passagem do humaitÁ, de victor meirelles ......anos mais velho que pedro américo, àquela altura...

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PASSAGEM DO HUMAITÁ, DE VICTOR MEIRELLES PINTURA HISTÓRICA, EXPOSIÇÕES E POTÊNCIA DE UMA TELA ‘SEM HISTÓRIA’ Eduardo Gomes Silva 1 Tema e problema 15 de junho de 1872. Abertura oficial da 22ª Exposição Geral da Academia Imperial de Belas-Artes. Inaugurada pelo diretor-interino Ernesto Gomes Moreira Maia e contando com a tradicional presença de SS. MM. D. Pedro II, duas telas de grandes proporções se destacam nos salões da Academia. Uma terceira, igualmente imponente, se juntaria àquelas dias depois, após a execução de uma necessária obra de adaptação no salão que a alojaria. (ROSA, 1982, p. 83) Seja por tais proporções, por sua natureza, pela temática, pelo momento histórico em que foram expostas, é consensual atribuir às telas Batalha de Campo Grande 2 , de Pedro Américo, Passagem do Humaitá 3 e Combate Naval do Riachuelo 4 , ambas de Victor Meirelles, a responsabilidade por atrair pouco mais de 60 mil pessoas à Exposição Geral daquele ano o maior número até então registrado pelo evento anual promovido pela AIBA. Pouco antes de se completar dois anos do tratado imposto ao Paraguai pela Tríplice Aliança, que pusera fim àquela que era então conhecida como a ‘Grande Guerra’, não era coincidência que as três obras de destaque daquela exposição representassem episódios do conflito e enaltecessem as esquadras brasileiras precisamente a cavalaria do Exército (Combate de Campo Grande) e a Marinha (Passagem do Humaitá e Combate Naval de Riachuelo). Antes, eram frutos de encomendas diretas daquelas Forças ou foram posteriormente adquiridas por elas, na melhor tradição da pintura histórica como forjadora da memória de um determinado 1 Doutor em História Cultural pelo PPGH da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] 2 Pedro Américo de Figueiredo e Mello. Batalha de Campo Grande, 1871. Óleo sobre tela, 3,32 x 5,30 m. Acervo: Museu Imperial/IBRAM/MinC/RG 9700. 3 Victor Meirelles de Lima. Passagem do Humaitá, último quartel do século XIX. Óleo sobre tela, 2,68 x 4,35 m. Acervo: Museu Histórico Nacional/IBRAM/Ministério da Cultura. 4 Victor Meirelles de Lima. Combate Naval do Riachuelo, último quartel do século XIX. Óleo sobre tela, 4,00 x 8,00 m. Acervo: Museu Histórico Nacional/IBRAM/Ministério da Cultura.

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Page 1: PASSAGEM DO HUMAITÁ, DE VICTOR MEIRELLES ......anos mais velho que Pedro Américo, àquela altura Meirelles não só figurava como professor titular da cadeira de Pintura Histórica

PASSAGEM DO HUMAITÁ, DE VICTOR MEIRELLES – PINTURA

HISTÓRICA, EXPOSIÇÕES E POTÊNCIA DE UMA TELA ‘SEM

HISTÓRIA’ Eduardo Gomes Silva1

Tema e problema

15 de junho de 1872. Abertura oficial da 22ª Exposição Geral da Academia

Imperial de Belas-Artes. Inaugurada pelo diretor-interino Ernesto Gomes Moreira Maia

e contando com a tradicional presença de SS. MM. D. Pedro II, duas telas de grandes

proporções se destacam nos salões da Academia. Uma terceira, igualmente

imponente, se juntaria àquelas dias depois, após a execução de uma necessária obra

de adaptação no salão que a alojaria. (ROSA, 1982, p. 83) Seja por tais proporções,

por sua natureza, pela temática, pelo momento histórico em que foram expostas, é

consensual atribuir às telas Batalha de Campo Grande2, de Pedro Américo, Passagem

do Humaitá3 e Combate Naval do Riachuelo4, ambas de Victor Meirelles, a

responsabilidade por atrair pouco mais de 60 mil pessoas à Exposição Geral daquele

ano – o maior número até então registrado pelo evento anual promovido pela AIBA.

