passagem para jupiter e outras estorias

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Contos de ficção cientifica Publicado em

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PASSAGEM PARA JÚPITERe outras estórias

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RUBENS TEIXEIRA SCAVONE

Passagem para Júpitere outras estórias

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Outras obras de Rubens Teixeira Scavone

Ficção científica:

O homem que viu o Dísco-Voador, novela, São Paulo, 1a edição 1958; 2a edição, 1961.

Degrau para as estrelas, romance, Martins, 1961.

O diálogo dos mundos, contos, Ed. GRD, Rio de Janeiro, 1961; 2a edição, Clube do Livro do mês, São Paulo, 1965.

Romance:

O lírio e a antípoda, Edart, 1965.

Ensaios:

Ensaios norte-americanos, Edart, 1963, la série.

1971© by EDITORA MUNDO MUSICAL S.A.R. Visconde do Rio Branco, 53 — Rio de Janeiro.

IMPRESSO NO BRASILPrinted in BrazilN.° de Catálogo — 500.037

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ÍNDICE

Flores para uma terrestre 9

Especialmente, quando sopra outubro 23

A evidência do impossível 29

A caverna 35

A bolha e a cratera 43

O menino e o robô 53

Número transcendental 63

O fim da aventura 77

Morte, no palco 91

O diálogo dos mudos 99

Passagem para Júpiter 147

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Flôres para uma terrestre

“I believe a leaf of grass is no less than the journey-work of the stars”.

Walt Whitman — Song of Myself

Ivã e eu estávamos ali há muito tempo. Há tanto tempo que já haví-amos perdido a noção dos dias, das semanas e mesmo dos meses. Quando nosso serviço estivesse terminado, quando as canalizações do gás estives-sem refeitas, levando outra vez o combustível para seus grandes depósitos próximo às montanhas de ionita, poderíamos então partir, mas não para a Terra ainda — como eu ardentemente desejava — mas para a Grande Base Saturniana. Ela estava ali, bem acima de nossos narizes, bem visível, como se fosse uma aranha cinzenta agarrada ao disco amarelo e formidável do planeta, oculta às vezes pelo turbilhão de poeira, meteoritos, rochas, de co-res caleidoscópicas, e que encadeiava o astro num espetáculo alucinante.

No começo, e isso deveria ter sido havia alguns meses (meses ter-restres) a visão nos assustava. Os anéis, a pouca distância do satélite sobre o qual nos encontrávamos — que fazia com que Saturno cobrisse quase duas terças partes do espaço — a passagem alternada dos outros inúmeros satélites, e sobretudo as cores, que variavam de minuto a minuto, tudo isso nos deixou aturdidos, sensação essa que só foi vencida quando nos entregamos duramente ao trabalho. As tubulações haviam sido destruídas

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em muitos pontos. Os meteoros, os detritos que escapavam como dardos e sarças chamejantes cruzando o anel de crepe e jogados para a órbita externa pela força centrífuga, precipitavam-se sobre as instalações do mi-núsculo astro que era Titã com incrível contundência, perfurando tubos, estilhaçando reservatórios, salpicando de orifícios as superfícies proteto-ras, que logo eram então corroídas pela ação do gás naquela atmosfera altamente rarefeita. As conseqüências não se faziam esperar: vazamentos nos grandes tanques, atrasos no reabastecimento das naves, reclamações dos interessados, e perda irreparável de metano, o gás dos pântanos que era absorvido em quantidades espantosas pelos motores das astronaves de regresso à Terra ou de partida para outros planetas. Mesmo minúsculo, o quinto da família dos acompanhantes de Saturno, grande era a importância de Titã. Era a estação, o ponto de abastecimento, o doador do gás fétido e impuro que avassalava todos os pontos de sua superfície, possibilitava o regresso e ligava os homens ao seu ponto de origem.

Ivã e eu estávamos ali há muito tempo. Acordávamos bem cedo, antes da hora azul, aos finais da hora vermelha. Sim, marcávamos as horas pelas variações cromáticas. Os anéis eram como um prisma e o albedo de Saturno, devolvendo a luz solar e os efeitos das atmosferas, criavam alternâncias absurdas sobre o solo calcáreo de Titã, gerando muitas auro-ras, incontáveis crepúsculos, transformando a paisagem de oceanos secos, coberta de madreporários em ambiências diversas e antagônicas.

Era um espetáculo assombroso. Na primeira mutação, tudo vinha recoberto de violáceo. O solo áspero de coralinos e esqueletos de calcáreos como que se dobrava sobre si mesmo, perdia o brilho, fechava-se ameaça-doramente, quando então o gás era mais visível ao longe das instalações, pairando sobre o astro como uma epiderme ondulante. Depois, o viole-ta cambiava para o rubro. Uma catadupa de sangue era despejada sobre aquele pequeno mundo, e o gás, como plasma, destacava-se do solo e das superfícies de meroplâncton, e se podia observar melhor seus torvelinhos junto às fendas e às montanhas, em volumes e espirais não visíveis na hora azul.

Depois, quando já despertos nos entregávamos à nossa faina, vinha o momento verde. A superfície de Titã deixava então de ser o inferno. Os brilhos nacarinos do solo corrugado começavam a aumentar e o amarelo-crômo de Saturno se harmonizava com o colorido suave do instante, po-dendo então divisar-se com nitidez as pequenas esferas dos outros satélites

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interiores que cruzavam o círculo, projetando suas sombras sobre o grande planeta.

Acordávamos bem ao começo dessa hora. Com períodos certos, da Base Saturniana recebíamos todos os informes desejados, principalmente relativos aos pousos das naves, com antecedência, para que o gás não fal-tasse, mesmo se tendo em conta os desvios e esvaziamentos dos tanques, necessários aos trabalhos de reconstituição e tapagem. Por eles sabíamos a hora, o dia e a semana. Periodicamente, com suprimentos e materiais necessários aos serviços, naves de transporte chegavam e com elas — o que esperávamos com ansiedade — notícias da Terra. Sim, da nossa Terra que nem mais podíamos ver pulsando tristemente na esfera do cosmos. Notícias da Terra, trazidas cada três ou quatro meses terrestres. Mas assim mesmo eram escassas. Quando estávamos em Marte, no ano passado, tudo era mais fácil. Semanalmente recebíamos cartas. Para o planeta vermelho, com suas seis colônias, partiam várias naves por semana. Todavia, para além de Júpiter tudo mudava. A expansão estava em seus primórdios e muitas outras coisas eram mais importantes do que notícias da Terra.

Agora, depois dessa permanência em Titã, nosso serviço se aproxi-mava do fim. Ivã e eu nos sentíamos exaustos e o nosso prêmio — como de todos astronautas depois de três anos — era a volta. A volta para o repouso de um ano. Faltava uma centena de metros a ser revista. Depois, só a ins-peção nos sugadores e nos exaustores e de novo Titã estaria em ordem, de-sempenhando sua função primordial de celeiro, de dispensa, de armazém que fornecia o gás putrefato a ser comprimido, digerido, transformado em energia, e que provocaria reações em cadeia, estilhaçaria átomos e daria ao homem possibilidades infinitas.

Trabalhávamos seguidamente por duas mutações integrais. As ves-tes eram pesadas, os elmos incômodos, desagradável o manejar das ferra-mentas num corpo de baixa gravidade. Tudo devia ser feito lentamente, evitando-se gastos supérfluos de energias e de material. Depois, repousá-vamos, duas ou três mutações. Eu, menos comodista que meu companhei-ro, entrava na bôlha-atmosférica e despia as roupas espaciais. Ivã só fazia isso ao fim de dois períodos, para o repouso mais longo, quando então dor-miamos. Preferia entrar no alvéolo da nossa micro-nave e se estirar nos leitos da cabine, ligando a televisão que irradiava programas estimulantes e psicológicos. Só conversávamos quando íamos dormir, ao aproximar-se a hora cinzenta. Mesmo assim meu companheiro, Ivã Vasilevitch, não era

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homem de muitas palavras. Entrávamos, despíamos os trajes espaciais, largávamo-nos no leito após um banho estimulante de vapores de oxigê-nio, e deixávamos-nos ficar numa modorra despreocupada, na parte da bolha de teto opaco. (Na outra parte, onde tínhamos uma espécie de sala de recepções, o invólucro era transparente e a visão de Saturno, com sua pirotécnica aneroide conquanto maravilhosa, não era em absoluto espetá-culo que relaxasse os nervos.) Trocávamos meia dúzia de palavras antes do sono que só seria quebrado pelo primeiro sinal do planeta, da Base, quando então teríamos o relato daquela jornada e informações sobre o movimento das naves para os cálculos dos abastecimentos.

Talvez seja influência do espaço, talvez seja contaminação dos no-vos ambientes planetários. Tenho observado que os astronautas pouco fa-lam. E quando falam, estranhamente comunicam muito de si. O principal assunto é o passado. O grão de poeira que ficou para trás. Desde as primei-ras conversas com os camaradas (e os psicólogos sabem muito bem disso) seus familiares, a esposa, o filho, o avô, o cachorro, a namorada ou a moça da esquina, já se tornam velhos conhecidos daqueles e não apenas nomes, como aconteceria na Terra. No primeiro minuto discutimos como são os olhos de Sílvia, quanto era o aluguel da casa velha junta à quadra das es-truturas de tinton, sabemos por imagens mentais perfeitas quem é magro e quem é baixo, qual delas é a mais bela e inteligente, se êle gosta mais de gatos ou de pássaros. E os especialistas aconselham tal procedimento que afasta os desequilíbrios freqüentes e que levam de volta os espaçonautas naquela nave toda branca que sai sempre de madrugada.

Ivã tinha saudades de sua aldeia, nos confins da Sibéria. Duas ou três frases no começo ligadas, depois desconexas, como fragmentos de idéias dispersas, fronteiras entre a vigília e o sono. O pai era homem in-fluente. Sua ambição era a chefia de uma das Estações Lunares. Assim, como dizia, mesmo no espaço, poderia passar fins de semana na Terra. Ivã não demonstrava complexos ou problemas. Como se afirmara certa vez num boletim que o elogiava, era um homem do espaço, símbolo de sua nação.

De mim dei-lhe também bem pouco. Não assistia a televisão, pois gostava mais de ler ou deixar-me ficar na parte coberta da bolha, proje-tando os micro-filmes que nos eram enviados com freqüência. Quanto a Larissa, só me recordo de ter-lhe falado sobre ela uma vez. Foi logo depois da nossa chegada. Em meio a uma conversa sobre fatos passados, incons-

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cientemente o nome de minha noiva me escapou, despertando-lhe curiosi-dade. Ivã perguntou-me então, sempre por meias palavras:

— Larissa? Quem é Larissa? Já nos conhecemos desde Marte e nun-ca você mencionou esse nome.

— Sim, é verdade. Nunca mencionei esse nome. Conto-lhe agora. É minha noiva.

Ivã recriminou-me então, mansamente, como se humilhado pela mi-nha falta de confiança. Tratava-se de um segredo. Talvez ciúmes, talvez egoísmo, nem eu sabia. Não queira que o nome de Larissa se tornasse co-nhecido, fosse repetido, como acontecia com o de todas as demais criaturas que ficaram na Terra e que só viviam em nossa imaginação. Guardava-a só para mim, para os momentos de saudade e desespero.

— Desculpe-me, não vai nisso uma desconfiança. Sei que os psi-cólogos mandam dizer tudo. Assim é mais fácil, criamos uma ilusão que dissipa a distância. Antes da partida ficamos noivos. Na última semana tudo foi resolvido, nossas afinidades eram absolutas.

— E você que nunca disse nada! Está feliz agora? Mais um pouco aqui, mais outro pouco em Saturno e depois a viagem de volta para a sua Larissa. Vamos, deixe de mistérios, como ela é?

Penso que corei um pouco, e que também me humilhei pela trans-gressão e falta de confiança. Como preconizavam os Regulamentos, no espaço devemos ser como de uma só família, pois a intercomunicação au-xilia o equilíbrio mental. Por isso, ao se constituírem as equipes, éramos separados por regiões, idades, preferências, níveis e coeficientes mentais. Penitenciei-me, disse-lhe alguma coisa banal:

— Como é Larissa? Bem pouco sei dizer-lhe. Loira como os trigais da Ucrânia, suave como o Bósforo debaixo do plenilúnio, amiga como uma irmã mais velha. . .

— Tem retrato?— Ah! retrato? Sim, deixe-me ver. — Revirei livros e o retângulo

colorido foi ter às mãos de Ivã. Bem me lembro desse momento. Foi como uma apresentação. Ivã estava perto da coberta transparente e era durante a hora amarela, em seus estertores finais, quando Dione se escondia junto à borda de Saturno. Uma luz dourada e difusa se coava para o interior da bo-lha. Tudo era secretamente tranqüilo e o reflexo de ouro banhava o retrato, anulando-lhe as cores originais. Ivã parou, em pé, e olhou demoradamente. Depois me falou com aquela sua serenidade característica:

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— É bela, compreendo o seu segredo. Tem traços puros, simples, de camponesa ou de nobre. Parece mesmo uma santa, daqueles ícones antigos que só encontramos nos museus.

Não me recordo mais ter-lhe falado de Larissa. O retrato impressio-nou-o e, recordando suas palavras, quando eu a contemplava, em outras mutações, procurava então ver-lhe o rosto de ícone, mas só via a expressão perturbadora. Era com certeza efeito das cores. Naquele planeta seu cabelo jamais seria loiro, seus olhos nunca seriam castanhos. De manhã suas lon-gas madeixas seriam rubras como torrentes de lavas rolando por vertentes. Logo mais seriam verdes, tranqüilamente verdes como um emaranhado de algas boiando na superfície de mares terrestres tropicais. Depois ainda refulgiria em azuis pálidos como a galáxia Coma Berenice, espiralando-se em contornos de universos exteriores se porventura ela se reclinasse, como fazia quando me beijava. Larissa era bela, mas como seria essa beleza ali, em Titã? A beleza como tudo o mais não deveria ser imutável no espaço? Não é uma indeclinável lei cósmica? Esse mesmo raciocínio eu o faria depois, bem depois, na Terra, onde os fatos se passaram.

A micro-nave chegou na hora cinzenta. Seus dois tripulantes ficaram conosco por cinco colorações e divertimo-nos um bocado sabendo notícias de Saturno e informes da Terra. Mas para mim o grande acontecimento foi a carta, a carta de Larissa. Devia ter vindo de Marte, há uns seis meses ter-restres, mais de um ano portanto da Terra. Os companheiros foram cruéis: só me deram o envelope plástico no momento da despedida.

— Vamo-nos agora, mas aqui fica esta compensação. Coragem, amigo, deixe a imaginação voar para a Terra algumas horas. A carta o au-xiliará, seja de quem fôr.

Ivã ficou silencioso e os demais riram. A micro-nave estourou pelos anéis e êle se isolou junto ao painel de televisão. Eu apertava a missiva como quem segura um tesouro. Retirei-me para o canto escuro da bolha disposto a não partilhar minha felicidade. Quando eu voltaria? Que fazia? Sentia saudades? Como era Saturno? Como iam os trabalhos? Já sabia do meu regresso ao fim do outro ano terrestre. Queria alguma coisa de Titã, de Dione, de Reia ou de Tetis, alguma coisa como lembrança dos satélites, dos anéis ou mesmo de Saturno. Eu não percebia que ria sozinho como uma criança. Sim, se fosse possível roubaria um pedaço dos anéis do planeta e dar-lhe-ia como símbolo de aliança matrimonial, como era costume há muitos séculos. Mas lembrança, que poderia levar-lhe como

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lembrança? Talvez uma rocha brilhante, um calcáreo polido, fragmentos meteoríticos, poeira cósmica, qualquer coisa bela enfim. Quando contei esse pedido a Ivã êle também riu.

— Leve-lhe um pouco de metana num vaso transparente, é a lem-brança mais característica deste mundo. Mas não a deixe abrir o frasco, que o cheiro não será de todo agradável. . .

Rimos juntos e saímos para as revisões finais, pois então só faltavam uns poucos metros a ser calafetados.

Na véspera da partida, à hora rosada, foi que vi a estranha flor. Nun-ca havia reparado antes, mas é certo que jamais estivera perto daquela aglomeração vegetal que se perdia até o charco de meroplâncton. Ivã se encontrava longe, no reservatório intermediário, e terminava também o seu trabalho. Quando me levantei e a examinei ainda de longe, pensei que a flor fosse um calcáreo de forma insólita, como muitos que haviam por ali. Logo vi que me enganava. Lembrava uma açucena terrestre, toda aberta, maior do que um punho, com um caule longo que terminava em filamen-tos nodosos. E cintilava estranhamente, como se tivesse uma luz própria, como se fosse luminescente.

Aproximei-me, curvei-me e vi então que de perto era ainda mais bela. Contei-lhe as seis pétalas que se abriam simètricamente, todas elas de um aveludado espesso cujos bordos, como ourelas, brilhavam mais ain-da. E do centro, com a mesma morfologia das flores terrestres, brotavam várias antenas mais altas cujas terminações sustentavam protuberâncias esféricas. O caule era longo e do meio para baixo lançava ramificações grosseiras que destoavam da leveza da corola. O ar estava parado, os gases corriam mansamente junto ao solo, mas mesmo assim a haste se movi-mentava docemente, fazendo com que a corola traçasse círculos e mais círculos, o que era fantástico devido sua luminosidade. A descoberta se deu na hora rosada. Batida, impregnada dessa côr, não pude saber ao certo quais as cambiantes daquele vegetal desconhecido. Levantei-me, olhei ao redor. Era um exemplar único. Nada mais idêntico ou semelhante havia nas proximidades.

Confesso que nesse momento não tive ainda a idéia. Apenas memo-rizei o lugar do achado e voltei-me para contá-lo a Ivã. Isso interessaria de perto os botânicos. Jamais ouvira falar naquele espécime e, além do mais no solo venenoso de Titã. Meu companheiro estava longe e resolvi, dei-xando a notícia para depois, terminar as inspeções restantes.

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Na bolha, na mutação alaranjada, Ivã ouviu, admirado. Como, tão raro vegetal em Titã? Que estranhas e imprevistas evoluções geravam-se naquela atmosfera! Era inacreditável. Decidimos voltar, mas então me ocorreu a idéia. Lembrei-me de Larissa, recordei-me do seu pedido — a lembrança. Como não pensara nisso no momento do achado? Que presente maravilhoso não seria aquela flor! Ivã sorriu e advertiu-me que deveria an-tes ser estudada pelos botânicos, assim determinava o Regulamento. Mas eu poderia escondê-la. Afinal, era apenas uma flor. Se encontrara uma, deveria por certo existir outras e Titã estava ali bem no nariz dos espe-cialistas da Base Saturniana. Faria constar o achado dos relatórios, tiraria fotografias, daria as coordenadas, mas levaria a flor para a Terra, num tipo então comum de contrabando que por certo passaria despercebido.

Seguimos a canalização até o ponto onde eu estivera. Localizei o charco de meroplâncton e observei que o gás se agitara mais avolumando-se em caudais ainda rasteiras mas que prenunciavam explosões subterrâ-neas. Não tínhamos portanto muito tempo. Estávamos protegidos contra o metano, nosso oxigênio dava por muito tempo, mas enfrentar os turbilhões de gás era desagradável e havia sempre o perigo de uma sucção violenta, como já acontecera. Não tínhamos, pois, muito tempo a perder. Localizei bem o ponto onde estava, mas não vi a flor. Através do elmo que rebrilha-va debaixo da coloração laranja vi que Ivã ria, como que se divertindo à minha custa. Procurei, procurei por todos os cantos. Pelo fone veio som do riso e uma frase jocosa:

— Então, onde está a sua maravilha, o seu fenômeno? Eu não disse? Está na hora de voltar para a Terra. Você está começando a ter alucina-ções.

Não respondi. Abaixei-me mais e continuei a busca, já apavorado com a suposição de meu companheiro. Mas nada, só o mesmo solo de mundo morto, por onde o metano escorria sibilando e empastando a pai-sagem.

O incidente preocupou-me. Como poderia ter a flor desaparecido? Ivã teria razão? Tratar-se-ia duma alucinação?

Nesse dia trabalhei completamente ausente. Não entendia o que mi-nhas mãos executavam e ao acabar o ajuste da última seção, estava tão alheio que custei a me dar conta que a revisão terminara.

Voltei então ao lugar do achado. Galguei a elevação, vasculhei as encostas, esgueirei-me junto aos pontos mais saturados de metana e quan-

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do ia desistir, deparei outra vez com a flor, na hora amarela, ondulando como antes em movimentos suaves.

Aproximei-me, e verifiquei que ela estava a boa distância do lugar onde antes se achava. Como se processara o deslocamento? Teria sido ar-rastada pelos vapores? Talvez aquele caule longo, cheio de raízes protu-berantes, tivesse a propriedade de agarrar-se ao solo conseguindo outras fixações, todas as vezes que o vegetal fosse perturbado por vento mais forte. Abaixei-me, quase cheguei a tocá-la. Assombrei-me então: as raízes, como veias protuberantes, pulsavam e retorciam-se sobre o punhado de rochas escuras em que se agarravam, os filamentos entumeciam-se e se afinavam como se em seu interior escorresse seiva que fosse absurdamente sugada do mineral sobre o qual se firmava. Talvez a flor se movesse, talvez se movimentasse, levada pelas raízes, busca do alimento necessário. Mas — não seria então um vegetal. Cheguei a ajoelhar-me e quase encostei o elmo junto da corola. As pétalas, agora amareladas, eram intensamente luminosas, como se estivessem recobertas de uma leve penugem. Estiquei o dedo enluvado, toquei a borda saliente. Era como uma sensitiva: a pétala contraiu-se e dobrou-se ao mesmo tempo que a luminosidade arrefeceu como se algum circuito tivesse sido desligado; o caule agitou-se como se recebesse um comando da pétala profanada e as raízes filamentosas engur-gitaram-se, quando então verifiquei que as ramificações se soltaram da base rochosa, deslocando-se como um aracnídeo.

Num momento, perante meus olhos atônitos, aquela maravilha ve-getal (seria mesmo vegetal?) palmilhou vários metros, parando em segui-da, sempre com movimentos ondulantes. Era uma coisa pasmosa, custava a acreditar. Que não diriam os botânicos? Esse exemplar valeria milhões, seria disputado pelos cientistas! Para mim não importava se era vegetal ou animal. Era apenas uma coisa bela, uma coisa extraordinária que palpitava no meio daquela atmosfera venenosa de metano, circunstância essa que se tornava ainda mais enigmática. Só sabia que eu transportaria essa beleza secretamente para a Terra, para o meu mundo, levando assim para Larissa uma lembrança jamais imaginada. Sim, ela respirava metano, talvez extra-ísse do gás putrefato a essência de sua vida. Mas isso não criaria dificulda-des. Havia campânulas, as redomas plásticas para a colheita de amostras. Colocaria minha flor debaixo de uma daquelas redomas e adaptaria na base ampolas de gás.

Levantei-me disposto a executar o plano. Comecei a andar depressa

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para a bolha, pensando agora na côr do vegetal. Quando a localizei fôra debaixo da luz rosada. Agora a reencontrara sob a luz amarela. Mas como seria a corola debaixo da luz terrestre? Como seria sua inescedível beleza ante a coloração neutra da Terra?

Ivã não estava na bolha. Terminara seu trabalho e, na cabine da mi-cro-nave, por certo tomava contato com a Base. Não me viu entrar e nem sair.

Enquanto voltava, eu já antevia a alegria de Larissa. Era um pre-sente jamais sonhado, uma dádiva ímpar, bem diversa de seixos, pedras ou poeira ou mesmo de liquens e flôres comuns. E além do mais, era uma beleza irradiante, viva, que obtinha sua seiva de um gás putrefato numa metamorfose estranha. Apressei o passo, apertei junto a mim a campánula transparente. Ela viveria muito tempo enclausurada? Resistiria longe de seu mundo de coloridos desconcertantes? As rochas, sim as rochas. Talvez não bastasse a metana. Talvez as rochas de Titã tivessem também algum papel importante no seu processo, vital. Levaria o suficiente. Cobriria a base da redoma com fragmentos de rocha. Talvez assim resistisse, pelo menos até a chegada na Terra. Depois, então, poderia mesmo construir uma espécie de abrigo, de viveiro maior.

Lá estava ela no mesmo sítio. Aparentemente não se movera. Como se tentasse aprisionar um animal, aproximei-me, pé-ante-pé. Parada, só o movimento circular das pétalas. A que eu tocara, se abrira de novo e sua lu-minosidade era agora idêntica às demais. Bem perto, levantei a campánula e a fui abaixando pouco a pouco. A flor ficou estática. O caule continuou erecto e numa fração de segundo observei que as raízes pararam de pulsar. Hesitei outro segundo e vi que um filamento maior espessou-se, percorri-do por uma golfada de seiva. Ela pressentira alguma coisa. Talvez fosse mover-se, talvez levada por um instinto misterioso procurasse fugir. Abai-xei o invólucro com segurança, calcando-o sobre o solo. O vegetal agitou-se, foi possuído de luminosidade ainda maior e as raízes destacaram-se e, frenèticamente, lançaram-se às paredes da redoma, como que procurando libertar-se. Enfiei a base por baixo das pedras e cavei ao redor, atapetando a redoma com uma boa porção de pedras e de poeira. Inclinei-a e ajustei os encaixes, vendo então que a flor maravilhosa estava prisioneira.

Não distingui qualquer modificação de seu aspecto. Apenas as raí-zes se torciam e se assentavam sobre as paredes internas, como se fossem as mãos frenéticas de um encarcerado procurando remover as grades de

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um ergástulo. A corola, ao tocar a parte superior da campánula, contraiu-se e o caule màgicamente diminuiu de altura, quando vi que as protuberân-cias se engurgitaram com movimentos peristálticos. A côr, a luz, em nada se alteraram. Mesmo assim, logo liguei na base de minha gaiola a primeira das cápsulas de metana.

Ivã olhou espantado:— Sim, é uma raridade, um presente régio! Você tem razão, lembra

mesmo uma açucena, tem qualquer coisa da família das hemerocales. — Pousou-a sobre a mesa e advertiu-me circunspecto: — Mas atenção! Você sabe que isso é ilegal, que o Regulamento pune? Ela é sua, será sua, você a achou em expedição de trabalho e não científica. Entretanto, primeiro devia passar pelos especialistas. Você agüenta as conseqüências?

Lembro-me bem como respondi:— Assumo o risco, apenas eu. Quero que Larissa receba o presente

intocado. Não sei se a flor resistiria a experiências e exames. Eles não respeitam a beleza, apenas querem a essência. Assim, não lhes interessa a preservação, querem dissecá-la. Contentam-se com os porquês.

Minha bagagem era volumosa, a de um homem do espaço numa peregrinação de três anos. Vários trajes cósmicos, quatro elmos, muitos sapatos anti-gravitacionais, livros, instrumentos de minha propriedade, caixas com amostras liberadas, objetos de uso pessoal, além dos registros portáteis de minhas atividades, propriedade da Divisão a que eu pertencia. Foi fácil o transporte da campánula inquebrável para bordo, no meio das roupas.

Em fase alguma do vôo notei alteração de seu estado. Só a côr se modificou depois da saída de Titã e de Saturno. Eu mantinha o gás compri-mido, fiscalizando-lhe a temperatura e a pressão por meio de instrumentos contidos na base do invólucro; notava-lhe uma coloração esverdeada e que as pétalas brilhantes tomavam a mesma côr, destacando-se na penumbra de minha cabine privada.

Em Saturno não havia recebido notícia alguma e me decepcionei com a informação da Base Marciana de que não havia nenhuma corres-pondência para mim. Não fizemos escala em Marte e, quando o globo terrestre se foi avolumando nos visores me certifiquei de que Larissa re-ceberia o presente. Quanto ao meu companheiro, Ivã, ficara em Saturno completando seu estágio. Depois de cruzar a zona lunar enviei mensagem ao espaçopôrto.

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Momentos antes do pouso examinei meu tesouro. Renovei a pro-visão do gás, medi a pressão e a temperatura. Tudo estava em ordem. As pétalas luziam na semi-escuridão e as raízes fila-mentosas pulsavam em ritmo certo. Sua côr era ainda esverdeada.

Todos, menos Larissa. Pela ogiva não consegui localizá-la. De fato, seriam duas maravilhosas surpresas. Como seria mesmo Larissa debaixo da luz terrestre? Como eram seus cabelos, a côr de seus olhos, o tom de sua pele, o colorido de seus lábios? Três anos, três anos da solidão cósmi-ca! Debaixo da luz cambiante de Titã eu não mais sabia como era a minha amada, só sabia que era bela. E a minha flor? Sempre inesperada e mis-teriosa, que côr assumiria ao ser envolvida pela luz da Terra? Logo, bem logo tudo seria desvendado.

E Larissa? Minha mãe, meu pai e até meu avô. Minha irmã tinha ido para a Base Lunar e meus sobrinhos não conseguiram a dispensa do estu-do. Afinal, que era a volta de um homem que passara três anos no espaço? Que jornardeara pelos canais marcianos, estudara os satélites de Saturno, pernoitara em Júpiter? Nada. Fato corriqueiro, que não poderia justificar uma dispensa de aulas.

E Larissa? Nada me disseram, só depois é que vim a saber de tudo. Minha mãe desviou-se do assunto. Meu pai abraçou-me e auxiliou-me a levar a bagagem, inclusive a campánula coberta. Tive a recepção normal de meus superiores que puzeram a condução à minha disposição, não des-confiando de meu desconcertante contrabando.

E Larissa? Onde estava? Porque não viera? Meu pai e minha mãe consultaram-se em voz baixa. Depois explicariam, lá em casa. Estava do-ente? Não obtivera licença para ir ao espaçopôrto? Viajara? “Depois expli-cariam, depois explicariam tudo, agora para casa, meu filho”.

Meu pai deu-me a carta assim que chegamos. Fechei-me no meu an-tigo quarto. Já percebera tudo. Não queria por algum tempo ver ninguém, queria apenas pensar. Nem mesmo precisava ler. Larissa, a minha Larissa. Três anos é em verdade um longo tempo para uma jovem esperar. Ah! — desculpava-se — encontrara novas afinidades, não sabia como dizer-me, tinha medo de minha reação. Bobagem, reação? Que reações podia ter um espaçonauta? Um ser tão bem treinado como eu resiste a tudo, até a quebra de um sonho. Nunca mais veria Larissa, não poderia saber portanto como eram realmente seus cabelos, seus olhos, o tom de sua pele. Só me lembra-va agora de seu retrato sob a mutação saturniana. Novas afinidades, vida

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nova com o técnico da Base de Vênus. E porque não me enviaram a carta? Teriam logo destruído a ilusão.

Lembrei-me então do presente. Não tinha mais razão de ser.Coloquei a campánula sobre a mesa de meu quarto. Abri os repos-

teiros metálicos, deixei que a luz do nosso sol inundasse todos os cantos. Lembro-me que me pareceu então uma luz pobre, sem vida, moribunda, estagnada, confortadora mas monótona, sem as emoções cromáticas de Titã.

Não esperei mais, saberia então qual a cór de meu vegetal vivo. A cobertura caiu e contemplei a flor mergulhada em seu cárcere transparente de metana. Decepcionei-me: ela não tinha colorido algum. Era branca, de um branco acinzentado, comum e feio como a maioria das flores alpinas. E o brilho? Desaparecera. Não irradiava cintilação alguma. Eram pétalas prosaicas de açucena incolor e vulgar, que apenas se debatiam angustiada-mente sobre as paredes do plástico, como se tentassem fugir. Contraídas, as raízes distendiam-se, como se também reagissem àquela luz fulva e desconhecida.

Não havia ninguém a ser oferecido o presente. Daria então àquela flor a liberdade. Desliguei o tudo de metana. Aproximei-me da janela e pousei a redoma sobre o parapeito. Levantei o invólucro, afastando-me do cheiro desagradável do gás que se espalhou pelo ambiente e buscou as janelas levado pela corrente de ar.

Foi então como num sonho ou como num pesadelo.As raízes eriçaram-se. O caule aprumou-se numa imponência final e

a corola distendeu-se como se absorvesse o ar de nossa atmosfera, embria-gando-se num segundo de euforia e delírio. Depois, depois vi assombrado, que o caule começou a diluir-se. Em momentos a corola pulverizou-se, os estames fundiram-se em pó, e em menos de um minuto tudo se transfor-mou numa poeira fina e suja que se acumulou sobre a base de pedra que era também pedra comum, suja e feia.

Aproximei-me, curvei-me sobre o montículo mal cheiroso e soprei aquele resíduo atomizado que se perdeu pelas alturas, de minhas janela, como que tragado pela ambiência terrestre.

Enganara-me, a beleza jamais pode ser transplantada. E Larissa? Como seria ela em Vênus?

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Especialmente, quando sopra outubro

Os próprios pais não sabiam quando os sintomas iniciais apare-ceram. E o nome sempre fora, desde o começo, “perturbação”. Nem o primeiro médico, amigo da família, pela mão de quem Ângela viera ao mundo, nem os especialistas posteriormente chamados, jamais falaram em moléstia ou qualquer outro termo científico. Apenas e tão somente “per-turbação”, como se o eufemismo pudesse confortar os pais e proteger a menina da contundência de uma designação mais explícita.

Cinco ou seis anos após o nascimento de Ângela, o velho médico revolveu as fichas do seu arquivo, teve de contentar-se, nada achando de especial, apenas com as recordações. Como as lembranças eram comuns, não havia outra saída senão aceitar a completa naturalidade do parto de que nascera um bebê rosado e chorão como os outros, recebendo palmadas nas costas e irrompendo para a vida num alarido festivo que reboara pelos corredores como nota álacre ansiosamente esperada.

Mas, ordenando-se os fatos e as recentes etapas da existência de Ângela, certo acontecimento havia que poderia ser fixado como o início das “atribulações”. Só os especialistas anotaram essa ocorrência, tênue fio capaz de deslindar a meada. Fora num mês de outubro, no dia em que a menina completara cinco anos. E o que se anotara nas fichas? A festa, os amigos, os parentes, a casa de campo cheia de visitas, o bolo, as luzes, as cores, o vestido rendado da aniversariante e, por fim, a sua inesperada crise de choro, fechada no quarto, estirada na cama. Convulsão violenta, reação

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histérica, recusa em descer, atitude anormal e injustificada que provocara a assistência médica e a primeira poção de sedativo que transportara Ângela ao profundo sono. A mãe, ainda viva, impressionara-se com a transforma-ção da filha, e contava, desfeita em pranto:

— Lembro-me muito bem. Foi em outubro, numa tarde fria e vento-sa, no dia do aniversário dela. Não foi o seu choro que me impressionou, mas o seu olhar de ódio. Em lágrimas largada no leito, não queria que eu me aproximasse sequer. Tinha a expressão distante, longínqua, e quando fixava os olhos em nós era como se fôssemos desconhecidos.

Com o decorrer dos dias e dos meses, porém, o episódio do aniver-sário foi sendo esquecido e ninguém lhe deu mais importância.

Na verdade, talvez apenas se tratasse de um capricho de infante que defende seu universo da invasão de estranhos, uma crise de solipsismo num sombrio crepúsculo de outubro. Com certeza apenas isso, nada mais.

Já pelos seis ou sete anos as coisas foram se complicando. Intros-pectiva, como fechada numa redoma, Ângela convivia consigo mesma. Mal tolerava os familiares e os domésticos. Em relação aos outros parentes e estranhos manifestava incontrolável repulsa.

Quando morrera a mãe, ao tempo em que a menina completara oito anos, ela já organizara definitivamente o seu universo. Ilha remota no âma-go do casarão cujos prolongamentos geográficos alcançavam a estrada e a alameda de cedros, não raro se espraiando pelas colinas das quais se divi-sava a cidade ao longe e a chaminé sempre coroada de fumo que assinalava a atividade da fábrica do pai.

Havia a governante. A velha alemã, de compostura solene e andar rígido, impassível na aparência mas dedicada, aquela que lhe sugerira os primeiros devaneios com histórias de elfos e de fadas, de gênios e duendes que habitavam o lago escuro, que se escondiam pelas ravinas e que pelas madrugadas quentes saiam aos bandos em busca de vaga-lumes. Cenários estimulantes, eram nada e tudo ao mesmo tempo. Solidões geladas onde lobos uivavam ou feudos tranqüilos onde princesas sonhavam com seus eleitos; nuvens rosadas que sustentavam castelos ou desertos onde ondula-vam miragens. Os domínios da menina eram imensos, màgicamente povo-ados. O que menos importava eram as bonecas, os coelhos de pelúcia, os cachorros e gatos de feltro, ou o elefante enorme, cinzento, de cela encar-nada, que respondia com um ronco todas as vezes que Ângela lhe puxava a argola implantada no dorso. Tais brinquedos não passavam de simulacros

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banais, réplicas fraudulentas de certa realidade desinteressante. Por isso ela os desprezava. Dispunha de algo superior que tornava inúteis as fábri-cas de brinquedos, a fortuna do pai ou mesmo as sugestões da governante. E esse algo era — a imaginação.

Não precisava fechar os olhos, mas apenas recorrer ao tenaz impul-so da sua vontade: e lá surgia o seu mundo. Quando as coisas começavam a delinear-se, a concentração aumentava, tornava-se imperioso continuar. Os olhinhos da menina se contraíam, fixavam-se com angústia no pon-to visado: a clareira banhada por uma réstea de luz, o espaço vazio no lago em meio aos nenúfares, o caminho da encosta ladeado pelos abetos. Então as aparições iam se configurando. Primeiro, os contornos do urso, apenas o perfil; uma linha indecisa que não chegava a interromper a paisa-gem. Concentrando-se mais, o monstro aos poucos ia ganhando forma. O dorso acentuava-se, nascia a possante cabeça, delineava-se a boca hiante, brotavam os dentes ponteagudos. Ângela sentia-se tomada por um calor intenso e estimulante que fazia brotarem miúdas pérolas de suor em sua testa delicada, nas palmas de suas mãos franzinas. Ria, ria alto, pois esta-va bem longe da governante e podia divertir-se à vontade, esforçando-se para completar a figura daquele amigo ameaçador. Da goela escancarada do urso extravazava a saliva, as patas se elevaram, as garras exibiam-se ferozes, as pupilas destilavam sangue. Num esforço supremo a menina fazia com que a fera soltasse um urro bárbaro que, acentuando ainda mais o peso do animal, produzia estalos na vegetação debaixo de suas patas. No momento em que o monstro se aprestava para o golpe, ela cortava o fluxo da imaginação. A fera se diluia no espaço, deixando o solo intacto e a paisagem perfeita.

Nem mesmo ela sabia como chegara aquilo. Talvez a princípio só imaginasse flores. Acompanhada ou solitária, sempre lhe aprazia colher pelos campos tudo o que de belo encontrasse. Um dia, violetas. Sonhara com violetas, saíra a procurá-las. Jamais poderia encontrá-las naquela es-tação. Parara então junto ao lago, rente ao tufo de hortênsias, e se fixara no canteiro. Eis que nasceram violetas. Colheu-as, armou-as num pequeno buquê, arrumou-as no vaso e mostrou-as a todos. Mas como, violetas nesta quadra do ano? O jardineiro surpreendeu-se. Em que alfombra as achara? Ajustando os óculos o ancião abaixou-se junto às hortênsias sem nada en-contrar. Depois, as rosas amarelas, as peônias azuis, os ciclames dourados. Ângela em breve descobriu que podia aperfeiçoar os seus podêres. Era

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muito interessante êsse nôvo brinquedo, mas sob a condição de que perma-necesse absolutamente secreto. Até então ela criara coisas de que gostava e que conhecia, o que eqüivalia a dizer — coisas que existiam, pois é razo-ável admitir-se que só existe o que se conhece. Ursos, gatos, cães, violetas e ciclames, às vezes mesmo abusando do privilégio de que dispunha e se proporcionando o capricho de divertir-se ante um coelho encarnado ou um leão azul. Mas a partir de certa época descobriu que também podia criar coisas que jamais vira e que, portanto, não existiam.

Como experiência, o que produziria em primeiro lugar?Saiu de casa às escondidas, procurou o recanto mais remoto do

parque, onde nem mesmo o jardineiro costumava penetrar. Fixou todo o seu pensamento na rocha, começou a polarizar a própria vontade. Como sempre, os olhos se contraíram, o suor começou a escorrer, fortes vincos marcaram-lhe a face, tornou-se rubra. Os contornos imprecisos foram aos poucos eclipsando o rochedo. Concentrando-se ao máximo, Ângela se tor-nava agora lívida. Pronto. Ali estava o anão. Necessariamente grotesco, primeiro a giba, depois as mãos longas, aduncas, a cabeça enorme, todo vestido de prateado, com um barrete verde que lhe emprestava certa his-trionidade medieval. Nisso, Ângela ouviu a voz do jardineiro chamando-a em altos brados. Apavorou-se, descontrolando-se. Sentiu o perigo que cor-ria. O anão não era a violeta ou a rosa amarela. Era uma coisa que não existia, que atendera ao apelo de sua força interior. Tinha que proteger o filho de sua mente. Não desligou a imaginação aos poucos, mas abrupta-mente; e o resultado imprevisto foi impressionante: uma cabeça restou a gemer lastimàvelmente, um pé se pôs a estertorar como um réptil, dois de-dos gesticulavam no corpo morto como se pertencessem a um enforcado. O velho jardineiro pálido ao seu lado, depois a governante, teriam visto o anão? A cabeça solta no espaço, os pés lagarteando na lama, os dedos bailando no ar?

Não, ambos nada viram. O que viram, com estupor, foi o esgar que deformava a expressão da menina, o olhar repulsivo de quem teve um mo-mento de gozo interrompido.

Depois, meses, estações, primaveras e invernos, outubros ventantes. O brinquedo e as experiências se aperfeiçoando sempre. Coisas estranhas nasciam agora da imaginação de Ângela adolescente. Criaturas débeis, delgadas, de olhos de um verde profundo; flores complicadíssimas cujos perfumes despertavam sensações inebriantes; anões e mais anões, sempre

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com as mesmas vestes prateadas e o mesmo ar atoleimado. E, às vezes, sêres que nem mesmo imaginara: olhos imensos, destituídos de cílios e de pálpebras, que apenas lhe estendiam os braços e lhe sorriam, e cujos umbigos se assemelhavam a incríveis corolas.

