patrimónios contestados - comissão nacional da unesco

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Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Patrimónios Contestados Património é sinónimo de posse e ambos são uma convenção, histórica e social. Por maioria de razão, património cultural é também resultado de um entendimento, de um pacto de reconhecimento coletivo de valores culturais num determinado bem. Qualquer alteração na leitura desses valores implica, assim, a renegociação desse reconhecimento. Tal processo torna-se mais complexo quando decorre da entrada de novos grupos no coletivo de reconhecimento, pois conduz à atribuição de novos valores, signiicando, por vezes, a contestação dos anteriores. Meio século depois da conclusão das descolonizações políticas, multiplicam-se argumentos a favor de uma descolonização cultural, o que gera processos de contestação sobre as formas de reconhecimento do valor cultural de uma miríade de bens, do seu signiicado, propriedade e tutela, das aspirações e regras para a sua partilha e usufruto. Não está apenas em causa a natureza patrimonial desses bens, mas todo o sistema internacional do património cultural. É, assim, um dos debates políticos com maior potencial transformador das sociedades contemporâneas. Este livro e o curso que lhe está associado nasceram em diálogo com estas transformações. Oferecendo pontos de vista muito variados, especialistas internacionais e nacionais abordam casos e tópicos de grande pertinência contemporânea – de Mostar e Tombuctu a Goa e São Paulo, da Palestina à Etiópia, de Gandhi à questão das histórias coloniais dos museus e às dimensões internacionais dos debates e políticas de patrimonialização – envolvendo relexões valiosas sobre Portugal e sobre espaços e culturas com inluência portuguesa. Miguel Bandeira Jerónimo | Walter Rossa | Dacia Viejo Rose | Lilia Schwarcz | Marie Huber | Ariel Sophia Bardi | Alice Procter | Elizabeth Buettner | Amita Kanekar | Jason Keith Fernandes | Paulo Peixoto | Luís Raposo | Bárbara Reis Patrimónios Contestados Coordenação: Miguel Bandeira Jerónimo | Walter Rossa

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Page 1: Patrimónios Contestados - Comissão Nacional da UNESCO

Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie HuberLilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie Huber Lilia Schwarcz Ariel Sophia Bardi Alice Procter Elizabeth Buettner Amita Kanekar Jason Keith Fernandes Paulo Peixoto Luís Raposo Bárbara Reis Dacia Viejo Rose Marie HuberLilia

Patrimónios Contestados

Património é sinónimo de posse e ambos são uma convenção, histórica e social. Por maioria de razão, património cultural é também resultado de um entendimento, de um pacto de reconhecimento coletivo de valores culturais num determinado bem. Qualquer alteração na leitura desses valores implica, assim, a renegociação desse reconhecimento. Tal processo torna-se mais complexo quando decorre da entrada de novos grupos no coletivo de reconhecimento, pois conduz à atribuição de novos valores, significando, por vezes, a contestação dos anteriores.

Meio século depois da conclusão das descolonizações políticas, multiplicam-se argumentos a favor de uma descolonização cultural, o que gera processos de contestação sobre as formas de reconhecimento do valor cultural de uma miríade de bens, do seu significado, propriedade e tutela, das aspirações e regras para a sua partilha e usufruto. Não está apenas em causa a natureza patrimonial desses bens, mas todo o sistema internacional do património cultural. É, assim, um dos debates políticos com maior potencial transformador das sociedades contemporâneas.

Este livro e o curso que lhe está associado nasceram em diálogo com estas transformações. Oferecendo pontos de vista muito variados, especialistas internacionais e nacionais abordam casos e tópicos de grande pertinência contemporânea – de Mostar e Tombuctu a Goa e São Paulo, da Palestina à Etiópia, de Gandhi à questão das histórias coloniais dos museus e às dimensões internacionais dos debates e políticas de patrimonialização – envolvendo reflexões valiosas sobre Portugal e sobre espaços e culturas com influência portuguesa.