Pouco antes de se completar dois anos do tratado imposto ao Paraguai pela

Tríplice Aliança, que pusera fim àquela que era então conhecida como a ‘Grande

Guerra’, não era coincidência que as três obras de destaque daquela exposição

representassem episódios do conflito e enaltecessem as esquadras brasileiras –

precisamente a cavalaria do Exército (Combate de Campo Grande) e a Marinha

(Passagem do Humaitá e Combate Naval de Riachuelo). Antes, eram frutos de

encomendas diretas daquelas Forças ou foram posteriormente adquiridas por elas, na

melhor tradição da pintura histórica como forjadora da memória de um determinado

1 Doutor em História Cultural pelo PPGH da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail:

[email protected] 2 Pedro Américo de Figueiredo e Mello. Batalha de Campo Grande, 1871. Óleo sobre tela, 3,32 x 5,30 m. Acervo: Museu Imperial/IBRAM/MinC/RG 9700. 3 Victor Meirelles de Lima. Passagem do Humaitá, último quartel do século XIX. Óleo sobre tela, 2,68 x 4,35 m. Acervo: Museu Histórico Nacional/IBRAM/Ministério da Cultura. 4 Victor Meirelles de Lima. Combate Naval do Riachuelo, último quartel do século XIX. Óleo sobre tela, 4,00 x 8,00 m. Acervo: Museu Histórico Nacional/IBRAM/Ministério da Cultura.

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evento, de um determinado herói e, no limite, de uma nação. (CHRISTO apud ARBOR,

2009; SCHWARCZ, 2008)

Se foram encomendadas, construídas e expostas para envernizar os tons

áuricos de uma campanha bélica que, enquanto durou, esteve longe de ser aceita

unanimemente pela população brasileira5, também se prestaram a consolidar, ou

mesmo a alçar à mais alta distinção artística, os seus respectivos executores. Pedro

Américo, àquela altura professor da cadeira de Desenho Figurado da AIBA, ainda não

havia se tornado um dos principais nomes da pintura histórica brasileira, responsável

que seria pela execução de obras como A Batalha do Avaí (1877), Independência ou

Morte! (1888) ou Tiradentes esquartejado (1893). De sorte que, ao conceber e

executar a tela Batalha de Campo Grande sem que houvesse encomenda prévia ou

garantias de sua futura compra ou exposição, aquele artista procurara se inscrever no

restrito e privilegiado círculo dos pintores de História da Academia. Retratar

personalidades presentes naquele específico embate (no decurso da Guerra ele

ocorreu no dia 16 de agosto de 1869), com especial destaque à atuação do príncipe

D. Gaston d’Orléans, o Conde d’Eu, como comandante em chefe do exército

brasileiro, perfizeram algumas das estratégias de Pedro Américo em função daquele

objetivo.6

Posição um tanto diversa e mais confortável gozava Victor Meirelles. Onze

anos mais velho que Pedro Américo, àquela altura Meirelles não só figurava como

professor titular da cadeira de Pintura Histórica da AIBA como já havia atingido renome

internacional ao ter sido o primeiro brasileiro a ter uma obra exposta no Salon de Paris,

em 1861 – notadamente, A primeira missa no Brasil, executada entre 1858 e 1860,

anos finais da estadia de quase sete anos de Victor Meirelles no Velho Continente

como bolsista e detentor do Prêmio de Viagem da AIBA à Europa. (COLI apud

5 Ao contrário disto: o alto custo das campanhas, os inúmeros mortos e a sensação de insegurança gerada pelo conflito são alguns dos fatores apontados como desabonadores da ‘Grande Guerra’ entre parte da população brasileira; insatisfação que crescia à medida em que sua duração do conflito se alongava e que se inscrevia, por exemplo, nos artigos dos jornais e revistas da época. Cf.: DORATIOTO, 2002; SCHWARCZ, 2013. 6 Objetivo de todo comprido, cabe registrar. Além da exposição no Salão de 1872 e das encomendas subsequentes, a tela Batalha de Campo Grande foi adquirida pelo ministro da Guerra, Barão de Jaguaribe, por 13 contos de réis. Segundo SCHWARCZ (2013, p. 29), “a opção pela representação da Batalha de Campo Grande respondia, também, a interesses da Família Imperial, uma vez que enaltecia o papel do Conde d’Eu no encerramento do conflito – perspectiva que, por certo, contou favoravelmente na decisão do governo de comprar o quadro.”

