parecer celso lafer

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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 53 Celso Lafer I – Considerações preliminares 1 – O Art 5º, XLXII, da Constituição de 1988, diz: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei”. No HC 82424- 2, ora em exame pelo STF, alega-se, em síntese, como adiante se discu- tirá de maneira circunstanciada, que, não sendo os judeus uma raça, o crime pratica- do por Siegfried Ellwanger é o de incitamen- to contra os judeus e não o da prática do ra- cismo. Dessa maneira busca o impetrante afas- tar a imprescritibilidade do delito cometido. A matéria objeto deste parecer diz res- peito à procedência ou improcedência jurí- Parecer O caso Ellwanger: anti-semitismo como crime da prática do racismo Sumário I - Considerações preliminares. II - Positi- vação, generalização, internacionalização e es- pecificação como processos de afirmação dos direitos humanos. III - Interpretação do art. 5 o , XLII, da Constituição - critérios. IV - Interpre- tação do art. 5 o , XLII, da Constituição – o HC 82424-2 e o risco do esvaziamento do conteúdo jurídico do preceito constitucional. V - Os ar- gumentos apresentados no HC 82424-2 e os en- sinamentos de decisões da Suprema Corte dos EUA e da House of Lords da Inglaterra. VI - Da raça ao racismo. VII - A prática do racismo e o seu impacto no Direito Internacional da Pes- soa Humana – a contribuição do Direito Inter- nacional-Público para a exegese do art. 5 o , XLII, da Constituição de 1988. VIII - Amplitude da prática do racismo no Brasil. IX - Síntese con- clusiva. Parecer apresentado e aceito pelo STF na condição de amicus curiae, no julgamento do caso Ellwanger – HC 82424/RS (dezembro de 2002 a setembro de 2003). Em cinco longas sessões, confirmou-se, por 8 votos a 3, a condenação, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em outubro de 1966, de Siegfried Ellwanger pelo crime da prática do racismo. Foram votos vencedores o do Ministro Maurício Corrêa, relator do acórdão (datado de 17 de setembro de 2003), e os dos Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso e Sepúlveda Pertence. O Acórdão foi publicado pelo STF, com prefácio do Ministro Maurício Corrêa (Crime de Racismo e Antisemitismo – um julgamento histórico do STF. Brasília, Brasília Jurídica, 2004). A professora Anna Maria Villela dedicou-se, no seu consistente percurso intelectual, ao Direito Internacional, com ênfase no Direito Internacional Privado, que tem entre os seus temas básicos o relacionamento entre distintos ordenamentos jurí- dicos. Este parecer também examina a interação entre o ordenamento jurídico nacional e o Direito Internacional dos direitos humanos. Trata, assim, de uma das categorias do Direito Internacional – Público e Privado – que é a da recepção, no hori- zonte dos interesses de Anna Maria Villela.

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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 53

Celso Lafer

I – Considerações preliminares1 – O Art 5º, XLXII, da Constituição de

1988, diz: “a prática do racismo constituicrime inafiançável e imprescritível, sujeitoà pena de reclusão nos termos da lei”.

No HC 82424- 2, ora em exame pelo STF,alega-se, em síntese, como adiante se discu-tirá de maneira circunstanciada, que, nãosendo os judeus uma raça, o crime pratica-do por Siegfried Ellwanger é o de incitamen-to contra os judeus e não o da prática do ra-cismo. Dessa maneira busca o impetrante afas-tar a imprescritibilidade do delito cometido.

A matéria objeto deste parecer diz res-peito à procedência ou improcedência jurí-

ParecerO caso Ellwanger: anti-semitismo como crime da prática doracismo

SumárioI - Considerações preliminares. II - Positi-

vação, generalização, internacionalização e es-pecificação como processos de afirmação dosdireitos humanos. III - Interpretação do art. 5o,XLII, da Constituição - critérios. IV - Interpre-tação do art. 5o, XLII, da Constituição – o HC82424-2 e o risco do esvaziamento do conteúdojurídico do preceito constitucional. V - Os ar-gumentos apresentados no HC 82424-2 e os en-sinamentos de decisões da Suprema Corte dosEUA e da House of Lords da Inglaterra. VI - Daraça ao racismo. VII - A prática do racismo e oseu impacto no Direito Internacional da Pes-soa Humana – a contribuição do Direito Inter-nacional-Público para a exegese do art. 5o, XLII,da Constituição de 1988. VIII - Amplitude daprática do racismo no Brasil. IX - Síntese con-clusiva.

Parecer apresentado e aceito pelo STF nacondição de amicus curiae, no julgamento do casoEllwanger – HC 82424/RS (dezembro de 2002 asetembro de 2003). Em cinco longas sessões,confirmou-se, por 8 votos a 3, a condenação, peloTribunal de Justiça do Rio Grande do Sul emoutubro de 1966, de Siegfried Ellwanger pelo crimeda prática do racismo. Foram votos vencedores odo Ministro Maurício Corrêa, relator do acórdão(datado de 17 de setembro de 2003), e os dosMinistros Celso de Mello, Gilmar Mendes, CarlosVelloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso eSepúlveda Pertence. O Acórdão foi publicado peloSTF, com prefácio do Ministro Maurício Corrêa(Crime de Racismo e Antisemitismo – um julgamentohistórico do STF. Brasília, Brasília Jurídica, 2004).

A professora Anna Maria Villela dedicou-se,no seu consistente percurso intelectual, ao DireitoInternacional, com ênfase no Direito InternacionalPrivado, que tem entre os seus temas básicos orelacionamento entre distintos ordenamentos jurí-dicos. Este parecer também examina a interaçãoentre o ordenamento jurídico nacional e o DireitoInternacional dos direitos humanos. Trata, assim,de uma das categorias do Direito Internacional –Público e Privado – que é a da recepção, no hori-zonte dos interesses de Anna Maria Villela.

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dica dessa alegação. Em síntese, assim foiformulada a consulta: é o crime cometidopor Siegfried Ellwanger o da prática do ra-cismo, nos termos da Constituição e da cor-respondente legislação infraconstitucionalque o tipificou, tal como decidiu o Tribunalde Justiça do Rio Grande do Sul e o SuperiorTribunal de Justiça confirmou quando de-negou pedido de HC impetrado com os mes-mos fundamentos?

Como a vis directiva da tipificação do cri-me da prática do racismo é o art. 5º, XLII,integrante do Título II da Constituição, quetutela os direitos e garantias fundamentais,sua interpretação requer, por isso mesmo,para o adequado entendimento do alcanceda matéria, breve consideração sobre o pro-cesso histórico de afirmação e subseqüentepositivação dos direitos humanos.

2 – A tutela constitucional dos direitos egarantias fundamentais representa o reco-nhecimento jurídico do valor da pessoa hu-mana, que é um dos princípios fundamen-tais que a Constituição de 1988 proclama(art. 1º, III). O que cabe dizer sobre o processohistórico da afirmação desse valor, que estána raiz da tutela contemplada no art. 5 º, XLII?

O valor da pessoa humana está presen-te no livro do Gênesis (1,26), que afirma que“Deus criou o homem à sua imagem”. Ensi-na assim o Velho Testamento que o homemassinala o ponto culminante da criação, ten-do importância suprema na economia doUniverso. Na elaboração judaica desse en-sinamento isso se traduz numa visão da uni-dade do gênero humano, apesar da diversi-dade de nações, que se expressa nas Leis deNoé (Gênesis, 9, 6-17). Essas são um direitocomum a todos, pois constituem a aliançade Deus com a humanidade. Representamum conceito próximo do jus naturae et gentium,inspirador de ensinamentos do cristianismoe posteriormente de Grócio e Selden, que sãouma das fontes das Declarações de Direitosdas Revoluções Americana e Francesa.

Na vertente grega da tradição voltadapara afirmar a dignidade da pessoa huma-na, cabe mencionar o estoicismo. Na época

helenística, com o fim da democracia e dascidades-estado, o estoicismo atribuiu ao in-divíduo, que tinha perdido a qualidade decidadão para se converter em súdito dasgrandes monarquias, uma nova dignidadede alcance universal. O mundo é uma únicacidade – cosmo-polis – da qual todos partici-pam como amigos e iguais. À comunidadeuniversal do gênero humano correspondetambém um direito universal, fundado numpatrimônio racional comum, daí derivandoum dos precedentes da teoria cristã da lexaeterna e da lex naturalis, igualmente inspi-radora dos direitos humanos.

O cristianismo associa o ensinamentojudaico e o grego, ao aclimatar no mundo,através da evangelização, a idéia de quecada pessoa humana tem um valor absolu-to no plano espiritual. Jesus, como ensinaSão Paulo, chamou a todos para a salvaçãosem distinção entre judeus e gregos, escra-vos e homens livres, homens e mulheres(Epístola aos Romanos 10,12; Epístola aos Gála-tas, 3,28). Neste sentido o ensinamento cris-tão é um dos elementos formadores da men-talidade que tornou possível o tema dosdireitos humanos.

3 – O tema dos direitos humanos adqui-riu expressão normativa na Inglaterra, coma Magna Carta (1212), com a lei do HabeasCorpus (1679) e com o Bill of Rights (1689), epassou a ter um papel de grande relevânciana doutrina jurídica do jusnaturalismo ra-cionalista da Idade Moderna. Essa doutri-na difundiu largamente, nos séculos XVII eXVIII, a tese do contrato social, como expli-cação da origem do Estado, da Sociedade edo Direito, fundamentado na vontade con-corde dos indivíduos. O contratualismo temuma inequívoca dimensão democrática aojustificar o Estado e o Direito, não como umaemanação de cima para baixo do poder dosoberano ou de Deus, mas sim de baixo paracima, através da vontade dos indivíduos,que estão na base da sociedade.

A explicação contratualista, tal como for-mulada por exemplo por Locke, explicitaque o Estado e o Direito são um meio termo,

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fruto da celebração de um contrato social,que compatibiliza a liberdade de estado danatureza, onde tudo é permitido, com asexigências da vida em sociedade. Daí, comodiz Locke, a importância capital de settledstanding laws e o seu argumento de que oshomens would not quit the freedom of the stateof nature a não ser para preservar their lives,liberties and fortunes; and by stated rules ofright and property to secure their peace and qui-et (John Locke, Of Civil Government, SecondTreatise, Chicago, Gateway, Ed. 1964, Cap.11, p. 114).

O contratualismo inspirou a tutela dosdireitos humanos através da Constituição,pois um dos ingredientes da passagem doEstado absolutista para o Estado de Direitofoi a preocupação em estabelecer limites aopoder discricionário do soberano em rela-ção às pessoas que integram a sociedade.Daí a idéia-força de combinar a divisão depoderes – na lição clássica de Montesquieu– com uma declaração de direitos, ambasexpressas num texto escrito: a constituição.É este o sentido do artigo 16 da DeclaraçãoFrancesa dos Direitos do Homem e do Cida-dão, de 1789: “Toda sociedade na qual agarantia dos direitos não é assegurada nema separação dos poderes determinada, nãotem constituição”.

4 – No jusnaturalismo racionalista e se-cularizado que inspirou o constitucionalis-mo, os direitos humanos eram vistos comodireitos inatos e tidos como verdade eviden-te. A sua positivação constitucional atravésde Declarações, que se inicia no século XVIII,com as Revoluções Americana e Francesa,tinha como objetivo conferir aos direitos nelacontemplados uma dimensão permanentee segura. Essa dimensão seria o dado de es-tabilidade, que serviria de contraste e torna-va aceitável a variabilidade, no tempo e noespaço, do Direito Positivo dependente davontade do Legislador, em contextos locali-zados e variáveis. Essa variabilidade é ex-plicável, pois o Direito no mundo modernopassou a ter a dinâmica de um instrumentode gestão de uma sociedade em mudança.

A exigência de estabilidade é a razão de serdo art. 60, § 4º, inciso IV, da nossa Consti-tuição, que, ao estipular uma cláusula pé-trea, confere aos Direitos e Garantias fun-damentais, contemplados no Título II, a suadimensão hierárquica de permanência.

Neste sentido, a primeira conclusão des-te parecer é a de afirmar que o art. 5º, XLII,por estar inserido na sistemática constituci-onal dos direitos e garantias fundamentais,tutelado por cláusula pétrea, deve ser apre-ciado e interpretado com cuidados especi-ais. Com efeito, a vis directiva do constituin-te foi a de dar estabilidade e permanência aum sistema integrado de valores da convi-vência coletiva, que tem como valor-fonte adignidade da pessoa humana – um valorproclamado pela Constituição de 1988, cujoprocesso histórico de afirmação e positiva-ção apresentei de maneira apenas indicati-va, porém com o objetivo de dar o alcancehierárquico da matéria em questão (cf. CelsoLafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos –um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt,São Paulo, Cia. Das Letras, 1988, cap. IV, e asamplas referências bibliográficas indicadas).

II – Positivação, generalização,internacionalização e especificaçãocomo processos da afirmação dos

direitos humanos

5 – Na sua análise do processo de reco-nhecimento jurídico dos direitos humanos,Norberto Bobbio, endossando a análise deGregório Peces Barba, indica as etapas dapositivação, da generalização, da interna-cionalização, a elas agregando a da especi-ficação (cf. Norberto Bobbio, A Era dos Direi-tos, Rio de Janeiro, Campus, 1992, pp.49-65;Gregório Peces Barba e colaboradores, Cur-so de Derechos Fundamentales Teoria General,Madrid, Universidad Carlos III de Madrid,Boletín Oficial Del Estado, 1995, pp. 154-202).

A etapa de positivação se inicia com asDeclarações dos Direitos e sua irradiação

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nos textos constitucionais dos diversos pa-íses – (cf. Alphonse Aulard e Boris Mirkine-Guetzevich, Lés Déclarations des Droits del’homme, Paris, Payot, 1929), em função doque foi acima apontado no item 4 deste pa-recer. A etapa da positivação é indispensá-vel, pois sem ela os direitos humanos não secompletam. Seriam valores e ideais que nãose realizariam plenamente. Assim como osvalores estéticos se realizam no quadro, napoesia ou numa escultura, assim também ovalor ético dos direitos humanos se realiza,como aponta Gregório Peces Barba, medi-ante sua incorporação ao Direito Positivo(Gregório Peces Barba, op. cit. p. 160).

6 – A Declaração de Direitos da Virgíniae a Declaração Francesa de 1789, vincula-das à Revolução Americana e à RevoluçãoFrancesa, que dão início ao grande proces-so de positivação, proclamam nas suas aber-turas, nos seus respectivos artigos iniciais,a dimensão igualitária dos direitos humanosao afirmar que todos os seres humanos sãolivres e iguais. É essa dimensão igualitáriaque caracteriza o processo da generalização.

Esse processo de generalização adquiredimensão internacional com a DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos do Homemde 1948, que afirma no seu artigo 1 º: “Todosos homens nascem livres e iguais em digni-dade e direitos. São dotados de razão e cons-ciência e devem agir em relação uns aos ou-tros com espírito de fraternidade”.

René Cassin, um dos grandes inspira-dores e redatores da Declaração Universal,entendia que o seu artigo 1º, assim como oseu artigo 2º, constituem o pórtico do tem-plo dos direitos humanos. Com efeito, o ar-tigo 2º é o corolário lógico do artigo anteriorao afirmar o princípio da não discrimina-ção: “Art. 2º–1. Todo homem tem capacida-de para gozar os direitos e liberdades esta-belecidos nesta Declaração, sem distinçãode qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo,língua, religião, opinião ou de outra nature-za, origem nacional ou social, riqueza, nas-cimento ou qualquer outra condição”. Emsíntese, os princípios gerais da liberdade,

igualdade, não discriminação e fraternida-de, que Cassin considerava os princípiosembasadores do pórtico do templo dos Di-reitos Humanos, são a expressão do proces-so de generalização (Cf. Marc Agi, René Cas-sin, Père de la Declaration Universelle des droitsde l’homme, Mesnil – Sur - L’Estrée, Perrin,1998, p.232).

7 – A Constituição de 1988 explicita demaneira inequívoca a afirmação dos princí-pios inerentes ao processo de generalização,com os seus componentes de igualdade enão discriminação que acima discuti. Essaexplicitação, como aponta José Afonso daSilva, é veemente. Ela está presente não ape-nas no art. 5º, caput: “Todos são iguais pe-rante a lei, sem distinção de qualquer natu-reza”, mas se vê reforçada, como realça omesmo autor, pela relevância constitucio-nal de não discriminação consagrada no art.3º, IV, que estabelece, entre os objetivos fun-damentais da República Federativa do Bra-sil, o de “promover o bem de todos, semquaisquer preconceitos de origem, raça,sexo, cor, idade e quaisquer outras formasde discriminação” (cf. José Afonso da Silva,Curso de Direito Constitucional Positivo, 22a

ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p.222).8 – A especificação, observa Bobbio, é

uma outra etapa do processo de afirmaçãohistórica dos direitos humanos. Está volta-da para determinar de maneira mais con-creta – e não de forma abstrata, como no pro-cesso de generalização – os destinatários datutela jurídica dos direitos e garantias indi-viduais. É assim que se completa a idéia dosdestinatários genéricos – os seres humanos,os cidadãos – com a especificação do serhumano situado – como, por exemplo, a cri-ança, a mulher, o deficiente mental, os ido-sos. Gregório Peces Barba, na sua elabora-ção, a partir de Bobbio, da etapa de especifi-cação, diz que se trata de um processo deconcreção histórica que não é apenas umaelaboração do já consagrado pelo processode generalização. É uma contribuição queagrega novos elementos ao conteúdo dosdireitos humanos, que enriquecem e com-

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pletam o valor da dignidade da pessoa hu-mana, como o valor-fonte da sua positiva-ção (cf. Norberto Bobbio, op.cit., pp. 62-63;Gregório Peces Barba, op.cit., pp. 180-182).

A Constituição de 1988 exprime de ma-neira muito nítida o impulso do processode especificação. É o que se depreende, porexemplo, da substanciosa análise que fezJosé Afonso da Silva, do Direito de Igualda-de, no seu Curso de Direito Constitucional Po-sitivo. Com efeito, ao princípio genérico danão discriminação – a igualdade perante alei sem distinção de qualquer natureza –, con-sagrado no caput do artigo 5º, o articuladoconstitucional positiva especificações do serhumano. Daí a afirmação da igualdade semdistinção de sexo; a igualdade sem distin-ção de origem, cor e raça; a igualdade semdistinção de idade; a igualdade sem distin-ção de trabalho; a igualdade sem distinçãode credo religioso; a igualdade sem distin-ção de convicção filosófica, examinados porJosé Afonso da Silva (op.cit., pp.222-228).

