diálogo transatlântico através de carlos fuentes · através de carlos fuentes celso lafer...
TRANSCRIPT
DOCUMENTOS
o diálogo transatlânticoatravés de Carlos FuentesCelso Lafer
Apresentação no XIII Foro Iberoamérica
Cartagena de Indias, 25 de outubro de 2012
Carlos Fuentes era um homem de encantador convívio e múltiplos talentos - romancista, contista, ensaísta, diplomata. Era, ademais, um homem elegante, inclusive notrajar - o que surpreendeu a José Saramago que afinal concluiu que somar exigênciacrítica com gravata bem escolhida não era coisa pequena (Jornal de Letras, 30 de maio a12 de junho de 2012, p. 14). Tinha o dom de gentes e sabia ser um agrega dor. Exerceusuperiormente esta dimensão de agregador no âmbito do Foro, dimensão relevantepara uma instituição como a nossa que reúne, e esta é uma de suas forças, integrantesde várias tribos - a dos empresários, a dos políticos, a dos intelectuais, a de personalidades dos meios de comunicação.
A capacidade de lidar com a diversidade das várias tribos do nosso Foro e exercer afunção de agregador teve sua correspondência na diversidade das direções e escriturasque sempre foram um signo de vitalidade da obra de Carlos, como apontou com discernimento Octavio Paz em Solo a dos voces. Assim, respondeu ao estímulo de promover adiversidade inerente ao diálogo transatlântico no âmbito do nosso Foro da mesma maneira que na sua obra respondeu aos múltiplos estímulos do seu "eu" literário.
O seu ponto de partida de criador literário e grande narrador foi instigado pelo desafio de entender o México (os cinco sóis de um país que não tem começo mas origem- Los cinco soles de México, pp. 7-9) e lidar com os caminhos e descaminhos da RevoluçãoMexicana (por exemplo: La muerte de Artemio Cruz, Los anos con Laura Diaz).
Entretanto, a sua ficção e a sua ensaística não se circunscrevem aos estímulos da criaçãodada pela circunstância mexicana do seu eu literário e intelectual. Para voltar a OctavioPaz: "En Carlos Fuentes, por ejemplo, coexisten varias voces y cada una de esas voces,cada uno de esos dialectos, es igualmente sujo: como determinar que es 10 mexicano y quees 10 extrano en esa pluralidad? Lo mexicano es el choque a Ia confluencia de todas esasvoces ..." (Entrevista a Rita Guibert - Obras Completas - Miscelánea I1I,p. 421).
Celso Lafer é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USPe ex-ministro das Relações Exteriores
do Brasil em 1992 e em 2001-2002.
251 V0L21 N"3 /AN/FEV/MAR 2013
DOCUMENTOS
Na confluência destas múltiplas vozes, tem um papel relevante a voz da literaturaem língua espanhola mas também a voz da língua portuguesa da literatura brasileira.Por essa razão, é um agudo e sensível estudioso dos grandes romances latino-americanos - tenho em mente o livro La gran novela latinoamericana - e não posso, comobrasileiro, deixar de destacar o arguto apreciador de Machado de Assis, Machado deLa Mancha, que considerava como o único grande romancista latino-americano doséculo XIX.
No âmbito das múltiplas direções do percurso de Carlos Fuentes vou cingir-me,nesta intervenção, à tarefa que me foi atribuída: a do seu papel no diálogo transatlântico. Vou explorar o tema, tendo como foco a sua dimensão de intelectual público, que foiuma faceta importante da sua personalidade literária - como foi a de Octavio Paz e é ade Mario Vargas Llosa.
O tema do intelectual público diz respeito à relação entre os intelectuais e o poder,ou seja, aos nexos entre Política e cultura - para falar com Bobbio - autor do grande livroIl dubbio e Ia scelta - Intellecttuali e potere nella socíetà contemporanea, 1993.
N as democracias modernas e pluralistas o poder ideológico - que é o que se exercesobre as mentes através da produção e transmissão de ideias - é fragmentado. É umpoder exercido pela palavra e pela sua difusão que impacta os comportamentos.
A política contemporânea em sociedades complexas requer este tipo de poder queestá ao alcance dos intelectuais. Refiro-me, tanto àqueles intelectuais que têm o domíniodos conhecimentos técnicos necessários para equacionar a relação meios-fins, como é ocaso dos economistas, dos juristas, dos educadores, dos engenheiros, dos especialistas emmeios de comunicação, quanto àqueles intelectuais que propiciam, para a sociedade epara o poder - em exercício ou potencial- princípios gerais, valores, sentido de direção.
Carlos Fuentes, como intelectual público, preocupou-se e ocupou-se de princípios/valores / sentido de direção.
Exerceu a tarefa intelectual de agitar ideias, suscitar problemas (Bobbio, p. 127) noâmbito mais amplo do espaço público. Um destes espaços que ele ajudou a criar foi oForo. No âmbito do Foro, exerceu esta tarefa de intelectual público, como diria Bobbio,com espírito laico, vale dizer com o espírito crítico que se opõe ao dogmático (Bobbio, p. 130)- o que significa que este espírito laico pode ser exercido a partir de distintas posturas,em consonância com aquelas que caracterizam a dos integrantes do nosso Foro.