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NOVAES, 1998) Os louros daquele feito não tardaram a serem colhidos por Meirelles

no Brasil: além da sua integração ao corpo docente da AIBA, foi homenageado e

investido com algumas das mais prestigiosas honrarias do Império, como cavalheiro

da Imperial Ordem da Rosa (em 1861), membro ordenado da Ordem de Cristo (1864)

e, posteriormente, como comendador da Ordem da Rosa (1871).

Foi por esta e a partir desta eminente posição que Victor Meirelles recebeu, em

maio de 1868, a encomenda de duas telas que representassem batalhas e heróis

decisivos sobre a ‘Grande Guerra’. A encomenda partiu do Ministério da Marinha e as

telas acordadas por contrato teriam por destino o Museu da Marinha, criado naquele

mesmo ano de 1868 – em pleno conflito, portanto. (CHRISTO, 2007) A fim de colher

registros descritivos, referências pictóricas in loco, Victor Meirelles embarcou para o

Paraguai, o cenário da Guerra, permanecendo instalado a bordo do navio-chefe da

esquadra brasileira por dois meses.

O período exato desta estadia ainda é um dado discutível. Isto porque, se

comprovado como período de bordo de Victor Meirelles na nau capitânia Brasil entre

agosto e setembro de 1868, como registrado em recente estudo pelo historiador

iconográfico da Guerra do Paraguai, André Toral (2001), cai por terra a hipótese de o

pintor ter presenciado a ocupação da fortaleza de Humaitá pelos brasileiros, ocorrida

em julho daquele ano. Movimentos decisivos para o futuro do conflito, tanto a

passagem do Humaitá (datada de 19 de fevereiro de 1868, sob forte bombardeio entre

os encouraçados Aliados e a defesa paraguaia, momento-chave do quadro homônimo

de Victor Meirelles) quanto a sua capitulação final (25 de julho) marcaram a retomada

da ofensiva da guerra pelos Aliados, uma vez que puderam destruir e ultrapassar um

obstáculo estrategicamente posicionado que separava os encouraçados Aliados da

capital paraguaia. (DORATIOTO, 2002)

Já para Carlos Rubens, um dos primeiros biógrafos de Victor Meirelles, o pintor

catarinense teria mesmo assistido, “em pessoa”, àquela noite de pesado bombardeio

que forçara a passagem da fortaleza. Todavia, ao registrar tal informação, Rubens o

faz se fiando na pena de um terceiro, o político, poeta e um dos cronistas daquela

guerra, José Leão Ferreira Souto, sem ao menos fornecer as devidas referências de

sua fonte:

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Em 1868 Victor Meirelles deixava o Rio com destino ao teatro da guerra. [...] Assistiu várias vezes aos bombardeios contra Humaitá. ‘Em ocasiões tais’, conta José Leão Ferreira Souto, ninguém se persuada que Victor Meirelles se escondesse; contra a vontade do comandante estava ele em cima, no convés, mirando o espetáculo do bombardeamento e tomando as suas notas, estudando os afeitos da luz e da sombra naquele vasto cenário. Foi assim que ele esteve dois meses embarcado, cruzou diversas vezes a grande fortaleza e assistiu em pessoal à sua tomada em 5 de julho de 1868. (RUBENS, 1945, p. 43-4)

Tanto durante seu período de “ateliê a bordo” quanto durante o seu intenso

trabalho no ateliê improvisado e especialmente montado para a execução das duas

telas (um grande salão do convento de Santo Antônio, na capital do Império), Victor