Mas se dos bichos obtinha urros e ganidos; se com as flôres con-seguia perfumes, com as criações antropomórficas nada mais conseguia além das imagens. Apenas a presença, os gestos vagos e harmônicos, as expressões acentuadas de prazer, de surpresa, a adesão irrestrita aos seus convites ou insinuações, a absurda concordância aos seus mais ligeiros pensamentos. E era então um diálogo de silêncios, uma cabra-cega de sur-dos-mudos, um esconde-esconde inusitado onde risos e vocativos cediam lugar ao crispar de músculos, ao distender de lábios, ao cerrar de olhos, adesão completa mas silenciosa ao seu comando.

Ora, conforme receava, um dia o brinquedo terminou. Por certo, espionagem do jardineiro, delação da governante; talvez um momento de descuido e fora pilhada pela fresta da porta, de uma janela entreaberta, uma falha da vegetação.

Ângela se lembrava. Primeiro um estranho, dias depois outro. Mais tarde, dois. Depois ainda outros e outros. E não só em sua casa, na cidade, na outra cidade, na cidade maior ainda. Dois, três, perguntas e respostas. “Como? Não sei, não entendi, o quê?” “Minha filha, responda, eles não vão fazer-lhe mal algum, querem apenas ajudá-la. Vamos, acalme-se, res-ponda”.

Muitos olhos, muitas mãos, janelas sobre parques sombrios, cheios de pessoas que caminhavam de cá para lá, como num jogo sem sentido. Sentadas, em pé, em cadeiras que rodavam, deitadas em camas que se moviam. O branco, tudo branco, o cheiro desagradável de paredes recém-pintadas.

Por algum tempo tudo ficou longe. Mas Ângela sabia que não estava só, que alguma coisa havia dentro dela que lhe era superior, impedindo-lhe os delírios da imaginação. E mesmo quando pensava em seus amigos eles agora não apareciam, conquanto lhes sentisse a presença. Màgicamente, num processo oposto tudo se inverteu. Se antes imaginava e via, nada en-tretanto ouvia. Agora, fiscalizada no palácio álgido, dava-se o contrário: imaginava mas não via, escutava e sentia. Não precisava das palavras do pai, das insinuações lentas e hesitantes dos estranhos. Falava sem dificul-dade alguma. E, respondendo, via o assombro que se imprimia nos rostos

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que a cercavam. Tais respostas seriam suas? Tudo se tornava mais fácil, libertando-a de qualquer sensação de pavor. Sabia. Sabia firmemente: seus amigos agora falavam por seus lábios. Porque não? E era divertido obser-var o espanto que aquilo despertava em quantos pretendiam dialogar com ela.

Foi por essa época que um fato derradeiro se juntou às suas experi-ências.

Certa madrugada, encontrava-se sozinha, semi-adormecida no leito. A janela escancarada deixava entrar uma claridade tímida e o vento morno de outubro ondulava as cortinas que projetavam no quarto sombras fan-tásticas.

Fora um apelo? Um convite sussurrante? A brisa cálida da aurora? Um toque imperceptível de mão sobre seu seio nascente? Um comando descido do futuro ou uma súplica subida do passado?

Ângela levantou-se. O personagem estava debruçado no peitoril da janela. Os olhos do visitante faiscaram, salpicando as paredes de gotas de luz espectral. A criatura supra-terrestre flutuava. Seus membros eram com-pridos e leves e não se lhe distinguia o rosto cujas feições eram vedadas por um elmo translúcido.

Ângela acompanhou-o, fascinada. Sobre o parque adormecido viu os círculos brilhantes e concêntricos. Discos ordenados entre si como se fosse gemas de uma jóia rara. A neblina rosada, o rodopio estonteante, a ciranda endoidecida crestando as tolhas verdes, vencendo a brisa de outu-bro, gerando uma pequena aurora dentro da aurora maior.

A derradeira estrela recolheu o seu brilho, a última e a mais pró-xima, como pupila que se fecha, como lampadário que se exaure, como farol que ante a fuga da treva desliga seu facho, certa de que a mensagem fora captada; esperando tranqüila, agora, que a exilada socorrida viesse ter segura ao porto de origem, cessado o pesadelo de seu destêrro.

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A evidência do impossível

Tudo ocorreu quando as criaturas utilizaram pela terceira vez o novo sistema de deslocamento cósmico. Se no começo alguém se referisse a esse meio de vencer a distância inter-galática seria considerado insano ou visionário, pois era crença inabalável, mantida por várias gerações, que a máxima velocidade possível era a da luz. Assim, num processo natural de evolução (já que o espírito se complexifica na mesma escala que a matéria) o ponto de partida foi a vitória daquelas criaturas sobre a atração gravita-cional do seu planeta, morada remota metida num dos braços maiores da galáxia em espiral.

O degrau inicial havia sido a colocação em órbita do primeiro sa-télite. Em seguida, o delírio de invenções realmente assombrosas: sondas estelares, máquinas informacionais providas de inteligência-semântica, a própria substituição do ser nas aventuras antes impossíveis por veículos racionais, tudo investigando numa réplica perfeita das criaturas. Depois ainda, partindo sempre da famosa lei de realimentação, os engenhos adap-tativos que em seu determinismo chegavam a excluir o controle programa-do pelos vivos naturais. Em outras palavras — a matéria auto-governada levando à tele-transportação.

Foi essa circunstância que permitiu o novo estágio das investiga-ções galáticas. Pois, como aconselhavam os cientistas de certo passado remoto, o conhecimento só tem valia pelo conteúdo de inteligência ou de imaginação que informa. E esta, limitada nas criaturas, adquiriu na má-

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quina um desenvolvimento imprevisível: conquistou não só a própria fi-nalidade da ação, mas sobretudo a força do próprio agir, o que eqüivale dizer — a possibilidade de auto-criar-se. A partir desse progresso, do que muitos chamavam “cibernética”, as criaturas haviam obtido o transporte à distância da matéria viva organizada em condições de reproduzir-se, ou seja, “daquela” humanidade.

E então as movimentações cósmicas que antes, ao tempo da crença na velocidade máxima da luz, eram tidas como impossíveis, passaram a realizar-se com absoluto êxito. Não mais se necessitava de naves inter-planetárias, de astronaves custosas, propelidas pela iônica ou pela fotô-nica. Nem mesmo se arriscavam as criaturas, conquanto submetidas ao comando de pilotos infalíveis. Tudo se processava com inteira segurança, só sendo enviado o “vivo” depois que a máquina responsável pela missão estivesse bem plantada em seu destino, nos descampados áridos ou nas praias alagadas de um mundo distante.

Na experiência inicial ocorrera um pequeno engano. Tudo desen-volveu-se com relativa facilidade, segundo a planificação. O primeiro alvo fora um planeta escolhido por suas possibilidades de vida, no sistema glo-bular aberto NGC 345. A máquina, denominada “duplicadora reversível”, lançou-se num deslocamento cósmico normal, nos limites da velocidade da luz que foi gradativamente superado. O mecanismo, tão logo se ajus-tou ao astro visado, informou que a matéria viva poderia ser desintegra-da, apta para a síntese. Tudo decorreu bem. Na base de lançamento as duas criaturas ingressaram no tubo translúcido acoplado a “modelos”, e a desmaterialização se processou. Lá naquele outro mundo perdido onde o complicado engenho pousara sob as luzes de um sol que já caminhava para a morte, deu-se a gênese: dois seres, reintegrados, surgiram no inte-rior do tubo translúcido e, após curto sono, mostraram-se aptos a cumprir as respectivas tarefas, sem o mínimo cansaço da viagem de oitenta e dois anos-luz. Apenas um ligeiro formigar de mãos, um leve arder de olhos, um estremecimento de músculos, uma prontidão de neurônios. Foi então que se evidenciou o único erro: os dois tele-conduzidos, implantados em outro mundo, não tiveram tempo de ajustar-se à nova realidade ambiente. Completa e inesperada falha de seus órgãos sensoriais não pôde ser sanada pelos conservadores da vida.

Já na segunda viagem o êxito resultou completo. Para as plagas de ZN-354, um ninho planetário, partiram dezenas de criaturas, lá se origi-

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nando uma colônia. E foi esse sucesso que incentivou explorações mais distantes, em busca de possíveis criaturas que até aquele momento não haviam sido encontradas. E não só a procura de seres viventes, mas tam-bém na tentativa de aclarar certos mistérios siderais até então indecifrados, como por exemplo a extinção de algumas estrelas em condições inexplicá-veis: após o súbito aumento de sua massa ocorriam tremendas explosões e elas iam se apagando até se transformarem em mundos mortos.

Nascera então e se consolidara o projeto mais audacioso dos senho-res do espaço e do tempo: um teletransporte além da galáxia, em outro universo-ilha, para as imediações de certa estrêla situada no têrço-médio do ramo maior da espiral, que nem nome ou designação tinha. Lá, segundo tôdas as conclusões, a vida idêntica era possível.

O duplicador foi enviado. O deslocamento foi perfeito. Logo se anunciou que o engenho se achava em condições de funcionamento na altura equatorial do minúsculo planeta, o qual por sua vez gravitava em órbita de outro planeta, morto, um subsatélite portanto.

Como na primeira experiência, os viajantes — agora em número de três — entraram no tubo translúcido. Três criaturas hígidas perfeitamente condicionadas, ávidas pela missão. Após as despedidas, em poucos mo-mentos foram desintegradas e, a seguir, recompostas no meio insólito que as aguardava.

O mais gigantesco foi o primeiro a sair do tubo, depois das adapta-ções biológicas indispensáveis para suportar a agressividade do ambiente sem atmosfera. O segundo logo começou a coletar dados para a Base, que por sua vez já preparava o envio de mais alguns expedicionários, pois se temia a reação das “outras criaturas”, possíveis habitantes daquele mun-do. Os recém-chegados poderiam ser tratados como “monstros”, já que a morfologia variava profundamente de planeta para planeta, na dependên-cia básica de sua massa, determinando por certo pigmeus os gigantes. Os teletransportados lá seriam considerados gigantes, produtos que eram de um astro imenso, naquele asteróide senil, lavrado de crateras.

O terceiro viajante se concentrava no exame de suas próprias rea-ções orgânicas e transmitia os dados vitais.

O impacto dos três foi aterrador. O solo, de matéria desconhecida, estremecia ao som das passadas. Sons? Não se podia falar em sons naquele planetóide sem gases. Antes, vibrações fortes, como se caminhassem sobre uma esfera ôca. O horizonte curto, de negrume intenso, a temperatura até

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então não observada em lugar algum, com incríveis variações, conquanto se encontrassem físicamente aptos a suportá-las.

O primeiro explorador, chefe da equipe, logo estendeu o seu reco-nhecimento a uma área mais vasta. Onde estariam os “vivos”? Como se-riam seus habitáculos, sua aparência? Sentia-se preparado para o terrível encontro com seus dessemelhantes, mas existiriam eles?

O segundo se concentrava no envio de dados mentais. Com o auxí-lio de instrumentos reconferia o diâmetro do asteróide, massa, densidade, períodos de revolução sideral e sinódica, os intervalos do curso ao redor do outro mundo que êle orbitava. Anotava o afélio e o periélio.

O terceiro computava a velocidade de circulação de seus humores, a conduta de seus músculos sob a atração mínima da massa planetária. Ajustava sobretudo seu sistema visual à faixa espectral correspondente ao meio, evitando assim danos ópticos irreparáveis.

Ora, nenhuma aparência de vida, pelo menos como eles a enten-diam, foi logo encontrada. Tratar-se-ia sem dúvida de mais uma esfera morta no sinistro rosário de esferas violadas, um mísero planetóide em órbita de outro planeta maior, mas também sem vida e que por sua vez girava preso a uma estrela.

O segundo e o terceiro viajantes detiveram-se, desanimados, cer-tos de que a Base não mais enviaria outros companheiros. Co-existir com quem? Com o quê? Com poeiras e rochas? E isso avultava como o objetivo fundamental da expedição.

Foi então que regressou do reconhecimento distante o chefe da equi-pe. Pelos canais mentais a comunicação se fêz imediamente e a reação negativa se transmudou em remota esperança ante a descoberta:

— Acompanhem-me. Encontrei alguns sêres não longe daqui, cerca de trezentos passos. Se consegui comunicação com êles? Ainda não. São de tal forma insignificantes que mal pude divisá-los no solo. Tão pequenos que é difícil observá-los. Só geométrico, tem membros esguios e longos, em número de quatro. Ao redor há algumas “coisas” menores, várias das quais, lhes notei a diversidade. Um, maior do que os outros, de aspecto mínimas, de consistência maleável. Além disso, estão imóveis, talvez em estado de letargia.

Então? Que esperavam? A descoberta era excitante, após milênios de pesquisas. E agora, em outra galáxia, debaixo do giro de um planeta morto e maior. . .

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Tratar-se-ia de um aldeamento de pigmeus?Os três exploradores rodearam o achado. Nem sequer pensaram

em tocá-los. As investigações deviam ser levadas a efeito com cuidado. Primeiro a voz, em vários graus de altura e freqüência. Nada. Nenhum dos “encontrados” despertava. Depois, as ondas cerebrais em diferentes intensidades. Nada. Como últimos recursos, o instrumentos luminoso e o analisador de reflexos semânticos. Nenhum resultado. E então?

Os três interrogaram-se mùtuamente. Aquelas “coisas” diminutas teriam mesmo vida: não seriam parte da geologia daquele ridículo aste-róide?

O primeiro não se conteve mais, tornou-se imprudente, violando todas as regras de segurança. Abaixou-se e pôs-se a examinar o local onde os supostos seres se encontravam estáticos, como que petrificados. Sur-preendeu-se ao constatar a existência de marcas diminutas, sinais ínfimos espalhados nas imediações e que não se encontravam em nenhum outro ponto da superfície do solo examinado até então. Pegadas deixadas por aquelas “coisas”? Traços de vida? E que se poderia considerar “vida” na-quele mundo corroído?

O segundo forasteiro mostrou-se ainda mais afoito. Curvou-se, es-tendeu o leve instrumento e apanhou o “ser” maior e mais exótico, de quatro patas, e que ainda assim cabia em pé na palma de sua mão. Mas não houve reação alguma. Continuou imoto. O expedicionário recolheu outros dois. Estimulado, pegou os demais, os menores ainda, inclusive um inconsistente, flexível.

— Bem. Com os recursos de que dispomos, apenas com o nosso equipamento, não poderemos saber o que isto é. Serão vegetais? Formas autóctones? Restos de algo que já foi? Construções que abrigam entes mi-croscópicos?

A solução indicada, a única viável, era a remessa daquele “material” para a Base. Pelo tubo, pelo duplicador. Lá, com absoluta certeza, aquilo seria identificado. E foi o que o chefe determinou. Uma vez no tubo, a remessa se processou num segundo.

Lá, nas dobras do infinito espaço, os cientistas se lançaram ao exa-me dos pequenos objetos recolhidos no planetóide eivado de crateras. De que eram feitas aquelas “peças”? Qual a sua finalidade já que nada é jogue-te do acaso, mas fruto de um sentido e de uma destinação?

Os cosmonautas só tiveram conhecimento de um fato: aqueles “se-

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res” ou “coisas” não se haviam originado no asteróide inóspito que gravi-tava em torno de um planeta maior carregado de intensa radioatividade. De que mundo procederiam então? Como e por quem teriam sido levados para ali? A nenhuma dessas indagações a ciência conseguiu responder.

Por serem inúteis objetos e não oferecerem maiores possibilidades às pesquisas, foram eles classificados e recolhidos ao museu das relíquias cósmicas, agrupados em pequenos estojos.

Uma das peças, entretanto, apenas uma, foi entregue ao chefe da expedição como lembrança, após os sábios se haverem compenetrado de que aquele objeto, como os demais, não era originário do mundo visitado, e nem mesmo poderia ser oriundo do astro mais próximo, porque também nesse nenhuma vida existia, destruída que fora por uma catástrofe nuclear, idêntica à que se passava nas estrelas Novas.

Para o chefe só subsistiu como recordação daquela infrutífera via-gem o pequeno retângulo que cabia na palma de sua mão: de forma variá-vel, como se fosse um farrapo de tecido vegetal, cheio de diminutas listas azuis e vermelhas, tendo num dos cantos um retângulo menor coberto de mínimas estrelas.

Com toda sua ciência, eles, os gigantes, jamais saberiam que se tra-tava de um marco, do símbolo de um povo e de uma civilização, tudo que restara de uma outra humanidade.

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A caverna

Não poderia dizer que acordara. Toda a noite havia se afogado num longo traço branco horizontal, num fundo negro, que êle sabia confundir-se com a goela escancarada da caverna. Devia ter ficado lá, mergulhado na escuridão, ao lado das renas, o rosto roçando as presas curvas dos mas-todontes, recostado nos licornes, sentindo nos dedos as cores fuliginosas que marcavam os perfis daqueles animais estranhos que descreviam um arco no profundo poço que a luz de sua lanterna não lograva profanar. Não devia ter arredado pé. Afinal, a noite que imperava em direção ao teto, perdendo-se no emaranhado de estalatites, aqui fora era apenas uma parce-la da noite que habitava a caverna. Havia apenas uma diferença. Aqui fora a treva era cíclica, amostra de certa verdade que existia antes, advertência dessa mesma verdade que adviria depois, ao passo que lá dentro a treva se impunha com todo o peso de milênios, ligada ao pó das origens, acorren-tada à rocha, aderida ao limo, inconspurcada como se fosse matriz, gênese do negrume de fora, que se tornava então prolongamento de tudo o que havia dentro, estigma de uma só realidade. Não, não devia ter saído assim que suas forças começaram a falhar, depois de quatro, cinco ou seis horas de trabalho. Porque não repousara lá, aos pés da sua descoberta? Teria sido melhor. Depois, ao acordar, quando tentasse levantar as trevas, estaria livre da caminhada, da expectativa, do tempo que perderia no percurso de dez quilômetros da aldeia aos contrafortes da cordilheira. De qualquer modo, não dormira. De qualquer forma, o repouso fora apenas corpóreo,

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pois o espírito arrebatado continuara a relacionar, a medir, a desvendar. Continuavam a arder no fundo da sua retina as cores sulfurosas, os ver-melhos sangüíneos, os roxos abismais, sentindo-se insensibilizado ainda pelo impacto do negrume que atroava como eco de certo festim diabólico, confundindo-lhe os sentidos e dobrando sua razão.

Virou-se na cama do albergue de terceira classe. Sentia um calor anormal e os sons vagos que lhe chegavam pelos tabiques de madeira em-penada eram a única ligação concreta com a realidade. Cerrou os punhos. A madeira roliça e melada. Bem em cima, o touro maior, de narinas acesas. Viu-lhe os cornos, o corpo quase sem rotundidade que partejava uma corte de pequenos guerreiros armados de bordunas que mais se assemelhavam a minúsculos insetos. Sentia o rosto molhado, os membros formigando, as mucosas secas, as falanges doloridas e as indagações e perspectivas futuras que lhe brotavam no cérebro sem chegar a prejudicar a velocidade da mão sobre a prancha de desenho, retângulo branco aos pés das pare-des ciclópicas. De que idade? De que milênio? De que homens? De que civilização? E que grafismo inédito, que figuras possantes, que sortilégio intrínseco, que cromatismo inusitado mesclado ao assombroso eidetismo que por certo só encontrava justificativa nos tabus propiciatórios! Perfei-to, em tudo perfeito. Cores autênticas, relevos naturais aproveitados com maestria, perfis completos, tudo em justaposições bem estudadas que che-gavam quase a formar novas figuras, libertando o conjunto certa beleza inquietante e bárbara.

O indicador tremia, a grafite se consumia no trabalho febril. Tinha prática em copiar, era hábil em reproduzir os mínimos detalhes debaixo das proporções do papel quadriculado. Estava certo, os outros haviam de admirar. Êle passaria à história. Mas, por muito tempo o segredo seria apenas seu, unicamente seu. Mostraria as cópias, posteriormente adicio-naria as cores. Quem sabe? Alguns meses depois talvez revelasse o local. Talvez não. Aquele universo subterrâneo seria exclusivamente seu para sempre, continuaria ignorado naquele rincão longínquo aonde fora levado pela chave de seus estudos e pela premunição. Premunição? Sim, era uma idéia nova. Isso porventura já não acontecera a outros? Talvez uma força secreta, um determinismo mágico guiasse todos aqueles que, levados pela força da fé, tentassem deter o tempo e afundar no passado, redescobrindo os liames perdidos, impelidos para os labirintos do caos de onde pudessem extrair um sentido novo da vida, certa relação platônica, ou — em termos

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mais primários — a precariedade das marcas do homem sobre o planêta.Devia agora estar acordado inteiramente. Sons confusos de sino,

ruídos compassados de alguém andando lá fora. Tentou ordenar as idéias. As badaladas eram desprovidas de ritmo, talvez fruto do vento que miste-riosamente não se insinuava pelas frestas do tabique. E as passadas eram bem junto ao seu quarto. Alguém ia e vinha com insistência. E esse al-guém não se incomodava de ser pressentido. Reclinou-se, tentou separar os sons do sino dos passos cadenciados de quem monta guarda. Arrojou-se ao solo. As tábuas cederam sem ruído. Tateou, colando-se à fresta mais larga. Silêncio. Não havia mais ninguém. O badalar também cessou e certa quietude mortal restabeleceu-se como que advertindo os prenúncios da au-rora. Sonho, delírio, imaginação. O assoalho esburacado agora rangeu alto e muitos estalidos vieram de cima, penetrando como agulhas em sua cama. Não lhe importava a hora, só a ausência do cansaço que lhe consumia os músculos.

De pé, sentiu a agitação febril que antecedia a partida. Entregou-se à verificação do material. As lâmpadas, as baterias e pilhas, a sacola, as cordas, os grampos de ferro. Material de desenho, duas pranchas e muitos lápis. Alimento e água, a bússola.

Horas depois o sol já lhe crestava a pele. Óculos enfumaçados, bem escuros. A providência auxiliaria a adaptação visual na caverna. A marcha acelerada.

Depois, o despenhadeiro abrupto, as rochas escalvadas. O maciço imponente dominando as eminências secundárias se destacava ocultando ainda o sol nascente, como o perfil desconcertante de um monstro jurásico. Lá estava a árvore esquelética de folhas amarelas, a ave de rapina pousada no tronco esquálido.

Atenção, como era mesmo? Trinta graus a oeste da árvore espectral. Quarenta passos à frente e noventa graus à esquerda. Vinte passos até a ravina. Depois, o tufo de urzes e bem debaixo, perto da pedra chata, o poço do negrume, o respiradouro de suas criaturas, a guelra que impelia o oxigê-nio para as narinas dos licornes, dos alces, das renas e dos bisões.

De joelhos, aspirou em haustos o negror. Arquejante, não sentia do-res nos membros, não se importava com as vestes se rasgando nas paredes estreitas, não sentia a pele lanhada pelos espinhos, não se importava com o cabelo se empastando de limo. Para baixo, só a escuridão indevassável até o limite curvo de sua lanterna. O regato subterrâneo, as formações

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abruptas, as estalagmites, os cristais de quartzo que emitiam policromias quando tocados pela luz. Chispas verdes, violáceos cambiantes, reflexos que gritavam na treva rebelando-se contra a intromissão, dos padrões da temporalidade e do contingente dos quais estavam indenes até agora, re-cuavam e escondiam-se ante a passagem do inesperado que destruía a in-vencibiliddaade da caverna. Esta, como um ente metafísico, lutava para preservar-se, para manter os atributos inerentes às coisas definitivas.

Enfim, a grande sala. Parou arfante. Orientou-se pelo jato da lanter-na maior. Norte, sul, oeste e leste subterrâneos. Aguçou os ouvidos. Sorriu, estava certo. Os gemidos da corrente profunda, teofania abismal, eram au-díveis apenas naquele ponto. Mais para o fundo, os derradeiros minutos. No mesmo lugar. A grande sala em círculo, o solo arenoso. Estudou a po-sição. Dispôs o material ao centro, ajeitou as lâmpadas ao redor, apontadas para cima e para os lados da imensa abóbada. No meio, a mais forte. Girou o botão, fêz com que a luz ardesse em toda a magnitude. Depois se sentou extasiado. Era como num circo, no centro exato de uma arena, cercado pela multidão fantástica. Garras, cornos, olhos luminescentes, cascos si-bilantes, nuvens eqüinas, grupos taurinos, manadas árticas. Centenas de monstros rodearam-no estáticos, aguardando que o rei da criação desse co-meço ao espetáculo, como se êle, em vez de espectador, fosse ator. Esfre-gou as mãos gélidas, sentiu o súbito calor da véspera, arrancou a camisa. Pôs-se de cócoras e ajustou as pranchas. Traçou os esquemas e numerou as folhas, tentou ajustar as proporções do bailado silencioso. A rena era maior do que o bisonte. Os cornos do grande touro amarelo-ocre eram maiores do que as caudas dos licornes azuis. As patas dos mastodontes pisavam animais menores e irreconhecíveis e as achas dos caçadores era idênticas as presas dos gamos. As luzes mantinham-se firmes. As ocilações eram mínimas e toda vez que um jato sobrepujava o outro, coisas aconteciam. Parou, observou curioso o ensaio dos mastozoários. O licorne esticava a cabeça e mergulhava os chifres paralelos nas costas do cabrito montes. As patas do grupo menor de touros moviam-se e uma nuvem dourada se elevava debaixo de seus corpos. O clarão detinha-se, as feras quedavam-se estáticas. Continuou a copiar. Pontes desgastando-se, páginas rolando, o negror ondulando em volta do picadeiro no centro do qual o hominídeo divertia o bestiário mítico.

Horas depois, sentiu a ardência nos olhos. Parou, as pranchas do lado, as mãos sobre o rosto numa tentativa de melhorar a visão. Pequenas

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manchas amebóides, correntes de traços escuros projetaram-se sobre a tri-lha dos búfalos. Rosários de pontos invadiram a horda de pigmeus caçado-res que acuavam os eqüinos.

Diabo! A vista não melhorava. Que fazer? Também a claridade era pouca, o esforço era intenso. Sorveu a água morna em goles lentos e força-dos. Não tinha sede, muito menos fome. Derramou o que restava nas mãos abertas em concha e lavou as pupilas congestionadas. O bestiário surgiu de novo em todo o seu esplendor. As amebas recolheram-se às origens, os pontos diluiram-se, os traços negros desvaneceram-se. Outro lápis, mais papel, mais detalhes. Dos flancos do animal brotava uma lança. A lança era curva e comprida, continuava nas mãos do homúnculo de perfil. O demô-nio vermelho tinha um só braço e a perna estava assentada no sexo de um bisão que, por sua vez, estava contido no ventre tumefacto de um alce.

A lâmpada do meio bruxuleou. Como se obedecesse ao comando mágico da primeira, o briolho da lanterna da esquerda empalideceu. O suporte de calcita agitou-se. A lança se esticou, o braço do homúnculo dis-tendeu-se e o sexo do bisão pulsou, ao mesmo tempo que o ventre do alce contraiu-se ganhando completa rotundidade. O botão girando, as baterias deveriam ser poupadas. Menos luz. A escuridão deu um passo. O picadei-ro restringiu-se. O ator ganhou vincos faciais e, louvando a penumbra, a multidão irracional estremeceu. Todo o recesso cavernoso agitou-se ba-lançando as sombras, exalando cheiros sulfurosos. Agora reconhecia que era imperioso o descanso. Mas não seria como da primeira vez, não seria como ontem. Ontem, mas o que é ontem quando se perde a noção do tem-po? E o que é o tempo no seio da terra onde tudo tem apenas a dimensão do nada? Achava-se encarcerado no coração de uma ampulheta e, como a areia, escorria de uma posição para a outra, lentamente.

Deitado, divisava apenas uma chama estertorante, enquanto as outras lâmpadas descançavam para novo período. No centro do palco pré-histó-rico, sentia-se como grão de areia, cada vez mais diminuto. De castigo no quarto escuro devido à reclamação feita pelo vizinho. Enfiado debaixo da cama. Nem uma fresta por debaixo da porta. Em jejum, de pijama, suado, os olhos bem abertos sem contudo ver nada. Passos lá fora, passos pesados, de quem monta guarda, de quem medita, de quem reflete, de quem justifica suas próprias razões. E seus bichos também partilhavam desses instantes negativos que perfuravam poços na paisagem de sua infância. Debaixo da cama, no vão da estante, metidos pelas alturas do guarda-roupa. A lebre

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sem orelha que exibia o cérebro de palha; o macaco verde, de barriga co-mida de traças, de feições serni-humanas; o cão felpudo de orelhas rosadas e olhos vítreos; que tocava música (Chopin, Strauss ou certa balada dos lagos da Escócia?), todos aninhados nas dobras do cobertor. E os outros animais? Os produtos do bestiário afetivo e intelectual. Aqueles que eram amálgama dos livros de Andersen e Grimm, resultado das estampas de Gustavo Doré e William Blake, do símio que fugiu da casa pegada e do mastim velho da casa da tia, do dragão lunar de São Jorge e do rinoceronte falante? Distinguiu um ruído de torneira aberta, como se fosse um riacho correndo à distância. O universo era uma redoma luminosa onde filamen-tos coloridos flutuavam em estado de imponderabilidade, como flocos de neve artificial caindo sobre cenários natalinos daquelas bolas de vidro que continham cabanas ou então peixes embrutecidos. O pai era um homem imponente, violento, possante e inflexível, autoritário e irracional, como um enorme touro, de testa quadrada, impressionado por sua própria força. O quintal estava deserto. Os brinquedos, esquecidos. O muro era longo e caiado de branco, tendo contra si a fileira cerrada de cedros. E entre o muro e os cedros havia o corredor da caverna, divertículo axial que ia dar lá no fundo, no caramanchão de primaveras, ao lado das quatro colunas dóricas. Era bem fechado, só diminutos résteas cruzavam oblìquamente as folhas, e desenhos e sombras inquietantes surgiam gerando elfos e gnomos.

Foi despertando lentamente, incomodado por certo ruído que não havia antes. A princípio era como um vago zumbido de insetos. Depois foi ganhando intensidade. Dez, vinte, cem, milhares de abelhas. Depois ainda, um farfalhar, um crepitar, madeira verdes estalando, consumida por labaredas veementes. Espantou-se, pôs-se de joelhos. Alucinação auditiva, produto incontrolado da solidão de muitas horas, fruto misterioso da pro-fundidade mineral, criação onírica de seu inconsciente estimulado pelas pinturas rupestres? Mas a fumação, a luz pálida que vinha do lado norte? Que seria aquilo? Por Deus! Estaria alucinado? Levantou-se, tentou andar. Certo calafrio nasceu-lhe no tornozelo e galopou para cima varrendo-lhe as entranhas. De súbito, o som pavoroso ecoou como uma chicotada no que antes era silêncio. Em seguida ruídos de passos fantásticos, insuportá-veis. Lembrou-se da madrugada, das passadas do lado de fora. Teria sido seguido? Alguém pretendera participar de seu segredo, de sua glória? A caverna estremeceu e o negror libertou ondas que se chocaram bem em cima da população selvagem que examinava o homem. Era um grito quase

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humano, um estertor angustiante de quem se aniquila numa explosão de dor, urro irracional de quem expele a vida, uivo final de quem vomita as próprias vísceras. De onde, de quem? Correu descontrolado para a fresta de onde provinha o fumo e a claridade. Tropeçou, levantou-se, caiu de novo e firmou-se de joelhos. Andou, quedou-se atônito. Talvez uma segunda sala, depois da passagem baixa. O rumor aumentava. Os urros se alternavam, os berros se uniam, os estertores produziam reflexos múltiplos que se con-fundiam em planos acúscios justapostos como as figuras rupestres. Seriam mesmo figuras? Ou seriam feras dormentes embaladas pela imanência da caverna? Estaria louco? Dormiria ainda? Tratar-se-ia de um pesadelo? Ao lado da fogueira, a multidão de sombras. Monstros antropomórficos, con-ciliábulo satânico no ventre da cordilheira. Devoravam algo. Nus, lambu-saidos, viscosos, untados de humores e gorduras. Antropóides segurando fêmures infantis, esquartejando touros, bebendo sangue em calotas crane-anas, numa sucessão de grunhidos, saltos e atitudes de primatas.

Voltou-se para a grande sala. O licorne, de pêlo hirto, lançou um urro tonitroante. Os bisões resfolegaram expelindo baba pelas narinas. Os taurinos cravaram os cascos na trilha ondulada e partiram lulantes em direção da presa. Os alces cuspiram sangue e seus olhos fosforescentes fuzilaram o homem caído no centro do picadeiro com todas as gambiarras apagadas.

A cavidade inteira reboou, contraindo-se sobre si mesma. Era um ente metafísico que não tolerava a intromissão em suas vísceras. E o ho-mem, consciente de seu fim, exalou o derradeiro suspiro, vendo uma in-congruente invasão luminosa, bem branca, mas que tinha certo halo de esperança, idêntica à luz salvadora que inundava o quarto escuro do meni-no depois que o pai, satisfeito e reafirmado, abria a porta pondo termo ao castigo, libertando-o da sua caverna.

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A bôlha e a cratera

Com certeza no futuro, talvez antes de um século, este episódio per-tencerá ao historiador, ao cronista. Por certo num amanhã não muito re-moto surgirá quem relata todas as minúcias. Por certo, os bardos cantarão os feitos, surgirá a lenda, criar-se-á paralelamente o mito. Assim como no passado, na era das conquistas, no tempo da expansão sobre a Terra, houve historiadores e cronistas, assim também será no porvir. Não faltarão ho-mens como Prescott ou Bancroft, como aqueles escribas que acompanha-vam as naus européias nos périplos fantásticos demandando o desconhe-cido. E então a minha história bem pouco valerá. Portanto, mesmo sem a perspectiva das conseqüências, sem o impacto transcendental e filosófico, lhes dou o meu relato de simples repórter, de olheiro da humanidade que lá ficou. Fui o primeiro que assistiu à cena, atônito e emudecido, na bôlha atmosférica que parecia uma gota vista de cima, das elevações que cercam o Mar da Fecundidade.

Eu era o único que não tinha interesse no sorteio. Lá ficaria quanto quisesse, pois o meu contrato não estipulava prazo. Não era astronauta de profissão, mas apenas um correspondente. E, sendo o único, escolhido mais por minhas aptidões físicas do que intelectuais, não tinha compro-missos ou concorrência. Anotava, escrevia e, se desejasse, ia pessoalmente no vôo mensal recolher os meus proventos, entreter-me por semanas com Dorotéia, beber com Gustavo, ouvir as lamentações sem fim de Emiliana. Era cômodo, confortável, chegava mesmo a ser divertido e, além disso,

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utilitário que sou, sumamente compensador. Todos comiam por minhas mãos, distribuía meu alimento a peso de ouro. Afinal, como eleito, sem linha política que me incompatibilizasse com as duas facções, era sobre-tudo neutro, e um só, o que reforçava minha independência. Senhor, pois, naquele satélite de escravos, não me importava com os dias de sorteio, esquecendo-me que meus companheiros não pensavam assim.

Vínhamos então pelo vale em passo acelerado, para não transgredir-mos as imposições da baixa gravidade, em passos estugados mas bem me-didos para não virarmos saltões naquele mundo de pesadelo. Éramos oito, todos do Grupo A, da equipe internacional, do Quadrante Dois, da Base de Petavius. Naquela manhã havíamos tentado algo novo: o alpinismo lunar. Fomos os primeiros a galgar a protuberância mais elevada de Altai e a flá-mula da EICLU (Equipe Internacional da Conquista lunar) ficou estática no cenário espoliado de atmosfera.

Recordo-me que o cansaço nos aniquilava. Caminhávamos com os interfones ligados mas nenhum som se ouvia, apenas chiados de pulmões ofegantes que inflavam ao máximo nossos trajes de pressão, dando-nos aspectos de balões grotescos. Dois integrantes do grupo quase chegaram a perder a consciência. Havíamos abusado. A caminhada fora longa e a ascenção penosa. Vários descanços, quase um pedido de socorro. Mas, como previa o Regulamento, até três baixas, tudo era tolerável. Não seria solicitado auxílio a não ser em risco de aniquilamento total. Assim fora na catástrofe de Cassini, por pouco no desastre do Mar dos Humores.

Eu marchava no meio, o único privilegiado que não transportava equipamentos. À beira da exaustão, o líder lembrou-se do acontecimen-to — a ação mágica de certas frases que soerguem o moral, levantam os ânimos. O chiado parou e a voz veio sem distorção:

— Atenção, camaradas, hoje é dia de sorteio!Um frêmito percorreu a fila indiana. Dir-se-ia que uma injeção

havia retesado os músculos, alteado as derradeiras reservas, incendiado lembranças, sobretudo despertado desejos. A marcha acelerou-se quase ao limite da gravidade e vozes cruzadas com acentos eufóricos e interjeições de redivivos, estalaram nos fones:

— Tenho certeza que desta vez serei um deles!— Cheguei a apostar por fora. Não me interessa, venderei meu pas-

se!— Meu filho me espera há mais de um ano. Como estará êle?

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— Não adianta, jamais tive sorte, desde menino...Só eu não falei. Como já lhes disse, o sorteio não me interessava.

Mas devo esclarecer o que era esse sorteio. Ao todo naquela Base éramos cinqüenta homens e dez mulheres. A nata da ciência, o sumo da animali-dade. Cada aeronave só podia levar cinco elementos, e cada vôo era men-sal, meses terrestres. Maior espaço e mais passageiros naquela década era impossível. E então? No começo o rodízio, depois o sorteio preconizado pelos especialistas-tutores. Uns, os mais afortunados, já haviam regressa-do à Terra três ou quatro vezes. Outros, sem sorte alguma, lá estavam havia mais de ano, deglutindo doses de medicamentos que os ajustavam melhor ao meio planetário. Alguns exemplos: o russo de Odessa fora três vezes em quatro sorteios; o mexicano, técnico em comunicações, fora duas; o belga, graduado em biônica, voltara quatro vezes em seis meses. Outros porém, como o mais moço, o rapazinho cheio de sardas, lá estavam havia mais de ano e meio e jamais tinham conseguido o bilhete. E entre as mu-lheres? A mesma coisa. Parece que elas sentiam menos a terrível segre-gação. Os psicólogos tinham razão. De fato, as mulheres se adaptavam melhor, não apresentavam problemas, nem mesmo demandavam pílulas em doses extras, como acontecia com a maioria dos homens. Sônia e Olga haviam regressado uma vez. A inglêsa, duas. A mais velha, com certeza norte-americana, voltara quatro vezes, ao passo que a mais moça já se aproximava de um ano sem obter o papelucho azul. E, ao que parece, bem pouco se aborrecia com isso. Vivia metida em seu traje vermelho, como que escondendo suas formas que deveriam ser das mais esguias, como afirmavam os que a haviam visto na bolha, em pleno trabalho, debruçada sobre o microscópico.

A lembrança do líder produziu o efeito desejado. Antes da hora pre-vista a distância foi vencida e o pedido de auxílio deixou de ser enviado. O jovem sardento caminhava na minha frente. Quando passei a marchar ao seu lado busquei-lhe o rosto sob o elmo. Notei-lhe certa expressão de in-diferença e que também não era do cansaço que agora ia ficando para trás, ligado às nossas pegadas impressas no pó lunar até o final dos tempos.

Eu não podia falar-lhe diretamente, pois o sistema dos interfones es-tava subordinado à escuta geral. As conversas particulares eram proibidas, só permitidas em circunstâncias excepcionais. Ao líder do grupo cabia a iniciativa e todos os circuitos deviam estar desimpedidos para as ordens e os contatos com a Base e eu, mesmo isento da disciplina, estava de certa

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forma sujeito aos regulamentos. Mas não raro os esquecia. Quebrava o formalismo e minhas expansões eram toleradas. Afinal, eu era um privile-giado. Segundo a lenda que corria, eu poderia falar com o Presidente com a mesma facilidade com que me comunicava com o chefe do meu jornal e isso por certo impunha algum respeito.

Apressei a marcha. Levantava bem pouco minhas botas, evitando assim que a poeira plúmbea flutuasse naquele páramo desolado. Quase me encostei ao rapaz sardento. Como era mesmo seu nome? Charles ou Bill? José ou Demetrius? Não, creio que não. Depois vim a saber que era canadense, que nascera junto aos Grandes Lagos. Até aquele instante eu só sabia que êle até então não regressara uma só vez à Terra. Recordo-me que nos quatro últimos sorteios seus amigos mais chegados tinham come-çado a preocupar-se. Nas primeiras vezes o jovem dava demonstrações de decepção. Depois se tornou indiferente. A princípio — e isto foi o seu companheiro de bolha quem me contou — mal dormia nas vésperas dos sorteios. Largava os livros, esquecia das transmissões terrestres, ficava do lado de fora, encostado a algum pilone fitando o globo azul em torno do qual girávamos mansamente. Pouco falava. Apenas o necessário com os amigos e talvez um pouco mais com os psicólogos, sempre em solidão, metido com seus livros. Com certeza, até àquela época tudo com êle ia bem. Segundo os especialistas, os introvertidos agüentavam melhor. E isso de agüentar e de não agüentar só será bem entendido por quem já viveu no espaço. Mas, vamos à minha história, vamos ao que interessa. Lembro-me que sabia apenas que o jovem sardento nunca voltara. Bati-lhe então no ombro e violei a regra. Falei-lhe baixinho, como se entre nós inexistisse o capacete, como se lhe segredasse ao ouvido e minhas palavras não fossem ouvidas por todos os que estivessem com os aparelhos ligados.

— Então? Anime-se. Não ouviu o que o chefe disse? Sim, hoje é dia de sorteio!

