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CURSO DE TEOLOGIA PARA LEIGOS E LEIGAS PARÓQUIA NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS O EVANGELHO DE JESUS CRISTO SEGUNDO AS CARTAS DE PAULO PADRE FERNANDO AGUINAGA HUICI, PADRES ESCOLÁPIOS NÍVEL DE APROFUNDAMENTO COM ORIENTAÇÃO PASTORAL

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CURSO DE TEOLOGIA PARA LEIGOS E LEIGASPARÓQUIA NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS

O EVANGELHO DE JESUS CRISTOSEGUNDO AS CARTAS DE PAULO

PADRE FERNANDO AGUINAGA HUICI, PADRES ESCOLÁPIOS

NÍVEL DE APROFUNDAMENTOCOM ORIENTAÇÃO PASTORAL

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PAULO DE TARSO: VIDA E CARTAS “O Evangelho de Jesus Cristo segundo as cartas de Paulo”.

1. CONVERSÃO E VOCAÇÃO DE PAULO.....................................................................Página 022. PRIMEIRAS CARTAS. 1 e 2 Tessalonicenses................................................................Página 103. AS GRANDES CARTAS. Gálatas, 1 e 2 Coríntios; Romanos........................................Página 134. CARTAS DO CATIVEIRO. Filipenses, Colossenses, Efésios e Filemom.....................Página 245. CARTAS PASTORAIS. 1Timóteo, Tito e 2Timóteo.....................................................Página 32

Fontes: - J.Cambier e L.Cerfaux “Introdução à Bíblia – NT”, Ed. Herder, 1967. - E.Cothenet, “São Paulo e o seu tempo”, Ed.Paulinas, 1985 (Cadernos Bíblicos, 26).- C.D.Dodd, “A mensagem de São Paulo para o homem de hoje”, Ed.Paulinas, 1978. (Biblioteca de Estudos Bíblicos, 4).- Introduções da Bíblia de Jerusalém.- Introduções da Bíblia Ecumênica Basca (“Elizen arteko Biblia”).

1. CONVERSÃO E VOCAÇÃO DE PAULO.

Nós não vamos falar principalmente de Paulo. Vamos escutar ele nos falar de Jesus Cristo. Abordaremos a vida e a mensagem do chamado apóstolo dos gentios com este objetivo: conhecer melhor o Filho de Deus que se encontrou com Saulo, perseguidor dos cristãos, no caminho de Damasco porque o amava e o acompanhou em toda a sua missão evangelizadora, consolando-o e fortalecendo-o em todas as circunstâncias. Com Paulo iremos compreender melhor como é grande a graça da misericórdia divina que se revela na morte e ressurreição de Jesus e que é comunicada a nós pelo Espírito Santo, para que levemos uma vida nova de santidade e amor ao próximo.

1.1. Documentos. Para reconstituir a vida de Paulo nós temos duas fontes: os Atos dos Apóstolos e as notas

autobiográficas espalhadas pelas cartas do próprio apóstolo.

- Atos dos Apóstolos:+ Antes da conversão: 7, 54-8,1.+ A conversão: 9,1-30; 22,1-21; 26, 1-23.+ Na Comunidade de Antioquia: 11,19-30.12,24; 13,1-3.+ Primeira viagem missionária: 13,4-15,35.+ Segunda viagem missionária: 15,36-18,22.+ Terceira viagem missionária: 18,23-21,14.+ Prisioneiro de Jerusalém até Roma: 21,15-28,31.

- As cartas de Paulo: + Gálatas 1,11-2,14 (Vocação de Paulo).+ 1Coríntios 15, 8-9 (O menor dos apóstolos, perseguidor da Igreja).+ 2Coríntios 11, 22-12, 21 (“Sou israelita. Ministro de Cristo mais do que eles...”). + Romanos 11,1 (Paulo se declara israelita, da tribo de Benjamim).+ Filipenses 3,4-6 (Circuncidado, da tribo de Benjamim, fariseu, perseguidor da Igreja).

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+ 2 Timóteo 1,5; 3,10-11 (“Você me acompanhou na missão e nas perseguições...”).

1.1. Cronologia. São datas muito prováveis. Mas não temos condições de afirmar com certeza plena. Ano 5 a 10 Nascimento de Saulo em Tarso da Cilícia.Ano 31 Estância em Jerusalém. Estuda a Lei de Moisés com Gamaliel.Ano 34 Martírio de Estevão e dispersão da comunidade cristã. Ano 36 Conversão de Saulo perto de Damasco. Retiro no deserto da Arábia.Ano 39 Visita aos apóstolos em Jerusalém. Volta a Tarso.Ano 43 Vai a Antioquia a pedido de Barnabé para fortalecer a comunidade.Ano 45 Primeira viagem missionária.Ano 49 Assembléia de Jerusalém. Não precisa ser judeu para ser cristão.Ano 49 Segunda viagem missionária (até o ano 52).Ano 50 Estância em Corinto até o ano 52.Ano 51 e 52 Cartas 1 e 2 aos Tessalonicenses. Em Corinto.Ano 53 Terceira viagem missionária (até o ano 58)Ano 54 Estância em Efeso até o ano 57Ano 54/56 Carta aos Gálatas. Em Efeso.Ano 56/57 Carta Primeira aos Coríntios. Em Efeso. (Talvez, Carta aos Filipenses, no ano 56?).Ano 57 Visita a Coríntio e a Macedônia (Filipos).Ano 57 Carta Segunda aos Coríntios. Em Macedônia.Ano 58 Estância em Corinto.Ano 58 Carta aos Romanos. (na Páscoa, desde Corinto).Ano 58 Visita a Filipos. Viagem a Jerusalém.Ano 58 Paulo é prisioneiro em Jerusalém. Levado a Cesaréia. Até o ano 60.Ano 60 Viagem a Roma. Ano 61 Prisioneiro em Roma. Em regime de liberdade vigiada. Até o ano 63.

Carta aos Colosenses, Efésios, Filipenses, Filemon. (Filipenses, talvez, no ano 56).Ano 63 Viagem a Espanha (?) Ele queria, não sabemos se realizou.

Viagens a Efeso, Creta, Macedônia ? Não temos certeza.Ano 65 Cartas: Primeira a Timóteo, a TitoAno 67 De novo prisioneiro (segunda prissão em Roma)

Carta: Segunda a TimóteoMorte em Roma. Decapitado no Foro Romano.

1.2. Saulo de Tarso.Saulo nasceu em Tarso de Cilícia, de família israelita da tribo de Benjamim. Foi circuncidado

ao oitavo dia e recebeu os ensinamentos da Leis de Moisés. Morou até a juventude em Tarso, cidade de costumes e cultura greco-romanos. Mas como israelita apaixonado que era, fazendo parte do grupo dos fariseus, amante profundo da Lei de Moisés e das tradições do seu povo, conhece também a língua hebraica e a mentalidade bíblica: a Lei e os Profetas. Assim ele possui o domínio das duas culturas: a judaica e a grega. Esta característica será muito importante para a missão que iria desempenhar anos depois no anúncio do Evangelho de Jesus. Não podemos esquecer que nos primeiros anos do Cristianismo a Igreja ainda estava fortemente amarrada ao judaísmo.

Depois do ano 30 (Jesus morreu nesse ano e Saulo não conheceu o ministério nem a paixão de Cristo) foi a Jerusalém para aprofundar sobre o conhecimento da Lei de Moisés com Gamaliel o Velho, neto de Hilel, que era um dos melhores intérpretes da Sagrada Escritura da época. Como fariseu ele mesmo nos diz que seguia a linha mais escrupulosa dos antepassados. Prova disso é que quando Estevão foi apedrejado (no ano 34, provavelmente) Saulo aprovava aquela execução embora ainda não tivesse a idade legal para participar dela. Cumpridos os trinta anos ele tomou a frente da perseguição contra os discípulos do Nazareno.

1.3. A Conversão.Foi-lhe concedida a graça da revelação do Cristo glorioso no caminho de Damasco. Foi um

acontecimento muito especial que transformou o rumo da sua vida completamente. Foi como

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arrebatado por uma força superior e misteriosa, que lhe abriu os olhos da fé e lhe convidou a acreditar naquele que estava perseguindo. Envolvido por uma luz que o deixou cego e interpelado por uma voz que questionava sua atitude :

- “Saulo, Saulo, por que você me persegue?”. - “Quem és tu, Senhor?”.- “Eu sou Jesus, a quem você está perseguindo”.Saulo obedeceu imediatamente e seguiu as orientações recebidas... Isso não quer dizer que ele

tenha compreendido instantaneamente tudo o significado desse fato. Sem dúvida que a mente dele ficou confusa e precisou de tempo para assimilar o acontecido. O momento do encontro com o Senhor Jesus marcou plenamente a vida de Saulo, sinalizando um antes e um depois totalmente diferentes. Paulo reconhece a iniciativa de Cristo nessa ação salvadora porque ele se achava caminhando no sentido contrário. Deus teve misericórdia de Paulo e por pura graça foi ao encontro dele para lhe resgatar da ignorância e das redes do pecado na qual se encontrava amarrado. Paulo jamais esquecerá o gesto amoroso de Deus para com ele e agradecerá entregando a vida toda pela causa do Evangelho.

Partiu para Arábia (o reino dos nabateus, ao sul de Damasco) e depois voltou a esta cidade. Foram mais ou menos três anos de “retiro” e de apostolado cristão (o primeiro que ele exerceu). Serviu também para ir colocando em ordem a sua mente, os seus conhecimentos filosóficos e teológicos, a interpretação das Escrituras, a compreensão da tradição herdada dos antepassados... Agora tudo era interpretado a partir do mistério de Cristo, o Filho do Pai, o Senhor. O Evangelho de Jesus se situava no centro de tudo, ocupava o coração da sua existência.

Teve que fugir de Damasco e foi para Jerusalém para conhecer a Pedro e a Tiago, considerados como os líderes da Igreja. Barnabé teve que intervir em favor de Saulo porque os cristãos desconfiavam dele por causa das suas atitudes anteriores de perseguição. Permaneceu 15 dias lá onde se informou, sem dúvida, sobre o ministério público de Jesus, assim como da sua morte e ressurreição. Houve um gesto de comunhão da parte dos apóstolos para com Saulo e confirmaram a sua fé e missão por meio da imposição das mãos. Voltou para Tarso, sua cidade natal, onde viveu sua fé de forma discreta, oculta.

A conversão de Paulo e a sua vocação é a chave principal para compreender o significado da sua missão. Existem nas cartas às vezes expressões que poderiam nos parecer como sintomas de um certo orgulho pessoal ou de um certo ar de superioridade. Paulo se submeteu absolutamente à vontade divina e se dedicou plenamente, com generosidade incrível, à causa da evangelização dos pagãos. Para ele tudo era Cristo. Só que foi questionado seriamente em relação à autoridade da sua missão, ao exercício do seu ministério. Precisou se defender. Nem tanto por ele, pela sua pessoa. Mas sim para defender a legitimidade da Igreja que acolhia no seu seio os pagãos sem necessidade de os circuncidar, livres, portanto, da obrigação do cumprimento restrito da Lei Mosaica. Paulo se viu obrigado a explicar que também era apóstolo e, como tal, as comunidades que fundara eram legítimas, autênticas. Homem de uma energia imensa e um zelo fora do comum que se colocou por inteiro a serviço da causa de Jesus Cristo.

Quando falamos da conversão de Saulo não podemos esquecer que ele também foi crescendo e amadurecendo na fé como acontece com todos os cristãos. Ele próprio utiliza a comparação dos atletas que vão correndo para a meta... porque a fé é processo, é caminhada. Somos peregrinos nesta terra que vamos progredindo no caminho do Evangelho. Paulo também foi aprendendo, amadurecendo, mudando, deixando que o Espírito realizasse a santificação na sua história pessoal. (Filipenses 1,6.9-11.19-26; 3,7-14). É difícil compreender a atitude de Paulo no início da segunda viagem missionária, quando não quis aceitar João Marcos no grupo pelo fato de que este os tivesse abandonado na metade da primeira viagem. Mas depois, na prisão, pede que venha para o ajudar (2Timóteo 4,9-1). Não temos elementos para analisar estes processos internos da fé, mas certamente se deram na vida de Paulo. Nas relações humanas parece mais fino e delicado no final da sua vida do que no início. A paixão por Cristo, pelo evangelho e pela Igreja não mudaram... a não ser para aumentar. Paulo descreve como ninguém quais as atitudes humanas que se derivam do evangelho,

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especialmente o amor (1Coríntios 13). Só pode se expressar tão maravilhosamente porque as praticava de forma extraordinária.

A introdução sobre as epístolas de São Paulo da Bíblia de Jerusalém diz que “Paulo é um apaixonado, uma alma de fogo que se consagra sem limites a um ideal. E este ideal é essencialmente religioso. Para ele, Deus é tudo e ele o serve com uma lealdade absoluta, primeiro perseguindo aqueles que ele tem na conta de hereges (1Timóteo 1,13; Atos 24, 5. 14), depois pregando Cristo, após haver entendido por revelação que só nele está a salvação. Este zelo incondicional traduz-se por uma vida de abnegação total ao serviço daquele que ele ama. Trabalhos, fadigas, sofrimentos, privações, perigos de morte (1Coríntios 4,9-13; 2Coríntios 4,8s; 6,4-10; 1,23-27), nada lhe importa, contanto que cumpra a missão pela qual se sente responsável (1Coríntios 9,16s). Nenhuma dessas coisas o poderá separar do amor de Deus e de Cristo (Romanos 8, 35-39); ou melhor, tudo isso é de inestimável valor, por conforma-lo à paixão e à cruz de seu Mestre (2Coríntios 4,10s; Filipenses 3,10s)”.

1.4. A comunidade de Antioquia.O Livro dos Atos dos Apóstolos dedica uma atenção muito especial a esta comunidade cristã,

reconhecendo a importância que teve na atividade missionária, não somente desde o aspecto quantitativo, mas, principalmente, qualitativo. Trata-se de uma Igreja nascida a partir do martírio de Estevão. Companheiros dele espalharam-se por várias regiões como conseqüência da perseguição após o apedrejamento do primeiro mártir cristão e levaram o anúncio do Evangelho também à cidade de Antioquia da Síria. Cidade de 500.000 habitantes, a terceira maior do mundo conhecido daquela época, perto do mar e na encruzilhada de caminhos importantes para o Império Romano. Alguns daqueles missionários, imbuídos do espírito livre de Estevão, ousaram anunciar a Boa Nova também aos gregos pagãos. Pedro já tinha aberto as portas da Igreja a Cornélio, que era pagão, mas ainda de uma forma excepcional, não sistemática... e a comunidade custou a entender aquele gesto. Pedro precisou de prestar contas da sua ação porque os fiéis de origem judaica começaram a discutir com ele (Atos 10-11). Em Antioquia a pregação aos pagãos começou a ser sistemática e muitos abraçavam a fé. Formou-se assim uma comunidade cristã que misturava fiéis de procedência judaica e grega. Uma mesma fé para ser celebrada ao redor da mesma mesa litúrgica. Um judeu não podia comer ao lado de um pagão, pois ficaria impuro, violando a Lei. A comunidade de Antioquia, superando este costume que discriminava os pagãos, criava uma situação totalmente nova que desafiava os costumes culturais e religiosos. Pratica assim uma das grandes novidades do Evangelho de Jesus Cristo: a abertura da oferta da salvação a todos os povos. É a Nova Aliança e o Novo Povo de Deus, formado por fieis de todos os povos e raças, conseqüência de Pentecostes.

A comunidade mãe de Jerusalém enviou um representante de coração aberto e compreensivo chamado Barnabé. O Livro dos Atos o elogia porque ele teve a sabedoria de compreender o valor daquela comunidade que simbolizava o novo do Evangelho ao reconciliar no seu seio grupos humanos que se consideravam historicamente adversários. A confirmação daquela experiência por parte do representante da Igreja oficial ajudou ainda mais na conversão de “uma considerável multidão que se uniu ao Senhor” (Atos 11, 24). Antioquia seria assim a plataforma ideal para a missão evangelizadora do mundo pagão. Foi naquela comunidade que os discípulos receberam pela primeira vez o nome de “cristãos”. Comunidade que, sabendo integrar judeus e gregos no convívio da mesma fé, seria como uma semente da Igreja Primitiva que soube superar preconceitos culturais e raciais, gerando um novo modelo de Povo de Deus. Lucas, autor do Livro dos Atos, era de lá. É claro que nada é perfeito e também em Antioquia se reproduziu a tensão que era geral em toda a Igreja: o problema das mesas (Como poderiam se assentar juntos circuncidados e não circuncidados? A Lei não permitia!). Na Carta aos Gálatas (2,11ss.) Paulo relata o incidente que teve com Pedro porque este não participava da mesma mesa que os cristãos procedentes do paganismo. Logicamente que nós temos só a versão paulina cuja intenção é justificar a validade do trabalho evangelizador do apóstolo no meio dos gentios. Mas serve para nós, que não podemos julgar a razão de Pedro ou de Paulo, para compreender a gravidade do problema que afetou à Igreja Primitiva em todas as regiões. A solução não era fácil!