O art. 5º, LXII, da Constituição de 1988 éuma faceta constitucionalmente inovadoraem nosso País do processo de especificaçãoque tem como nota própria atribuir à práti-ca do racismo uma tutela penal. Essa tutelapenal é mais rigorosa do que a prevista noinciso anterior do mesmo artigo. Com efeito,o inciso XLI determina que “a lei puniráqualquer discriminação atentatória dos di-reitos e liberdades fundamentais”; já o inci-so XLII estabelece que “a prática do racismoconstitui crime inafiançável e imprescrití-vel, sujeito à pena de reclusão nos termosda lei”. Essa tutela penal tem, portanto, ca-racterísticas próprias que não são idênticasa outras igualmente rigorosas presentes noTítulo II, como a do art. 5º, XLIII (prática detortura, o tráfico ilícito de entorpecentes edrogas afins, o terrorismo e os definidoscomo crimes hediondos), mas que coincidemcom a do art. 5 º, LXIV, que também constituicomo “crime inafiançável e imprescritível aação de grupos armados, civis ou militares,contra a ordem constitucional e o Estado deDireito”.

O rigor da tutela penal constitucional-mente previsto para a prática do racismodemonstra a importância que o constituinteatribuiu à sua repressão, cabendo igualmen-te mencionar que a preocupação do consti-tuinte com o tema também se expressa noart. 4º, VIII, que estabeleceu como um dosprincípios que regem as relações internaci-onais do Brasil o repúdio tanto do racismoquanto do terrorismo – dois delitos para osquais a Constituição prevê tutela penal ri-gorosa.

Assim, a segunda conclusão deste pare-cer é a de que o art. 5º, LXII, da Constituiçãoexprime a etapa de especificação do processohistórico de positivação dos direitos huma-nos e a de que, nesse processo, o constituinteatribuiu à prática do racismo uma excepcio-nal gravidade, daí advindo o extraordináriorigor da tutela penal nele contemplada.

III – Interpretação do art. 5º, XLII, daConstituição – critérios

8 – A interpretação é inerente à vida dodireito e os seus métodos um assunto muitoconhecido e debatido. Entendo, no entanto,útil apresentar algumas observações sobrepeculiaridades que cercam a interpretaçãodos direitos e garantias fundamentais. In-terpretar o art. 5º, LXII, significa dotar designificado o conteúdo jurídico nele previs-to. A particularidade da operação de inter-pretar os direitos humanos deriva, comoobserva Gregório Peces Barba, tanto da suarelevância hierárquica no sistema constitu-cional quanto do fato que numa democra-cia, que se baseia na perspectiva ex partepopuli, a ação de interpretar os direitos egarantias fundamentais deve partir da com-preensão de que os direitos são os legitima-dores do sistema. Essa visão de Peces Barbase coaduna com a Constituição de 1988 àluz da cláusula pétrea que os cerca (art. 60,§ 4º – inciso IV); dos objetivos da RepúblicaFederativa do Brasil entre os quais está o depromover o bem de todos sem quaisquer dis-criminações (art. 3º, IV); do fundamento da

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dignidade humana afirmado no art. 1º, III,todos já referidos no correr deste parecer. Épor esse motivo, como realça Peces Barba,que na interpretação dos direitos humanosdeve-se favorecer siempre y em todo caso, de lamejor forma posible el contenido del derecho(Gregório Peces Barba, op. cit., p. 577).

Registro que foi dessa maneira que pro-cedi na interpretação, no âmbito do Execu-tivo, do princípio constitucional do repú-dio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, VIII),que é um dos princípios que regem as rela-ções internacionais do nosso País. Com efei-to, como Ministro de Estado das RelaçõesExteriores, e com a responsabilidade jurídi-ca que essa condição me atribuía, afirmeique a iniciativa brasileira de invocar o Tra-tado Interamericano de Assistência Recípro-ca, em função dos ataques terroristas aosEUA em 11 de setembro de 2001, significa-va aplicar o art. 4º, VIII – repúdio ao terro-rismo – de maneira congruente com o senti-do, no plano interno, do art. 5º, LXIII. Damesma maneira, afirmei que o trato do temada segurança e da cooperação internacio-nal no combate ao terrorismo, na tríplicefronteira da Argentina, do Paraguai e doBrasil, que inclui as cidades de Chuí e Fozdo Iguaçu, nas quais vivem numerosas pes-soas de origem árabe, palestinos e fiéis mu-çulmanos, exigia uma atitude do Executivo,inequivocamente firme na oposição ao pre-conceito e à discriminação. Fundamenteiessa posição tanto no princípio do repúdioao racismo no plano internacional (art. 4º,VIII) quanto na vis directiva constitucional,para o plano interno, de uma sociedade plu-ralista, voltada para afirmar o bem de todos(art. 3º, IV). Neste sentido, dei, na linha dePeces Barba, o maior conteúdo possível aoart. 5º, XLII (cf. Celso Lafer, Mudam-se os Tem-pos – Diplomacia Brasileira - 2001-2002, Bra-sília, Funag-Ipri, 2002, pp. 53-69).

Passo a explicitar a minha linha de raci-ocínio. Os princípios constitucionais queregem as relações internacionais estabele-cem padrões de comportamento, estímulose limites à conduta externa do Brasil. Entre

eles está o da prevalência dos direitos hu-manos (art. 4º, II). Devem ser aplicados le-vando-se em conta suas implicações no pla-no interno, não só por uma questão de coe-rência, mas pelo fato de que nesta era deglobalização vem-se diluindo a diferençaentre o “interno” e o “externo”. No caso emquestão, que envolvia a cooperação inter-nacional em matéria de combate ao terroris-mo, isso era evidente, pois o tema passavapelas cidades brasileiras de Chuí e Foz doIguaçu. Daí o vínculo entre o art. 4º, VIII e oart. 5º, XLII, e a ênfase atribuída ao risco daprática discriminatória do racismo e das te-orias e preconceitos que a sustentam emrelação a palestinos e muçulmanos e não,realço, em raça, palavra que não está conti-da nem no art. 4º, VIII, nem no art. 5º, XLII.(Sobre princípios constitucionais a reger asrelações internacionais, cf. Antonio RamiroBrotons, La acción exterior del Estado, Madrid,Tecnos, 1984, pp.92-115; Pedro Dallari, Cons-tituição e Relações Exteriores, São Paulo, Sa-raiva, 1994, que também analisa o repúdioao terrorismo e ao racismo, vinculando-osao art. 5º, XLII e XLIII, ver pp. 175-178. Nomeu prefácio ao livro de Pedro Dallari, exem-plifiquei várias situações de aplicação a situ-ações concretas dos princípios constitucio-nais que regem as relações internacionais.)

Ao conferir o maior conteúdo possívelao art. 5º, XLII, ou seja, à prática do racismo,interpretei-o em consonância com a visãointernacional da matéria. Lembro, nestesentido, a Resolução 623 da AssembléiaGeral da ONU de dezembro de 1998 que, noseu item 17, insta todos os governos acooperar com o relator especial da Comissãodos Direitos Humanos incumbido deexaminar as formas contemporâneas deracismo, discriminação racial, xenofobia eoutras formas correlatas de intolerância.Essa colaboração tem como objeto, nostermos do item 17, o exame de incidents ofcontemporary forms of racism and racialdiscrimination, inter-alia, against blacks, Arabsand Muslins, xenophobia, Negrophobia, anti-semitism and related intolerance.

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O item 17 da Resolução 623/98 da As-sembléia Geral, que sustenta minha inter-pretação sobre a prática do racismo atingin-do árabes e muçulmanos, refere-se igual-mente ao anti-semitismo. Daí a relevânciade se examinar qual é a contribuição que oDireito Internacional Público pode oferecercomo critério de interpretação do art. 5 º, XLII,no caso ora em apreciação, pelo STF.

9 – A Constituição de 1988 é explicita-mente receptiva ao Direito InternacionalPúblico em matéria de direitos humanos nãosó pelo princípio de sua prevalência nas re-lações internacionais (art. 4º, II), como emespecial pelo § 2º do art. 5º, que estabelece:“Os direitos e garantias expressos nestaConstituição não excluem outros decorren-tes do regime e dos princípios por ela adota-dos, ou dos tratados internacionais em quea República Federativa do Brasil seja par-te”. Se a referência ao caráter não exaustivoou supressivo da enumeração de direitostem antecedentes em nosso direito constitu-cional, é novidade a menção explícita aostratados internacionais de que o Brasil éparte, como aponta Antonio Augusto Can-çado Trindade. Ela assinala, constitucional-mente, a identidade de objetivos do direitointernacional e do direito público internoquanto à proteção da pessoa humana (cf.Antonio Augusto Cançado Trindade, A Pro-teção Internacional dos Direitos Humanos – Fun-damentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, SãoPaulo, Saraiva, 1991, p. 635). É essa identi-dade que leva Cançado Trindade a afirmarque, longe de operarem de modo estanqueou compartamentalizado, o Direito Interna-cional e o Direito Interno, por força da Consti-tuição de 1988, passaram efetivamente a inte-ragir em matéria de direitos humanos, caben-do lembrar, como ele documenta em livro re-cente, que o Brasil participou do processo deelaboração normativa do direito internacio-nal da pessoa humana, tanto no plano glo-bal, no âmbito das Nações Unidas, quantono plano regional, no âmbito do sistema ame-ricano (cf. Antonio Augusto Cançado Trin-dade, A Proteção Internacional dos direitos hu-

manos e o Brasil, 2a ed., Brasília, Editora Uni-versidade de Brasília, 2000, p. 26 e passim).

Como adiante se verá, para o objeto des-te parecer, voltado para discutir o conteúdodo crime de racismo suscitado pelo HC82424-2, não será necessário analisar asmúltiplas dimensões e as controvérsias ju-rídicas em torno do alcance dessa interaçãoentre o Direito Internacional e Direito Inter-no no sistema da Constituição de 1988. Érelevante, no entanto, apontar que o DireitoInternacional dos Direitos Humanos podecontribuir para a interpretação e o reforçoda imperatividade dos direitos constitucio-nalmente garantidos.

Esse é um entendimento que o STF reco-nheceu ao julgar o HC 7384, em 23/6/1994,em fundamental acórdão relatado pelo emi-nente Ministro Celso de Mello e substanti-vamente analisado por Flávia Piovesan. Nadiscussão sobre a existência jurídica do cri-me de tortura contra crianças e adolescen-tes, tipificado na época pelo art. 233 da Leinº 8.069/90 com fundamento no art. 5º ,XLIII, da Constituição, o Ministro Celso deMello ressaltou: “o tipo penal em causa épassível de complementação, à semelhançado que ocorre com tipos penais abertos, bas-tando, para esse efeito, que o aplicador danorma proceda à integração do preceito pri-mário incriminador mediante a utilizaçãodos meios postos à sua disposição. Cumpredestacar, pois, dentro dessa perspectiva, aexistência de diversos atos internacionaisque, subscritos pelo Estado brasileiro, seacham formalmente incorporados ao nossosistema jurídico. O Brasil, consciente da ne-cessidade de prevenir e reprimir os atos ca-racterizadores de tortura, subscreveu, noplano externo, importantes documentos in-ternacionais de que destaco, por sua inques-tionável importância, a Convenção contra aTortura e Outros Tratamentos ou Penas Cru-éis, Desumanas ou Degradantes, adotadapela Assembléia Geral das Nações Unidasem 1984, a Convenção Interamericana so-bre Direitos Humanos (Pacto de São José daCosta Rica) adotada no âmbito da OEA em

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1969. Esses atos internacionais já se achamincorporados ao plano do direito positivointerno (Decreto nº 40/91, Decreto nº98.386/89 e Decreto 678/92) e constituem,sob esse aspecto, instrumentos normativosque, podendo e devendo ser consideradospelas autoridades nacionais, fornecem sub-sídios relevantes para a adequada compre-ensão da noção típica do crime de tortura,ainda que em aplicação limitada, no que serefere ao objeto de sua incriminação, “ape-nas às crianças e adolescentes” (cf. FláviaPiovesan, Direitos Humanos e o Direito Cons-titucional Internacional, (5a ed., revista, am-pliada e atualizada), São Paulo, Max Limo-nad, 2002, pp.111-115 e passim; cf. igual-mente Valério de Oliveira Mazzuoli, Direi-tos Humanos, Constituição e os Tratados Inter-nacionais, São Paulo, Editora Juarez de Oli-veira, 2001, cap. VII).

Em síntese, e esta é a terceira conclusãodeste parecer, o critério da interpretação doart. 5º, LXII, deve favorecer de maneira am-pla e não restritiva o conteúdo do direitonele contemplado, dada a relevância que aConstituição atribui aos direitos e garanti-as fundamentais, entre as quais se inclui arigorosa inaceitabilidade da prática do ra-cismo. Nessa interpretação, o Direito Inter-no e o Direito Internacional interagem e nãosão estanques com vistas a reforçar a impe-ratividade do direito constitucionalmentegarantido, voltado para impedir a práticado racismo.

IV – Interpretação do art. 5º, LXII, daConstituição – o HC 82424-2 e o riscodo esvaziamento do conteúdo jurídico

do preceito constitucional10 – O impetrante alega no HC 82424-2,

perante o Supremo Tribunal Federal, comoantes alegara perante o Superior Tribunalde Justiça, que, não sendo os judeus umaraça, o crime perpretado por seu pacienteao editar e vender livros que fazem a apolo-gia de idéias preconceituosas contra os ju-deus não foi o de prática do racismo, mas

sim o de incitamento contra o judaísmo.Busca, assim, ilidir a imprescritibilidade dodelito a que seu paciente foi condenado.

O pedido de HC perante o Superior Tri-bunal de Justiça tinha como objeto o subs-tancioso acórdão da 3 a Câmara Criminal doTribunal de Justiça do Estado do Rio Gran-de do Sul que condenou Sigfried Ellwangerao imprescritível crime de racismo, comamparo no art. 20 da Lei nº 7.716/89, com anova redação dada pela Lei nº 8.081/90,tendo o desembargador José Eugenio Tedes-co sublinhado no seu voto “a supremaciavalorativa do dever de não discriminar” con-sagrada na Constituição de 1988.

O Superior Tribunal de Justiça, em de-cisão majoritária da sua 5a Turma presi-dida pelo Ministro Felix Fischer, rejeitouas alegações do impetrante, tendo sidorelator do feito o Ministro Gilson Dipp. Este,no seu preciso voto, deu, no meu entendercom toda razão, ênfase na interpretação doart. 5º, LXII, ao artigo 20 da Lei 8.081/90 quefoi acréscimo à Lei nº 7.716 de 5 de janeirode 1989. Diz o art. 20, que trata dos crimese penas aplicáveis aos atos discriminató-rios ou a preconceito de raça, cor, religião,etnia ou procedência nacional, praticadospelos meios de comunicação ou por pu-blicações de qualquer natureza:

“Praticar, induzir ou incitar, pelos mei-os de comunicação social ou por publica-ções de qualquer natureza, a discriminaçãoou preconceito de raça, religião, etnia ou pro-cedência nacional.

Penas: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco)anos”.

Entendeu o Ministro Gilson Dipp que ocrime praticado por Siegfried Ellwanger édaqueles classificados na categoria de meraconduta, ou seja, não se exige a realizaçãode resultado material para a sua configura-ção, e que não cabe fazer a diferenciação en-tre as figuras de prática, incitação ou de in-duzimento “para fins de configuração deracismo, eis que todo aquele que pratica umadestas três condutas discriminatórias oupreconceituosas é autor do delito de racis-

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mo, inserindo-se, em princípio, no âmbitoda tipicidade direta”.

O Ministro Jorge Scartezzini, no seu im-portante voto, no qual acompanha o Minis-tro Relator, trouxe à colação a doutrina bra-sileira que comenta o art. 5º, LXII, da Cons-tituição, ao examinar os pontos de vista ex-postos por Manoel Gonçalves Ferreira Fi-lho, Celso Ribeiro Bastos e José Cretella Jr.Agrega o Ministro Jorge Scartezzini elemen-tos adicionais no seu voto, ressaltando que aConstituição de 1988, ao dispor sobre o temada prática de racismo, “pretendeu que tal prá-tica fosse abolida e reprimida em todas as suasformas e não só pela tez da pele”.

O Ministério Público Federal, em pare-cer de autoria de Cláudio Lemos Fonteles,Subprocurador-Geral da República, opinoupelo indeferimento do pedido de HC peloSupremo Tribunal Federal, afirmando que é“injurídico o argumento que, pelo texto cons-titucional, reduz a prática do racismo àraça”. Em seu parecer, Cláudio Lemos Fon-teles se baseia na Lei 8.071/90 e realça quehoje, pela Lei 9.458/97, ex-vi do novo pará-grafo 2º do artigo 20, o meio – “valendo-sedos meios de comunicação social de qual-quer natureza” – passou a constituir-se emforma qualificada, com apenação autônomamais grave do crime da prática do racismo.Conclui que a legislação infraconstitucio-nal, ao definir a prática do racismo, tipifi-cou várias figuras penais e que esses crimessão todos imprescritíveis. Afirma assimCláudio Lemos Fonteles que não há extra-vasamento na interpretação do texto consti-tucional quando se conclui que SiegfriedEllwanger, ao infringir o art. 20 da Lei nº8.081/90, cometeu o crime de prática do ra-cismo.

11 – O crime de prática do racismo, comoconcluiu o acórdão do Superior Tribunal deJustiça, confirmando o entendimento do Tri-bunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não sebaseia no termo “raça”, que tem conotaçãopseudocientífica – como adiante se verá como devido rigor – mas sim nas teorias e concep-ções que atribuem ao termo raça o fundamen-

to da discriminação, condenada pelo art. 5º,LXII, da Constituição de 1988. É por esta ra-zão que o impetrante comete uma faláciaargumentativa ao afirmar que o crime deSiegfried Ellwanger não se subsume comoprática de racismo nos termos do art. 20da Lei 8.081/90, uma vez que os judeusnão são uma raça e por isso mesmo o de-lito cometido pelo seu paciente é o do in-citamento contra o judaísmo e não o daprática do racismo.

No seu arrazoado, o impetrante invo-ca publicação da UNESCO que afirma queos judeus não formam uma raça. Omite,no entanto, que a UNESCO foi uma dasprimeiras entre as organizações interna-cionais do pós-Segunda Guerra Mundi-al, em função dos próprios termos de suaata de constituição, que se dedicaram ademonstrar e condenar o conteúdo racis-ta da ideologia nazista (cf., por exemplo,Juan Comas, Kenneth I. Little, Harry I.Shapiro, Michel Leiris, Claude Lévi-Strauss, Raça e Ciência I, São Paulo, Perspec-tiva, 1970, e muito especialmente, para os pro-pósitos deste parecer, a apresentação, pp. 7-9). É essa ideologia que Siegfried Ellwangervem-se dedicando a divulgar por publica-ções, ao arrepio do art. 20 da Lei 8.081/90.