Miguel Bandeira Jerónimo | Walter Rossa | Dacia Viejo Rose | Lilia Schwarcz | Marie Huber | Ariel Sophia Bardi | Alice Procter | Elizabeth Buettner | Amita Kanekar | Jason Keith Fernandes | Paulo Peixoto |Luís Raposo | Bárbara Reis

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os

Coordenação: Miguel Bandeira Jerónimo | Walter Rossa

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Patrimónios Contestados

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Ficha TécnicaAutores Miguel Bandeira Jerónimo, Walter Rossa, Dacia Viejo Rose, Lilia Schwarcz, Marie Huber, Ariel Sophia Bardi, Alice Procter, Elizabeth Buettner, Amita Kanekar, Jason Keith Fernandes, Paulo Peixoto, Luís Raposo e Bárbara Reis

Coordenação Científica Miguel Bandeira Jerónimo e Walter Rossa

Coordenação Executiva Alexandrina Sofia Carvalho

Design e paginação Marco Neves Ferreira

Traduções e revisões Giovanna Imbernon e Nádia Ochoa Rodrigues

Apoios Cátedra UNESCO em Diálogo Intercultural em Patrimónios de Influência Portuguesa, Instituto de Investigação Interdisciplinar e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Camões IP.

Impressão SIG - Sociedade Industrial Gráfica, Lda.

Depósito Legal nº 481811/21

Edição Público — Comunicação Social S.A.Abril de 2021

www.publico.pt | www.loja.publico.pt

Imagem de capaShailesh Dabholkar, Auto retrato Azulejo, 2019aguarela, 35x35(cm), coleção particular

A imagem foi selecionada de entre as que nos chegaram dos diversos autores. Jason Keith Fernandes propôs esta aguarela da sua coleção particular que tem, per si, uma extraordinária força polissémica, ainda maior se levarmos em conta que é o autorretrato de um jovem artista hindu goês, que sobre a mesma nos enviou a declaração seguinte: “The image features a poetic conversation between the man and nature around him, with the small bird uplifting the poet's spirit.” O nosso agradecimento a ambos, bem como a Vivek Menezes pela fotografia.

É expressamente proibido reproduzir esta obra no seu todo ou em parte sob qualquer suporte ou meio. As transgressões serão passíveis das penalizações previstas na legislação em vigor.

Os textos respeitam a norma ortográfica escolhida pelos autores ou, no caso dos traduzidos, pelos coordenadores científicos. Optou-se por manter o texto da autora Lilia Schwarcz escrito em português do Brasil.

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Sumário05 Miguel Bandeira Jerónimo e Walter Rossa O bem e o mal do(s) património(s) 10 Dacia Viejo Rose Património cultural em conflito: da violência à reparação 26 Lilia Schwarcz Ser ou não ser patrimônio: bandeirantes e bandei-ras e outros conjuntos escultóricos contesta-dos 50 Marie Huber Patrimonialização interna-cional, desenvolvimento e política nacional da história: o legado institucional dos programas de conservação da UNESCO na Etiópia 72 Ariel Sophia Bardi Doma-cracy planeada: memó-ria e apagamento na Índia e em Israel 88 Alice Procter Desconforto, disfunção: quem se sen-te em casa no museu? 104 Elizabeth Buettner Gandhi@150: O “Mahatma” como um ícone glo-bal celebrado e contestado 124 Amita Kanekar Brahmin ou Bahujan, património ou constran-gimento? A identidade conflituosa do templo goês 146 Jason Keith Fernandes Para que os subalternos não falem: a oclusão do património português entre os goeses 170 Paulo Peixoto, Luís Raposo e Bárbara Reis Patrimónios con-testados em Portugal: problemas, casos, deba-tes 190 Biografias dos autores

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Miguel Bandeira Jerónimo Walter Rossa

ApresentaçãoO bem e o mal do(s)património(s)

Nem sempre utilizamos com precisão a palavra património, espe-rando que o contexto de comunicação clarifique o sentido em que o fazemos. Também já estamos bem longe da sua estreita signifi-cação etimológica. E assim se vão sedimentando ambiguidades e confusões que emergem, e florescem, em momentos de maior tensão social. Na abertura deste livro não pode ser assim, pois se nos propomos abordar situações em que património (qual?) está sob contestação, o rigor impõe-se. Importa, ainda que de for-ma breve, colocar o leitor perante diversas vertentes da utilização do termo e, assim, de aplicação do conceito. Património cultural e património histórico são neste contexto as variantes chave, dis-pensando-nos de abordar muitas outras, como património natu-ral, património industrial ou património arqueológico.

