senumaaçãodeverdadeiratransformaçãodarealidadepara,humanizando-a,humanizaroshomens.

Finalmente, a invasão cultural, na teoria antidialógica da ação, serve àmanipulaçãoque,porsuavez,serveàconquistaeestaàdominação,enquantoasínteseserveàorganizaçãoeestaàlibertação.

Todoonossoesforçonesteensaio foi falardestacoisaóbvia:assimcomooopressor,paraoprimir,precisadeuma teoriadaaçãoopressora,osoprimidos,paraselibertarem,igualmentenecessitamdeumateoriadesuaação.

Oopressorelaboraateoriadesuaaçãonecessariamentesemopovo,poisqueécontraele.

O povo, por sua vez, enquanto esmagado e oprimido, introjetando oopressor,nãopode,sozinho,constituirateoriadesuaaçãolibertadora.Somenteno encontro dele com a liderança revolucionária, na comunhão de ambos, napráxisdeambos,équeestateoriasefazesere-faz.

A colocação que, em termos aproximativos, meramente introdutórios,tentamos fazer da questão da pedagogia do oprimido nos trouxe à análise,tambémaproximativaeintrodutória,dateoriadaaçãoantidialógica,queserveàopressão,edateoriadialógicadaação,queserveàlibertação.

Desta maneira, nos daremos por satisfeitos se, dos possíveis leitores desteensaio, surgirem críticas capazes de retificar erros e equívocos, de aprofundar

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afirmaçõesedeapontaroquenãovimos.Épossívelquealgumasdestascríticassefaçampretendendoretirardenóso

direitodefalarsobrematéria—atratadanestecapítulo—emtornodequenosfalta uma experiência participante. Parece-nos, contudo, que o fato de nãotermos tido uma experiência no campo revolucionário não nos retira apossibilidadedeumareflexãosobreotema.

Mesmo porque, na relativa experiência que temos tido com massaspopulares, como educador, com uma educação dialógica e problematizante,vimosacumulandoummaterialrelativamenterico,quefoicapazdenosdesafiaracorreroriscodasafirmaçõesquefizemos.

Se nada ficar destas páginas, algo, pelomenos, esperamos que permaneça:nossaconfiançanopovo.Nossa fénoshomensenacriaçãodeummundoemquesejamenosdifícilamar.

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Notas

89 VladimirLenin,“WhatistobeDone?”,inHenryM.Christman(org.),EssencialWorksofLenin.NovaYork:BantamBooks,1966,p.69.

90 Maisumarazãoporquealiderançarevolucionárianãopoderepetirosprocedimentosdaeliteopressora.Os opressores, “penetrando” os oprimidos, neles se “hospedam”; os revolucionários, na práxis com osoprimidos, não podem tentar “hospedar-se” neles. Pelo contrário, ao buscarem, com estes, o “despejo”daqueles,devemfazê-loparaconviver,paracomelesestarenãoparanelesviver.

91 Mesmoquehaja—eexplicavelmente—porpartedosoprimidos,quesempreestiveramsubmetidosaum regime de espoliação, na luta revolucionária, uma dimensão revanchista, isto não significa que arevoluçãodevaesgotar-senela.

92 “Sealgumbenefíciosepudesseobterdadúvida(disseFidelCastroaofalaraopovocubano,confirmandoamortedeGuevara),nuncaforamarmasdarevoluçãoamentira,omedodaverdade,acumplicidadecomqualquer ilusão falsa, a cumplicidade com mentira.” Fidel Castro, Gramma, 17/10/1967. (Os grifos sãonossos.)

93 Sublinhemosmaisumavezqueesteencontrodialógiconãosepodeverificarentreantagônicos.

94 The epochs duringwhich the dominant classes are stable, epochs inwhich theworker’smovementmustdefenditselfagainstapowerfuladversary,whichisoccasionallythreateningandisineverycasesolelyseatedin power, produce naturally a socialist literature which emphasizes the “material” element of reality, theobstaclestobeovercome,andthescantefficacyofhumanawarenessandaction.L.Goldmann,op.cit.,pp.80-1.