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A questão de aceitar na mesma Igreja e na mesma mesa eucarística fiéis de origem pagã, sem circuncidar, junto com fiéis de origem judaica, seria uma das principais fontes de conflito no seio da Igreja Primitiva. Situação que explodiu na Assembléia de Jerusalém (Atos 15) e se resolveu do jeito que já estava se praticando em Antioquia, quer dizer, aceitando os pagãos na comunidade cristã sem precisar da circuncisão. Problema que traria também tantos sofrimentos ao próprio Paulo que defendeu com vigor a superioridade do batismo sobre a circuncisão, do Evangelho de Jesus sobre a Lei Mosaica, tal como ele encontrou que já acontecia na Igreja de Antioquia.

Barnabé, percebendo a importância daquela comunidade foi procurar Saulo que estava em Tarso para que ajudasse na formação da Igreja em Antioquia. As características que definem uma verdadeira comunidade cristã (Atos 2, 42-47; 4,32-37) se cumpriam também naquela Igreja que se solidarizou com os pobres de Jerusalém. Um texto do historiador Flávio Josefo confirma a fome que açoitou a cidade de Jerusalém nessa época: “A chegada de Helena, rainha de Adiabene, foi muito proveitosa para os habitantes de Jerusalém, porque nesta oportunidade a fome campeava na cidade e muitos morriam por falta de recursos. A rainha Helena enviou alguns de seus servos a Alexandria para comprarem a dinheiro uma quantidade de trigo, e outros a Chipre para trazerem de lá um carregamento de figos. Eles voltaram com a maior rapidez, e ela distribuiu esses alimentos aos pobres, deixando em todo o nosso povo, por causa deste benefício, uma recordação eterna. Seu filho Izates, ao tomar conhecimento desta fome, enviou muito dinheiro aos próceres de Jerusalém”. (Do livro “São Paulo e o seu tempo” de Cothenet, pág. 46; Ed. Paulinas, 1985). Saulo e Barnabé, cumprida a missão de ajuda solidária, voltaram para Antioquia. É desta comunidade cristã que partirão as viagens missionárias de Paulo e Barnabé, enviados pelos irmãos para anunciar Jesus aos povos pagãos.

A Igreja de Antioquia é uma comunidade que nasce do acolhimento da Palavra, aceita a instrução apostólica, celebra a sua fé, se abre aos dons do Espírito (profecia, curas, oração e partilha), é comunidade orante, se faz solidária com os irmãos necessitados e se torna missionária enviando membros seus para anunciar o Evangelho aos povos vizinhos. Sabe combinar bem a unidade na mesma fé celebrada na mesma mesa e o reconhecimento dos diversos dons e ministérios para melhor servir à evangelização.

A comunidade mãe de Jerusalém foi gerando assim novas comunidades cristãs que atualizavam entre as nações o testemunho do mesmo Evangelho e que se tornavam, por sua vez, mães de outras novas comunidades cristãs. Segundo o esquema dos Atos a dinâmica da evangelização parte de Jerusalém, passa por Antioquia e chega até Roma, coração do Império Romano. Assim nós compreendemos a preocupação de Paulo em se apresentar à comunidade cristã de Roma por meio da Carta aos Romanos, exprimindo neste escrito a síntese da sua teologia e do Evangelho que ele pregava. Porque, assim como participou na consolidação da Igreja em Antioquia quis também participar na formação da Igreja em Roma.

1.5. As três viagens missionárias de Paulo.

Primeira viagem. (Ano 45 a 49). De Saulo para Paulo.“Havia profetas e mestres na Igreja de Antioquia. Eram eles: Barnabé, Simeão, chamado o

Negro, Lúcio, da cidade de Cirene, Manaém, companheiro de infância do governador Herodes, e Saulo. Certo dia, eles estavam fazendo uma reunião litúrgica com jejum, e o Espírito Santo disse: ´Separem para mim Barnabé e Saulo, a fim de fazerem o trabalho para o qual eu os chamei.´ Então eles jejuaram e rezaram; depois impuseram as mãos sobre Barnabé e Saulo, e se despediram deles.” (Atos 13, 1-3). Em relação a este texto bíblico diz o comentário da Bíblia Pastoral que “começa uma nova etapa na história da Igreja: a difusão do Evangelho em ambiente pagão. A Igreja de Antioquia já se apresenta organizada: funções partilhadas e decisões tomadas pela assembléia, em clima de oração e discernimento, clima referendado pelo Espírito Santo. A missão não nasce por iniciativa de indivíduos, mas a partir de uma comunidade cheia de vida, que escolhe e designa indivíduos para a missão.” Esta primeira viagem missionária é relatada nos capítulos 13 e 14 do Livro dos Atos. Junto com Barnabé e Saulo participou um grupo de colaboradores, entre os quais

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João chamado Marcos. Iniciaram a missão na ilha de Chipre onde Saulo já começa a ser chamado de Paulo e toma a iniciativa na missão (13,9.13). Da ilha de Chipre partiram para a Asia (na atual Turquia) e, segundo o relato dos Atos, a iniciativa da missão corresponde a Paulo a partir deste momento. João Marcos voltou a Jerusalém. Paulo tem um método de evangelização: Inicia a pregação anunciando a Boa Nova de Jesus aos judeus, no culto sabático nas sinagogas, partindo das Sagradas Escrituras (Antigo Testamento ou Primeira Aliança). O centro do anúncio é o acontecimento da morte e ressurreição de Jesus, princípio de salvação para todos. Depois de anunciar o Evangelho aos judeus anuncia também aos pagãos, que o acolhem com entusiasmo. Vão nascendo assim novas comunidades cristãs constituídas por judeus e pagãos. Os judeus que não aceitam Jesus como Messias se revoltam em cada cidade contra o grupo missionário e provocam a sua expulsão ou perseguição. Paulo é apedrejado, tem que fugir, ... mas aprendem a organizar as comunidades designando responsáveis para que cuidem da fé dos irmãos recém convertidos. A primeira viagem foi relativamente curta no espaço geográfico, porém intensa. Durou mais de três anos e deixou como fruto um bom número de comunidades cristãs formadas, a partir das quais, os companheiros de Paulo e Barnabé, iam fundando outras novas comunidades. O grupo voltou ao ponto original: Antioquia. Reuniram a comunidade e relataram como Deus tinha aberto a porta da fé aos pagãos.

“Chegaram alguns homens da Judéia e doutrinavam os irmãos” (Atos 15,1). Diziam que era preciso se circuncidar par alcançar a salvação de Jesus. Paulo e Barnabé discutiram com eles. A comunidade, alarmada, enviou uns e outros a Jerusalém para resolver o problema. Depois de muita discussão tomaram a palavra Pedro, Paulo e Barnabé e, finalmente, Tiago. A decisão foi unânime: os cristãos pagãos não precisam serem circuncidados para fazerem parte do Povo de Deus, quer dizer, não tem obrigação de cumprir a Lei de Moisés. Basta o batismo e seguir o caminho do Evangelho. Paulo lembra na Carta aos Gálatas (2,10) que a única exigência feita aos cristãos de origem pagã foi “apenas que nos lembrássemos dos pobres, e isso eu tenho procurado fazer com muito cuidado”; porque, na realidade, este cuidado com os pobres faz parte inerente do Evangelho, situa-se no coração da Boa Nova de Jesus. A comunidade mãe de Jerusalém, mais uma vez cheia de compreensão e de amor pelas comunidades filhas que foram nascendo para a nova fé, enviou Judas e Silas com a decisão desejada e que trazia paz e liberdade aos cristãos de origem pagã. A missão de Paulo e Barnabé ficava assim reconhecida e aprovada pela cabeça da Igreja. Isto não quer dizer que os cristãos “judaizantes” (judeus que achavam que os pagãos deveriam também ser circuncidados para que o batismo pudesse ser realmente válido, para que os pagãos pudessem participar verdadeiramente do Povo de Deus) não deixassem de importunar as comunidades fundadas por Paulo. Este drama acompanhou o apóstolo praticamente ao longo de toda a sua vida. Depois da destruição de Jerusalém, no ano 70, e a partir da segunda geração na liderança da Igreja (Lucas, Marcos, Timóteo, Tito, etc.) a situação reverteu completamente na direção do trabalho realizado por Paulo.

Segunda viagem. (Ano 49 a 53).No início da segunda viagem de Paulo e Barnabé houve desacordo sério entre eles por causa de

João Marcos. Paulo não quis aceita-lo no grupo porque os tinha abandonado no decorrer da primeira viagem. Barnabé não concordou. Paulo viajou com Silas por um lado e Barnabé com João Marcos pelo outro. Foram visitando as comunidades fundadas na primeira viagem e confirmando a fé dos irmãos, fortalecendo a organização da Igreja. Depois de visitar tais comunidades Paulo e Silas embarcaram para Europa onde fundaram as comunidades de Filipos e Tesalônica. É precisamente neste momento da passagem da Ásia para a Europa que o autor dos Atos (Lucas) se apresenta como membro participante desta missão evangelizadora, por meio da linguagem (“Procuramos partir para Macedônia... embarcamos em Tróade...”, a partir de Atos 16,10). Os açoites e as prisões não os desanimam. O Evangelho vai se espalhando e a semente encontra terra boa. Fundam comunidades. Chegam na Grécia: Atenas e Corinto. Paulo prepara sua melhor pregação, utilizando os recursos da oratória humana, para conquistar a capital da sabedoria e dos filósofos. O resultado foi bem fraco. De Atenas vai para Corinto, cidade cheia de escravos, vícios, exploração e má fama. Apresenta ao

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povo o Evangelho da cruz de Cristo, loucura para os pagãos, escândalo para os judeus, sabedoria escondida de Deus para os eleitos (1Coríntios 1,18.22-25). Lá constituiu uma comunidade numerosa de fiéis e permaneceu 18 meses fundando e consolidando esta comunidade. Orientou também seus colaboradores que a partir das comunidades já constituídas partiam em novas missões para evangelizar nas regiões vizinhas. Foi-se costurando devagar a rede de pequenas comunidades que ia abrangendo cada vez mais o vasto território do Império Romano. Foi nessa estadia em Corinto que Paulo escreveu as primeiras cartas dele: as duas destinadas aos cristãos de Tessalônica. Mensagens escritas a partir da missão e para fortalecer e iluminar os frutos da missão. De Corinto voltou a Antioquia passando pouco tempo por Éfeso... onde prometeu que voltaria se fosse da vontade divina.

O método evangelizador de Paulo e Barnabé era o seguinte: chegavam a uma cidade e, como israelitas que eram, se apresentavam à comunidade judaica local. Trabalhavam nas suas respectivas profissões para ganhar o pão. Paulo era tecelão que fabricava tendas, naquela época muito usadas pelos exércitos, comerciantes, nômades, etc. Ao sábado, como bons israelitas, participavam do culto na sinagoga e, sendo-lhes dada a palavra, a partir das leituras da Sagrada Escritura (Antigo Testamento) anunciavam Jesus Cristo como o Messias Salvador. Aqueles que acolhiam a Palavra se batizavam. Surgiam, logicamente controvérsias a respeito do Messias porque muitos não aceitavam o evangelho pregado por eles. Aí, os apóstolos, anunciavam o evangelho aos pagãos. Juntavam os convertidos tanto israelitas como pagãos numa mesma comunidade, celebrando ao redor da mesma mesa a fé comum em Jesus Cristo. Isto provocava a ira dos israelitas que estavam proibidos de compartilhar a mesma mesa com os pagãos. Paulo, quando o conflito vai aumentando, é obrigado a partir para outra cidade. Quando chegavam colaboradores para auxiliar na missão, eles se dedicavam por inteiro à Palavra.

Terceira viagem. (Ano 53 a 58).Antioquia é a comunidade de referência das viagens missionárias. De lá partiu de novo Paulo na

sua terceira viagem missionária. A equipe vai crescendo assim como também o número de comunidades e de fiéis. Visita as comunidades de Frigia e Galácia (atual Turquia) e se estabelece em Éfeso. Já existia uma pequena comunidade de discípulos. Apolo, Priscila e Áquila tinham realizado um trabalho de evangelização. Paulo aprofundou esse trabalho (conheciam o batismo de João Batista e ainda não tinham ouvido falar do Espírito Santo) e confirmou os fiéis na fé em Jesus Cristo. Passou lá quase três anos instruindo as comunidades e orientando as novas missões dos seus colaboradores. Em Éfeso escreveu as cartas aos Gálatas e aos Coríntios (1 e 2). Alguns autores consideram a probabilidade de Paulo ter sofrido em Éfeso algum período de prisão no qual teria escrito a carta aos Filipenses. A maioria dos críticos se inclina em afirmar que não passou pela prisão neste momento e, portanto, essa carta teria sido escrita em Roma, num período posterior. Viajou depois para Macedônia e Grécia (Atos 20, 1-3), visitando as comunidades que fundara na sua segunda viagem. Especial foi a visita a Corinto onde permaneceu três meses resolvendo os problemas que se citam na segunda carta aos Coríntios. No tempo de páscoa escreveu em Corinto a importantíssima carta aos Romanos. Voltou pela Macedônia, passou perto de Éfeso (Mileto) e se despediu dos presbíteros desta comunidade. De lá foi até Jerusalém, consciente dos perigos que o ameaçavam...

1.6. Prisioneiro e mártir de Cristo.Quando Paulo chegou a Jerusalém os cristãos o receberam bem, encontrou-se com Tiago, a

principal liderança local. Foi advertido das tramas contra ele. Quando foi no templo judeus vindos da Ásia amotinaram o povo contra ele e quase foi morto pela multidão. A guarda romana o salvou. Foi encarcerado e conduzido preso a Cesareia onde permanecerá mais de dois anos na prisão (desde a festa de Pentecostes do ano 58 até o outono do ano 60) sob a custódia dos governadores Félix e Festo. Eles achavam que, existindo tanto interesse da parte das autoridades judaicas em matá-lo, fosse alguém importante que teria condições de pagar bem pela sua libertação. Paulo não tinha recursos e como a prisão se prolongava sem se resolver nada apelou para o César como uma forma

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de sair daquele impasse. Assim também poderia realizar os seus planos de contribuir na evangelização de Roma. Segundo o relato dos Atos este período foi marcado pelas ameaças e tentativas de chantagem, entrevistas e simulações de julgamentos. Houve até um grupo de mais de 40 judeus que fizeram juramento de não comer nem beber nada até não matar a Paulo (Atos 23, 12ss). Parece que nesta prisão Paulo perdeu bastante o contato com as comunidades que fundara, não escreveu cartas (alguns acham que tal poderia ter escrito alguma das cartas chamadas do cativeiro) e ficou por fora dos trabalhos missionários. Como era cidadão romano utilizou o recurso de apelar a Roma, embora fosse muito arriscado. Era a melhor saída para ele.

A viagem por mar é narrada em Atos 27 e 28. Depois do naufrágio conseguem chegar na ilha de Malta, depois embarcam para Siracusa e de lá para a península Itálica... até alcançar Roma. Os irmãos desta comunidade, sabendo que Paulo chegava, foram recebê-lo e o ajudaram muito. Morou em domicílio particular sob custódia até que se realizasse o julgamento contra ele, com muita liberdade para evangelizar. Acontecia entre os anos 61 e 63, quando escreveu as cartas aos Filipenses, Colossenses, Efésios e Filemon. Deve ter sido absolvido.

No ano 63, embora não tenhamos dados totalmente confiáveis, parece que conseguiu ainda realizar alguma outra missão, como era seu desejo manifestado nas cartas. Clemente Romano afirma que foi até Espanha (1Clemente 5,7). As cartas pastorais falam de uma viagem ao lado oriental do império, concretamente Éfeso e a ilha de Creta (1Timóteo 1,3; Tito 1,5). Também falam de uma nova prisão em Roma mais rigorosa do que a primeira (2Timóteo 1,8.12;2,9;4,6-8). Seria na época do imperador Nero quando foi decapitado aproximadamente no ano 67, na estrada que levava até Óstia, que era o porto marítimo de Roma. A decapitação pela espada era a forma como se aplicava a pena de morte aos cidadãos romanos, que depois de julgados recebiam a penalidade máxima. Ainda se conserva em Roma a cadeia Mamertina, perto do Foro Romano, onde teria passado seus últimos dias. Foi sepultado onde hoje se encontra a basílica de São Paulo Extramuros. Um presbítero de Roma, chamado Gaio, do final do século II, explicando porque a Igreja de Roma era considerada pelas comunidades como cabeça da Igreja toda, escreve assim: “Posso mostrar os troféus dos apóstolos. Se fores ao Vaticano ou à estrada que leva à Òstia, encontrarás os troféus daqueles que fundaram esta Igreja” (Eusébio de Cesaréia, História da Igreja, II, 25,7). “Quando Constantino restituiu a paz à Igreja, fez erguer uma basílica sobre o túmulo de Paulo e outro sobre o de Pedro, no Vaticano; todavia, mais impressionantes do que esses monumentos de pedra, nos quais se inscreve a veneração secular dos fiéis, são as epístolas, que fazem de Paulo o Doutor da Igreja” (“São Paulo e o seu tempo”, E.Cothenet; coleção “Cadernos Bíblicos” nº 26, pág.98; Ed.Paulinas, São Paulo, ano 1.985). Chamam poderosamente a atenção as palavras de Paulo na Segunda Carta a Timóteo (4,6-8): “Quanto a mim, meu sangue está para ser derramado em libação, e chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a minha corrida, conservei a fé. Agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor, justo Juiz, me entregará naquele Dia; e não somente para mim, mas para todos os que tiveram esperado com amor a sua manifestação”.