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PATRIMÓNIOS CONTESTADOS6

invasões bárbaras do Império Romano do Ocidente, ou até pela conquista turca de Bizâncio, mas temos conhecimento do facto em si. Hoje é, contudo, muito provável que o que seja levado a de-saparecer venha a ser virtualmente conhecido no futuro, pois o registo documental, sob os mais diversos suportes e meios, é cada vez mais uma obsessão coletiva. O facto é de tal modo evidente, que hipotéticas versões modernas de autos de fé terão, por certo, a sua eficácia condenada ao fracasso. E se parece certo que para os romanos e bizantinos esses bens destruídos tinham, entre ou-tros, valores culturais, estava-se ainda muito longe da construção do edifício conceptual que o último século e meio ergueu em tor-no da expressão património cultural.

Continuamente alimentado com conhecimento cumulati-vo, mas disputado, o conceito foi-se alargando, e aprimorando de modo por vezes equívoco. A sua polissemia cresceu, a clare-za semântica diminuiu, apesar de ter sido enriquecida, e a sua utilização multiplicou-se, por vezes sem critério e propriedade. Exemplificando: Será todo o património, designadamente o histó-rico, património cultural? Serão todos os monumentos patrimó-nio cultural? Em tese é óbvio que não, o que não é demérito para qualquer uma dessas categorias, tão só uma forma expedita de evidenciar um dos problemas, fonte de equívocos e, por vezes, contradições, subjacentes aos debates atuais, que os leitores tam-bém encontrarão ao longo deste livro.

À partida, se não dissesse respeito a momentos do passado que a História valoriza pelo seu significado e relevância contem-porâneos, património histórico poderia insinuar-se como uma expressão redundante, pouco útil. Nessa asserção não só é útil como carece de representações que exponenciem essa valoriza-ção de momentos, factos, figuras, o que alinha o património his-tórico com o conceito de monumento, ou seja, com o papel es-sencialmente representativo de algo. Há objetos criados com essa função de evocar, representar algo ou alguém, como é o caso das estátuas ou obeliscos. Também outros – objetos já existentes, cria-dos, desenvolvidos e usados para outros fins – a dado momento passaram a estar investidos com essa função adicional de repre-sentação, que, com frequência, acaba por ser a principal. Mas a História muda em função das solicitações do presente. Por isso o

Atentemos nos três factos seguintes: património é algo que existe, não é passado; nada surge ou é produzido como patrimó-nio cultural ou histórico, apenas eventualmente como patrimó-nio; património é sinónimo de posse estável de bens, o que resulta de convenções, históricas e sociais. Se assim é, podemos afirmar que património cultural é o resultado de um entendimento, de um pacto de reconhecimento coletivo de valores culturais próprios, identitários, obedecendo naturalmente a lógicas de poder especí-ficas, num determinado conjunto de bens. Podemos ainda admi-tir que qualquer alteração significativa na perceção desses valores, ou nas relações de poder que os consolidou, implica a renegocia-ção daquele pacto. É um processo que se torna complexo e po-tencialmente conflituoso quando, por exemplo, decorre da entra-da de novos grupos no coletivo com soberania sobre os bens, pois conduz à atribuição de novos valores, à recalibragem dos existen-tes e, por vezes, ao seu questionamento. A situação extrema ocor-re quando apenas a última dessas três hipóteses fica sobre a mesa, pois o estatuto desses bens enquanto património cultural fica sob contestação e, se tiver expressão material, a sua integridade físi-ca em risco. Com as necessárias adaptações, poderíamos fazer um raciocínio paralelo em relação ao património histórico e concluir que, além das virtualidades cândidas propaladas em diversas con-venções e cartas internacionais, a partilha de património tem sem-pre implícito um potencial de ignição de conflitos.