Êle era o mais jovem. Talvez vinte e um anos, vinte e dois ou talvez menos. Continuei ao seu lado. Fixei-me no capacete do rapaz, levemente tocado pela poeira, e localizei a resposta para minha indagação. Apenas certo olhar mais detido que serviu para revelar uma atitude de desesperan-ça. Pude ver que êle respirava com dificuldade. Examinei-lhe os registros do oxigênio e pressão interna. Os marcadores estavam bem visíveis do lado de fora dos elmos, como se fossem periscópios, em posição que pu-dessem ser fiscalizados pelos companheiros. Isso era importante, pois se

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evitavam assim acidentes fatais. Mas tudo ia bem, êle não estava com defi-ciência respiratória. Tratava-se de mero cansaço — a altitude da escalada, as longas milhas lunares, o cuidado redobrado na passagem das falésias, a atenção para não levantarmos poeira desnecessária, talvez a exaustão de quem está há muito tempo no satélite como um exilado. E os médicos? Como é que não o devolvem aos Grandes Lagos? Porque não o libertam desse mundo monocromático e silencioso que não raro chega a fazer com que ponhamos em dúvida a validade da própria existência? Não entendia. Mas, se nada faziam era porque tudo ia bem. Eles eram eficientíssimos. Oniscientes. Examinavam-nos (e eu mesmo como agregado submetia-me voluntariamente à rotina) todas as semanas. E não só o físico, mas sobretu-do a alma. Sim, meus amigos, a alma. Era importante, fundamental. Agora me recordo. Transmito-lhes este pormenor a título de curiosidade, para colorir minha história, já que em outras reportagens cuidei mais a fundo da matéria. Não foi porventura na Lua que muitos homens se converteram? Não foi na capela triangular de Endimião que muitos tiveram seu primeiro encontro com Deus? E por quê? Por quê? Indagavam os psicólogos, os sa-cerdotes e os sábios da Igreja? Porque lá, no astro gelado e abrazador, onde tudo é paradoxal, muitos encontram-se e dialogavam com suas próprias almas. Lá o homem se achava, estando só. E então? poderiam argumentar os céticos. E então? Esse isolamento também não existia na Terra? Nos de-sertos, nos mares, nas profundidades oceânicas, nas calotas polares? Não, não era a mesma coisa. Na Terra estavam de qualquer forma lá, abriga-dos em seus lares, acorrentados ao solo do planeta que os gerara, que os fecundara, indissolúvelmente ligados à mãe que os proteje, identificados pelo destino coletivo que cria uma série ponderável de hábitos, motivo pelo qual nenhum espanto decorre do fenômeno vital. Mas na Lua tudo se desmantelava numa solução antípoda. Lá em cima é que estava a Terra, sobre suas cabeças é que se achavam os lares, lá na esfera assustadora é que se achava albergada a vida. E então a existência de fora se revestia das dimensões do sonho, era um sacrilégio, certa ofensa, com o irracional das reincarnações. Na Lua todos se sentiam ressuscitados. E da perplexidade e do pavor nascia o encontro com o espírito. Ficava-se só consigo mesmo e o resultado eram as conversões na capelinha escura de Endimião, protegida pela bôlha-dupla.

Mas tudo isso pouco tem a ver com a minha história. O menino sardento era daqueles. Nos primeiros meses não freqüen-

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tava o templo. Depois passou a ir a miude e depois ainda, num compor-tamento incomum, deixou de ir. Os especialistas-tutores anotaram o fato. Testes, exames e entrevistas. Mas tudo ia bem com a sua alma — afirma-ram.

Quando procurei animá-lo a marcha foi apressada. O líder cortou-me a segunda frase com uma determinação de serviço, e pelo seu tom senti que me repreendia pelo uso indevido do circuito. Cumprindo a ordem, se-gui a fila até o instante em que as comportas se abriram para receber-nos.

Mas, como se processava o sorteio? Cada homem tinha um núme-ro, gravado numa plaquinha dependurada no pescoço. Como no passado, se o homem morresse a família receberia a placa de identificação. Tais placas eram depositadas numa semi-esfera posteriormente bem revolvida pelo Administrador. Em seguida, ligando-se a certa distância o eletro-ímã, imprimia-se movimento circular ao receptáculo, que ficava numa coluna sobre um eixo móvel. Pela ação do ímã as chapinhas agitavam-se, empina-vam-se debaixo da torcida geral, como que lutando contra o magnetismo atuante. Após segundos elas desligavam-se e iam flutuando pelo espaço até se fixarem no pólo do aparelho, que era então desligado. Lia-se em voz alta o número do felizardo. E assim, uma a uma, as placas saíam velozes, criando ou desunindo ilusões, em meio à algazarra que sempre acompa-nhava o espetáculo.

O Administrador devolvia-a ao sorteado e no mesmo instante lhes entregava o bilhete azul que era exibido na partida.

Assim foi naquela noite. Tudo decorreu normalmente e só no dia seguinte, pela oitava hora após o embarque, foi que se descobriu tudo sem entretanto compreender-se a causa do desatino.

Admito que anotei a atitude do jovem sardento durante o sorteio. Como era mesmo seu nome? Charles ou Bill? José ou Demetrius? Não me recordo ao certo. Apenas sabia alguma coisa de sua vida que por êle me foi contada nos períodos de repouso. Naquela época êle tinha outra condu-ta. Positivamente não era extrovertido, mas falava de si o normal, talvez um pouco menos que a média, dentro dos padrões de quem se achava na segunda fase de ajuste. Seu pai era chefe de usinas solares e dois dos seus irmãos haviam morrido na descompressão de um satélite. Tinha uma noiva ou namorada. As coisas de sempre — saudades, cartas, retratos-falados, sem nada de especial que revelasse conduta assintomática. Só não consigo recordar-lhe o nome. Na sala observei que se mantinha isolado, num dos

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cantos do bar, trajando ainda as roupas do exterior. Tinha alguma coisa na mão que revolvia com insistência e ao seu lado, sobre o balcão, os copos vazios indicavam que já consumira todos os vales. Não se acercou do grupo formado ao redor do eletro-ímã. Revirava nos dedos o tempo inteiro o objeto brilhante e as vezes ficava de costas para a semi-esfera, em atitude que me pareceu ostensiva. Dir-se-ia mesmo que estava sendo perturbado em suas cavilações pelo tumulto. Sua ausência era estranha e poderia chamar a atenção do especialistas. Mas, como suas fichas conti-nham as respostas exatas e os furos satisfatórios, como as máquinas jamais se equivocam nos prognósticos, não havia com o que se preocuparem. Apenas certo procedimento incomum, sem perigo para o equilíbrio cole-tivo que, como num sistema de vasos comunicantes, devia ser observado sob pena de levar a convulsão a toda equipe. Em função dessa harmonia se justificava o trabalho contínuo dos tutores. Tratava-se apenas de um môço que desejava preservar a sua solidão. Proclamo aqui a grande verdade que a esse respeito encontrei no livro de um escritor do passado que gozou de algum renome no século XX. Um certo Thomas Mann, que na sua novela preferida, talvez levado pelo romantismo crônico que então se cuidava eterno companheiro do homem, afirmou que se a solidão e o silêncio ama-durecem a originalidade e a beleza audaz, também geram a perversão e o absurdo, incitando as criaturas ao ilícito. A sábia assertiva bem se aplica ao franco-canadense, explicando em parte o episódio que desacreditou os es-pecialistas e toda a sua cibernética. Para conhecerem a alma talvez deves-sem ler os autores do passado, meus velhos amigos Dostoievski, Shakes-peare ou Kafka, Faulkner ou Stendhall, enfim todos aqueles que há muito foram banidos das bibliotecas por anacrônicos, sediços e inaproveitáveis, alguns deles perniciosos mesmo. Deviam os psicólogos, esquecendo-se das sondas mentais e detentores de comportamento, valerem-se das ex-periências dos artistas, da intuição incomparável daqueles que nas épocas anteriores eram considerados gênios, o que não mais havia agora em nossa era de progresso. Se assim fosse tudo talvez poderia ter sido previsto, sem a celeuma e o clamor despertado, afastando-se o inútil das punições.

Terminado o sorteio, os contemplados exibindo os bilhetes passaram ao bar, em triunfo. Em meio à alegria transitória foram poucos os que nota-ram a reação do rapaz. Este revirou o último gole, limpou a boca na manga do blusão e saiu às pressas, como se temesse contaminar-se pela euforia dos companheiros que logo deixariam a Lua. Largou no meio dos copos o

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objeto que tinha na mão e desapareceu em direção aos alojamentos. Apro-ximei-me do bar. Peguei aquilo com que êle brincava. Apenas uma pedra, um bloco um pouco maior do que um punho fechado, disforme e cheio de arestas, talvez resíduo de meteorito, níquel e manganês, resto de sol morto ou de planeta destruído, apanhado como lembrança das plagas lunares. Segurei o calhau e, sem medir as conseqüências, saí atrás do jovem para devolver-lhe o achado. Apenas um pretexto para vê-lo. Talvez não o de-vesse ter feito. Devia ter esperado, aguardado melhor oportunidade. Quem sabe se com essa atitude contribuí involuntariamente para o crime? Dei com êle deitado em seu catre, na bolha coletiva. Semi-despido, os olhos esbugalhados, um livro na mão, o olhar pregado no espaço. Devolvi-lhe a pedra. Êle não respondeu, nem mesmo com um agradecimento. Esticou a mão, balançou o pulso sentindo o peso do mineral e fixou-se em mim com o mesmo ar atoleimado, insatisfeito, mas que continha algo de ameaçador. Fiquei sem saber o que fazer. Senti que quebrara uma cogitação profunda e que isso não era bom, que o havia despertado de um devaneio. Silenciei, não sei se me desculpei. Antes que eu saísse êle desligou o comutador. Voltei-me ao cerrar o postigo e apenas lhe vi o vulto abatido, com aquela coisa que brilhava na mão.

Na oitava hora depois da partida para a Terra, o responsável pelos compressores encontrou a vítima. Estava escondida debaixo de uma das máquinas, dobrada sobre si mesma, vestida e equipada para o vôo espacial, apenas sem o elmo que se colocava no momento de deixar a proteção ga-zoza. O coração batia ainda, havia um tênue alento e o filete rubro escorria da testa infiltrando-se pela camisa junto ao pescoço. Foi de pronto reco-nhecida. Um dos sorteados, o russo de Odessa que voltara três vezes. E, ao lado do corpo desfalecido, o calhau brilhante que na penumbra refulgia como uma gema preciosa, agora depositado na mesa do Superintendente, transformado numa das peças principais do inquérito. O bilhete azul não estava mais nas mãos do russo. Alguém o retirara, alguém, protegido pelo anonimato conferido pelas vestes do espaço e que já se acercava dos Gran-des Lagos.

A investigação foi sumária, tudo era evidente. Só o jovem sardento não foi encontrado. As primeiras medidas foram tomadas, feitas as comu-nicações com a Terra e transferida para a chefia suprema a responsabilida-de do julgamento. Fui ouvido sobre os antecedentes e relatei-lhes a reação do rapaz ao restituir-lhe a pedra. Segurei o seixo, aferi-lhe o peso. O golpe

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fora violento, o russo só escapara por pouco. Mas os motivos, as razões, as raízes diretas e remotas desse comportamento? A equipe dos especialistas-tutores foi a maior condenada. Tudo conferia, tudo era normal, com os ponteiros, com os gráficos, com as pastilhas, com o físico e com a alma.

A explicação só veio cerca de vinte dias depois, não desvendada nem mesmo pelo interrogatório do moço. Em plena madrugada lunar, no momento em que se procedia à chamada das mulheres para a expedição que partiria para o Mar das Crises. Lá estavam todas. Todas menos uma, a mais moça, a que ali se achava havia mais tempo, aquela que se chamava apenas Maria. Inexplicável sua ausência. Saímos para a busca em grupos organizados, já que não se encontrara no alojamento a bôlha individual da jovem. Maria era bióloga, encarregada de pesquisas microbianas. Talvez tivesse saído da Base, talvez — pois tinha relativa independência em seus movimentos — estivesse nas imediações, como sempre fazia, colhendo material. Talvez tivesse tido dificuldade no regresso. E lá segui eu com o grupo que se internou pelas alturas de Godenius com a intenção de vascu-lhar dois décimos do quadrante.

Fui o primeiro a avistar a protuberância, o ponto minúsculo, a pe-quena gota pousada no Mar da Fecundidade, a menos de duas horas da Base. Apenas fiz um gesto indicando a baixada e lancei-me com ímpeto re-dobrado. Meu sangue do repórter ferveu, queria ser o primeiro a chegar, já imaginando a notícia, vislumbrando a possível tragédia. Adiantei-me aos companheiros, e a poucos metros da bolha individual, bem unida a uma pequena cratera, vi em seu exíguo interior certa forma em completo aban-dono. Aproximei-me. E antes de abrir o invólucro assegurei-me de que a jovem estava com suas vestes. Mas era um pesadelo e que eu via. Maria estava por certo morta ou desfalecida. Imóvel, repousava na pequena área de seu abrigo, sem o elmo e sem o traje que sempre lhe ocultava as formas. Ao lado, bem unido aos condutos de oxigênio, o capacete recobria alguma coisa rosada, envolta em panos sanguinolentos, e que pulsava lentamen-te. Compreendi. Afastei-me, recuei alguns passos, tentei ordenar minhas idéias. Pela primeira vez, longe, bem longe da Terra, o milagre renovava-se. Meus companheiros já estavam próximos. Quando de novo olhei para o abrigo, tive tempo ainda de ver, nos limites extremos do Mar da Fecun-didade, o risco chamejante de um grande meteoro que se consumia nos contrafortes da cordilheira. A claridade, o silêncio, o traço persistente no espaço, efeméride cósmica a denunciar a contingência humana.

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E na semana seguinte a criança foi levada à capela de Endimião. Com que nome foi batizada? Bill ou Charles? Demetrius ou José? Não me recordo, confesso.

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O menino e o robô (*)

“I swear I think now that every thing without exception has an eternal soul!”

Walt Whitman — To think of Time

O pai debruçou-se sobre o postigo e aspirou o ar da madrugada. De-pois aspirou mais fundo, como se quisesse deglutir a própria noite com seu odor de resinas e seu mistério inquietante. Ah! Era bom ficar ali sorvendo o conteúdo das trevas. Lá dentro, mesmo com o condicionador de ar, era diferente. Sentia-se enclausurado. Aliás, sempre o dissera: não ia dar-se bem. Nada para êle justificava a mudança. A esposa poderia ter razão. Tal-vez não fosse mesmo uma residência modelo, talvez não fosse mansão digna do agora Superintendente do Quarto Quadrante Lunar; mas o certo era que a casa antiga era confortável e sempre suprira razoavelmente as necessidades da família. Enfim, — respirou mais fundo ainda — coisas da mulher. Afinal era ela quem vivia mais tempo na Terra. Êle pouco parava em casa, atribulado por suas peregrinações cósmicas. Dois meses lá, uma

* O termo “robot”, que significa “doméstica” em tcheco, foi empregado pela pri-meira vez há mais de duzentos anos, em 1924, numa obra teatral de um certo Karel Ka-pek, denominada R.U.R., e que, segundo a Enciclopédia do Sistema Solar, (Gravação n.° 36.743, edição terrestre, 2.027) tinha por assunto a revolta dos robôs, então em sua infân-cia, contra a humanidade.

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semana aqui, e isso quando não ia para mais longe, naquelas desagradáveis viagens de inspeção a Vênus ou a Marte.

Parou de pensar, dominado pela paisagem. O lugar podia ser mais bonito do que na velha casa, mas era deserto, mergulhado na floresta de abetos, escorado nas encostas da montanha gelada, do outro lado da Esta-ção-Chave do sistema dos foguetes nacionais. Descansou o olhar sobre o bosque envolvido por ligeira névoa. Vinha da cidade a tênue iluminação que, como luz zodiacal, balizava o cenário. Com alguma atenção podia mesmo distinguir as cintilações das torres mais altas. E se fosse de manhã, com os primeiros raios do sol, poderia divisar os reflexos coruscantes das estruturas cônicas de cromoníquel.

Aspirou mais uma vez e voltou-se par dentro. A esposa nada havia notado. Dormia a sono solto, não se dando conta da modificação de tem-peratura provocada pela abertura do postigo. Êle sentiu desejo de andar, Essa insônia, essa insônia! Talvez fosse conseqüência do que bebera na véspera, em casa dos amigos, na festa de despedida. Diabo! Despedida... por que fora lembrar-se? Não, não importava. Tinha três dias ainda. Três dias integrais para ficar com a mulher, com o filho. Três dias para fazer o que quisesse. Ler, ouvir música, lavar o cachorro, ou então, o que era agra-dável, cuidar de seu viveiro de plantas extra-terrenas.

Resolveu sair, fundir-se com a grande noite que já ia velha.Apertou o botão e cerrou o postigo. Passou pé-ante-pé junto da es-

posa e vestiu o agasalho, saindo mesmo de chinelos. Quando transpôs os umbrais da porta elevou a mão devagar para interromper o cruzamento das células foto-elétricas, a fim de impedir de que o mecanismo, agindo com rapidez, produzisse aquele ruído incômodo que poderia despertar o meni-no no quarto fronteiro.

Viu-se envolvido pela noite terrestre. Pôs-se a andar sem destino até que atingiu a orla do pinheiral. Parou, voltou-se e examinou a casa de longe. Era uma jóia engastada na clareira. A mulher tinha razão. Haviam escolhido o arquiteto mais indicado. A construção, bloco de cristal, dura-lumínio e tinton, brilhava ao luar fosco, como se emitisse emanações pró-prias, semelhante a uma cúpula atmosférica plantada numa cratera lunar. E como ficara barata! Muitos dos amigos nem acreditaram. Pudera! não conhecesse êle o arquiteto e o construtor! Quanto ao primeiro, ao estipular o preço mínimo, sem lucro algum, nada mais fizera senão retribuir favores antigos, como por exemplo as vantagens obtidas na concorrência marcia-

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na, ou mesmo, há anos, na plataforma número doze.Voltou-se, embrenhou-se mais na mata. Ouviu as folhas sêcas esta-

larem; sentiu os galhos maiores insinuarem-se sob as chinelas razas; res-pirou o aroma penetrante de cedros, de resinas, o odor contundente de um mundo ainda primitivo. Era bom estar lá fora, era bom fundir-se com aquele mistério perturbador das madrugadas. Ah! As madrugadas! Como eram estranhas na Lua, como eram desconcertantes em Marte, como eram longas e penumbrosas em Vênus! Mas nenhuma lhe agradava tanto como as da Terra. Talvez por isso não mais se adaptasse às residências modernas, onde tudo era artificial, inclusive o dia e a noite, onde não havia crepús-culo nem alvoradas. Em sua vida errante de Superintendente tinha que valorizar mais a Terra, e por esse motivo, era imperioso, quando aqui se achasse, desligar-se o mais possível das conquistas da civilização. Tinham que viver de modo simples, liberto daquelas mansões fantásticas, reinos de botões e comutadores, dominado e governado pela nucleônica.

Parou, espiou o céu pálido, de astros embaciados e tímidos, e resva-lou a mão sobre a casca milenar de um abeto. Começou a regressar deva-gar, articulando nova corrente de pensamentos.

Bem, apesar de tudo não poderia culpar a mulher. Ela é que vivia na Terra. Ela nada tinha com suas peregrinações espaciais, e muito me-nos ainda com seus complexos e recalques interplanetários. Ela e o filho deviam viver decentemente, com todo conforto, com tudo que os outros desfrutavam. Ela tinha razão. A velha casa, naquela rua cheia de sons me-tálicos e rugidos de foguetes, já estava superada. A esposa tinha acertado ao imitar os amigos deixando a cidade, agora insuportável, e mudar-se para o campo. E não estavam tão longe assim. Apenas seis minutos no es-tatoreator. Para o filho não havia problema. O Coletor, do Departamento de Educação, apanhava as crianças nas próprias residências. E ali tinham um local de pouso bem amplo, não precisando valer-se das estações coletivas, o que lhes dava certo destaque social.

Quando entrou no dormitório a mulher estava acordada. Muito branca, meio perplexa, era u’a mancha clara se destacando ao centro do leito rasteiro. Havia aberto o postigo e uma leve turbulência se formava no aposento, em conseqüência da corrente de ar que vinha do condicionador. Sentada no meio do leito, seu traje noturno esvoaçava como se ela fosse uma flor despetalando-se.

Êle premiu o comutador e cerrou a abertura. Apertou outro botão e a

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luz solar espalhou-se no quarto, dissipando o clima de irrealidade,— Acordei assustada. Por onde andou? Procurei-o pela casa e tive

medo. Onde andou?Êle acercou-se do leito e acariciou-lhe os cabelos.— Medo? Susto? Sim, é a nossa segunda noite nesta casa, isso é

explicável. Não foi nada. Também tive um sonho mau. Levantei-me, abri a janela e vi aquela mata lá embaixo. Alguma coisa impeliu-me para fora. Aqui estava abafado, e lá tão claro, tão quieto, tão misterioso. . .

— Espiou o menino? Dormia bem? Não estava descoberto?— Sim, aquiete-se, tudo estava em ordem. Saí apenas para lutar

contra a insônia. Você já viu como lá fora tudo fica bonito com a névoa rasteira a refletir o luar?

Levantou-se. Pegou-a pela mão e olharam pelo postigo novamente descerrado.

— Veja, parece uma paisagem de sonho, de sonho ou então de Vê-nus. Esses abetos altos, todos unidos aquele vale profundo, esse aroma selvagem, esse odor de terra. . .

— Já sei, querido. Não pense em sua ida depois de amanhã. Você está com saudades prematuras do nosso planeta. Olhe — brincou — isso está se acentuando cada vez mais. Sempre, nas vésperas de cada viagem, você fica assim. Escute, não seria melhor consultar o especialista?

Êle afastou-se bruscamente, largando-lhe a mão como se tivesse to-cado espinhos.

— Não é nada, tolinha, deixe disso. É assim mesmo. Com todos acontece o mesmo. É a distância, é a velocidade, é a sensação inominá-vel de ver a nossa morada perdida no espaço, transformada num ponto brilhante como se talvez mesmo não existisse a não ser em nossas recor-dações. . .

Voltou para a cama e sentou-se. Fitou a esposa nos olhos e puxou-a para si.

— Sabe de uma coisa? Tenho pensado às vezes. O pior não é a distância. É a impressão de dupla existência. Toda vez que entramos na nave, toda vez que aceleramos vencendo o espaço, desligando-nos da Ter-ra, temos a impressão de penetrar em outra vida, como se fôssemos outras pessoas, como se não fossemos mais nós. Tudo se torna irreal, impalpá-vel. Não sei, tenho pensado muito nisso sem chegar a qualquer solução. Durante o percurso poderia ser uma sugestão provocada pela ausência de

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gravidade. Mas lá, na Lua, em Marte ou Vênus, mesmo dentro das cúpulas e nos edifícios, a coisa é igual, sem explicação.

Ela sentou-se ao lado, ouvindo calada a confidencia.— Veja só, isso acontece também com meus companheiros. No vôo

a outros planetas parecem uma coisa. Depois quando voltamos e nos en-contramos aqui outra vez, não em serviço, mas apenas como amigos, pa-recem outros. Eu próprio às vezes tenho a impressão de estar fitando um desconhecido no espelho. Só as fisionomias são iguais. No resto somos estranhos, pertencemos a outra realidade, a outra vida, personagens saídos do sonho, da memória, do subconsciente. . .

— Deixe de pensar nisso. Bobagens, você está preocupado com a nova inspeção. Para onde vai desta vez? Muito longe?

— Não. Apenas um pulo até Vênus, a fim de examinar coisas li-gadas ao sistema de comunicação. Alguma coisa não vai bem na Estação Central. Um tipo incomum de interferência.

— E a casa? Arrependido ainda da mudança?— Não, querida. Quando estava passeando, raciocinei melhor. Você

tem razão, sempre fui egoísta com esta mania de pensar no futuro. Afinal de contas, vocês é que vivem aqui o tempo inteiro. Eu vivo dentro dessa ubiqüidade, de cá para lá. O futuro está garantido, não vou pensar mais em economias. Afinal, tenho certa posição e vocês dois mereciam residência melhor, longe daquele amontoado que está ficando a cidade. E sabe de uma coisa, sabe o que vou comprar agora?

Ela acercou-se, mostrando interesse.— Vou realizar o sonho de ambos — do menino e seu. Vou comprar

um robô. O mais completo que achar, com as últimas adatações, custe o que custar.

— Ótimo, ótimo — anuiu a esposa. -— Paulinho ficará encantado. Desde o ano passado vem pedindo o companheiro. Assim não ficará mais isolado em suas ausências. Ficarei mais tranqüila com a guarda feita pelo robô e êle não mais terá inveja dos amigos ricos. Imagine só que o pai do Teddy comprou-lhe outro robô, do último tipo, que leciona oito línguas e ensina música. Também, pagou uma exorbitância, sem contar o preço do registro duma coisa dessas!

—- Vou comprar o que de melhor houver. Amanhã mesmo iremos até à cidade e êle estará aqui antes da noite. Imagine a alegria do menino! Há tanto tempo vem me pedindo isso!

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Esticou-se na cama e relaxou todos os músculos como se tivesse ali-jado um fardo pesado. Puxou a esposa para si e mergulhou o rosto em seus cabelos. Sentia agora o mesmo perfume adocicado dos abetos, dos pinhei-ros, dos olmos, da resina, das matas embalsamadas de orvalho aguardando os prenúncios da aurora. Aroma inconfundível e inebriante que jamais en-contrara em qualquer parte do Sistema Solar.

O filho, seguro pela mão, mal podia conter-se ante aquela visão in-comum. Do lugar em que se achavam, no departamento de vendas, por um painel amplo podiam ver a fila de robôs deslizando pela linha de mon-tagem, recebendo os últimos retoques no acabamento exterior e encami-nhando-se para a seção onde iriam submeter-se aos aferimentos eletrôni-cos e acústicos para depois, na fase mais delicada, passarem ao laboratório de nucleônica para os testes dos sentidos.

O menino encostou o nariz no plástico. Mal acreditava no que via, sabendo que o seu grande desejo ia realizar-se. O pai deixou-o a vontade. Eram dezenas, centenas. Naquele departamento todos eram da mesma côr. De um vermelho brilhante, com as cabeças semitransparentes reluzindo à luz branca das oficinas, desfilavam em ritmo acelerado, controlados por um robô-chefe, tijo Ajax, que examinava os ajustes das antenas superiores com os pólos próprios.

— Bem — explicou o encarregado das vendas. — Já examinamos sua ficha de serviço e, tendo-se em conta a preferência que seu cargo des-fruta, podemos entregar-lhe um robô, da série e do tipo de sua escolha. O senhor pode considerar-se um felizardo! — concluiu, alizando a cabeça do menino. — Pois as disponibilidades são poucas e estamos atrasados na produção. Como o senhor sabe, não vencemos os pedidos. Mas no seu caso, como Superintendente de um dos Quadrantes Lunares, categoria três da administração, as ordens são estritas; tem prioridade. É só escolher, e depois assinar a autorização para o desconto na folha de pagamento.

Êle aproximou-se do mostruário e apontou as miniaturas para a es-posa. A seguir voltou-se para o vendedor, procurando orientar-se:

— O preço não importa. Como o senhor sabe, nós do Comando Exterior, bem pouco paramos na Terra. Assim, não estamos bem a par dos últimos tipos e inovações. Faça-me o favor: para o nosso caso, qual deles aconselharia?

O empregado das vendas assumiu um ar compenetrado. Compulsou o catálogo que o menino folheava e adquiriu certo ar de importância não

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muito peculiar às suas funções:— Já que o preço não importa, resta saber qual a finalidade que o

senhor pretende dar ao engenho.— Um robô de uso geral. Companhia para o menino, com conheci-

mentos de pelo menos três idiomas, com todos os sentidos, telepàticamente comandado, desprovido de instintos agressivos a não ser quando solicitado pela reação defensiva e ligado à onda mental de meu filho. Será possível?

— Como não? Trata-se dos tipos comuns, da série Ulisses ou da linha Andrómeda. No seu caso, já que o robô vai obedecer apenas às ema-nações cerebrais de seu filho, eu recomendaria o tipo recém-criado da li-nha didática Minerva. Veja, aqui está um modelo exato. É caro, mas fan-tàsticamente eficiente, equipado com os mais recentes aperfeiçoamentos, inclusive com cérebro capaz de guardar duas mil palavras, que poderão ser substituídas depois de memorizadas.

O menino ficou na ponta dos pés e mostrou ao pai a fotografia do autômato. O pai pegou o catálogo, analizou-o por momentos e passou-o à esposa. O Chefe de vendas continuava a explicação decorada, que nada mais era senão a repetição dos dizeres contidos no mostruário:

— Trata-se da obra-prima da cibernética. Quando os estudos ter-minaram, foram enviados ao Departamento de Segurança para confronto com os robôs que trabalham na zona de queda-livre e nas armas termo-nucleares. É mesmo a súmula de toda a ciência de nossos dias. Executa todas as tarefas, não só domésticas mas também matemáticas, pois seu cérebro contém, além das computadoras comuns, as válvulas sensoriais do tipo integral que, como o senhor sabe, possibilitam um raciocínio quase humano. . .

— Quase humano! — repetiu o pai em voz alta, deixando o catálogo sobre a mesa. — E a entrega, pode ser imediata? Pode ser logo ligado às ondas cerebrais de meu filho?

— Como não? No seu caso, providenciarei imediatamente. O me-nino será levado à sala dos aferimentos e, se quiser, poderá sair daqui em menos de uma hora, de braços com seu novo amigo, dialogando sobre as últimas aventuras dos heróis do espaço.

Tempos depois, o menino sentou-se na grama. Estirou-se preguiço-samente sobre a relva e jogou fora a tala de capim que mastigava. Tinha um gosto levemente azedo e adstringente.

Visto de baixo para cima, o companheiro mecânico ali de pé ao seu

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lado ainda parecia maior. De onde estava não podia ver-lhe os pés roliços, que se ligavam com as lagartas metálicas. As duas manoplas eram como espadas apontadas. A cabeça (pois o antropomorfismo era sempre necessá-rio) cheia de luzes cambiantes e antenas reluzentes, destacava-se no fundo azul do espaço. Jamais se sentava. Ensinando ou brincando, jamais deixa-va a postura hierática que conferia tamanha superioridade. Quando não se deslocava, o zumbido de seu cérebro se tornava audível e só diminuía ao som daquela voz híbrida e andrógena de criatura de oito para onze anos, com que fora regulado.

O menino apenas pensou a pergunta. Imediatamente a antena vibrou como se tangenciada por leve brisa, e um ponto vermelho mesmo de baixo para cima pôde ser visto. O zumbido interrompeu-se e uma voz pueril es-capou do engenho que era uma aberração na paisagem:

— Seu pai chegou ontem a Vênus. É noção elementar que a astro-nave, deslocando-se com a velocidade cósmica número dois, atingirá o segundo planeta em vinte e dois dias, duas horas e treze minutos.

Na base venusiana, o Superintendente terminou naquela tarde os trabalhos de rotina. Em momento de folga, recostou-se num assento no fundo do salão e tirou do bolso o retrato do filho, impresso na base da men-sagem falada. Correu os dedos sobre as ranhuras e escutou a voz suave:

— Pai, venha logo. Estamos sentindo muito sua falta. Tudo aqui vai indo muito bem, mas podia ir melhor se o senhor estivesse conosco. O meu boneco é formidável (gaguejou ao pronunciar essa palavra). Faz tudo. Brinca comigo, ajuda-me nas lições e responde o que eu quero. Só não vai até a escola porque mamãe não deixa. Sou eu mesmo que ligo a alimenta-ção das baterias todas as noites e êle sente muito prazer nisso. Pai, escute só, se eu tivesse um irmãozinho acho que não gostaria tanto dele como do meu boneco.. .

Um sorriso iluminou-lhe o rosto. Com discreção, guardou o retrato-mensagem e voltou para o centro da sala. Um irmãozinho, um irmãozi-nho... — pensou — voltando ao trabalho. Com tão pouco, com uma coisa mecânica, havia dado a felicidade ao seu menino.

No fim do segundo mês o menino estava sobre o leito. De lá não via os pés roliços e nem as manoplas que pareciam espadas. Mas o amigo estava em seu canto, silencioso, hierático, há mais de trinta e seis horas, desde que a febre se manifestara e chegara o especialista. Havia pouco que fazer, nada a responder. A conexão cerebral fora desligada por imposição

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do médico. Não podia ser de outra forma, já que o menino delirava. Como poderia o robô entender pesadelos, solicitações e angústias desconexas? Como poderia reagir às deformações mentais causadas pela doença?

Ficara, pois, semiligado apenas. Entendia e sentia mas nada podia fazer. Só aquele zumbido monótono que não incomodava ninguém, des-truindo bactérias e micróbios com as vibrações ultra-sônicas.

Talvez a misteriosa febre do espaço. Talvez a febre incurável produ-zida pelos raios cósmicos, a única que ainda não fora debelada.

Quando o pai chegou, o menino já havia ido embora para o âmago do pinheiral.

A casa estava vazia e a esposa nem mais chorava. Pouco falaram. Os gestos, os olhares diziam tudo.

Lá no meio do vale estava o menino, devolvido à mãe Terra, pelo mesmo antiquado método usado até o século vinte, e há muito abandona-do. Mas eles quiseram assim. (Os parentes é que resolviam.) O pai abraçou a esposa e saiu para o vale, deixando nas pegadas ainda um pouco da po-eira cintilante de Vênus.

Abandonado no seu canto, o robô zumbia, a espera de estímulo, com as engrenagens minúsculas girando, formando juízos e conceitos que arquivava na memória.

Pela madrugada o pai debruçou-se sobre o postigo. Não havia mais o silêncio da noite, que procurava deglutir a própria escuridão. Espantou-se e, a princípio, não compreendeu nada, sentindo ao lado a esposa ofe-gante.

De súbito, um rugido atroador fendeu a madrugada. Uma bola de fogo precipitou-se pela saída da casa e saiu estertorando pelo pinheiral, deixando um rastro fantástico à sua passagem. As folhas secas retorciam-se, os galhos partiam-se, a vegetação recuava, encolhia-se para deixar pas-sar a massa ígnea que se precipitava em direção ao vale. A própria névoa dissipou-se, profanada pelo corredor de chamas que lhe varou as entranhas. Depois o ritombo atroou, como se um foguete se houvesse despedaçado na ravina. O eco estrugiu muitas vezes, a neblina formou roda-moinhos e re-conquistou o terreno espoliado, como um animal se contraindo e lambendo as próprias escaras.

— O robô! O robô! — gritou a esposa.— Sim, o robô! — anuiu, perplexo, o marido.No quarto do menino estava o carregador de baterias. O cheiro de

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alta energia espalhava-se no ambiente. O ponteiro mostrava-se emperra-do na zona vermelha. A carga máxima fora superada mais de dez vezes: o choque anafilático do organismo cibernético. O robô mesmo havia se conectado aos comutadores e ligado a carga destruidora. A bola ígnea era a conseqüência.

Olharam o vale. O cheiro estranho ainda se enrascava pelos abetos e pelas rochas. A trilha era uma massa informe de metais fundidos. Na beirada do despenhadeiro viram apenas restos fumegantes.

Êle apertou a esposa nos braços. Queria sentir o perfume da vida, o aroma da terra.

— Sim, o vendedor tinha razão. O robô era quase humano, humano, humano. . .

O horizonte, como um rastilho de pólvora, incendiou-se de repente tocado pela primeira luz da madrugada, uma luz lívida, de curto-circuito e de voltagens descontroladas.

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Número transcendental

“What are those of the known but to ascendand enter the Unknown?

And what are those of life but for Death?

Walt Whitman — Portals.

Quando o sono é profundo demais vivemos um lampejo da eterni-dade.

Aquilo seria a morte? O trânsito imponderável para o nada? Não, não poderia ser assim, pensava êle, e isso porque se apartara de tudo me-nos da consciência o que, certamente, era o selo característico da vida. Essa foi a primeira conclusão quando procurou ordenar as premissas do absurdo ato que vivera. Que vivera? Teria mesmo vivido ou os homens de branco teriam razão? Por que não se abalaram ao saberem do aconteci-mento? Só aqueles olhares irônicos, aqueles risos mal dissimulados, a in-disfarçável catadupa de chacotas ante as idéias, gestos e palavras de todos os demais imbecis, dos infelizes que habitavam a casa cinzenta, e que nada mais eram senão fantoches animados pelos dedos e pelos cérebros dos ho-mens de branco. A reação dos inúmeros pares de olhos e mesmo as pílulas, também brancas, que escorreram antes de mais nada do frasco hialino que as continha às centenas, e o grau de passividade ao qual se achava redu-zido depois de semanas de suplício e de outras pílulas, gotas e injeções,

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geravam-lhe agora certa dúvida. Não teria vivido, sim, paradoxalmente vivido, e isso pela existência da consciência, uma fração da morte? Te-riam errado seus carcereiros levado a extremos a tortura a que vinha sendo submetido? Ou então (e a este raciocínio tremia, como se perfurado por milhares de agulhas, com o impacto doloroso de choques elétricos) não passara de criação do seu cérebro, da sua propalada insanidade? Não — e apertava os dedos tão fortemente como se pretendesse triturar as próprias juntas — não. Havia o salva-vidas da consciência, do discernimento, havia sobretudo a questão do número reconhecidamente transcendental, o que não podia ser delírio. Agarrou-se a tal certeza, com a angústia do moribun-do ao apegar-se aos estertores da chama que rompe o cubo da escuridão prenunciador da morte. E êle comparava-se ao agonizante, ao náufrago que se debatia, sentindo as ondas cerrarem-se sobre si.

Essa foi a primeira etapa a que chegou ao tentar mais uma vez orde-nar com objetividade a seqüência dos acontecimentos. E sua dúvida tinha a desvantagem de um traço negativo: não sabia de tudo, ignorava o por-menor desconcertante que desequilibrara as posturas irreais dos homens de branco.

Fora de manhã. Ao acordar olhara o calendário com a borboleta azul em relevo. Da borboleta o pensamento passou à liberdade. Da noção de liberdade e de fuga evoluiu para a contagem dos dias intermináveis, desde que lá estava. Sim, no começo houvera uma doença. Eles tiveram um motivo concreto para a sua internação. E depois? Só aqueles espaços neutros, cuja cronologia era marcada pela alternância da luz solar subindo e descendo na persiana. Se era dia, a escala luminosa percorria o gráfico que eram os reposteiros. Se era noite, eram sons nunca identificados que povoavam o casarão. Se era madrugada — quando então o silêncio descia — ouvia-se o vergastar pungente das ondas, às vezes quebrado pelos gritos também pungentes das aves migratórias. Êle estava ilhado, impossibilitado de falar, de queixar-se, de pedir auxílio. Via-se afogado pela conspiração dos homens de branco que, com certeza, agiam a soldo de Ester e Mateus aliados a Eduarda e outros parentes, desde a morte de Eliana. Telefone, cartas, mensagens, tudo era impossível no casarão, pois, em verdade, nem mesmo sabia onde se achava e a que distância da cidade mais próxima. As explicações de nada adiantavam. Resolvia os testes, seus músculos e ner-vos atendiam às solicitações de martelinhos e de agulhas, equilibrava-se bem, em pé, depois de múltiplas rotações na cadeira giratória, e seus olhos

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concentravam-se simètricamente em alvos luminosos que se destacavam como fantasmagorias em salas escuras. Tudo em vão. Os homens de aven-tal branco, de seringas nas mãos e refletores sobre a fronte, parece que não o compreendiam; ou então, o que era sobremaneira grave e inexplicável, já tinham o diagnóstico firmado, como se a ficha estivesse há muito pre-parada e, como realidade pré-existente, antecipasse nele, em sua pessoa, a morbidez que devesse ser aprioristicamente localizada.

Fora pela manhã. Estava decidido. Sabia apenas que essa decisão o revitalizara e lhe dera a certeza de que vivia, de que não era insano, mas sim uma vítima até então abúlica submetida a terceiros, conquanto porta-dora de uma vontade. Firmado o plano, passara à ação.

Seria antes do almoço, quando todos estivessem ocupados, ocasião esas em que, segundo observara, a vigilância diminuía. Como parte do plano, desde a antevéspera demonstrara inusitada submissão. Quando, in-tegrado na fila, passassem junto ao depósito, sempre de portas abertas, entraria pelo mesmo a dentro. De lá, antes que o fim da fila alcançasse o refeitório, sairia por uma das janelas do fundo, que davam para o jardim. Entre as árvores nunca vira ninguém. A cerca daquele lado era baixa e a pequena distância até o muro facilitava tudo. Antes, quando ainda no depósito — e nisso consistiria o êxito da fuga — atearia fogo em alguma coisa para desviar a atenção do pessoal de serviço. Ah! Como era mesmo o nome? Piromaníaco, sim, agora se lembrava. Riu ante esse detalhe. Tal circunstância não estava anotada em sua ficha. Não fazia mal! O fogo e a evasão haveriam de valorizar mais ainda sua conduta de louco declarado.

Pela posição do sol sobre a persiana verificou que não faltava muito tempo. Um frenesi de impaciência percorreu-lhe os músculos, que eram agora como animais fogosos contidos no início da carreira. A segurança do plano incutiu-lhe forças insuspeitadas, como se houvesse recebido uma transfusão de otimismo e de energia. Eles iam ver. Pegá-lo-ia, da mesma maneira pela qual fora apanhado — de surpresa. Depois iria até à casa do advogado e, talvez, até à polícia. Como era mesmo o nome do crime? Se-qüestro, mantenimento em cárcere privado? Haviam de ver. Na cartada ini-cial tinham obtido vantagem, tinham sabido utilizar-se do trunfo que fora a sua excessiva generosidade e que dos parentes recebera a denominação capciosa de “prodigalidade”. Eles haviam de ver, principalmente Eduarda com seus gatos imundos, suas mesquinharias e seus amantes regiamente pagos. Tinha plena convicção. Fora ela quem, com sua desmedida ganân-

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cia e falta de escrúpulos, urdira tudo, inclusive a trama judicial.A luz caminhava pelo gráfico habitual. Quando a sineta soasse, o

plano seria desencadeado. Em pé, procedia ao exame final do que levaria. Nada que servisse de arma. Ainda bem que podia fumar! A tolerância in-compreensível dava-lhe a vantagem do isqueiro. Uma camisa sobre a outra — podia fazer frio. Um sapato mais usado — a caminhada seria árdua. No bolso, os óculos, os documentos e o relógio, mesmo parado.

A sineta soou.Ingressou na fila dos conformados. A cada passo o depósito se acer-

cava. A primeira porta era depois da esquina do pavilhão comum. Isso lhe favorecia o plano, pois entraria sem ser visto pelo acompanhante, que sem-pre vinha em último lugar. Ao dobrar o oitão, correu pela passagem. Em-barafustou pela pilha de sacos e viu o recorte de luz da janela dos fundos. Agiu com plena consciência e determinação. Escondido, com os pés ajun-tou sacos vazios, restos de caixotes, e lançou o isqueiro aceso. Projetou-se em direção ao recorte ofuscante sem voltar-se, desinibindo-se de qualquer precaução. Saltou sobre as caixas e lançou-se para a janela, sem mais se importar com as chamas que crepitavam começando a inundar o depósito de fumaça espessa e mal-cheirosa.