Foi por se preocupar desde suas origenscom a prática do racismo que a UNESCOadotou e proclamou, em 27 de novembro de1978, na vigésima sessão de sua conferên-cia geral, uma importantíssima Declaraçãosobre Raça e Preconceito Racial. Essa De-claração, igualmente omitida no arrazoadodo impetrante, contesta frontalmente a suaargumentação.

Diz o art. 1 – 1 da Declaração da UNES-CO que todos os seres humanos pertencema uma única espécie, o que não exclui, comoafirma o inciso II do artigo 1, o direito à di-versidade de indivíduos e grupos. No seuartigo 2 – 1, a Declaração afirma que quais-quer teorias que contemplem a reivindica-ção de que grupos raciais ou étnicos são ine-rentemente superiores ou inferiores não têmfundamento científico e são contrárias aos

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princípios morais e éticos da humanidade.Os textos acima referidos, na íntegra, são osseguintes:

“Art. 1 – 1 All human beings belong to asingle species and are descended from a commonstock. They are equal in dignity and rights andall form an integral part of humanity.”

“Art. 1 – 2 All individual and groups havethe right to be different, to consider themselvesas different and to be regarded as such. However,the diversity of life styles and the right to bedifferent may not, in any circumstances, serve asa pretext for racial prejudice; they may not justifyeither in law or in fact any discriminatorypractice whatsoever, nor provide a ground forthe policy of ‘apartheid’, which is the extremeform of racism.”

“Art. 2 – 1 Any theory which involves theclaim that racial or ethnic groups are inherentlysuperior or inferior, thus implying that somewould be entitled to dominate or eliminate others,presumed to be inferior, or which bases valuejudgements on racial differentiation, has noscientific foundation and is contrary to the moraland ethical principles of humanity.”

Prossegue a Declaração, no art. 2 – 2,para qualificar o que é racismo e substanti-vamente realçar que a prática do racismoreside nas ideologias racistas, nas atitudespreconceituosas, no comportamento discri-minatório que levam à desigualdade racial,e não reside no conceito de “raça” que o art.1 – 1 da Declaração nega, ao afirmar a uni-dade da espécie humana. Diz o art. 2 – 2, naíntegra, o seguinte:

“Art. 2 – 2 Racism includes racist ideologies,prejudiced attitudes, discriminatory behaviours,structural arrangements and institutionalizedpractices resulting in racial inequality as well asthe fallacious notion that discriminatoryrelations between groups are morally andscientifically justifiable; it is reflected indiscriminatory provisions in legislation orregulations and discriminatory practices as wellas in anti-social beliefs and acts; it hinders thedevelopment of its victims, perverts those whopractise it, divides nations internally, impedesinternational co-operation and gives rise to

political tensions between peoples; it is contraryto the fundamental principles of internationallaw and, consequently, seriously disturbsinternational peace and security.”

Afirma igualmente a Declaração, no seuart. 5 – 3, ao falar da cultura e dos meios decomunicação, que a erradicação do racis-mo, da discriminação racial e do preconcei-to racial requer “refraining from presenting astereotyped, partial, unilateral or tendentiouspictures of individuals and of various humangroups.”

{(O texto completo da Declaração se en-contra na publicação da ONU, Human Ri-ghts. A Compilation of International Instru-ments, vol. 1 (First Part) Universal Instru-ments, United Nations, New York and Ge-neva, 1994 (ST/HR/1/Rev. 5) vol. 1, Part I,pp. 133-134)}.

Como se vê, a UNESCO de maneira al-guma abona a tese do impetrante, pois sub-sume inequivocamente o crime de SiegfriedEllwanger na tipicidade da prática do ra-cismo.

O impetrante, no seu arrazoado, traz àcolação texto da antropóloga Lilia MoritzSchwarcz para abonar a tese de que o dis-curso racista no Brasil sempre foi dirigidocontra o negro. Ora, essa mesma antropólo-ga escreveu livro recente sobre Racismo noBrasil (São Paulo, Publifolha, 2001). Neleafirma: “Raça é, assim, uma construção his-tórica e social, matéria-prima para o discur-so das nacionalidades”; ou então, confor-me Thomas Sowell, “antes de um conceitobiológico é uma realidade social, uma dasformas de identificar pessoas em nossaspróprias cabeças” (p. 35). Afirma, igualmen-te, lastreada em Louis Dumont, conhecidoestudioso das castas, que “o racismo repre-senta a hierarquia reinventada em socieda-des supostamente igualitárias” e que o ra-cismo é uma “naturalização das diferenças”,“uma tentativa de fazer a diversidade sermais do que é” (p. 81). Por isso, ao apontarque o racismo é um tema da agenda global eao discutir o racismo brasileiro, entende eafirma que, ao se lidar com ódios históricos,

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nomeados a partir da raça, da etnia ou daorigem: “O primeiro procedimento a desta-car, ainda uma vez, o caráter pseudocientí-fico do termo ‘raça’, mesmo porque seu sen-tido é diverso de lugar para lugar e suasdeterminações de cunho biológico têm efei-to apenas relativo e estatístico. Não há, por-tanto, como imputar à natureza o que é daordem da cultura: a humanidade é una, asculturas é que são plurais” (p. 81).

A antropóloga citada pelo impetrante,portanto, entende que a prática do racismoprovém inequivocamente das teorias quereinventam a desigualdade através do con-ceito pseudocientífico de raças e, dessemodo, contestam os princípios da igualda-de e da não discriminação. Esses são os pon-tos de partida do processo de especificaçãoque levou, como foi exposto, ao art. 5º, LXII,da Constituição de 1988. Ao tema alegadopelo impetrante, de que o racismo no Brasilse voltou apenas contra o negro, retornareimais adiante neste parecer, para mostrar quese trata de uma apreciação incompleta danossa História. O que importa realçar nestemomento é que nem a UNESCO nem a lite-ratura antropológica, tal como falaciosamen-te argumentado no HC 82424-2, permitemconcluir que o crime praticado por SiegfriedEllwanger não é o da prática do racismo eenquanto tal imprescritível de acordo com oDireito brasileiro.

12 - As implicações de reduzir o crimeda prática do racismo ao conceito de raçasão graves e vão muito além do objeto doHC 82424-2, ora em exame pelo SupremoTribunal Federal. Exemplifico.

Acompanhei de perto em função dasminhas responsabilidades na época, comoMinistro das Relações Exteriores, a Confe-rência da ONU de Durban em 2001 contra oracismo, muito consciente dos princípiosconstitucionais que regem as relações inter-nacionais que me cabia seguir – no caso oart. 4º, II e VIII (prevalência dos direitos hu-manos e repúdio ao racismo). Estes foram oponto de partida das instruções dadas àdelegação brasileira. O Embaixador J. A.

Lindgren Alves, que integrou a nossa dele-gação e é membro do Comitê para a Elimi-nação da Discriminação Racial da ONU,relata um caso paradigmático do risco aci-ma apontado, ocorrido na Conferência.

Em Durban, a Índia não aceitava que seincluíssem os párias entre as vítimas do ra-cismo, alegando que as castas não decorremda raça, alegação que a Conferência eviden-temente não acolheu. Lindgren Alves, que,além de suas funções diplomáticas, é um scho-lar no campo dos Direitos Humanas, extraias conseqüências desse tipo de alegação.

Observa ele que “todos de boa-fé sabemque ‘raça’ é sobretudo uma construção soci-al, negativa ou positiva, conforme o objetivoque se lhe queira dar”. Assim, “o problemanão está na existência ou não de raças, masno sentido que se dá ao termo. Se atribuir-mos caracteres inerentes, naturais e inesca-páveis, às diferenças físicas, psíquicas, lin-güísticas ou etno-religiosas de qualquerpopulação, estaremos sendo racistas, qua-se sempre para o mal”. Destarte, a legítimanão aceitação da noção de raça, que a De-claração da UNESCO de 1978 afirma, comofoi visto, pode arrastar a um absurdo na con-denação e repressão da prática do racismo.“Por uma questão de lógica”, aponta Lind-gren Alves comentando o que ocorreu emDurban, “a inexistência de raças poderiarepresentar inexistência de racismo, justifi-cando uma inação, que ninguém ousaria,na Conferência, suscitar como posição” (J.A. Lindgren Alves, A Conferência de Dur-ban contra o racismo e a responsabilidadede todos, Revista Brasileira de Política Inter-nacional, ano 45, nº 2, 2002, pp. 206 e 208).

O argumento de Lindgren Alves é umargumento, contrario sensu, válido para oDireito Penal no qual o argumento per ana-logiam é vedado. Tem um estatuto axiológi-co que depende de uma avaliação pelo in-térprete, conforme um juízo de valor. Nocaso em questão – o HC 182424-2 –, o valorpositivado é a exigência constitucional dereprimir penalmente a prática do racismo(sobre o argumento contrario sensu, cf. Tércio

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Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo doDireito, 2a ed., São Paulo, Atlas, 1994, pp.337-339). O argumento contrario sensu é, as-sim, aplicável na exegese do art. 5º, LXII, daConstituição, e do art. 20 da Lei 7.716/89,com a redação dada pela Lei nº 8.081/90.Com efeito, na inexistência de raça – o que oseqüenciamento do genoma humano con-firma do ponto de vista biológico –, inter-pretar a prática do racismo, a partir da raça,conduz, no limite, ao esvaziamento com-pleto do que pretendeu a Constituição de1988 e a correspondente legislação infra-constitucional. Significa, em poucas pa-lavras, em lugar do que recomenda PecesBarba, na interpretação dos direitos hu-manos, ou seja, favorecer sempre, em todocaso, da melhor forma possível o conteú-do do Direito, fazer exatamente o inverso,isto é, contribuir para o seu progressivoesvaziamento e, no seu limite, para o pró-prio desaparecimento do bem tuteladopelo Direito brasileiro. Em outras pala-vras, a conseqüência, numa situação-li-mite, é converter o crime da prática do ra-cismo em crime impossível pela inexistên-cia do objeto (sobre o crime impossível, cf.Miguel Reale Jr., Instituições de Direito Pe-nal - Parte Geral, vol. I, Rio de Janeiro, Fo-rense, 2002, pp. 305-311).

Neste sentido é essa a quarta conclusãodeste parecer: discutir o crime da prática doracismo a partir do termo raça nos termosdos argumentos apresentados no HC 82424-2 em favor de Siegfried Ellwanger é umamaneira de reduzir e, no limite, esvaziarcompletamente o conteúdo jurídico dopreceito constitucional consagrado peloart. 5º , LXII, devidamente disciplinadopela legislação infraconstitucional, con-vertendo-o em crime impossível. O art. 5º,LXII, não menciona raça e o conteúdo jurí-dico do crime da prática do racismo residenas teorias e preconceitos que discriminamgrupos e pessoas a eles atribuindo caracte-rísticas de uma “raça”. Só existe uma “raça”– a espécie humana – e, portanto, do pontode vista biológico, não apenas os judeus,

como também os negros, os indígenas, osciganos ou quaisquer outros grupos, religi-ões ou nacionalidades não formam umaraça, o que não exclui, ressalvo, o direito àdiversidade. No entanto, todos são passí-veis de sofrer a prática do racismo. É essaprática que o Direito brasileiro condena ereprime e foi por essas bem fundamentadasrazões que Siegfried Ellwanger foi conde-nado pelo Tribunal de Justiça do Rio Gran-de do Sul e que o Superior Tribunal de Justi-ça não acolheu o pedido de HC. Aceitar osargumentos do impetrante – que, além defalaciosos, são incompletos, inclusive naperspectiva da UNESCO e de autores que trou-xe à colação no seu arrazoado – significa, res-salto uma vez mais, reduzir o conteúdo jurí-dico da Constituição e da lei, o que não é acei-tável na interpretação dos direitos e garanti-as individuais. Significa, também, no limite,por força do argumento contrario sensu, quecabe em matéria penal, o risco de esvaziar obem jurídico tutelado pelo Direito brasileiro.É à confirmação desta quarta e decisiva con-clusão, a partir de outros ângulos, que me de-dicarei na seqüência deste parecer.

V – Os argumentos apresentados noHC 82424-2 e os ensinamentos de

decisões da Suprema Corte dos EUAe da House of Lords da Inglaterra

13 - Numa matéria com a relevância des-ta que está sendo examinada pelo SupremoTribunal Federal, sobre a qual versa esteparecer, é sempre útil testar a linha de raci-ocínio que vem sendo desenvolvido, medi-ante referências a casos decididos por Tribu-nais Superiores de outros países, que têm re-levantes pontos de contato com as questõessuscitadas pelo HC 82424-2. Vou, assim, to-mar a iniciativa de apresentar um caso deci-dido pela Suprema Corte dos EUA e a seguiroutro, pela Câmara dos Lordes da Inglaterra.

14 - O caso examinado pela SupremaCorte dos EUA e decidido em 18 de maio de1987, em voto formulado pelo “Justice”

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White, respaldado pela unanimidade daCorte, é particularmente interessante.Tratava-se da sinagoga da CongregaçãoShaare Tefila em Silver Spring, Maryland,que tinha sido grafitada com tinta vermelhae preta e com grandes slogans anti-semitas,frases e símbolos. A Congregação e algunsde seus membros moveram ação contra osresponsáveis, invocando a legislação norte-americana de 1982, voltada para o combate àdiscriminação racial. Os acusados se defenderam, alegando, à maneira do impetrante,que não sendo os judeus um grupo racialdistinto, não estavam cobertos pela tutelaprevista pela legislação norte-americana de1982. Os argumentos dos acusados foramacolhidos na primeira e na segunda instância e revertidos na decisão da SupremaCorte de 18 de maio de 1987. O fundamentoda decisão foi claro: apesar de os judeusserem, na data da decisão da Corte, parte doque é tido como a raça caucasiana, estavamtutelados pela legislação norte-americana de1982. Esta visava a proteger da discri minaçãoclasses identificáveis de pessoas, submetidasà discriminação intencional, apenas por contade sua origem ou carac terísticas típicas.Afirmava a Corte, com base na histórialegislativa da lei de 1982, que árabes e judeusestavam entre os que, na época, eram tidoscomo raças distintas. Por isso estavam porela protegidos. Concluiu assim a decisão:“Jews are not foreclosed from stating a cause ofaction against other members of what today isconsidered to be part of the caucasian race. Thejudgement of the Court of Appeals is thereforereversed and the case is remanded for otherproceedings consistent with this opinion”.

A ementa do acórdão, Shaare Tefila Con-gregation v. Cobb, U.S 615 (1987) é a seguinte:

“After their synagogue was painted with anti-Semitic slogans, phrases, and symbols, petitionersbrought suit in Federal District Court, allegingthat the desecration by respondents violated 42U.S.C. 1982. The District Court dismissedpetitioners’ claims, and the Court of Appealsaffirmed, holding that discrimination against Jewsis not racial discrimination under 1982.

Held1. A charge of racial discrimination within

the meaning of 1982 cannot be made out byalleging only that the defendants were motivatedby racial animus. It is also necessary to allegethat animus was directed toward the kind ofgroup that Congress intended to protect when itpassed the statute. P. 617.

2. Jews can state a 1982 claim of racialdiscrimination since they are among the peoplesconsidered to be distinct races and hence withinthe protection of the statute at the time it waspassed. They are not foreclosed from stating acause of action against other members of whattoday is considered to be part of the Caucasianrace. Saint Francis College v. Al-Khazraji, antep. 604. Pp. 617-618. The judgement of the Courtof Appeals is therefore reversed and remanded forfurther proceedings consistent with this opinion”.(O texto se encontra em http.// laws.lp.findlaw. com/getcase. /US481/615.html).

Conforme se verifica, com as peculiari-dades próprias do direito norte-americanoe do seu sistema judiciário, a decisão daSuprema Corte dos EUA procurou dar – edeu – o maior e não o menor conteúdo jurí-dico ao valor tutelado – a dignidade da pes-soa humana e a repressão à prática do ra-cismo, positivada pela legislação voltadapara o combate à discriminação racial. Con-feriu ao termo “raça” uma interpretação con-dizente com a intenção do legislador.

15 - O caso decidido pela Câmara dosLordes, em 1983 – Mandla and another vs Do-well Lee and another – dirimia, em última ins-tância, o tema da discriminação na escolade um jovem sikh à luz do Racial RelationsAct de 1976. Entendia o pai do jovem, quemoveu a ação contra o responsável da Esco-la, que a proibição de seu filho usar o tradici-onal turbante, por motivos religiosos, era dis-criminatória nos termos da lei inglesa de 1976.

A Câmara dos Lordes decidiu que setratava de um caso de discriminação eexaminou longamente o tema de inclusãoou não dos sikhs como um “grupo racial”.No seu voto, equivalente, no sistema inglês,ao voto do relator, Lord Fraser of Tullybelton

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relata o argumento da defesa. Esta alegou,de forma semelhante ao impetrante – aindaque no caso com outra e muito mais aceitável motivação, pois o responsável pelaEscola almejava, com a proibição do uso doturbante, a minimização das distinçõesreligiosas –, que o significado relevante de“étnico” na Lei de 1976 não era aplicávelaos sikhs “because they were essentially areligious group, and they share their racialcharacteristics with other religious groups,including Hindus and Muslins living in thePunjab”. A esta alegação, Lord Fraser ofTullybelton contestou, nos seguintes termos:“I recognize that ‘ethnic’ conveys a flavour ofrace but it cannot, in my opinion, have been usedin the 1976 Act in a strict racial or biologicalsense. For one thing it would be absurd to supposethat Parliament can have intended that membership of a particular racial group should depend onscientific proof that a person possessed the relevantdistinctive biological characteristics (assumingthat such characteristics exist). The practicaldifficulties of such proof would be prohibitive, andit is clear that Parliament must have used the wordin some more popular sense. For another thing, thebriefest glance at the evidence in this case is enoughto show that, within the human race, there are veryfew, if any, distinctions which are scientificallyrecognised as racial”.

Na discussão do assunto, o juiz inglês,depois de várias considerações sobre crité-rios de inclusão na legislação de 1976, afir-ma que a palavra “étnico” “should be cons-trued relatively widely, in what was referred toby counsel for the apellants as a broad, cultural/historic sense”.

Para os propósitos deste parecer, não é ocaso de indicar todos os elementos que fun-damentaram a decisão de Lord Fraser ofTullybelton, endossado pelos demais inte-grantes da turma do Tribunal que decidiu ofeito. O que importa realçar é esta sua con-clusão: “Sikhs are a group defined by a referen-ce to ethnic origins for the purpose of the 1976Act, although they are not distinguishable fromthe other peoples living in the Punjab”. Por essemotivo, como ele a seguir explicita com ou-

tras considerações, a proibição do uso doturbante pelo jovem na Escola era discrimi-natória nos termos do Race Relations Act (otexto é encontrado em http.//www.hrcr.org/safrica/equality /Mandla_DowellLee.htm).