Meirelles produziu um número expressivo de estudos preparatórios, croquis, esboços

e alguns retratos de militares, como do Almirante Joaquim José Inácio, chefe da

capitania Brasil. (TORAL, 2001, p. 120-1) Desta produção, destaca-se os Estudos

Paraguayos, uma série de desenhos que ocupou-se sobretudo de cadáveres, e partes

destes, de brasileiros e paraguaios, detalhando, em lápis sobre papel, as suas

expressões, seus corpos retorcidos e/ou desmembrados. Parte da bagagem europeia

do pintor – ele quem copiou para a AIBA um dos mais significativos quadros com esta

característica, A Balsa da Medusa (1818-9), de Théodore Géricault – esse tipo de

estudo correspondia tanto a importância preconizada pelo escola neoclássica em

relação à acurácia anatômica, quanto ao desenvolvimento que a escola romântica

europeia havia dado a caracterização dos corpos “de vítimas anônimas, reduzidos a

coisas [corpos que] apenas materializam a violência.” (CHRISTO, 2005)

Ao invés de produzir tais estudos com cadáveres comprados ou cedidos pelos

necrotérios, como faziam os românticos franceses, Victor Meirelles tivera acesso

franqueado à fortaleza recém bombardeada e ocupada; tivera acesso aos escombros,

materiais e humanos, que a máquina de guerra da qual se servia para instalar o seu

ateliê fora capaz de produzir. No entanto, se concordamos com André Toral quanto

ao fato de grande parte destes exercícios preparatórios não terem sido desenvolvidos

e adotados nas duas telas principais – “Toda essa caracterização realista da guerra,

que apareceu em seus desenhos, seria praticamente desprezada na elaboração de

seus trabalhos a óleo, onde predominou o estilo romântico característico do artista”

(TORAL, 2001, p. 141-2) –, pesquisas prévias e subsidiárias ao presente artigo

apontam para a necessidade de integrar todos esses estudos preparatórios a fim de

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perscrutar os muitos ‘ruídos’ que marcaram o projeto desejado pelo Ministério da

Marinha e a fatura final da encomenda, justamente as telas Combate Naval do

Riachuelo e de Passagem do Humaitá. Privilegiando-as, mas indo além das duas telas

– e, sobretudo, indo além da prévia e desencarnada classificação de estilos, que não

dá conta de suas imbricações, como a já citada característica realista da

representação dos cadáveres por parte dos pintores românticos –, devemos também

considerar a recepção que aquelas telas obtiveram junto às instituições oficiais e, não

menos importante, junto à crítica de parte da sociedade brasileira, através dos jornais

e das revistas que cobriram o Salão de 1872 e outras exposições que contaram com

a presença daquelas telas.

Figura 1. Victor Meirelles de Lima. Combate Naval do Riachuelo, último quartel do século XIX. Óleo sobre tela, 4,00 x 8,00 m. Acervo: Museu Histórico Nacional/IBRAM/Ministério da Cultura

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Figura 2. Victor Meirelles de Lima. Passagem do Humaitá, último quartel do século XIX. Óleo sobre tela, 2,68 x 4,35 m. Acervo: Museu Histórico Nacional/IBRAM/Ministério da Cultura

O porquê da pesquisa

Por que voltar os olhos a obras produzidas em contextos tão distantes,

compostas sob regras e propósitos tão díspares face à arte contemporânea? Por que

Passagem do Humaitá e Combate Naval do Riachuelo e não outra obra de Victor

Meirelles? “Sempre, diante da imagem, estamos diante do tempo”, já escreveu DIDI-

HUBERMAN (2011, p. 31), para afirmar a preponderância do presente, ou melhor, do

vetor presente-passado na nossa relação com a obra de arte. Não é por outra via que

estudos relativamente contemporâneos sobre a produção pictórica brasileira do

século XIX e, no que nos concerne, sobre as obras de Victor Meirelles, têm se

mostrado ricos mananciais para novas reflexões sobre a produção daquele artista e

sobre a relação de suas obras com o contexto artístico – e em alguns estudos,

também político – brasileiro daquele século.

Seja de curto fôlego– como Victor Meirelles: quando ver é perder, de Fernando

Boppré (BOPPRÉ apud VALLE & DAZZI, 2010) ou Victor Meirelles: razão e

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sensibilidade na estética clássica romântica, de Cynthia Campos (CAMPOS apud

FLORES, LEHMKUHL & COLLAÇO, 2006) –; seja fruto de estudos dissertativos de

maior envergadura – A Batalha dos Guararapes de Victor Meirelles e suas relações

com a pintura internacional, de Jorge Coli (COLI, 1995) ou Os panoramas perdidos de

Victor Meirelles: aventuras de um pintor acadêmico nos caminhos da modernidade,

de Mário César Coelho (COELHO, 2007) – tais estudos têm sofisticado a mera relação

‘formação-estilo-produção’, lançado luz às mais diversas conexões que tal relação se

apresentou na fatura pictórica de Victor Meirelles e como esta fatura foi recebida pelos

seus contemporâneos.