Por regra, os processos de contestação desencadeiam o ex-tremar de posições. Torna-se muito difícil encontrar pontos para compromisso e as condições para a afirmação de posições mode-radas, que procuram ver a questão segundo as suas mais diversas facetas, estreitam-se. A sobrevivência face ao ruído do simplismo comprometido é difícil. Uma das reflexões obrigatórias será espe-cular sobre que significado terá uma qualquer decisão no futuro. Qual o legado, os novos valores que então se juntam ao conheci-mento dos bens? No fundo, a decisão mais radical, a da destrui-ção, é, também ela, um ato cultural com valores. É ainda um re-gisto, uma indicação para memória futura de quando o que era considerado bem, foi num outro contexto entendido como des-cartável ou mesmo um mal exigindo supressão. Sabemos pou-co de muitos edifícios, potencialmente notáveis, destruídos nas

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invasões bárbaras do Império Romano do Ocidente, ou até pela conquista turca de Bizâncio, mas temos conhecimento do facto em si. Hoje é, contudo, muito provável que o que seja levado a de-saparecer venha a ser virtualmente conhecido no futuro, pois o registo documental, sob os mais diversos suportes e meios, é cada vez mais uma obsessão coletiva. O facto é de tal modo evidente, que hipotéticas versões modernas de autos de fé terão, por certo, a sua eficácia condenada ao fracasso. E se parece certo que para os romanos e bizantinos esses bens destruídos tinham, entre ou-tros, valores culturais, estava-se ainda muito longe da construção do edifício conceptual que o último século e meio ergueu em tor-no da expressão património cultural.

Continuamente alimentado com conhecimento cumulati-vo, mas disputado, o conceito foi-se alargando, e aprimorando de modo por vezes equívoco. A sua polissemia cresceu, a clare-za semântica diminuiu, apesar de ter sido enriquecida, e a sua utilização multiplicou-se, por vezes sem critério e propriedade. Exemplificando: Será todo o património, designadamente o histó-rico, património cultural? Serão todos os monumentos patrimó-nio cultural? Em tese é óbvio que não, o que não é demérito para qualquer uma dessas categorias, tão só uma forma expedita de evidenciar um dos problemas, fonte de equívocos e, por vezes, contradições, subjacentes aos debates atuais, que os leitores tam-bém encontrarão ao longo deste livro.

À partida, se não dissesse respeito a momentos do passado que a História valoriza pelo seu significado e relevância contem-porâneos, património histórico poderia insinuar-se como uma expressão redundante, pouco útil. Nessa asserção não só é útil como carece de representações que exponenciem essa valoriza-ção de momentos, factos, figuras, o que alinha o património his-tórico com o conceito de monumento, ou seja, com o papel es-sencialmente representativo de algo. Há objetos criados com essa função de evocar, representar algo ou alguém, como é o caso das estátuas ou obeliscos. Também outros – objetos já existentes, cria-dos, desenvolvidos e usados para outros fins – a dado momento passaram a estar investidos com essa função adicional de repre-sentação, que, com frequência, acaba por ser a principal. Mas a História muda em função das solicitações do presente. Por isso o

Atentemos nos três factos seguintes: património é algo que existe, não é passado; nada surge ou é produzido como patrimó-nio cultural ou histórico, apenas eventualmente como patrimó-nio; património é sinónimo de posse estável de bens, o que resulta de convenções, históricas e sociais. Se assim é, podemos afirmar que património cultural é o resultado de um entendimento, de um pacto de reconhecimento coletivo de valores culturais próprios, identitários, obedecendo naturalmente a lógicas de poder especí-ficas, num determinado conjunto de bens. Podemos ainda admi-tir que qualquer alteração significativa na perceção desses valores, ou nas relações de poder que os consolidou, implica a renegocia-ção daquele pacto. É um processo que se torna complexo e po-tencialmente conflituoso quando, por exemplo, decorre da entra-da de novos grupos no coletivo com soberania sobre os bens, pois conduz à atribuição de novos valores, à recalibragem dos existen-tes e, por vezes, ao seu questionamento. A situação extrema ocor-re quando apenas a última dessas três hipóteses fica sobre a mesa, pois o estatuto desses bens enquanto património cultural fica sob contestação e, se tiver expressão material, a sua integridade físi-ca em risco. Com as necessárias adaptações, poderíamos fazer um raciocínio paralelo em relação ao património histórico e concluir que, além das virtualidades cândidas propaladas em diversas con-venções e cartas internacionais, a partilha de património tem sem-pre implícito um potencial de ignição de conflitos.