Como se vê, a Câmara dos Lordes, ao tra-tar do problema da discriminação racial,atribuiu ao termo raça sua dimensão histó-rico-cultural, da qual provêm as práticasdiscriminatórias, dela explicitamente exclu-indo sua dimensão biológico-científica. Nes-te sentido, a decisão respalda os argumen-tos deste parecer, de que não é na raça –pois só existe uma raça humana –, mas naspráticas discriminatórias do racismo, quesão histórico-político-culturais, que resideo caminho para a correta interpretação eaplicação do art. 5º, LXII, da Constituiçãode 1988 e a sua correspondente legislaçãoinfraconstitucional.

Em síntese, e esta é a quinta conclusãodeste parecer, os dois casos decididos, res-pectivamente, pela Suprema Corte dos EUAe pela House of Lords da Inglaterra, emmatéria de prática de racismo, em funçãoda interpretação dada a “raça”, corroem asalegações do HC 82424-2 impetrado em fa-vor de Siegfried Ellwanger. Não permitemdar curso ao argumento da prescritibilida-de de seu crime. São, assim, indicações ju-risprudenciais do Direito Comparado queatestam, com base no direito norte-america-no e no direito inglês, a lógica da razoabili-dade da quarta conclusão deste parecer.

VI – Da raça ao racismo

16 – Qual é a origem da palavra raça, dosconceitos de raça, que acabaram levando àprática do racismo que o Direito brasileirocondena e repudia? No verbete raça, JoséPedro Machado, no seu Dicionário Etimoló-gico da Língua Portuguesa, 2º volume (Lisboa,Editorial Confluência, 1959), diz que a pa-lavra provém do italiano razza, de origemobscura, pois as diversas hipóteses apresen-tadas não parecem convincentes, segundoAntenor Nascentes (cf. Antenor Nascentes,

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verbete raça no seu Dicionário Etimológico daLíngua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1955). Ocaráter obscuro da origem de race, em inglês,raça, em português, raza, em espanhol, ra-zza, em italiano, é também afirmado porWalter W. Skeet no verbete correspondentedo seu An Etymological Dictionary of the En-glish Language (Oxford, At the ClarendomPress, 1978). J. Corominas, no seu reputadoDicionáro Critico Etimologico de la Lengua Cas-tellana, no verbete correspondente, que estáno vol. III (Madrid, Gredos, 1954), conside-ra provável que a origem da palavra prove-nha do latim, ratio, rationis, na acepção deíndole, modalidade, espécie. Registra que,quando se incorporou no castelhano o es-trangeirismo da raça no sentido biológico, apalavra se contaminou de um sentido pejo-rativo, tanto mais que sua aplicação a mou-ros e judeus a isso se prestava.

Na edição de 1823 do famoso Dicionárioda Língua Portuguesa, de Antonio de Moraese Silva, define-se raça como casta: cão, cava-lo de boa ou de má raça, e registra-se que terraça é ter sangue de mouro ou judeu. Noverbete raça, da edição portuguesa da Enci-clopédia Einaudi, de autoria de Clara Quei-roz, esta, comentando o Dicionário de Mo-raes, nota que não há menção às popula-ções do império colonial português na defi-nição do étimo raça. Explica essa ausênciaporque o Dicionário recompila os étimosimpressos até 1823 e pondera que a referên-cia apenas a mouros e judeus se explicariaporque eram em Portugal o outro - próximo,que estavam na origem de conflitos de vári-as ordens, inclusive os psicológicos. Já aspopulações colonizadas não foram referi-das porque seriam, na época, o outro - coisifi-cado, objeto natural de exploração (cf. Enci-clopédia Einaudi, vol. 19 - Organismo -Heredi-tariedade, Lisboa, Imprensa Nacional, Casada Moeda, 1991, pp. 384, 350-351).

A dimensão conflitiva, de natureza psi-cológica, apontada por Clara Queiroz emrelação ao outro próximo se reflete no seguinteprovérbio português: “Judeu e porco, algar-vio e mouro, são quatro nações e oito cana-

lhas” (cf. Antônio Moreira, Provérbios Portu-gueses, Lisboa, Editorial Notícias, 1966, p.136).

Antonio Geraldo da Cunha, no verbeteraça do seu Dicionário Etimológico - Nova Fron-teira da Língua Portuguesa, 2a ed. (Rio de Ja-neiro, Nova Fronteira, 1986), abona a ori-gem italiana – razza, de raça em português,à maneira de José Pedro Machado, e, na li-nha de Corominas, faz a derivação do latim– ratio, rationis.

Conforme se verifica, há componentesaqui obscuros na origem da palavra, comoobscuras têm sido as conseqüências de seuuso. Além do mais, tanto em português quan-to em espanhol, o vocábulo raça comporta,por razões históricas (a reconquista da pe-nínsula Ibérica, a Inquisição), uma dimen-são pejorativo-discriminatória em relação amouros e judeus que aponta para o tema daprática do racismo. Em todo caso, se a pala-vra raça deriva do latim ratio, rationis, qual é aratio de classificação da espécie humana emraças?

17 - A classificação dos seres humanosem raças tem sua inspiração em Lineu, queno século XVIII estabeleceu um sistema declassificação de plantas e de animais. As-sim “canis familiaris” (cão) e “canis lupus”(lobo) são duas espécies do gênero “canis”.Para Lineu, o estudo dos seres vivos consis-tia na taxonomia e a espécie humana – ohomo sapiens – dividia-se em seis raças, deacordo com um critério preponderantemen-te geográfico: européia, ameríndia, asiática,africana, selvagem e monstruosa (esta cons-tituída por indivíduos com malformaçõesfísicas).

No século XIX, com Darwin, a concep-ção fixa das espécies de Lineu é posta emquestão. O tempo, com o evolucionismo, re-voluciona o sistema classificatório, poispassou-se a admitir que as espécies nãoeram permanentes. Podiam mudar com oandar do tempo.

O interesse na taxonomia e o evolucio-nismo renovaram, no século XIX, a preocu-pação classificatória dos seres humanos em

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raças e, à maneira da ciência da antigüida-de – por exemplo o sistema de Ptolomeo –, adiferença específica entre as raças acabousendo formulada a partir do que se via, comoesclarece Eliane Azevedo. Os múltiplos cri-térios de classificação estavam ligados àaparência física (cor da pele, textura doscabelos, forma da cabeça, etc.), cabendo men-cionar que, sem dúvida, como indica ClaraQueiroz, a distinção inicial coincidia comas cores da pele, predominantes nos gran-des continentes terrestres. Isto, como hoje sesabe, deve-se fundamentalmente à distribui-ção e concentração diferencial do pigmentomelanina, que não tem maior significado noplano biológico, ou seja, no da estrutura ge-nética (cf. Eliane Azevedo, Raça - Conceito ePreconceito, 2a ed., São Paulo, Ática, 1990, pp.16-22; Clara Queiroz, verbete Raça, na edi-ção portuguesa da Enciclopédia Einaudi, cit.,pp. 335-337, 342-344).

A multiplicidade, a variedade e a nãocoincidência dos critérios fizeram do con-ceito de raça um conceito impreciso – ten-dencialmente obscuro como aponta a etimo-logia da palavra. Isso não impediu que asociologia do darwinismo social servisse decaldo de cultura para teorias racistas, que jus-tificavam a desigualdade com base nas dife-renças entre as raças, numa dinâmica con-trária ao processo de generalização dos direi-tos humanos, já examinado neste parecer.

Entre os grandes teóricos racistas, des-tacam-se Arthur de Gobineau (1816-1882),que fez a distinção entre a raça semita e aariana, atribuindo a esta última uma supe-rioridade física, moral e cultural. Gobineauesteve no Brasil como representante diplo-mático francês e comentou, na linha de suavisão racista: “Trata-se de uma populaçãototalmente mulata, viciada no sangue e noespírito e assustadoramente feia”, e comple-menta: “Nenhum brasileiro é de sanguepuro; as combinações dos casamentos entrebrancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes de carnaçãosão inúmeros, e tudo isso produziu, nas clas-ses baixas e nas altas, uma degenerescência

do mais triste aspecto” (cf. Georges Raeders,O Conde Gobineau no Brasil, Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1977, p. 39).

Tocqueville, que conhecia bem Gobi-neau, pois este foi seu chefe-de-gabinetequando de sua passagem como Ministrodos Negócios Estrangeiros da França, a eleescreveu o seguinte, a propósito de suas te-orias racistas: “elas são provavelmente er-radas e certamente perniciosas”. Essa pas-sagem de Tocqueville, escrita em 1853,numa época em que o pensamento racistaainda não tinha adquirido maior peso nahistória das idéias, é citada por HannahArendt ao examinar o Imperialismo, no ca-pítulo em que trata do pensamento racialantes da prática do racismo, no admirávelOrigens do Totalitarismo. Certamente a pas-sagem confirma a indiscutível capacidadede antevisão de Tocqueville, como adiantese realçará neste parecer, pois como dizHannah Arendt: “Historicamente falando,os racistas, embora assumissem posiçõesaparentemente ultranacionalistas, foram ospiores patriotas que os representantes detodas as outras ideologias internacionais;foram os únicos que negaram o princípiosobre o qual se constroem as organizaçõesnacionais de povos – o princípio da igual-dade e solidariedade de todos os povos, ga-rantidos pela idéia de humanidade” (cf.Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo- Anti-Semitismo - Imperialismo - Totalitaris-mo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989,pp. 188-189; 191).

As idéias de Gobineau foram retomadaspor Houston Chamberlain (1855-1927), ar-doroso defensor da superioridade germâni-ca e do pensamento racista (cf. Eliane Aze-vedo, Raça, Conceito e Preconceito, cit. p. 25;Maria Luiza Tucci Carneiro, O Racismo naHistória do Brasil, 8a ed., São Paulo, Ática,2002, p. 22).

A prática do racismo baseia-se, assim,no pressuposto da existência de raças hu-manas e no conseqüente estabelecimento desua hierarquização. Por esse motivo, o ar-gumento teórico privilegiado das teorias

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racistas e de suas conseqüências sociais re-side, como realça Clara Queiroz, no que en-tendiam ser a incontestabilidade das ciên-cias biológicas (Clara Queiroz, verbete Raça,na edição portuguesa da Enciclopédia Einau-di, cit. p. 349).

As teorias racistas fizeram parte do pro-cesso de autolegitimação da expansão colo-nial européia e da ausência de freios e limi-tes ao imperialismo. Um dos frutos disso foi oracismo institucionalizado do “apartheid”na África do Sul, em proveito da minoria bran-ca, que foi um dos grandes temas da agendainternacional dos direitos humanos da ONU.

Outra terrível conseqüência foi o racis-mo biológico institucionalizado da Alema-nha nazista, que afirmava não só a superio-ridade da raça germânico-ariana, mas o im-perativo da luta contra as raças inferiores,entre as quais inseriam não só os judeuscomo também os ciganos e os eslavos. Essaluta, para recorrer a Carl Schmitt, que dissoentendia, não tinha apenas a dimensão dosprivata odia, voltada contra inimicos, mas erasobretudo uma guerra pública dirigida con-tra as raças inferiores, identificadas comohostes (cf. Carl Schmitt, La notion de politique- theorie de partisan, Paris, Calmann-Lévy,1972, p. 69 e 200). Daí o alcance avassala-dor dos ódios públicos do racismo nazista,que levou aos campos de concentração, aoHolocausto e ao ineditismo, na História daHumanidade, do crime de genocídio, queestão na base da grande reflexão de Han-nah Arendt sobre o totalitarismo no séculoXX e do grande tema do “direito a ter direi-tos” como ponto de partida da reconstru-ção dos direitos humanos (cf. Hannah Aren-dt, As Origens do Totalitarismo, cit.; CelsoLafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos -um diálogo com o pensamento de Hannah Aren-dt, cit.). Foram esses fatos que levaram, nopós-Segunda Guerra Mundial, à inclusãoampla da agenda dos direitos humanos noplano internacional, como adiante se exa-minará neste parecer.

18 - O avanço do conhecimento se in-cumbiu de mostrar que não há fundamento

biológico em qualquer subdivisão racial daespécie humana e que os critérios das dife-renças visíveis, a começar pela cor da pele,são apenas juízos de aparência. As diferen-ças genéticas individuais entre duas pesso-as brancas são maiores que a diferença ge-nética média entre brancos e negros e nãocusta lembrar que a integridade genética daespécie humana, como unidade, é compro-vada na reprodução entre pessoas de “ra-ças” diferentes, gerando descendentes nor-mais e férteis. Aliás, a mescla da qual resul-ta a identidade do Brasil, como aponta Elia-ne Azevedo, é disso uma comprovação (cf.Eliane Azevedo, Raça - Conceito e Preconceito,cit. pp. 15-16, 40).

A capacidade de desvendar o genomahumano – que é uma revolução coperniqui-ana da biologia – permite dizer que conhe-cer uma espécie reduz-se a conhecer o seugenoma completo (cf. Monica Teixeira, OProjeto Genoma Humano, 2a ed., São Paulo,Publifolha, 2001, p.67) e o seqüenciamentodo genoma humano indica que as diferen-ças existentes no código genético de cadaser humano – que estão na escala dos mi-lhões – não têm maior relação com a suaprocedência geográfica ou étnica. No estu-do da variabilidade genética humana, veri-fica-se que de 90 a 95% dela ocorre dentrodos chamados “grupos raciais”, não entreeles (Sérgio Danilo Pena, Os múltiplos sig-nificados da palavra raça, Folha de S. Paulo,21/12/2002, p. 3). Em síntese, como diz Sér-gio Danilo Pena: “há apenas uma raça dohomo sapiens: a raça humana” (cf. SérgioDanilo Pena, Lição de vida do genoma hu-mano, Folha de S. Paulo, 23/1/2001, p. 3).Assim está correto, no plano da biologia, oque diz o art. 1 - 1 da Declaração da UNES-CO e evidentemente todos os textos das inú-meras Declarações de Direitos que partemdo princípio da igualdade dos seres huma-nos e afirmam o princípio da não-discrimi-nação. Da mesma maneira confirma-se, noplano do conhecimento, a verdade reveladano Velho Testamento sobre a unidade dogênero humano, ponto de partida inicial

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deste parecer sobre o processo de afirmaçãodo valor da dignidade da pessoa humana.

Se o racismo não pode ser justificado porfundamentos biológicos, ele, no entanto,persiste como fenômeno social. É esse fenô-meno social, e não a “raça”, o destinatáriojurídico da repressão prevista pelo art. 5º,LXII, da Constituição de 1988, e sua corres-pondente legislação infraconstitucional.Esta é a sexta conclusão deste parecer, vol-tada para reiterar, como foi dito na quartaconclusão, que o conteúdo jurídico do cri-me da prática do racismo tem o seu núcleonas teorias e ideologias e na sua divulga-ção, que discriminam grupos e pessoas, aelas atribuindo as características de uma“raça” inferior. É precisamente porque aprática do racismo começa pelo que está nacabeça das pessoas que o Tribunal de Justi-ça do Rio Grande do Sul e o Superior Tri-bunal de Justiça sancionaram, com base noart. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dadapela Lei 8.081/90, a conduta de SiegfriedEllwanger como crime imprescritível. É pra-ticar, induzir e incitar o racismo a publica-ção de qualquer natureza que promova adiscriminação ou preconceito de raça, cor,religião, etnias ou procedência nacional.Cabe destacar que a evolução legislativa emnosso país confirma esse entendimento. Éisso que destacou o Ministério Público, noparecer já discutido do subprocurador Cláu-dio Lemos Fonteles, quando este mencionouque a Lei 9.458/97, através do novo § 2º doart. 20 acima citado, fez do meio – os meiosde comunicação social de qualquer nature-za, utilizados para promover a discrimina-ção e o preconceito – uma forma qualificada,com apenação autônoma, do crime da prá-tica do racismo. A essa observação do Mi-nistério Público, e para precisar que a di-vulgação do nazismo é prática do racismotambém com apenação autônoma, acrescen-to o que determina o novo parágrafo 1º doart. 20, com a redação dada pela Lei nº9.459/97:

“Fabricar, comercializar, distribuir ouveicular símbolos, emblemas, ornamentos,

distintivos ou propaganda que utilizam acruz suástica ou gamada, para fins e divul-gação do nazismo.

Pena: Reclusão de dois a cinco anos emulta.”

VII – A prática do racismo e o seuimpacto no Direito Internacional daPessoa Humana – a contribuição doDireito Internacional Público para a

exegese do art. 5º, XLII, daConstituição de 1988

19 - Norberto Bobbio, num, como sem-pre, límpido texto sobre o racismo, observaque ele não se dirige tanto para a pessoasingular, diante da qual se pode ter múlti-plos sentimentos negativos, quanto para umgrupo, ou para um indivíduo pertencente aum grupo. Registra que a mais persistenteforma de racismo conhecida pelos povoseuropeus é o anti-semitismo.

Esclarece, também, Bobbio que os postu-lados do racismo como visão do mundo, queindepende da fundamentação científica,como foi visto, são três: (i) a humanidadeestá dividida em raças, cuja diversidade édada por características biológicas e psico-lógicas. Estas têm elementos culturais quederivam, porém, das características biológi-cas, cuja natureza é invariável e se transmi-te hereditariamente; (ii) não só existem ra-ças diversas, mas existem raças superiorese inferiores; e (iii) não só existem raças, eestas se dividem entre superiores e inferio-res, como também as superiores têm o direi-to de dominar as inferiores (cf. NorbertoBobbio, Elogio da Serenidade e Outros EscritosMorais, São Paulo, UNESP, 2002, p. 123, 127,128).

Uma visão racista do mundo leva a con-dutas que têm distintas escalas de agressi-vidade. São todas caracterizadas pela dis-criminação, ou seja, pelo não reconhecimen-to aos “outros” dos mesmos direitos e ga-rantias. Os princípios gerais da igualdadee da não discriminação, que têm destinatá-

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rios genéricos, e o processo de especifica-ção, que cuida do ser humano em situação,que em conjunto tutelam os direitos huma-nos, no Brasil e no mundo, são assim direta-mente afetados.

À discriminação pode somar-se uma in-tensidade superior de violência à dignida-de da pessoa humana, que é a segregação.Esta consiste, como diz Bobbio, “em impe-dir a mistura dos diversos entre os iguais”.Pode expressar-se através de obstáculos ju-rídicos à miscigenação e pela colocação da“raça inferior” pela “raça superior” numespaço separado. O apartheid, na África doSul, enquanto perdurou, foi um paradigmada segregação institucionalizada e do quehá de mais nefasto na herança racista docolonialismo europeu.