95 FernandoGarcia,hondurenho,alunonosso,numcursoparalatino-americanosemSantiago,Chile,1967.

96 R.Niebuhr,op.cit.,pp.118-9.

97 Àsvezes,nemsequerestapalavraédita.Bastaapresençadealguém(nãonecessariamentepertencenteaum grupo revolucionário) que possa ameaçar ao opressor “hospedado” nas massas, para que elas,assustadas,assumamposturasdestrutivas.Contou-nosumalunonosso,deumpaíslatino-americano,que,em certa comunidade camponesa indígena de seu país, bastou que um sacerdote fanático denunciasse apresença de dois “comunistas” na comunidade, “pondo em risco a fé católica”, para que, na noite destemesmo dia, os camponeses, unânimes, queimassem vivos os dois simples professores primários queexerciamseutrabalhodeeducadoresinfantis.Talvez esse sacerdote tivesse visto, na casa daqueles infelizesmaestros rurales, algum livro em cuja capahouvesseacaradeumhomembarbado…

98 Salientamos, mais uma vez, que não estabelecemos nenhuma dicotomia entre o diálogo e a açãorevolucionária,comosehouvesseumtempodediálogo,eoutro,diferente,derevolução.Afirmamos,pelocontrário, que o diálogo é a “essência” da ação revolucionária.Daí quena teoria desta ação, seusatores,intersubjetivamente, incidam sua ação sobre o objeto, que é a realidade que os mediatiza, tendo, comoobjetivo,atravésdatransformaçãodaquela,ahumanizaçãodoshomens.Istonãoocorrenateoriadaação

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opressora,cuja“essência”éantidialógica.Nesta,oesquemasesimplifica.Osatorestêm,comoobjetosdesuaação,arealidadeeosoprimidos simultaneamentee,comoobjetivo, amanutençãodaopressão, atravésdamanutençãodarealidadeopressora.

99 No livro já citado, Ação cultural para a liberdade e outros escritos, discutimos mais detidamente asrelaçõesentreaçãoculturalerevoluçãocultural.

100 Cf.Mao Tsé-Tung, “On Contradictions”, in Four Essays on Philosophy. Pequim: Foreign LanguagesPressEdition,1968.

101 Afreeaction(dizGajoPetrovic)canonlybeonebywhichamanchangeshisworldandhimself.[…]Apositive condition of freedom is the knowledge of the limits of necessity, the awareness of human creativepossibilites. […]The struggle for a free society is not a struggle for a free society unless through it an evergreaterdegreeofindividualfreedomiscreated.GajoPetrovic,“ManandFreedom”,inErichFromm(org.),SocialismHumanism.NovaYork:AnchorBooks,1966,pp.274-6.Domesmoautor,éimportantealeituradeMarxintheMid-TwentethCentury.NovaYork:AnchorBooks,1967.

102 Isto não significa, de maneira alguma, segundo salientamos no capítulo anterior, que, instaurado opoderpopularrevolucionário,arevoluçãocontradigaoseucaráterdialógico,pelofatodeonovopoderterodeverético,inclusive,dereprimirtodatentativaderestauraçãodoantigopoderopressor.

103 Materetmagistra.

104 Byhisacusation(dizMemmi,referindo-seaoperfilqueocolonizadorfazdocolonizado),thecolonizerestablishes the colonized as being lazy. He decides that laziness is constitutional in the very nature of thecolonized.Op.cit.,p.81.

105 Nãocriticamososmeiosemsimesmos,masousoqueselhesdá.

106 Édesnecessáriodizerqueestacríticanãoatingeosesforçosnestesetorque,numaperspectivadialética,orientamnosentidodaaçãoquese fundanacompreensãodacomunidade localcomototalidadeemsieparcialidadedeumatotalidademaior.Atingeaquelesquenão levamemcontaqueodesenvolvimentodacomunidade localnãosepodedaranãoserdentrodocontextototaldequefazparte,eminteraçãocomoutrasparcialidades,oqueimplicaaconsciênciadaunidadenadiversificação,daorganizaçãoquecanalizeas forças dispersas e a consciência clara da necessidade de transformação da realidade. Tudo isto é queassusta,razoavelmente,osopressores.Daíqueestimulemtodotipodeaçãoemque,alémdavisãofocalista,oshomenssejam“assistencializados”.

107 “Seosoperáriosnãochegam,dealgumamaneira,aserproprietáriosdeseutrabalho(dizobispoFranicSplit), todas as reformas nas estruturas serão ineficazes. Inclusive, se os operários às vezes recebem umsalário mais alto em algum sistema econômico, não se contentam com estes aumentos. Querem serproprietáriosenãovendedoresdeseutrabalho.Atualmente(continuaDomFranic),ostrabalhadoresestãocada vezmais conscientes de que o trabalho constitui uma parte da pessoa humana. A pessoa humana,porém, não pode ser vendida nem vender-se. Toda compra ou venda do trabalho é uma espécie deescravidão.Aevoluçãodasociedadeprogridenestesentidoe,comsegurança,dentrodestesistemadoqualseafirmanãosertãosensívelquantonósàdignidadedapessoahumana,istoé,omarxismo.”“15obisposhablanenproldelTercerMundo”,CIDOCInforma,México,Doc.67/35,1967,pp.1-11.