Por regra, os processos de contestação desencadeiam o ex-tremar de posições. Torna-se muito difícil encontrar pontos para compromisso e as condições para a afirmação de posições mode-radas, que procuram ver a questão segundo as suas mais diversas facetas, estreitam-se. A sobrevivência face ao ruído do simplismo comprometido é difícil. Uma das reflexões obrigatórias será espe-cular sobre que significado terá uma qualquer decisão no futuro. Qual o legado, os novos valores que então se juntam ao conheci-mento dos bens? No fundo, a decisão mais radical, a da destrui-ção, é, também ela, um ato cultural com valores. É ainda um re-gisto, uma indicação para memória futura de quando o que era considerado bem, foi num outro contexto entendido como des-cartável ou mesmo um mal exigindo supressão. Sabemos pou-co de muitos edifícios, potencialmente notáveis, destruídos nas

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PATRIMÓNIOS CONTESTADOS8

Patrimónios de Influência Portuguesa e do curso de doutoramen-to homónimo, estas matérias estão naturalmente no centro das nossas preocupações, bem como dos colegas e estudantes com quem quotidianamente interagimos. E o que mais nos tem preo-cupado é, precisamente, a falta de condições para um bom de-bate. Talvez mais importante que os resultados e decisões, seja o processo: os métodos mobilizados, as dinâmicas de conhecimen-to que gera e o grau de participação alcançado. Numa palavra, ci-dadania. São necessários informação e conhecimento para a to-mada responsável e coletiva de decisões.

Em parceria com o jornal Público, desenhámos um projeto que tem como objetivo central contribuir para esse fim. Projeto que articula três componentes autónomas: um curso em linha, um conjunto de textos no suplemento P2 do jornal e este livro. Em to-dos elas contamos com o contributo de onze personalidades com especializações e percursos muito diversificados, composto segun-do uma visão poliédrica de conceitos, problemas e casos diver-sos na temática, geografia e contextos de património contestado: de Mostar e Tombuctu a Goa e São Paulo, da Palestina à Etiópia, de Gandhi à questão das histórias coloniais dos museus e às di-mensões internacionais dos debates e políticas de patrimonializa-ção, incluindo abordagens ao papel da UNESCO e reflexões sobre Portugal e sobre espaços e culturas com influência portuguesa.

O livro encerra, precisamente, com um conjunto de três tex-tos breves dedicados aos Patrimónios contestados em Portugal. Textos que, como na sua introdução explicamos, tiveram como mote mais três perguntas que, desde logo e após a leitura crítica do conjunto, convidamos os leitores a responder. Estão em causa bens e males comuns.

que hoje é património histórico poderá não continuar a sê-lo ama-nhã. Que problemas decorrem disso? É grave? Haverá perda? Para quem? Porquê?

Não querendo continuar a forçar uma separação que a reali-dade raramente admite, seria porventura útil desenvolver, de um modo analítico, o mesmo raciocínio sobre património cultural. Desde logo, tal exercício remeter-nos-ia para o conceito de cultu-ra e para a sua relação com a História, problemática sobre a qual aqui não nos podemos deter. Podemos, porém, afirmar que o pa-trimónio cultural tem no sistema de valores culturais reconheci-dos num conjunto de bens, o mesmo que o património histórico tem da História. Mas terão os valores culturais uma transitorieda-de idêntica à da História ou vão-se acumulando e sedimentando? E serão os valores culturais de um bem apenas representações de algo, ou parte da sua essência ou aura, seja ela de origem ou resul-tante da patine desenvolvida pelo tempo?

Da resposta que cada um de nós der às questões colocadas nos três parágrafos anteriores, resultarão luzes sobre a posição que as-sumiremos, caso a caso, em processos de património contestado, seja ele histórico ou cultural, ou ambos, como é mais frequnte.

Meio século depois da conclusão das descolonizações políticas, começaram a multiplicar-se os argumentos para uma descoloni-zação cultural, o que gera processos de contestação sobre a His-tória e sobre formas de reconhecimento do valor cultural de uma miríade de bens, acerca do seu significado, propriedade e tutela, sobre as aspirações e regras para a sua partilha e usufruto. Não está apenas em causa a soberania sobre esses bens, mas todo o sistema internacional do património cultural. É, assim, um dos debates políticos com maior potencial transformador das socie-dades contemporâneas. Chegou a Portugal de forma geralmente tímida e enviesada. Mais que a um debate, plural e informado, dialogante e reflexivo, assiste-se à afirmação de posições já exis-tentes, óbvias e pouco criativas, imunes à diversidade de contex-tos, de casos, de problemas associados.