O último grau na escala da violência dotratamento racista é a agressão física. Estacomeça de modo esporádico, contra algunsindivíduos – é o que fazem os skinheads – echega ao extermínio premeditado e de mas-sa. O extermínio premeditado de massa temnas câmaras de gás dos campos de concen-tração da Alemanha nazista a sua terrívelexemplificação, pois foi o meio técnico porexcelência do Holocausto como crime de ge-nocídio. O paradigma deste último grau naescala da violência é o “Estado racial” noqual se transformou a Alemanha nazista deHitler. A Alemanha de Hitler, realça Bob-bio, foi “um Estado racial no mais pleno sen-tido da palavra, pois a pureza da raça deviaser perseguida não só eliminando indiví-duos de outras raças, mas também indiví-duos inferiores física ou psiquicamente daprópria raça, como os doentes terminais, osprejudicados psíquicos, os velhos não maisauto-suficientes” (Norberto Bobbio, Elogioda Serenidade e Outros Escritos Morais, cit. pp.128-129, pp.125-126).

20 - A Carta da ONU foi um direito novo,que resultou da Segunda Guerra Mundial.Na sua elaboração normativa, teve peso oineditismo da experiência totalitária da Ale-manha nazista, que patrocinou, inspiradapela sua ideologia racista, os campos de con-

centração e o Holocausto. Representou umaresposta política e jurídica ao que foi perce-bido como uma escala sem precedentes domal.

O mal, como ensina Bobbio, tem duasdimensões analíticas, relevantes para amatéria deste parecer. O mal ativo, associa-do à vontade de poder, à prepotência e aoilimitado exercício da violência por partedos governantes, e o mal passivo, que se re-fere à perspectiva das vítimas, que sofremuma pena sem culpa. O mal ativo é o malinfligido. O mal passivo é o mal sofrido. NaBíblia, lembra Bobbio, Caim e Jó são duasfiguras paradigmáticas desses dois rostosdo mal (Norberto Bobbio, Elogio da Serenida-de e Outros Ensaios Morais, cit., p. 182).

A Carta da ONU levou em conta nos seusdispositivos o que foi, na guerra e no pré-guerra, tanto o mal ativo da discricionari-dade das soberanias quanto o sofrido malpassivo das vítimas. Neste contexto os di-reitos humanos surgem para tornar presen-te, na agenda internacional, não apenas aperspectiva ex parte principis a ser regida pornormas delimitadoras de arbítrios, mas tam-bém a pespectiva ex parte populi, voltadapara evitar as penas sem culpa.

A Carta da ONU refere-se aos DireitosHumanos no seu preâmbulo, nos arts. 1 - 3;13, 1 b; 55 c; 56; 62 - 2; 64; 68; 73; 76 c. Estamultiplicidade de referências contrasta como bem mais modesto art. 23 do Pacto da Ligadas Nações e com as delimitadas ativida-des da antecessora da ONU nesse campo.Com efeito, o Direito Internacional da Pes-soa Humana, pré-Carta da ONU, viu-se cir-cunscrito ao que estava na agenda das rela-ções internacionais, que era uma agendadistinta daquela vivida no plano interno.Daí, por exemplo: o início da elaboração, noséculo XIX, do Direito Humanitário – que seocupa das vítimas de conflitos armados eda regulamentação dos meios e métodos decombate; ou então, no período da Liga, o tra-tamento de minorias e refugiados. Esse foium grave problema que surgiu como conse-qüência do desmembramento, no pós-Pri-

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meira Guerra Mundial, dos grandes impé-rios multinacionais – o austro-húngaro, orusso, o otomano – e da imprevista dissoci-ação entre os direitos do homem e os direi-tos dos povos. Ainda cabe mencionar o temado criminoso tráfico transnacional de mu-lheres e crianças. O novo, instigado pelaCarta da ONU, foi fazer dos direitos huma-nos no plano internacional não um temacircunscrito, mas um tema global.

A conversão dos direitos humanos numtema global e não circunscrito resultou, comodiria Miguel Reale, de uma política do Di-reito e esta foi axiologicamente sensível aohorror erga omnes do mal da descartabilida-de do ser humano, produto do ineditismoda violência do racismo nazista (cf. CelsoLafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos -um diálogo com o pensamento de Hannah Aren-dt, cit., Desafios: Ética e Política , São Paulo,Siciliano, 1995, pp. 201-243; Comércio, De-sarmamento e Direitos Humanos - reflexões so-bre uma experiência diplomática , São Paulo,Paz e Terra, 1999, pp. 141-200; Reflexões so-bre o historicismo axiológico de Miguel Re-ale e os direitos humanos no plano interna-cional, in O Pensamento de Miguel Reale, Ac-tas do IV Colóquio Tobias Barreto , Viana doCastelo, Câmara Municipal, 1988, pp. 167-174; Miguel Reale, Teoria do Direito e do Esta-do; 4a ed., São Paulo, Saraiva, 1984, pp. 379-382).

A abrangente positivação dos direitoshumanos como um tema global da vida in-ternacional, fruto dessa política do Direito,tem como marco inicial a Declaração Uni-versal de 1948, já mencionada neste pare-cer. Ela se desdobrou nos dois grandes pac-tos de 1966: o dos Direitos Civis e Políticos eo dos Direitos Econômicos, Sociais e Cultu-rais. Os dois grandes Pactos se inserem noprocesso histórico de positivação internaci-onal dos direitos humanos na etapa do pro-cesso de generalização. Essa etapa se viuacompanhada e desdobrada pelo processode especificação, que vou a seguir exami-nar, no que diz respeito à prática do racis-mo.

21 - O Brasil participou, no plano inter-nacional, do processo de especificação, vol-tado para afirmar o princípio da igualdadee da não discriminação, dos seres humanosem situação afetada pela prática do racis-mo. Evoco, a título de ilustração, pela clare-za do enunciado e também pela satisfaçãode trazer à colação uma tradição familiarna matéria, o discurso do Chanceler Horá-cio Lafer na abertura dos trabalhos da As-sembléia Geral da ONU em 22 de setembrode 1960:

“O Governo brasileiro subscreveu esteano, juntamente com vários outros países, opedido de inclusão na Agenda desta Ses-são da Assembléia Geral de item referente àdiscriminação racial. Tem o Brasil sempreapoiado todas as recomendações que tra-mitaram nas Nações Unidas contra as polí-ticas de segregação, baseadas em distinçõesde raça, cor ou religião, que repugnam aconsciência do povo brasileiro e são clara-mente condenadas pela Carta da Organiza-ção. O Brasil submeteu um projeto de reso-lução ao Conselho da Organização dos Es-tados Americanos para expressar o repú-dio a toda e qualquer forma de distinção esegregação racial, projeto que contou com avotação unânime dos países americanos.Neste sentido, quero lembrar que o Brasilassinou e ratificou a convenção internacio-nal contra o genocídio aprovada em 1948pela Assembléia Geral das Nações Unidas.A perseguição racial é contrária ao espíritoe aos fins das Nações Unidas e o Brasil, como mundo civilizado, a condena de formamais veemente” (O discurso está reprodu-zido in A Palavra do Brasil nas Nações Unidas- 1946-1995, org. e apresentação de Luiz Fe-lipe de Seixas Corrêa, Brasília, FUNAG,1995, e o texto citado está na p. 134).

A referência do Ministro Horácio Lafer àConvenção Internacional sobre Prevençãoe Punição do crime de Genocídio é muitopertinente para a matéria deste parecer emfunção dos fatos históricos que levaram àtipificação deste crime, como um crime in-ternacional, seja em tempo de paz, seja em

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tempo de guerra. Com efeito, a elaboraçãonormativa do Direito Internacional sobre ocrime de genocídio teve a sua base no malativo e passivo que levou ao Holocaustopatrocinado pelo Estado racial em que seconverteu a Alemanha nazista de Hitler,voltada para destruir, para valer-me da for-mulação do caput do art. II da Convenção,“no todo ou em parte, um grupo nacional,étnico, racial ou religioso”.

É importante realçar, como faz FabioKonder Comparato, que a Convenção de1948 traz uma novidade importante sob oaspecto penal. É a punição dos atos de “in-citação direta e pública a cometer o genocí-dio” (art. III, c). Lembra Comparato que es-tavam na mente dos elaboradores da Con-venção os livros e panfletos nazistas e re-gistra que a idéia foi ulteriormente acolhidae desenvolvida no art. 4 da Convenção In-ternacional de 1965, para a eliminação detodas as formas de discriminação racial (cf.Fabio Konder Comparato, A Afirmação His-tórica dos Direitos Humanos, 3a ed., São PauloSaraiva, 2003, p. 243).

Ao art. 4 da Convenção de 1965 voltareimais adiante, mas neste momento quero re-alçar que tanto este artigo quanto o Direitobrasileiro, nos termos do art. 20 (Lei 8.081/90), na esteira aberta pelo art. III, c, da Con-venção sobre a Prevenção e Punição do Cri-me de Genocídio, integram na estrutura dodelito da prática do racismo (art. 5º, XLII, daConstituição de 1988) a sua propaganda eincitação, pois estas, no limite, podem levarao genocídio. Esse foi o caso do racismo ide-ológico nazista. (A Convenção sobre a Pre-venção e a Repressão do Crime de Genocí-dio, em nosso País, foi aprovada pelo De-creto Legislativo nº 2, de 11 de abril de 1951,e promulgada pelo Decreto nº 30.822, de 6de maio de 1952. A Lei nº 2.889, de 1º deoutubro de 1956, define e pune o crime degenocídio. Tratei do genocídio como crimecontra a humanidade em A Reconstrução dosDireitos Humanos - um diálogo com o pensa-mento de Hannah Arendt, cit. cap. VI, pp. 167-186).

22 - A Convenção Internacional sobre aEliminação de todas as formas de Discrimi-nação Racial de 1965, elaborada no âmbitoda ONU, consolida na hard-law de um trata-do multilateral, como é da natureza do pro-cesso legislativo internacional, a soft-law,inter-alia, da Declaração sobre a eliminaçãode todas as formas de discriminação racial,proclamada pela Assembléia Geral na Re-solução 1.904 de 20 de novembro de 1963.

A Convenção, que resultou basicamentedo trabalho da Assembléia Geral, foi insti-gada pela memória das atrocidades das prá-ticas raciais do nazismo, nos anos 30 e 40,particularmente as anti-semitas, e pelo de-senvolvimento da segregação racial institu-cionalizada – o apartheid – na África do Sul(cf. Introdução de Boutros Boutros-Ghali,então Secretário-Geral da ONU à publica-ção The United Nations and Human Rights -1945-1995, N. York, The United NationsBlue Books Series, vol. VII, 1995, p. 33; JoséAugusto Lindgren Alves, A Arquitetura In-ternacional dos Direitos Humanos, São Paulo,FTD, 1997, pp. 88-89). O seu objetivo foi o dadefinição de normas contrárias à discrimi-nação racial e ao fenômeno do racismo emtodas as suas dimensões.

O Brasil assinou a Convenção em 7 demarço de 1966 e a ratificou, sem reservas,em 27 de março de 1968. O Decreto de pro-mulgação é o de nº 65.810 de 8/XII/69. AConvenção entrou em vigor no âmbito in-ternacional a 4 de janeiro de 1969, tendo suavigência em relação ao nosso país se inicia-do trinta dias depois.

O Brasil participou dos travaux preparatoi-res da Convenção, como de resto tinha anteri-ormente participado das atividades de ela-boração normativa do direito internacionalda pessoa humana (cf. Antonio Augusto Can-çado Trindade, A Proteção Internacional dos Di-reitos Humanos e o Brasil, cit., pp. 23-38).

Nas discussões, a delegação brasileiraco-patrocinou com os EUA uma emenda (A/C. 3, L1211) com o objetivo de incluir no tex-to da Convenção uma referência específicaao anti-semitismo. A emenda não prospe-

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rou e a única referência específica, afinalcontemplada pela Convenção, é a da con-denação do apartheid (art. 3). Isso se com-preende, pois na época, e muito pertinente-mente, a condenação do regime então racis-ta da África do Sul estava, e com grande re-levo, na ordem do dia da agenda internaci-onal do combate ao racismo. É interessante,no entanto, para os propósitos deste parecer,reproduzir o que disse a delegação do Brasil,que inequivocamente afirmou, na defesa daemenda apresentada, o anti-semitismo comouma forma de discriminação racial.

“Mr. DAYRELL DE LIMA (Brazil), referring to observations which had been madeconcerning Brazil’s co-sponsorship of the amendment in document A/C.3/L.1211, observed thathis delegation had had no chance either toexplain its reasons for co-sponsoring theamendment, discussion of which had beenprecluded even before the amendment had beenintroduced or to express its views before the voteof the Greek-Hungarian draft resolution.

39. He did not agree with those who had saidthat the draft amendment was inopportune.Everyone agreed that anti-Semitism was one ofthe most brutal forms of race prejudice everknown in the developed countries and had beenthe source of nazism, which directly or indirectly,had caused the deaths of milllions of humanbeings. Moreover, that phenomenon did not disappear with economic and social advancementas recent history had showed. The UnitedNations itself had been established as a result ofthe holocaust that had been caused by anti-Semitism and nazism. How could the Committeefail to mention that fact? His delegation had hadno ulterior political motive in sponsoring theamendment, was not acting under the pressureof any racial minority or outside force and didnot wish to intervene in any political drama beingplayed out anywhere on earth. But Brazilrealized that anti-Semitism carried the seeds ofwar.By what sophistry could the Committeejustify a failure to recognize that fact? Moreover,all members of the Committee, even those whohad opposed the amendment, were opposed toanti-Semitism.

40. Many representatives had objected toreference in the Convention to any specific formsof racial discrimination: but the draft alreadyincluded a reference to apartheid.” (cf. A/C. 3/SR 1313, Report of the Third Committee, de21/10/1965, ONU, Official Records of theGeneral Assembly (XX Session, 1965, 1313th.Meeting p. 125).

A razão de fundo apresentada na dis-cussão da Convenção para a não aceitaçãoda emenda foi a de que a enumeração de for-mas específicas de discriminação racial nun-ca conseguiria ser exaustiva. Daí a importân-cia de enunciados jurídicos de precisão ge-ral. É este, assim, o art. 1 - 1 da Convenção:

“Nesta Convenção, a expressão ‘discri-minação racial’ significará qualquer distin-ção, exclusão, restrição ou preferência base-adas em raça, cor, descendência ou origemnacional ou étnica que tem por objetivo ouefeito anular ou restringir o reconhecimen-to, gozo ou exercício, num mesmo plano (emigualdade de condição), de direitos huma-nos e liberdades fundamentais no domíniopolítico, econômico, social, cultural ou emqualquer outro domínio da vida pública.”(O texto está reproduzido in José AugustoLindgren Alves, A Arquitetura Internacionaldos Direitos Humanos, cit., p. 99).

Noto que o art. 20 da Lei 7.716/89, com aredação dada pela Lei 8.081/90, refere-se a“discriminação ou preconceito de raça, correligião, etnia ou procedência nacional”, queo art. 1º da Convenção, vigente e aplicávelno Brasil, qualifica em bloco de “discrimi-nação racial”. Esse é um elemento adicio-nal na interpretação do Direito brasileiro, ainvalidar os argumentos do impetrante.

O art. 4 da Convenção Internacional so-bre a Eliminação de todas as formas de dis-criminação racial, e que partiu da vis directi-va do art. III, c, da Convenção de 1948 para aPrevenção e a Repressão do Crime de Geno-cídio, inclui, como já foi mencionado, naestrutura do crime da prática do racismo, oincitamento à discriminação. Reza o art. 4:

“Os Estados-partes condenam toda pro-paganda e todas as organizações que se ins-

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pirem em idéias ou teorias baseadas na su-perioridade de uma raça ou de um grupo depessoas de uma certa cor ou de uma certaorigem étnica que pretendem justificar ouencorajar qualquer forma de ódio e de dis-criminação raciais e comprometem-se a ado-tar imediatamente medidas positivas desti-nadas a eliminar qualquer incitação a umatal discriminação, ou quaisquer atos de dis-criminação com este objetivo, tendo em vis-ta os princípios formulados na DeclaraçãoUniversal dos Direitos do Homem e os di-reitos expressamente enunciados no artigo5º da presente Convenção, eles se compro-metem principalmente:

a – a declarar delitos puníveis por Leiqualquer difusão de idéias baseadas na su-perioridade ou ódio raciais, qualquer inci-tamento à discriminação racial, assim comoquaisquer atos de violência ou provocaçãoa tais atos, dirigidos contra qualquer raçaou qualquer grupo de pessoas de outra corou de outra origem étnica, como tambémqualquer assistência prestada a atividadesracistas, inclusive seu financiamento;

b - a declarar ilegais e proibir as organi-zações, assim como as atividades de propa-ganda organizada e qualquer outro tipo deatividade de propaganda que incitar à dis-criminação racial, e que a encorajar, e a de-clarar delito punível por Lei a participaçãonestas organizações ou nestas atividades;

c - a não permitir às autoridades públi-cas nem às instituições públicas, nacionaisou locais, o incitamento ou encorajamento àdiscriminação racial.” (O texto está repro-duzido in José Augusto Lindgren Alves, AArquitetura Internacional dos Direitos Huma-nos, cit., p. 100).

Este artigo, como lembra Lindgren Al-ves, foi objeto de discordância como tinhasido o art. 20 do Pacto Internacional sobreDireitos Civis e Políticos de 1966, que noseu item 2 diz: “Será proibida por Lei qual-quer apologia do ódio nacional, racial oureligioso que constitua incitamento à dis-criminação, à hostilidade ou à violência”(O Pacto foi ratificado pelo Brasil pelo Di-

reito Legislativo nº 226 de 12 de dezembrode 1991 e promulgado pelo Decreto nº 592de 6 de dezembro de 1992). Argüiram osopositores do art. 4 º que ele limitaria a liber-dade de expressão. O entendimento que pre-valeceu foi o de que essa limitação era am-plamente justificada pela experiência his-tórica já discutida neste parecer. Estava ju-ridicamente respaldado, como aponta Lind-gren Alves, no espírito e na letra do art. 29da Declaração Universal, “que condicionaos direitos e liberdades fundamentais decada um aos deveres para com a comunida-de, assim como aos direitos e liberdades dosoutros” (José Augusto Lindgren Alves, AArquitetura Internacional dos Direitos Huma-nos, cit., p. 91).

Essa mesma linha de raciocínio, sobre aexistência de limites à liberdade de expres-são, foi a seguida pelo STF na vigência daConstituição de 1946, no recurso extraordi-nário nº 25848/MG, do qual foi relator oMinistro Ribeiro da Costa. No acórdão de2/XII/1954, por unanimidade, o STF, a pro-pósito da liberdade de imprensa, afirmouque esta comportava limites lícitos, justifi-cando-se “a interdição de órgão de publici-dade quando se demonstra o incitamento àsubversão da ordem pública e social ou apropaganda de guerra ou de preconceitos deraça ou de classe” (grifos meus).