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108 Apropósitodas classes sociais eda luta entre elas,deque tanto seacusaMarxcomoumaespéciede“inventor”destaluta,cf.acartaqueescreveaJ.Weydemeyer,a1ºdomarçode1852,emquedeclaranãolhecaber“oméritodehaverdescobertoaexistênciadasclassesnasociedademodernanema lutaentreelas.Muitoantesqueeu(comentaMarx)algunshistoriadoresburgueseshaviamjáexpostoodesenvolvimentohistóricodestalutadeclassesealgunseconomistasburgueses,asuaanatomiaeconômica.Oqueacrescentei(diz ele) foi demonstrar: 1) que a existência das classes vai unida a determinadas fases históricas dedesenvolvimentodaprodução;2)quealutadeclassesconduzàditaduradoproletariado;3)queestamesmaditadura não é, por si, mais que o trânsito até a abolição de todas as classes, para uma sociedade semclasses.”Marx-Engels,Obrasescogidas.

109 Aoscamponeses,poristomesmo,éindispensávelmantê-losilhadosdosoperáriosurbanos,comoestese aqueles dos estudantes que, não chegando a constituir, sociologicamente, uma classe, se fazem, aoaderirem ao povo, um perigo pelo seu testemunho de rebeldia. É preciso, então, fazer ver às classespopularesqueosestudantessãoirresponsáveiseperturbadoresda“ordem”.Queoseutestemunhoéfalso,pelo fatomesmo de que, como estudantes, deviam estudar, como cabe aos operários das fábricas e aoscamponesestrabalharparao“progressodanação”.

110 Os pactos só são válidos para as classes populares — e neste caso já não são pactos — quando asfinalidadesdaaçãoaserdesenvolvidaouquejáserealizaestãonaórbitadesuadecisão.

111 Na “organização” que resulta do ato manipulador, as massas populares, meros objetos dirigidos, seacomodamàs finalidadesdosmanipuladores, enquantonaorganizaçãoverdadeira, emqueos indivíduossão sujeitos do ato de organizar-se, as finalidades não são impostas por uma elite. No primeiro caso, a“organização”émeiodemassificação;nosegundo,delibertação.

112 Francisco Weffort, “Política de massas”, in Política e revolução social no Brasil. Rio de Janeiro:CivilizaçãoBrasileira,1965,p.187.

113 GetúlioVargas,emdiscursopronunciadonoEstádioC.R.VascodaGamaem1ºdemaiode1951,inOgoverno trabalhista no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, pp. 322-4. (Os grifos sãonossos.)

114 Paraestefim,osinvasoresseservem,cadavezmais,dasciênciassociaisedatecnologia,comojáagoradasciênciasnaturais.Équeainvasão,namedidaemqueéaçãocultural,cujocaráterinduzidopermanececomosuaconotaçãoessencial,nãopodeprescindirdoauxíliodasciênciasedatecnologiacomqueosinvasoresmelhoratuam.Para eles se faz indispensável o conhecimento do passado e do presente dos invadidos, através do qualpossam determinar as alternativas de seu futuro e, assim, tentar a sua condução no sentido de seusinteresses.

115 Apropósitodedialéticadasobredeterminação,cf.LouisAlthusser,PourMarx.Paris:Maspero,1967.

116 Oautoritarismodospais edosmestres sedesvela cadavezmais aos jovens comoantagonismoà sualiberdade.Cadavezmais,poristomesmo,ajuventudevemseopondoàsformasdeaçãoqueminimizamsua expressividade e obstaculizam sua afirmação. Esta, que é uma das manifestações positivas queobservamoshoje,nãoexistepor acaso.No fundo, éumsintomadaquele climahistóricoaoqual fizemosreferência no primeiro capítulo deste ensaio, como caracterizador de nossa época, como uma épocaantropológica.Por istoéquea reaçãoda juventudenãopodeservistaanãoser interessadamente, comosimplesindíciodasdivergênciasgeracionaisqueemtodasasépocashouveehá.Naverdade,háalgomais

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profundo. Na sua rebelião, o que a juventude denuncia e condena é o modelo injusto da sociedadedominadora.Estarebelião,contudo,comocaráterquetem,émuitorecente.Ocaráterautoritárioperdura.

117 Talvez explique também a antidialogicidade daqueles que, embora convencidos de sua opçãorevolucionária, continuam, contudo, descrentes do povo, temendo a comunhão com ele. E que, sem operceber, ainda mantêm dentro de si o opressor. Na verdade, temem a liberdade, na medida em quehospedamo“senhor”.

118 Cf. Paulo Freire, ¿Extensión o comunicación? ICIRA, Santiago do Chile, 1969 [Extensão oucomunicação?,trad.RosiskaDarcydeOliveira.RiodeJaneiro:PazeTerra,1971].