A cerca baixa. Esqueirou-se sob o arame e não viu ninguém, como previra. Depois o muro. Imbecis! Se do casarão ninguém deveria esca-par, como deixaram o muro tão rasteiro e tão branco? Talvez a brancura, a algidez, constituísse determinado tipo de ilusão, de barreira mental, de linha psicológica a envolver um punhado de vontades asfixiadas. Apenas uma linha, um segmento, um traçado geométrico encurralando lesados de espírito, fronteira palpável do racional e do irracional, grifo branco cons-truído pelos homens da mesma côr. Mas para êle era só um muro baixo de alvenaria, de fácil transposição. Mais uma prova concreta de sua sanidade. A barreira circundante não exercia sobre seu cérebro a mesma função ini-bidora e paralizante que a transformava para os outros em fosso e muralha, paredão e ameia a tolherem todos os impulsos das criaturas do interior do círculo, que nem siquer ousavam desafiá-la, rendendo-se à mera advertên-cia de sua alvura.

Saltava, corria, distendia-se. O suor que o alagava como que lhe lu-brificava as articulações, refazendo-o dos dias longos de inatividade. Dos lados e à frente a paisagem turbilhonava em esboços oscilantes. Não sentia as vestes se rasgarem na passagem através da vegetação. Não sentia a pele

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romper-se em pequenos sulcos açoitada por espinhos, não se dava conta do líquido que lhe porejava na fronte e ardia nos olhos, contribuindo para o confuso entrelaçamento do cenário que formava simbiose com o seu raciocínio. Nem sequer tinha noção do tempo e da distância.

Ao cruzar a faixa de asfalto começou a ouvir perto o embate das on-das. Às bordas da exaustão, o pensamento voltou a ser límpido. Não, pela estrada não. Só depois que a noite caísse. Logo haveria busca. Pelo mar, pela orla da arrebentação, suas pegadas seriam em breve desfeitas. Para o mar, para o oceano, enquanto lhe restassem forças!

A praia era uma linha horizontal que rugia. Galgou a última eminên-cia, sentiu nos lábios a poeira salgada que cintilava ao sol. Só então parou, expectante. Voltou-se, evocando o ponto de partida, as dunas que vencera, a vegetação que se abrira concordando com sua passagem. Traço nenhum dos homens de branco.

Quase tranqüilo, antes do novo lance, agora pela orla das águas, deixou-se cair sobre a areia como um paquiderme cansado, premido pela perseguição. A respiração ofegante foi arrefecendo e logo seu corpo cavou um nicho que a marola passou a cobrir. Com água pelo rosto, levantou-se. Não se deu conta de seu estado e recomeçou a caminhada olhando agora o promontório que avultava fendendo a fita espumante da arrebentação. Para lá agora. Depois a espera da noite e, depois ainda, a esteira de asfalto. Na encosta do promontório escalvado seu corpo era apenas uma presen-ça. Um tronco petrificado, um fóssil esculpido na rocha, a carcaça de um albatroz, a tenaz de um crustáceo, o detrito de um argonauta ou a massa gelatinosa de um aglutinamento de dáfnias. Da vida só dava notícia o leve arfar da respiração. As gaivotas se acercavam intrigadas, perturbadas pela enigmática presença.

Ao acordar, o dia terminava. Como se alinhavasse uma prece, pos-tou-se de joelhos vasculhando o litoral, procurando traços dos persegui-dores. Mas não distinguiu nenhum indício, nenhum som agressivo e aler-tador. Só a praia deserta, intocada pelos homens, sem elementos que lhe possibilitassem a identificação geográfica. Não devia ser muito longe do asfalto, que logo o conduziria até alguma cidade. Pôr-se de pé mais con-fiante e examinou as vestes rotas, as minúsculas tatuagens do sangue seco que cobriam as equimoses. Mesmo molhado, não sentia frio. Ao contrário. A brisa era cálida, estimulante e causava-lhe crescente bem-estar.

Agora, dentro do império da noite, em marcha. Uma vez na estrada,

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não seria difícil uma condução para o lugarejo mais próximo. Na luz bru-xoleante localizou a rodovia que brilhava pàlidamente como se também estivesse molhada. Não viu sinal de vida e nem mesmo localizar de que lado ficava o casarão. Só, bem ao longe, o ondulado dos fios telegráficos que se perdiam de outeiro. Espantou-se ao pretender avaliar a distância que percorrera. Dois, três, cinco, dez quilômetros? Só Deus sabia. Come-çou a descer o promontório, depois de memorizar bem a posição da estra-da. Naquela hora a esteira clara era como um hiato ligando a escuridão da terra à treva do mar.

Mal deu alguns passos, eis que sentiu algo anormal. Voltou-se, alar-mado, pensando nos homens do casarão. Crispou os dedos, fincou mais os pés na areia fofa, entreabriu os lábios, mas nenhum som se lhe formou na garganta.

Aquilo era apenas uma forma vagamente definida. Os contornos, os limites, eram dados por uma espécie de fluorescência cambiante que aprisionava um conteúdo escuro e menos visível ainda. Aquilo estava a menos de dez metros e ia se aproximando, com a mansidão de quem flu-tua. Êle apertou mais os dedos e nem sentiu que caminhou para trás. Os contornos da forma luminescente mais se definiam, e viu que era como uma névoa azul e esgarçada. Aquilo parou a pequena distância e êle pôde ver prolongamentos que se moviam como tentáculos de um cefalópode. Distinguiu também uma luz bem no centro do que seria um corpo. Olhou para os lados, como que se libertando da atração quase hipnótica que a visão lhe impunha. Diluídas pela distância, enxergou ao longe outras man-chas iguais, outros borrões luminosos que pulsavam sobre o mar como que cavalgando a crista das ondas. A forma que vinha em sua direção se deteve. Êle teve tempo de ver que outras saíam das águas e se acercavam, iniciando um préstito fantástico. Olhou os contornos daqueles prolonga-mentos filamentosos que se agitavam como galhos de um vegetal absurdo ou como extremidades de celenterados. Observou que a fosforescência brotava das formas como se fosse um líquido pastoso que as protegia do contato direto da atmosfera, pingando sobre a areia levemente iluminada como gotas escorrendo de um círio. E mal tocada ao chão, a massa se con-sumia, formando um ligeiro vapor. Quando elevou os olhos viu que outras formas estavam bem perto e iam articulando um semicírculo ao seu redor, o que lançava sobre a areia uma débil claridade. Recuou, sentiu que aquilo possuía uma inteligência, ou pelo menos um instinto, e não logrou conter a

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frase que era mais um grito, uma súplica do que uma interrogação:— Quem são vocês? Que querem de mim?Não obteve resposta. Sentiu que o semicírculo se apertava e se viu

possuído de incontrolável pavor a ponto de cair de joelhos. Prostrado, na claridade azulada, como um possesso, admitiu aos brados que era mesmo um insano. Seus gritos histéricos rivalizavam com o troar das ondas.

Foi então que a claridade aumentou. Uma daquelas coisas adiantou-se. Vencido, sem mais recuar, aceitando que tudo o que via era uma ilusão insana, cessou de clamar e se postou estático, o olhar esgazeado, a boca salivosa e arquejante, sentindo a inutilidade de seus estertores. Viu então um dos tentáculos adelgar-se, assumir a postura de um braço e, inespera-damente, traçar na areia os limites exatos de um círculo. O homem apenas olhou sem nada entender. Outro círculo exato e completo foi desenhado e depois o prolongamento tornou à posição anterior junto à aparição. O homem começou a sentir um leve formigamento, uma ligeira vertigem, que agiu sobre seus nervos como um sedativo. Firmou-se de novo so-bre os joelhos, e passou a examinar as formas, já agora com curiosidade, sem tomar consciência da metamorfose que se opreava em sua conduta. O pavor diluiu-se e viu-se invadido por uma calma repousante, não mais estranhando a presença daquelas coisas inomináveis. Como se estivesse cautelosamente aguardando a ação de um medicamento ou o efeito de um sortilégio, de novo o tentáculo se moveu e desenhou novo círculo, maior que o primeiro. O homem acompanhou o gesto com atenção e viu também que dentro do círculo foi traçado seu diâmetro, separados os quadrantes e mesmo uma tangente, e em seguida uma corda. Ao observar tais detalhes, o que lhe restava de medo se diluiu por completo. Chegando bem perto da figura traçada inclinou-se e também desenhou um círculo imperfeito, separando seus quadrantes. Sentiu então que todas as fantasmagorias se agitaram, como se um frêmito tivesse perpassado por elas. Animou-se, firmou-se resolutamente sobre os pés e lançou de novo a pergunta:

— Quem são vocês? De onde vieram? Que significa tudo isso?Não obteve resposta. Outros e outros círculos foram se sucedendo,

já agora seguidos por uma série infinita de figuras geométricas — triân-gulos, trapézios, paralelepípedos, polígonos. Cada vez mais perplexo, êle recuou para ter uma visão completa da cena. A forma que estava no centro passou a traçar uma figura diferente: um diminuto círculo rodeado por outros ainda menores.

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O homem concentrou nesse desenho toda sua atenção. Já havia compreendido que aquelas coisas não podiam falar mas buscavam uma comunicação. Esqueceu suas desconfianças sobre a possível irrealidade do acontecimento e, cada vez mais tranqüilo, acompanhou os ideogramas que o filamento fosforescente rabiscava na areia. Um círculo central com mais nove ou dez ao redor, concluiu ao ver o último traço. Em seguida, o ten-táculo passou a traçar círculos concêntricos. Êle então compreendeu tudo, como se tocado por um estado de graça. Sim, aquilo era um esboço do Sis-tema Solar, não restava dúvida alguma. Aqueles monstros fosforescentes, aquelas formas, não eram produtos de sua imaginação, não eram criações de sua mente enferma e nem mesmo criaturas geradas pelo oceano. Eram coisas, seres vindos de outro planeta!

Animou-se, despojado de qualquer precaução, acercou-se mais das coisas, observando melhor a massa que escorria e era absorvida pela areia.

Mas — raciocinou — se nove eram os planetas, porque a figura apresentava dez círculos menores?

Abaixou-se e apagou com as mãos a representação do que seria o último planeta conhecido, afastando-se em seguida. De novo o tentáculo se moveu e repetiu o traço, mais lentamente do que a primeira vez, recolo-cando o diminuto círculo além do último que fora traçado.

Êle não controlou a sua deslumbrada alegria. Ficou de pé e falou em tom triunfante, como se estivesse se dirigindo a velhos amigos:

— Sim, agora compreendo tudo. Vocês vieram de um planeta desco-nhecido por nós, além de Plutão. . .

Nenhum som veio como resposta. Êle observou porém que os pentá-gonos, retângulos, octógonos, hexágonos continuaram a ser traçados pelas figuras que, assim procedendo, buscavam uma linguagem universal. Sen-tiu que sua confiança atingira o máximo. Como acionado por um comando irresistível, levado por súbita inspiração ou impelido por vontade superior, abaixou-se; seu dedo correu levemente sobre a areia e viu, surpreso, que traçava números com agilidade desconhecida de si próprio. Depois, parou. Levantou-se e leu em voz alta:

— Três, catorze, dezesseis. . .Repetiu, mais devagar, como que concatenando profundos raciocí-

nios. — Ah! Era como o alívio depois da solução de intrincado problema. Era como a ressurreição de uma imagem perdida da infância.

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— Três — fêz uma pausa — catorze, dezesseis. .. Sim! — gritou exultante. — 3,1416!

Agora se recordava. Era o número transcendental, irracional, o cír-culo, as linhas traçadas, as relações absolutas e invariáveis da circunferên-cia com seu diâmetro. Sim. Agora compreendia por que a aparição traçava insistentemente secantes, flechas, segmentos de arco e trangentes. Buscava um meio, uma fórmula, uma ponte para a comunicação. Não, não estava louco. Achava-se sitiado por seres inteligentes vindos de um outro mundo e que, obstinadamente, depois de o localizarem, tentavam comunicar-se por meio de símbolos e de representações imutáveis. Que linguagem have-ria mais universal que a relação da circunferência com seu diâmetro? Era uma verdade absoluta em qualquer parte do cosmos, e eles bem o sabiam. Mas — e isso o perturbava — como fora levado a escrever o número trans-cendental sôbre a areia? Talvez uma influência psíquica, talvez telepatia. E a calma súbita que o possuíra? Agora nada mais lhe importava, nem mesmo os homens de branco. Avançou resoluto e riscou um diagrama do Sistema Solar. Depois indicou o terceiro círculo e apontou em seguida para o solo, voltando depois o dedo num gesto largo e lento para o seu peito. Repetiu a operação várias vezes, sempre com os olhos fixos naquelas for-mas tremulantes que não cessavam de despejar a secreção viscosa sobre o chão, como se fossem se dissolvendo.

Os tentáculos se agitaram e novo desenho apareceu ao lado do seu. Aquilo não era mais um círculo, triângulo ou polígono, mas uma espiral diferente, talvez uma espiral com três centros. Examinou bem a figura e ia levantar os olhos numa interrogação quando sentiu que algo de anormal acontecia: os mudos interlocutores começaram a recuar como se tocados por um único impulso. Sem entender, êle se levantou e sentiu que a calma o ia abandonando com a mesma gradação imperceptível que o subordi-nara antes. Cada vez mais as aparições se diluíam em direção ao mar e, à medida que se afastavam, êle passou a ouvir num crescendo o marulhar do oceano, que antes desaparecera, dominado. O medo, o pavor, um frio sobrenatural apoderou-se então de seu organismo e fê-lo voltar-se, procu-rando descobrir a causa que levara as aparições a regredirem para o seu nascedouro. Nas proximidades, nada havia. Mais longe, talvez.

Uma luz forte, mais luzes, um som vago que tinha limites bem dis-tintos do agitar das ondas. Era das bandas da estrada, do lado do asfalto. Mesmo apavorado, compreendeu. Eram os homens de branco. Precisava

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fugir, correr, precisava de novo refugiar-se, escapar da loucura. Voltou-se para o mar, mas nada viu. Tudo se dissipara com a fluidez de um sonho. Procurou os círculos no chão, as linhas, o número, a espiral. Nada conse-guiu distinguir, pois a escuridão era agora única realidade. Tolhido num torvelinho de reações contraditórias, pensou em correr. Mas para onde? Era tarde. Jatos de luz cortavam a praia e os latidos de cães pelo vento, não davam a posição exata dos perseguidores.

A sua revolta desencadeou-se sobre o primeiro dos homens de aven-tal branco que localizou:

— Miseráveis, miseráveis, tão ignorantes que não sabem o que fi-zeram! Quanto a mim não importa, não importa me aprisionarem, mas espantaram as criaturas! Sim, seus miseráveis, as criaturas, elas fugiram para o mar, desapareceram!

O enfermeiro estacou a pequena distância e apontou-lhe a esteira luminosa duma lanterna. Focalizou um rosto vultuoso e desfigurado, as vestes rotas mal ocultando equimoses e sangue coagulado. Teve medo de acercar-se e resolveu esperar os companheiros e os cães policiais. Mas, mesmo parado, surpreendeu-se com o que ouvia e que continuava em es-gares patéticos:

— Venham, seus miseráveis! Estragaram tudo, destruíram a grande oportunidade! Agora, logo agora que a comunicação ia ser possível, vocês, com suas imundas presenças, assustaram aqueles seres provindos de um outro mundo. Esse crime foi muito maior que o cometido contra a minha pessoa.

Outros vultos brancos foram se acercando cautelosamente. Assis-tiam àquela reação incomum e trocavam comentários sussurantes, pois bem poucas vezes haviam deparado com um tipo tão raro de demência. O indivíduo que deveria ser o chefe deu algumas ordens em voz baixa, sem coragem de aproximar-se, lastimando o acesso que agitava aquele cérebro.

— Não, não se aproximem! Voltem, desapareçam, deixem-me só, deixem-me só! Assim talvez as criaturas voltem, talvez revelem mais al-guma coisa, talvez digam de onde vieram. Vamos, voltem, desapareçam, desapareçam!

Dois do grupo agora avançavam com alguma coisa nas mãos, pru-dentes, como se acuassem um felino.

Êle então compreendeu que seria vencido. Baixou o tom da voz e

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passou a falar numa súplica pouco perceptível, abafada pelos sons marí-timos.

— Pelo amor de Deus! Sei o que estão pensando, que estou louco, que estou furioso, que sou um insano. Mas juro-lhes, não sou nada disso. Estou tão lúcido quanto vocês. Como fui internado? Não serão as fichas que darão a resposta. Esperem, pelo amor de Deus, esperem, investiguem, falem com meus parentes, procurem meu advogado, vejam o inventário, sim, vejam o inventário!

O grupo escutava. O médico jogara fora o cigarro e tomava notas num caderno, à luz da lanterna mantida por um auxiliar. Os enfermeiros não ocultavam risos sádicos e os dois da frente, como uma vanguarda de choque, avançavam palmo a palmo, centímetro a centímetro, aproximan-do-se do animal encurralado.

— Esperem, escutem um momento só antes de me levarem. Não es-tou louco. Se completasse minha fuga logo provaria o que digo. Escutem, afastem-se, vocês não sabem o que se passou aqui nesta praia, vocês não sabem! Vi seres de outro mundo, saídos do mar, vindos de outro planeta, mais de um...

O lápis corria sobre o caderninho. As luzes de muitas lanternas con-vergiam sobre a figura patética que se punha agora de joelhos, numa súpli-ca delirante. Os dois avançavam mais depressa, encorajados pela postura submissa.

— Não acreditam, não? Procurem então na areia os traços dos seres, procurem aquela massa incandescente que lhes escorria dos corpos! Va-mos, procurem, vejam os círculos, os símbolos, vejam a espiral, vamos...

As últimas palavras lhe morreram na garganta antes de cair de bru-ços. Sentiu quatro tenazes de músculos se fecharem sobre seu corpo, de permeio com um cheiro de álcool e clorofórmio. Não sentiu a picada, e a praia se dobrou num vórtice colorido que se plasmou numa esfera ôca de escuridão.

No dia seguinte, o inevitável retorno. O mesmo gráfico de luz a desfilar sobre as persianas. O ciclo alternado dos homens de branco, com suas gôtas, agulhas e pílulas e, sobretudo, aquela confusão desconcertante de não se saber vivo, morto, insano ou delirante. As mesmas perguntas pingavam cadenciadas, como filetes líquidos em tortura oriental, cavando sulcos em sua mente:

— Teria mesmo vivido o episódio ou os homens de branco tinham

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razão? A entrevista seria decorrência da fuga, ou tudo se teria passado apenas nas dobras de seu inconsciente? Não teriam errado nas poções, na noite anterior, o que o teria levado mais para o outro lado, bem para junto da morte?

Nada sabia. Todos os raciocínios se atolavam num pélago onde se contraíam duendes, figuras geométricas, o número transcendental, criatu-ras de branco, reticências, pontos de interrogação, vegetais com tentácu-los retorcidos, anêmônas, crustáceos e latidos de cães, luzes cortantes e a substância viscosa escorrendo dos monstros sobre a areia.

Como conseqüência, a família, responsável pela internação, foi no-tificada da piora do enfermo. Uma conferência médica teve curso e só o psiquiatra mais jovem — o mesmo que, de caderno na mão, anotara na praia os desabafos alucinantes — permanecera calado, apenas ouvindo. A ficha recebeu novas e minudentes considerações, e nos semblantes de Mateus e de Ester um contentamento positivo anulou temores agora infun-dados. Teriam antecipado a verdadeira demência, ou teria sido ela desen-cadeada pelo internamento?

Quanto a êle, apegava-se apenas à derradeira esperança: sua cons-ciência, que considerava o selo característico da vida. Mas, não chegaria nunca a saber tudo. Não saberia que o médico do caderninho voltara no dia imediato ao local; que aquele homem discreto e calado rastejara pela areia em busca de vestígios da massa luminosa que escorrera das aparições; e muito menos teria informes de que grande porção de detritos havia sido encontrada e recolhida em provetas. E nem mesmo chegou a ter o lenitivo do esclarecimento final: a massa informe fora analisada, testada, e o laudo, com naturais reservas, ficara dentro do conhecimento de apenas alguns cientistas que não acharam explicação satisfatória. Aqueles resíduos eram de sílica, sílica da mais pura, como dificilmente poderia ser encontrada na face da Terra.

O jovem de branco, sempre concentrado em seu gabinete, cismava ao cair da tarde com o caderninho e um laudo na mão. Esquecendo-se do cigarro que quase lhe queimava a ponta dos dedos, reconstituía o ato transcendental a que assistira na praia. A função tinha sido ímpar, tão trans-cendente quanto a descoberta posterior ou o número que fora rabiscado na areia.

— Sêres do outro mundo, saídos do mar! Vocês não sabem o que se passou aqui nesta praia. Ví seres do outro mundo, vindos de outro planeta.

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Não acreditam, não? Procurem então na areia aquela massa incandescente que lhes escorria dos corpos, vamos, procurem. . .

Podia ver ainda a figura alucinada e ouvir-lhe os brados.Fechou o caderno e releu o laudo. Largou o resto do cigarro no cin-

zeiro e olhou para o sol poente: “O homem é feito de carbono. Carbono é a matéria-prima divina que se fundiu na criação. E a sílica, quase idêntica ao carbono? Poderá haver homens de sílica em alguma parte do cosmos?”

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O fim da aventura

“I saw the day the return of the heroes, (Yet the heroes never surpass’d shall never return,

Them that day I saw not)”.

Walt Whitman — The Return of the Heroes

Eram sete, sete como as Pleiades — conforme escrevera o comenta-rista do jornal que divulgara a primeira notícia. Sete heróis anônimos, sete homens da Terra que tiveram o fim inglório. Sete astronautas que tripula-vam a nave fabulosa equipada para a primeira viagem. Podia-se esperar tudo, menos o que acontecera. E logo depois do sucesso, depois de ter sido dado o grande mergulho — como dizia o articulista — surgira o fim imprevisível que só poderia ter ocorrido não na realidade, mas na imagi-nação de algum escritor insano, useiro e vezeiro em soluções mórbidas, produtos do espírito delirante. Mas, acontecera. Os jornais narravam a his-tória toda (pois a expedição fora secreta), reproduziam trechos do diário do Comandante, divulgavam fotografias, exibiam pormenores horrorosos. A opinião pública se agitara. Falava-se em expedição punitiva, em vingan-ça, em massacre. Mas nada adiantava. Uma falha mecânica, dois reatores horizontais engasgados, a mensagem mal captada, a localização tardia e a tragédia inconcebível.

Os supersticiosos viram no fato uma advertência metafísica: o ho-

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mem se atrevera ao impossível, descerrara véus que deviam permanecer intactos, e fora castigado. Outros, com maior profundidade interpretavam o acontecimento como tremenda lição.

Ao passo que os mais espiritualizados receberam a notícia como imposição divina e lançaram-se à coleta para a construção de uma igreja no lugar, se isso fosse possível, de uma capela sob invocação da Madona dos Astronautas.

Sim, eram sete como as Pleiades — tinha razão o jornalista. Ou-tros haviam morrido, até certo ponto sacrificados, pois se conheciam os perigos. Na aceleração, nas esteiras dos metoritos, na descompressão, no veneno do dióxido, nas ravinas lunares, na deceleração, em órbita, revol-vendo-se em torno de Marte ou Vênus, e muitos para além ainda, perdidos em sondas que ultrapassaram os parâmetros do sistema. Mas assim, nunca. Era bárbaro, selvagem, animalesco e, sobretudo, irônico, formando certo antagonismo desconcertante.

Sete heróis, sete terrestres, não importam os nomes. A equipe era completa, o que havia de melhor e de mais treinado no planeta para aquela missão conjunta de todos os Estados. O Comandante, responsável pelas páginas do diário. O Piloto e o Astrogador, de longo curso e de grande experiência, veteranos de satelóides e de estações. O Engenheiro, senhor dos intrincados mistérios dos motores nucleares. O trio especializado: o Biólogo, o Psicólogo, o Botânico. Sete personagens anônimos que haviam penetrado nos arcanos do espaço e que ficariam eternizados pelo episódio macabro que coroara o fim da eventura.

O Comandante procurou dar nitidez à imagem que se projetara na tela. Premiu botões, girou comutadores, e a aterradora esfera, com um arco de oitenta graus, estabilizou-se na parte inferior do écran, emergindo de uma densa formação gasosa.

Nos assentos da frente estava o grupo de controle, e mais para trás a equipe especializada, todos preparados para a aproximação e para o pou-so. Em seu assento reclinado o Piloto examinava a tela quadriculada e procedia à conferência das curvas e das elipses de frenagem. Tudo correra admiràvehnente. Haviam superado a deceleração, quebrado a velocidade de cruzeiro, e a nave, resfriando-se da abrasão inicial decorrente do atrito com as mais altas camadas da ionosfera, começava a entrar em posição adequada para que, vencendo os derradeiros atritos térmicos, pudesse mu-dar o tipo de propulsão, deslocando-se horizontalmente, com a ajuda de

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foguetes convencionais.Só o Piloto e o Astrogador trabalhavam, vigiando os comandos

automáticos. Os demais, extasiados, observavam a esfera acamada entre nuvens, a brilhar intensamente, ainda sem revelar detalhes de uma super-fície.

— 580 milhas, 570 milhas, 560 milhas — a contagem ia sendo anunciada pelo Astrogador através do microfone interno de seu capacete. E à medida que o Piloto recebia os informes referentes à altura procedia a ajustes nos instrumentos, até o momento em que, ao escapar da velocidade orbital, entrassem em vôo controlado, utilizando-se dos jatos-orientadores, logo que as regiões da Terra fossem reconhecíveis.

A esfera ia se chegando mansamente. O diâmetro se ampliava e a côr azulada, antes integral, diluía-se em gamas coloridas, de tons des-maiados, duma beleza nunca vista. As camadas de vapor e de nuvens se aproximavam, e nos rasgos que já se ofereciam divisavam-se cintilações coruscantes que deviam ser os mares, alternando-se com manchas de um verde profundo. Nenhum acidente geográfico era ainda visível e qualquer identificação do ponto ou mesmo do hemisfério ou do quadrante era im-possível, mesmo com auxílio das cartas mais minuciosas.

— 460 milhas, 450 milhas, 440 milhas. . .A abrasão renovava-se. A elipse de frenagem tangenciava mais uma

vez a camada espessa do ar, quebrando a velocidade e mergulhando mais profundamente. O Comandante olhou os termômetros, pressionou os re-gistros e mesmo debaixo de seu pesado elmo transparente os companheiros lhe viram no semblante uma expressão animadora, de quem tem a certeza de que tudo vai sair bem.

O Piloto comprimiu a tecla vermelha. Era o derradeiro momento do vôo automático. A nave despencou-se fundo, debatendo-se na camada de ar mais espessa do que se julgara. A nave viu-se envolvida numa perigosa turbulência, como se fosse desconjuntar-se. Sons ásperos partiam de suas estruturas. Dir-se-ia que o material se exauria em sua extrema resistência. Chiados, silvos, rangidos, estalos, eram como gritos agônicos da máquina que se sentia espoliada de sua capacidade. Mas tudo durou pouco, e de novo se viu pelo elmo a expressão tranqüila do Comandante ao ler no pai-nel os resultados e escutar a declaração da altitude:

— 240, 230 milhas. . .— Atenção, passo ao vôo comandado!

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O planeta mudava agora dc aspecto. Não era mais uma esfera acon-dicionada em nuvens. Era um arco de pouco mais de trinta graus que se abria vencido, exibindo escoriações, pústulas, eezemas e porosidades. Sua epiderme não era aveludada e igual como antes lhes parecera. Era como a pele de um ancião vergastado pelos anos, com todas as cicatrizes de sua permanência no tempo.

Baixando mais ainda, os foguetes-direcionais cuspiram seus jatos no ar rarefeito. A nave sofreu desvios, o Piloto fechou as mãos sobre o comando e descerrou a frente da cabina, libertando-a da proteção metálica que ocultava um pára-brisa convencional, como uma nave atmosférica.

A visão que se abriu foi indescritível, nunca antes vista por huma-nos. Toda a paisagem do planeta rasgava-se à frente dos sete homens ma-ravilhados. Estavam saindo da zona de sombra. A luz do sol varria a crosta e acentuava os relevos engastados entre as águas fortemente esverdeadas, que cintilavam devolvendo revérberos. O Piloto, ao sentir a nave sob seu pulso, testando os foguetes, abusou da força que lhe era comunicada pela máquina. Mergulhou mais fundo, arremeteu lateralmente, lançou-se em círculo, dominando todo aquele fantástico poder que vergava os lemes, es-trugia reatores, balançava empenagens, bloqueava eventos, exauria-se em potência. Como sete meninos em aparelhos dum parque de diversões, os sete homens usufruíam a exibição, vendo o astro subir, descer, curvar-se. Divisavam cordilheiras formidáveis aureoladas de gelo, mares reluzentes aprisionando arquipélagos, massas continentais e tatuagens orográficas, sem possibilidade ainda de distinguirem cidades, traços de civilização.

— 100 milhas, 90 milhas...O radar ganhou vida, o rádio passou a emitir automaticamente, e a

identificação do solo sobrevoado tornou-se necessária para o pouso.Com a carta sobre os joelhos, ajustandando os esquemas, por uma

fração de minuto o Astrogador desviou-se do exame do painel. O ponto vermelho cintilou e um som angustiante espalhou-se na cabine. Um pipo-car surdo substituiu o rugido monótono mas firme e a nave desequilibrou-se, vencida por nova turbulência.

Depois o pipocar perdeu a intensidade e só restou o silêncio mori-bundo quebrado pelo assobio da estrutura a romper a ionosfera.

O Piloto, o Astrogador e o Comandante logo entenderam o que ha-via acontecido: os foguetes direcionais, que possibilitariam o deslocamen-to horizontal até o ponto escolhido para a aterragem, haviam silenciado, e

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a nave, desgovernada, começava a ser sugada pela gravidade.O Astrogador apavorou-se. Libertou-se dos cintos e debruçou-se so-

bre o painel. O Piloto utilizou dispositivos de emergência. O Comandante tornou-se lívido e o planeta subiu para a proa da nave, que passou a ser um projétil disparado para o alvo.

— Os jatos auxiliares! Os jatos auxiliares!— Mas, em direção a que local? Que região sobrevoamos?— Os elmos transparentes escondiam agora expressões conturba-

das. O Biólogo, o Botânico e o Psicólogo, cientes de que nada podiam fazer, comprimiram-se mais em seus acomodadores. Sabiam o que poderia acontecer ao sentirem a turbulência e ao verem o alvo rodopiar sobre a proa.

— Quanto tempo, quanto tempo?O Piloto respondia ao Comandante sem tirar os olhos das agulhas:— Talvez dê para uns dois ou três minutos. Devo agüentar a queda

até o último segundo. Depois, depois. . .Vamos, depois o que? — insistiu o Comandante, revoltado ante

sua própria impotência naquele instante decisivo. — Passe ao vôo visual, abandone os cálculos!

— Sim, é o que vou fazer, agüentem-se.O Piloto não mais queria falar. Sabia que o monstro metálico lhe

fugia das mãos e que só poderia governá-lo por dois minutos, valendo-se dos foguetes de emergência. Portanto, tudo dependia de si, de seu sangue frio e, sobretudo, da sorte. Quando estivessem bem perto do solo lançaria mão do derradeiro recurso e então iriam sobre o que estivesse embaixo, sem opção na escolha do terreno. Não falava. Fixava-se nas agulhas e via a altitude cair impressionantemente. O pára-brisas foi cerrado e agora, pela tela exígua, uma ínfima porção do planeta diluía-se num torvelinhos espi ralado.

— Atenção, agora!A nave sofreu um impacto. Um rugido fêz-se ouvir e sobre a tela

monocromática equilibrou-se uma paisagem cinzenta. — Uma floresta, uma floresta. . . —- Não perca tempo, vamos a ela!

Os dois minutos fatais avançavam. A nave cósmica descia, reagindo contra seu próprio deslocamento, revoltando-se pela sua potência exauri-da. Mais baixo ainda, mais baixo! Sim, parecia tratar-se de uma grande flo-resta. Os segundos finais corriam céleres; o campo de visão acanhava-se; o

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altímetro caía no limite mínimo da contagem. Para quem marcara milhões de milhas, que era uma fração de milha? Por fim o ponteiro descançou em seu ponto de partida; de novo o silêncio abateu-se e a pesada estrutu-ra afundou-se na vegetação luxuriante com a cabina de comando elevada para cima, nos instantes finais. A selva abriu-se para receber a massa metá-lica e, depois de sua passagem, cerrou-se de novo, como se tivesse tragado aquela dádiva que despencava dos céus.

A culpa fora dele próprio. Dele e da velocidade com que os fatos se passaram. Desligara-se dos cintos, deixara o acomodador e com o impacto fora atirado sobre as paredes da cabina, despedaçando-se junto aos painéis e deixando um rastro sanguinolento pelos revestimentos álgidos. Depois do aturdimento inicial, minutos após à tomada de consciência, esquece-ram-se até do local da descida. Só o Astrogador esfacelado, de olhos bem abertos, visíveis através do capacete que pouco a pouco se ia enchendo com o líquido viscoso como se fosse um tubo de ensaio. Mas se soubessem o que os aguardava teriam invejado o destino do companheiro. Morrera como um verdadeiro astronauta, dentro de seu traje espacial, inconspur-cado, vítima de um único erro. Todos sabiam, ali estava a confirmação da regra. O primeiro erro seria o derradeiro naquela profissão.

Saíram, depois de recolher os despojos. Ah! Como era bom respi-rar o oxigênio livre. Não importava o aguaceiro que jorrava. De elmos abertos, impermeabilizados pelas vestimentas, em fila indiana, não foram muito longe para cavar a sepultura. De que adiantava preservar aqueles restos?

A chuva era pesada. Os pés chafurdavam na lama e a vegetação rasteira estava parcialmente coberta de lodo. Chovia, pois, há muito tem-po. Árvores imensas, folhas de formas estranhas, caules retorcidos, galhos arqueados, parasitas luxuriantes, lianas enastradas, copas que se perdiam na altura, tudo rebrilhava lavado pelas águas, transformando-se numa ve-getação de matéria plástica que ondulava ao sabor dos ventos. O Biólogo e o Botânico logo esqueceram esse mau começo. Olhavam com outros olhos, apalpavam com outras mãos e intimamente procuravam medir a altura dos gigantes vegetais profanados pela nave. Esta abrira uma vasta clareira. Troncos fraturados pendiam sobre o casco e, mesmo inclinada, a proa da cosmonave emparelhava com as extremidades das árvores mais grossas, não como se tivesse caído do espaço, mas como se tivesse rasgado as entranhas da terra em busca do sol, fugindo daquele mar de lama e de

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relva.Na cabina não mais se cogitava do acidente, não mais se cogitava

do morto. Estavam bem adestrados para tudo. Onde se achavam? — eis o que urgia saber.

O Comandante estava ciente de que as cartas de nada adiantariam. O rádio funcionara no momento indicado. Depois, não sabiam. Agora suas baterias eram um enovelado de fios coloridos esfrangalhados pelos com-pressores. Esse teria sido o destino de todos se não estivessem envoltos pela espuma dos assentos giroscópicos. Da ogiva, nada a ser visto. Apenas a floresta compacta que se perdia na chuva pesada e em seus vapores on-dulantes. Só esperar, esperar a localização. Por certo, outras naves seriam enviadas.

O Engenheiro queria ver os reatores, conferir os cálculos. Teria sido o combustível? A abrasão? Como explicar-se a falha?

O Botânico queria ver a floresta, sentir nas mãos as folhas molhadas que pareciam de plástico.

O Piloto pediu as cartas e pôs-se a traçar segmentos com seus instru-mentos longos e curvos como peças cirúrgicas.

O Biólogo curvou-se sobre suas amostras e atirou-se à catalogação de exemplares desconhecidos.

O Comandante sentia que muito pouco havia para ser comandado. Abriu, pois, seu livro de anotações particulares, isolou-se num dos com-partimentos e alheiou-se à chuva, resignado à espera.

O Psicólogo, sorriu satisfeito. Seu trabalho surtira completos re-sultados. Aqueles espíritos, aquelas almas, aqueles inconscientes estavam bem equilibrados. É certo que o Astrogador reagira de forma incompreen-sível, levantara-se, libertara-se dos cintos. Mas os demais se controlavam, dominavam suas reações. Sorria satisfeito: seu trabalho estava aprovado. Ali se via a prova: o homem era um animal que podia ser controlado debai-xo de quaisquer condições. O problema era anular os impulsos, deixando extravasar apenas os reflexos.

Tudo que veio depois foi indiretamente reconstituído pelas páginas do diário. Eram impressões pessoais e não relatos descritivos. Por determi-nadas idéias, por certas palavras, pelo conteúdo de algumas frases, os es-pecialistas tiveram dúvidas sobre o estado psíquico do Comandante. Fora uma pena que o Psicólogo nada escrevesse, que não tivesse deixado pelo menos uma mensagem.

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Primeiro dia, 10 de outubro de 1990:

(A escrita era firme, as linhas bem observadas, a ortografia impe-cável, a redação escorreita. Em verdade, provinham de um homem culto, pois o Comandante era graduado por escolas superiores, senhor de vários diplomas e tido como inteligência privilegiada) .

Não sei a que atribuir o fracasso. E logo depois de tudo, depois da grande vitória. Nesses casos é sempre assim. A máquina é tão complexa que quando surge a falha esta só pode ser identificada por outra máquina e isso, como é óbvio, não diz respeito a nós. E o Engenheiro? Pouco, bem pouco pode fazer. Responsabiliza a abrasão. Estamos atolados. A resolu-ção não seguiu minhas determinações. Só a espera, dentro desta floresta pré-histórica.

O Astrogador foi enterrado. Mais parecia um cerimonial marítimo do que terrestre. Não havia pavilhão onde ser envolvido. A água era tanta que a cova minava por todos os lados. Êle sempre foi um controlado, não posso compreender a falha, mas a máquina também não falhou?

Conversei bastante com o Psicólogo. É um homem puro, está con-vencido da realidade de sua ciência. Só lhe faço um reparo: não consegue abstrair-se da profissão. Quando conversa é como se estivesse propondo testes. Quando argunmenta afere reações e colhe dados; quando conclui diagnostica e olha fundo em nossos olhos, como se procurasse partejar atitudes dissimuladas para destruí-las. Que pensará êle de si próprio? Que pensam as máquinas das próprias máquinas? Além de tudo, é homem casa-do, pai de cinco filhos. Isso me intriga. Como será seu ambiente familiar? As máquinas na intimidade despem-se de suas contingências intrínsecas?

Logo depois da queda, depois do enterro sob a chuva, êle conversou com cada um de nós. Não era conversa, era uma consulta. Estava certo. A grande máquina falhara e a pequena, a máquina original, havia sido se-pultada. A revisão era pois necessária. O Engenheiro também examinou os comandos e as turbinas. Nessa ocasião perguntou-me o Psicólogo: — Que sentiu você quando os motores pararam, quando o planeta se transformou em alvo? Não me recordo bem o que lhe respondi. Lembro-me que medi bem as palavras, temeroso de seu relatório ao Conselho, e falei sobre o vôo visual, sobre os engenhos de emergência . Ah! sim, me lembro agora, disse-lhe que senti o coração pulsar com mais força, que minha boca ficou seca e que num lampejo pensei em meu filho. Então o Psicólogo resmun-

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gou misteriosamente; não consultou suas tabelas, mas anotou alguma coisa no caderno de capa preta. Talvez, como determina o Regulamento, nesses instantes não se deva pensar no filho, mas sim apenas na máquina.

Depois falou com o Piloto. O Piloto agira estritamente de acordo com Regulamento. Conforme as anotações do Psicólogo, poderia mesmo ser promovido. Não ouvi a conversa inteira, isso seria irregular e desa-gradável. Só observei, de longe, que o Psicólogo sorria. De uma coisa eu estava certo: os Pilotos não tem filhos. Essa é uma das condições do aprendizado.

Cinco horas depois (a partir desse ponto a caligrafia variava, de-monstrando menos firmeza) a chuva era a mesma. Eles devem vir logo. Os nossos sinais não podem deixar de ter sido recebidos. Todos descançam na sala central da nave. O controle é absoluto, o Psicólogo está satisfeito.

Segundo dia, 11 de outubro de 1990:

(A folha estava dobrada num dos cantos. A escrita era mais nervosa, as letras inacabadas, mas as idéias contudo eram límpidas, mesmo em se tratando de simples e inconseqüentes divagações, justificáveis no momen-to, como reconheceram os especialistas.)

Conversei pela manhã, depois da refeição, com o Biólogo e com o Botânico. Estão apreensivos pelo bom cumprimento das respectivas ta-refas. Só falam em suas amostras, perdendo-se em discussões fechadas a respeito de minerais, amebas, resíduos e infusórios. O Psicólogo ouve e anota, achando muito normal depois de quatrocentos dias no espaço.

Pela madrugada tive curiosos pensamentos. Talvez se tratasse de um sonho, com certeza dormia, e não seriam então pensamentos. Vi a casa cercada pelo jardim. Vi os cães espojando-se na terra depois do banho se-manal. Vi os meninos brincando com as bolinhas perto do gramado. Senti a porta bater com força. Aquele vento prenunciava o inverno. E o perfume, o perfume adocicado que vinha das folhas acumuladas nos velhos beirais. Eles já estão furados, precisam de reparos, Maria tem razão. Depois, caiu a noite cheia de luzes e sem crepúsculo. A cena era antiga e, portanto, não era pensamento mas com certeza um sonho. Um sonho bom engastado nas camadas mais profundas de meu inconsciente. Devo falar nisso ao Psicólo-go? Estava na cadeira de balanço (aquela de palhinha, que pertenceu à mi-nha avó, aquela que range compassadamente e cujos braços envernizados

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melam um pouco as mãos quando o calor é mais forte) e tinha no colo o corpo ainda leve de meu filho. Enxames de pernilongos rodopiavam sobre nós como uma auréola, e a mãe, aflita, na janela, espiava pela estrada se o farol do carro do médico desvendava a curva. A cabeça do menino estava quente e eu sentia no meu pescoço o ritmo cadenciado de seu sangue, do meu sangue. Meu filho era então bem jovem. Não era pois um pensa-mento, era um sonho bom que eu reavivava como imagens de um velho cinescópio. Deveria isso ser contado ao Psicólogo? Que significaria para mim? Que estaria urdindo o meu subconsciente? Não, não vou contar nada disso! É íntimo demais, nenhuma relação tem com a nossa missão. Que lhe interessam meu passado, minhas lembranças?