A principal justificativa para a pesquisa que subsidia este artigo é poder

acompanhar essas novas reflexões sobre a pintura brasileira do século XIX através

de um dos seus eminentes representantes, Victor Meirelles. Atrelado a esta, a escolha

pela análise da encomenda, do projeto, da execução e da recepção de Passagem do

Humaitá deu-se não somente porque não há um estudo mais aprofundado sobre esta

tela mas, justamente em virtude desta ausência, mesmo pelos atuais estudos sobre o

artista e suas obras. Em outras palavras, o que afastaram e continuam afastando

essas duas específicas telas de uma abordagem acadêmica? Também não

dissociada das demais, uma terceira justificativa se impõe: ao mapear e tentar

entender o que aqui estamos chamando de ‘ruídos’ entre os objetivos do Império

brasileiro com a encomenda de Passagem do Humaitá e as repercussões (nem

sempre positivas) que ela produziu, daremos ao seu estudo o seu devido caráter

historiográfico, em que a análise formal lança luz sobre a análise social e ambas

perfaçam um quadro, o mais pormenorizado possível, do papel almejado e

desempenhado por tais obras naquele específico contexto.

No que concerne a esses ‘ruídos’, estudos prévios nos têm indicado que eles

podem ser percebidos na dissonância entre os objetivos da Academia Imperial de

Belas Artes e do Império brasileiro com a encomenda dos dois quadros a Victor

Meirelles – Combate Naval do Riachuelo incluso – e as soluções formais com as

quais pelo menos um deles, Passagem do Humaitá, fora construído. Alguns jornais e

revistas da época acusaram essa dissonância, o que demonstra que um estudo

desencarnado das questões políticas e sociais envolvendo essas telas, um estudo

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formalista, de caráter meramente biográfico ou que não leve em consideração a

recepção delas, não conseguirá construir um panorama à sua altura.

À guisa de exemplo, além de uma reprodução da tela Passagem do Humaitá, seguem

alguns excertos que constituem parte do itinerário que traçaremos para construir tal

panorama: a forja da história oficial, impressões à quente e análises atuais sobre

aquela tela.

RESUMO HISTÓRICO A 19 de fevereiro de 1868, a esquadra encouraçada brasileira, composta dos navios Barroso, Bahia, Tamandaré, e dos monitores Rio Grande, Alagoas e Pará, forçaram o passo do Humaitá. [...]Às 3 ½

horas da madrugada, logo depois de nascer a lua, dado pelo navio chefe o sinal de avançar, rompeu a honrosa marcha o Barroso levando a seu lado o monitor Rio Grande, seguido pelo Bahia com o Alagoas, e após estes, Tamandaré com o Pará. [...] Nesta ocasião, no meio do medonho estampido que partia de Humaitá, e dentre as densas nuvens de fumaça que toldavam o ar, vê-se subir um foguete que, partindo do Barroso, anuncia a toda a esquadra que o Passo de Humaitá está vencido. É este o momento escolhido pelo artista. [...] (CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO GERAL DE 1872) A exclusão completa de figuras naquele vasto plano a que parece ter submetido o autor [...] é um concurso de circunstâncias que faz que nos retiremos de sua contemplação frios e quase descrentes de que aquele fato se tornou célebre nos fastos da história do Brasil, o dia 19 de fevereiro de 1868. [...] Nenhuma emoção sente o espectador. [...] (JORNAL DO COMMERCIO, Rio de Janeiro, 05 JUL. 1872) [...] O quadro nº 167, pintado pelo Sr. Victor Meirelles, Passagem do Humaitá, é uma grande tela que nada significa daquilo que se lê no catálogo. [...] (JORNAL DO COMMERCIO, Rio de Janeiro, 27JUN. 1872)