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2. PRIMEIRAS CARTAS. 1 e 2 Tessalonicenses.

2.1. O gênero literário das cartas.A primeira discussão entre os exegetas é em relação à distinção entre “carta” ou “epístola”. A

epístola é mais solene, doutrinal; a carta é mais familiar. Nas cartas de Paulo, inclusive na Carta aos Romanos, Paulo mistura as duas coisas: detalhes familiares, aspectos práticos bem concretos, com a mensagem do evangelho. É preferível fazermos a opção de chamar cartas, porque a partir do Concílio Vaticano II queremos resgatar a dimensão comunitária da Igreja, nos aspectos de acolhida, escuta e misericórdia... e sem dúvida que, as primeiras comunidades, muitas delas fundadas por Paulo, eram assim.

Analisando a literatura da época nos dois mundos, helenista e judeu, podemos perceber que a influência judaica é maior em Paulo, apesar de que ele escreveu em grego. A mentalidade das cartas é judaica. É semelhante aos rabinos que escreviam cartas para as comunidades judaicas espalhadas por tantos países diversos. Os rabinos costumavam escrever para as suas comunidades de acordo com as necessidades. Reforçavam os aspectos doutrinais do judaísmo, exortavam à prática da moral, perguntavam sobre questões cotidianas das pessoas conhecidas... bem semelhante ao que nós lemos nas cartas paulinas. Enquanto ao conteúdo, é claro que Paulo se inspira no Evangelho de Jesus Cristo discordando do judaísmo oficial da época, principalmente na abertura da salvação divina a todos os povos, sem necessidade da circuncisão nem do cumprimento obrigatório da Lei Mosaica, sendo o essencial a fé no Evangelho e a prática do mesmo, não como um documento jurídico e sim como um caminho de vida.

2.2. Como ler as cartas de Paulo.Na introdução às Cartas da Bíblia Pastoral encontramos esta orientação: “Antes de ler uma carta

seria bom perguntar: Quais os problemas que estão por detrás desse texto? A quais questionamentos Paulo responde? Por que ele precisou escrever?”.

Precisamos compreender e diferenciar os diferentes níveis enquanto ao conteúdo existentes nas cartas. Quando Paulo escreve uma carta a uma comunidade ele mistura no conteúdo um pouco de tudo. Tem afirmações de fé, conselhos sobre assuntos particulares, recomendações sobre a acolhida e o perdão, ordens imperativas em nome do Senhor, comentários práticos relativos a costumes da época, cumprimentos pessoais e lembranças afetivas... Nós precisamos ter muito cuidado na hora de interpretar para não errar. Não é a mesma coisa quando Paulo diz que Jesus Cristo ressuscitou dentre os mortos que quando pede às mulheres que se coloquem o véu nas assembléias litúrgicas.

Assim, nós podemos diferenciar três níveis diferentes no conteúdo das cartas, que podem nos ajudar a compreender melhor a mensagem que nos salva. O primeiro nível, o mais profundo, é o querigma, que está diretamente relacionado com a doutrina da nossa fé, com o conteúdo da mensagem que vem do Senhor e ilumina as nossas vidas rumo ao Pai. Paulo parte sempre do mistério de Cristo na sua páscoa: morte e ressurreição. Deus Pai tem um plano de amor para toda a humanidade e para cada pessoa humana. Jesus ilumina e acompanha nossa história. O Espírito Santo realiza em nós a vontade divina na medida que nós cooperamos positivamente. O segundo nível se refere às atitudes humanas que se derivam do Evangelho (são assim atitudes espirituais). São uma resposta à mensagem recebida a qual tem poder de transformar os nossos corações e mentes para que sejam semelhantes à prática de Jesus. No terceiro nível se situam os detalhes práticos, os exemplos concretos que manifestam essas atitudes do coração e essa mensagem que tomou conta de nós. Só que, muitas vezes estão relacionados com costumes da época, com aquela cultura daquele lugar e daquele tempo. Podem ser válidos para nós ou, em determinados casos podem não ter nada a ver com a nossa realidade. É por isso que não podemos entender tudo do mesmo jeito.

Em se tratando de cartas devemos entender também que, normalmente, Paulo não elabora um tratado completo em relação a um determinado assunto. Ele não esgota todo o tema quando

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simplesmente o cita numa carta. Por exemplo o problema da escravidão: se tirarmos conclusões de uma frase isolada de Paulo em uma determinada carta, cairemos no erro de achar que essa opinião prática, em um determinado texto isolado, é vontade de Deus. E aí podemos, em nome de Deus, chegar à conclusão errada de que Deus quer e justifica a escravidão. Necessitamos nestes casos analisar todos os textos em conjunto e a partir, principalmente, da vida e da palavra de Jesus Cristo nos Evangelhos, tirar conclusões coerentes com a nossa fé e a prática que Deus quer de nós. A mesma coisa acontece no caso da mulher. Não podemos tirar conclusões de um texto isolado de Paulo a partir de uma frase fora do contexto. Precisamos meditar com maior seriedade para não precipitar nas conclusões que podem justificar interesses egoístas e particulares.

2.3. Primeira Carta aos Tessalonicenses.A cidade de Tessalônica situada na Macedônia, ao norte da Grécia, era um porto de mar

importante, bem comunicada com as grandes cidades do Império Romano, vivia do comércio e dos negócios. Boa parte da população era estrangeira; os judeus eram numerosos e tinham a sua sinagoga. Na segunda viagem missionária de Paulo fundou lá uma comunidade cristã (entre os anos 49 e 50). Primeiro anunciaram o Evangelho aos judeus e depois aos pagãos. Pela oposição dos judeus não pode ficar mais de dois ou três meses lá (Atos 17, 1-9). Quando Paulo viajou para Atenas, não resistiu a falta de notícias (1 Tes. 3,1) e enviou Timóteo para Tessalônica para manter contatos e fortalecer a comunidade. Os colaboradores lhe trazem boas novas de lá: apesar de ser uma comunidade tão nova e de terem ficado sem o fundador os fiéis são perseverantes e animados na vida de fé. Só que os judeus querem destruir o trabalho evangelizador espalhando calúnias contra Paulo. Os tessalonicenses querem saber também mais detalhes sobre a vinda gloriosa de Cristo. Todos achavam que aconteceria de imediato... mas, o que seria dos que já tinham falecido? Entrariam na glória com Cristo ou ficariam de fora? É por causa destas questões que Paulo escreve, desde Corinto, entre os anos 51 e 52, as suas cartas aos Tessalonicenses.

Desde o princípio do cristianismo (Pastor Hermas e Policarpo de Esmirna no início do século II, Marcião na metade do século II e Muratori no final do século II, Clemente de Alexandria e Ireneu de Lião no início de século III) se atribuem estas cartas ao próprio Paulo. O conteúdo e a linguagem também se corresponde ao conjunto das cartas em um 90%. Se no final do século XIX houve algumas dúvidas (escola de Tubinga), hoje todos concordam com a autoria de Paulo.

Esquema da Carta:- 1,1-3. Saudação “à Igreja dos tessalonicenses que está em Deus Pai e em Jesus Cristo”

vivendo a fé, o amor e a esperança em Jesus, o Senhor. - 1, 4-10. Povo amado e escolhido por Deus, que acolheu com alegria a Palavra do Evangelho,

anunciado por palavras e obras, no poder do Espírito Santo.- 2,1-3,10. O exemplo (testemunho) dos evangelizadores é modelo de vida para os fiéis. A fé

nasce do acolhimento da Palavra anunciada pelos evangelizadores. Mas existem resistências ao anúncio e precisa-se de fidelidade e comunhão entre os irmãos, entre as comunidades e com os pastores. Na distância a oração é elo de comunhão... assim como as visitas dos colaboradores e a própria carta!

- 3,11-4,12. Atitudes cristãs que revelam a presença do Espírito animando a vida de fé: amor fraterno progressivo imitando o amor de Deus, honestidade no trabalho, procurar a convivência harmoniosa com todos (paz). Buscar a santidade respeitando o próprio corpo e o dos outros, sem cair na libertinagem.

- 4, 13- 5,3. Mensagem cristã sobre a Segunda Vinda do Senhor (Parusia). A esperança na ressurreição é para todos: os que estiverem vivos e os que já faleceram. Não sabemos quando, precisamos estar sempre preparados. A preparação consiste em levar uma vida moral em coerência com o Evangelho (se consolando e ajudando mutuamente) e não em ficar “sem fazer nada”, fixando a atenção exclusivamente no além.

- 5, 12-28. Conselhos práticos e saudação final. Respeitar as lideranças da comunidade, corrigir fraternalmente uns aos outros, alegria e oração constantes, não extinguir o Espírito mas aprender a

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discernir os dons verdadeiros, cultivar a santidade (nas três dimensões bíblicas: corpo, alma e espírito), orar uns pelos outros (intercessão e comunhão dos santos), cumprimentar-se pelo beijo santo da paz. “Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja com vocês”.

Não deixar de ler: 1,1-10; 2,5-8.11-12.13-14; 3,11-13; 4, 2-5.9-12; 4,13-18; 5,16-28.

2.4. Segunda Carta aos Tessalonicenses.A segunda carta foi escrita pouco tempo depois da primeira, depois de ter recebido boas notícias

dos colaboradores que enviou para Tessalônica. Se uma das preocupações principais da primeira se refere ao quando será o fim do mundo, com o Dia da Vinda do Senhor (Parusia), a segunda carta preocupa-se mais com as atitudes cristãs para esperar ativamente o Messias, na sua Segunda Vinda. Paulo pede aos cristãos que se concentrem no presente, na realidade histórica para que não fiquem perdidos em questões de datas imaginárias que não conduzem a lugar nenhum. Existirá a manifestação dos poderes do mal que devem ser enfrentados com as armas da fé. O cristão não pode fugir dos conflitos, da luta em favor do Evangelho. Nós não conhecemos nem o dia nem a hora em que acontecerá a Parusia, mas sim sabemos quais as atitudes evangélicas que o Senhor pede de nós para testemunhar o seu amor aqui nesta terra, na história que nos correspondeu viver. Caminhemos dignamente na presença de Deus para participarmos um dia do seu Reino. Essa é a nossa esperança! O apóstolo apela a comunidade a não se deixar levar pelo comodismo: Deus é o protagonista da história, porém Ele quer a colaboração dinâmica da comunidade e de cada cristão. Contamos para isso com a ajuda do Senhor que jamais abandona os seus fiéis. Partindo sempre do querigma (anúncio da salvação que se revela na morte e ressurreição de Jesus) convida a abandonar o culto aos ídolos para servir ao Deus vivo e verdadeiro. Esta fé no amor divino manifestado em Cristo é a motivação para assumir uma vida nova, fruto do Espírito, que precisa do compromisso de cada um. O apóstolo é um exemplo de fé e obediência ao Evangelho. Ele não só anuncia uma mensagem mas a vive na própria história se tornando modelo de vida para os que aceitam o anúncio da Palavra. A autoridade moral do evangelizador consiste nisso: viver a mensagem que anuncia.

Esquema da Carta: - 1,1-4. Saudação e agradecimento a Deus pela fé e pelo amor fraterno na comunidade. - 1,5-12. As provações que sofrem os cristãos servem como purificação espiritual, para

amadurecer na vida cristã. É importante orar uns pelos outros para superar as dificuldades e se tornarem, pelo testemunho evangélico, sinal de Deus no meio dos homens.

- 2,1-12. Atitudes perante a vinda do Senhor: não se assustar nem apavorar, manter a calma e praticar o amor e a verdade. Cuidado com as falsas inspirações e falsos milagres.

- 2,13-3,15. Atitudes cristãs: Agradecer sempre a Deus, permanecer firmes na fé, fazer e falar o que é bom, orar uns pelos outros, orar pelos que praticam o mal, trabalhar honestamente para ganhar o próprio pão, não se cansar de fazer o bem, corrigir fraternalmente aos que erram.

- 3,16-18. Saudações finais. Que o Senhor vos conceda a paz e esteja com todos vocês.

Não deixar de ler: 1,1-4; 2,13-17; 3,1-4; 3,13-18.

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3. AS GRANDES CARTAS. Gálatas; 1 e 2 Coríntios; Romanos.

3.1. Carta aos Gálatas. Na segunda viagem missionária Paulo e Timóteo passaram pela Galácia (Atos 16,6) antes de

chegar a Europa (Macedônia e Grécia). Lá fundaram comunidades que mais tarde iriam visitar na terceira viagem missionária (Atos 18,23). É no decorrer desta terceira viagem, quando ficou uns três anos em Éfeso (de 54 a 57) para consolidar aquela comunidade e as vizinhas, que escreveu a Carta aos Gálatas. A Galácia não é uma cidade mas uma região situada na atual Turquia.

O motivo principal que originou este escrito foi o desvio de comportamento dos gálatas em relação ao Evangelho pregado por Paulo. Mais uma vez os cristãos judaizantes incitaram as comunidades da Galácia fundadas por Paulo e seus colaboradores a se circuncidar para poder receber a salvação de Cristo. Isto significava mudar radicalmente as orientações dadas por Paulo e confirmadas na assembléia de Jerusalém com a aprovação dos apóstolos. A circuncisão representava a obrigação de ter que cumprir todas normas da Lei Mosaica e de todas as tradições acrescentadas posteriormente. Muitos detalhes da Lei eram mais culturais do que propriamente religiosos. Muitos cidadãos do Império Romano de cultura grega simpatizavam com a religião de Israel, porém não se animavam a dar o passo de se tornarem judeus por causa precisamente desses detalhes culturais. Quando Paulo evangelizava os pagãos dispensava da circuncisão com as suas obrigações legais, convidando simplesmente a aceitar a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo como único princípio de salvação, muitos pagãos abraçavam a fé cristã provocando o ciúme dos judeus. Muitos cristãos de origem judaica sentiam também sérias dificuldades em aceitar na mesma comunidade de fé os pagãos batizados mas não circuncidados. A questão já tinha sido decidida na assembléia de Jerusalém... teoricamente. Mas não na prática. Esses judeus cristãos radicais visitavam as comunidades já fundadas e obrigavam os cristãos que provinham do paganismo a se circuncidarem. Paulo rebatia firmemente essa atitude defendendo o trabalho evangelizador do seu grupo, não aceitando outro evangelho diferente do que ele anunciava e lembrando da sua missão de verdadeiro apóstolo de Jesus. Infelizmente os gálatas deram ouvidos aos cristãos judaizantes e, depois de já estarem batizados e vivendo a fé cristã, começaram a se circuncidar tornando-se também judeus para poderem ser cristãos. Esta mudança dos gálatas irritou Paulo porque desautorizava totalmente a missão dele mudando o Evangelho de Jesus que ele pregava. A Carta aos Gálatas era a reação legítima para defender a validade do seu apostolado. Não se tratava simplesmente de uma desautorização da pessoa de Paulo, mas de uma mudança substancial do Evangelho. Desse jeito, a Lei de Moisés se colocava acima do Evangelho de Cristo.

Trata-se de uma carta que tem um início e um final bem diferente das outras... Tom agressivo e expressões de indignação. Paulo queria que os gálatas percebessem a gravidade da sua atitude irresponsável ao abandonar a prática do Evangelho ensinada por ele. O desvio dos gálatas não é superficial, mas fere a essência da fé cristã. Paulo se viu obrigado a corrigir seriamente essa atitude para defender a supremacia do Evangelho para abraçar a salvação divina.

Contém uma mensagem de grande valor para a Igreja, ao proclamar a liberdade dos cristãos no Espírito de Cristo. Libertação de uma vida marcada por leis externas e minuciosas. Possibilidade de amadurecimento espiritual, de protagonismo na própria caminhada da fé. A vida do cristão precisa ser orientada a partir da comunhão de amor com Jesus Cristo que nos leva a amar fraternalmente o próximo. Esta é a verdadeira lei dos cristãos. Uma lei que liberta e faz crescer humana e espiritualmente. A Carta aos Gálatas pode ser considerada como um cântico à liberdade cristã, à consciência pessoal em relação às normas humanas. A Lei de Moisés (e toda a Primeira Aliança ou Antigo Testamento) tem seu valor como pedagogia ou preparação da Nova Aliança realizada em Cristo Jesus cuja mensagem é princípio de salvação e à qual se subordina tudo, incluindo a Lei de Moisés.