(Havia depois um espaço em branco com a omissão de uma linha).Ganharei coragem para esconder tudo isso. Mas, tenho agora uma

dúvida. Esta minha disposição não será uma prova do fracasso dos traba-lhos? Não falhou então o Psicólogo? Como consigo esconder-lhe isso? Que me importa o seu fracasso? De resto, ninguém o saberá.

(Mais um espaço e as anotações passavam a ser menos pessoais, revelando mais equilíbrio.)

Comemos muito pouco. Esquecemos a morte do companheiro e a disposição geral melhorou. Discutimos detalhes da viagem e falamos do futuro. Afinal, pelos resultados obtidos, o acidente era mínimo, de ínfimas conseqüências. Ao reconferir os cálculos, o Piloto achou que estamos so-bre uma ilha. Uma ilha imensa, possivelmente em região equatorial. O Botânico concordou. Floresta espessa, vegetação de grande porte, chuvas torrenciais. A zona só poderá ser tropical. O Biólogo não argumenta. Não teve tempo para deduções, tende a concordar com a afirmativa.

O Psicólogo pouco dá de si. Apenas olha e anota. Nós já estamos acostumados. É sua profissão, foi treinado para isso.

Mas comecei a notar que êle me olha de forma insólita. Talvez não passe de impressão minha, talvez eu esteja prevenido, pois reconheço mi-nha falha: não lhe tenho contado tudo.

Depois de um espaço maior, o relato daquele segundo dia termina com a indagação que nem os especialistas souberam posteriormente res-ponder:

Afinal, que estou fazendo aqui?

Terceiro dia, 12 de outubro de 1990:

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(A letra era perfeita, sem as indicações da véspera, mas somente nas primeiras linhas. Depois se tornava um emaranhado de hieroglifos. Esse pormenor levantou celeuma entre os analistas, cada qual interpretando o fato à sua maneira.)

Nenhum de nós tem coragem para falar, mas sente-se no ar uma grande expectativa. O Psicólogo, cada vez mais atento, sempre de lápis na mão, perfura-nos com seus olhos inquisitivos. Meus sonhos não mais voltaram e a ponta de remorso — pois eu conseguira ocultar-lhe as divaga-ções — afastou-se, deixando-me a vontade.

A chuva continua. Pela madrugada diminuiu, tivemos uma leve es-perança. Quando eu tomava a primeira refeição ela voltou com mais fúria e, trazida pelas rajadas de vento, escorria sobre as ogivas, criando uma paisagem ondulante. Eu procurava tomar a decisão que, na qualidade de Comandante, me cabia: deixarmos a nave para um reconhecimento, va-lendo-nos da proteção das vestes espaciais. Quando o Piloto terminar seus estudos para a localização — que terão valor relativo dada a velocidade com que saímos da rota — apresentarei a sugestão, que poderá se transfor-mar numa ordem.

(A partir desse ponto a grafia variava.)Há meia hora, o Psicólogo acercou-se de mim e fêz uma curiosa

pergunta: “Porque você se tornou astronauta?” Meu primeiro ímpeto foi reagir. Que consultasse minhas fichas, meu relato pessoal, ora essa! E êle bem sabia, pois vinha me estudando havia três anos, antes, bem antes da missão. Mas me controlei. Se fizera a pergunta é porque notara alguma al-teração em minha conduta. Êle era o Psicólogo, eu apenas o Comandante. Podia dar-lhe pelo menos três respostas, êle que apanhasse a melhor: estou aqui por motivos econômicos, isto é, muito bem pago; estou aqui porque fui escolhido, o Conselho conhecia minha capacidade e minha experiência; estou aqui porque esta seria a última viagem, segundo prometeram. Mas, dei-lhe a resposta mais imprevista: estou aqui porque queria ser um herói. Falei em tom firme e verifiquei que o Psicólogo pasmou. Fechou o livro, revirou o lápis entre os dedos e respondeu ironicamente: “Que é ser um herói?” Já que eu começara, continuei, sem medo de pôr-me a descoberto. De resto, mais dia menos dia êle o saberia, era seu ofício. Dei de ombros: “ser herói é penetrar no Desconhecido”.

Êle avançou mais, como num duelo, lançando-se sobre mim: “E que

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vem a ser o Desconhecido?” Num rasgo de coragem, poderia dizer-lhe o que há tempos vinha pensando: ser herói é morrer prematuramente. Dei-lhe porém outra resposta, assombrando-me com a minha própria ousadia: Desconhecido para o menino é o quintal do vizinho; para o adolescente é o corpo da criatura amada; para o adulto é a existência; para o religioso é a essência de Deus.

O Psicólogo dilatou os olhos. Não respondeu. Afastou-se, reabrindo o caderninho. Eu já sabia o resultado: mais dia menos dia, êle saberia. Também me afastei e fui conversar com o Biólogo. Talvez, esse sim, en-tendesse mais da vida.

(A escrita se complicava. As letras eram curtas, ligadas entre si, difi-cilmente legíveis ainda quando examinadas com auxílio de lupas.)

“Afinal, que nos adiantar penetrar no D-E-S-C-O-N-H-E-C-I-D-O? (assim estava escrito). Pensando bem, que é o Desconhecido? Para muitos pode ser Marte, Júpiter, Sírius. Para mim não, pois sou um astronauta. Para outros, mais felizes pode ser a Patagônia, uma ilha nos Mares do Sul, uma península sobre o mar Egêu. Para outros ainda pode ser sua própria alma ou seus instintos. Desconhecido! De que nos valeu termos transposto os limites! Fuga, a desesperada fuga! Qual de vós não é prisioneiro? Para mim, o Desconhecido é apenas a velha Morte”.

Daí em diante nada mais era possível ler. A exaustão, ou certo tipo de delírio, teria dominado o Comandante, e só ao fim daquela página meio rasgada, se encontravam algumas linhas objetivas — os prenúncios da tra-gédia:

“Apresentei minha solução. O Engenheiro, o Botânico e eu vamos sair para o reconhecimento. O Psicólogo nada disse, era do Regulamento, podia tudo, menos interferir em minhas determinações. Eu era ainda o Comandante absoluto. O Botânico, depois de ficar horas e horas, da ogiva mais baixa examinando a floresta, disse-me que viu alguma coisa mexer-se ao longo da clareira. Que pareciam formigões enormes, pretos, que se mo-viam com extrema agilidade. Não me impressionei. Talvez animais, talvez ilusão. Eu não vira minha casa, não embalara meu filho?

Tudo que se logrou reconstituir depois foi pelos rastros deixados na selva, pelos trajes espaciais, pelos capacetes esfacelados, pelas botas encontradas em pontos diferentes e, sobretudo, desgraçadamente, pelos próprios despojos das vítimas. As lacunas da terrível história foram pre-enchidas pela imaginação, nada se obtendo dos responsáveis — monstros,

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antropóides e não homens -— incapazes de relatar qualquer detalhe, inca-pazes mesmo de transmitir seus sentimentos.

Como resolução final, os seis teriam deixado a nave. As vestimen-tas protegiam-nos da chuva. Só os elmos abertos para o oxigênio livre. A passo acelerado, buscando claros na selva, os especialistas carregando os recipientes herméticos, a toda prova, com suas valiosas amostras. Vestes cintilantes, brilhando sob o aguaceiro, reluzindo sob a luz dos relâmpa-gos, figuras altas, bem altas, apoiando-sc nas botas anti-gravitacionais que mesmo assim eram leves. As luvas faziam parte das vestes e eram garras infundibuliformes que acompanhavam o ritmo acelerado dos corpos, em fila indiana, bem unidos, como se fôsse uma lagarta metálica a serpentear pelos escaninhos da floresta.

O espetáculo atraiu os formigões vistos pelo Botânico e referidos no diário. Em número infinitamente maior, acostumados à selva, eles tiveram oportundade de tocaiar a lagarta reluzente que escorrera do poste metálico inclinado na clareira. Primeiro esperaram, deixaram que o réptil de seis vértebras se aninhasse profundamente na região indevassável que só eles, os formigões, conheciam. Para onde ia ela? Que buscava? Depois traçaram seus planos de guerra como se fossem racionais. Mas, para destruir basta o instinto, e essa era a sua pletora. Invisíveis na selva, mimetizados com os troncos seculares, aderidos à galharia, dispersos pelas ramagens, depen-durados nos cipós, camuflados por estranhos escudos, colados à água, for-maram inconscientemente várias outras lagartas acompanhando a lagarta brilhante de seis vértebras. E então, depois de um primeiro urro animales-co que libertava não uma voz mas as próprias entranhas, os formigões caíram a um só tempo sobre a presa ondulante. Eram dez, vinte, trinta, cinqüenta — jamais se pôde saber — para cada vértebra. Bordunas, achas, cacetes, tacapes, machados (talvez de silex), lanças, garras, unhas, den-tes, dilaceraram vestes e músculos, amolgaram capacetes, romperam luvas e cintos, quebraram ossos e perfuraram vísceras, deslocando cartilagens, derramando humores, com fúria verdadeiramente mitológica. Os astronau-tas nem tiveram tempo de ver os agressores. Dir-se-ia que foram atacados por forças naturais irresistíveis. Suas armas nucleares nem chegaram a ser sacadas, e em poucos minutos a lagarta metálica esvaiu-se, transformada num riacho sinuoso de sangue.

Os formigões demandaram a trilha da aldeia. Pelo caminho foram mais tarde encontrados vestígios dos equipamentos: lascas de tubulações,

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colchetes, insígnias, ligamentos de borracha, pedaços de instrumentos portáteis, frangalhos de tecidos. Jamais se conseguiu saber se algum dos astronautas chegou vivo à aldeia. Certo é que seus despojos lá chegaram, quando então começou o ritual que também era um festim.

Da expedição só os ossos restaram — fêmures, cúbitos, clavículas, temporais e frontais quebrados, encontrando-se em muitas cabanas arte-lhos, costelas e falanges.

Na morada lacustre dos chefes, junto a palafitas dissimuladas pela galharia, foram descobertas, intactas, as caixas herméticas com as amos-tras. Ao serem abertas, longe da selva, esparramaram-se sobre a mesa pe-dras cambiantes de Marte, gemas cintilantes de Fobos e Deimos, poeira translúcida da zona dos asteróides, carbonos de Sirtes Major, cristais poli-crônicos de Argire.

Com verdadeiro sadismo de pormenores, o jornal noticiara, sob es-petaculares manchetes, o fim da aventura. Depois de fabuloso vôo sideral de quase dois anos, depois de conquistar Marte e seus satélites, depois de uma permanência nunca antes obtida nas regiões interplanetárias, atingin-do mesmo o limite dos asteróides, a nave espacial se vira forçada a descer nas selvas da Nova Guiné, em região inhóspita, dificilmente accessível, habitada por canibais antropófagos. Brutal e inacreditável fora o destino dos astronautas: haviam sido trucidados e devorados pelos selvagens, con-sumando-se uma tragédia que por certo abalara a consciência dos povos, pelo irrisório contraste entre a apoteose científica da ultra-civilizada aven-tura e o seu epílogo da mais primitiva barbárie.

Ao pé da página, em tipos menores, o jornal divulgava o clamor pro-vocado pelo fato. E informava que uma subscrição fora aberta numa cida-de do sul da Itália, para que as Nações Unidas, responsáveis pelo projeto, mandassem edificar no remoto local da chacina, um templo, um santuário, onde, sob invocação à Madona dos Astronautas, ardesse perenemente uma chama votiva pelas almas dos sete heróis que, não muito longe das Pleia-des, haviam tentado romper uma brecha no Desconhecido.

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Morte, no palco

A impressão era exatamente a de achar-se dentro de uma ribalta. Um grande palco, monocromático e álgido, cujas luzes superiores da caixa se tivessem apagado, substituídas pela escuridão de onde miríades de astros enviavam suas luzes imutáveis sem cintilações. A sensação de ser observa-do vinha do fantástico globo terrestre que avassalava a linha do horizonte, como um ôlho ciclópico devassando a planície incolor.

Tinha-se a impressão de estar sendo espreitado. A mancha opalina do Pacífico fincava o olhar como se procurasse ver o que se estava passan-do naquele seu pedaço transviado, atirado ao espaço em tempos imemo-riais, como a vigiar eternamente aquela fração de matéria, partícula de seu todo, à espera do dia longínquo do retorno, quando então a velha Terra, como seu irmão Saturno, ganharia cintilantes anéis, chamando talvez a atenção dos outros milhões de seres da Galáxia. Mas se ali, colado junto a Lahire, incrustado naquela cratera gelada, êle se sentia assim, vigiado, fiscalizado, aturdido por aquele peso pendente do espaço, o que então não sentia em Deimos, em Io, em Ganimedes ou Dione?

Revirou-se procurando melhor encostar-se na protuberância, e re-cordou-se da experiência descrita pelo sobrevivente da famosa nave es-pacial que fora arrojada pela primeira vez sobre a superfície calcinada do primeiro satélite marciano: “Sim, meus amigos, era como um esmagamen-to, era como se estivéssemos deitados sobre os dentes de uma engrenagem do século vinte, que fosse conectar-se com outra, tudo triturando em seus

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interstícios. A fabulosa massa vermelha que era Marte parecia revolver-se sobre nós, produzindo reflexos e mutações cromáticas jamais observadas. E mais ainda, tudo debaixo de um silêncio aterrador que não combinava com aquele espetáculo delirante. Era uma nova concepção de tudo: do movimento e do espaço. Era uma concepção nova da própria vida. . . Ah! meu caro amigo, muitos, naqueles primórdios de 1997, não acreditavam no feito. Antes mesmo, décadas antes, muitos não acreditavam nem mes-mo nas variações da conduta humana dentro do espaço profundo. Medici-na espacial? Medicina psicossomática aplicada ao homem para possibilitar a vida em outros ambientes planetários? Bobagem, bobagem, pura ficção de meia dúzia de imbecis. Nada aconteceria ao homem, ao grande Senhor da Criação, que já se fixara na Lua e deitava seus tentáculos pelo sistema. Puro engano, meu amigo, puro engano. Lá estava a grande, a tremenda realidade. Com aquela fixação no satélite marciano poucos foram os que agüentaram. Em menos de um ano, antes da exploração de Sirtes Major, todos sucumbiram, com reações iniciais diferentes. Só eu escapei, e assim mesmo passei muitos meses na estação de recuperação dos fatigados do espaço. E qual a causa de tudo? Não o novo ambiente em si com suas es-tapafúrdias manifestações de vida, biologicamente incompreensíveis, não a inominável angústia derivada da distância da mãe Terra. Mas sim aquele monstro vermelho a revirar-se sobre nós em silêncio, a produzir variações de luz e cores de minuto em minuto, a magnetizar-nos até a morte, como aqueles pêndulos que os hipnotizadores usavam, séculos atrás, nos primor-dios da telepatia”.

O homem buscou uma posição melhor e procurou também libertar-se dessas recordações, que naquele momento iam-se tornando perigosas. Diabo! afinal não devia impressionar-se tanto assim. O globo terrestre a girar lá em cima era apenas um olho pequeno ante o aspecto de Marte visto de um dos seus satélites. Nada poderia acontecer-lhe, pois afinal estava apenas a trezentos e oitenta mil quilômetros de distância do seu planeta. Que era isso? Nada, absolutamente nada. Apenas um passeio de um dia e meio, naquela astronave doméstica para vôos sem penetração.

Parou de raciocinar por momentos e examinou o ambiente ao redor. Sim, lá estava, no flanco esquerdo de Lahirc, da sua cratera irregular, no segundo quadrante, não muito longe de Diofantes e de Delisle, engastada em pleno Mar Ímbrio, como um inseto aderido ao teto. Na frente e dos lados, a mesma paisagem surrealista e monótona, vista sem a proteção in-

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tegral da cúpula atmosférica. O chão cinzento, coberto dc pó finíssimo que se elevava formando verdadeiras nuvens resultantes da baixa gravidade, e os pilones de brilho estranho como se fossem luminescentes, centralizando todas as crateras, balizando todas as linhas de fuga. A tênue luz aureolando os horizontes. O carvão do espaço. As alfinetadas dos astros e a grande calota terrestre arrastando em seu fruir massas gasosas que às vezes impe-diam a visão dos mares opalinos, dos desertos de âmbar ou das selvas de verde profundo.

Examinou o rádio. Premiu dois comutadores e esperou dentro da faixa a resposta ao chamado de horas antes ou então o sinal retransmitido pela Estação-Espacial ST-3. Nada, nada. Teriam se desgastado as baterias de mercúrio? Culpa sua, recriminava-se, não tinha feito a recarga usando a bateria solar. Agora tinha que esperar ser localizado, e era a espera que o enervava.

Desistiu do rádio e lançou os olhos ao marcador de oxigênio. Tinha muito ainda. O ponteiro estava no meio, bem distante da marcação ver-melha da zona perigosa. Isso queria dizer: pelo menos mais duas ou três horas. Até então já estaria na Estação, talvez mesmo, não muito depois, na Terra, lá dentro daquela mancha maior que as nuvens deixavam ver, bem no canto esquerdo, em sua casa, rindo-se da aventura e contando às crianças o que sentira enfiado dois dias acidentalmente em Lahire. Haveria de pegar o mapa lunar, por o filho menor sobre os joelhos e mostrar-lhe a marcazinha metida no Mar Ímbrio. Rir-se-iam. Talvez o maior não gos-tasse, talvez preferisse que a descrição tivesse sido dos limites da zona dos asteroides, ou então das vizinhas de Saturno. Ora a Lua, grande coisa, perdido na Lua! Porventura já os homens não a conheciam há mais de duas décadas? Seria como impressionar-se como as narrações sobre as antigas caçadas na Africa, ou então com aquelas aventuras dos homens quando procuravam conhecer e descobrir o próprio planeta. Não, seus filhos não se impressionariam. Talvez se fosse em Réia ou Japeto, Deimos ou Titã.

Sentiu um formigamento na perna esquerda. Esticou a pesada ma-nopla e auxiliou a mudança de posição. Recostou-se sobre os flancos do rochedo e com cuidado pousou a cabeça, recoberta com o elmo transparen-te, sobre o solo áspero, e reexaminou o controlador de dióxido.

Assim como estava agora, não podia enxergar a Terra. Calculou o tempo. Dentro em pouco deveria ver a passagem da Estação intermediária. Estando tudo em ordem, eles deveriam chegar logo. Talvez não viessem

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diretamente. Talvez as ordens fossem transmitidas à Base de Messier, no Mar da Fecundidade. De lá então seria mais fácil. Seria apanhado pela nave de reconhecimento, reconduzido diretamente à Estação e depois à Terra, varando aquela camada de nuvens.

Não restava a menor dúvida. O inquérito tinha que ser feito. Como poderiam explicar o acontecido? E os gastos com a busca? O desvio para a procura, o uso dos aparelhos acústicos para a localização dos destroços? Sim, não restava dúvida, o inquérito tinha que ser levado a termo. E como explicariam eles o acidente? E logo agora, às vésperas da promoção.

Haviam saído de Ticho no momento marcado. Os cálculos estavam prontos e os discos da memória se achavam ajustados em seus lugares. Os outros dois companheiros sabiam de tudo e sabiam também do conteúdo da pasta. A missão era das mais simples. Da Lua à Estação na órbita cir-cular. Da Estação à Terra, em vôo de rotina. Uma viagem comum, como dezenas e dezenas de outras, sem que ninguém suspeitasse do conteúdo da pasta, com as observações diretas feitas pelo telescópio da protuberância de Ticho. O desastre acontecera em segundos. Não fossem as instruções severas do Regulamento de Vôos Circunlunares e àquela hora estariam mortos. Depois da pavorosa descompressão que abriu o pequeno foguete, tinham sido atirados para fora. Segundo as instruções do Regulamento, eram obrigados sempre a viajar na zona localizada entre as Estações com trajes apropriados ao espaço exterior e com foguetes salva-vidas, a isso desde o Grande Desastre de 1985, quando a nave espacial que transporta-va os fundadores de Ticho se despedaçara quase na saída. Todos haviam morrido das formas mais estranhas, soltos em todas as direções na zona de baixa gravidade. Depois dessa tragédia viera a severa regulamentação, à qual se devia o salvamento de dezenas de vidas. Afinal de contas, as naves eram de materiais ultra-resistentes, mas até essa resistência tinha um limite e, quando menos se esperava, elas se abriam e despejavam seus tripulantes pelo espaço infinito que tragava seus corpos como misera poeira metorí-tica.

Assim que se vira no espaço ligara o foguete minúsculo. Em pouco tempo caira sobre a planície cinzenta. Não vira os outros. Espalhados pelo satélite com certeza tinham procedido exatamente como êle.

Suava. Os astros pontilhavam com nitidez o elmo transparente. Lo-calizou Antares, identificou-lhe o brilho sangüíneo, bem na cabeça do mí-tico Escorpião. Sentia o formigamento das pernas e dos braços aumentar.

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Procurou sentar-se e fixou bem de frente a Terra.O ponto luminoso veio do oeste. Surgiu como um meteorito e equili-

brou-se na frente do globo. Quando cruzou sobre a Terra perdeu um pouco o brilho e deixou ver sua forma aneróide. Surpreendeu-se. Como o tempo estava passando depressa! Levando-se em conta a passagem da Estação, já estava ali há muito tempo. O que estavam esperando? A primeira men-sagem fora bem enviada. O contra-sinal fora retransmitido. Por que então a demora?

O formigamento transformava-se agora em torpor. Examinou o pon-teiro do marcador de oxigênio e viu que ia se acercando da zona vermelha. Estirou-se mais uma vez sobre a poeira cinzenta.

As crianças haveriam de gostar. Não importa que tudo tivesse acon-tecido na Lua. Fantasiaria a situação. Criaria detalhes insuspeitados. Dis-correria sobre as belezas de Lahire e contaria da sensação estranha e in-quietadora, de sentir-se vigiado, fiscalizado pelo globo que volteava sobre o satélite. Poderia mesmo inventar outras coisas. Não havia o solo vermelho e povoado dos liquens rubros de Marte. Não havia os monstros primários dos mares e ilhas vegetais de Vénus, nem mesmo havia o delírio de cores do cinto dos asteroides ou a atração dos satélites joveanos, longe, muito longe daqueles pesadelos calidoscópicos dos mundos agarrados à atração de estrelas duplas. Mas havia a experiência pessoal. A sensação inominá-vel de ver-se desligado da Terra, extraditado de seu mundo, expulso do interior da nave em cujo recesso não se sente coisa alguma, pois se procede com a contingência indeclinável de peça, de engrenagem, de válvula, de parafuso frenado, de parcela de mecanismo integral que não raciocina e nem contempla, mas que apenas funciona. Ali era diferente. Não era como cruzar o vazio espiando a meta-pilôto. Era estar à margem. Desligado do tempo e do espaço, misturado com o Nada, observando a imensa esfera e sentindo-se ao mesmo tempo como que tutelado, esmagado por ela.

Fechou os olhos. A barreira de sombras iluminou-se. O filho maior brincava no fundo do jardim solar com o foguete em miniatura. O menor estava debruçado sobre o livro, lendo ridículas histórias de fadas. A esposa estava sentada, a olhar o céu sem mesmo perceber a atividade dos filhos. Estava preocupada. Quando êle voltaria?

— Mamãe, que é uma bruxa?— Mamãe, quem foi o primeiro homem que chegou a Venus?E os dois juntos:

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— Quando é que papai chega?Bruxas, Lua, Vénus, livros, foguetes e estações, rádios e cálculos,

descompressão e dióxido, espera e ansiedade, sonho e pesadelo, vida e morte, tempo e espaço, órbitas e parâmetros.

O entorpecimento transmudou-se em tontura. Quando reagiu, o pon-teiro estava entrando na zona vermelha. Diminuiu a ventilação e reconhe-ceu que seu estado era uma decorrência dos primeiros sintomas da anoxia. Tinha que controlar-se. Tinha que viver em ponto morto, poupando-se em estado de semi-hibernação.

O filho menor estava com o pijama novo e debruçava-se sobre o livro. Espiava as ilustrações e perguntava com incredulidade:

— Pai, existem mesmo anões e gigantes?— Sim, meu filho, em outros planetas da nossa Galáxia, naqueles

milhares e milhares de mundos. Mas são diferentes desses do seu livro. . .— Se são anões como podem ser diferentes? E fadas? E bruxas?

Elas existem?O filho maior passou pelos dois com o foguete de brinquedo na mâo,

imitando o rugir dos reatos. Correu pela sala e depois atirou-se sôbre o pai, caindo os dois no tapête.

— Papai, quem foi o primeiro homem que chegou a Marte? Êle lutou contra os monstros? Usou a pistola desintegradora?

O pai riu e pegou o cachimbo que caira:Não, não houve luta, meu filho. Eles estavam todos agonizantes.

Nós os salvamos, restauramos a vida no planêta...— Mas, pai — tornou o menor puxando-lhe as calças — existem ou

não as bruxas? Elas voam em vassouras?De novo a tontura. Mais violenta ainda. Devagar aumentou a pres-

são interna do capacete e fixou o ponteiro que estava na zona fatídica. Fêz um esforço supremo. Levantou-se e, mesmo com os movimentos facilita-dos pela baixa gravidade, sentiu que o dispêndio de energias era tremendo. Deu alguns passos e rodeou o lugar onde estivera deitado. Examinou todos os lados de Lahire. Nada, nada a mover-se sobre a planura cinzenta.

Depois parou e ficou imoto. Levantou a cabeça e desafiou a Terra decididamente. Seu olhar era como um apelo que varasse a massa gasosa que envolvia o astro. Ainda viu o ponto doido a deslocar-se dos lados do oeste. Ah! A estação mais uma vez. Continuou erecto, fincado sobre a po-eira que lhe recobria os sapatos, como se fosse uma estátua, como se fosse

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um acidente geográfico, como se fosse uma criação antropomórfica gerada pela própria superfície mutável do planeta.

Depois, então, a barreira de sombras.Caiu bem para a frente, com toda a massa de seu grotesco equi-

pamento, e levantou uma nuvem cinzenta, como se fosse um cavaleiro medieval com sua armadura e aparatos, tombado da montaria, golpeado de morte.

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O diálogo dos mudos

Antes de entrar em curva para a reta final que, como uma língua cin-zenta se estendia não longe da elevação, a aeronave se lançou em largo cír-culo sobre o planalto que se postava de forma incongruente, substituindo — mercê da obra e do engenho humano — a culminância necessária que deveria coroar a montanha e cujos contrafortes perdiam-se num emaranha-do de regatos e terreno áspero, bem típico da região fronteira do Canadá, próxima aos Grandes Lagos.

E bem mais ainda havia de estranho no descampado que seccionava o tronco de cone constituído pela elevação e para onde naquele instante convergiam os olhares dos jornalistas e homens de ciência debruçados in-fantilmente sobre as ogivas do quadrimotor.

Visto de longe parecia uma armadilha gigantesca, dessas que mais ao norte são utilizadas para grandes animais, quando não se quer inutilizar sua pele com as garras afiadas e molas de pressão dos engenhos comuns. Visto mais de perto, porém, ao centro do círculo que o avião completava, era uma extraordinária semi-esfera armilar assentada em trilhos, cabos e roldanas de aço, como se fosse a teia de um aracnídio monstruoso com sua ntricada tecitura de fios metálicos a espalhar reflexos, tudo perfeitamente de acordo com o mistério extrínseco que o conjunto representava. Mais próximo ainda, se desvendava a sua natureza: um megafone postado para o infinito. Um imensurável pavilhão auditivo, ou então, — como diziam os habitantes da cidade vizinha, zombando da equipe do professor John

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Stanley: — a soma de todos os ouvidos da nação a auscultar alguma coisa provinda não se sabia de onde, malbaratando os dinheiros públicos numa pesquisa absurda que, no consenso generalizado, já deveria ter sido inter-rompida por determinação do próprio Congresso.

Mas, que se escutava? O eco de ondas de radar lançadas em direção a outros planetas? Sinais enviados aos astros? Sibilos ionosféricos provo-cados pela passagem fugaz de meteoritos? Informações telemétricas irra-diadas por agentes secretos do outro lado do globo? Que se ouvia afinal?

Nas cercanias, na cidade vizinha e mesmo na capital bem pouco se sabia a respeito. Murmurava-se apenas que se tratava de alto segredo de Estado, talvez alguma coisa relacionada ao controle dos Projéteis Ba-lísticos Intercontinentais, ligada à rede defensiva do Atlântico, ou então experimentos conexos e petardos termo-nucleares. Enfim, no que menos se dava crédito era na possível captação de sinais e mensagens cósmicas. Um argumento desde logo abonava a tese dos partidários da utilização do instrumento para fins bélicos: jamais, na fase de compressão financeira em que viviam, o governo dispenderia bilhões naquela incrível semiesfera, e isso sem computar-se o gasto com as obras de engenharia antes realizadas, destinadas a decepar o cume antes orgulhoso de Salt Pike, refúgio prefe-rido dos esquiadores da vizinhança. Além do mais, tinham certeza de que não era nem tarefa do exército, da marinha e muito menos da aeronáutica, talvez nem mesmo nacional, o que anulava a propalada hipótese militar. Assim supunham porque quando o exército de operários trabalhava na concretagem da pista de pouso, acessível aos moradores da região, iam e vinham aviões e homens de muitas nacionalidades. Línguas desconhecidas eram ouvidas e os mais afoitos, que buscavam informes de perto, (velhos proprietários temerosos da desvalorização de suas terras com a construção da imensa “orelha”, como passou a ser chamada a obra), chegaram a as-severar que talvez não fossem idiomas alienígenas, mas códigos secretos, linguagem cifrada, o que mais ainda intrigava a curiosidade provinciana dos pacatos residentes daquelas imediações antes tranqüilas. E na impren-sa não havia nada, nem uma referência que viesse elucidar a finalidades daquela obra formidável que chegara, inclusive, a expulsar os pássaros que voavam agora, aos bandos, rumo ao setentrião.

O mistério e as conjecturas perduraram por muito tempo, até aquela manhã em que o quadrimotor, com as insígnias das Nações Unidas, antes de pousar pairou em círculos sobre o estranho conjunto que se encarapita-

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va no planalto onde antes se erguia o pico dominador da paisagem. Despo-jada a eminência da sua grandiosidade primitiva, fora todavia sacrificada a fim de contribuir para mais uma das grandes etapas da ciência — refletiam, com respeito, alguns observadores mais otimistas.

A bordo do avião, durante a primeira curva ninguém falou. Todos queriam apenas ver, observar o famoso radiotelescopio de Salt Pike que, como se comentava embora sem confirmação oficial, havia lavrado um marco fabuloso no gráfico do progresso, alargando conhecimentos astro-nômicos e abalando fundamentos filosóficos e religiosos.

Todos, em silêncio, apenas queriam ver, fotografar, filmar. Em meio à segunda volta, em altitude menor ainda, o senhor que se achava num dos assentos da frente tomou do microfone e se dirigiu aos cinqüenta passagei-ros que espreitavam, curiosos. Conquanto fosse um cientista, acostumado a controlar-se, a refrear seus impulsos, perdeu a auto-censura e passou a dar explicações sobre o que viam numa voz empostada e que, não fora o histórico momento, como consideravam muitos, poderia ser tida como pe-culiar a cicerones de agências de turismo revelando a burgueses ignorantes, minúcias relativas à estátua da Liberdade, à Torre Eiffel, às pirâmides, ou então esclarecendo quanto custaram a Leonardo as tintas com que pintou a Mona Lisa ou o preço do mármore em que foi esculpido o Moisés.

— Atenção, senhores, atenção! Lá está o nosso radiotelescopio, a maravilha que possibilitou o inacreditável triunfo. Como sabem, não é o único do mundo. Existem o de Jodrell Bank, o da Austrália, e outros nos-sos como o de Green Banks. Mas este, este (e sua voz modulava de emo-ção ao acentuar o detalhe) possue medidas excepcionais, características incomuns e, o que é básico, um raio de mais de duzentos pés que, na faixa de 1420 megaciclos e onda de vinte e um metros, possibilitou a ocorrên-cia, o acontecimento que abalará o mundo e que abrirá novos rumos para a espécie humana.

Ao falar em “espécie humana”, o cicerone improvisado, — como arauto de uma nova era, — deu entonação especial à voz, que não muito se diferenciou da de um mestre de cerimônias num circo ao anunciar a periculosidade duma fera.

Dentro do avião, que terminava o último círculo, em altura mais baixa, eram poucos os que atentavam às palavras do acompanhante. Jorna-listas, cientistas, fotógrafos, cineastas, alguns senadores e vários suplentes, locutores de cinema e televisão, professores e repórteres de fama interna-

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cional, queriam apenas ver e não poderiam desprezar a magnífica oportu-nidade. O fato era deveras assombroso e o mundo, por intermédio deles, esperava a grande revelação, o desenvolvimento da notícia divulgada em linhas gerais e que ia ter agora a publicidade integral com a presença de enviados de todas as nações que assistiriam também ao instante memorá-vel do primeiro contato.

O cicerone improvisado cortou em meio a explicação, talvez surpre-endido com o pouco efeito do que dissera. Afastou o microfone, cobriu-o com a mão e indagou alguma coisa do seu colega de pequena estatura e óculos espessos, o qual ficou na ponta dos pés para melhor ouvir. Passou o lenço sobre a testa saliente e lançou-se a nova tentativa, procurando agora com maior veemência, atrair a atenção do seu público, mais interessado em ver do que em ouvir.

— Atenção, senhores, atenção! Como eu lhes dizia, acabamos de sobrevoar o mais famoso radiotelescopio do planeta. Peço que observem as nossas antenas em seu eixo central. Poderão ver o mais recente aperfei-çoamento introduzido na grande “orelha”. Aquela pínula de vinte metros, que tem a particularidade de polarizar a escuta do âmago das mais recôn-ditas galáxias, escolhendo as mais remotas estrelas, o que nos possibilitou o êxito na infatigável pesquiza de outros universos habitados. . .

Deu entonação especial à última frase e, agora surpreso, como se a referência a outros universos habitados houvesse galvanizado os passagei-ros, observou satisfeito que muitos deixaram as ogivas e se voltaram para êle:

— Sim, meus amigos, pluralidade dos mundos habitados, eu disse — continuou, agora reconfortado, sentindo-se bem pago pelo esforço oral dispendido, o que era bem diverso de suas ocupações usuais. — Duran-te anos nos lançamos à escuta dos sons do espaço. Minuto após minuto, hora após hora, dia e noite, sob a orientação do eminente professor John Stanley, permanecemos atentos até o instante do triunfo que, como sabem os senhores, recompensou o inglório de nosso trabalho, como declararam muitos.

Ao pronunciar a última palavra deitou os olhos significativamen-te ao companheiro, como se questionassem a respeito de algum detalhe secreto. Ia continuar quando um indivíduo magérrimo, num dos assentos fronteiros, levantou a mão como quem suplica um favor da professora, e formulou a pergunta a queima-roupa, traduzindo a curiosidade que se

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alastrava:— Quando será completado o ciclo das mensagens? De onde veio a

resposta? Exatamente o que dizia ela?Antes que o acompanhante respondesse, um frêmito percorreu o re-

cinto e as ogivas foram definitivamente esquecidas.No instante em que o cientista ia responder, a luz de um painel acen-

deu-se, advertindo os passageiros de que os cintos de segurança deveriam ser ajustados. O acompanhante dirigiu-se ao seu interlocutor esquivando-se à resposta que só deveria vir no momento oportuno, dada pelo próprio Stanley.

— Logo mais tudo isso será respondido. Vamos para a aterrisagem e na primeira reunião, à noite, depois das visitas programadas às instalações, a curiosidade dos senhores será satisfeita.

A inclinação da curva ia sendo compensada e a aeronave equilibra-va-se para a tomada da pista, enquanto a semi-esfera armilar desaparecia no corte abrupto da elevação.

John Stanley viu o avião realizar as curvas. Acompanhou os reflexos de suas empenagens metálicas e, pela vidraça de seu gabinete observou que a camioneta já o esperava para conduzi-lo ao aeroporto no sopé da montanha. Arremeteu o olhar para o firmamento côr de cobalto e, esfre-gando as mãos agitadamente, concluiu contrafeito que seria possível que-da maior da temperatura pela madrugada. Contanto que não nevasse, isso seria muito bom. Mas se a nevada viesse, muitos transtornos poderiam ocorrer na comunicação, o que o preocupava deveras.

Afastou-se do postigo, verificou o termómetro e, antes de sair, reco-nhecendo que estava atrazado, apanhou o grosso sobretudo, recordando-se da advertência da esposa. Antes ainda de descer, correu os olhos pelos apontamentos finais da dissertação que faria à noite e os deixou sobre a mesa.

Ao ganhar a escada lateral sentiu o frio cortante, o que o levou a contrair-se e a apertar a gola do casacão cinzento. À medida que descia, conferia mentalmente as derradeiras providências. A entrevista depois da recepção. O estúdio improvisado para a televisão e o rádio. Gabinetes e cabines telefônicas para os jornalistas. Explicações junto ao radiotelesco-pio, à cargo de Herbert e Smith. O jantar nas instalações inferiores, e logo depois o debate. Sim, esse era o ponto alto, os debates.

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Chegou ao fim da escada e respirou aliviado. Viu o grupo que o es-perava ao lado do veículo e acelerou o passo, sempre se embrulhando mais no casaco, considerando os últimos detalhes . Estranhava-se a si próprio. Se anteriormente, meses antes, considerasse que esse dia chegaria, imagi-nar-se-ia incapaz de aceitar a inteira responsabilidade da divulgação, o que agora aceitava, com naturalidade, como se fosse um fato rotineiro, da mes-ma natureza dos esclarecimentos periódicos prestados aos responsáveis pela Fundação. Em verdade, desde o primeiro dia, desde a primeira hora, há quase cinco anos — e bem se lembrava do momento da escuta inaugu-ral, naquela noite interminável de verão — tinha certeza de que chegaria ao triunfo. Em última instância, tudo resultava de uma lei indeclinável esteiada no cálculo das probabilidades. Hoje, não restava a menor dúvida, o êxito era trabalho de equipe, de esforços coletivos e de numerário. Sob este particular, reconhecia que agora, depois do sucesso de Tau Ceti, novos créditos seriam abertos, podendo mesmo cogitar-se de um fundo mundial para as pesquizas. Mas para isso seria necessário que a cobertura, a divul-gação, fosse muito bem realizada, abrindo aos políticos uma visão ampla, deixando-se de lado ideologias consideradas nefastas. Apenas a condição humana deveria ser pesada, o impacto do homem assombrado que des-cobrira que não era solitário no oceano cósmico, e que o mistério da vida não se explicava por um acidente, como um náufrago perdido em sua jan-gada na vastidão de um meio hostil. Outros náufragos e outras jangadas também flutuavam em espaços inatingíveis. E aqueles sons indecifrados mas positivos talvez fossem apelos desses outros náufragos, tripulantes de remotíssima jangada, a buscarem o imperativo da comunicação, o que — ao seu ver — dava a dimensão igualmente humana dos responsáveis pelo chamado, pois o homem nunca poderá ser um solitário.

— Boa tarde, desculpem o atrazo. Já vi o avião e creio crio já pou-saram, vamos.

Stanley acomodou-se entre Herbert e Smith. Pediu que cerrassem os vidros e continuou suas divagações, dando aos companheiros a impressão de que estava terrivelmente preocupado.

Ficaria famoso como chefe da equipe. A glória era de todos, mas a êle, o maestro, o condutor, o regente da sinfonia sideral, as glórias seriam redobradas — raciocinou, sentindo o incômodo de certa ponta incoercível de egoísmo. Todos haviam ajudado, era certo, mas êle é que presidira tudo, devendo ser levado em conta que seus estudos espectrográficos da estrela

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Tau, da constelação da Baleia, é que tinham determinado a escolha. Uns, como Herbert, opinavam pela Alfa do Centauro; outros achavam que as possibilidades recaíam sobre a Epsilon do Eridano; e quase todos os co-legas da Europa manifestavam preferência pelo sol de 70 Ophiuchi como o mais provável, já que era de quinta grandeza, da mesma categoria do nosso Sol. Mas êle fora categórico. Não se deixara influenciar, pois tinha seus próprios argumentos que não se fundavam apenas em cálculos de pos-sibilidades ou em exames de gamas estelares. Se insistira na constelação da Baleia era porque há anos vinha coligindo dados, amealhando informa-ções, confrontando coincidências, traçando parâmetros e aferindo retarda-mentos de órbitas, tudo muito bem calçado em exames espectrográficos. Contara com a oposição da maioria, mas, como Colombo (comparava com certo orgulho, reprimindo um leve sorriso que não passou despercebido ao companheiro da esquerda, que dava mostras de estranhar aquele inespera-do mutismo), pedira também um prazo fatal ao aproximar-se das costas das Baamas. Assim como o navegador genovês aceitara o prazo de três dias para o aparecimento de terra, sob pena de voltarem ao ancoradouro de Pa-los, êle também se submeteu a um prazo dentro das devidas proporções. Se durante dois anos, a partir da amarração do eixo do radiotelescopio, nada viesse da estrela escolhida, em seu Novo Mundo, daria a mão à palmatória: aceitaria, resignado, a preferência dos colegas e girariam então as pesadas engrenagens para a face do Centauro, para as penugens do Cisne ou para as margens do Eridamo, ou ainda para as profundidades das cordas da Lira, bem perto de Vega, em pós da qual rolava o nosso sistema solar. Mas de sua escolha sempre tivera certeza. Seus argumentos eram ponderáveis e nas dúvidas que seus colaboradores opuzeram aos seus cálculos residia a mais séria das objeções. Por tudo isso, seu nome haveria de inscrever-se no panteon da fama, ao lado de pioneiros como Gágarin, Allan Shepard, Titov. Êle seria uma espécie de Alexander Graham Bell ou melhor ainda, de Marconi do cosmos, o primeiro a comunicar-se com outro planeta, a desvendar a proposição desconcertante da pluralidade dos mundos. Havia uma equipe. Mas, que ficou conhecido da equipe que colocou o russo em órbita? Do grupo que elevou Grinson, ou mesmo que fêz pousar na Lua o primeiro foguete? Nada. Só um nome permaneceu . E por isso — pensa-va — haveria de ficar só o seu nome, o nome do professor John Stanley. Ph.D., mais uma glória dos povos americanos.