119 Cf.L.Althusser,op.cit.

120 Considerando esta questão, dizAlthusser:Cette réactivation serait proprement inconcevable dans unedialectiquedépourvuedesurdétermination.Op.cit.,p.116.

121 NocapítuloanteriorcitamosaopiniãodeGuevaraaestepropósito.DeCamiloTorres,disseGermanoGuzman:“Jogou-se inteiroporqueentregoutudo.Acadahoramantevecomopovoumaatitudevitaldecompromisso, comosacerdote, comocristãoe comorevolucionário.”GermanoGuzman,Camilo, el curaguerrillero.Bogotá:ServiciosEspecialesdePrensa,1967,p.5.

122 Umacoisasãoasnecessidadesdeclasse;outra,a“consciênciadeclasse”.Apropósitode“consciênciadeclasse”,cf.G.Lukács,Histoireetconsciencedeclasse.Paris:LesÉditionsdeMinuit,1960.

123 Cf.F.Fanon,op.cit.

124 Em conversa com um sacerdote chileno, de alta responsabilidade intelectual emoral, que esteve noRecifeem1966,ouvimosdeleque“aovisitar,comumcolegapernambucano,váriasfamíliasresidentesemMocambos, de condições de miséria indiscutível, e ao perguntar-lhes como suportavam viver assim,escutavasempreamesmaresposta:‘Quepossofazer?Deusquerassim,sómerestaconformar-me.’”

125 Importante a leitura de Erich Fromm, “The Application of Humanist Psychoanalysis to MarxistTheory”, in Socialist Humanism. Anchor Books, 1996; e Reuben Osborn, Marxismo y psicoanálisis.Barcelona:EdicionesPenínsula,1967.

126 EldiáriodeCheenBolívia.México:SigloXXI,pp.131-52.

127 Cf.MartinBuber,Yoytú.BuenosAires:NuevaVisión,1969.

128 ErnestoGuevara,Relatosdelaguerrarevolucionaria.BuenosAires:EditoraNueve64,1965.

129 Id.,ibid.,p.81.(Osgrifossãonossos.)

130 A propósito da defesa do homem frente a “suamorte”, “depois damorte deDeus”, no pensamentoatual,cf.MikaelDufrenne,PourL’homme.Paris:ÉditionsduSeuil,1968.

131 “Amaioriadeles,dizGerassi,referindo-seaoscamponeses,sevendeouvendemembrosdesuafamíliapara trabalharemcomoescravos,a fimdeescaparàmorte.UmjornaldeBeloHorizontedescobriunadamenos de 50 mil vítimas (vendidas a Cr$ 1.500,00), e o repórter, continua Gerassi, para comprová-lo,comprouumhomemasuamulherpor30dólares.‘Vimuitagentemorrerdefome’,explicouoescravo,‘e

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por istonãome importode ser vendido’.Quandoum traficantedehomens foipreso emSãoPaulo, em1959,confessouseuscontatoscomfazendeirosdeSãoPaulo,donosdecafezaiseconstrutoresdeedifícios,interessados em suamercadoria— exceto, porém, as adolescentes, que eram vendidas a bordéis.” JohnGerassi,AinvasãodaAméricaLatina.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,1965,p.120.

132 O.P.Chenu,Temoignagechrétien,abrilde1964.ApudAndréMaine,Cristianosymarxistasdespuésdelconcilio.BuenosAires:EditorialArandu,1965,p.167.

133 Enquantoprocesso,otestemunhoverdadeiroque,aoserdado,nãofrutificou,nãotem,nestemomentonegativo, a absolutização de seu fracasso. Conhecidos são os casos de líderes revolucionários cujotestemunhonãomorreuaoseremmortospelarepressãodosopressores.

134 Certavez,emconversacomoautor,ummédico,dr.OrlandoAguirre,diretordaFaculdadedeMedicinadeumauniversidadecubana,disse:“Arevoluçãoimplicatrês‘P’—Palavra,PovoePólvora.AexplosãodaPólvora,continuou,aclaraavisualizaçãoquetemopovodesuasituaçãoconcreta,embusca,naação,desualibertação.”Pareceu-nos interessante observar, durante a conversação, como este médico revolucionário insistia napalavra,nosentidoemqueatomamosnesteensaio.Istoé,palavracomoaçãoereflexão—palavracomopráxis.

135 Oantagonismoentreambassedánasituaçãoobjetivadeopressãooudelicenciosidade.

136 Na verdade, o que faz que a estrutura seja estrutura social, portanto, histórico-cultural, não é apermanêncianemamudança, tomadasabsolutamente,masadialetizaçãodeambas.Emúltimaanálise,oquepermanecenaestruturasocialneméapermanêncianemamudança,masaduraçãodadialeticidadepermanência-mudança.

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REVISÃOMaríliaLamasLuciaSerra

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