Esquema da Carta:

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- 1,1-10. Saudação e apresentação do motivo principal da carta. Carta que começa com o título de apóstolo. Paulo é apóstolo! Quer dizer, o ministério dele é autêntico, a mensagem que anuncia é verdadeira. Não tem agradecimento a Deus pela fé dos gálatas. Destaca que quem salva é Jesus pois Ele se entregou pelos nossos pecados. Logo vem a reclamação aos gálatas por terem mudado de evangelho... se é que existe outro evangelho fora de Jesus, tal como foi anunciado por Paulo! E vem a maldição àqueles que mudam o Evangelho dos apóstolos. Início bem diferente das outras cartas.

- 1,11-2,14. Paulo defende seu apostolado. Conta a conversão e a vocação dele, o chamado divino a ser apóstolo em favor dos pagãos. Mas o Evangelho é o mesmo. Encontrou-se com os apóstolos principais para confirmar sua fé e recebeu o aval deles. Relata a assembléia de Jerusalém na qual as cabeças da Igreja reconhecem o valor e a autenticidade da missão de Paulo e Barnabé no meio dos pagãos. Nessa ocasião a Igreja, oficialmente, resolveu aceitar os pagãos na mesma comunidade de fé pelo batismo, sem necessidade de se circuncidar... Neste momento Paulo nos oferece um dado muito interessante: A Igreja pediu nessa assembléia de Jerusalém que os cristãos convertidos do paganismo não se esquecessem dos pobres. Quer dizer, a opção preferencial pelos pobres faz parte da essência o Evangelho. Menciona o incidente com Pedro em Antioquia, sempre por causa do mesmo problema das mesas (podem judeus e pagãos celebrar juntos a mesma fé?). Na realidade, as decisões da assembléia de Jerusalém não se aplicaram tão facilmente nas comunidades; o conflito e as tensões continuaram. Porém, foi-se estabelecendo aos poucos a decisão apostólica em todas as comunidades cristãs. Sem esquecer que foi o fato histórico da guerra dos judeus contra os romanos com a destruição de Jerusalém e do seu templo que propiciou mais definitivamente a compreensão da Igreja como novo povo de Deus, independente do primitivo Israel.

- 2,15-4,20. A salvação nos é concedida pela fé em Jesus Cristo. “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que vive em mim. E esta vida que agora vivo, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim”. Os gálatas começaram a vida no Espírito para voltar atrás... para a vida marcada na carne (circuncisão). Os judeus, como o próprio Paulo, também se salvam pela fé em Jesus. Assim como os pagãos. Se antes de Cristo os judeus levavam vantagem, agora são todos iguais na mesma fé. Paulo faz a reflexão bíblica comparando Abraão com Moisés. Se a Lei vem de Moisés a promessa, que é anterior, vem de Abraão. O valor da Lei se consegue pelo cumprimento da mesma, o valor da promessa se obtém pela fé nela. A promessa e a fé são, pois, anteriores à Lei e ao seu cumprimento. A Lei não anula a Promessa. Os cristãos são herdeiros da promessa que participam da salvação por meio da fé em Jesus... e são, assim, filhos verdadeiros de Abraão. Assim, o verdadeiro povo de Deus nasce da fé e não da Lei. A Lei traz uma contradição insolúvel: quem abraça ela é obrigado a cumpri-la por inteiro. Ninguém, segundo a própria Escritura, consegue fazer isso... portanto, todos somos pecadores perante a Lei, ninguém consegue se salvar por meio dela. Cristo, para nos libertar desta contradição, Ele próprio, sendo Santo e Justo, aceitou ser “maldito” segundo a Lei morrendo na cruz (3, 13 em relação a Deuteronômio 21,22-23). Assim, por amor, nos liberta da contradição da Lei. Jesus é o herdeiro de Abraão, realização das promessas e da Aliança feita por Deus com o seu povo. Em Jesus Cristo todos, judeus e pagãos, alcançam a mesma e única salvação. Então, qual o papel da Lei? É uma ajuda, uma pedagogia para uma fase ainda infantil da relação dos seres humanos com Deus. Chegada a idade adulta nos tempos do Evangelho, não faz falta. Sejamos adultos na fé na verdadeira liberdade dos filhos e filhas de Deus! Eis o desafio da Nova Aliança. “Quando, porém, chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho. Ele nasceu de uma mulher, submetido à Lei para resgatar aqueles que estavam submetidos à Lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos. A prova de que vocês são filhos é o fato de que Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho que clama: Abba, Pai! Portanto, você já não é escravo, mas filho; e se é filho, é também herdeiro por vontade de Deus”. (4,4-7). Paulo consegue, em fim, falar amorosamente aos gálatas, lembrando da boa acolhida que recebeu entre eles na época da evangelização. “Sofro dores de parto até que Cristo esteja formado em vocês” (4,19).

- 4,21-6-10. A liberdade cristã: atitudes evangélicas. Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres vivendo segundo o Espírito. Ele suscita em nós as atitudes evangélicas que o

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próprio Jesus praticou e que os apóstolos, junto com as suas comunidades, anunciam e testemunham. A partir do amor ao próximo, fruto maior da vida cristã, somos chamados a superar o individualismo egoísta, a procura do prazer pelo prazer, os vícios que atrapalham a caminhada da fé, a idolatria, a libertinagem, ódios, divisões, etc. O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, bondade, fé, etc. Na vida comunitária é importante saber praticar a correção fraterna, aprender a carregar uns as dificuldades dos outros... e fazer o bem a todos, começando pela própria comunidade.

- 6, 1-18. Despedida. Comparação entre o interesse daqueles que os desviaram do verdadeiro Evangelho e o interesse de Paulo: os falsos apóstolos buscam a glória humana, aparecer; Paulo se gloria na cruz de Cristo. No final deseja a misericórdia e a paz do Senhor. Ainda bem!

Não deixar de ler: 1,1-5; 2,19-21; 3,25-29; 4,4-7; 4,18-20; 5,1; 5,13-26; 6,16-18.

3.2. Primeira Carta aos Coríntios.Corinto era uma cidade muito importante situada no sul da Grécia, na península do Peloponeso,

porto de mar. Devia ter 600.000 habitantes: 200.000 livres e 400.000 escravos. Estes eram trazidos da região da Ásia e do sul da Europa. As profissões que se exerciam mais eram o comércio, o ensino da filosofia, os esportes e os estivadores que carregavam e descarregavam as mercadorias nos cais marítimos. Tinha uma comunidade judaica considerável assim como a prática de todo tipo de religiões e crenças. Os costumes imorais prevaleciam na sociedade de forma que tinha má fama em todo o Império Romano. Tratava-se da principal cidade da Grécia enquanto ao número de habitantes e as atividades econômicas. O nome de coríntio era sinônimo de libertino ou imoral.

Paulo chegou a Corinto na segunda viagem missionária, depois do aparente fracasso em Atenas (Atos 17, 16ss). Se na capital da sabedoria usou das técnicas da oratória humana, em Corinto, cidade de moral duvidosa, falou rasgado de Jesus Crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os pagãos... mas sabedoria escondida de Deus para os escolhidos. E lá conseguiu fundar uma comunidade bem numerosa. A maioria dos fiéis eram de origem pagã e escravos. Paulo ficou lá entre os anos 50 e 52, 18 meses. Quando teve que sair de lá por causa das intrigas dos judeus a comunidade cristã ficou abalada pelas divisões internas e a falta de orientação. Paulo enviou seus colaboradores para esclarecer as coisas e escreveu, parece, várias cartas para iluminar a vida comunitária (1Coríntios 5,9). De fato, a Segunda Carta aos Coríntios parece que contém fragmentos de outras cartas anteriores e/ou posteriores que se inseriram na segunda. A preocupação de Paulo com a comunidade de Corinto nos revela, por uma parte, os problemas de todo tipo que surgiram numa Igreja jovem e que não tinha raízes profundas religiosas, como sim tinham as comunidades judaicas. Por outra parte não podemos esquecer que Corinto era uma cidade estratégica para a evangelização e é por isso que Paulo se empenha em consolidar bem a Igreja de Jesus lá, para que servisse de plataforma missionária de toda a região.

Os problemas que os coríntios apresentam a Paulo são as divisões internas (grupos que se enfrentam entre si), os escândalos morais (como o incestuoso ou a prática da prostituição) o comodismo, o recurso aos tribunais pagãos para resolver assuntos internos entre os cristãos, o uso das carnes sacrificadas aos ídolos, os problemas matrimoniais, as bagunças nas liturgias, a falta de solidariedade entre ricos e pobres, o uso de carismas para aparecer, as brigas e discussões nas reuniões comunitárias, as dúvidas de fé em relação à ressurreição dos mortos... Quase nada! Quaisquer um evangelizador desistiria daquela comunidade. Paulo não! Porque o Deus que nos chama é fiel, garantia de que o processo de evangelização irá dar certo. Assume os desafios com fé e amor e vai resolvendo os problemas um por um fazendo a relação entre a realidade e a Palavra. Partindo da realidade humana ilumina os problemas com a mensagem do Evangelho e faz propostas práticas de vida cristã aos fiéis, orientando pastoralmente a caminhada de forma humana, evangélica e criativa. Às vezes fazendo valer a sua autoridade como apóstolo de Cristo, outras vezes utilizando palavras de ternura e delicadeza materna. Precisamos compreender a imaturidade desta comunidade porque ainda era muito nova e é lógico que surgissem esse tipo de problemas no seio dela. Também assim podemos compreender melhor a sabedoria pastoral de Paulo que soube educar

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aquela comunidade tão difícil e problemática corrigindo os erros pedagogicamente e suscitando as melhores atitudes cristãs. Se eles conseguiram superar tantas dificuldades nós também poderemos, com a graça do Senhor superar aquelas que nos atrapalham na caminhada de fé.

Esquema da Carta: - 1,1-9. Saudação e agradecimentos. Paulo apóstolo por chamado divino, aos irmãos que são

chamados à santidade. Sentimento de comunhão universal com todos os que invocam o nome de Jesus. Em Cristo Jesus os cristãos recebem todos os dons. Deus que chamou é fiel.

- 1,10-4,21. Divisões na comunidade. Perante a realidade da divisão em grupos antagônicos a carta faz um chamado à unidade em Jesus Cristo. Na Igreja existem diversas funções (ministérios), ninguém faz tudo sozinho, uns complementam os outros. Para superar o desejo de aparecer ou de se sentir superior aos outros, nós temos a imagem de Cristo crucificado, loucura para os sábios gregos e escândalo para os judeus. Esta compreensão só pode ser alcançada pelo Espírito de Deus e quem vive segundo a sua inspiração. Pelas divisões se manifesta a imaturidade dos coríntios... e precisam ainda de uma linguagem infantil, por meio de comparações: qual o material que utilizamos para construir o prédio da própria existência? Nas provações se comprova a solidez de cada um. O apóstolo é servidor da comunidade, eis a sua glória, o material da sua construção, se faz o último para enriquecer a comunidade na fé.

- 5,1-6,20. Comportamentos errados. Paulo manda expulsar da comunidade um que vivia em incesto. A medida é para que se corrija. Recrimina o recurso aos tribunais pagãos para dirimir contendas entre irmãos (roupa suja se lava dentro de casa). A falta de respeito com o próprio corpo (prostituição) afeta a dimensões íntimas do ser, não é mera questão superficial. Nós somos membros de Cristo, templos do Espírito Santo.

- 7,1-40. Sobre o casamento e algumas questões de convivência social. O celibato é excelente mas, perante o perigo de fornicação, é melhor se casar do que pecar. O ideal seria permanecer no estado em que cada um se encontrava quando foi chamado. Quer dizer, para o cristão o chamado de Deus é prioridade de vida, embora não deve se desprezar o estado de vida. Em todo caso cada um precisa fazer discernimento para descobrir, à luz do Espírito, o que é melhor para a própria vida cristã.

- 8,1-11,1. Sobre os alimentos oferecidos aos ídolos. Em princípio não tem problema, porque os ídolos não são nada para quem tem fé. Porém é preciso tomar cuidado para não escandalizar os que estão iniciando na fé ou que tem consciência débil. É preciso aprender a agir com caridade, a partir do amor fraterno. Paulo se coloca como exemplo de renunciar a si mesmo por amor aos cristãos. Anunciar o Evangelho é uma obrigação e uma honra, é uma necessidade: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” (9,16). Ele evangeliza gratuitamente, embora tenha direito à remuneração, para que ninguém pense que age por interesses materiais. A história do povo de Deus peregrino pelo deserto nos mostra que quem se considera forte pode cair por descuido; é melhor prevenir do que chorar. É preciso aprender a discernir nas decisões práticas de cada dia a partir do critério da caridade fraterna e do bom senso. O cristão é livre mas não para si mesmo e sim para a glória de Deus fazendo o bem aos irmãos.

- 11,2-14,40. O comportamento nas assembléias comunitárias. O véu na cabeça das mulheres: assunto não de fé mas de costumes da época (11,16). Pior é o problema das divisões na mesma celebração litúrgica e o desprezo contra os pobres: isto fere a essência da fé e é muito grave. Aqui encontramos um relato precioso da instituição da eucaristia (11,23-26). O cristão precisa ser muito responsável em relação à comunhão eucarística porque se trata de uma relação sagrada com o Senhor. Da eucaristia, comunhão espiritual com Deus em Jesus Cristo, nascem as linhas principais da Igreja: unidade na legítima diversidade dos dons, carismas e ministérios, orientados para edificar o Corpo de Cristo, que é a Igreja, a serviço do Reino de Deus. O Espírito Santo desperta e alimenta a mesma fé em Cristo Jesus para que todos os fiéis vivam a unidade em comunhão fraterna de amor. O mesmo Espírito suscita dons, carismas e ministérios diversos a serviço do bem comum, para fazer acontecer a evangelização em todo tempo e lugar, dando continuidade à missão de Jesus. A exemplo do corpo humano. Existem, porém, dons principais e comuns: fé, esperança e amor

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fraterno... o principal dom é o amor. Nele amadurecemos e crescemos na caminhada de fé, que é um processo, uma peregrinação constante. Os critérios sobre o uso dos dons, carismas e ministérios na comunidade é muito prático: não são para aparecer ou conferir dignidade especial àqueles que os receberam, mas instrumentos para o bem comum, para edificar a comunidade e fazer acontecer a evangelização. A dignidade é comum e igual a todos pois somos filhos e filhas do mesmo Pai do Céu. Os dons, carismas e ministérios são serviço, doação, entrega, partilha, meios para amar. Nos detalhes práticos Paulo propõe os costumes judaicos (mulher calada na assembléia, etc.) sem muita fundamentação. Sem dúvida que Jesus, na sua prática evangelizadora, teve outra sensibilidade e modo de agir. Também não sabemos o que estava acontecendo concretamente em Corinto para Paulo falar desse jeito e por isso poderia se tratar de um caso isolado. Não esqueçamos dos diferentes níveis de mensagem nas cartas paulinas e que esse detalhe se encaixa no terceiro nível dos costumes, que é o menos importante para nós. Em todo caso nem podemos nem devemos generalizar e, menos ainda hoje, aplicar essa prática para nós porque seríamos muito injustos e pouco evangélicos em relação à mulher. O modo como a Igreja, ainda hoje, enxerga oficialmente a questão do gênero nos seus âmbitos internos não se corresponde plenamente com a mensagem de Jesus Cristo e o seu exemplo de vida.

- 15,1-58. A esperança na ressurreição. Paulo inicia sua reflexão a partir do querigma: “Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; ele foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras...” . Cristo ressuscitou e nós ressuscitaremos com Ele. Sendo seres humanos (filhos de Adão) morremos; pela graça divina que nos é concedida em Cristo Jesus e que acolhemos por meio da fé ressuscitamos com Ele para a glória de Deus Pai. Tudo será submetido ao Filho e Ele entregará toda a criação resgatada nas mãos do Pai. A esperança na ressurreição produz um fruto em nossa vida diária: a responsabilidade histórica de colaborar com o Reino de Cristo, de forma que não serve quaisquer tipo de comportamento no ser cristão. Mas como é que acontecerá a nossa ressurreição? É um mistério, mas assim como recebemos um corpo corruptível que vai se desgastando, depois da morte ressuscita incorruptível, como um corpo espiritual, à semelhança do corpo de Cristo ressuscitado. Seremos transformados para participar com Cristo da vida divina. A morte é conseqüência do pecado e Jesus venceu ambos para Ele e para nós. Graças sejam dadas a Deus.

- 16,1-24. Conclusão final. Aspectos práticos: a coleta em favor dos pobres, promessa de visita, envio imediato de Timóteo, não esquecer de fazer tudo com amor. Lembranças para pessoas conhecidas... a Igreja é uma família! Saudações fraternas dos colaboradores e da parte de outras comunidades. “Eu amo a todos vocês em Jesus Cristo”.

Não deixar de ler: 1,1-9; 1,10-16; 1,21-25; 1,29-31; 6,12-20; 11,23-26; 12,1-13; 12,31-13,13; 15,1-11; 15,12-28; 15,42-58; 16,1-4; 16,19-24.