Ajeitou-se melhor, e nem atentou à circunstância de ter o veículo

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ingressado na alameda que conduzia à pista. Não viu o aparelho pousado e nem se deu conta dos movimentos incômodos que Herbert fazia ao lado, procurando com esse expediente chamá-lo à realidade.

Afinal, quem ficou sabendo dos nomes dos marinheiros de Colom-bo? Ninguém, ninguém! A História é um filtro demais severo, bem pouco poroso, que não deixa passar muitos, mas só e unicamente os que lideram, os que abrem caminhos, e dentre esses estava êle, só êle. . .

Herbert não se conteve. Antes que o veículo parasse, virou-se para Stanley e arriscou uma pergunta ao mesmo tempo que revirava o corpo, tornando intolerável a posição do professor:

— Acorde, Stanley! Eles já chegaram, estão acabando de descer. Veja. O carro de Wilson chegou antes de nós. Estava com medo de que eles estivessem ficado sem o comitê de recepção.

— Hummm — resmungou Stanley, como que despertando do deva-neio acalentador. — Hummm, pensando bem eles é que deveriam sentir-se honrados.

Libertou-se da posição desagradável que lhe havia sido imposta pelo colaborador e rosnou entre os dentes, abrigando-se mais no casaco cinzento que de longe lhe dava o aspecto de um urso recurvado:

— Eles são uns felizardos! Neste momento, aqui nas fraldas do nos-so Salt Pike, teremos um encontro com a História. ..

— Com a História e com o futuro — aditou Smith, rompendo seu mutismo.

— Sim, com o futuro — ponderou Stanley — saboreando a frase feita e buscando a maçaneta da porta depois de cingir mais o casaco. — Vamos, companheiros, ingressemos na posteridade...

Herbert riu discretamente e empurrou Smith pelo braço, segredan-do-lhe ao ouvido:

— Viu? o “velho” está eufórico. No começo fiquei preocupado, êle não dizia nada. Também, não é para menos, a ocasião explica seu mutis-mo.

A comitiva de recepção de Salt Pike estava rodeada pela quase totalidade dos visitantes. Como era de esperar-se, as luzes de lâmpadas-relâmpagos começaram a espoucar e rolos de filmes iniciaram seus giros cedendo lugar ao zunido de câmaras cinematográficas que varriam com as objetivas todas as direções, desde o avião até as cercas do campo, desde as fisionomias cansadas dos cientistas até a paisagem que se via à distância,

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nos confrafortes da elevação. Os seis homens que constituíam a vanguarda da comitiva pareciam aturdidos com as perguntas, vencidos pelo número. Quando Stanley anonimamente se acercou, passou a ouvir indagações dis-paratadas, a custo reprimindo certo desabafo não muito consentâneo com sua posição.

— Como é a voz do outro mundo? — Os habitantes de Tau têm mais de duas pernas? — Qual o esporte que eles preferem? — Por favor, por favor, quais as tendências políticas de sua sociedade? — Lá, naquele outro sistema, quanto tempo dura a primavera?— Que acham eles do sexo? — São hermafroditas ou assexuados? — O senhor atribue o sucesso ao nosso regime capitalista?

John Stanley deteve-se, perplexo, e depois de certa indecisão, avan-çou decidido a por termo àquela confusão inesperada, procurando socorrer seus tímidos companheiros:

— Senhores, peço-lhes um momento de silêncio.Ante a impossibilidade de ser ouvido, Herbert e Smith foram em seu

auxílio, embarafustando pela massa humana que comprimia o lugar onde deveriam estar François e Robert Dickinson.

Stanley teve uma idéia. Antes que a sortida dos amigos desse resul-tado, entrou na camioneta e pôs-se a buzinar intermitentemente. Ao pri-meiro toque ninguém ligou. Mas, depois, o grupo que estava perto do carro foi silenciando, voltando-se todos para o veículo, dando-se então pela pre-sença do professor, que insistiu ainda mais de um minuto, antegozando o triunfo. Smith aproveitou a deixa. Subiu sobre o para-choques e anunciou, conseguindo o efeito almejado:

— Tenho a honra de apresentar-lhes o professor John Stanley, chefe de nosso grupo e responsável pelo êxito da operação Cetus — proclamou para os visitantes.

O professor, numa atitude estudada, desceu da cabine e acercou-se do para-choque, transformado em tribuna. Aproveitou a pausa que se lhe apresentava, surpreendido com a súbita docilidade da turba. Sentiu-se alvo de lentes e luzes ofuscantes e manteve a expectativa até que fosse bem identificado. Depois resolveu deitar a fala:

— Meus amigos, antes de mais nada lhes dou as nossas boas-vin-das a Salt Pike. Da transcendência deste encontro não falarei por ora. O momento é impróprio e a temperatura aqui é perigosa. Os senhores serão conduzidos aos alojamentos por meio de ônibus e, depois do jantar, estão

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convidados para as primeiras explicações que, como medida propedêutica, anteciparão o minuto exato em que assistirão à transmissão da primeira mensagem, depois de ouvirem os sinais.

Um leve burburinho avivou o grupo e certa agitação formou-se ao lado de um indivíduo alto, loiro, com ares de escandinavo. Este destacou-se dos demais e dirigiu-se a Stanley, que esperava os efeitos de sua sau-dação.

— Nós é que agradecemos, professor Stanley. Agradecemos não só ao vosso grupo, mas também ao vosso governo pelo amável convite que nos foi dirigido dando a nós, da Europa, a oportunidade de interferirmos nesse acontecimento decisivo que, mais do que uma conquista da América, é uma conquista da humanidade. Eu, professor Karel Yongman, da Univer-sidade de Goettingen, em nome de todos convidados, homens de imprensa, cientistas e políticos, observadores nacionais e internacionais, agradeço o convite, saudando ao mesmo tempo aquele que inaugurou uma nova era: a da semântica cósmica.

Hummm, nada mau — pensou Stanley, cheio de si, ao considerar a expressão “semântica cósmica” que não lhe havia ainda ocorrido. Emper-tigou-se, começando já a galgar os primeiros degraus da fama e da glória.

— Eu lhes agradeço. Os senhores devem estar com frio. A tempe-ratura aqui não é a mesma da Capital. Vamos então ao ônibus. Meus auxi-liares os acompanharão e estarão às ordens para tudo, menos — acentuou esse menos — menos para fornecer dados sobre o nosso triunfo, porque isso fica reservado para mim.

Fêz um gesto amplo indicando o estacionamento dos veículos e des-ceu do para-choques tomando pelo braço o professor Karel e o encami-nhando para junto da camioneta.

Guglielmo, como já o fizera Stanley, antes de olhar para a estrada que vinha do aeroporto, espiou o céu, quase violáceo. Havia consultado o termómetro, o barómetro, e temia também pela queda da nevasca. Então as coisas se complicariam e teriam de aguardar condições atmosféricas ade-quadas não só para as captações, mas sobretudo para a transmissão inaugu-ral. Êle já sabia. Como acontecera inúmeras vezes, quando a neve caía, os sinais cessavam por completo, de forma estranha. Assim fora desde o fim do outono, quando os primeiros sinais começaram a ser recebidos.

Afastou-se um pouco da janela e viu a camioneta vermelha destacar-

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se à frente dos ônibus que cruzavam os pórticos da entrada.Apressou-se, reconhecendo seu atrazo mas, ponderou, nada poderia

fazer. A missiva que terminara era muito mais importante. Mais importante do que os ruidos da estrela Tau, mais valiosa do que o diálogo interplane-tário, e isso porque era um colóquio seu, privado, apenas intercontinental, com a criaturinha deliciosa que era sua noiva, com a bela Fiamma (Fiam-meta, como lhe chamava), e que o esperava no seu apartamento romano, reservando-lhe uma ventura sem limites.

Dobrou a folha carinhosamente, fechou o envelope e de-positou-o no meio da correspondência oficial. Enquanto ajeitava o cabelo e o nó da gravata surrada, alheiou-se ao grande acontecimento que para si só tinha certo significado. Enfim, tinham atingido a meta desejada. Era mesmo um planeta, atado ao sistema de uma estrela remotíssima que enviava sons estranhos e indecifrados. E era para esse planeta invisível, pressentido ape-nas pela magia da astro-micro-fotografia-cibernética, que iriam enviar a primeira mensagem, tentando a comunicação que levaria pelo menos uns trinta anos para atingir o objetivo. Mas para êle isso bem pouco importa-va. Seu contrato de serviço, acertado por meio do governo, dizia um ano, apenas trezentos e sessenta e cinco dias de colaboração, sem especificar os resultados da experiência. Incrivelmente, esse longo ano de exílio e separação de Fiammeta coincidiu com o triunfo do grupo internacional. E essa era a causa de sua alegria e não as pulsações cambiantes da estre-la Tau, daquele sol distante que esquentaria as pulsações vitais de outra humanidade. Sua alegria vinha de um sol mais quente e mais secreto, de um sol seu, exclusivamente seu, que iluminava não um universo infini-to, mas um pequeno mundo que nada tinha que ver com espectrógrafos, chapas, granulações fotográficas contadas por aferidoras eletrônicas, anos luz, parâmetros e retardamentos no cumprimento de órbitas. Seu sol era fonte de outro tipo de chama, e essa chama o aquecia demais, tornando as vezes insuportável sua permanência naquele planalto gelado, sentindo o isolamento de um monge tibetano. Vivia apenas de saudades, de cartas esperadas dia a dia, vendo não os progressos dos estudos e recebimento de sinais, mas a passagem dos minutos, das horas, dos dias, dos meses e das estações que o levariam à zona de atração do seu sol, da sua chama bem-amada. E quando ela viera, por deferência especial dos pais, acompanhada de um primo retraído e cético, tudo mais se complicara ainda. A semana que durara a visita foi apenas um lampejo que só serviu para inflamar mais

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a paixão. Nem um momento a sós. Havia sempre o primo, a soldo dos pais milionários (fábrica de roupas feitas, em Trento), que bem sabia quais as funções das chaperones e quais os perigos da ausência prolongada e do sangue latino. Sim — ria agora recordando os episódios e acabando de acertar o nó da gravata — sim, as explosões dos amantes separados, com-paráveis às explosões das estrelas Novas.

Pegou o maço da correspondência e os relatórios de seus estudos sobre os movimentos da estrela Tau no último ano. Bateu a porta e correu para a escada, vendo a aglomeração que se formava junto ao bar improvi-sado onde ia ser servido o coquetel.

Viu também Hans e Peter saírem apressados de seus cômodos e teve um instante ainda para bater no quarto de Giuseppe, que não tinha apare-cido até o momento.

— Vamos, Giuseppe, vamos. Somos os últimos. Não decepcione-mos o maestro, vamos.

Um meninão assomou à porta, impecavelmente trajado, contrastan-do com o modo de vestir-se descuidado do amigo.

— Puxa! Que classe, que estilo! Onde é o baile?— Não brinque, devemos fazer tudo para agradar o “velho”. Afinal,

hoje é o grande dia. O dia que acreditávamos que nunca chegasse. O “ve-lho” tinha razão, suas conclusões eram exatas...

Com menos ímpeto começaram a cruzar o parque aberto que os se-parava do refeitório, junto ao qual estavam os hóspedes.

— Sabe de uma coisa? — murmurou Guglielmo. — Tenho às vezes a impressão de que o “velho” só trabalhou esses anos todos para que a data chegasse não como um triunfo científico, mas como um triunfo pessoal. Penso às vezes que, no fundo, êle é um grande egoísta que só pensa em si e que se meteu nessa coisa toda com uma só finalidade: transformar-se na figura mais conhecida do mundo, pouco lhe importante as consequências reais do acontecimento, não acha?

— Ora, não sei porque você pensa assim. O “velho” não é mau su-jeito. Você diz isso porque só viveu uma fase de nossa aventura. Escute — disse, enquanto o segurava pelo braço: — Você está aqui há menos de um ano. Eu estou desde o começo. Fui o primeiro que o nosso governo enviou depois do pedido e não voltei, mesmo quando terminou o meu contrato, porque não quis, porque me identifiquei com a aventura. Não regressei porque...

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— Porque não tem noiva, porque não está apaixonado, não é isso que você quer dizer? — atalhou o outro, peremptoriamente.

— Nada disso, não me interrompa. Não voltei porque não quis. Meu contrato era também de um ano, como o seu. Não voltei porque senti a im-portância da nossa missão, porque senti que nosso trabalho ia ser coroado de êxito, porque reconheci que Stanley estava certo e, sobretudo, porque queria estar perto no momento em que chegasse a primeiro sinal, esperan-do o instante em que nossa primeira mensagem fosse emitida. Escute, isso nada significa para você?

Guglielmo Tancredi fêz um muxoxo e diminuiu o passo:— Sim, significa muito. Significa que meu ano se esgotou, que a

provação chegou ao termo. Quer dizer que logo estarei em Ciampino, com minha Fiammeta nos braços. E escute mais, você fala sempre em nossa equipe, nosso trabalho, nossa mensagem. Vocês todos não estão se escra-visando demais por um egocêntrico que só pensa em si, que quer apenas seu triunfo, sua projeção pessoal?

— Não diga isso, Guglielmo. Você aqui é uma exceção. Nenhum de nós, nenhum dos que estão desde o começo pensa assim. Somos uma unidade, uma só cabeça, um só cérebro. . .

— Sei, uma só cabeça, a cabeça do “velho”, buscando fama, cami-nhando para a glória, pensando só em seu país!

— Você está apaixonado e, como tal, não olha para os lados, mas apenas para a frente — retorquiu o amigo. — Não sei como seus estudos dão certo, como suas indicações conferem com a realidade!

— Também eu não sei. Só sei que é a primavera em Roma. Que a Via Véneto está florida e que passearemos de mãos dadas pelo Pincio, lon-ge de radiotelescopios gelados. Que me importam os mundos habitados? Que me importam os sinais recebidos? Que me importa mesmo a mensa-gem? Você sabe muito bem porque vim. Eram dólares, muitos dólares! Eu precisava deles para o casamento e eles sabiam que meu trabalho era o único no mundo. Sabiam desde o dia em que apresentei meu estudo à Aca-demia Real, aquele sobre as variações das estrelas duplas. Sabe o que fiz? Um exemplo característico de simbiose; liguei o útil ao agradável. Nada de ciência pura, de filosofia ou de cosmologia. Apenas um negócio, negócio rendoso para mim e que está concluido. Meu sol é apenas um e está bem mais perto do que todas as explosões nucleares de sua estrela — terminou, com alguma ponta de malícia e um riso picaresco.

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— Você está enganado, principalmente em relação ao “velho”. Êle não é egocêntrico, egoísta ou complexado. Apenas se vale das prerroga-tivas de chefe. Como chefe, como pai do projeto, esse exclusivismo que você verbera eu o aceito apenas como certa manifestação de ciúme. Es-cute, seu apaixonado. O ciúme não surge quando se ama demais alguma coisa? Você ama sua noiva, o “velho” ama sua estrelazinha, enfiada nos borrões luminosos da Baleia. E daí? Pode ser condenado por isso?

Já perto do grupo e do vozerio da recepção, Guglielmo fêz a última parada, voltando-se para o colega:

— Ah! Então é assim? E o que êle fêz com Stuart, e o ele fêz com Kyrillos? Não nos mandou de volta quando mais precisava deles? Não armou um escândalo internacional, acusando-os de espionagem e de se-gundas intenções bélicas, a sôldo de interêsses inumanos? E porquê? Por-quê? Tudo porque se destacaram mais do que êle, porque acenaram com a possibilidade do novas teorias e, principalmente, porque iam usurpando a coroa que deveria ser sempre dele, do professor John Stanley. Você sabe disso tão bem quanto eu.

— Você não sabe nada. Devia ver como foi no começo. Você nem conheceu Kyrillos ou Stuart. Tudo que soube lhe foi transmitido por tercei-ros mal informados. Vamos, deixe disso, deixe rancores e saudades de lado e venda participar da nossa glória e não da glória do professor. . .

Dois componentes da divisão especializada em radar aproximaram-se com bebidas e Tancredi esqueceu-se da discussão, atendendo ao pedido de Jonathan para conversar com um técnico conterrâneo que integrava o grupo dos convidados e que queria saber pormenores sobre seus trabalhos de aferimentos paraláticos. Mas antes da conversa ser iniciada, Guglielmo divisou Stanley, afogado no meio do grupo, em postura hierática, como se fosse um ídolo adorado por criaturas primárias.

Não custou muito para que o recinto, de proporções acanhadas, fi-casse saturado de fumo, devido às portas fechadas e ao deficiente funcio-namento do renovador de ar. E à fumaça desagradável que irritava e ardia nos olhos misturou-se o aroma penetrante dos aperitivos servidos pelos garçons especialmente contratados.

Mais luzes de fotos, ruidos de cameras, vozerio em idiomas irre-conhecíveis. Apresentações cerimoniosas, brindes e palavras amáveis, reverências e trocas de cartões. Enviados da revista Faie queriam poses exclusivas de Stanley com a taça na mão, comemorando o feito. Outros

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perquiriam dados pessoais. Indagavam de sua esposa, se tinha filhos, onde havia estudado. Outros ainda procuravam saber qual a marca de cigarros de sua preferência, para que equipe de base-ball torcia e se acreditava em discos-voadores e no foguete fotônico do sábio Stepanovitch. No meio dessa balbúrdia, uma ou outra pergunta séria, quando então o interlocutor e o componente do grupo se afastavam da pequena multidão e trocavam palavras discretas a contrastarem com o alarido que pairava no recinto.

Ao lado das instalações sanitárias, encarapitado num banco alto, es-quecido e incógnito, camuflado em sua pequena estatura e dissimulado em trajes comuns de trabalho, François Duval apenas olhava. Olhava ao mes-mo tempo que bebericava o uisque puro que estava debaixo da enorme pe-dra de gelo que mais parecia um iceberg. Não fora apresentado a ninguém, não se chegara aos visitantes e apenas olhava calmamente, balançando-se na banqueta e com um dos cotovelos apoiado ao balcão, como se fosse um estranho tentando entender o que se passava na sala, e que tipo de gente era aquela que se misturava numa confusão de linguas, raças, cultos, inteligên-cias, graus de educação e cultura e que do fato que lhes havia sido proposto partiam para as mais estranhas, ilógicas e absurdas ilações.

Revirava o copo entre os dedos e pensava. Pensava e olhava, logran-do o prodígio de não ser molestado.

François Duval. Ex-seminarista. Ex-funcionário do Observatório do Midi. Ex-navegador de guerra em missões de bombardeio. Agora, apenas e exclusivamente técnico de radar, algum tempo famoso por sua atuação no envio de ondas que ricochetearam no solo indevassável de Vénus.

Como fora parar lá? Nem mesmo êle poderia responder. Depois da morte da irmã e dos pais tornara-se um solitário. Abandonara o Midi com a mesma disposição com que deixara na juventude o seminário de Lyon. Era um homem de hábitos e convicções. Quando perdia a fé, sim, a sua fé, em certa coisa, largava a empreitada sem preocupar-se com as consequências. Que outros terminassem o que começara, quando renegava sua crença, quando suas molas propulsoras falhavam. Assim fora no seminário, assim fora no Midi, assim fora durante a guerra quando desertara do avião, em paraquedas, sem que houvesse motivo real para a fuga. Depois, na grande confusão posterior, a viagem para a América. Em busca de alguma coisa. Um emprego bem remunerado e um laboratório completo, como jamais vira em seu país. Procurou então a nova ilusão. Mais concreta, mais pal-pável e que surgia agora não de elementos espirituais, às vezes tão vazios

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como as naves das catedrais góticas, voláteis como incenso, fechados como as teorias do abade Carcot. Mas uma nova fé, resultante de operações ma-temáticas, produto de números, de cérebros mecânicos infalíveis e que, dando um sentido positivo à vida, não indicasse apenas atitudes mentais resultantes de cogitações filosóficas, ginásticas intelectuais com aparência lógica, frutos de mentes versáteis e privilegiadas, mas que constituíssem respostas inquestionáveis de máquinas e não de homens.

Isso explicava suas preferências pela nucleônica. Adviria uma nova esperança, talvez infalível e por isso capaz de dar-lhe um roteiro constante em antagonismo às vacilações anteriores.

Não tinha família. Nunca se prendera a nenhuma mulher. Porque então não aceitar o convite se, além do mais, eia muito bem pago? E lá estava ele, depois de quatro longos anos, ligado indissoluvelmente ao ve-lho Stanley, procurando por uma coisa que o atormentava há tempos — a busca de novas verdades.

Se cerrasse os olhos — nas longas noites de vigília, com os fones a pipocar nos ouvidos à espera de um sinal idêntico, em sequência que revelasse inteligência ordenadora — poderia ainda ver nas salas penum-brosas e úmidas do seminário de Lyon, doutrinando sobre alunos magros e apáticos, a figura rotunda do abade Carcot, a falar enfatuadamente sobre a questão da multiplicidade dos mundos e das moradas de Deus. Sim, mul-tiplicidade dos mundos habitados. Isso por vezes lhe cheirava a volumes embolorados de Voltaire e àquelas letras que antes eram douradas do li-vro do jesuíta Fontenelle com suas Conversações sobre a pluralidade dos mundos. Que significava isso para aquela multidão que ali se comprimia?

Pousou o copo sobre o balcão e inclinou o banco, flexionando-se em direção à parede. Para a maioria, não queria dizer nada. Apenas um triunfo a mais para o homem sem se saber qual o proveito a obter-se da conquis-ta. Para outros, os mais ignorantes (a maioria dos que se acotovelavam na sala), a coisa era mais confusa ainda: consideravam o planeta em que havia vida inteligente como alguma coisa de muito próximo, assim como uma nova ilha não cartografada perto de Borneu ou de Santa Helena, um pouco mais longe do que o Havai ou Madagascar, e na qual pudessem ir passar fins de semana, privando com seres de seis olhos, fêmeas de quatro pernas e onde talvez pudessem encontrar mercado para Coca-Cola, pasta de dentes Pepsodoní e onde realizassem grandes investimentos com incal-culáveis proveitos econômicos.

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Mas para êle, para o professor John Stanley, para os outros do grupo como por exemplo Guglielmo Tancredi, Hans Reuter, Smith, ou Herbert Stern, que significava o triunfo?

Alheio, completamente alheio ao vozerio, cada vêz mais se ausenta-va, tentando alinhavar algumas premissas sem muita consistência.

Bem, para John Stanley o êxito tinha pelo menos um duplo significa-do. Era não só a comprovação de uma teoria, mas sobretudo o coroamento do sacrifício de anos, o que lhe daria renome. Mesmo convivendo há muito com o professor, às vezes não o entendia. Êle era atraentemente complexo. Em certas oportunidades, como no último verão, quando o eixo-mestre fora ajustado para a concentração mais perfeita do feixe receptor de on-das, tivera a impressão de que Stanley não visava seu objetivo como um alvo transcendental, criando ou desvendando determinada incógnita para a humanidade; mas que buscava apenas a comprovação de uma teoria pesso-al, circunstância essa bem pouco científica, a contrastar com os designios dele, François Duval.

Para Smith, Herbert ou Hans tudo era translúcido, transparente, com a primariedade de inteligências medianas que demandam apenas soluções imediatas, mais por instinto, por emulação, e não por fatores profundos de base metafísica ou filosófica. Esses eram apenas cientistas, tinham tarefas a cumprir. Não lhes interessava a recompensa econômica ou regalias pes-soais. Agiam automaticamente, levados por uma idéia disforme e confusa, mescla de patriotismo e altruísmo que, pela falta de enraizamento pro-fundo se confundia com a gratuidade e inconsequência de certos hobbies. Para Guglielmo, o jovem estudioso latino, tudo era ainda mais simples. Seu motivo era elementar. Estava apaixonado, naquele caso o sentimento tocava os limites da hipnose, e assim só via na pesquisa uma conseqüên-cia: a volta ao seu país para o matrimônio alicerçado numa boa soma de dólares.

E para êle? Para François Duval, pequeno, humilde, esquivo, ex-pupilo do imponente abade Carcot, discípulo eleito de latim e teologia? Que significava para êle a maravilhosa constatação? Nem êle próprio sabia ainda e há muito vinha se perdendo em suas elocubrações.

Talvez o reencontro de uma nova fé. Talvez a angústia da procura, talvez o símbolo de sua frustração, a válvula da fuga. Nem êle mesmo sa-bia e talvez por isso não pudesse recriminar os outros.

Apoiou-se de novo sobre o balcão e revirou o copo até sentir no

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lábio a pedra de gelo. Serviu-se de nova dose e desatolou-se de suas con-siderações, enfrentando a realidade.

O fumo ardia-lhe nos olhos e em redor a animação atingia o auge, estimulada pelos coquetéis adequados à temperatura.

Observou agora Stanley. Sem o abrigo cinzento, dir-se-ia que perdia um pouco de sua personalidade. Era o centro de todas as atenções e, mes-mo se esquivando, não conseguia furtar-se a uma ou outra pergunta mais séria, não de jornalistas mas de colegas estrangeiros. Mas a reunião ainda não atingira o seu ponto elevado. Isso seria à noite, no auditório, quando ligariam a grande “orelha” e proporcionariam aos visitantes contato direto com os sinais do espaço exterior, antes de ser lançada a mensagem.

Ah! a mensagem! Ainda não fora escolhida. O professor, dando de-monstração de seu alto espírito democrático e de arejamento intelectual, discutiria em plenário, com todos os especialistas que ali se achavam, qual a mensagem que deveria ser lançada a Tau Ceti, explicando então aos lei-gos a distância incomensurável que a resposta percorreria até penetrar na atmosfera do seu planeta que ainda não havia sido batizado. E se a nevada viesse? Caso tal acontecesse, a solução seria exibir as gravações. Desde a primeira até a última, quando então, com alguma vantagem sobre a escuta direta, poderiam compenetrar-se da sequência exata dos sinais, de sua in-tensidade e intermitência, fatores básicos nas conclusões.

— Então, gostando da festa?Voltou-se meio assustado e deu com o rosto achatado e vermelho de

Arturo Gomez, o astrônomo especialista em meteoros, que viera do Novo México. Respondeu sem muito pensar:

— No começo tinha de ser assim mesmo. Jornalistas, homens do rá-dio e da televisão, bem que falei. Êle devia ter feito uma seleção, devíamos tê-los recebido em partes, separando-se os níveis intelectuais.

— Mas não é como Stanley queria? Vocês não o conhessem ainda? Êle vivia dizendo que queria dar a notícia num impacto único, para toda a humanidade.

O homem de rosto vermelho, afogueado pelos vapores de sua bebe-ragem e pelo ar confinado, voltou-se num largo gesto com o copo na mão e mostrou o ambiente:

— Então, êle queria toda a humanidade não é? Aí está ela, e muito bem representada. Sábios de braços com imbecis; repórteres dialogando com graduados em comunicações; senadores broncos trocando argumen-

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tos com biólogos; locutores de rádio soprando fumo nas retinas de astro-fí-sicos. Tudo isso é humanidade, meu caro. Não é o que o “velho” queria?

O francês riu, contrafeito, e sorveu um gole do líquido que lhe quei-mava as entranhas.

— Sim, é o que êle queria. Pelo menos há uma vantagem. A rea-ção será heterogênea, amorfa, amostra convincente do que poderá vir de-pois...

— Depois? Que poderá vir depois? — interrompeu o mexicano, re-clinando-se também sobre o balcão e renovando o conteúdo do seu copo.

— Depois, sim depois, como reagirão ante a verdade inquestioná-vel? Agora acredito que não estamos sós no universo, que não somos os senhores absolutos. Mas, não precisaríamos de sinais para essa conclusão. Qualquer aluno de curso elementar de biologia sabe que a vida é apenas o produto de certo grau evolutivo na curva da existência de uma estrela, e isso nos dá um resultado matemático.

— E qual o nome do planeta? Stanley teve alguma idéia ou apenas o numerou?

— Não sei, ninguém sabe ainda. De uma semana para cá o homem se fechou. Deve estar imaginando alguma coisa muito importante, ou en-tão deve estar pasmado ante a sua descoberta, sua descoberta, como vem falando ultimamente.

Como se o fio dessa conversa tocasse o sub-consciente de John Stanley, por transmissão de pensamento, notaram que o professor se desli-gou do grupo que o disputava. Procurou separar-se e, com a taça nas mãos, cheia de um líquido opalino, pediu solenemente um instante de atenção. Desta vêz foi atendido, e o silêncio inesperado destoou no ambiente enfu-maçado e recendendo a álcool.

— Antecipando uma dc minhas primeiras revelações, proponho an-tes de mais nada um brinde. Um brinde para o batismo de nosso planeta. Um brinde saudando aquele mundo remoto que nos envia mensagens, grão de poeira cuja presença só é pressentida pela vontade de seus habitantes, já que sua observação direta não é possível devido ao brilho que a estrela Tau, que é seu sol, derrama ao redor, da mesma forma que, para êles, a nossa Terra não seria visível pelo deslumbramento do nosso Sol.

O silêncio agora era maior e quase se podia ouvir o borbulhar do líquido na taça inclinada de Stanley. Duval e Arturo Gomez trocaram olha-res significativos e procuraram acercar-se mais do amigo, sentindo então

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que a criança ia ser finalmente batisada.— Antes, uma pequena digressão, que é também uma justificativa.

No ano 300, antes de Cristo, o mundo era pouco maior do que a bacia do Mediterrâneo. A civilização se confinava entre o Oriente Médio e o desco-nhecido, que era pouco além das Colunas de Hérculos, de Gibraltar. Mas já havia, os navegadores, os primeiros exploradores que, como todos os predestinados (e sua voz falseou nesse instante) intuíam a existência de outras terras, de outros continentes, de outros mundos e de outras civiliza-ções. Pytheas de Massília foi um deles. Para além da Bretanha, para além das Sheetland, para além da Escandinávia, deveria haver uma região in-desvendada, cujos limites coincidiriam com as fronteiras do próprio globo, pois além era o ignoto, o abismo. Esse lugar, meus amigos, foi batizado de Tule, cuja natureza mítica passou a representar as barreiras finais do conhecimento, da expansão e, portanto, das possibilidades humanas.

O silêncio continuava absoluto, produzindo grande efeito as pala-vras de John Stanley. Voltou-se para a parte do auditório que lhe estava por detrás e continuou com menos teatralidade:

— O meu planeta, a sede dos sinais, recebe agora o nome de Tule, pois a partir de nossa época até êle estendeu o homem os limites de suas possibilidades, atingindo um ponto invisível mas que pulsa, que vive, que emite sons, que busca uma comunicação, o que só é possível com a exis-tência de seres inteligentes, pelo menos como nós — ponderou em tom dramático.

Parou então repentinamente, como artista que tivesse esquecido a frase, criando um hiato expectante. Firmou mais a taça na mão e voltou-se para todos os grupos, sucessivamente, elevando-a e dando nova inflexão à voz.

— Senhores! Levanto minha taça a Tule, ao planeta da constelação da Baleia, ao tutelado da estrela Tau, inaugurando assim uma nova era da vida humana. A era das comunicações inter-estelares.

Foi exatamente nesse instante que a neve começou a cair. Era tão imperceptível naquela hora crepuscular que no começo não foi pressentida nem por Arturo nem por François Duval, por Tancredi ou por Hans, Her-bert ou Giuseppe.

A princípio flocos tênues vieram flutuando, dissolvidos pelo ven-to, indolentemente, sem convicção alguma. Depois foram ganhando con-sistência, despresando o vento, mas ainda sem violência, coincidindo sua

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chegada com os derradeiros lampejos da luz.No interior do bar, naquele momento de euforia temperado genero-

samente pelo álcool, foram poucos os que deram pela coisa. A nevada, de acordo com a duração e a intensidade, poderia ser tida como catastrófica, prejudicando o bom termo dos trabalhos.

Quando o pátio se iluminou com intensidade diurna o professor ve-rificou o fenômeno. No íntimo já esperava. Havia recebido os boletins meteorológicos e a essa altura era tarde para cancelar-se o programa, há semanas preparado.

Ao notar a precipitação, silenciou como se tivesse esgotado suas derradeiras energias. Empurrou levemente o homem que se achava mais próximo e abriu caminho até as amplas vidraças que desvendavam a pai-sagem para o radiotelescopio que no fundo do cenário, como um monstro doméstico, velava. Deslocou-se em silêncio, deixando seus companhei-ros apreensivos, sem atinarem com seu gesto. Postou-se junto à janela, encostou-se bem ao vidro ligeiramente embaciado e alongou o olhar para o céu plúmbeo.

A noite já se instalara e os flocos cintilavam ao ingressarem nos do-mínios da luz que se derramava junto às instalações. Sem esconder algum nervosismo, consultou o relógio. Nesse momento já estava cercado por Herbert e Smith e muitos dos presentes entenderam que algum imprevisto ocorrera. John Stanley voltou-se então e retornou ao centro da sala, per-dendo certa rigidez de expressão que adquirira no princípio de sua fala:

— A nevasca, eu já previra. Mas não há de ser nada, não é a pri-meira vêz. Além disso, é muito cedo, lá pela madrugada tudo deverá estar em ordem. Algumas horas não interferirão em meus planos. Faremos tudo para que os habitantes de Tule recebam a nossa resposta na hora, no dia, no minuto previsto. Descansemos. A noite vai ser longa.

François Duval aproximou-se também da janela e ficou durante al-gum tempo a observar a camada álgida que começou a se acumular na relva rala, escassa, castigada pelos rigores do inverno.

John Stanley, naqueles momentos que antecediam o início dos tra-balhos, logo depois do jantar comemorativo, como igual nunca se vira em Salt Pike, encontrou ainda uma pausa para meditar, regozijando-se pelo bom andamento de seus planos.

Tudo, até aquele momento, fôra bem. Conseguira impressionar, e

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seu brilho, como cientista, igualava o brilho das estrêlas, de primeira gran-deza. Era o que queria. Seu sonho estava a um passo da realidade.

Recostou-se melhor na poltrona, em seu apartamento privado. Es-queceu-se da azáfana dos convidados. Esqueceu-se da presença às vezes incômoda dos próprios companheiros e deixou-se transportar pela imagi-nação, numa reverie grandiosa que atuava sobre seus sentidos como entor-pecente. No fundo havia a cidadezinha deserta e mal iluminada e a famí-lia humilde, com onze filhos. Havia o pai rancoroso e áspero, de atitudes grosseiras, que procurava edificar inexplicavelmente uma muralha para esconder-se dos próprios filhos. Havia também certa mulher reservada, te-merosa de tudo, a esconder-se nas sombras de uma resignação que tocava as raias da santidade. E havia ainda a convivência com seres violentos que por acidente se chamavam irmãos e que se descompunham nos momen-tos das refeições, gritavam impropérios quando não eram atendidos e que depois, um a um, com a alternância cíclica das estações, iam deixando a casa numa fuga cujos prenúncios coincidiam com a puberdade. Êle então alargava seus domínios. De uma enxerga passava para uma cama, de uma cama em comum passava para um leito exclusivo, de um cubículo abafa-do e cheirando a mofo era promovido para o quarto da frente onde o sol provocava revérberos no teto, criando arco-íris em vidros estilhaçados na janela tapada com jornais. Depois, só êle e as mulheres. Só três mulheres, também estranhas, também silenciosas, réplicas gêmeas da matriz, cujos destinos seriam alterados apenas pela morte. Mais tarde, com a chegada da primavera, uma sétima fuga que tinha um sentido diferente. O quarto en-solarado era pequeno, não o satisfazia mais o arco-íris. Estradas, rodovias, novos horizontes, postes em fuga ondulando através das frestas de vagões de carga, muitas auroras, incontáveis crepúsculos, e aquela sensação estra-nha no estômago que remoia a si mesmo como se estivesse a devorar-se. Certo dia o emprego, a centenas de quilómetros de distância. O salário cur-to e a rotina extenuante. Uma adolescência desarvorada que só encontrava lenitivo nos livros. Como começara? Não sabia, tudo era torvelinho nas origens. Primeiro uma brochura rasgada e atirada ao leu, pelo lixo, com as páginas desordenadas e mal cheirosas, agitando-se ao vento como folhas de outono. Depois outros livros e, nas horas de folga, a timidez oculta nos vazios dos corredores de muitas bibliotecas. Só isso, só isso devia ao ho-mem rancoroso. A escola, o prédio branco, bem limpo, cheio de sons que se perdiam pela Rua Principal como se abrigasse uma centena de pássaros

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desejosos de voar. Com a morte do pai, voltou. Eram apenas cinco e foram então para o Oeste. Os tios eram pessoas diferentes. Não havia bolor nem vidros quebrados. Não construíam barreiras, não gostavam de sombras. Daquele lado até o sol brilhava mais. Como o jovem gostava de livros! Vejam, tão jovem ainda e só pensa em estudar! Não é uma pena, Mary? Escute, Margaret. A quem puxou esse fedelho? Não acha que devemos fazer alguma coisa por êle? Meu caro professor, valho-me de sua amizade, aviste-se com o menino. Dê-lhe uma oportunidade, dê-lhe uma oportuni-dade. Fale com os políticos locais, com o prefeito, apenas uma bolsa de estudos, dê-lhe uma oportunidade, Uma oportunidade. . .

A frase lhe ficou martelando no cérebro como se fosse aquela neve a cair sobre o parapeito das janelas e que observava alheio, afogado em recordações.

Levantou-se bruscamente e quase falou em voz alta. Sim, dêem-lhe uma oportunidade! Salvem o menino, deixem-no mais uma vêz procurar o arco-iris. Esfregou as mãos sobre o rosto e procurou ajeitar o cabelo em desalinho. Não precisava de espelho para ver que estava fatigado, que as olheiras mais se acentuavam, que os fios brancos disfarçados pelo pentea-do haviam vindo à tona, realçando a distância de uma caminhada que não gostava de revelar.

Sim, tivera a oportunidade. Era agora um vitorioso, orgulho para o seu país. Haveria de figurar na galeria do templo de Riverside Drive, ao lado de sábios, reis, santos e filósofos, na qualidade de gênio da ciên-cia, ombreando na imortalidade com Hipócrates, Arquimedes, Euclides, Galileu e Eistein. Seus biógrafos acentuariam suas origens humildes, sua infância torturada, o que mais valorizaria o seu triunfo. Êle, John Stanley, o primeiro que lograra comunicar-se com outros mundos, o primeiro que conseguira o colóquio com seres de outros planetas.

Em pé, impassível, em frente ao espelho, como se argumentasse com fantasmas, mal ouviu as pancadas insistentes na porta. Custou para descer do pináculo em que se achava. Quando as pancadas quebraram a redoma do seu mundo, voltou-se agitado e contrafeito. Abriu a porta com visível má vontade e deu com a fisionomia tranquila do ex-seminarista. Encarou-o como um inimigo, só regredindo à realidade quando o francês lhe falou:

— Então, estava descansando?Duval notou o ar abatido do professor e insistiu na pergunta:

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— Estava repousando? Não é para menos, depois dessa agitação toda, depois desse pandemônio. Eles continuaram a beber mesmo depois do jantar!

— Estou bem. Procurei repousar um pouco antes da sessão e creio que peguei no sono. Estou ainda debaixo da força de idéias confusas.

Voltou-se para as janelas e fêz certo gesto de desânimo:Diabo! Agora essa nevada, desde as sete horas — olhou o relógio e

continuou como se monologasse, alheio ainda à presença do companhei-ro:

— Já são nove e vinte. O tempo continua o mesmo. Confesso que não contava com uma precipitação tão demorada. — Depois se voltou, acordando definitivamente: — Recebeu novos informes do posto de me-teorologia?

Duval adiantou-se e estendeu-lhe um papel.— Mau, isso é mau.. .— Não há remédio, a nevada vai aumentar. E se o vento ganhar

maior velocidade, dificilmente poderemos operar com segurança. Penso que teremos que nos valer das gravações, o senhor não acha?

— Ah! Sim, agora me lembro, as gravações. Mas é uma pena, ja-mais será como a escuta direta. — Mais uma vêz olhou o papel e ponderou, readquirindo o controle perdido em meio à sua ausência: — O vento deve aumentar. Viu com que velocidade passou ao norte? Pelos informes que temos, a noite não vai ser de brincadeira. Ah! Eu sempre temia essas bor-rascas de começo de inverno. . .

— Todos já estão indo para o salão. Como o início estava progra-mado para as nove e meia, eles pediram que fôssemos mais cedo para as entrevistas e fotografias.

Ah! sim, as fotografias, a televisão, as entrevistas. Mais um minuto. Vá na frente e avise-os. Chame também Tancredi e Herbert, vá indo que já vou, preciso recompor-me. Afinal, esta não é uma noite comum.

Antes que o francês saísse, fêz-lhe ainda algumas recomendações:— Faça-me um favor. Apanhe aqueles apontamentos que deixei on-

tem sobre a mesa de recepções. Estão na segunda gaveta, quero-os à mão quando estiver fazendo a explanação. E pode preparar as gravações. É uma pena, é uma pena, — resmungou ainda, contrafeito. — Enfim, que se pode fazer? É o último recurso... Ah! Como foram na visita ao radiotelescopio? Como se portaram os nossos cicerones?

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— Tranquilize-se, professor. Tudo decorreu bem e mesmo debaixo da neve quizeram ver todos os cantos, espiar todos os detalhes. Um deles, jornalista de Dallas, chegou a subir pela escada lateral para fotografar a antena-eixo.

François Duval parou ainda um ponto junto à porta, mantendo o trinco nas mãos e bateu carinhosamente nas costas de Stanley, procurando confortá-lo:

— A neve não há de ser nada. Para eles a escuta direta ou indireta é a mesma coisa. Os ignorantes só querem ver o espetáculo, ao passo que os cientistas já conhecem os pormenores e para eles, os únicos que nos impor-tam, nem mesmo os sons seriam necessários. O senhor deve estar fatigado com essa correria toda. Tranquilize-se, que tudo sairá bem.

— Obrigado, Duval. Vá descendo, que irei em seguida. Só mais algumas providências.

A mesa receptora havia sido colocada bem no meio do salão agora transformado em auditório. Fios, comutadores, fones, chaves, botões, ala-vancas, painéis, reóstatos e transformadores, tudo estava cuidadosamente arranjado no centro do recinto, com aparências de um palco onde uma grande representação seria encenada.