Entendo que esse acórdão de 1954 é per-feitamente compatível com a Constituiçãode 1988. Com efeito, o art. 5º, II, ao estabele-cer que “ninguém será obrigado a fazer oudeixar de fazer alguma coisa senão em vir-tude da lei”, estipula que a extensão da li-berdade está na dependência da lei, valedizer, como aponta José Afonso da Silva, que“a liberdade não é incompatível com um sis-tema coativo”. O mesmo jurista, na análiseda expressão “em virtude da lei”, confereao conceito de lei tanto a sua dimensão delegalidade quanto a de legitimidade e, nadiscussão do standard da legitimidade, in-voca o art. 3 º, que trata dos objetivos funda-mentais da República Federativa do Brasil.José Afonso da Silva menciona, explicita-

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mente, os incisos I e III do art. 3º, aos quaisagrego, para os propósitos da matéria ver-sada neste parecer, o inciso IV: “promover obem de todos, sem preconceitos de origem,raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for-mas de discriminação” (cf. José Afonso daSilva, Curso de Direito Constitucional Positi-vo, cit. pp. 235, 420-424). É precisamente ocaráter relacional da liberdade que tem umlimite no dano que pode produzir à liberda-de de outro (cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr.,Estudos de Filosofia do Direito , São Paulo,Atlas, 2002, p. 104), quando esta está tutela-da pelos objetivos maiores do País, preconi-zados pelo art. 3º, que me leva a apontar oacerto do comentário de Alexandre de Mo-raes. Este, ao discutir o acórdão relatadopelo Ministro Ribeiro da Costa no contextoda análise do combate ao racismo, apontouque as liberdades públicas não podem serutilizadas para acobertar finalidades ilíci-tas, como a veiculação de propagandas pre-conceituosas a determinadas raças, etnias,religiões ou procedências nacionais (cf. Di-reitos Humanos Fundamentais, 2 a ed., São Pau-lo, Atlas, 2000, pp. 227-228). Aponto que,no caso sobre o que versa este parecer, nãose trata de censura prévia, mas da respon-sabilidade penal de quem, como SiegfriedEllwanger, exerceu a sua liberdade com fi-nalidades ilícitas.

Lembro que, no plano regional, a Con-venção Americana de Direitos Humanos –o Pacto de São José, à semelhança do art. 20do Pacto Internacional sobre Direitos Civise Políticos, e pelos mesmos motivos, estabe-lece no seu art. 13 - 5 que “a lei deve proibirtoda propaganda a favor da guerra, bemcomo toda apologia ao ódio nacional, racialou religioso que constitua incitamento à dis-criminação, à hostilidade, ao crime ou à vi-olência”. Lembro, igualmente, que por essaConvenção os Estados-partes comprome-tem-se a garantir os direitos e liberdades nelareconhecidos “sem discriminação alguma,por motivo de raça, cor, sexo, idioma, reli-gião, opiniões políticas ou de qualquer ou-tra natureza, origem nacional ou social, po-

sição econômica, nascimento de qualqueroutra condição social” (art. 1º). Esta Con-venção, à qual o Brasil aderiu, estabelece umaparato de monitoramento de seus disposi-tivos, integrado pela Comissão Interameri-cana de Direitos Humanos e pela Corte In-teramericana, às quais o Brasil também estávinculado (cf. Decreto nº 678, de 6/11/92;Decreto Legislativo nº 89, dezembro 1998;Decreto nº 4463 de 11/11/2002. Para umpreciso relato do aparato de monitoramen-to do Pacto de São José, cf. Flávia Piovesan,Direitos Humanos e o Direito ConstitucionalInternacional, cit. pp. 333-249).

O artigo 4 da Convenção, sobre a Elimi-nação de todas as formas de discriminaçãoracial, acima reproduzido, insere como de-lito punível e, portanto, no âmbito do Direi-to Penal Internacional, a difusão de idéiasbaseadas na superioridade ou ódios raciaise no seu caput estabelece o compromisso dosEstados-partes de promulgar legislação in-terna com esse objetivo. (Sobre a inclusãoda discriminação racial no Direito Penal In-ternacional, cf. Stefan Glaser, Droit Interna-tional Pénal Conventionnel, Bruxelas, 1970,pp. 130-132 e Celso D. de Albuquerque Me-llo, Direito Penal e Direito Internacional, Riode Janeiro, Freitas Bastos, 1978, pp. 157-162).O rigor da tutela penal previsto pelo art. 5º,LXII, da Constituição de 1988 e da sua cor-respondente legislação infraconstitucional,nela incluída a imprescritibilidade do cri-me da prática do racismo, exprime, assim, ocumprimento de uma obrigação internacio-nal do Brasil e a já referida identidade deobjetivos do direito internacional e do direi-to público interno quanto à proteção da pes-soa humana, apontada por Antonio Augus-to Cançado Trindade (cf. A Proteção Interna-cional dos Direitos Humanos – Fundamentos Ju-rídicos e Instrumentos Básicos, cit, p. 635).

A importância que o Brasil atribui a essaConvenção – que reitera a identidade de ob-jetivos entre o direito internacional e o direi-to público interno – viu-se reforçada peloreconhecimento de Competência do Comitêpara a Eliminação da Discriminação Raci-

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al, para receber e analisar denúncias de vio-lação dos direitos humanos. Tal reconheci-mento, previsto no art. 14 da Convenção,integra o sistema de monitoramento inter-nacional de seus dispositivos, criado naParte II. O Decreto Legislativo nº 57, de 26de abril de 2002, aprovou o ingresso do Bra-sil nesse sistema, que se completou com aDeclaração do governo brasileiro, feita peloPresidente Fernando Henrique Cardoso epor mim referendada como Ministro dasRelações Exteriores, em 13 de maio de 2002.Em ato normativo interno posterior, atri-buiu-se ao Comitê Nacional de Combate àDiscriminação (criado pelo Decreto n º 3.952de 4/8/2001) competência para atuar comoinstância focal, no Brasil, para receber de-núncias com base na faculdade prevista noart. 14 da Convenção.

O anti-semitismo como racismo conti-nua na ordem do dia na visão internacionalda agenda voltada para afirmar a Igualda-de, Dignidade e Tolerância e nesse proces-so combater o racismo, a discriminação ra-cial, a xenofobia e outras formas de intole-rância. É o que diz a Resolução 623 da As-sembléia Geral da ONU de dezembro de1998, já mencionada no item 8 deste pare-cer, que faz menção específica ao anti-semi-tismo como parte das formas contemporâ-neas e não apenas históricas do racismo eda discriminação racial. Sobre a atualidadedo tema do anti-semitismo como racismo, cabeigualmente trazer à colação o que está dito naDeclaração e no Programa de Ação da Confe-rência de Durban, que tornou os seus resulta-dos mais positivos do que os das conferênci-as internacionais anteriores sobre racismo.

Com efeito, na parte que trata das víti-mas do racismo e da discriminação racial, aDeclaração de Durban afirma , no seu item58: “Recordamos que o Holocausto jamaisdeverá ser esquecido”. Ora, negar o Holo-causto e considerá-lo a mentira do século éprecisamente uma das atividades a que sededica Siegfried Ellwanger.

O item 61 da Declaração de Durban dizigualmente: “Reconhecemos com profunda

preocupação o aumento do anti-semitismoe da islamofobia em diversas partes do mun-do, assim como o aparecimento de movi-mentos raciais e violentos baseados no ra-cismo e em idéias discriminatórias contraas comunidades judia, muçulmana e ára-be”. Ora, é precisamente a divulgação deidéias discriminatórias contra a comunida-de judia, que é parte integrante do crime deprática do racismo, a atividade a que se de-dica Siegfried Ellwanger. Aponto, igualmen-te, sobre a dimensão penal dessa atividade,no plano internacional, que a Declaração eo Programa de Ação de Durban no seu item86, relembram, que a disseminação de idéi-as baseadas na superioridade ou no ódioracial devem ser declaradas como delitospuníveis pela lei, como institui a Conven-ção Internacional para a Eliminação de to-das as formas de Discriminação Racial (cf.J. A. Lindgren Alves, A Conferência de Dur-ban contra o Racismo e a responsabilidadede todos, in loc. cit. p. 211).

Finalmente, acho relevante mencionar,sobre a visão internacional da matéria, o quedisse recentemente o Alto Comissário daONU para Direitos Humanos, Sérgio Vieirade Mello. Sérgio Vieira de Mello – um dosmais respeitados brasileiros exercendo fun-ção de alta responsabilidade no sistema daONU – em seu pronunciamento de 21 denovembro de 2002 no Instituto Internacio-nal de Imprensa em Viena, ao tratar da li-berdade de imprensa, disse: “ There is no lackof examples of the media being misused to whipup hatred and fanaticism”; e logo adiante, nomesmo parágrafo: “There are international le-gal obligations a majority of status have accep-ted that prohibit incitment to racial, religiousand ethnic hatred – not least anti-Semitism –and they must be adhered to” (o texto integral éacessível no website www.unhchr.ch).

23 - Em síntese e encaminhando a séti-ma conclusão deste parecer, os direitos hu-manos, como tema global e não circunscri-to, na agenda internacional, têm como umadas suas causas o ineditismo do mal trazi-do pelo estado racial nazista. Este, lastrea-

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do na teoria de uma “raça superior”, pro-moveu ódios públicos e conduziu uma“guerra pública” contra os judeus comouma “raça inferior” a ser exterminada. Daío Holocausto que se insere, ex vi de Conven-ção internacional à qual o Brasil aderiu, natipificação de crime de genocídio.

A inclusão dos Direitos Humanos comoum tema global levou a uma abrangentepolítica do Direito Internacional Público, daqual resultou a positivação, a generaliza-ção e a especificação do Direito Internacio-nal da Pessoa Humana.

No que diz respeito à especificação, noque tange à discriminação racial, o grandetratado, de cuja elaboração o Brasil partici-pou, é a Convenção para a Eliminação detodas as Formas de Discriminação Racialde 1965, vigente no Brasil. A Convençãoteve, entre as razões que instigaram a suaredação, a memória das atrocidades das prá-ticas racistas do nazismo, nos anos 30 e 40,particularmente as anti-semitas.

A Convenção, no seu art. I, estabelece quediscriminação racial significa qualquer dis-tinção, exclusão, restrição ou preferênciabaseadas em raça, cor, descendência ou ori-gem nacional ou étnica. No seu art. 4, a Con-venção considera que está no âmbito do di-reito penal e na estrutura da prática do ra-cismo a difusão de idéias baseadas na su-perioridade ou ódios raciais. Neste sentidoa Convenção de 1965 incorporou, na suaconcepção de delito, o previsto no art. III, c,da Convenção de 1948 para o crime de ge-nocídio.

O Brasil, nos trabalhos preparatórios daConvenção de 1965, co-patrocinou emenda,com o objetivo de incluir no texto da Con-venção uma referência específica ao anti-semitismo. O anti-semitismo, como tema atu-al da agenda internacional voltada para ocombate ao racismo e à discriminação raci-al, tem sido objeto de reconfirmada preocu-pação nos textos emanados da ONU.

O § 2º do art. 5 º da Constituição de 1988determina, em matéria de direitos e garanti-as, a recepção, pelo Direito brasileiro, do que

estipulam os Tratados Internacionais emque a República Federativa do Brasil é par-te. No caso da Convenção de 1965, sua vi-gência e aplicação em nosso país antecedea Constituição de 1988 e o seu regime é in-teiramente compatível com o texto constitu-cional e a sua correspondente legislaçãoinfraconstitucional. Neste sentido, pode sedizer que a Convenção de 1965 integra o“bloco da constitucionalidade” à maneirado que observa Valério de Oliveira Mazzuoliinvocando Bidart Campos. Esta integraçãoda Convenção de 1965 ao “bloco da consti-tucionalidade” não é problemática, pois nãosuscita nem o problema das antinomias nema discussão sobre a mudança da Constitui-ção, de forma distinta da prevista para asemendas constitucionais, temas com osquais se preocuparam os Ministros MoreiraAlves e Gilmar Mendes e também, no cam-po doutrinário, o Prof. Manoel GonçalvesFerreira Filho (cf. Valério de Oliveira Ma-zzuoli, Direitos Humanos, Constituição e os Tra-tados Internacionais, cit. p. 244; German J. Bi-dart Campos, El Derecho de la Constitucion ysu fuerza normativa; Buenos Aires, EDIAR,1995, pp. 264-267, 399-401; José Carlos Mo-reira Alves in Ives Gandra da Silva Martins,coord. Simpósio sobre imunidades tributárias,Revista dos Tribunais, 1998, pp. 22-23, 25;Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitu-cional - O controle abstrato de normas no Brasile na Alemanha, São Paulo, Saraiva, 1996, p.178; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Co-mentários à Constituição brasileira de 1988, 2a

ed. atualizada e reformulada, vol. 1, Sarai-va, 1997, p. 85).

O STF, no acórdão relatado pelo Minis-tro Celso de Mello, em 23/6/94 (HC 7384),examinado no item 9 deste parecer, realçaque, entre os meios à disposição do intér-prete para aplicar o Direito no Brasil, estãoos atos internacionais que, subscritos peloEstado brasileiro, se acham formalmente in-corporados ao nosso sistema jurídico. É ocaso da Convenção de 1965 sobre a Elimi-nação de Todas as Formas de Discrimina-ção Racial.

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Destarte, entendo que o Direito Interna-cional Público contribui para confirmar aquarta conclusão deste parecer. A Conven-ção de 1965 integra o bloco da constitucio-nalidade dos direitos e garantias e reforça ainterpretação voltada para assegurar a im-peratividade da tutela constitucional dacondenação da prática do racismo como cri-me imprescritível. Ela qualifica, no seu art.1º, como discriminação racial qualquer dis-tinção, exclusão, restrição ou preferência ba-seadas em raça, cor, descendência ou ori-gem nacional ou étnica e estipula, no seuart. 4º, como parte da estrutura de delito, adifusão de idéias baseadas na superiorida-de ou ódios raciais ou qualquer incitamentoà discriminação racial. A prática do racismoinclui, assim, o anti-semitismo, que é um fe-nômeno social, que independe de um inexis-tente e impreciso conceito de “raças”. O con-teúdo jurídico do art. 5º, LXII, da Constitui-ção de 1988, e sua correspondente legislaçãoinfraconstitucional, insere no delito de práti-ca do racismo a divulgação de idéias anti-semitas, cuja publicação constitui o crime im-prescritível de Siegfried Ellwanger.

VIII – Amplitude da prática doracismo no Brasil

24 - O impetrante alega que o discursoracista no Brasil foi sempre dirigido contrao negro e, por essa razão, desde a lei AfonsoArinos, o que o Direito brasileiro tutela é aproibição da discriminação pela cor da pele.Assim, o art. 5º, LXII, da Constituição de1988, e a sua correspondente legislação in-fraconstitucional – o art. 20 da Lei 7.716/89com a redação dada pela Lei 8.081/90 – foielaborado em conformidade com as carac-terísticas do racismo imperante na socieda-de brasileira e, como tal, deve ser interpreta-do e aplicado. Não é isso, no entanto, o queestá no texto das normas, nem é esse o únicovalor nelas positivado, como foi visto nocorrer deste parecer. Não é esse, igualmen-te, o critério de interpretação dos direitos hu-manos, que deve sempre visar o maior, e não

o menor, conteúdo da garantia do direitotutelado, como foi ainda discutido ao longodeste parecer. Mas também não é isso o querevela a História do Brasil.

25 - Com efeito, a História do Brasil seinicia com o que atualmente denominamospráticas racistas e, como estipula o art. 5º,LXII, da Constituição, puni-las obedece àintenção do Constituinte, consignada noPreâmbulo da Constituição de 1988, que afir-ma, como vis directiva da sua interpretação,“os valores supremos de uma sociedade”que hoje se deseja “fraterna, pluralista e sempreconceitos, fundada na harmonia social”.

No seu livro, O Racismo na História doBrasil (8a ed., cit.), Maria Luiza Tucci Car-neiro mostra que, do século XVI até o séculoXVIII, essas práticas racistas se davam peladistinção entre os que eram limpos de san-gue e os que não eram, uma distinção inspi-rada pelo Édito de Toledo de 1449. Limposde sangue eram os que não tinham na famí-lia nenhum membro pertencente às raçasditas impuras, cujo sangue manchava. Daía expressão “raça infecta” que aparece nosdocumentos coloniais. Eram, no Brasil co-lônia, considerados de raça impura, os ne-gros, os mestiços, os indígenas e os judeus,inclusive os convertidos, que eram qualifi-cados de cristãos-novos, para diferenciá-losdos cristãos-velhos, limpos de sangue. Aosde raça impura eram vedados o acesso acargos de responsabilidade na administra-ção pública. Daí a importância dos atesta-dos comprobatórios da “limpeza do san-gue” e os esforços de encobrir a presença da“raça infecta” no sangue de figuras de proano Brasil colonial, como relata o historiadorEvaldo Cabral de Mello, no seu importantelivro, O Nome e o Sangue, (2a ed., revista, Riode Janeiro, Topbooks, 2000).

Em relação aos cristãos-novos, o proble-ma da pureza ou impureza do sangue eraespecialmente ameaçador. Era ameaçadorem função da Inquisição estabelecida emPortugal em 1536, que fazia do critério daimpureza do sangue um elemento compro-batório de um judaísmo oculto e de uma fé

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cristã inautêntica, merecedora das penas in-quisitoriais. Essas, com freqüência, levavamaos autos-de-fé e à morte das vítimas na fo-gueira.

O Pe. Antonio Vieira, que foi um grandedefensor da “gente de nação” – a denomi-nação dos judeus e cristãos-novos portu-gueses na época –, a isso faz referência naproposta de 1646 a D. João IV, na qual reco-menda a mudança dos estilos do Santo Ofí-cio e do Fisco. Além de tratar da mudança eda moderação dos ministros da Inquisição,propunha Vieira “que todo o homem de na-ção seja hábil para qualquer ofício, honraou mercê dos que não requerem exame e lim-peza” e “que nos que requerem exame e lim-peza, se faça o exame pelo que toca a fé, enão pelo que pertence ao sangue” (o texto seencontra em Pe. Antonio Vieira, Escritos His-tóricos e Políticos, São Paulo, Martins Fontes,1995, p. 324).

As práticas racistas baseadas no precon-ceito de pureza do sangue em relação aosjudeus e seus descendentes, do ponto de vis-ta jurídico, só foram eliminadas por legisla-ção portuguesa, válida para as colônias,inclusive o Brasil, promulgada pelo Marqu-ês de Pombal entre 1768 e 1774. Nessa legis-lação, destaca-se a Carta-Lei de 1773, queproibia o emprego das expressões cristão-novo e cristão-velho, ditas ou escritas (cf.Maria Luiza Tucci Carneiro, op. cit. pp. 9-14; cf. também Anita Novinsky, Cristãos No-vos na Bahia , São Paulo, Perspectiva –EDUSP, 1972).