3.3. Segunda Carta aos Coríntios.Parece que a primeira carta escrita por Paulo aos coríntios não resolveu todos os problemas.

Seria também impossível humanamente. A visita de cristãos judaizantes piorou ainda mais as divisões e muitos não reconheciam Paulo como apóstolo. O próprio Paulo foi até eles, mas sua presença foi breve por força de circunstâncias e não conseguiu consertar a situação. Parece que alguém ofendeu gravemente a Paulo (2,5; 7,12) e este usou da sua autoridade para que a Igreja não perdesse o rumo. Poderia ser também que o ofendido fosse algum colaborador direto do apóstolo.

Paulo deve ter escrito 4 ou mais cartas aos coríntios: A) Uma anterior à Primeira (segundo 1Coríntios 5,9). Um fragmento seria 2Coríntios 6,14-7,1.B) A Primeira Carta aos Coríntios.C) Uma carta escrita entre lágrimas (segundo o texto de 2 Coríntios 2,3-11). 2Coríntios 10-13.D) A Segunda Carta aos Coríntios 1-8.E) Um bilhete escrito por Paulo por motivo da coleta. 2 Coríntios 9.Segundo muitos autores esta Segunda Carta incluiria talvez fragmentos de outras cartas (4 ou 5)

que foram inseridas nela. A “carta escrita entre lágrimas” teria sido escrita entre a Primeira e a

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Segunda, depois da ofensa recebida e teria produzido efeitos positivos. Tito encontrou-se com Paulo em Macedônia (7,6ss) e lhe contou sobre a reação positiva da comunidade que chamou a atenção do ofensor e aceitou a mensagem de Paulo com boa intenção. Assim, Paulo escreve a Segunda Carta para preparar a terceira viagem dele a Corinto, para fazer as pazes com a comunidade, fortalecer os cristãos na fé e aprofundar na organização da Igreja.

Em relação à primeira carta existe também um novo problema provocado pelos cristãos judaizantes (exigiam a circuncisão para os cristãos que provinham do paganismo para que o batismo tivesse valor). Estes judaizantes, para fazer valer suas posições, não reconheciam Paulo como apóstolo, pois não teria conhecido historicamente a Jesus. Paulo precisa se defender, nem tanto por ele mas sim para legitimar o trabalho evangelizador que fizera e defender a autenticidade das comunidades cristãs que fundara. Devemos compreender os motivos de Paulo para defender o seu apostolado e falar da sua entrega e zelo pela Igreja. Não era seu desejo mas uma necessidade apostólica.

A complexidade dos temas tratados e a insistência em se defender o próprio autor da carta nos mostram a quantidade de problemas difíceis que a comunidade vivia. As comunidades judias já tinham uma organização definida e estável pela prática ao longo de vários séculos de diáspora (comunidades judias na dispersão, longe de Jerusalém). Os cristãos de origem judia já tinham um esquema de funcionamento no modelo judeu. As comunidades de origem pagã não estavam tão estruturadas assim como as outras... e necessitavam de uma atenção maior por parte dos evangelizadores. Entendemos melhor o mérito de Paulo e seus colaboradores na organização das primeiras comunidades e agradecemos a existência desses problemas que nos proporcionaram a graça das cartas e das suas mensagens tão preciosas para a nossa prática pastoral, pois nos iluminam também a superar os nossos problemas.

Esquema da Carta: - 1,1-11. Saudação. Paulo louva a Deus porque superou as tribulações. A vida toda do apóstolo,

alegrias e tristezas, é colocada em favor das comunidades. Pede orações em favor do seu apostolado; revela o poder da oração de intercessão e a responsabilidade entre os cristãos de orar uns pelos outros.

- 1,12-7,16. Comportamento de Paulo com a comunidade de Corinto. A motivação do grupo de Paulo vem de Deus e se orienta ao bem dos fiéis. Paulo tinha o projeto de visitar a comunidade e não conseguiu... alguns acharam que faltou com a palavra, ele se defende. Outros reclamaram que ele queria mandar na comunidade e Paulo revela que só quer colaborar no amadurecimento da fé dos cristãos. Lembra da famosa carta escrita entre lágrimas por causa da visita breve que fizera a Corinto e que resultou complicada. Mas a comunidade resolveu o problema e quer se reconciliar com o apóstolo e este declara a paz e pede que se perdoe e ame os ofensores.

Responde aos judaizantes: o Espírito dá vida e a letra mata; ainda tem o véu mental no rosto para não entender que caiu o véu do Antigo Testamento e chegou o Espírito da liberdade. Os apóstolos são servidores da comunidade por causa de Jesus e carregam o tesouro do Evangelho em vasilhas de barro; uns e outros participarão da glória do Senhor Ressuscitado enquanto aqui, na terra, todos se renovam interiormente segundo o Espírito.

Deus nos reconcilia por meio de Jesus que morreu e ressuscitou por nós; somos assim novas criaturas que carregam o ministério da reconciliação para levar a paz de Deus a todos os homens. Aproveitem a oportunidade da reconciliação com Deus: eis o tempo favorável, o dia da salvação. Convite a se reconciliar com a comunidade.

- 8,1-9,15. Alegria de Paulo pela resposta das comunidades no empenho da coleta em favor dos pobres que é um instrumento de justiça: a quem muito recolhia não lhe sobrava e a quem pouco recolhia não lhe faltava. Deus ama quem dá com alegria (9,7). Revela também a dimensão espiritual da partilha fraterna: ela se torna motivo de amadurecimento na fé para todos e produz orações de gratidão e louvores ao Senhor.

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- 10,1-12,21. Parece que alguns na comunidade reclamaram que Paulo era humilde quando estava presente pessoalmente e nas cartas usava palavras duras e fortes. Ele se defende e pede que não o obriguem a usar da sua autoridade legítima pois prefere ser manso e fraterno. Aí Paulo vai e declara seu amor e sua paixão pela Igreja. Se compara aos falsos apóstolos e lembra dos sofrimentos por causa do ministério.

Não só lembra de algumas experiências místicas extraordinárias como também do “aguilhão na carne” que o humilha e pediu ao Senhor que o tirasse dele... a resposta divina foi: “te basta a minha graça”. O que era esse aguilhão? Não sabemos com certeza. Tal vez fosse alguma doença que dificultava o exercício na sua missão. Mais provavelmente seja a resistência dos israelitas em aceitar a fé em Jesus. Precisamente os seus irmãos segundo a carne.

Podemos deduzir que os coríntios (alguns deles) questionavam demais as atitudes dos dirigentes da comunidade, em tudo encontravam motivos para criticar. Paulo vai respondendo a cada crítica até que de repente para e responde que só deve justificativas perante Deus e não perante os homens.

- 13,1-13. Anúncio da terceira visita a Corinto e despedida da carta. Pede à comunidade que aproveite a visita para fazer uma avaliação da vida de fé. “Que a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vocês”.

Não deixar de ler: 1,1-4; 2,14-17; 4,7-18; 5,14-6,2; 8,7-15; 9,6-9; 12,7-10; 13,11-13.

3.4. Carta aos Romanos.Paulo é o autor desta carta que foi escrita em Corinto na páscoa do ano 58. Quem escreveu

tecnicamente a carta, seguindo os ditados de Paulo, foi Tércio (16, 22). Depois de realizar sua missão pela Ásia Menor (atual Turquia) e pela Grécia durante muitos anos, Paulo queria também levar o Evangelho para o ocidente (Espanha - 15,28). Roma seria para ele como uma plataforma missionária do jeito que tinha sido Antioquia para as suas três viagens missionárias. Este era o seu plano. Queria também visitar e conhecer a comunidade de Roma da qual devia ter ouvido falar pela boca de Priscila e Áquila. Assim como tinha participado na formação da comunidade de Antioquia queria também participar no processo formativo da comunidade cristã romana. Sabedor das calúnias que os judaizantes falavam sobre ele quis, previamente à sua visita, enviar uma carta de apresentação, uma espécie de síntese da doutrina da fé, explicando especialmente o assunto que era o centro dos debates entre os cristãos primitivos: é preciso circuncidar ou não para ser cristão?

Capital do império a população era superior a um milhão de habitantes. Muitas riquezas afluíam até lá vindo de todos os cantos daquele mundo. Todos os vícios também se congregavam lá. Quando Paulo escreveu a carta reinava o imperador Nero. A cidade, formada por uma maioria de escravos, não tinha estrutura para albergar tanta gente e muitos bandidos, aventureiros e pessoas sem escrúpulos buscavam lá seu refúgio e a oportunidade de se enriquecer rapidamente de quaisquer jeito. Pelos relatos de Sêneca e outros autores contemporâneos, a imoralidade da elite romana não conhecia limites.

Não sabemos quando se iniciou a comunidade cristã. Deve ter sido fundada por judeus cristãos mas a maioria dos seus membros é formada por cristãos oriundos do paganismo. Moravam na periferia de Roma, nos bairros onde se ajuntavam os estrangeiros chegados de todos os territórios do império.

O tom da carta é mais calmo que o da Carta aos Gálatas, aparentemente mais técnico no aspecto teológico. Quer que a comunidade o aceite bem como apóstolo dos gentios sabedor de que ele não fundou aquela Igreja. Utiliza um raciocínio cumprido e detalhado para explicar que, tanto para os judeus como para os pagãos, a salvação se encontra na pessoa e mensagem de Jesus Cristo. Valoriza

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o povo israelita como povo da aliança e das promessas, dos patriarcas e da Lei. Considera que é importante o patrimônio da fé de Israel para os cristãos, embora não decisivo. Tal vez existiam alguns cristãos convertidos do paganismo que desprezavam os cristãos judeus pelo seu apego à Lei Mosaica se justificando no próprio Paulo. Queriam praticar uma moral relaxada aceitando certas imoralidades confundindo liberdade com libertinagem (6,12-15). O apóstolo lembra a missão de Israel na História da Salvação e a função pedagógica da Lei como orientação de uma vida pautada pela ética. Mas também chama a atenção da comunidade para que se cuide dos cristãos judaizantes que tantos problemas lhe causaram em todas partes (16,17-20).

No final se enumera uma lista bem cumprida de cristãos na qual não aparece Pedro. Deveríamos concluir, simplesmente, que nessa data não se achava em Roma, porque muito provavelmente ainda não teria chegado à cidade.

O tema central da carta é a justificação pela fé. Melhor ainda, a tese de que Deus nos salva de graça por meio de Jesus Cristo, ao qual acedemos por meio da fé. Deus Pai oferece a homens e mulheres de todas as raças um caminho de salvação em Cristo Jesus, seu Filho amado. Aceitando pela fé o convite gratuito divino os cristãos se deixam conduzir pelo Espírito para serem filhos no Filho de Deus. Este convite é feito tanto ao povo de Israel como aos pagãos. Se os primeiros tinham vantagem pela sua história agora também os gentios são chamados a participar da mesma herança. Sem desestimar a função da Lei devemos considerar o Evangelho como o instrumento da salvação divina. Acolher o Evangelho representa uma vida nova que se exprime num estilo de vida novo caracterizado por relações impregnadas pelo amor a Deus e ao próximo, buscando a paz com todos, a solidariedade, o perdão e a harmonia na convivência social.

A forma de argumentar de Paulo, embora conhecesse tão bem o grego e a filosofia grega, é do estilo rabínico judaico daquela época que se faz, às vezes, um tanto difícil para nossa mentalidade ocidental. Tratando-se de Paulo ele nos surpreende sempre com expressões belíssimas que revelam atitudes profundas de fé autêntica e iluminam nossa história atual. Quer dizer que, apesar de algumas dificuldades de compreensão pelo tipo do raciocínio rabínico ao qual não estamos acostumados, a mensagem da carta é de uma grande atualidade e, comparando com outros escritos religiosos daquela época, pode ser compreendido no seu conjunto bastante bem pelo homem moderno.

Segundo o método paulino ele toma como ponto de partida da sua argumentação o querigma: a cruz e ressurreição do Senhor Jesus em favor da humanidade. O batismo é uma das expressões simbólicas melhores do querigma pois significa hoje que, imersos nas águas, participamos da morte de Cristo pela renúncia à vida de pecado; saindo das águas nos identificamos com a ressurreição de Jesus por meio de uma vida nova conduzida pelo Espírito, quem nos leva pela obediência ao Pai a reproduzir em nós os sentimentos e obras do Filho.

Esquema da Carta:- 1,1-15. Introdução e ação de graças. Preciosa introdução que contêm uma breve profissão

de fé integrando as duas Alianças: a primeira anunciada pelos profetas e a Nova Aliança que se faz presente em Jesus Cristo; esta é anunciada pelos apóstolos, e Paulo recebeu a vocação de ser apóstolo para anunciar o Evangelho aos pagãos, entre os quais também a maioria dos cristãos romanos... Assim, de forma suave, Paulo se apresenta como alguém que tem autoridade moral em relação aos cristãos romanos, apesar de não ter fundado aquela comunidade (Gálatas 2,8-9). A vocação de Paulo para ser apóstolo se corresponde com a vocação comum e universal dos fiéis à santidade. Agradece a Deus pela fé dos romanos e lhes anuncia o desejo de visita-los para ajudar também na construção daquela comunidade. Na verdadeira evangelização existe um intercâmbio de dons e Paulo espera enriquecer espiritualmente os cristãos romanos ao mesmo tempo que ele mesmo seja também enriquecido por eles.

- 1,16-3,20. Apresentação do tema principal (1,16-17). O Evangelho é a força de Deus para a salvação de todo aquele que acredita, tanto judeu como grego: O justo vive pela fé! Os pagãos poderiam ter conhecido o plano de Deus por meio da criação mas, por causa do pecado, ficaram

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envolvidos na ignorância sem compreender os desígnios divinos. Os judeus levam vantagem inicial por causa dos patriarcas, das promessas, da Aliança e da Lei... mas no final das contas ficam na mesma situação dos pagãos porque sabendo o que deve fazer pela luz da Lei não consegue realizá-lo pela falta do Espírito. Quem salva é o Espírito e não a letra da Lei. Então, para que serve a Lei? Para nos formar na consciência do que é pecado.

- 3,21-4,25. Deus manifesta sua justiça (salvação) por meio de Cristo. Paulo resgata a figura de Abraão, que é anterior à Moisés (Lei). Abraão não conhecia a Lei porque ainda não tinha sido promulgada. Mas ele viveu em Aliança com Deus por meio da fé pois acreditou na Promessa divina. “A fé foi creditada a Abraão como justiça” antes de que fosse circuncidado, portanto ele é pai de todos os que não estão circuncidados mas acreditam na promessa da salvação, quer dizer Abraão é pai tanto dos judeus quanto dos pagãos que têm fé em Jesus Cristo. “Esperando contra toda esperança Abraão acreditou e se tornou o pai de muitas nações”. A promessa se cumpre em todos os que acreditam em Jesus Cristo ressuscitado dentre os mortos: pela sua morte Deus perdoa os nossos pecados e pela sua ressurreição nos traz uma vida nova.

- 5,1-21. A justiça de Deus consiste em que nos salva gratuitamente por Cristo. O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo e Deus demonstra seu amor porque Cristo morreu pelos nossos pecados. Em Cristo Jesus somos reconciliados com deus. Sendo seres humanos, filhos de Adão, somos também pecadores, quer dizer, incapacitados por nós mesmos de produzir a vida verdadeira. Mas pela nossa união com Jesus realizada pelo Espírito Santo recebemos a graça de participar da vida eterna que se inicia aqui na terra.

- 6,1-7,25. Pelo batismo morremos ao pecado e renascemos para uma vida nova. O homem velho foi crucificado em Cristo libertando o corpo de pecado e agora vive para Deus. Somos assim oferenda nas mãos de Deus como instrumentos que agem em favor da salvação. Livres do pecado produzimos frutos que levam à santidade da vida eterna. Pelo batismo morremos também ao regime da Lei a fim de viver no regime do Espírito. A Lei é santa mas não tem poder de salvar; ela ilumina nossa consciência e nos faz perceber o pecado que há em nós. Assim nós sabemos o que devemos fazer mas não conseguimos realiza-lo, sabemos o que devemos evitar mas não conseguimos nos livrar do mal. “O querer o bem está em mim, mas não sou capaz de fazê-lo. Não faço o bem que quero, e sim o mal que não quero... Infeliz de mim! Quem me libertará deste corpo de morte? Sejam dadas graças a Deus, por meio de Jesus Cristo, nosso Senhor”.

O capítulo 8 inteiro é o coração da carta.

- 8,1-13. A vida no Espírito. Deus envia o Filho numa condição semelhante ao pecado (condição humana) para libertar os homens do mal. Cabe ao ser humano escolher viver segundo a carne (os instintos egoístas) ou segundo o Espírito. Quem aceita pela fé o Evangelho se deixa habitar pelo Espírito Santo para pertencer a Cristo. O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus nos dá uma vida nova segundo o plano divino.