As poltronas, quase totalmente ocupadas, situavam-se em círculos concêntricos ao redor da mesa, estando do lado esquerdo, numa platafor-ma, a mesa principal onde se colocariam Stanley e seus auxiliares mais diretos. À medida que os ponteiros avançavam, no grande relógio sobre a entrada, a agitação e o borborinho cresciam e, depois de meia hora, an-tes que Stanley chegasse, quem não soubesse lá se ia passar, poderia ter a impressão de que se tratava de uma luta de box ou de uma convenção partidária para a indicação de candidatos. E em meio à confusão, o que mais causava espanto era a diversidade de idiomas falados. Os franceses reclamavam a demora. Os italianos apontavam Guglielmo Tancredi (só, na mesa principal, êle rabiscava alguma coisa a lápis) como que a indicá-lo como o responsável pelo êxito do projeto. Os russos falavam baixo, como se procurassem memorizar detalhes e distinguir pormenores imperceptí-veis, como se elaborassem relatórios secretos, ao passo que os alemães e os espanhóis, valendo-se de intérpretes, discutiam acaloradamente minú-cias das antenas exteriores que haviam examinado. Quanto aos orientais — dois japoneses, um chinês e três indus, mantinham-se em atitude reser-

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vada, talvez se julgando num nivel superior e próprio, vigiando o compor-tamento irreverente daquela humanidade vulgar que não tinha a devida compostura e iniciação para dialogar com outros universos.

Guglielmo suspirou, amuado. Olhou pela décima vêz o relógio, es-piou de lado. O “velho” estava demorando. Que estaria fazendo? Porque não descia para seu show? Como todo artista que se preza, tinha que fazer-se esperado. — O italiano começou a rabiscar de novo desenhos abstratos sobre a folha de anotações que tinha à sua frente, e nem viu que Duval e Hans tomavam seus lugares na mesa. Quando deu por si, viu que ra-biscava sempre o mesmo nome — Fiamma, Fiammeta — moldando as letras caprichosamente, rodeando-as de arabescos floridos como se fossem grinaldas, flores de laranjeira, véus, rendas e brocados. Parou de repente e riscou várias vezes o nome, tornando-o ininteligível, escondendo a mate-rialização de seus devaneios. Olhou mais uma vêz o relógio, conferindo-o com o da entrada e não logrou esquivar-se ao pensamento que o obsidiava. Apenas mais oito dias! O vôo pelo Atlântico até Paris. Mais um dia e lá es-taria êle. Fiamma, Fiammeta, o momento esperado chegara. A Via Veneto, as mãos dadas, aqueles pares de olhos piscando de inveja. Os olhos úmi-dos e ardendo de desejos, as mãos vacilantes, os gestos sem palavras, as carícias secretas que o atormentavam nas longas madrugadas de Salt Pike. O véu caído junto a uma cadeira, a cauda do vestido imponderável como uma galáxia, o brilho de círios no altar florido, a malícia das solteironas, as palavras de um pároco bem intencionado, a carreira desabalada num carro minúsculo pela campanha romana, pinheiros misturando-se com marcos quilométricos, afagos mesclando-se com a mão suada sobre o vo-lante, uma camareira discreta, uma porta almofadada que se fecharia sem éco, um derradeiro suspiro e uma fuga no tempo que duraria a eternidade. Fiamma, Fiammeta — começou a rabiscar de novo, agora em caracteres góticos. Mas foi interrompido pela estrondosa salva de palmas que açoitou o recinto. Elevou os olhos e viu Stanley entrar, acompanhado por Herbert que trazia os carretéis das gravações.

O professor sentou-se ao lado de Guglielmo e foi direto ao assunto, como se estivesse vencido por uma pesada carga e da qual pretendesse logo alijar-se. O silêncio foi compenetrado e só se ouvia o girar das câme-ras e os estalidos secos dos bulbos de” magnésio.

— Os primeiros sinais foram recebidos há mais ou menos dois me-ses. — Baixou os olhos, consultou apontamentos. — Sim, exatamente há

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cinqüenta e oito dias. Operávamos na faixa de vinte e um metros com a escuta centralizada ao redor da estrela Tau. O porquê, os senhores já sa-bem. Essa estrela é semelhante ao nosso Sol. Está na mesma fase de vida e seu deslocamento sofre variações, circunstância essa que, depois de mi-nuciosos estudos, nos levou à conclusão segundo a qual o retardamento é efeito do arrasto de planetas de um sistema que a acompanha, semelhante ao nosso. Muitos do nosso grupo pretendiam outras estrelas, baseando-se em outros argumentos. Mas, — continuou, agora com menos ímpeto — e isso tenho que admitir meio a contragosto, fui eu quem determinou essa estrela, com base em estudos constantes e delicados.

Deteve-se, respirou mais a vontade. Continuou sem encarar o audi-tório, que acompanhava seu raciocínio atentamente:

— Nosso método era um só: escuta sistemática, vinte e quatro horas ao dia, a espera de sons uniformes, anormais, que demonstrassem uma ordenação lógica e não meros ruidos esparsos e descontínuos como quase todas as emanações exteriores. Dois anos depois, quando já estávamos chegando ao fim do prazo estipulado para o exame dessa área cosmográ-fica, veio o primeiro sinal, recebido às dezessete e quinze horas, em plena vigília do dr. Hans Helmmut Gross.

Fez um gesto apontando o colega. Um ligeiro frêmito perpassou na platéia e novos flashes estouraram.

— E qual foi o primeiro sinal, meus senhores? Uma série de sons compassados, fortes, com a mesma intensidade e modulação, e que, afe-ridos incontinenti revelaram uma vibração constante, com espaçamento certo. Desde logo vimos que não eram ruídos comuns de rádio-estrêlas ou de raios cósmicos ou qualquer outra interferência. Eram nítidos, firmes, distintos. Imediatamente foram feitas as primeiras gravações.

Stanley fêz um leve aceno a Guglielmo e este, com a displicência de quem liga uma juke box ou um fonógrafo, disparou o gravador. Fêz-se um silêncio impressionante. Até os latinos se calaram e as cameras foram dei-xadas de lado. Os russos continham a emoção e o próprio Stanley vibrava, passava nervosamente a mão sobre o cabelo, renovando a emoção daquele momento inesquecível.

— Tap, tap, tap, tap, tap. . .Eram sons rítmicos, inequívocos e, sobretudo, misteriosos. Eram

pancadas, eram batidas, eram apelos — como dizia François Duval — e ecoaram no âmbito daquele silêncio durante mais de dois minutos.

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Depois, em atitude quase ritual, o professor elevou a mão e o apare-lho foi desligado. Mais explicações se seguiram:

— No começo, por três minutos, os sons mantiveram-se debaixo do mesmo espaçamento. Depois se amiudaram até a fase final, quando, ao se espaçarem mais, terminaram por silenciar.

De novo o gravador foi ligado e os ruídos extra-terrenos fizeram-se ouvir.

— Tap, tap, taptaptaptaptaptap...A intensidade aumentou até um limite quase contínuo e depois, com

uma pancada final que pareceu a todos definitiva, com a contundência de um ponto final, tudo tornou ao silêncio.

— E assim foi, meus amigos. Desde o começo, desde a primeira hora, tivemos a certeza de que estávamos perante uma coisa fabulosa, acontecimento científico de proporções incalculáveis. Passamos logo aos estudos. Novas escutas comprovaram que a sequência dos ruidos eram sempre a mesma, vindo e fugindo todavia sem períodos certos. Às vezes ficávamos uma, duas, três horas, sem sinal algum. Mas eles de novo vol-tavam com a insistência de sempre, com o mesmo ritmo de chamada, de busca, de pedido, com a mesma persistência de quem se atira a um apelo, a uma súplica.

Stanley estava emocionado e não conseguia dissimular seu estado.— Depois do impacto inicial, depois de recebida a primeira série de

sinais, realizamos testes para comprovarmos se os sons vinham realmente de Tau Ceti. Qualquer movimento, qualquer ocilação da antena, qualquer deslocamento do radiotelescopio, fazia com que recebêssemos apenas o silêncio, o que nos deu a certeza de que a onda vinha mesmo de Tau, não propriamente de Tau, que é uma estrela. Não de um sol, em plena vida e na pujança de suas mutações nucleares. Mas de algum corpo junto a Tau, de um planeta, comprovando-se assim, empiricamente, os resultados es-pantosos da astro-microfotografia-cibernética que dava uma contagem de grãos de prata bem menor, nas imediações de Tau, num dos pontos da área em volta de seu diâmetro, demonstrando a existência de alguma coisa que refletia a sua luz e que queimava a chapa emulsionada, produzindo a dimi-nuição dos micro-grânulos dos sais de prata. Isso significa, meus amigos, a existência de Tule, o meu planeta.

John Stanley nesse momento percebeu que fitava frontalmente o auditório, o que não era do seu feitio. Não lhe agradava em absoluto ver-

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se transformado em alvo de dezenas de olhos, escutado por outros tantos ouvidos. Calou-se, abaixou o olhar e perdeu-se num agitado compulsar de papéis, prolongando-se ainda o silêncio à espera de novas revelações.

Fitou de lado o italiano que ainda rabiscava, mas não obteve sua atenção. Esticou um pouco as pernas amortecidas e sentiu um formiga-mento no braço. Cobrou mais ânimo e enfrentou a platéia com a determi-nação de quem procurara liquidar de vêz um temível adversário:

— E sabem os senhores qual a distância percorrida por esses sinais? Apenas quinze anos-luz! Quinze anos-luz! E, mais, isso quer dizer que a nossa resposta, varando os espaços em sentido inverso, percorrerá outro tanto até que os seres de Tule saibam que alguém, que alguém no infinito do Cosmos recebeu seus apelos e que esse alguém, daquela minúscula partícula que se agita em torno de outro sol, dependurada, numa galáxia espiral, respondeu ao chamado com a mesma veemência, aceitando a in-terrogação proposta.

O professor atingia o auge de suas reservas. Sentia-se que não mais poderia conter a emoção, o que levou Tancredi a deixar de lado o lápis e colocar-lhe à frente um copo d’água, ao mesmo tempo que olhava para o ex-seminarista como que pedindo auxílio.

Stanley pegou o copo sem contudo beber, apertando-o entre os de-dos e relaxando o ímpeto. Sentiu-se acalmado pelo olhar de Duval e fêz uma longa tomada de fôlego, notando que o auditório se mostrava mag-netizado. Manuseou mais uma vêz seus apontamentos e continuou com mais vagar, poupando-se, tomando consciência de seu estado, ao notar a apreensão dos amigos:

— O que estamos iniciando aqui, nesta noite, será o primeiro passo de uma empreitada para gerações. Nossa resposta demorará mais de quin-ze anos para tocar a superfície de Tule, se for captada. Sinais constantes e bem estudados, coerentes e primários, mediando entre uma pergunta e uma resposta pelo menos trinta anos, ao cabo de uns trezentos anos, no decurso de seis gerações portanto, teremos um esquema baseado nessa correspon-dência, o que abrirá para o futuro campo mais positivo. Mas este passo, a mensagem que enviaremos hoje, seja o ponto de partida, pois levará aos homens de Tule a certeza de que seus apelos foram ouvidos. Será a nos-sa modesta contribuição como homens de ciência, valendo-nos do nosso aparelho, produto dos esforços de desbravadores como Karl Jansky, Grote Reber e Martin Ryle, pioneiros e videntes quanto às possibilidades da ra-

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dioastronomia, sem esquecermos Hanbury Brown, meu colega de Jodrell Bank, da Universidade de Manchester, o primeiro a “ouvir” os sinais da grande nébula de Andrómeda.

O professor Stanley procurou uma posição mais cômoda em sua cadeira. Pronunciou as últimas palavras com tensão relaxada, como se aca-basse de pagar um tributo de justiça, e voltou-se depois para François Du-val. O francês entendeu a deixa e também se acomodou melhor, puxando para junto de si o microfone que não havia sido usado por Stanley.

O “velho” curvou-se para seus papéis, cofiou devagar o queixo e mais uma vêz encarou o auditório, com voz agora calma e controlada:

— Entre os convidados aqui presentes figuram cientistas: astrôno-mos, físicos, especialistas em comunicações e até mesmo técnicos em lin-guagem cifrada. A opinião universal se acha representada neste conclave pela imprensa. Ora, meus senhores. Queremos a vossa contribuição, que-remos a colaboração de todos na escolha da nossa resposta. Quanto às gra-vações, estão à disposição dos interessados para análises mais completas.

Voltou-se e observou a presença de um funcionário ligado à manu-tenção do radiotelescopio e curvou-se ouvindo a notícia que o homem lhe segredava.

Continuou depois, passando à nova informação, demonstrando cada vêz maior segurança:

— Era meu propósito que os senhores tivessem uma audição direta. Mas o tempo, com essa nevada, talvez impeça o recebimento dos sinais. A neve acumula-se ao redor das antenas, junto ao eixo principal, e é difícil a remoção, dada a queda contínua. Entretanto, acabo de ser informado que a limpeza está sendo providenciada e isso porque a nevasca diminuiu. Três voluntários ofereceram-se para o serviço e estão subindo pelos bordos mais altos da semi-esfera, cuidando da retirada do gelo, num serviço que até agora nunca foi feito. Talvez, depois de algumas horas, a experiência direta se torne possível, antes de lançarmos a mensagem.

Voltou-se para o francês e elevou o tom da voz:— Agora lhes apresento o meu auxiliar François Duval, técnico em

radar e sonar, que lhes esclarecerá, antes dos debates, como pretendemos responder às indagações de Tule.

François Duval levantou-se. Contornou a mesa e acercou-se do lu-gar onde havia sido colocado o gravador. Sem dizer palavra, comprimiu a tecla e deu volume ao som, postando-se a seguir de frente para o auditório.

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Os sinais, mais uma vêz, agora com altura redobrada, fenderam o silêncio. Primeiro sons compassados, com intervalos bem medidos. Depois o espa-çamento diminuindo até os estados nítidos do fim, com efeito ainda maior. Duval desligou a tecla, cruzou os braços numa atitude clerical anterior a um sermão e não se fêz esperar:

— O professor John Stanley, depois de análises demoradas, chegou a uma conclusão a respeito da natureza da nossa resposta. Observamos que os sinais, verdadeiras pancadas que nada têm de semelhante com ou-tros ruídos cósmicos já detectados, no princípio apresentam espaços de quase dez segundos entre si. Depois de dois minutos, geralmente, e digo geralmente porque em todas as recepções anteriores às variações têm sido mínimas, podendo nisso influir as condições ionosféricas bem como a al-tura da capa atmosférica, depois de dois minutos, o espaçameito diminui até quase a continuidades cessando então de repente, com duas, três e até quatro pancadas mais nítidas que precedem o silêncio.

O auditório seguia fascinado o raciocínio. As palavras eram anota-das, gravadas, taquigrafadas, transmitidas e, bem no fundo, os locutores falavam em tom baixo, temerosos de perturbar o histórico do momento. Uma ou outra vêz a luz intensa dos refletores cortava as luzes discretas do ambiente, lançando sombras fantásticas sobre as paredes e criando con-trastes duros sobre os traços vincados de François, que elevava então a mão sobre a fronte evitando o ofuscamento, sem perder a calma, em anta-gonismo com a vivacidade quase neurótica de seu antecessor.

— Analisando os sons, medindo suas vibrações, chegamos a um só resultado. São demais precisos, bastante definidos, com percussão clara que aponta uma fonte emissora potentíssima gerando uma onda inalterável em seu curso cósmico.

Um murmúrio percorreu a platéia e, em meio à agitação cerceada, percebeu-se a disposição dos assistentes para lançar perguntas, levantando a mão e gesticulando, inseguros de outras manifestações a não ser mími-cas. Ao verificar o efeito de suas palavras, (do rastilho que despertou a expressão “cósmico”) e sentindo que não poderia conter por muito tempo a curiosidade dos espectadores, Duval resolveu abreviar a alocução que, em última análise, visava presumir o auditório para o encaminhamento dos debates sobre a melhor forma de responder-se ao apêlo.

— Essa verificação quer dizer que a mensagem, ou melhor, os sons, são produzidos por um instrumento potente que atinge as nossas antenas

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como se estivesse localizado numa granja vizinha ou num avião sobre nos-sas cabeças e não como se proviesse de um ponto fora do sistema solar, cruzando o espaço galáctico há mais de quinze anos-luz. Assim, com base nos exames desses mesmos sons, entendemos que a melhor resposta será dada com a devolução de sons idênticos, na mesma faixa, com a mesma intensidade e espaçamento, iguais em tudo, como se nós fôssemos seus verdadeiros ecos.

O murmúrio aumentou e algumas vozes se altearam. Duval ergueu a mão e pediu mais um pouco de silencio, fazendo ver que depois os debates seriam iniciados.

— Não, eu entendo que não!O senhor ossudo e alto que se encontrava na primeira fila, com um

caderno de apontamentos sobre o joelho, levantou-se e sem cerimônia al-guma alcançou a mesa. Duas ou três outras vozes fizeram-se ouvir nos fundos e dos lados, e um começo de confusão esboçou-se.

François Duval permaneceu inalterado. Descruzou os braços, apoiou-se sobre os bordos da mesa e encarou Stanley como que pedindo providências, com certo ar resignado de quem já esperava a reação. O “ve-lho” fêz soar com veemência a campainha várias vezes: puxou o microfo-ne e, levantando-se, procurou conter a onda de discussões e perguntas que se aproximava com o fragor e ímpeto de ressaca.

— Senhores, por favor, senhores! Compreendo a agitação e a emo-tividade mas, por favor, contenham-se! Vamos proceder aos debates pela ordem. . .

Passando a responsabilidade e a sequência dos fatos ao professor, Duval sentou-se. A agitação arrefeceu, a figura ossuda e alta voltou ao seu lugar, quase puxada a força pelos vizinhos de fileira.

— Vejo que já estão bem a par do assunto, do que temos feito e tam-bém do que pretendemos fazer. Nossa opinião, mesmo não sendo a opinião unânime do grupo, é no sentido de que a mensagem a ser transmitida seja idêntica à recebida. Entre nós existem algumas divergências, mas essa é minha escolha pessoal e também a escolha da maioria. Peço agora aos senhores que tenham idéias próprias, diferentes das nossas, que se inscre-vam pela ordem aqui com meu auxiliar, o engenheiro Guglielmo Tancredi, a fim de manifestar suas opiniões, cotejándo-se as idéias da nossa equipe com as sugestões de interesse que possam surgir da colaboração geral.

Fêz uma pausa e sacou o lenço do bolso interno, enxugando o suor

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que brilhava sob a luz dos refletores. Largou o lenço sobre a papelada e formulou outro apelo:

— Peço-lhes que procedam com calma. A questão é relevantíssima. Por isso os senhores estão aqui, vindos de todas as partes do mundo, con-vocados para esta assembléia ecumênica que, democraticamente, (estamos na América!) escolherá o contexto ou antes, a fórmula da primeira mensa-gem a ser enviada àqueles que nos espreitam dos pâramos de Tule. Façam pois o favor, se possível até mesmo em fila, aqui na lista seus nomes e nacionalidades, um por um, até o último. Cada qual terá dez minutos para justificar seu ponto de vista, livre de apartes e depois, talvez em escrutínio ou por aclamação se chegarmos a um acordo, enviaremos ainda hoje, para os espaços inter-estelares, a mensagem inaugural do colóquio cósmico.

Mal acabou de sentar-se, observou a fila que se formava em direção ao italiano. No começo foram se levantando ordenadamente. Mas logo de-pois, se libertando da continência mantida a contra-gôsto, se formaram, no auditório grupos isolados que passaram a discutir à vontade o problema, alheios à presidência da mesa.

Tancredi teve então de arrancar-se aos seus rabiscos românticos. Com evidente má vontade, começou a anotar nomes e mais nomes, so-letrando sílabas, pedindo esclarecimentos de grafia, desculpando-se por equívocos, atrapalhado em meio a escandinavos e orientais, balcânicos e repórteres que queriam ler as inscrições e fazer funcionar suas câmeras.

Enquanto a lista crescia, a agitação aumentava naquele auditório que ia aos poucos se tornando abafadiço.

Stanley consultou o relógio. Alongou o olhar além das vidraças am-plas que tinha pelos lados e, demonstrando satisfação, inteirou-se de que a nevada passara. Lembrou-se da limpeza das antenas que prosseguia e, sempre sem comentar nada, esfregou as mãos agitado, acreditando no êxi-to da empreitada. Hans e Duval conversavam em voz baixa. Arturo confe-ria anotações e efetuava ajustes nos aparelhos acústicos ligados ao radio-telescopio. Smith, de fones nos ouvidos, em seu posto, quase ao centro da sala, era um ausente. Apenas conferia e reconferia as últimas gravações, esperando o momento em que a limpeza do gelo terminasse para pôr-se à escuta dos sons provindos da constelação da Baleia. Quase todos os ou-tros membros do grupo misturavam-se com os convidados, esquecidos de sua participação no conclave, evidenciando-se inequívoca preferência por posições junto à loira esbelta que representava certa revista da costa do

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Pacífico.Guglielmo melhorava de ânimo. Quebrara duas pontas de lápis e

sentia-se melhor fazendo a pena da caneta de Stanley correr sobre o papel coberto de nomes.

Um quarto de hora depois todos retornaram aos respectivos lugares. A fila não mais existia e o italiano contava os inscritos sem demonstrar entusiasmo. O silêncio foi retornando ao ambiente e de novo se sentiu a expectativa quando a lista foi ter às mãos do “velho”.

Antes que o professor procedesse à chamada, o homem levantou-se na primeira fila. Era o mesmo indivíduo magro e ossudo, de feições áspe-ras e agressivas, com certo ar categórico e intolerante, de punhos cerrados e olhos pequenos e irrequietos, que antes iniciara os debates.

— Senhor professor, com permissão de toda a equipe, mesmo re-conhecendo o fantástico de vosso sucesso, peço licença para discordar da forma pela qual pretendem enviam a mensagem.

Parou e voltou-se para os lados, como se estivesse surpreso por não notar nenhum protesto ante suas palavras iniciais. Afrouxou um pouco sua atitude contundente e prosseguiu, com a convicção de quem procura con-vencer um júri:

— A devolução do mesmo sinal, muito ao contrário do que os se-nhores julgam, resultaria numa tremenda confusão. Já refletiram no que os habitantes de Tule iriam pensar? Não chegariam a conclusão alguma. Tomariam tais sinais apenas como um reflexo, talvez um éco, a devolução dos seus próprios sinais, assim como se tivessem obtido o resultado de um radar interplanetário ... — Não logrou concluir suas palavras. Novo murmúrio espalhou-se pela sala e de novo Stanley fêz soar a campainha. — Sim, professor Stanley — continuou o homem, dirigindo-se diretamen-te ao professor: — Ainda que eles recebessem os sinais de volta, não che-gariam à conclusão alguma, perdendo-se assim o longo período inicial de mais de quinze anos-luz. Já pensaram nisso? Não seria um grande atrazo num processo tão dispendioso?

— Certo — cortou inesperadamente Guglielmo, surpreendendo os colegas pela sua intromissão, quebrando sua proverbial apatia. — Certo, mas logo depois dessa série idêntica de sons, depois de novas escutas, lançaríamos então sinais do mesmo tipo mas diferentes em seus interva-los. Então — continuou o engenheiro com pressa, sem dar tempo para que outros argumentos análogos fossem lançados — pelo exame dessas

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diferenças, eles, os habitantes de Tule, chegariam ao primeiro resultado. Alguém, em alguma parte, havia recebido os sinais, devolvendo-os como confirmação e, em seguida, alterados os espaçamentos, demonstrava a in-tenção da correspondência.

John Stanley trocou olhares com Duval, também surpreendido com a entrada inesperada do engenheiro. Dir-se-ia que queria acabar logo com todos os argumentos contrários para libertar-se de tudo. Que coisa, pensou Duval, chocado com aquela atitude. Como concordara tão depressa com aquele tipo de mensagem? Não era êle quem vinha propugnando o envio de mensagens de fraternidade, de amor? Só o que êle não dizia, era em que idioma ou em que código a mensagem inaugural devia ser expedida.

Antes que sua vêz tivesse chegado, o indivíduo vermelho, de ros-to marcado por inúmeras cicatrizes que se imprimiam em sua face como minúsculas curvas de nivel num mapa de escalas avantajadas, saltou do assento e demandou o centro da sala com uma das mãos ligeiramente le-vantada, como se sustentasse um objeto pesado e invisível.

— Desculpem, senhores, — cortou a resposta imprevista de Gu-glielmo, como se trouxesse a solução conciliadora. Foi tal seu ímpeto que o primeiro orador e Stanley ficaram inibidos, sem reação. — Desculpem — seu inglês era arrastado, claudicante, difícil, com tom gutural dos es-lavos — eu tenho a chave conciliatória, partindo do mesmo sistema de sinais.

Os componentes da mesa trocaram olhares apreensivos e o italia-no correu a lista, a fim de identificar a curiosa criatura. Escreveu o nome numa ponta de papel e passou-o a Stanley. O “velho” abaixou os olhos e tentou prender a atenção ao que o homem dizia.

— Basta que sejam devolvidos os mesmos sons, mas na ordem in-versa. Primeiro os sinais ligados, aumentando o espaçamento de forma gradativa, uma réplica exata, mas ao contrário.

Antes de terminar, o primeiro inscrito, cuja palavra fora tão grossei-ramente cortada, reagiu, agressivo:

— Então? Isso dá na mesma! Grande idéia a sua! O resultado seria idêntico ao da minha sugestão. Além do mais, o senhor não esperou que eu terminasse. . .

A agitação de novo ganhou terreno. Palavras incompreensíveis em várias linguas fizeram-se ouvir e um murmúrio geral espalhou-se, impe-dindo o reinício dos debates.

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John Stanley fêz soar várias vezes a campainha. Resmungou algu-ma coisa baixo aos auxiliares mais próximos e pôs-se em pé, elevando ao máximo a voz:

— Não é possível! Assim não é possível, meus colegas! Dirijo-lhes um apelo veemente: pela ordem, pela ordem! Estudemos separadamente os argumentos, um de cada vêz, ou então, não chegaremos a nenhum re-sultado.

O indivíduo magro e anguloso tentou uma saída. Fitou o segundo inscrito sem incomodar-se com a intervenção pacificadora de Stanley e destacou bem suas palavras:

— O senhor me permite? Acentuo que fui aparteado antes de ter-minar. Talvez não tenha sido uma grosseria, mas, perdão, o senhor não esperou que eu completasse a minha exposição.

O primeiro inscrito, que já voltava para seu lugar, pouco também ligou à intervenção do professor. Examinou cuidadosamente seu opositor, estalou os dedos num gesto decidido e retrucou com alguma ironia:

— Então? Prossiga, o senhor não me interrompeu? — Voltou para a assembléia aturdida que rumorejava indócil, fêz um gesto largo e displi-cente, completando a idéia: — Veja, todo o auditório é seu. Vamos, mostre-lhes como deve ser.

Stanley ia de novo intervir, mas foi contido por Guglielmo Tancre-di:

— Deixe, professor. Isto está ficando interessante. Não interrompa, deixe que eles se degladiem. Esperemos, vamos ver no que vai dar.

— Então? — Continuou o homem ossudo e de feições ásperas. — Sugiro que os sinais sejam devolvidos na ordem inversa. — Fixou com rancor o primeiro inscrito e retirou-se sem encarar o auditório.

Antes que o italiano convocasse o terceiro inscrito, dois convidados se aproximaram da mesa e ridiculamente se puseram a trocar cortesias junto à passagem exígua ao fim da linha de poltronas.

— Senhor professor, e porque sinais? Porque sons que não dizem nada? Esse sistema é primário, elementar e porque não dizer bárbaro? Permitam-me a observação. Somos porventura selvagens ou canibais para manifestarmos nossos pensamentos por meio de recursos acústicos? Bela demonstração daríamos a essa outra humanidade! Se mandamos sons, por-que não vozes? Porque não palavras? Sim, meus senhores, palavras! Não importa que eles não nos entendam. Eles também não entenderão os sons.

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Palavras, em todas as linguas, em todos os idiomas, palavras de saudação, de paz, palavras que levem até esse sistema remoto a nossa intenção de comunicabilidade!

O homem que o acompanhava bem próximo e lhe disputara a passa-gem, não se conteve e interveio dando-lhe razão:

— É também como entendo. Vozes, vozes humanas, vozes irradia-das do nosso mundo em direção ao outro. Não importa que não nos enten-dam. Na hipótese de receberem a transmissão, saberão que aqui existem seres humanos, racionais!

Outro participante interferiu, provocando risos e mais barulho ain-da:

— Que é ser humano?— Vozes, vozes humanas? Como saberão que somos humanos? Não

seria melhor mandarmos latidos de cães, urros de animais selvagens?— Não! Palavras não ! Apenas sinais — voltou o primeiro dos ins-

critos.O tumulto generalizou-sc. O que era apenas murmúrio transformou-

se em discussão. Grupos se formaram. Os mais exaltados levantavam-se e acercavam-se ameaçadoramente de seus oponentes. Não se respeitava mais a presidência e os argumentos, em muitas línguas, formavam uma zoada que prenunciava o mais completo descontrole.

Stanley levantou-se, decidido a por fim ao tumulto. Soou violenta-mente a campainha e pediu aos auxiliares que separassem os mais exalta-dos. Bradou pedindo silêncio e só vários minutos depois, quando passou a ouvir a própria voz, deixou-se cair sobre a cadeira, como se tivesse atingi-do o limite de suas forças. Esfregou o lenço enorme pela testa e pelo rosto com a mesma insistência de quem desfralda um pavilhão de paz, e sorveu o conteúdo do copo provocando movimentos grotescos de sua garganta. Sentiu que não poderia falar. Olhou para Duval que, como antes, atendeu ao apelo:

— Senhores, é lamentável. Assim jamais poderemos chegar a um acordo. Caso soubéssemos que reagiriam dessa maneira, nunca teríamos convocado esta reunião. Teríamos resolvido por nós mesmos, sem dar esta oportunidade aos homens de ciência do mundo.

Voltou-se para o “velho” que ainda se agitava no meio do lenço e ouviu mais um resmungo do que uma voz:

— Humanidade, homens de ciência, bah.. .!

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— Peço-lhes, mais uma vêz que tenham calma, que analisem com ordem e com lógica os argumentos. A inscrição, a ordem, deve ser atendi-da, foi feita para isso. — Virou-se para o engenheiro italiano que mais uma vêz, alheio a tudo, traçava rabiscos, e perguntou: — Quem é o quarto? o quarto inscrito?

Guglielmo agitou-se como se emergisse de um transe.— Ah! Sim, o outro inscrito! — Correu o dedo pela lista e anunciou

separando bem as sílabas, abusando da inesperada calmaria que baixara sobre a platéia: — Doutor Otto Strauber, de Munich.. .

Por muitas vezes o nome foi repetido em voz baixa pelo recinto e o murmúrio ligeiro que se formou era quase que uma reverência.

A figura que se levantou era bem diferente das demais. Baixo, pato-logicamente baixo, com uma cabeleira sedosa, parecia um anão histriónico de contos de fada num espetáculo teatral, com um par de olhos azuis que, em contraste, transmitiam a mais completa das serenidades. Em passos ágeis e macios, lembrando a mobilidade de um felino, o homem acercou-se da mesa. Aprumou-se, fêz uma ligeira mesura voltando para os especta-dores, dando a idéia de um regente antes de vibrar os golpes iniciais da ba-tuta. Sua figura calma incentivou o silêncio. E tal gravidade havia agora no auditório, que se diria que em vêz de palavras eram aguardados os acordes inaugurais de uma sinfonia, regida pelo eminente mestre, pelo professor de fama mundial, cuja presença, misteriosamente ainda não fora notada.

O próprio Stanley pasmou. Não entendia, de onde saíra o homem? Como não o vira no aeroporto e no bar? É sempre assim, a grandeza do sábio. O incomensurável da genialidade, do homem superior, fugindo das luzes da popularidade, buscando as sombras do anonimato.

— Música, meus amigos, música! Sim, colegas, sons, mas não sons amorfos, estalos ou pancadas, percussões primitivas de entes em estágios rasteiros de evolução. Música, sons esparramados pelo cosmos, flutuando além da nossa espiral! Sons ordenados, harmônicos, melodias, notas que sejam os arautos de nossa humanidade!

Depois desse prelúdio se lançou ao primeiro movimento:— De todas as linguagens qual será a mais universal? Qual a mais

completa, cujo entendimento independe de graus de cultura, de escalas de civilização, de aperfeiçoamento intelectual? Música, meus senhores, sons ordenados que farão sentir aos nossos companheiros cósmicos que atingimos certo grau evolutivo superior a pancadas, percussões, o que cer-

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tamente será um inusitado cartão de visitas.— Já consideramos essa idéia — interrompeu Stanley, levantando-

se, ainda com o lenço na mão, e acercando-se do sábio de Munich. — Isso seria possível com insignificantes alterações nos transmissores, talvez com o auxílio de um interferômetro. As interferências seriam maiores, poderia haver forte distorção, barreiras de estática, oposição de distúrbios de rá-dio-estrêlas, mas tenho convicção de que mesmo notas musicais poderiam atingir as imediações de Tau.

— E porque não? — reafirmou Otto Straubcr voltando-se para os ouvintes. — Pela música eles poderão ter certeza de que estarão recebendo alguma coisa que não será produto de radiações desconhecidas. Poderão ter a segurança de que estão sendo solicitados por outros seres racionais e não perturbados apenas por ruídos siderais equívocos.

François Duval também se levantou. Esperou que Strauber termi-nasse e aduziu algumas considerações:

— Foi essa minha primeira idéia, com a qual não concordou a maio-ria. Simples sinais telegráficos, conquanto sem significado algum, pode-riam atingir Tule e seu sistema. Mas sons ordenados, música, na opinião de nossos especialistas, jamais chegariam com a pureza inicial.

— Certo, certíssimo — atalhou novo personagem na terceira fila, com enorme charuto entre os dedos, aprestando-se para o debate. — Músi-ca jamais chegará ao termo, tecnicamente será impossível. ..

Antes que o “velho” interferisse, o borborinho começou mais uma vêz a invadir o recinto. Do fundo, sem que se identificasse o participante, uma voz se elevou veemente:

— E porque não? No que o senhor se baseia para assegurar que no-tas musicais não atingirão aquele limite?

— Tentemos a música! Não é ela uma das manifestações visceral-mente humanas? — aduziu Strauber, apoiando-se nos bordos da mesa e pondo-se na ponta dos pés.

— Mas, que música mandaríamos? — interveio Herbert, que até então se mantivera calado.

Foi Duval quem respondeu diretamente ao colega, abstraindo-se do vozerio que ganhava intensidade:

— Qualquer música! Eu, pessoalmente, já sugeri ao professor músi-ca sinfônica, um hino, ou então uma frase curta, com pequenas variações.

Otto Strauber voltou-se para o francês e perorou em tom categóri-

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co:— E porque não a música de um gênio? A música de um ser superior

que traduz um dos pontos máximos da perfectibilidade humana? Porque não a música de Johann Sebastian Bach?

O murmúrio ganhou a consistência de uma avalanche, bola de neve a rolar pelo despenhadeiro. Apartes incompreensíveis em línguas nórdi-cas, vocativos em idiomas latinos, interjeições em linguagem saxónica. Réplicas mais exaltadas como consequência dos aperitivos e mesmo al-guns assobios irreverentes circularam pela sala. John Stanley tateou pela campainha. Guglielmo abriu os dedos e soltou o lápis. Duval cerrou ligei-ramente os olhos e tentou classificar o monstro. Só o italiano teve ânimo para falar:

— Isso não! A música deve ser leve, lírica, suave, como que uma mensagem de amor, de fraternidade interplanetária, para além dos dissí-dios terrestres. . .

François Duval deteve-se sobre o peninsular. Da indiferença saira para a ação. Dos rabiscos apaixonados encaminhara-se para os debates. Estava sentimentalmente obumbrado. Não se dava conta da opinião ante-rior ao inclinar-se para os sons idênticos aos recebidos. Em mudança fran-ca de atitude, talvez empolgado pelas palavras de Strauber, logo à idéia, publicamente, favorável agora ao que sugerira em contrário.

Duval largou o microfone que apertava inconscientemente e obser-vou o amigo, ao lado de Strauber, com o qual formava contraste gritante. E que música queria êle? Música lírica, música que falasse de sentimentos, de amor. Em seu íntimo o ex-seminarista sorriu. Não o amor pela huma-nidade, não certo tipo de amor a ser inaugurado em relação aos habitantes de outros mundos, mas só o amor de Fiamma, da jovem já conhecida de nome por todos os cientistas (não fosse o italiano um extrovertido), e que certamente deveria ser côr-de-rosa e rechonchuda como os anjos do beato Angélico.

— Que tem o senhor contra Bach? Não representa êle porventura o pináculo da nossa raça? O ponto mais alto da inspiração musical e de espiritualidade?

A vaga de murmúrios encapelou-se ante a frase do decano de Mu-nich. Novos apartes em francês, inglês, russo e romaico. Rangidos de ca-deiras, formação de grupos ao fundo, onde jornalistas gesticulavam, es-quecidos de suas máquinas.

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— Sim! — ponderou em tom sarcástico o participante da primeira fila, por trás dos óculos espessos que revelavam globos oculares de batrá-quio. — Representativo apenas de sua raça. Trata-se da sua opinião pes-soal. E o resto da humanidade? Não haverá um pouco de orgulho em sua afirmativa? — E em tora ainda mais agressivo: — Serão vocês os donos do mundo?

Novas vozes se elevaram, com inflexões acentuadas, num inglês claudicante:

— Jamais esse tipo de música! É preciso escolher manifestação mais universal. Tchaikowsky é o indicado. . .

— E porque não Beethoven? Eu aconselho a Quinta Sinfonia!— Tem que ser alguma coisa de solene, de grave, de transcendental,

assim como Sibelius, talvez sua Finlândia — aduziu o jovem espigado e loiro como um viking.

— Nada disso! Apenas prefixos musicais, variações em torno de um tema único. Assim as interferências serão compensadas.

— Nada de Bach, nada de autores russos! Nosso hino nacional! Que diabo! Não fomos nós que descobrimos a coisa? -— guelou o jornalista, largando a camera e elevando os braços, tocado de súbito patriotismo, ao mesmo tempo que ganhava coragem e apertava o braço da ruiva do sema-nário de Los Angeles.

— Certo, êle tem razão! Porque não o Yankee-Doodle ou mesmo Dixie?

— Porque vosso hino nacional? Consideram-se vocês a humanidade inteira?

— A Marselhesa, a Marselhesa! — sugeriu um locutor de rádio, esquecido de suas atividades, e avançando para a mesa, fazendo com que os fios de seu aparelho se enroscassem nas pernas do senhor balofo que gesticulava com um grego.

John Stanley ficou aturdido em meio à batalha. Eram todos franco-atiradores, sem posições definidas. Fazia soar a campainha insistentemen-te, mas seu apelo se diluía na confusão geral como o som de clarim abafa-do pelo estrépido de urna pugna medieval. Largou o lenço sobre a mesa. Apertou rispidamente a pasta das anotações que estava à sua frente e pro-curou medir as atitudes dos companheiros, tentando uma saida honrosa em meio àquela lamentável confusão. Guglielmo discutia com o senhor ossu-do junto às poltronas. Smith e Plans, antes ausentes dos acontecimentos,

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deixaram a mesa de recepção e argumentavam com jornalistas afobados que anotavam considerações em longas tiras de papel. O ex-seminarista, o mais tranquilo, apenas olhava evitando fixar-se em Stanley, ao passo que Arturo, junto a Otto Strauber, procurava acalmá-lo segurando-o pelo braço.

Stanley não mais se conteve. Respirou forte, apelou pela atitude ex-trema. Pegou o microfone, puxou-o para si e mais bradou do que falou, não impondo ordens ou tentando acalmar os ânimos exacerbados pelos vapores dos aperitivos, mas bradou para reiterar o seu ponto de vista já repelido nos primeiros debates.

— Eu insisto, senhores! insisto! Afinal, não se esqueçam de que eu sou o chefe da pesquisa. Que fui eu quem possibilitou o grande triunfo!

Fêz uma rápida interrupção e, como não notasse nenhum resultado, gritou mais alto, fazendo gestos para que o responsável pelo alto-falante elevasse o som ao máximo. Sua voz então se destacou, ganhou relevo, projetou-se em meio à confusão, impondo-se no ambiente fechado que reboou, abafando o tumulto e vibrando de forma desagradável em meio à turbulenta assistência.

— Peço silêncio! Exijo silêncio! Os senhores esquecem que sou o responsável pela vitória?! Esquecem que fui eu o autor do convite, para virem aqui debater sôb minhas ordens, e não para resolverem por si pró-prio?! Esquecem que não aceito imposições, que pedi apenas sugestões?!

À medida que o silêncio foi retomando a sala, o encarregado do som passou a reduzir o volume, até que a voz de Stanley pairou clara e nítida, apenas perturbada pelo leve murmúrio contrafeito que vinha dos fundos, do lado da janela maior, onde estavam dois ou três orientais.

— Entendo que a mensagem deve ser idêntica, entendem? Eu dis-se idêntica! Acho que essa é a maneira mais segura de obtermos êxito, demonstrando àqueles seres que uma outra humanidade lhes captou os apelos.

François Duval olhava. Media John Stanley de alto a baixo e de-compunha o sentido de suas palavras. Quem ali gritava, gesticulava, pre-tendendo impor de forma estranha sua opinião, não era um cientista frio e analítico, senhor de uma vontade objetiva que visasse apenas o bom termo de seus designios. Quem ali bradava, revoltado, era um imaturo, o anti-cientista que às vezes discernia no chefe das operações, mais assoberbados em fazer valer a sua própria vontade, talvez imposta pelo orgulho ou por

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certo tipo de egoísmo, preocupado com o uso da primeira pessoa, e que se esquecia da existência da equipe. Quem ali estava se debatendo contra a vontade coletiva, tentando sufocá-la, dominá-la, moldá-la a seu bel-prazer, era um menino infeliz e complexado que no fundo queria mostrar aos ha-bitantes da cidadezinha esquecida e à meia dúzia de pessoas mais íntimas que triunfara, que vencera, e que nessa posição privilegiada tudo podia e de tudo dispunha, nada mais sendo o grupo senão um mísero pedestal a elevá-lo, apenas um degrau para a sua ascensão, e que nessa qualidade ficaria junto aos seus pés, bem longe portanto de seu cérebro, isolado de sua genialidade.

Duval manteve o olhar fixo durante toda a alocução e tão profundos eram seus pensamentos que não mais ouvia o que o professor deblaterava. Só uma voz diferente conseguiu arrancá-lo de suas cogitações:

— Se fosse assim nós não deveríamos ter sido chamados! Se sua decisão é essa, de que adiantam os debates?