Um documento importante, que contri-buiu para a legislação pombalina, é um juí-zo do escritor e diplomata Alexandre deGusmão. Nascido em Santos, muito prova-velmente de uma família de cristãos-novos,é ele considerado o avô da diplomacia bra-sileira, pois foi o principal negociador, pelaCoroa Portuguesa, do Tratado de Madri de1750, celebrado entre Espanha e Portugal,no qual foram consagrados os princípios,entre eles o uti possidetis, da delimitação dasfronteiras, nas quais se fundamentou, com su-cesso, a diplomacia do Brasil Independente.

Na “Genealogia Geral para desvanecera opinião dos senhores fidalgos portugue-ses que se dizem puritanos”, que Jaime Cor-tesão situa em torno de 1747, Alexandre deGusmão, no dizer do mesmo eminente his-toriador do Tratado de Madri: “... vinga todaa comunidade dos cristãos-novos e dos sus-peitos da raça infecta. Forçando com ironiaa lógica ele demonstra por absurdo a inani-dade e o ridículo das pretensões dos purita-nos, que todos, ao arrepio das gerações pas-sadas, podiam e deviam ter, em maior oumenor grau, circulando nas veias e macu-lando sua pureza azul, algumas gotas desangue hebraico” (Jaime Cortesão, Alexandrede Gusmão e o Tratado de Madrid - Parte I - tomoII - 1735-1753, Rio de Janeiro, Ministério dasRelações Exteriores/Instituto Rio Branco,1958, p. 213; Alexandre de Gusmão, Obras,São Paulo, Ed. Cultura, 1943, pp. 75-78).

Na história da literatura luso-brasileira,a mais conhecida vítima das fogueiras daInquisição é Antonio José da Silva – o Ju-deu, nascido no Rio de Janeiro em 1705 ecuja família se viu forçada a seguir sob pri-são para Lisboa em 1712, por força de de-núncias à Inquisição. Antonio José da Sil-va, grande amigo de Alexandre de Gusmãoe a maior figura do teatro português que seseguiu a Gil Vicente, estudou em Coimbra,advogou e teve sucesso literário. Enfrentoudois processos da Inquisição e, no segundo,foi condenado a morrer na fogueira, numauto-de-fé, em 1739. (Cf. Alberto Dines, Vín-culos do Fogo, vol. I, São Paulo, Cia. das Le-tras, 1992; Anita Novinsky, Cristãos-Novosna Construção do Brasil, in Arnaldo Niski-er, coord., Contribuição dos Judeus ao Desen-volvimento Brasileiro, Rio de Janeiro, Acade-mia Brasileira de Letras, 1998, pp. 29-40).

Domingos José Gonçalves de Magalhães,a quem devemos o esforço de criar uma lite-ratura brasileira diferenciada da portugue-sa e que deu início, com a sua obra e ação, àespecificidade do Romantismo nas nossasletras, foi sensível às camadas discrimina-das da sociedade, entre elas os judeus. É oque se vê na sua peça de 1838, “Antonio

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José da Silva ou o Poeta e a Inquisição”, queassinala o início do Romantismo no teatronacional. Assim coloca na boca de seu he-rói cristão-novo, no quinto e último ato, nodiálogo de Antonio José com frei Gil queantecede a fogueira da Inquisição, as seguin-tes palavras:

“Co’o labéo de Judeu, com que meinfamam,

Fica minha memória nodoada”(cf. Domingos J. G. de Magalhães, Tragédias,Rio de Janeiro, Garnier, 1865, p. 112; cf. tam-bém Kathe Windmüller, O Judeu no TeatroRomântico Brasileiro, São Paulo, FFLCH/USP – Centro de Estudos Judaicos, 1984, pp.89-95)

26 - O preconceito racial em relação aosjudeus, baseado na “impureza de sangue”,a nódoa de que fala Domingos José Gonçal-ves de Magalhães e que o Dicionário deMoraes registra, como foi visto no item 16deste parecer, não desapareceu. Persistiu namemória da língua portuguesa tal comousada em nosso país. É o caso dos vocábu-los judiar e judiaria e da representação dojudeu no folclore brasileiro, que atestam emsurdina a força que ainda tem esse precon-ceito discriminatório, em função da experi-ência histórica do Brasil.

Luís da Câmara Cascudo, no seu repu-tado Dicionário do Folclore Brasileiro (3a ed.,1972, Ediouro), no verbete judeu, a seguirreproduzido, confirma essa asserção:

“Judeu. Como reminiscência religiosapermanece no espírito popular a figura dojudeu como símbolo da malvadez absoluta,alegrando-se com o sofrimento alheio, ego-ísta, insensível, imperturbável de orgulho.No vocabulário ficavam esses elementoslongínquos da impressão coletiva contra oisraelita. Judiar é maltratar, torturar, mago-ar. Judiaria não é a reunião de judeus, mas oato, a ação de judiar. Comum apontar-se ogesto mau como natural no judeu:

‘Quem matou meu passarinhoFoi judeu, não foi cristão;Meu passarinho tão mansoQue comia em minhas mãos’

Um dia cheio de contrariedade é ‘um dia-de-judeu’; e um dia triste, de sol entre nu-vens e de amiudado cantar do galo, se dizque ‘morreu judeu’”. (Pereira da Costa, Fol-clore Pernambucano, 116). Quem cospe emcristão é judeu. Quem promete e falta é ju-deu. Quem come carne em dia da Paixão éjudeu. Judeu bebe sangue de gente. Judeucome carne de menino novo.”

27 - A experiência histórica brasileira dediscriminação e preconceito, acima relata-da, tinha evidente compatibilidade com ocaldo de cultura mais amplo das teorias ra-cistas que foram parte da História das Idéi-as e das mentalidades nos séculos XIX e XX,discutidas na parte VI deste parecer. Essamentalidade racista teve sua irradiação noBrasil. Está presente, por exemplo, em Var-nhagen, na sua construção da História doBrasil, em Silvio Romero, em Nina Rodri-gues, em Oliveira Viana, que enxergaram namestiçagem entre brancos, negros e índios –a mescla maior da identidade brasileira –uma das razões daquilo que emperrava odesenvolvimento do Brasil. Daí, em funçãode uma hipotética e equivocada divisão en-tre “raças” superiores e inferiores, a afirma-ção da superioridade dos brancos e a inferi-oridade dos demais e o “branqueamento”como caminho para o país.

Na década de 30, no Brasil, o caldo decultura desta mentalidade explicativa depráticas sociais racistas foi receptivo às vi-sões do racismo anti-semita que o racismoalemão propagou pela Europa e difundiuno mundo. Ele também encontrou ressonân-cia na memória das “impurezas de sangue”do período colonial, que a língua portugue-sa no Brasil e o folclore brasileiro preserva-ram, como foi visto acima.

Esse dado cultural contribui para expli-car a existência, no aparelho do Estado, dascirculares-secretas e outras medidas volta-das para restringir a imigração de judeuspara o Brasil na década de 30 e durante aSegunda Guerra Mundial. Essas restriçõestêm uma fundamentação implícita ou explí-cita de natureza racista como documentou,

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de forma abrangente, Maria Luiza TucciCarneiro no seu livro O anti-semitismo na EraVargas - 1930-1945, (São Paulo, Brasiliense,1988). Com efeito, são inúmeros os documen-tos contidos nos arquivos do Itamaraty, emoutros arquivos públicos, na documentaçãopreservada no CPDOC da Fundação Getú-lio Vargas, apresentados por Maria LuizaTucci Carneiro, que argumentam, com ine-quívoca visão racista, contra a imigração ea presença judaica no Brasil.

Um paradigma dessa visão racista, queatribuiu aos judeus uma dimensão de san-gue – um jus sanguinis às avessas –, é umProjeto de lei que Maria Luiza Tucci Carnei-ro encontrou nos arquivos do Itamaraty ereproduziu no anexo 9 do seu livro (p. 524).Diz o art. 1º desse projeto: “Para efeitos daentrada no território brasileiro, os indivídu-os de origem semita, nascidos em quaisquerpaíses estrangeiros, serão considerados, glo-balmente como pertencentes à nacionalida-de judaica” (sobre o jus sanguinis às aves-sas, nesta matéria, estranho à Constituiçãobrasileira e às leis do Brasil, cf. AvrahamMilgram, Arthur Hehl Neiva e a Questão daImigração Judaica no Brasil, in Em nome daFé, Estudos in Memoriam de Elias Lipner, Na-chman Falbel, Avraham Milgram, AlbertoDines, organiz., São Paulo, Perspectiva,1999, pp. 145-156). Esse projeto de lei lem-bra o tema da “impureza de sangue” do pe-ríodo colonial. Ecoa o espírito da legislaçãoracial nazista – as leis de Nuremberg de1935, voltadas para “a proteção do sanguee da honra alemã” – e da legislação italianafascista que, a partir de 1938, definia quemera de razza ebraica , com o objetivo de estabe-lecer misure contra chi attenta al prestigio dellarazza nel territorio dell’Impero. (cf. verbete, Ra-zzismo, de Arturo Colombo, in NovissimoDigesto Italiano, 3a ed., Torino, UTET, 1982,vol. XIV, pp. 914-916).

Essa postura governamental brasileiraredundou em práticas racistas que não serestringiram à política migratória. José Mu-rilo de Carvalho, em estudo sobre as ForçasArmadas e a Política no período 1930-1945,

revela, através de documentos que funcio-navam como as “circulares secretas” do Ita-maraty, a maneira pela qual, durante o Es-tado-Novo, impedia-se o acesso ao ColégioMilitar e à Escola Militar, e, portanto, à car-reira no Exército, de brasileiros judeus (cf.José Murilo de Carvalho, Forças Armadas ePolítica, 1930-1945, in A Revolução de 30,Seminário Internacional, (org. CPDOC-FGV),Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1983,p. 128, p. 183).

Essas políticas racistas se viram instiga-das pela propaganda contra o judeu conti-da nas obras anti-semitas publicadas naépoca. Entre elas, O Judeu Internacional, deHenry Ford; A História Secreta do Brasil deGustavo Barroso; Os Protocolos dos Sábios doSião apostilado por Gustavo Barroso; BrasilColônia de Banqueiros de Gustavo Barroso.Esses livros estão entre aqueles publicadose divulgados por Siegfried Ellwanger e cons-tituem o núcleo da propaganda doutrináriaanti-semita dos anos 30, analisada por Ma-ria Luiza Tucci Carneiro, (O Antisemitismona Era Vargas, cit, cap. 6).

Não é o caso de uma discussão de maioramplitude sobre o pensamento de GustavoBarroso (sobre a matéria, ver: Marcos ChorMaio, Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamen-to anti-semita de Gustavo Barroso, Rio de Ja-neiro, Imago, 1992, cap. 3; Maria Luiza Tuc-ci Carneiro, A Trajetória de um Mito no Bra-sil: Os Protocolos dos Sábios de Sião; RoneyCytrynowicz, A América do Sul e o Anti-semitismo na Visão Integralista de GustavoBarroso e de Plínio Salgado; Marcos ChorMaio, Marcas de uma Trajetória: A Militân-cia Anti-semita de Gustavo Barroso, in Ibé-ria-Judaica: Roteiros da Memória, Anita No-vinsky e Diane Kuperman, org., Rio de Ja-neiro, São Paulo, Expressão e Cultura/EDUSP, 1996, respectivamente, pp. 487-514;514-525, 527-539), mas acho relevante, paraos propósitos deste parecer, lembrar o que,nas suas Memórias, diz Miguel Reale sobreo papel de Gustavo Barroso na Ação Inte-gralista Brasileira. Aponta Miguel Reale quea AIB não era compacta do ponto de vista

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doutrinário. Nela atuaram três grandes cor-rentes de opiniões diversificadas. A maisnumerosa, liderada por Plínio Salgado,“fundada na doutrina social da Igreja e naexaltação nacionalista”; outra “que dava ên-fase especial aos problemas sociais e sindi-cais, assim como problemas jurídicos-insti-tucionais do Estado”, e “uma terceira, maispreocupada com os valores tradicionais dahistória pátria, a que acrescentava um anti-semitismo de frágil mas espalhafatosa fun-damentação, com Gustavo Barroso à fren-te” (Miguel Reale, Memórias, vol. I, DestinosCruzados, 2a ed. revista, São Paulo, Saraiva,1987, p. 80).

É precisamente a divulgação do anti-se-mitismo “de frágil mas espalhafatosa fun-damentação” de Gustavo Barroso, que ins-tigou práticas de racismo anti-judaico noBrasil dos anos 30, parte integrante do cri-me pelo qual foi condenado SiegfriedEllwanger. Não acho irrelevante mencionar,neste contexto em que estou discutindo oimpacto do anti-semitismo no Brasil nosanos 30, que o pretexto para o golpe de 1937tenha sido o “Plano Cohen”. Esse plano foielaborado pelo então Capitão OlympioMourão Filho, lotado no Estado Maior doExército, mas que era simultaneamente che-fe do Serviço Secreto da Ação IntegralistaBrasileira e chefe do Estado-Maior de suaMilícia, dirigida por Gustavo Barroso. O“Plano” não se baseava em informações.Fazia parte da “pedagogia integralista” quenaquele momento associava anti-semitismoe anti-comunismo e foi denominado de “Pla-no Cohen” por Gustavo Barroso. Era umafraude, como se revelou depois de 1945, masfoi, no entanto, apropriado pelo Estado-Maior do Exército como peça de retórica epropaganda para sustentar e justificar a ins-tauração do Estado Novo (cf. Paulo Brandi,verbete Plano Cohen in Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós 1930, vol. IV (2a ed.revista e atualizada) coordenação AlziraAlves de Abreu, Israel Beloch, FernandoLattman-Weltman, Sérgio Tadeu de Nie-meyer Lamarão, Rio de Janeiro, Ed. FGV/

CPDOC, 2001; Aspásia Camargo e colabo-radores, O Golpe Silencioso, Rio de Janeiro,Rio Fundo Ed., 1989, pp. 214-215).

28 - Assim, e esta é a oitava e última con-clusão deste parecer, não é factualmentecorreta a alegação do impetrante de que odiscurso racista, em nosso país, foi sempredirigido contra o negro e de que o tema dadiscriminação racial se coloca exclusiva-mente em torno da cor da pele.

O discurso racista e as práticas racistasque ele ensejou, no Brasil, lamentavelmentetiveram amplitude. Voltou-se contra o ne-gro, o mulato, o índio, o cigano e o judeu,que em muitos momentos da nossa Históriaforam tidos como “seres inferiores”, comoconclui no seu livro, O Racismo na Históriado Brasil (cit. p. 62) Maria Luiza Tucci Car-neiro.

É relevante, neste sentido, para explicara amplitude das modalidades dessas práti-cas racistas, trazer à colação uma distinçãoconceitual elaborada por Oracy Nogueira,num pioneiro estudo de 1954 sobre relaçõesraciais no Brasil. Na análise do preconceitoracial, identifica Oracy Nogueira tanto o quequalifica de preconceito de marca – que é opreconceito de cor que tem como pretexto,para as suas manifestações, os traços físi-cos, ou seja, a aparência – quanto o precon-ceito de origem, para o qual o pretexto do pre-conceito é a suposição de que o indivíduodescende de certo grupo (cf. Oracy Noguei-ra, Tanto Preto Quanto Branco: Estudos de Re-lações Raciais, São Paulo T. A. Queiroz Ed.,1985, pp. 78-79).

As práticas racistas, cuja condenaçãoprevê o art. 5º, LXII, e a sua correspondentelegislação infraconstitucional, não resultamapenas da cor da pele, como alega o impe-trante – o que configuraria, de forma restri-tiva, apenas a tutela contra o preconceito demarca. Incluem o preconceito de origem, paravaler-me da distinção proposta por OracyNogueira. Este está presente na nossa expe-riência histórica, como foi visto, e retém atu-alidade. Disso é exemplo a conduta de Sie-gfried Ellwanger – uma conduta que é con-

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trária à vis directiva do Preâmbulo da Cons-tituição de 1988, que “deve ser levado emconta quando da interpretação das normasconstitucionais”, na lição de Manoel Gon-çalves Ferreira Filho (Comentários à Consti-tuição Brasileira de 1988, vol. 1, cit., p. 15),como é o caso do HC 82424-2, ora em examepelo STF.

Por essas razões todas, também não énem histórica nem juridicamente correta aafirmação do impetrante que a lei AfonsoArinos teve como destinatários exclusivosda sua tutela o ser em situação, vítima dadiscriminação, em função da cor da sua pele.A lei Afonso Arinos, (Lei nº 1.390, de 3/ju-lho/1951) foi pioneira, em nosso País, napositivação, como contravenção penal, depráticas discriminatórias, dando, assim,início à etapa da especificação do processode afirmação dos direitos humanos. A Lei1.390/51 se refere, em todos os sete artigosque tipificam a contravenção penal, ao pre-conceito de raça ou cor. A sua tutela contem-plou, conseqüentemente, tanto o preconcei-to de marca quanto o preconceito de origem,não cabendo uma interpretação restritiva deseu conteúdo, por força do próprio texto dalei. A Lei 7.716/89 e o seu artigo 20, com aredação dada pela Lei 8.081/90 e outrasmudanças legislativas subseqüentes, na es-teira do processo de especificação iniciadocom a lei Afonso Arinos de 1951, definemos crimes resultantes de preconceito de raçaou de cor. Abrangem, portanto, em conso-nância com a tradição do direito brasileiroex vi de tipificação determinada pelo art. 5 º,LXII da Constituição de 1988, tanto o pre-conceito de marca quanto o de origem. Sub-sume, assim, na sua tutela, o anti-semitis-mo como prática de racismo e é, portanto,inteiramente aplicável à conduta criminosade Siegfried Ellwanger.

IX – Síntese conclusiva

Respondo, assim, à consulta formulada:o crime cometido por Siegfried Ellwanger éo da prática do racismo e, como tal, impres-

critível. As razões e os fundamentos jurídi-cos nos quais se baseia este parecer estãosumariadas abaixo, na forma de uma sínte-se conclusiva.

28 - Na Conferência Mundial de Direi-tos Humanos de Viena de 1993, o MinistroMaurício Corrêa, que chefiava a Delegaçãobrasileira na sua condição, à época, de Mi-nistro da Justiça, em discurso no plenário,em 14/6/93, fixou a linha geral da posiçãobrasileira, invocando a indivisibilidade dosdireitos humanos (cf. Antonio Augusto Can-çado Trindade, A proteção internacional dosdireitos humanos e o Brasil, cit., p 105). A Con-ferência de Viena, na sua Declaração e Pro-grama de Ação, agregou a noção de indivi-sibilidade ao seu item 5, esclarecendo-a aoafirmar que todos os direitos humanos sãouniversais, interdependentes e inter-relaci-onados. Por isso mesmo a Conferência, noitem 32, reafirmou a importância de se ga-rantir universalidade, objetividade e nãoseletividade na consideração de questõesrelativas a direitos humanos. (A Declaraçãoe Programa de Ação de Viena está reproduzi-da no apêndice do livro de J. A. Lindgren Al-ves, Os Direitos Humanos como tema global, SãoPaulo, Perspectiva, 1994; os itens 5 e 32, estãorespectivamente, nas páginas 153 e 162).