- 8,14-17. Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Recebemos pelo batismo um espírito não de medo mas de filhos que nos faz clamar Abba! Pai! Em comunhão com Jesus participamos dos seus sofrimentos e participaremos da sua glória.

-8, 18-30. O Espírito nos inspira uma esperança na glória futura que nos ajuda a superar as dificuldades presentes. Toda a criação, associada ao ser humano, espera sua libertação. O ser humano, cada um de nós, geme interiormente esperando a realização do Reino de Deus. Às vezes nem sabemos o que está faltando, o que pedir... o Espírito vem em nosso auxílio intercedendo por nós para pedir ao Pai aquilo que nos convêm... e assim a oração se torna para nós como uma luz que ilumina nossa consciência para que compreendamos melhor os caminhos que nos levam à plena realização. Deus nos ama tanto que até do mal sabe obter um bem para nós, tudo concorre para o bem dos que são amados por Ele. Somos predestinados, chamados, conhecidos, escolhidos, glorificados. Predestinado no sentido aberto, quer dizer, sem anular a decisão livre de cada um. Predestinado no sentido de que Deus tem um plano de amor para cada um e nos chama para

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participar da sua glória. Mas a salvação precisa necessariamente da participação de cada homem para poder se efetivar. Esta participação acontece pela mão da fé.

- 8,31-39. “Se Deus está a nosso favor quem estará contra? Quem poderá nos separar do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Mas em tudo somos mais do que vencedores por meio daquele que nos amou... nada nos poderá separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor”.

- 9-11. (Capítulos 9, 10 e 11). Como antítese do capítulo anterior que revela a vida no espírito dos cristãos, estes capítulos tentam explicar a atitude dos israelitas que não aceitam Jesus como Messias. Paulo é israelita e analisa este fato contraditório. Eles têm as promessas, a Lei, o culto, os profetas, os patriarcas, as Escrituras... o próprio Cristo, na dimensão humana, nasceu do povo de Israel. Como é possível então que muitos tenham rejeitado Jesus? Paulo busca na história do povo da primeira aliança luz para responder a estas contradições. Detalha alguns exemplos e chega à conclusão de que buscaram a salvação através das obras e não através da fé. Paulo defende o zelo sincero dos judeus por Deus, mas considera que é pouco esclarecido. A salvação, porém, está ao alcance de todos: judeus e gregos. “É acreditando de coração que se obtém a justiça, e é confessando com a boca que se chega à salvação... Todo aquele que invoca o nome do Senhor será salvo”.

Para que possa existir fé alguém tem que anunciar, alguém que tenha sido enviado. Mas muitos não acreditaram nem mesmo nos mensageiros do Senhor. O povo da Nova Aliança precisa aprender do povo da Primeira Aliança a tomar cuidado para não fechar o coração e perder a oportunidade de salvação. A história de Israel ensina a toda a humanidade a encontrar os verdadeiros caminhos de Deus. No final das contas, depois de um raciocínio tão complexo, é bom não esquecer que a sabedoria divina é insondável. Em caso de dúvida não deixe de acreditar que “todas as coisas vêm dele, por meio dele e vão para ele. A ele pertence a glória para sempre. Amém”. Consciente Paulo das dificuldades que os cristãos romanos, a maioria não especialistas em Bíblia, devia ter para compreender sua argumentação, convida todos a confiar nos desígnios amorosos de Deus para a humanidade.

- 12,1-13,14. As atitudes cristãs que se derivam do Evangelho. O verdadeiro altar do cristianismo é a história, o sacerdote é cada cristão que se oferece a si mesmo para Deus por meio de uma vida evangélica, verdadeiro culto espiritual, sacrifício vivo e santo. A exemplo do próprio Jesus Cristo e em comunhão com Ele, animados pelo Espírito Santo para agradar a Deus Pai. Fazemos parte do Corpo de Cristo para viver na unidade de fé e de amor. Recebemos dons diversos para serem colocados em favor do bem comum.

O dom principal é o amor: na comunidade e com os de fora da comunidade. Amor que se traduz em alegria, esperança, paciência, oração, perseverança, solidariedade e comunhão fraterna. Amor que se traduz em perdão e bênção para os perseguidores, harmonia com todos, humildade e simplicidade de vida.

“Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem”.

Em relação à convivência social Paulo é muito prático: buscar o bem comum, colaborar com todos para viver em paz, espírito de cidadania e participação positiva na política. Respeito pelas autoridades, não dando motivos de queixa por maus comportamentos. Pagar os impostos demonstrando espírito de civismo e justiça social. Usar do bom senso. Nesta dimensão política da fé o melhor é ter bom senso e espírito solidário com os pobres. Pedro orienta também no mesmo sentido. Isso não significa defender o poder absoluto, como muito bem equilibra por outro lado o Apocalipse de João, quando o poder quer se colocar no lugar de Deus se tornando idolatria. Nos primeiros anos do cristianismo, quando os cristãos achavam que a Segunda Vinda do Senhor seria iminente, a orientação em relação ao poder público é de colaborar pelo bem comum, respeitar a convivência e não provocar as autoridades chamando a atenção. Outro caso é quando se iniciaram

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as perseguições com Nero e, depois, com Domiciano. Compreendendo a história como um tempo mais longo e sofrendo as conseqüências da tirania do poder, a Igreja, sem deixar de lado a orientação de Pedro e de Paulo em relação ao poder político, completa a doutrina com outros escritos bíblicos posteriores (Evangelhos, Apocalipse, etc.).

Enquanto ao princípio fundamental da moral cristã Paulo coincide com os textos dos evangelhos naquilo que se refere à essência da Lei, segundo as palavras de Jesus: “Ame ao seu próximo como a si mesmo”.

- 14,1-15,13. Na vida comunitária buscar sempre o bem dos fracos na fé ou por outras circunstâncias. Não julgar o irmão, não escandalizar. Parte do caso concreto dos alimentos sacrificados aos ídolos: o cristão pode comer esses alimentos? Por poder, pode. Mas será que é conveniente? É melhor agir de forma a não escandalizar os irmãos fracos na fé. Nós podemos interpretar de forma análoga para outros casos da nossa história: aprender a ter discernimento para distinguir o que é permitido e que é conveniente, pensando sempre na edificação da fé da comunidade.

“Que o Deus da esperança encha vocês de completa alegria e paz na fé, para que vocês transbordem de esperança, pela força do Espírito Santo”.

- 15,14-16,27. Conclusão e saudações finais. Paulo exerce o seu sacerdócio por meio do ministério da evangelização, anunciando o Evangelho aos pagãos. Realiza este ministério por vocação de Jesus, na força do Espírito Santo e para realizar a obra do Pai. No desempenho desta missão quer ir a Roma, não para construir em alicerces já colocados por outros, mas para de Roma poder se dirigir até Espanha para evangelizar também lá. Recomendações e saudações a muitos cristãos. Chama a atenção que se cita a Febe, diaconisa da igreja de Cencréia. Pede para ter cuidado com os judaizantes.

A doxologia final é solene: “A Deus, por meio de Jesus Cristo, seja dada a glória para sempre. Amém!”

Não deixar de ler: 1,1-15; 1,16-17; 4,18-25; 5,1-11; 6,12-14; 7,14-25; 8,1-39; 10,8-15; 11,33-36; 12,1-21; 13,8-10; 15,1-13; 15,16; 16,25-27.

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4. CARTAS DO CATIVEIRO. Filipenses, Colossenses, Efésios e Filemom.

Chamam-se cartas do cativeiro porque a maioria dos especialistas considera que foram escritas em Roma, na semi-liberdade que Paulo viveu lá entre os anos 61 a 63. Vivia em casa alugada com guardas que garantiam a presença dele no julgamento que iria acontecer perante o tribunal do imperador, dado que tinha apelado ao César para julgar o seu caso. Alguns consideram que, talvez, a Carta aos Filipenses poderia ter sido escrita em Éfeso se é que lá também tivesse passado algum tempo na prisão. Neste caso teria sido escrita no ano 56. Paulo viveu em Éfeso do ano 54 ao 57 e, tal vez, passou algum tempo na prisão. É hipótese de alguns. Outros, diferenciando as mensagens destas cartas em dois blocos: 1) Filipenses e 2) Colossenses, Efésios e Filemon, afirmam que, apesar da diversidade do conteúdo, todas estas cartas foram escritas em Roma na primeira prisão de Paulo lá.

Em relação ao conteúdo a Carta aos Filipenses se assemelha mais às chamadas “grandes cartas” (Gálatas, 1 e 2 Coríntios, Romanos) porque falam mais das relações do apóstolo com as comunidades. Já as cartas aos Colossenses e aos Efésios revelam uma teologia paulina mais avançada que as “grandes cartas”. Em quaisquer dos casos importa para nós a mensagem espiritual que nos comunica para alimentar nossa vida cristã.

4.1. Carta aos Filipenses.A cidade de Filipos tinha sido fundada por Filipo de Macedônia, pai de Alexandre o Grande

situada ao norte da Grécia. No ano 42 antes de Cristo se converteu em colônia romana e a sua população era composta, maiormente, por militares romanos reformados (aposentados). A administração e a cultura eram tipicamente romanas. Paulo fundou esta comunidade na segunda viagem missionária no ano 50 (Atos 16, 12). Faziam parte desta missão Paulo, Silas e Lucas entre outros. Os primeiros dias foram difíceis pois Paulo e Silas foram açoitados, passando a noite na prisão. Mas não desanimara e conseguiram reunir uma comunidade numerosa e de muito fervor cristão. Se reuniam na casa de Lídia, comerciante de púrpura. É a única comunidade da qual Paulo aceitou ajuda material para sua manutenção pessoal. As relações do apóstolo com esta Igreja foram muito cordiais e amigáveis. Os cristãos de Filipos conseguiram conquistar plenamente o coração e a confiança de Paulo, quem não esconde a simpatia que sente por eles.

Não podia faltar, infelizmente, o problema causado pelos cristãos judaizantes, que perseguiu a missão de Paulo até o fim da sua vida. Problema que a dinâmica da própria história resolveu quando a guerra judaica contra Roma estourou trazendo como conseqüência trágica e sofrida da destruição do templo de Jerusalém e a dispersão total do povo de Israel. Isto aconteceu no ano 70 e acabou de vez com aquele problema em relação à circuncisão que preocupou tanto aos primeiros cristãos... É claro que também influenciou o fato de que os cristãos procedentes do paganismo se tornavam aos poucos maioria no seio da Igreja. Mas os fatos externos, quer dizer, a destruição de Jerusalém e do templo, foram decisivos. Só que quando isso acontece Paulo já tinha sido martirizado em Roma. È depois da sua morte que as teses dele deixaram de ser questionadas entre os cristãos e foram aceitas como a posição oficial do cristianismo.

Apesar de estar prisioneiro por Cristo Paulo não quer transmitir tristeza aos cristãos. Tudo pelo contrário, os anima a estar alegres em toda circunstância. É uma carta cujo objetivo principal é animar os cristãos a progredirem no caminho do Evangelho, se deixando conduzir pelo Espírito rumo à meta, que é o Pai, a exemplo de Jesus, que sendo Deus se humilhou para nos salvar e nos levar ao Reino prometido. As atitudes cristãs, portanto, superam as perspectivas meramente materiais para buscar o plano da fé cultivando atitudes renovadas em coerência com o homem novo reconciliado com Deus, consigo mesmo, com a natureza e com os outros. Esta reconciliação vem de Deus e se constrói por meio do amor.

Paulo quer agradecer aos filipenses ajuda recebida por eles, demonstra a alegria que sente por uma comunidade que está progredindo na vida da fé, adverte sobre os perigos da falsa doutrina dos judaizantes (antepondo em importância a Lei de Moisés sobre o Evangelho de Jesus), adverte

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também sobre a tentação de querer aparecer acima dos outros lembrando da cruz de Cristo e convida também a deixar crescer no coração cristão a alegre esperança das sementes do Evangelho que já estão produzindo frutos de salvação, sinais da glória que nos será dada graças a Jesus, nosso Senhor, e que alcançamos por meio da fé. Não deixa de insistir nas atitudes cristãs, principalmente o amor fraterno, o fruto mais importante da fé e prova de que esta é verdadeira. Mas também lembra da necessidade da oração (súplica e ação de graças) e de buscarem todos a unidade no Espírito, procurando a comunhão com Cristo, que é o valor supremo, perante o qual tudo é lixo.

Esquema da Carta:- 1,1-11. Endereço a uma comunidade já organizada (dirigentes e diáconos). Agradecimento a

Deus pelos cristãos de Filipos. Lembra, com jeito, que ninguém alcançou a plenitude: “Deus, que começou em vocês esse bom trabalho, vai continuá-lo até que seja concluído no dia de Jesus Cristo”. Insistindo na necessidade de compreender a fé como processo, caminhada, progressão diz ainda: “Que o amor de vocês cresça cada vez mais em perspicácia e sensibilidade em todas as coisas”.

- 1,12-26. A prisão de Paulo também é oportunidade de evangelização. As motivações dos cristãos nem sempre são plenamente evangélicas, existe mistura de sinceridade e de egoísmo (talvez inconsciente). Deus sabe aproveitar tudo para o bem. “Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro”. Consciente dos riscos por causa do Evangelho Paulo não tem medo porque sabe que o Senhor está ao seu lado.

- 1,27-2,18. Atitudes da vida cristã: Anima a viver segundo os sentimentos de Jesus. Vida de comunhão fraterna inspirada no exemplo de Cristo e na ação do Espírito: “tenham uma aspiração, um só amor, uma só alma, um só pensamento”. Convida a buscar a perfeição dos filhos/as de Deus, a exemplo do Filho, obedecendo à Palavra e oferecendo a própria vida como sacrifício agradável ao Senhor. Dessa forma, o ministério apostólico e a vida dos fiéis se tornam uma só oferta da fé. A liturgia (Palavra e Sacrifício) se faz vida e a vida é a melhor liturgia, o culto agradável a Deus Pai. Jesus se faz presente na vida dos fiéis e os ministérios (a exemplo do apostolado de Paulo) se orientam à edificação da comunidade, para a glória do Pai e alegria dos cristãos.

O hino cristológico de 2, 6-11 é de suma importância pelo seu significado teológico-espiritual e seu uso na liturgia, na pastoral e na catequese. Expressão do querigma (páscoa de Jesus: morte e ressurreição), do qual parte sempre Paulo nas suas argumentações teológico-pastorais. É uma imagem que usa a linguagem do espaço (acima, abaixo, acima) à semelhança do Prólogo de João: O Filho de Deus, situado junto do Pai, assume a humanidade (mistério da Encarnação) renunciando na aparência à categoria divina para descer junto à humanidade se humilhando até à morte e morte de cruz. Por isso O Pai o exaltou elevando-o acima de tudo. Torna-se assim para nós princípio de salvação. Cristo Jesus é assim modelo de fraternidade porque renuncia a tudo para nos salvar, se colocando a serviço de todos por amor. Jesus é o Senhor de toda a criação nos três níveis da compreensão cósmica da época: céu, terra e abismo. O senhorio dele revela-se não do jeito humano, através da força e do poder aparente, mas sim segundo a inspiração de Isaias: o Servo Sofredor que se humilha e se entrega para interceder em favor de seus irmãos, por amor a eles. O Filho de Deus (Segunda Pessoa da Trindade Santa), ao se fazer homem, não deixa de ser Deus. Quando morre e “volta” à direita do Pai (Ressurreição e Ascensão) não deixa de ser homem. Vivendo na terra na sua existência humana não se afasta de Deus, embora não aparece na história como Deus e quando, realizada sua missão em favor da humanidade, volta para o Pai, não se afasta dos seus irmãos e irmãs, permanecendo junto a eles até o final dos tempos, embora de forma espiritual, não aparecendo entre nós humanamente. Confessar o seu nome santo e adorar a sua pessoa divina representa para o cristão, de acordo com este texto, assumir as suas atitudes de servo e de serva para realizar a própria existência de cada um em obediência ao plano divino se colocando ao serviço do próximo por amor. Assim Cristo se faz presente nos seus seguidores para levar a consolação e a paz a todos os homens. Esta é a obra do Espírito em nós para a glória de Deus Pai.

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- 2, 19-30. Paulo valoriza a participação dos seus colaboradores na obra da evangelização e pede à comunidade que saiba reconhecer e acolher com amor aos cristãos que servem à Igreja com dedicação.

- 3,1-21. Advertência em relação aos cristãos judaizantes... A carta parecia toda tão bonitinha até este momento! É o problema de sempre que martirizou Paulo desde dentro da própria Igreja: irmãos na fé que passam pelas comunidades fundadas e orientadas pelo grupo de Paulo e geram confusão querendo impor a circuncisão, junto com as obrigações inerentes, aos cristãos de origem pagã. Mas também este problema que atrapalha a paz do apóstolo e das igrejas fez produzir para o nosso bem palavras preciosas para a nossa fé. “Por causa de Cristo, porém, tudo o que eu considerava como lucro, agora considero como perda”. Paulo se define a si mesmo como alguém que está a caminho, em processo, peregrino da fé, amadurecendo a cada dia no seguimento de Jesus, se deixando aperfeiçoar e santificar pelo Espírito. É o que denominamos segunda conversão, no sentido de que a graça divina vai-nos conduzindo progressivamente, na medida que cooperamos com ela, para a plenitude da vida no Espírito, realizando (atualizando) a mensagem do Evangelho em nós. No final da nossa caminhada nesta terra ainda não alcançamos a plenitude da maturidade cristã e é o próprio Filho quem, segundo a nossa esperança, nos introduzirá purificados na presença do Pai. Deus, por causa do Filho, nos acolherá na sua comunhão plena no amor.