Passagem de Humaitá não apresenta figuras humanas, os navios quase imperceptíveis, a tela se resume a massas negras e vermelhas. Sob o pretexto de representar uma batalha noturna, o artista constrói quase uma abstração monocromática em mais de 11 m2. [...] (CHRISTO, 2009, p. 1156) Humaitá, porém, foi conduzida a um radicalismo absoluto. O pintor se desvencilha de qualquer trama gráfica para se entregar a uma pintura de História sem história, sem episódio e sem equivalente, em que a gesta a ser contada dilui-se numa paisagem cósmica de borrões animados pela luz e pela noite. [...] (COLI apud TURAZZI, 2009, p. 44)

O que esperamos com esta pesquisa e o que faremos para executá-la

Portanto, analisar sob uma perspectiva historiográfica o processo envolvendo

a encomenda, a execução, a fatura estética e a recepção de Passagem do Humaitá

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talvez possa ser apontada como o principal objetivo da pesquisa ora em execução.

Para tanto, procuraremos mapear e problematizar aquilo que estamos entendendo

como ‘ruídos’, as dissonâncias entre os objetivos do Império brasileiro com a

encomenda de Passagem do Humaitá e os resultados por ela alcançado. Para tanto,

o contraponto com a tela Combate Naval do Riachuelo e com a produzida por Pedro

Américo com igual propósito, Batalha de Campo Grande, será de grande importância.

Complementará este quadro analítico o cotejamento de outras telas que também

participaram de uma determinada construção da memória sobre a ‘Guerra do

Paraguai’ à luz da pintura histórica, como as produzidas por Edoardo de Martino e

Domingos Teodoro de Ramos.

Mas como cumprir este e outros objetos desta pesquisa? Ter estado,

literalmente, diante das telas Passagem do Humaitá e Combate Naval do Riachuelo

foi essencial para o estudo prévio que tem subsidiado a presente pesquisa. Perceber

a sua grandiosidade (quase 12m2 e 32m2, respectivamente) e ratificar o que

historiador Walter Luiz Pereira já havia apontado como o desigual tratamento

expositivo que ambas telas atualmente dispõem no Museu Histórico Nacional – um

acentuado destaque para Combate Naval e, numa outra sala, uma instalação mais

caótica e menos propícia à contemplação para Passagem (PEREIRA, 2013, p. 106,

nota 28) – ajudaram a formar algumas das problematizações que ora nos move, dentre

elas a escolha pela verticalização analítica de Passagem do Humaitá.

Em termos formais, portanto, dialogaremos com o que os estudos

contemporâneos sobre a arte brasileira do século XIX e, especificamente, sobre as

obras de Victor Meirelles, têm chamado atenção: a necessidade de dirigirmos o olhar

diretamente para a tela que se deseja analisar, colocar de lado as noções e os

enquadramentos prévios quanto aos elementos estilísticos e “interrogar as obras.”

(COLI, 1995, p. 06-7) Estudos como o de Fernando Boppré, que não buscou reativar

o embate entre as características neoclássicas versus romântica da formação de

Victor Meirelles mas, a partir dos desafios que uma tela específica do artista lhe impôs,

A Morta (s/d), “demonstrar que o período de estudos parisienses do artista

proporcionou um repertório plástico e temático que seria fundamental para a [sua]

trajetória posterior.” (BOPPRÉ apud VALLE & DAZZI, 2010, p. 252) Ou como o de

Jorge Coli que, ao se debruçar sobre a tela A batalha dos Guararapes (1879) e tentar

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compreender as soluções formais encontradas por Victor Meirelles para a sua

execução, o aproxima dos artistas franceses e romanos que porventura puderam tê-

lo influenciado ou com os quais Meirelles pode ter estabelecido alguma afinidade

estilística:

Se me dirijo diretamente às telas, de modo honesto e cuidadoso, percebo que elas escapam continuamente àquilo que eu supunha ser a própria natureza delas. [...] Assim, ao invés de discutir se [Victor] Meirelles ou [Pedro] Américo são ou não clássicos, são ou não românticos, são ou não são pré-modernos – o que me coloca em parâmetros seguros e confortáveis, mas profundamente limitados – é preferível tornar esses quadros como projetos complexos, com exigências específicas e precisas, muitas vezes inesperadas. [...] Seja como for, diante de qualquer obra, o olhar que interroga sempre me parece mais fecundo do que o conceito que define. (COLI, 1995, p. 07)