Tendo, na Universidade de Coimbra, a responsabilidade de coordenação da Cátedra UNESCO em Diálogo Intercultural em

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Patrimónios de Influência Portuguesa e do curso de doutoramen-to homónimo, estas matérias estão naturalmente no centro das nossas preocupações, bem como dos colegas e estudantes com quem quotidianamente interagimos. E o que mais nos tem preo-cupado é, precisamente, a falta de condições para um bom de-bate. Talvez mais importante que os resultados e decisões, seja o processo: os métodos mobilizados, as dinâmicas de conhecimen-to que gera e o grau de participação alcançado. Numa palavra, ci-dadania. São necessários informação e conhecimento para a to-mada responsável e coletiva de decisões.

Em parceria com o jornal Público, desenhámos um projeto que tem como objetivo central contribuir para esse fim. Projeto que articula três componentes autónomas: um curso em linha, um conjunto de textos no suplemento P2 do jornal e este livro. Em to-dos elas contamos com o contributo de onze personalidades com especializações e percursos muito diversificados, composto segun-do uma visão poliédrica de conceitos, problemas e casos diver-sos na temática, geografia e contextos de património contestado: de Mostar e Tombuctu a Goa e São Paulo, da Palestina à Etiópia, de Gandhi à questão das histórias coloniais dos museus e às di-mensões internacionais dos debates e políticas de patrimonializa-ção, incluindo abordagens ao papel da UNESCO e reflexões sobre Portugal e sobre espaços e culturas com influência portuguesa.

O livro encerra, precisamente, com um conjunto de três tex-tos breves dedicados aos Patrimónios contestados em Portugal. Textos que, como na sua introdução explicamos, tiveram como mote mais três perguntas que, desde logo e após a leitura crítica do conjunto, convidamos os leitores a responder. Estão em causa bens e males comuns.

que hoje é património histórico poderá não continuar a sê-lo ama-nhã. Que problemas decorrem disso? É grave? Haverá perda? Para quem? Porquê?

Não querendo continuar a forçar uma separação que a reali-dade raramente admite, seria porventura útil desenvolver, de um modo analítico, o mesmo raciocínio sobre património cultural. Desde logo, tal exercício remeter-nos-ia para o conceito de cultu-ra e para a sua relação com a História, problemática sobre a qual aqui não nos podemos deter. Podemos, porém, afirmar que o pa-trimónio cultural tem no sistema de valores culturais reconheci-dos num conjunto de bens, o mesmo que o património histórico tem da História. Mas terão os valores culturais uma transitorieda-de idêntica à da História ou vão-se acumulando e sedimentando? E serão os valores culturais de um bem apenas representações de algo, ou parte da sua essência ou aura, seja ela de origem ou resul-tante da patine desenvolvida pelo tempo?

Da resposta que cada um de nós der às questões colocadas nos três parágrafos anteriores, resultarão luzes sobre a posição que as-sumiremos, caso a caso, em processos de património contestado, seja ele histórico ou cultural, ou ambos, como é mais frequnte.

Meio século depois da conclusão das descolonizações políticas, começaram a multiplicar-se os argumentos para uma descoloni-zação cultural, o que gera processos de contestação sobre a His-tória e sobre formas de reconhecimento do valor cultural de uma miríade de bens, acerca do seu significado, propriedade e tutela, sobre as aspirações e regras para a sua partilha e usufruto. Não está apenas em causa a soberania sobre esses bens, mas todo o sistema internacional do património cultural. É, assim, um dos debates políticos com maior potencial transformador das socie-dades contemporâneas. Chegou a Portugal de forma geralmente tímida e enviesada. Mais que a um debate, plural e informado, dialogante e reflexivo, assiste-se à afirmação de posições já exis-tentes, óbvias e pouco criativas, imunes à diversidade de contex-tos, de casos, de problemas associados.

Tendo, na Universidade de Coimbra, a responsabilidade de coordenação da Cátedra UNESCO em Diálogo Intercultural em