Não são só os judaizantes o grupo que preocupa a Paulo e prejudica a comunidade. São também aqueles que pensam só nas coisas materiais querendo viver segundo os instintos egoístas e serem chamando de cristãos. Talvez até se justificando na mensagem do próprio apóstolo que proclama a liberdade dos filhos/as de Deus. A verdadeira liberdade cristã nada tem a ver com a libertinagem, pois se orienta, pela ação do Espírito, à obediência ao Evangelho para a própria santificação, antecipando aqui na terra as realidades que esperamos viver no céu pela salvação de Jesus Cristo.

- 4,1-23. Conselhos finais e despedida. “Fiquem alegres no Senhor, repito, fiquem alegres!”. Viver em comunhão com Deus por meio da oração constante, oração de súplica e de ação de graças. Vivam em.paz, não se inquietem com nada. “A paz de Deus, que ultrapassa toda compreensão, guardará em Jesus Cristo os corações e pensamentos de vocês”. Paulo, novamente, se coloca como exemplo de vida cristã: ele sabe viver o evangelho em toda circunstância, na abundância e na penúria. “Tudo posso naquele que me fortalece”.

Não deixar de ler: 1,1-11; 2,1-1; 3,7-14; 4,4-9; 4,12-14; 4,21-23.

4.2. Carta aos Colossenses.Paulo não fundou diretamente esta comunidade, mas foi Epafras, seu colaborador, que tinha se

convertido ao cristianismo enquanto Paulo estava em Éfeso, na terceira viagem missionária. Os cristãos desta cidade não conheciam pessoalmente o apóstolo, sentiam porém, uma grande admiração por ele. A cidade de Colossas achava-se situada a 180 km. de Éfeso, a grande capital do litoral da Ásia Menor (atual Turquia). Entre os ajudantes de Paulo vários são de Colossas: Tíquico, Epafras e Onésimo. Estes também tinham realizado tarefas missionárias nas cidades vizinhas de Éfeso como Laodiceia e Hierápolis. A comunidade se reunia nas casas de Ninfas e de Arquipo. Esta carta está muito ligada pelo conteúdo à Carta aos Efésios. Ambas expressam a teologia talvez mais amadurecida de Paulo e são de grande valor espiritual para a Igreja.

Sendo uma comunidade de origem pagã não é de se estranhar que precisassem de formação doutrinal pois a tendência natural misturar a nova fé com crenças dos antepassados próprias daquela região. Epafras tinha informado a Paulo sobre essas crenças que poderiam atrapalhar a pureza da mensagem evangélica. Aqueles povos concediam grande valor às potências celestes, forças espirituais e cósmicas que, segundo as tradições deles, influenciavam e interferiam na existência dos humanos. Seres intermediários entre os deuses e a terra que iriam determinar o destino da vida

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humana. Não muito diferente a como acontece hoje na mente de muitas pessoas (Horóscopo, cartomancia, búzios, etc.) Certas práticas rituais realizadas nos lugares e datas estabelecidos por esses seres poderosos poderiam favorecer a história das pessoas trazendo saúde, prosperidade, etc. Ou, também, poderiam atrapalhar por meio de possíveis desgraças de todo tipo. Paulo, no estilo próprio dele, partindo sempre do querigma: morte e ressurreição de Cristo que se atualiza em cada cristão também pelo batismo e a fé de cada dia, afirma que só Jesus é o Senhor e o Intercessor ou Intermediário verdadeiro. Só nele se encontra a salvação. Ele é o Senhor de tudo quanto existe de criado por Deus: no céu, na terra e no abismo. Ainda mais: Deus Pai criou tudo por Ele e para Ele, de forma que Cristo é a medida e finalidade de toda a criação (“tudo foi feito por Ele e para Ele”). Jesus Cristo não é só cabeça da Igreja mas também do universo inteiro, do visível e do invisível, dos corpos materiais e dos seres espirituais criados por Deus.

A compreensão do valor universal de Cristo facilita a compreensão do plano divino de reconciliar todos e tudo na harmonia ferida pelo inimigo por meio do pecado e da morte. Se o pecado leva para a morte a reconciliação que alcançamos em Jesus produz a vida cujo fruto principal é o amor. O problema que Paulo encontra na comunidade de Colossas não é, como no caso dos judaizantes, exterior à fé em Jesus Cristo, porque estes valorizavam mais a Lei de Moisés (circuncisão) do que o ministério de Jesus que se culmina na sua páscoa. Em Colossas o problema não é externo à fé mas inerente a ela e, portanto, mais séria. Agora se trata da definição doutrinal da mensagem, da sua pureza. Não pode se aceitar como real a influência de forças espirituais ocultas na vida humana, junto com a fé cristã, porque são essencialmente incompatíveis. Quem aceita Jesus como Senhor Salvador define nele o seu ser humano e não tem como acreditar na influência ou interferência de outros supostos seres ou forças espirituais escondidas. A mensagem do Evangelho é imensamente superior a quaisquer crença pagã ou religião ocultista ou animista.

Paulo estava prisioneiro quando escreveu esta carta. Mas onde? Muitos acreditam que as cartas do cativeiro, entre as quais a Carta aos Colossenses foi escrita em Roma, no primeiro período de prisão domiciliar. Alguns acham que teria sido na hipotética prisão em Éfeso, na longa estância que passou lá na terceira viagem missionária. Ainda outros consideram que poderia ter sido na prisão de Cesaréia, antes da viagem a Roma. Estas diferentes possibilidades não mudam o significado da Carta para nós. A maioria concede maior probabilidade à hipótese de que foi escrita em Roma entre os anos 61 e 63.

Esquema da Carta: - 1,1-12. Introdução e saudação. Agradecimento a Deus Pai por causa da comunidade de

Colossas. O Evangelho cresce em extensão (chegando cada vez a novas pessoas) e em intensidade (conduzindo cada cristão para plenitude da vida da fé). É o Espírito o animador da vida cristã, por meio da Palavra do Evangelho, reproduzindo em nós o amor de Cristo, fazendo acontecer o projeto do Pai aqui na terra, enquanto esperamos a sua plena realização. O ministro ora em favor dos irmãos/ãs de fé, para que obtenham de Deus o discernimento e a compreensão cada vez maior da vontade divina. Esta compreensão ou conhecimento das coisas divinas se manifesta por meio de uma vida que se dedica a fazer o bem ao próximo, dando graças ao Senhor com alegria.

- 1,13-2,5. Deus Pai tem um plano de salvação que realiza em nosso favor por meio de Jesus, único intercessor e mediador. Os pagãos também são chamados a participar da vida divina de santidade porque Cristo reconciliou todos com o Pai. É preciso permanecer fieis na esperança do Evangelho, do qual Paulo é ministro.

O hino cristológico traz uma mensagem nova porque apresenta o Filho de Deus como o Senhor não só da humanidade, mas também de tudo quanto foi criado. “Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas, e tudo nele subsiste”. Ele é também cabeça do corpo, que é a Igreja. Assim a comunidade cristã está intimamente associada a Cristo, inseparavelmente integrada a Ele e, no Espírito Santo, cumpre o ministério da evangelização, fazendo presente em todos os povos a Jesus Cristo Redentor. Ele traz a paz ao mundo inteiro e a todas as coisas pelo seu sangue derramado na cruz. Não existe, portanto, outra criatura terrestre ou celeste, material ou

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espiritual que possa anular o plano da salvação em nosso favor porque o Filho amado está acima de todos e de tudo e age constantemente em favor dos seres humanos, irmãos e irmãs do Senhor pela fé.

Paulo é ministro (servidor) deste Evangelho e, à exemplo de Cristo, oferece sua vida em favor do plano divino da salvação, que se oferece a todos os homens. “Agora eu me alegro de sofrer por vocês, pois vou completando em minha carne o que falta nas tribulações de Cristo, a favor do seu corpo, que é a Igreja”. A vocação do apóstolo consiste em anunciar a realização da Palavra de Deus, o mistério escondido e que agora se revela aos cristãos. Cristo age de forma poderosa na vida de Paulo para que possa realizar sua missão. O culto que Jesus oferece ao Pai por meio de uma vida totalmente obediente ao seu plano de amor em favor da humanidade e que encontra seu momento culminante na cruz e ressurreição, continua por meio da Igreja e dos seus ministros (como Paulo) que colaboram ardorosamente na obra da salvação. Será que falta algo nas tribulações de Cristo? Logicamente que não. Mas o próprio Cristo quer que nós, a Igreja, possamos participar também do seu ministério de reconciliação. Mesmo que o Espírito não é citado neste texto explicitamente é o grande agente desta ação eclesial, tecendo a comunhão espiritual entre Cristo e a sua Igreja, animando na comunidade de Jesus a Palavra que se faz vida.

2,6-3,4. Vida nova em Cristo. Quem aceita Jesus como Senhor Salvador nele edifica a sua história. “É em Cristo que habita, em forma corporal, toda a divindade”. Pelo batismo, o mistério pascal de Cristo se realiza em nós: mortos com Ele para o pecado, ressuscitados também com Ele para uma vida espiritual. Ninguém pode julgar o cristão pelos alimentos nem pelos dias festivos (sábado, etc.). Essas coisas carecem de importância porque para nós a realidade é Cristo. Ressuscitados com Cristo procuremos as coisas do alto pois nossa vida está escondida com Cristo em Deus.

- 3,5-4-6. Atitudes cristãs que se derivam do Evangelho. De novo Paulo parte do querigma segundo o esquema batismal da morte e ressurreição. Fazer morrer tudo quanto afasta de Deus. “Como escolhidos de Deus, santos e amados, vistam-se de sentimentos de compaixão, bondade, humildade, mansidão, paciência”. Carregar uns o peso dos outros, se perdoar mutuamente, praticar o amor, que é o laço da perfeição. Que a paz de Cristo reine em nossos corações. Não esquecer de agradecer. “Que a Palavra de Cristo permaneça em vocês com toda a sua riqueza”.

Em relação a Deus: oração de agradecimento e louvor. Fazer tudo em nome do Senhor. Em relação aos outros: perdão, ajuda, amor, acolhida, consolação, conselho, ternura. Em relação a si mesmo: abandonar os instintos egoístas e se deixar conduzir pela Palavra; revestir-se do homem novo à imagem do Criador em comunhão com Cristo.

Nos exemplos práticos (3,18-4,6) precisamos lembrar que se trata do terceiro nível da mensagem paulina, aquela que está mais impregnada da mentalidade da época. Nos casos concretos não deveríamos generalizar muito pois às vezes o apóstolo responde a assuntos do momento que busca resolver um problema menor e localizado. Em quaisquer caso Paulo orienta a comunidade a construir a paz na harmonia da justiça, pedindo que cada um faça aquilo que está ao alcance das suas próprias possibilidades.

Paulo ora pela comunidade e pede à comunidade que ore por ele. É a intercessão humana, legítima, uns em favor dos outros, característica da comunhão dos santos, pela qual existem laços profundos de fé e de amor que se ligam os corações dos fiéis para formar a unidade do Corpo de Cristo pelo Espírito. É claro que o Intercessor é Cristo Jesus. Mas como parte que somos do seu Corpo também somos chamados a interceder uns pelos outros orando ao Pai. Nem a morte pode quebrar a comunhão espiritual entre os cristãos. Daí que os que já faleceram podem também interceder por nós dado que fazemos parte da mesma comunhão.

Estes conselhos mais práticos onde se tratam assuntos mais de convivência doméstica e relações sociais, a preocupação de Paulo é em relação ao testemunho cristão perante os não cristãos. Os seguidores de Jesus precisam dar bom exemplo de vida amorosa e de cidadania. Não quer dizer que Paulo aceita ou justifica a escravidão. Precisamente ele enriquece a doutrina do Novo Testamento a respeito desse assunto por meio da Carta a Filemon, com considerações muito interessantes que condenam, em nome do Evangelho, a prática da escravidão como contrária aos ideais evangélicos.

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Mas quando a sociedade é maiormente injusta e não existem elementos humanos para superar essa situação o apóstolo não pode empurrar os escravos, que eram muitos na Igreja Primitiva, por um caminho que não tinha saída naquele momento. Isso não significa resignação ou aceitação passiva de uma situação indigna humanamente. Estes conselhos não deixam de ser pequenas dicas práticas carregadas de bom senso, de acordo com a mentalidade e a situação do momento, para ajudar os cristãos a desenvolverem a sua fé da forma mais positiva possível para eles.

- 4,7-18. Saudações finais. Paulo cita alguns colaboradores, alguns cristãos de origem judeu e outros de origem pagão. Tíquico e Onésimo são do grupo de Colossas. Marcos, por causa do qual Paulo tinha se separado de Barnabé no início da segunda viagem missionária, está ao lado do apóstolo como sinal de que já tinha acontecido a reconciliação e de que Paulo também sabia mudar de atitude... amaciando seu jeito e buscando a própria santificação de forma progressiva (a segunda conversão). Lucas, o querido médico, também está junto dele. Quer dizer, Paulo conta com um grupo altamente qualificado na missão evangelizadora. Entre a primeira e a terceira viagem missionárias soube chamar e integrar companheiros de valor mais que comprovado que enriqueceram o trabalho em favor do Reino de Deus. É bom lembrar que muitos destes colaboradores serão as lideranças da seguinte geração eclesial, quando os discípulos que conviveram humanamente com Jesus de Nazaré já haviam morto na sua maioria (pelos anos 70). Paulo treinou e preparou este grupo para assumir a direção da Igreja quando faltassem os apóstolos da primeira hora da Igreja.

“Lembrem-se de que estou preso! A graça esteja com vocês”.

Não deixar de ler: 1,1-8; 1,13-20; 1,24-29; 2,16-19; 3,1-17; 4,2-6.

4.3. Carta aos Efésios.Éfeso era a capital da Ásia Menor (atual Turquia), importante centro de comunicações

(comércio, exércitos, cultura, etc.) entre o Império do Oriente e o de Ocidente. Paulo passou pela primeira vez na sua segunda viagem missionária, mas brevemente (no ano 52). No ano 54, já na terceira viagem missionária, passou de novo por Éfeso ficando quase 3 anos. Consciente da importância desta cidade reuniu lá um núcleo de colaboradores que evangelizaram e consolidaram as comunidades cristãs de toda aquela região, incluindo a Galácia. De Éfeso manteve contatos também com as comunidades da Macedônia e da Grécia (Filipos, Corinto, etc.). É por isso muito provável que esta Carta tenha sido dirigida também a todas as comunidades vizinhas de Éfeso.

Trata-se de uma reflexão muito bem elaborada (esta e a Carta aos Colossenses parecem as melhores trabalhadas em quanto ao conteúdo e à forma). Uma das questões principais se refere à unidade da Igreja. O plano de Deus Pai realizado em Jesus Cristo se efetiva hoje por meio da Igreja, chamada a reunir em Cristo a humanidade para ser conduzida até Deus. Israelitas e gentios são convocados na mesma comunhão formando uma família reconciliada, sinal da nova humanidade. Deus chamou Paulo, membro desta Igreja, para ser ministro do evangelho entre os pagãos. Um só Deus e Pai, um só Senhor, uma só fé, uma Igreja. Dentro desta unidade cada cristão recebe dons espirituais a serviço da construção da comunidade. Os fiéis, membros da mesma Igreja, pela graça do batismo são chamados a uma vida nova, a exemplo de Cristo, como testemunhas da santidade que se deriva do Evangelho. A Igreja é esposa, corpo e edifício de Cristo. Ele é o Senhor do universo, o centro e ápice do projeto do Pai. A Igreja é um mistério de fé e de amor que nasce de Deus para servir à humanidade levando para o mundo o Evangelho da salvação.

Parece que o problema provocado pelos cristãos judaizantes está praticamente superado (como na Carta aos Colossenses) e Paulo se concentra, mais livre de polêmicas internas, no mistério da Igreja com o objetivo de oferecer aos cristãos de origem pagão uma síntese da fé. Os elementos de caráter pessoal referentes aos destinatários ou aos colaboradores de Paulo que aparecem em cartas

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anteriores não estão presentes no escrito, porque ficaram na responsabilidade da transmissão oral dos portadores da missiva. (Tíquico). As semelhanças e conexões teológico-literárias com a Carta aos Colossenses são notórias, a tal ponto que reforçam a hipótese de que foram escritas na mesma época e levadas, provavelmente, juntas pelos mesmos mensageiros (Tíquico e Onésimo).