Num primeiro momento, portanto, a partir da tela em questão, de algumas das

problematizações já levantadas e dos objetivos traçados para tentar executá-lo,

faremos um mapeamento dos objetivos oficiais das encomendas tanto das telas de

Meirelles quanto da de outros artistas do período, especificamente em relação ao

tema da Guerra do Paraguai; e, num sentido mais amplo, o papel da pintura histórica

e da Academia Imperial de Belas Artes para a construção de uma dada memória sobre

o Império Brasileiro. Há uma considerável literatura sobre este último aspecto e, à

guisa de ilustração, podemos citar a obra Óleo sobre tela, olhos para a história:

memória e pintura histórica nas Exposições Gerais de Belas Artes do Brasil Império

(1872 e 1879), de Walter Luiz Pereira. (PEREIRA, 2013) Além de materiais

bibliográficos como este, acreditamos que tais objetivos oficiais também podem ser

cotejados em documentos produzidos pelo próprio Império ou pela AIBA, como os

catálogos da Exposição Geral de 1872 ou da de 1879.

Um outro passo metodológico é mapear e analisar o maior número possível de

informações acerca da concepção e execução das duas telas. Desde a análise formal

de esboços e telas de estudo – como o Esboço de paisagem para Passagem de

Humaitá: Barranco (MEIRELLES, c. 1868-70a) ou Estudo para Passagem de Humaitá

(MEIRELLES, 1868-1870b), ambas expostas no Museu Victor Meirelles, em

Florianópolis/SC –; até o conjunto de croquis, esquematas e desenhos preparatórios

para a execução das telas – como o conjunto a série Estudos Paraguayos, hoje no

acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MEIRELLES, 1868-1870c) –; passando

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por referências bibliográficas sobre estes mesmos estudos, pretendemos cotejar as

telas finais expostas em 1872 aos inúmeros caminhos, às inúmeras possibilidades de

concepção e execução de que dispunha Victor Meirelles para construí-las. Desta

forma, consideraremos a vasta literatura biográfica, sobre os anos de formação do

artista na AIBA e na Europa, as influências formais que obtivera nesse período sem,

no entanto, perder de vista os desafios e as soluções encontradas por Victor Meirelles

frente a essas duas específicas telas – desafios formais e também político, diga-se.

Um terceiro movimento é acompanhar o debate prévio e o concomitante à

exibição de Passagem do Humaitá na Exposição Geral de 1872, através da consulta

das revistas, de jornais e outros periódicos circulantes na Corte daquele período. A

análise da crítica, especializada ou não, sobre as telas expostas na AIBA, nos

permitirá aprofundar o grau de ‘ruído’ entre os objetivos do Império em relação àquelas

encomendas e o impacto que elas puderam causar naquele momento de construção

de uma dada memória sobre a Guerra do Paraguai. Periódicos como Jornal do

Commercio, Revista Ilustrada, O Mosquito foram – todos microfilmados, digitalizados

e disponíveis no website da Biblioteca Nacional –, serão as principais fontes para este

terceiro movimento, que também contará com a análise comparativa da crítica a outros

artistas e telas sobre aquele conflito e com a leitura atenta da bibliografia específica

sobre o papel da crítica de arte brasileira do século XIX – como, por exemplo, Entre a

opsis e a akôe: as marcas de enunciação na pintura história e na crítica de arte dos

oitocentos. (CASTRO, 2008, p. 05)

Esperamos que dentro de um espaço de tempo apropriado possamos

apresentar os resultados finais desta pesquisa para os leitores de História.com. Mas,

antes disto, almejamos com o presente artigo apresentar alguns passos de uma

pesquisa em andamento – cujo ‘resultado final’ é tão somente um dos produtos de

uma longa jornada de pesquisa, a envolver delimitação temática, aproximações

teórico-metodológicas, escrita historiográfica, publicação, recepção e debate acerca

desta determinada escrita.

REFERÊNCIAS

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