Outra voz completou a primeira, mais uma vêz conturbando os es-pectadores:

— A resposta não é da humanidade? O senhor então é quem decide por ela? Onde está a procuração?

Com o alto-falante agora mais moderado, novo tumulto incoercível alastrou-se. Otto Strauber acercou-se mais uma vez da mesa. Tancredi re-começou a argumentar, apontando com o dedo, como se fosse uma arma, em direção a Stanley, e pronunciando frases que Duval não compreendeu. Desalentado, Smith retornou ao seu posto, enquanto Hans se misturava com o auditório procurando defender o ponto de vista do chefe. Arturo chegou a apoiar-se com o pé num dos assentos e, de costas para a mesa, devolvia considerações ao grupo de jornalistas que tentava aproximar-se do lugar onde estava o indivíduo ossudo. As opiniões se sucediam como impactos, relevando os mais absurdos pontos de vista:

— Deve mesmo ser música, mas não a música dos povos germâni-cos. . .

— Silêncio, silêncio! Devemos transmitir orações, preces! Devemos lançar aos espaços mensagens espirituais que demonstrem a nossa fé!

— Música, sim, música! Não hinos nacionais ou frases. Musica de grande elevação e não profana. Eu sugiro composições de Giovani Batista Pergolesi!

— E porque não Wagner?

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— Insisto, exijo! Apenas os mesmos sons, sons idênticos, percuti-dos!

— Apenas mensagens de fraternidade, de amor, de amor, meus se-nhores!

O ex-seminarista afundara-sc na poltrona. Era como um estranho naquele ambiente tempestuoso. John Stanley firmava-se no seu eu, agarra-va-se à sua teoria. Guglielmo Tancredi sugeria a mensagem de fraternida-de, de amor. Otto Strauber queria a música representativa do gênio de sua raça. Outro queria o hino de sua pátria, outro ainda lembrava notas musi-cais. Duval apoiou o cotovelo sobre a mesa e repousou o queixo protube-rante nas mãos. Afinal compreendera. O que ali se examinava, o que ali se debatia, não era uma mensagem universal, produto de certa humanidade endereçado a outra, num fabuloso diálogo de mundos. O que se pretendia eram colóquios individuais, particulares, onde se sobrepunha a ínfima e miserável condição do terrestre. Ouvia muitas línguas. Exclamações em francês, adjetivos em alemão, conclusões em inglês, advérbios em italiano, gerúndios em espanhol. Inclinou-se mais sobre a mesa e desviou o olhar para as janelas, embaciadas pela atmosfera interna, recendendo a fumo e álcool, como se o condicionador estivesse desligado. Abstraiu-se do am-biente e sentiu uma leve penumbra pender sobre a turba que ainda discu-tia. Eram agora apenas sombras, eram apenas crianças, meninos que se curvavam sobre carteiras na sala de aulas úmida e cheirando a bolor, com certo perfume antigo. Sim, lá estava o gordo abade Carcot, em sua cátedra que era mais um púlpito. Mesmo na obscuridade podia ver-lhe as feições vincadas, os lábios grossos e salientes com laivos de lubricidade, os olhos perturbados que, como certas estampas, seguiam cada um dos pupilos por todos os cantos da sala como se só êle estivesse debaixo da mira do mes-tre, como se fosse o único aluno, como se somente para êle se dirigisse a lição bíblica. Ah! bem se lembrava agora. Sim, várias línguas, como era mesmo? Duval dobrou-se mais e apertou as pálpebras. Sabia ainda de cor a passagem do Gênesis: “Vinde, façamos para nós uma cidade e uma torre, cujo cimo chegue até o céu; e tornemos célebre o nosso nome, antes que nos espalhemos pela terra inteira. Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificavam. E disse: Eis que o povo é um, e todos têm uma mesma lingua; e isto é o que começam a fazer: e ago-ra, não haverá restrição para tudo o que eles intentarem fazer”. Sim — pen-sou o ex-seminarista — a torre de Babel! Agora entendia. Entendia John

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Stanley, entendia Guglielmo, Smith, Arturo, Sírauber, Herbert, entendia os jornalistas e o indivíduo ossudo. Entendia tôda aquela assembléia e não os culpava. A mensagem, o radiotelescopio sobre a montanha decepada era como uma nova torre na geira de Shinar, pois deveria perfurar os arcanos do céu levando pelo menos um nome.

John Stanley sacudiu-o fortemente. Duval sentiu um sobressalto e as trevas se dissiparam, vendo-se o francês rodeado pela assistência em-polgada.

— Duval, Duval, escute, peça silêncio. Ê!es acabaram de limpar o radiotelescopio. Retiraram toda a neve inclusive na parte superior. Vamos, ajude-me, faça alguma coisa. Agora tudo vai. mudar, eles poderão ouvir os sinais diretamente, o que impressionará muito mais do que as gravações.

François voltou-se e constatou a presença dos auxiliares que haviam trazido a notícia. Puxou para si o microfone. Pediu o volume máximo e conseguiu impor silêncio, numa vitória derradeira, quando tudo já parecia perdido:

— Senhores, acabo de saber que a antena está completamente livre. Que toda a neve foi retirada. Poderemos assim ouvir diretamente os sinais enviados de Tule.

Ao pronunciar o nome do planeta a calma caiu pesadamente sobre a platéia. O nome influenciou magicamente todos os ânimos e gerou um silêncio como só existira nos momentos iniciais da reunião.

François Duval fêz um gesto em direção a Smith, bem no meio do auditório, junto ao receptor, e esclareceu ao público agora paradoxalmente dócil e atento:

— O operador vai sintonizar a faixa de 1.400’ megaciclos. Às vezes demora, pode mesmo levar muito tempo. Mas, normalmente, as pancadas, as percussões não se fazem esperar.

Todos agora se concentravam na mesa repleta de fios, lâmpadas, comutadores e botões. Muitos olhos fixaram-se no alto-falante especial, que estava conectado com o eixo da grande antena do radiotelescopio, que girava lentamente, procurando concentrar-se no ponto invisível do espaço onde se aninhava um sol distante, arrastando em seu fruir um colar esplen-dente de planetas.

O auditório esqueceu os debates. Esqueceu da presença de Stanley e seus auxiliares e só via a retícula metálica do alto-falante numa espera angustiada de quem aguardava não sons amorfos e vagos, mas de quem an-

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seia por vozes absurdas, impressionantes, a sugerirem monstros e bestas-feras vociferando ameaças.

Nesse instante, em meio a esse terrível silêncio, o assistente de Stan-ley se colocou entre êle e Duval. Discretamente, depositou alguma coisa pequena sobre a mesa, entre os dois, e murmurou algo em voz baixa, teme-roso da revelação e da descoberta,

O professor, mais discretamente ainda, esquecido do auditório, abriu o lenço e levou a mão à boca, num gesto incontido:

— Não é possível! Isto foi encontrado lá em cima?— Sim, professor — respondeu o tímido auxiliar. — Fui eu mesmo

quem achou. Fiquei assombrado. Estava vivo, bem vivo, metido no ninho bem seguro nas dobras laterais do arco da antena. E no ninho estava tam-bém sua companheira morta, morta de frio.

François Duval ficou atônito. Olhou o pássaro e ouviu a explicação, acercando-se mais ainda de Stanley, procurando ocultar dos demais a des-concertante descoberta.

— É fantástico, é fantástico! exclamou mais alto Stanley. — Lá na-quelas alturas esse mísero Piculos aurulentus! Talvez a interferir era nos-sas recepções. . .

—- Sim, um mísero pica-pau, morto há pouco, regelado pela neve, habitante da altura extrema do nosso aparelho, — monologou Duval, per-dendo-se de novo em suas ausências. E tudo começara pelo outono. Há quanto tempo o pássaro estaria lá?

Sons, percussões, batidas, estalos, sinais fortes como se a fonte esti-vesse bem perto e não há quinze anos-luz. Subitamente, como se estivesse vivendo um episódio de pesadelo, François Duval considerou absurda a idéia da comunicação inter-estelar. Baixou os olhos e procurou ver o pás-saro ressequido nas mãos de Stanley, que agora o ocultava no lenço, que de bandeira se transformava em mortalha.

A mão grande, calosa, que isoladamente, como peça anatômica, po-deria ser tida como a garra de um lémur, por onde escorriam veias protube-rantes por selvas de pilosidades, aninhou grotescamente o frágil arcabouço da ave. Stanley sentiu as penas úmidas e, comprimindo mais os dedos, sentiu a estrutura óssea delicada vergar-se, vendo então uma pequena gôta rubi insinuar-se pelo bico longo como um conta-gôtas. Aquele frágil es-queleto que se arqueava sob as ligeiras contrações musculares de sua mão assumiu proporções inauditas em seu espírito, chocado pela descoberta.

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Não era um pássaro. Era um gigante de eras jurásicas. Mastodonte ou es-tegosáurio, cinodonte ou pterodátilo que desmantelava os alicerces do ra-diotelescopio, abalando com suas manifestações sonoras os fundamentos telúricos de Salt Pike.

Duval tentou dizer alguma coisa. Olhou Stanley e não teve coragem de falar ao ver o chefe da equipe com todos os músculos contraídos, ao mesmo tempo que cerrava as pálpebras como que temeroso de fitar o vór-tice de um abismo pelo qual seria sugado inexoravelmente.

Nesse instante John Stanley não dialogava com outros mundos, com outros planetas. Duval compreendeu que o “velho” não enviava mensa-gens à sua criação que era o universo de Tule. Dialogava, é certo, com outros mundos, mas não exteriores. Eram mundos interiores, subjetivos, e não poderia perturbá-lo nessa segunda busca. O professor estava atônito, perdido nos pélagos do seu inconsciente.

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Passagem para Júpiter

“Passage to more than India! O secret of the earth and sky!Of you O waters of the sea! O winding creeks and rivers! Of you O woods and fields! of you strong mountains of my landOf you O prairies! Of you gray rocks!O morning red! O clouds! O rain and snows!O day and night, passage to you!O sun and moon and all you stars! Sirius and Jupiter! Passage to you!”

Passage to India, Walt Whitman.

Naquele ano de 2222 o mundo muito tinha mudado. Até a esfera, o globo, que se supunha achatado nos poios e que depois da era dos satélites artificiais, por volta de 1960, se verificou ter o formato aproximado de uma pêra, como que então amadureceu, se dilatou um pouco no equador, como que satisfeito, meio obeso pela idade, ganhando uma forma original que lhe dava mais personalidade perante seus irmãos do sistema. Visto de longe, de Marte, de Júpiter ou mesmo de Plutão, por conjuntos óticos, parecia um fruto sazonado, destacando-se assim das demais esferas que gravitavam no cosmos.

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Em sua superfície tudo também havia se transformado pela ação in-cansável do homem. A lei do velho Malthus fora comprovada. Os desertos, com auxílio de fantásticos espelhos parabólicos mantidos em órbita, rece-beram torrentes diluvianas de massas gazosas perfuradas sobre suas super-fícies, transformando-se em terras férteis. Nas regiões árticas criaram-se ilhas tropicais engastadas na barreira de gelo, pelo emprego dos mesmos espelhos, e a luz solar, concentrada nos planos pristáticos desses fabulosos engenhos, era enviada para o ponto que se desejasse, destruindo geleiras, apressando colheitas, amadurando o trigo, secando paludes, retardando o inverno ou dilatando a primavera, produzindo folhas outonais ou anteci-pando a puberdade, segundo as determinações do Grande Conselho. Tudo mudara de aspecto. Muitos rios se desviaram dos seus cursos, as neves eternas irrigavam cidades, os oceanos abriam-se em milagres provocados e deixavam explorar suas entranhas, os continentes dilatavam-se e con-traiam-se. Mas, mesmo assim, com o aumento imprevisível da população, o homem teve de emigrar, pronunciando-se o Grande Êxodo.

As cidades também mudaram, principalmente após a Era Atômica, depois que a destruição foi em parte evitada. A esse tempo as cidades não eram mais organismos amorfos, de evolução imperfeita, ilógica e irracio-nal. Da mesma forma pela qual já se controlava a evolução dos vivos, também se ordenava a transformação das cidades, super-organismos tão reais como células. Vistas do alto, eram grandes pentágonos, octógonos, polígonos estereoscópicos de contornos bem definidos. Eram como imen-sos cristais de neve analisados ao microscópio, eriçadas de poliedros trans-lúcidos que apontavam os céus, como se fossem flechas góticas cintilando em brilhos policrômicos. Tais cidades representavam também o produto da evolução. Se Babilónia ou Nínive eram de argamassa, se Atenas e Roma eram de pedra, se Nova York e Chicago eram de aço, e se São Paulo fora de concreto, as metrópoles agora eram de cristais artificialmente criados, indestrutíveis, vencida assim a barreira do tempo, seu único inimigo. O aço, o concreto não haviam resistido às desintegrações atômicas e até hoje se podia ver um deserto poluído de radiações da foz do Hudson e do East River, espalhando-se por um raio de muitas centenas de milhas. Esse deserto provocado também existia junto ao lago Michigan e na bacia do Potomac, sendo também enormes as clareiras produzidas no estuário do Sena, na planície romena, na bacia de Moscova, acumulando-se detritos atômicos pelas margens do Sena. Mas agora, o novo material — o eterno

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tinton — era indestrutível, criado pela ciência e pela técnica do homem evoluído. Servia não só para os cones de foguetes, ogivas e revestimentos de naves interplanetárias, mas também se transformava em edifícios de trezentos andares, em pontes de quilômetros, em paredes de residências de campo, isoladas e tranquilas, representando assim, como afirmavam seus descobridores, o verdadeiro suporte da nova civilização.

Naquele ano de 2222 tudo mudara — formas de governo, métodos de administração, ideais políticos, meios de transporte, sistemas de produ-ção. A medicina atingira píncaros que levavam o ser humano às fronteiras da imortalidade, a telepatia alcançara limites insuspeitados.

E tudo surgira depois dos Anos Atômicos. Não se impedira a des-truição de muitas cidades, de milhões de criaturas. Mas, no momento final, quando a própria superfície do planeta parecia ameaçada, surgira a Luz do Oriente que impedira o fim. Então, como debaixo da contingência miste-riosa de um milagre, os povos líderes aceitaram a mediação o que possibi-litou por meio de instrumentos ainda na infância, a diluição da nuvem mor-tal. Permaneceram as ruínas do século XX, mais como uma advertência do que como obstáculo. Intocadas, em terreno inconspurcado, distantes não no tempo, mas no espírito, como fósseis da fase pré-cambriana.

Tudo havia mudado, acreditando-se que também o homem.

Ismael Boscowitzs era apenas um professor. Mas um professor numa era em que realmente havia professores. Como aparecera na cidade ninguém o sabia, não se sabendo também ao certo como obtivera o re-conhecido preparo que o levara a obter o primeiro lugar em concurso da Universidade, na cadeira de Hidráulica Solar. Sabia-se apenas que sua tese de concurso, com a qual superara muitos candidatos, inclusive alguns com estágios em Vênus e Marte, fora considerada obra clássica. Do aproveita-mento do Canal Xantus para a fertilização da Ansônia, na latitude de vinte e cinco graus do solo marciano. Cogitava-se então do aproveitamento do planeta vermelho para fins econômicos, e Boscovvitzs, com aquele traba-lho, além de conquistar a cátedra universitária, logrou interessar o governo nos planos, inscrevendo-se na concorrência que lhe valeu o prêmio, além do pagamento da viagem que nunca chegou a realizar. Seus adversários profissionais encontraram nessa atitude peremptória de não querer conhe-cer Marte o seu calcanhar de Aquiles.

Ismael Boscowitzs nunca saíra da Terra. Mesmo traçando esquemas

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de estruturas que seriam levantadas em Marte, desenhando pavilhões e complicados canais hidráulicos a serem rasgados nas vastidões estéreis da Eridania e de Electris, nunca o atraíra o grande salto. Não desejava pisar os lugares onde seus projetos seriam realizados. De fato, tecnicamente, isso era desnecessário. Conhecia-se tão bem a superfície daquele planeta que a identificação seria inútil. Por isso, mesmo depois de materializados os seus sonhos, Boscowitzs não se decidia a ir vê-los de perto. Quando foi inaugurado o Sistema Xantus, e a torrente dos degelos polares escorreram pelos intrincados estuários artificiais, baseados na ação inercial, sem em-prego de bombas de recalque, com seus vasos comunicantes de comportas espiraladas, o professor recebeu o convite oficial só outorgado às grandes figuras. A passagem custava uma soma astronômica e bem poucos pode-riam pagá-la. Mas nem assim êle aceitou. Alegava que sabia como tudo funcionava; que essa visão já lhe fora desvendada pelos seus cálculos e pelas tabelas marcianas; e que não poderia perder tempo no salto de muitos meses, concluindo com sua voz calma mas categórica que conhecia tão bem os desertos marcianos como a quadra do bairro em que vivia. Muitos não compreenderam a recusa e os inimigos espalhavam que êle não se incomodava com o tempo mas se aterrorizava ante o espaço.

Em verdade, não era bem assim. Ismael Boscowitzs acalentava um sonho mais remoto ainda com poucas possibilidades de realizá-lo. Um dia talvez o divulgasse mas, por enquanto, era apenas um desejo e como tal deveria ser apenas acalentado. Que lhe interessava o irmão gêmeo da Ter-ra? Lá nada mais havia de misterioso a ser desvendado, era apenas uma colônia dos homens não separada por mares mas por um espaço facilmente transposto em vôos rotineiros. Seu interesse ia mais longe, pois seus pro-jetos secretos, suas construções fantásticas, eram para planetas de massas maiores, onde o tinton poderia operar maravilhas. E em hidráulica então? Quando conversava com os mais chegados costumava gabar-se de que com seus cálculos e seus planos poderia secar Vénus num quarto de século e apagar o fogo de Mercúrio em menos de um ano.

Que lhe interessava, pois, Marte? Declinava assim das passagens e das honrarias e recebia o equivalente em dinheiro, acumulando somas fantásticas que raramente um homem, mesmo só, sem família, conseguiria amealhar sem a contribuição coletiva.

Um ligeiro reparo: Ismael Boscowitzs era só. Quando chegara do outro continente, atraído pelo concurso universitário, e passara a residir

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no centésimo nono andar, na quadra quinhentos e dois, de Telúria, daque-le magnífico monumento à Idade do Tinton, seus vizinhos pensaram que sua família viria depois, já que as acomodações eram problemáticas, de-pendendo a concessão das disponibilidades do Comitê de Alojamento, do mesmo organismo que encaminhava os pedidos para os estabelecimentos lunares e extra-terrenos. Mas depois, vencido o concurso, entrando sua vida na rotina bem conhecida de todos, compreenderam que o homem vi-via só o que lhe valeu grande prestígio, pois não se sabia como um único indivíduo pudesse ter obtido licença para residir num apartamento de qua-tro cômodos, que normalmente seria ocupado pelo menos por oito pessoas. Se conseguira isso, fora, com certeza, porque era influente, ligado aos po-derosos do Comitê, ou então porque, como engenheiro, sua permanência na Terra era rápida, indo como os outros internar-se em estágios sucessivos nos planetas de emigração.

No andar em que residia moravam mais três famílias, todas alojadas em apartamentos menores, atulhados de crianças barulhentas nos fins de semana, quando deixavam em massa as escolas para as visitas semanais. Como gostasse de garotos, aos domingos seus cômodos se enchiam de meninos, de todas as idades, em vários estágios educacionais, que briga-vam com meninas sardentas, queriam ouvir estórias de vôos espaciais, e ficavam boquiabertos diante das pranchas de desenhos do professor. E êle não se fazia de rogado. Mostrava-lhes planos e maquetes, tornando-se as-sim o seu apartamento um verdadeiro oásis para aquelas crianças amonto-adas em cômodos exíguos. E com as crianças, a amizade dos pais. Logo, duas ou três semanas, depois que Boscowitzs chegara, quando as crianças descobriram o oásis, os pais também foram se insinuando. Primeiro uma ligeira cortezia à distância, um cumprimento afável, a seguir, uma troca de palavras cerimoniosas, um convite protocolar. Depois, como era inte-ressante tornar-se amigo de um cidadão assim ilustre, sábio e de tamanho prestígio, amiudaram-se visitas no começo rápidas e depois amizades que Ismael considerava cansativas mas que suportava não só por delicadeza mas sobretudo pela falta que lhe faziam as crianças. Conheceu o técnico em nucleônica, o especialista em cibernética, a velhinha estudiosa de idio-mas antigos, o jovem acidentado numa das primeiras expedições a Marte, e o telepata, através do qual conheceu Irena. Mas, embora amigo de todos, fiel ao seu temperamento introvertido pouco dava de si e, em compensa-ção, nada demandava dos outros. Só com Irena foi direfente e só por ela

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suportava as investigações veladas que os parentes da moça faziam a res-peito de seu passado. É certo que nunca chegaram a uma pergunta direta, incisiva, que aclarasse pontos capitais, mas sempre vinham com interro-gações dissimuladas, quando então Irena, lhe notando o desapontamento, levava-o pelo braço para outra sala ou então, delicadamente, mudava de assunto já conhecedora de suas intolerâncias.

A curiosidade dos vizinhos poderia reduzir-se a três ou quatro fatos capitais, indo talvez a família de Irena a uma meia dúzia de indagações. Se ao telepata e à moça poderia assistir esse direito, tal já não acontecia com os demais, cuja curiosidade se avivava pelas manobras de Boscowitzs que sempre saía com sua vida incólume dos assédios. De onde viera? Porque não tinha família? Teria sido casado? Como se explicava tanto prestígio junto ao Comitê? E, sobretudo, o que mais perturbava não só os vizinhos mas também os parentes de Irena: que fazia Boscowitzs da soma enorme que recebia do governo? Irena, a única que realmente procurava entender o professor, vendo nas suas relações mais do que uma simples amizade, nunca se preocupara com tais questões e conservava apenas uma dúvida que ocultara desde os primeiros dias do seu conhecimento: que sentiria o professor por ela? Talvez nem êle mesmo soubesse e se soubesse, não era de seu feitio extravasar-se em manifestações líricas tão ao agrado das mu-lheres, mesmo naquele ano de 2.222, quando o sentimento que no milênio anterior se denominava amor fora substituido por uma expressão mais exa-ta, ou seja a afinidade, não só sexual mas também intelectual — a chave que presidia a toda união, depois dos exames coercitivamente impostos, de acordo com os indeclináveis interesses coletivos.

Irena, — marciana de origem, quatro anos mais jovem que Bosco-witzs, filha dos primeiros colonizadores de Marte, — regressara à Terra depois da morte dos pais e vivia agora com seu único irmão, bem mais velho, que tinha alto posto de telepata da Comissão do Bem-estar Psí-quico. Tinham se conhecido na Universidade, numa das conferências de Boscowitzs sobre diques venusianos. Apresentados pelo telepata, depois das primeiras conversas, e dos encontros iniciais, não se fizera necessário o emprego de sensíveis instrumentos para chegarem à conclusão de que pos-suíam afinidades. Era um bom começo. As mais perfeitas uniões nasciam assim. O sexo vinha depois. Saiam juntos, conversavam longamente de-pois das aulas, frequentavam espetáculos públicos, assistiam a projeções e ao cabo de menos de um ano os vizinhos passaram a esperar a notícia do

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requerimento dos exames de comprovação de afinidades, prenunciadores da união. Mas, com desapontamento geral, nenhum exame se requeria e a amizade continuava tranquila como sempre, sem que jamais Bosco-witzs pensasse de outra forma. Tal não acontecia com Irena. Reconhecia as afinidades de ambos, sentia aquilo que se chamava amor no milênio pas-sado, e de bom grado se entregaria ao professor, sem a licença necessária, sujeitando-se às penalidades impostas pelo Regulamento.

Ismael Boscowitzs vivia dentro de seu mundo, embalado pelo so-nho. A marciana Irena era apenas uma amiga, uma boa companheira com a qual gostava de sair e com quem trocava idéias, abrindo-se um pouco, dando-lhe parcela do seu íntimo. A ela, só a ela diretamente e aos seus alunos, incidentalmente revelava esse sonho, em função do qual acreditava viver. Irena era a confidente. Mudava de expressão, apertava bem os olhos rasgados que lhe davam o aspecto de mulher de raça pura, como as da úl-tima geração marciana, e compreendia seu equívoco. Não havia afinidade alguma que resultasse na união de ambos. Seus parentes estavam engana-dos. Boscowitzs queria apenas a camarada. Alheiava-se então às palavras do professor, aconchegava-se melhor na poltrona e deixava-se levar não pelo sentido mas pelo som da voz dele, transformando-se em aluna. Mas que lhe importava? Ela o amava e só isso a fazia feliz, numa unilaterali-dade inconciente e que se comprazia em aceitá-lo como mestre e amigo que também se alegra com a audiência de seus problemas e participação de seus sonhos.

Na sala de aulas, no meio da multidão de alunos estáticos, em prele-ções sobre a resistência de materiais interplanetários, preconizando a Ida-de do Tinton, não raro se descobria e desnudava seu objetivo:

— Meus amigos, Marte não é mais um deserto esperimental. É uma filial ultracivilizada da Terra. Seu solo, seus recursos minerais, seus recur-sos hidráulicos, tudo é muito pobre e não possibilita um plano mais arro-jado. Nem mesmo o Tinton, o material índice de nossa era, encontra lá um emprego vantajoso. Marte tem massa menor do que a Terra, sua atmosfera é rarefeita, nos canais, nos diques, nas construções, nem mesmo have-ria necessidade do uso do tinton. Ah! Nos planetas maiores, nos gigantes do nosso sistema é que tal material operararia maravilhas! Em Júpiter, esse gigante que poderia vir a ser o centro do nosso sistema caso o Sol se desintegrasse, faríamos coisas inconcebíveis! Construções de milhares de andares! Irradiações térmicas da grande mancha vermelha para as calotas

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polares, em processos inversos aos marcianos! Estabeleceríamos platafor-mas monstruosas para deslocamentos cósmicos além da galáxia, abusando da força de atração desse verdadeiro gigante. Marte, que é Marte? Uma poeira vermelha infestada de homens que já nem sabem mais o que fazer em seu solo.

Aí então o aluno saliente lançou a pergunta:— Professor, o senhor já foi a Marte?Na resposta, Boscowitzs esquecia-se de tudo, inclusive de sua po-

sição de mestre:— Eu, ir a Marte? Fazer o quê? Para quê? — Elevava mais a voz

e declamava como se sentisse insultado: — então vocês não sabem o que eu fiz para esse planeta? Restaurei-lhe a vida vegetal; rasguei canais em sua terra morta; inundei planícies áridas e possibilitei o nascimento de poliedros de tinton, assim como a nossa Telúria. Que iria ver em Marte? — Fazia uma rápida pausa, como se buscasse novos argumentos, e lançava-se com mais veemência, como a justificar-se de uma falha:

— Os senhores sabem que a passagem custa uma fortuna, coisa ina-creditável. Todavia, eu poderia ir. Mas ir para quê? — Parava então em meio aos passos nervosos, levava as mãos ao queixo e moderava o tom de voz como se transmitisse um segredo:

— Em Júpiter, porém, seria diferente. — Pronunciava o nome desse planeta com entonação especial, dolente, carinhosa, como se se referisse a um conhecido, a um ente querido, e não a um corpo sideral. — Ah! Meus amigos, entrava então em devaneio como se proclamasse seu amor por uma mulher, com Júpiter seria diferente. Sua família numerosa de saté-lites, sua atmosfera de sódio e amónio, seu solo desconhecido, virgem, inconspurcado. . .

Outro jovem interrompia então, trazendo Boscowitzs à realidade:— Como desconhecido, se já foram para lá quatro expedições?— Sim, desconhecido eu disse. Foram quatro expedições, mas o que

se sabe até agora? Nada, só que as expedições lá chegaram. Mais nada. E os senhores acham que quatro expedições desvendariam um monstro como é Júpiter? É um engano. Não se trata de Marte, nem de Vénus. Muitas dé-cadas decorreriam, talvez mesmo um século até que seja desvendado, e é por isso que me atrai. . .

Ismael Boscowitzs traía-se. Era certo que desprezara a passagem para Marte. Mas a verdade éra que ansiava por Júpiter. Talvez num futu-

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ro não muito remoto, quando os serviços periódicos se estabelecessem, se lançasse à aventura. E seria então uma aventura profissional realmente excitante. Que realizaria no solo indevassado de Júpiter? Que materiais extrairia de seu sub-solo? Como se comportaria o tinton? A viagem valeria o sacrifício de anos. Lançaria então todas as suas economias, independen-temente de auxílio do governo e materializaria o seu sonho.

Irena já lhe conhecia essa emoção secreta. O pai dos planetas era seu rival. Sabia-lhe todos os detalhes e poderia saciar a curiosidade dos vizinhos e dos parentes sobre o destino das economias de Boscowitzs, mas ela o compreendia e seria assim incapaz de propalar-lhe o segredo. Teria paciência, esperaria, continuaria a exercer o papel de confidente até o mo-mento em que as afinidades eclodissem, quando então ela faria com que êle comprasse não uma só, mas duas passagens para Júpiter.

Procurou-a na primeira hora, depois da noite inteira de vigília. Dera um balanço em sua vida e chegara a uma decisão definitiva. Teria, pois, que falar com Irena. Era o primeiro passo a ser dado. Avisou-a do encontro pelo menino sardento que morava ao lado e, aguardando a hora, passou a inventariar seus bens agora que sua vida ia sofrer a reviravolta esperada. Um pensamento o absorvia:

— Como reagiria ela?O bar onde sempre se encontravam ficava no centésimo andar, com

uma vista soberba sobre a cidade. Chegara cedo, e, enquanto esperava, passou aos terraços laterais que dominavam a floresta eriçada de agulhas translúcidas de tinton, que emergiam audaciosas de suas bases monolíti-cas, plantadas em ruas formigantes de veículos rápidos e silenciosos. Do lugar onde se achava, na face norte de Telúria, podia mesmo ver ao longe, bem junto à linha cinzenta do horizonte, as plataformas das naves domés-ticas que se elevavam imponentes, deixando atraz de si espirais tênues de fumo e que se fundiam no azul em busca de suas órbitas. Mais ao longe ainda, a Estação Sideral libertava limites incertos e aquele brilho fugaz que divisava talvez fosse de uma nave cósmica de grande curso, das Linhas Marcianas.

Irena entrou apressada. Viu o amigo no terraço, desviou-se das me-sas vazias e foi-lhe ao encontro, não conseguindo reprimir a curiosidade:

— Cheguei um pouco tarde, desculpe-me. Recebi seu recado na úl-tima hora.

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Boscowitzs tomou-a pela mão e puxou-a para o terraço, afastando-se ambos da porta que se comunicava com o salão nessa hora escassa-mente iluminado. Segurou-a pelo braço e foram para o sul, como se êle intensionalmente a afastasse do lugar onde havia outros frequentadores. Pararam perto das paredes transparentes, e junto a um dos respiradouros êle viu o vento frio revolver o cabelo da companheira. Não disse nada ain-da, apenas apertou-lhe mais o braço numa atitude inédita, demonstrando um comportamento como nunca antes tivera. Irena sentiu o coração pulsar mais forte, teve um bom pressentimento. Procurou a mão do amigo, que lhe pareceu fria e nervosa:

— Então? Porque este encontro a esta hora, tão cedo?Ismael Boscowitzs desviou o olhar do rosto da moça, largou-lhe o

braço e apoiou-se no parapeito polido. Quis dizer que ela estava linda; quis dizer que gostava da côr de seus olhos, com aquele azul desmaiado típico das marcianas; quis dizer-lhe que a considerava integrada em sua vida. Mas, pensou rapidamente, esse não seria um bom começo. Talvez fosse melhor ir diretamente ao assunto:

— Irena, não sei como começar. Você me conhece há muito tempo, talvez já saiba, talvez já tenha percebido. . .

Um estranho brilho brotou nas pupilas da jovem. Apoiou-se também na amurada e assumiu certa atitude compassiva de quem, mesmo em si-lêncio, busca estimular o desfecho de alguma coisa que já prevê, mas que deseja ouvir esplicitamente.

— Nossa amizade vem de muito tempo. Como você sabe, sou meio fechado, retraído, de poucas palavras. Mas, com você, sempre foi dife-rente. Desde o primeiro momento percebi que havia encontrado a amiga, alguém em quem poderia confiar.

Irena sentia-lhe o embaraço, percebia que Boscowitzs estava sitia-do. Talvez nunca tivesse falado de amor, de afinidades. Continuou impas-sivel, prolongando esse momento tão ansiosamente esperado, contendo-se para não ir em auxílio do companheiro.

— Já era tempo de chegar a uma resolução. Libertou-se do acanha-mento e continuou com firmeza:

— Escute, não sou mais criança e sei o que quero. Como engenheiro atingi a culminância da carreira. Sou tão conhecido em Marte como os primeiros colonizadores. Pertenço à classificação da elite dos técnicos e, sobretudo, tenho muito dinheiro. Porque então não realizar o meu ideal?

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A jovem afastou-se do parapeito e aproximou-se de Boscowitzs. Teve ímpeto de tocar-lhes as mãos, teve desejos de afagar-lhe o rosto, que-ria mesmo pedir-lhe que a beijasse, que a apertasse em seus braços.

— Continue — insistiu — aguardando a palavra final que inaugura-ria nova fase na vida de ambos.

— Sim, porque não realizar meu grande sonho? Minha amiga, mi-nha boa Irena, já resolvi. Comprarei a passagem, embarcarei para Júpiter!

Irena sentiu o solo mover-se. Apoiou-se de novo na amurada e des-viou os olhos para a paisagem. As agulhas de tinton como que rodopiavam em torno dela, dando-lhe uma leve tontura, provocando-lhe náuseas. Sen-tiu que empalideceu. Não conseguiu falar, com a garganta apertada.

— Que acha do meu plano? Na minha idade não se deve esperar. Minha saúde é perfeita, passei por todos os exames, porque então não ir? Não tenho família, não tenho amizades, além de você e dos meus alunos. Por isso achei que lhe deveria dar em primeiro lugar a notícia. Vamos, diga alguma coisa, que acha?

A marciana conseguiu dominar o atordoamento. Controlou-se. Per-cebia agora que jamais fora para êle outra coisa senão a amiga e confiden-te. Custou a responder:

— Acho que faz muito bem. Quando se pode, nunca se deve adiar a realização de um sonho. . .

Boscowitzs tirou então do bolso um prospecto colorido e exibiu-o animadamente para a moça, sem dar-se conta da reação despertada:

— Veja, uma tabela de preços para Marte. Aqui no fim, mesmo sem dizer quanto e quando, já se anunciam as viagens para Júpiter. Mesmo que custem o dobro, três ou quatro vezes mais do que para Marte, eu posso pagar, para isso venho economizando há anos. Amanhã tomarei as provi-dências, antes dos informes das primeiras expedições. Quero conhecer um mundo virgem, inconspurcado, intacto!

A companheira ausentava-se, compreendendo então. Afinidades! Que são simples afinidades? Afinidades eles possuem, mas talvez faltas-se aquela coisa imponderável, tão falada no século XX, que se chamava amor. Continuou alheia, sem relacionar as justificativas entusiasmadas do engenheiro. Que poderia fazer? Ninguém poderia ser condenado por pro-curar realizar suas aspirações.

Boscowitzs desdobrou melhor o folheto e sem desviar os olhos do impresso, comentou, empolgado, pormenores do plano, extaziando-se com

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as reproduções coloridas do planeta gigante visto de um dos seus satélites, de autoria de um paisagista espacial muito em voga naquele tempo.

— As reservas devem ser feitas com dois anos de antecedência, em se tratando de particulares. Mas, no meu caso, e aí entra o meu prestígio, a prioridade é imediata, talvez mesmo no primeiro vôo normal.

Acercou-se mais de Irena, tocando-lhe de novo o braço:— Não é formidável, não é formidável?Era como se ela contemplasse a solidão de um deserto, um vácuo

absoluto. Nada lhe respondeu e, conquanto o fitasse, não atentava no sen-tido daquelas palavras, perdendo-se em divagações. Que via nele afinal? Aquele modo tímido de cumprimentar os estranhos? A voz controlada de quem apenas aconselha e não argumenta? O modo diferente de sorrir quan-do a encontrava e que parecia ser somente para ela? Enfim, como haviam se manifestado as afinidades entre ambos? Continuava longe, em fuga, a muitos anos-luz. Antes era como uma chama numa planície noturna, te-nebrosa, vazia, batida por vendavais. Ela só via a chama, sem importar-se com a distância. O que valia era caminhar, caminhar. Agora a luz se apa-gara. Extinguira-se sem qualquer prenúncio, logo agora que parecia estar tão perto, a ponto de tocá-la, beneficiando-se de seu calor. Não se moveu, não se afastou, abaixou a cabeça devagar e não quis que êle lhe visse os olhos amendoados.

Ismael estava absorvido por seu sonho. Voltou-se para o espaço aberto e lançou, o olhar para o espaço-pôrto reparando, junto à linha do horizonte, o brilho incoerente da nave de grande porte.

— Veja, aquela deve ser nave venusiana.Pouco a pouco, Irena retornava de sua fuga. Só, na planície escura,

procurou de novo orientar-se, não acreditando que a luz a traísse. Ainda não respondeu. Elevou o rosto e recompôs-se tentando demonstrar interes-se pelo que êle dizia.

— Olhe, uma das naves de longo curso. Em verdade, nunca me atra-íram. Mas agora, agora é diferente. Será graças a elas que atingirei o meu destino. Nem acredito! Logo mais estarei em seu bojo, escapando deste nosso mundo trivial, ligando o meu destino a Júpiter.

Ela sentia que a serenidade lhe voltava. Estava outra vez ali, ao lado do bar, sobre a floresta de titon, assistindo a mais um crepúsculo. Não lhe importava mais a luz. Não seria êle apenas um estranho? Tão estranho como aquelas criaturas que se movimentavam lá em baixo?

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— Sim, — anuiu a jovem, quebrando o mutismo, com certa vivaci-dade imprevista; — Sim, ligando seu destino a Júpiter...

Estava na praça, fronteira aos edifícios da Universidade. Como acontecia nas grandes ocasiões, a notícia era divulgada pelos aparelhos dispostos em todos os cantos da cidade. No começo não escutou direito. Viu que os transeuntes paravam, aglomeravam-se, postavam-se em silên-cio respeitoso como se estivessem ouvindo em pessoa o próprio Chefe do Conselho. Também parou, aguçou mais o ouvido e perturbou-se com os comentários entusiásticos que se levantavam em torno. Mais um grande passo haviam dado os homens da Terra. As duas primeiras expedições ti-nham chegado. O planeta gigante fora conquistado. Quando a voz silen-ciou, depois de transmitidos muitos informes, a multidão agitou-se mais. Exclamações se elevaram, vivas e palmas espalharam-se pela praça e a alegria da multidão encontrou éco na música marcial que passou a ser irradiada, quando então o locutor anunciou que dentro em breves novos pormenores seriam revelados.

Nessa noite Ismael Boscowitzs pouco dormiu. O receptor ligado, os jornais amontoados ao lado da cama, os postigos escancarados, recebendo o vento estimulante da altitude que fazia ondular prospectos, recortes e estudos que se achavam sobre a prancha de desenho.

As duas expedições tinham regressado. Júpiter era agora bem mais do que um ponto luminoso a rivalizar com o brilho azulado de Sirius. Era um mundo vencido, subjugado. Já se sabia tudo. A grande mancha rubra não era mais um mistério. Satélites menores forem visitados, as duas pri-meiras cúpulas atmosféricas foram infladas e muitos tripulantes lá ficaram desvendando os derradeiros segredos.

Levantou-se, acercou-se da janela. O planeta aproximava-se do zé-nite. Lá estavam homens, até lá atirara a Terra os seus tentáculos. Talvez naquele mesmo momento outros olhos de lá perscrutassem a Terra. Que-brara-se o tabu, logo Júpiter seria como Marte. Apenas uma colônia, uma sucursal super-povoada da Terra, mais uma etapa vencida.

Deitou de novo. Cerrou os olhos. Pensou em Irena.

Encontraram-se na semana seguinte, acidentalmente. Ela procurou esquivar-se, mas êle a segurou, convidando-a para passearem a tarde.

— Então, está feliz agora? Com a volta das expedições tudo será

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fácil, as viagens regulares serão inauguradas. Já reservou as passagens?Agora foi Boscowitzs quem viu na moça uma estranha. Primeiro

observou-lhe os cabelos, aquelas mechas sedosas que escorriam pelos ombros identificando-se com a côr do vestuário. Depois reparou-lhe nos olhos, naqueles olhos amendoados que tinham qualquer coisa de exótico. Depois ainda analisou-lhe o corpo que parecia de menina e que agora des-pertava nele, estranhamente, pensamentos insuspeitados. Ela insistiu:

— Perguntei-lhe quando embarca? Quando vai para Júpiter?— Quando embarco, quando embarco? Não sei, confesso que não

sei.— Como não sabe? Não estava decidido? Não tinha preparado

tudo?Só então Bascowitzs voltou-se para ela.— Não sei, tudo agora é diferente. . .— Diferente?! Como diferente? Não entendo.— Júpiter! Quem disse que eu queria ir para Júpiter?Os olhos amendoados brilharam como se estivessem se acercando

da chama que ponteava a planície. A jovem sentiu que a luz de novo se acendera e que agora não tinha a consistência ondulante - de uma chama mas a segurança da esteira luminosa projetada por um farol.

— Como, então? Não vai mais, desistiu?— Não me interesso por Júpiter, estive pensando bem esta noite. Sa-

turno, apenas Saturno! Você imaginou o que não poderei fazer lá, naquele mundo indesvendado? O material meteorítico contido no turbilhão de seus anéis, que substância fabulosa para minhas construções! A drenagem de seus pântanos de metana! Sim, a metana, a exploração desse gás para o reabastecimento dos foguetes atômicos! Imagine que grandes instalações poderia construir naquele segundo gigante indevassado! Não, nada de Jú-piter. O que me interessa é Saturno. . .

Irena tomou-o pela mão. Sentiu que seus dedos tremiam. Acercou-se mais ainda e fitou-o bem nos olhos, tentando abraçá-lo. Boscowitzs desconheceu-se. Não se afastou da moça e uma tranquilidade nova dele se apoderou quando a sentiu em seus braços.

— Sim, querido, sim, Saturno! Agora compreendo. Naquele ano em verdade o mundo muito havia mudado. Tudo havia mudado, menos os homens.

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