Esquema da Carta:- 1,1-3,21. Saudação. O mistério de Cristo e da Igreja. Exposição de inspiração litúrgica. Cântico de Louvor (1,3-14).+ somos abençoados pelo Pai por causa de Cristo (1,3).+ somos escolhidos para sermos filhos adotivos (1,4-6).+ somos redimidos e perdoados pelo sangue de Cristo (1,7).+ somos imersos na sabedoria divina (1,8-10a.).+ somos chamados a fazer parte de Cristo: israelitas e pagãos. (1,10b-14).

Para o louvor da sua glória (o sentido último da vida humana é louvar a Deus; só a Deus!).Por meio da Palavra – Evangelho.Por meio do Espírito Santo. (Batismo: marcados com o selo do Espírito Prometido).

Paulo elogia a fé e o amor fraterno dos fiéis. Agradece a Deus por eles e pede para eles a graça de conhecer a Deus profundamente para compreender a esperança para a qual fomos chamados. Esperança que foi revelada pela páscoa de Cristo, Senhor de tudo e cabeça da Igreja, que é seu o seu corpo.

Os gentios estavam longe de Deus (Segundo iluminação do profeta Isaias em 57,19). “De fato vocês foram salvos pela graça, por meio da fé (2,8). Isto é dom de Deus! “Mas agora, em Jesus Cristo, vocês que estavam longe foram trazidos para perto, graças ao sangue de Cristo. Cristo é a nossa paz!”. Igreja como edifício: os cristãos de origem pagão também fazer parte da edificação de Cristo, que é a Igreja, e que tem como fundamento os apóstolos e profetas. Os cristãos são morada de Deus por meio do Espírito.

Lembrança do ministério de Paulo em favor dos pagãos. A prisão do apóstolo revela que a vida cristã é um sacrifício que se oferece ao Pai como um culto agradável. O ministério em favor dos irmãos é atualizar o ministério de Jesus Cristo que nos reconcilia com Deus. A comunidade é santificada pelo ministério apostólico e o apóstolo é santificado pelo crescimento na fé e no amor fraterno da comunidade.

Oração de intercessão de Paulo em favor dos cristãos. “Que ele faça Cristo habitar no coração de vocês pela fé, enraizados e alicerçados no amor...”.

- 4,1-6,20. Atitudes do cristão na comunidade: unidade na diversidade dos dons, carismas e ministérios. Convite a conservar a unidade do Espírito. “Uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos”. Cada um recebe dons para servir ao bem comum. A atitude principal é o amor fraterno, que nos conduz até Cristo Cabeça. “Não entristeçam o Espírito”. Evitar o mal, o pecado, para imitar a Cristo no amor, que é a oferenda perfeita que agrada a Deus. “Juntos recitem salmos, hinos e cânticos inspirados, cantando e louvando ao Senhor de todo coração. Agradeçam sempre a Deus Pai por todas as coisas, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo”. Conselhos domésticos, no terceiro nível da mensagem paulina, referente aos costumes da época, visando a harmonia e o testemunho positivo perante o povo pagão, assim como também visando a paz no coração dos cristãos na circunstância que cada um está vivendo. O matrimônio cristão simboliza o mistério da unidade profunda entre Cristo e a Igreja. Naquela época a mulher estava submetida por inteiro ao marido. Era a realidade da época. Paulo não quer justificar essa prática. Simplesmente ele quer dizer que assim com a mulher obedecia ao marido também a Igreja deve obedecer a Jesus. Isto é válido para nós hoje: quer dizer, os cristãos somos chamados a obedecer a Jesus Cristo para chegar ao Pai. De forma semelhante em relação a harmonia entre pais e filhos.

É muito interessante a observação de Paulo quando compara a vida cristã como uma luta (6,10). Mas não se trata de uma luta contra ninguém, como se fosse luta entre pessoas. A luta cristã é contra os valores que dominam a história humana desviando-a do projeto divino. Valores contra

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evangélicos que agem também dentro de nós. Daí que se refere a uma luta espiritual que se inicia dentro da consciência de cada cristão.

De novo, com em tantos outros momentos que encontramos em outras cartas pede intercessão. Orar uns pelos outros. Ele pede intercessão em favor do anúncio do Evangelho.

- 6,21-24. Despedida. É breve porque o portador da carta, Tíquico, fará o intercâmbio dos detalhes pessoais de ambos os lados oralmente.

Não deixar de ler: 1,1-14; 1,15-22; 2,13-21; 3,14-20; 4,1-7; 5,17-20; 6,18-20.

4.4. Carta a Filemon.Filemon era um homem rico de Colossas que Paulo converteu ao cristianismo e o tornou seu

colaborador. A Carta é um breve bilhete destinado a anunciar e preparar o retorno de um escravo fugitivo: Onésimo. O mais provável é que este bilhete fosse enviado junto com a Carta aos Colossenses dado que esta foi levada por Tíquico e o próprio Onésimo. Parece que este fugiu antigamente de Filemon, seu patrão, não sabemos com certeza o motivo. O caso é que Filemon se converteu a Cristo pela pregação de Paulo. Onésimo se refugiou entre os cristãos e se encontrou também com Paulo, provavelmente em Roma, aceitando também a fé cristã e colaborando com Paulo. Coisas misteriosas da vida! A Carta prepara o re-encontro entre os dois. Quando se separaram eram pagãos. Agora os dois participam da mesma fé em Cristo Jesus. A relação é totalmente diferente. Antes eram patrão e escravo, agora são irmãos na fé e no amor evangélicos. A salvação de Cristo realiza, nas pessoas que se deixam impregnar da sua mensagem, o milagre da transformação dos corações que leva a mudar as relações sociais. Eis nesta carta que Paulo expõe a tese cristã sobre a escravidão: em Jesus Cristo não existe escravo nem livre, pois somos todos irmãos uns dos outros, filhos do mesmo Pai que está no céu.

Esquema da Carta:1,1-3. Saudação.1,4-6. A fé e o amor de Filemon. Paulo agradece a Deus pelo testemunho deste cristão. 1,7-22. Paulo intercede em favor de Onésimo. Este colabora com Paulo na obra da

evangelização. Em Jesus Cristo todos somos irmãos. - 1,23-25. Despedida. Paulo está junto aos mesmos colaboradores que aparecem na Carta aos

Colossenses. Paulo espera ser colocado em liberdade e deseja passar por Colossas, onde se hospedará na casa de Filemon.

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5. CARTAS PASTORAIS. 1Timóteo, Tito e 2Timóteo.

Chamam-se cartas pastorais porque não estão dirigidas a uma comunidade mas a um dirigente ou pastor da comunidade. O objetivo destas cartas é orientar o pastor no seu ministério para que possa exercer melhor a sua missão pelo bem da Igreja. Timóteo é bem conhecido pelo Livro dos Atos dos Apóstolos. Era filho de mulher israelita e pai pagão. Foi circuncidado por iniciativa de Paulo (Atos 16,3). Seu nome aparece nos cabeçalhos de várias cartas: 1 e 2 Tessalonicences, 2 Coríntios, Colossenses, Filemon, Filipenses). Era o discípulo predileto de Paulo, acompanhando desde jovem ao apóstolo na sua missão evangelizadora. . O nome de Tito não aparece no Livro dos Atos. Sabemos mais dele pelo texto de Gálatas 2,1-5. Era grego, incircunciso. A Segunda Carta aos Coríntios fala dele várias vezes pois conseguiu resolver muitos problemas lá, reconciliando a comunidade com Paulo. Ele próprio foi escolhido para organizar a coleta em Corinto.

5.1. Primeira Carta a Timóteo.Timóteo nasceu em Listra, na Ásia Menor (hoje Turquia). Quando Paulo passou por Listra na

segunda viagem missionária, chamou Timóteo como colaborador dele. A Carta deve ter sido escrita entre os anos 64 e 65. Timóteo era o responsável pela comunidade de Éfeso. Ainda que as comunidades não tinham, logicamente, a estrutura hierárquica e ministerial de hoje podemos dizer que existe uma organização com responsáveis, ministérios “ordenados” pela imposição das mãos. Encontramos já os ministérios do bispo, do presbítero e do diácono. Definem-se também as funções principais (fundamentais) do ministro ordenado: a Palavra (1,3-20); a Liturgia (2,1-15) e a Caridade ou Pastoral (3,1-6,2).

Esquema da Carta:- 1,1-2. Saudação. Paulo, apóstolo, a Timóteo, verdadeiro filho na fé. - 1,3-20. Ministério da Palavra. Tomar cuidado com a mensagem cristã. Era costume das escolas

filosóficas se perder em discussões estéreis, debates sobre teorias e autores da época. A mensagem cristã se orienta para a prática da vida, o amadurecimento do amor fraterno. A essência desta mensagem consiste em aceitar Jesus Cristo como princípio de salvação: “Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores”. A mensagem do Evangelho se destina a trazer a vida verdadeira aos homens por meio do amor de Cristo... e assim Deus Pai é glorificado.

- 2,1-15. Ministério da Liturgia. Os cristãos devem orar em favor de todos os homens pois realizam uma função sacerdotal de intercessão, em comunhão com o único e supremo Intercessor que é Jesus Cristo. “Deus quer que todos os homens sejam salvos e chegue ao conhecimento da verdade”. Detalha depois aspectos menores de prática diária... coisas que se referem ao terceiro nível da mensagem que não devemos nem podemos entender ao pé da letra. Sem dúvida que Paulo e a maioria dos discípulos da Igreja Primitiva ainda não tinham se libertado de muitos preconceitos da mentalidade patriarcal judaica. Jesus, tal como aparece nos Evangelhos (Lucas e João especialmente), tem uma visão e uma prática imensamente mais libertadora e superior no que se refere às relações humanas, especificamente às relações de gênero (homem – mulher).

- 3,1-16. Os ministérios ordenados na comunidade. Ministério da Caridade ou Pastoral. Critérios para escolher os dirigentes (em grego epíscopos = para nós bispos). Critérios para escolher os diáconos. Precisa-se, primeiramente, de testemunho de vida cristã. Deve de ter bom senso, amor à Igreja, responsabilidade, equilíbrio, conhecimento, bons costumes, vida familiar digna, etc.

- 4,1-16. Atitudes do pastor com as pessoas de fora da comunidade. Perante a descrença, a confusão de ideologias e a desonestidade é importante se manter firme na fé em Jesus e não aceitar doutrinas esquisitas. Por exemplo, proibições de casamento ou de consumir alguns alimentos. “Tudo o que Deus criou é bom, e nada é desprezível se tomado com ação de graças, porque é santificado pela palavra de Deus e pela oração”.

- 5,1-6,19. Atitudes do pastor com as pessoas de dentro da comunidade. Manter relações familiares com os fiéis da Igreja. Respeito, compreensão e carinho. Caridade com as viúvas, dentro do princípio de “subsidiariedade”, quer dizer, o que pode ser resolvido num âmbito próximo (dentro

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da própria família) não se passe para um âmbito superior (para a comunidade). Cada um deve resolver seus problemas no nível da própria competência, quando possível; quando não se pode se pede ajuda ao nível maior. Comunhão do bispo com os presbíteros: incentivar o ministério da Palavra, respeitar o presbítero, não praticar favoritismos com uns prejudicando outros, não se precipitar nas ordenações. Com os catequistas e doutores: incentivar a fidelidade à mensagem do evangelho, vida de austeridade, não usar a religião para se enriquecer. “Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro”. Conduta do pastor: procurar a fé, o amor, a piedade, a mansidão e fidelidade ao ministério. Com os ricos: ensinar a colocar a esperança não no dinheiro mas sim no Senhor; que pratiquem o bem e a partilha dos bens.

- 6, 20-21. Despedida. Guarde o depósito (O depósito da fé = a mensagem apostólica).

Não deixar de ler: 1,1-2; 1,12-17; 2,1-8; 3,1-13; 6,11-16.

5.2. Carta a Tito.Tito é um dos grandes colaboradores de Paulo que foi enviado por este para dirigir as

comunidades cristãs da ilha de Creta. Ele tinha conseguido resolver satisfatoriamente os problemas da comunidade de Corinto. Quando Paulo e Barnabé foram a Jerusalém para participar da assembléia que iria decidir se os pagãos deviam ou não se circuncidar para serem verdadeiramente cristãos, levaram consigo Tito, cristão grego incircunciso e não o circuncidaram. Foi aceito pela Igreja como verdadeiro cristão. Tito é a prova viva de que o evangelho anunciado por Paulo é autêntico.

Paulo, consciente já de que o seu final possa estar próximo, preocupa-se com a organização das comunidades a fim de que se mantenham firmes na fé anunciada pelos apóstolos e acolhida pelos fiéis. O centro desta Carta é “a sã doutrina”, manter a pureza do depósito da fé. Primazia, outra vez, do ministério da Palavra dentro das responsabilidades do ministro ordenado.

Esquema da Carta:- 1,1-4. Saudação. Paulo apóstolo a serviço da Palavra verdadeira que conduz, pelo caminho do

amor, até a Vida Eterna. - 1,5-16. Tito foi ordenado dirigente (bispo) da Igreja em Creta para continuar organizando as

comunidades da ilha. Critérios para escolher presbíteros. Boa moral familiar, de bom testemunho de vida, praticando a sobriedade, pacífico, bondoso, hospitaleiro, justo, disciplinado e fiel ao ensinamento.

- 2,1-3,7. Ensinar as atitudes cristãs aos velhos, mulheres, jovens, escravos, etc. Obediência às autoridades. “Deus derramou abundantemente o Espírito sobre nós, por meio de Jesus Cristo nosso Senhor, para que justificados por sua graça, nós nos tornássemos herdeiros da esperança da vida eterna”.

- 3,8-15. Conselhos e despedida. “Aqueles que acreditam em Deus sejam os primeiros a praticar o bem”.

Não deixar de ler: 1,1-4; 1,5-9; 2,11-15; 3,4-7; 3,14.

5.3. Segunda Carta a Timóteo.Paulo se encontra na prisão de Roma, a segunda prisão romana, que foi mais rigorosa e acabou

com a sentença de morte contra o apóstolo. Trata-se, pois, de uma carta escrita pouco antes de ser morto. O conteúdo é de índole bem mais pessoal do que as duas anteriores (Primeira a Timóteo e Tito). A data se situa no ano 67. O apóstolo se sente isolado, abandonado, próximo da morte. Mesmo assim agradece a Deus e demonstra ternura pelas comunidades e pelos colaboradores. É como o testamento de Paulo pedindo a Timóteo que continue a obra iniciada, o bom combate da fé. De novo dá prioridade ao ministério da Palavra: acolhendo-a com obediência amorosa,

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transmitindo-a fielmente, na sua integridade (integridade do depósito da fé). Timóteo recebeu pela imposição das mãos (ordenação) um dom do Senhor que precisa ser reavivado para o serviço da comunidade. A ferramenta do ministério é a Sagrada Escritura.

Esquema da Carta:- 1,1-18. Saudação, ação de graças e chamado à fidelidade. Paulo agradece a Deus misturando a

gratidão com as boas lembranças que guarda de Timóteo. A fé deste colaborador tem raízes... que não devem ser esquecidas: a avó Lóide e a mãe Eunice. “O convido a reavivar o dom de Deus que está em você pela imposição das mãos”. “Guarde o bom depósito com o auxílio do Espírito Santo que habita em nós”. Paulo se sente abandonado por todos.

- 2,1-13. Agir como um bom servidor de Cristo. O seguidor de Jesus participa também dos sofrimentos dele nas dificuldades de cada dia, a exemplo de Paulo, que está acorrentado como se fosse um malfeitor... “Mas a Palavra de Deus não está algemada”. Hino à fidelidade: se com Ele morremos com ele viveremos!

- 2,14-4,5. Orientações para ser um pastor ardoroso e firme. Conselhos práticos para exercer bem o ministério. “Siga a justiça e a fé, o amor e a paz com aqueles que invocam de coração puro o nome do Senhor”. É bom fugir das discussões estéreis, tentações de prazeres, da superficialidade. O próprio Paulo sofreu muitas perseguições, inclusive em Listra, cidade natal de Timóteo. A lembrança tem como finalidade tomar consciência das próprias raízes da fé para fortalece-las e cultiva-las. O melhor alimento espiritual da vida cristã são as Escrituras: “elas têm o poder de lhe comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Jesus Cristo”. Toda Escritura é inspirada por Deus para ensinar... a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda obra boa.

- 4,6-18. Situação delicada de Paulo e últimos pedidos. “Quanto a mim, meu sangue está para ser derramado... agora só me resta a coroa da justiça que o Senhor me entregará”. Somente Lucas está junto do apóstolo. Pede que venha Marcos. Pede que lhe tragam o manto que deixou em Tróade. “O Senhor ficou comigo e me encheu de força, a fim de que eu pudesse anunciar toda a mensagem, e ela chegasse aos ouvidos de todas as nações”. Saudações e despedida.

“O Senhor esteja com o seu espírito. A graça esteja com todos vocês”.

A.M.P.IPara maior glória de Deus e utilidade do próximo.

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