Indivisibilidade e, por via de conseqü-ência, universalidade, interdependência,inter-relacionamento e não-seletividade foia posição assumida pelo Ministro MaurícioCorrêa em Viena. Ela corresponde inteira-mente ao que estipula, para o plano internoe externo, a Constituição de 1988, e foi essaposição o ponto de partida deste parecer.

29 - O art. 5º, LXII, está inserido na siste-mática constitucional dos direitos e garan-tias individuais, tutelada por cláusula pé-trea, o que significa que a vis directiva doconstituinte foi dar estabilidade e perma-nência a um sistema integrado de valoresde convivência coletiva, que tem como va-lor-fonte a dignidade da pessoa humana,ao qual a Constituição atribuiu supremaciaaxiológica. Deve, por isso mesmo, o art. 5º,LXII, ser apreciado e interpretado com os

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cuidados especiais exigidos pela indivisi-bilidade dos direitos humanos.

30 - O art. 5º, LXII, exprime a especifica-ção do princípio geral da igualdade e danão discriminação. O seu destinatário é oser em situação vitimado pela prática do ra-cismo. O artigo é uma inovação da Consti-tuição de 1988 e é parte do processo maisamplo da especificação dos direitos huma-nos, que caracteriza o nosso texto constitu-cional. Tem como nota própria o rigor datutela penal, indicativa da importância quea Constituição atribui à repressão da práti-ca do racismo.

31 - O critério de interpretação dos direi-tos humanos deve favorecer, pela importân-cia a eles atribuída pela Constituição de1988, de maneira ampla, o conteúdo do di-reito contemplado. Entre os direitos e garan-tias individuais, inclui-se, ex vi do art. 5º,LXII, a rigorosa inaceitabilidade da práticado racismo. A Constituição de 1988 é expli-citamente receptiva ao Direito InternacionalPúblico em matéria de Direitos Humanos, oque configura uma identidade de objetivosdo direito internacional e do direito públicointerno, quanto à proteção da pessoa hu-mana. Por isso mesmo, como decidiu o STFno acórdão de 23/6/1994 (HC 7384), doqual foi relator o Ministro Celso de Mello,na interpretação em matéria de DireitosHumanos, o Direito Interno e o Direito In-ternacional não são estanques. Interagemcom vistas a reforçar a imperatividade dodireito constitucionalmente garantido. Esteé, conseqüentemente, também um critério re-levante para a interpretação do art. 5º, LXII,da Constituição de 1988.

32 - O conteúdo jurídico do preceito cons-titucional consagrado pelo art. 5º, LXII, docrime da prática do racismo, tipificado pelalegislação infraconstitucional, reside nasteorias e preconceitos que estabelecem dife-renças entre grupos e pessoas, a eles atribu-indo as características de uma “raça” paradiscriminá-las. Daí a repressão prevista noart. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dadapela Lei 8.081/90. Só existe uma “raça” – a

espécie humana – e, portanto, do ponto devista biológico, não apenas os judeus, comotambém os negros, os índios, os ciganos ouquaisquer outros grupos, religiões ou naci-onalidades não formam raças distintas. É oque diz a Declaração da UNESCO de 1978sobre Raça e Racismo; é o que dizem auto-res citados pelo impetrante, que mostramque “raça” é uma construção histórico-so-cial, voltada para justificar a desigualdade.Essa omissão é o ponto de partida da falaci-osa argumentação do impetrante. Com efei-to, os judeus não são uma raça, mas tam-bém não são raça os negros, os mulatos, osíndios e quaisquer outros integrantes daespécie humana que, no entanto, podem servítimas da prática do racismo. É o caso, porexemplo, dos párias na Índia, discutido naConferência de Durban sobre Racismo, víti-mas de um preconceito de origem e não demarca, para recorrer à distinção de OracyNogueira. Interpretar o crime da prática doracismo a partir do conceito de “raça”, comoargumenta o impetrante, exprime não sóuma seletividade que coloca em questão auniversalidade, interdependência e inter-re-lacionamento, que compõem a indivisibili-dade dos direitos humanos, afirmada, emnome do Brasil, pelo Ministro Maurício Cor-rêa em Viena. Representa, sobretudo, redu-zir o bem jurídico tutelado pelo Direito bra-sileiro, o que não é aceitável como critériode interpretação dos direitos e garantiasconstitucionais. No limite, essa linha de in-terpretação restritiva pode levar à inação ju-rídica por força do argumento contrario sen-su, que cabe em matéria penal. Com efeito,levadas às últimas conseqüências, ela con-verteria a prática do racismo, por maior quefosse o esmero na descrição da conduta, emcrime impossível pela inexistência do obje-to: as raças.

33 - O acerto da não interpretação do cri-me da prática do racismo a partir do concei-to de “raças”, à maneira do que preconiza oHC 82424-2 impetrado em favor de Siegfri-ed Ellwanger, confirma-se por dois casosdecididos por eminentes Cortes Superiores

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de outros países, que comportam aproxima-ção com o HC 82424-2 ora submetido ao jul-gamento do STF. Tanto o caso da Shaara Te-fila Congregation v Cobb, decidido pela Su-prema Corte dos EUA em 1987, quanto ocaso Mandla and another v Dowell Lee and ano-ther, decidido pela House of Lords da Ingla-terra em 1983, interpretam e aplicam a le-gislação dos seus respectivos países em ma-téria de discriminação racial. O caso decidi-do pela Suprema Corte dos EUA diz respei-to à prática do racismo em relação a judeus.O caso decidido pela House of Lords dizrepeito à prática do racismo em relação aossikhs. Em ambos, essas duas Cortes Superi-ores decidiram, não obstante as alegaçõesdos réus semelhantes às do impetrante, que,apesar de os judeus e de os sikhs não seremuma “raça”, foram vítimas de práticas ra-cistas, cabendo assim, respectivamente, atutela da legislação norte-americana de1982 e da legislação inglesa de 1976, quetratam da discriminação racial. Nesses doiscasos que julgaram em matéria de discrimi-nação racial, atribuiu-se ao termo “raça” suadimensão histórico-cultural, da qual pro-vém as práticas discriminatórias.

34 - A etimologia da palavra raça, noentender de vários filólogos é obscura, comoobscuras vieram a ser as conseqüências doseu uso social. Em português, na sua ori-gem, além de ser utilizada para diferenciar,cão, cavalo, de boa ou má raça, adquiriuoutro significado. Ter raça é ter sangue demouro ou judeu. Essa mesma acepção decunho negativo se encontra em espanhol ea origem desse emprego, nas duas línguas,reside nas tensões provenientes da Recon-quista pelos cristãos da Península Ibérica,dominada por séculos pelos árabes e nosconflitos religiosos que posteriormente le-varam ao estabelecimento da Inquisição.

Alguns filólogos derivam raça do latim,ratio, rationis, na acepção da modalidade,espécie. Foi essa acepção que prosperouquando, no século XVIII, teve início, pela obrade Lineu, não só a classificação das plantase animais como também dos seres huma-

nos. A taxonomia tornou-se dinâmica como evolucionismo de Darwin e, no que dizrespeito aos seres humanos, os múltiplosporém imprecisos critérios de classificaçãodas raças estavam ligados à aparência.

No século XIX, a taxonomia das raçasacabou induzindo o racismo. Com efeito, aclassificação das raças levou às teorias ra-cistas – por exemplo, as de Gobineau – quejustificaram a desigualdade com base nadiferença entre raças superiores e inferio-res. Essas teorias vicejaram no caldo de cul-tura do darwinismo social e passaram a fa-zer parte da História das mentalidades.

As teorias racistas buscaram sua funda-mentação nas ciências biológicas. Justifica-ram a prepotência da expansão colonial eu-ropéia e foram a base do racismo biológicoinstitucionalizado da Alemanha nazista.Esta instigou ódios públicos e conduziu umaguerra pública em relação aos que a lide-rança nazista considerava raças inferiores,com destaque para os judeus.

O avanço do conhecimento e o desven-dar do seqüenciamento do genoma huma-no se incumbiram de mostrar que não háfundamentação biológica em qualquer sub-divisão racial da espécie humana e que oscritérios de diferenças visíveis, a começarpela cor da pele, são apenas juízos de apa-rência. Neste sentido as ciências biológicassão um elemento adicional para a afirma-ção do princípio da igualdade e da não dis-criminação, que resultaram da positivaçãodo valor do ser humano.

As teorias racistas não têm fundamenta-ção biológica. Persistem, no entanto, comofenômeno social. É por essa razão que é estefenômeno, e não a “raça”, o destinatário ju-rídico da repressão prevista pelo art. 5 º, LXII,da Constituição, e da sua correspondentelegislação infraconstitucional. É precisa-mente porque a prática do racismo está nacabeça das pessoas que o art. 20 da Lei7.716/89, com a redação dada pela Lei8.081/90 e também sua evolução legislati-va, tipifica na estrutura do delito o praticar,induzir ou incitar por publicações e pelos

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meios de comunicação a divulgação de teo-rias que discriminam grupos ou pessoas, aelas atribuindo as características de “raçasinferiores”. Essa divulgação é crime de prá-tica de racismo. Foi por essas bem fundamen-tadas razões que o Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul condenou Siegfried Ellwan-ger e o Superior Tribunal de Justiça confir-mou o acerto jurídico do Tribunal gaúcho.

35 - As teorias e visões do mundo racis-tas partem do princípio que existem raças;que essas se dividem entre superiores e in-feriores e que as superiores têm o direito dedominar as inferiores. Uma visão racista domundo leva a distintas escalas de agressi-vidade, lastreada pelo não reconhecimentoaos “outros” dos mesmos direitos e garanti-as, cujo fundamento é o princípio da igual-dade e o corolário da não discriminação. Aescala de agressividade se intensifica com aviolência da segregação de que é exemplo oque foi o apartheid na África do Sul. O paro-xismo da violência é o extermínio físico, talcomo tipificado pelo crime do genocídio. Oparadigma desse paroxismo foi o Holocaus-to levado a efeito pelo Estado Racial em quese converteu a Alemanha nazista, que con-duziu uma guerra pública contra as raçasinferiores, com destaque para o extermíniode judeus.

A Carta da ONU procurou responder aoineditismo da escala sem precedentes domal, da experiência da Segunda GuerraMundial e de seus antecedentes. Nesta res-posta, deu realce para o que representou ogenocídio como afronta ao valor da digni-dade da pessoa humana. Fez, assim, da tu-tela dos direitos humanos no plano inter-nacional, não um tema circunscrito, mas umtema global.

Na etapa da especificação, do processode positivação dos Direitos Humanos noâmbito do Direito Internacional Público, emmatéria de discriminação racial, o grandetexto jurídico é a Convenção Internacionalpara a Eliminação de Todas as Formas deDiscriminação Racial de 1965. O Brasil parti-cipou de sua elaboração normativa e a Con-

venção que está em vigor no plano internaci-onal foi recepcionada pelo Direito brasileiro.

São relevantes na discussão do HC82424-2, ora em exame pelo STF, o art. 1-1da Convenção, que dá uma definição abran-gente da expressão “discriminação racial”,e o art. 4, que insere na tutela penal a difu-são de idéias baseada na superioridade ouódios raciais.

A Convenção de 1965 antecede em vi-gência e aplicação a Constituição de 1988;não suscita o problema das antinomias nema discussão sobre a mudança da Constitui-ção de forma distinta da prevista para asemendas constitucionais – temas com osquais se preocuparam os Ministros MoreiraAlves e Gilmar Mendes. É, portanto, ummeio válido, à disposição do intérprete, paraa aplicação do Direito no Brasil em matériade Direitos Humanos, nos termos da Cons-tituição de 1988, como decidiu o STF no acór-dão relatado pelo Ministro Celso de Melloem 23/6/94 (HC7384).

O Direito Internacional Público é um ele-mento adicional a confirmar que o crimecometido por Siegfried Ellwanger é o da prá-tica do racismo. Com efeito, a Convenção de1965 qualifica, no seu art. 1, como discrimi-nação racial, qualquer distinção, exclusão, res-trição ou preferência baseadas em raça, cor, des-cendência ou origem nacional e estipula, no seuart. 4, como delito, a difusão de idéias baseadasna superioridade ou ódios raciais ou qualquerincitamento à discriminação racial, tal como de-finido no art. 1º. A prática do crime de racis-mo inclui, assim, o anti-semitismo, que é umfenômeno social, que independe de um ine-xistente e impreciso conceito de “raças”.

A história legislativa da Convenção de1965 comprova também que as práticas anti-semitas do nazismo foram uma das causasde sua elaboração e que o Brasil, nos tra-vaux preparatoires, foi explícito nesta maté-ria. Na agenda internacional da ONU, oanti-semitismo como prática de racismo temsido considerado um tema de preocupaçãoatual e não apenas histórica. É o que afirma,por exemplo, a Resolução 623/98 da Assem-

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bléia Geral e o item 61 da Declaração daConferência de Durban sobre Racismo de2001, cabendo igualmente lembrar que aDeclaração de Durban reitera, no seu item58, que o Holocausto jamais deverá ser es-quecido. Aponto, neste sentido, que negar oHolocausto e considerá-lo a mentira do sécu-lo é parte do crime da prática do racismo peloqual foi condenado Siegfried Ellwanger.

36 - As práticas do racismo, na experiên-cia histórica do Brasil, em oposição ao quealega o impetrante, tiveram uma amplitudede destinatários que foram vitimados peladiscriminação. Negros, mulatos, índios, ci-ganos, judeus foram, em diversos momen-tos da nossa História, considerados “raçasinferiores” e, como tal, discriminados.

No período colonial, as práticas racistasse davam pela distinção entre os limpos desangue – os brancos, portugueses, cristãos-velhos – e os de raças ditas impuras, cujosangue manchava – os negros, os mestiços,os indígenas e os judeus, inclusive os con-vertidos, qualificados de cristãos-novos.Para os cristãos-novos, a impureza de san-gue era uma ameaça onipresente em funçãoda Inquisição, que fazia do critério da im-pureza de sangue um elemento comproba-tório de judaísmo oculto, que poderia con-duzir à morte nas fogueiras dos autos-de-fé.O teatrólogo Antonio José da Silva – o Ju-deu, nascido no Rio de Janeiro, é a mais no-tória vítima, na História da literatura luso-brasileira, condenado a morrer na fogueira,num auto-de-fé ocorrido em Lisboa em 1739.A distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos, no Brasil, só foi eliminada pela Car-ta-Lei de 1773 promulgada ao tempo doMarquês de Pombal.

O preconceito racial em relação aos ju-deus, baseado na “impureza de sangue”,persistiu na memória da língua portugue-sa, tal como usada em nosso País com osvocábulos judiar e judiaria e na representa-ção do judeu no folclore brasileiro, comoatesta Luís da Câmara Cascudo.

O Brasil recepcionou, nos séculos XIX eXX, teorias racistas que foram parte da His-

tória das Mentalidades voltadas para justi-ficar e legitimar a desigualdade com basena distinção entre “raças” superiores e in-feriores. Na década de 30, teve irradiaçãoem nosso País o racismo nazista alemão, quetinha no anti-semitismo o seu foco prepon-derante. Isso contribuiu para a existênciade práticas racistas no aparelho do Estado,em especial no que tange às restrições daimigração de judeus para o Brasil na déca-da de 30 e durante a Segunda Guerra Mun-dial, justificadas por critérios raciais. A pos-tura governamental, que não era ostensivamas é documentada, viu-se facilitada pelapropaganda contra o judeu contida nasobras anti-semitas publicadas na época, emespecial as de Gustavo Barroso. É a reedi-ção das obras do espalhafatoso anti-semi-tismo de Gustavo Barroso parte integrantedo crime pelo qual foi condenado SiegfriedEllwanger.

A legislação brasileira, desde a lei Afon-so Arinos de 1951, que dá início ao proces-so de especificação da tutela penal para pro-teger as vítimas da discriminação racial, nãotem como destinatários exclusivos o ser emsituação, vitimado pela cor de sua pele,como argumenta sem base histórica e jurí-dica o impetrante. O Direito brasileiro con-templa tanto o preconceito de raça – que osociólogo Oracy Nogueira qualificou de pre-conceito de origem – quanto o preconceitode cor – por ele qualificado de preconceitode marca. Essa é a interpretação correta aser dada ao art. 5º, LXII, da Constituição de1988, e à sua correspondente legislação in-fraconstitucional, inclusive por força da visdirectiva do Preâmbulo da Constituição queafirma os valores supremos de uma socie-dade que se quer fraterna, pluralista e sempreconceitos, fundada na harmonia social.

37 - Uma palavra final sobre a impres-critibilidade, pois o impetrante, na petiçãodo HC 82424-2, não nega a existência deum delito cometido por Siegfried Ellwanger.Busca afastar a imprescritibilidade, argu-mentando não tratar-se de crime de práticade racismo.

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Existe um nexo estreito entre a impres-critibilidade, esse tempo jurídico que se es-coa sem encontrar termo, e a memória, ape-lo do passado à disposição dos vivos, triun-fo da lembrança sobre o esquecimento, comoexplica Alain Laquièze (Le Debat de 1964sur l’imprescriptibilité des crimes contrel’humanité, in Droits, 31, 2000, p. 19).

A memória das práticas racistas que di-ficultaram, na História do Brasil, a criaçãode uma sociedade fraterna, pluralista e sempreconceitos – valores supremos do Paísconsagrados no Preâmbulo da Constituição– é o que o Constituinte quis preservar, paraimpedir sua reincidência. Por isso conferiu,no art. 5º, LXII, ao crime da prática do racis-mo o peso e a gravidade da imprescritibili-dade.

O crime de Siegfried Ellwanger é o daprática do racismo, crime de que nos quere-mos livrar, em todas as suas vertentes, paraconstruir uma sociedade digna. Tem a es-pecificidade de querer preservar, por meiode publicações, viva, a memória de um anti-semitismo racista. Foi esse anti-semitismoque levou, no Estado Racial em que se con-verteu a Alemanha nazista, à escala semprecedentes o mal representado pelo Holo-causto. O Holocausto é a recusa da condi-ção humana da pluralidade e da diversida-de, que contesta, pela violência do extermí-nio, os princípios da igualdade e da nãodiscriminação, que são a base da tutela dosdireitos humanos. O crime de SiegfriedEllwanger, por apontar nessa direção domal, não admite o esquecimento.

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