O sentido de direção do diálogo transatlântico que CaTlos, com sucesso, empenhou-seem imprimir ao Foro, está intimamente ligado à sua concepção de intelectual público.Neste sentido, um livro modelar desta sua concepção é o seu livro de 2002, En esto creo
- publicado no Brasil em 2006 pela Rocco, com o título Este é o meu credo. O título emespanhol é mais revelador. Permite evocar a distinção que Ortega y Gasset elaborouentre crenças e ideias. "Las ideas se tienen, en Ias creencias se está". Aponta Ortega quecrenças não são ideias que temos, mas sim ideias do que somos. As crenças em que estamos nos sustentam e são o fundo a partir do qual pensamos as'ideias que resultam danossa atividade intelectual. As ideias, complementa Ortega, necessitam de crítica comoo pulmão de oxigênio e se afirmam apoiando-se em outras ideias que, radicadas emnossas crenças, nos permitem enfrentar o mar de dúvidas que nos envolvem (d. Ortegay Gasset, Ideas y Creencías, Madrid, Alianza Edit., 1986, pp. 23-38).
252 POLíTICA EXTERNA
1
I
o DIÁLOGO TRANSATLÂNTICO ATRAVÉS DE CARLOS FUENTES
En esto creo é um livro da maturidade de Carlos. É uma decantação do seu percursode intelectual público. O livro é constituído de pequenos verbetes que são a elaboradaexpressão das ideias que resultam de suas crenças. Estes verbetes são entradas, tambémna acepção histórico-geográfica brasileira, ou seja, vias de acesso - caminhos mas tambémfronteiras - para o entendimento de problemas do continente das nossas preocupações.Está alfabeticamente organizado de A a Z.
Estes verbetes lidam com os temas que dizem respeito às muitas circunstâncias quecercaram não só o "eu" de Carlos Fuentes, mas cercam o nosso eu contemporâneo.
O primeiro verbete de En esta creo intitula-se America Iberica. Para os propósitos destaminha intervenção, pondero que não se trata apenas de um acaso alfabético. Carlos acreditava na América Ibérica porque via o Atlântico não como um abismo mas sim como uma
ponte dos vários encontros do qual resultamos. Estes encontros são uma expressão dasvárias vozes que, como mencionei citando Octavio Paz, caracterizam a pluralidade de suaescrita. É por isso que a sua crença na América Ibérica é profunda e explicativa da sua militante dedicação ao Foro Iberoamerica e ao diálogo transatlântico que constitui a sua razãode ser. Neste diálogo Carlos empenhou-se em incluir Portugal e o Brasil que são a outraface do mundo ibérico, - a da cultura e da política lusitana e brasileira, que se expressamem português e que têm, com a que se expressa em espanhot por obra da História e daGeografia, a herança de um compartilhado repertório de significados.
Obviamente, no meio do livro - no meio do caminho está a pedra - como diria CarlosDrummond de Andrade - a pedra dos cinco sóis - situa-se o verbete México que é o ponto de partida da reflexão de Carlos sobre a América Ibérica. O México é, para Carlos, oretrato de uma criação que nunca descansa porque ainda não concluiu sua tarefa. É comoa literatura, para Antonio Candido, uma atividade sem sossego. Também o diálogo transatlântico é uma atividade sem sossego.
Entre os muitos verbetes de En esto creo, deixo de lado os que dizem respeito aomundo da vida (a lebenswelt de Husserl) ou à cultura no sentido amplo. Vou fazer referência apenas a alguns que são relevantes para perceber o sentido de direção de natureza política, subjacente ao modo como Carlos, no meu entender, concebia o diálogotransatlântico. Destaco os verbetes:
(i) Esquerda - na qual aponta que a globalização permite à esquerda chamar a atençãosobre a dicotomia crescente entre o espaço econômico e o controle político e observa que seo capitalismo propõe as razões da economia, a democracia propõe os valores do consensopolítico para concluir que, no meio-termo entre ambos, a esquerda é o espaço político noqual os mais fracos da sociedade e do mercado podem combater e negociar suas conquistas.
(ii) Globalização como tema do final do século XX que se prolonga no século XXI eque, como o Deus Jano, tem duas faces - que vem levando à união de Creso - o dinheiroe o Hedonismo - o prazer. Esta união permite que os vícios da aldeia global façam surgiros vícios da aldeia local - os tribalismos, os nacionalismos redutores e chauvinistas, axenofobia, os preconceitos raciais e culturais.
Neste contexto Carlos nega a política do avestruz, que esconde a cabeça na areia e a dotouro que destrói tudo na loja de louça e evoca, como caminho, globalizar a solidariedade talcomo proposto por Fernando Henrique Cardoso no memorável discurso pronunciado em30 de outubro de 2001, em sessão solene na Assembleia Nacional da República Francesa,que tive o privilégio de ouvir, acompanhando-o como seu chanceler (d. Palavra do Presi
dente 14, 2001, pp. 499-505).
253 VOL 21 W 3 JAN!FEV!MAR 2013
DOCUMENTOS
(iii) Política - na qual examina as suas luzes (a de Roosevelt e a de Cárdenas de suainfância), e suas sombras (os seus carrascos), mas pondera que, se houve nos EUA, umSenador McCarthy, houve também um Martin Luther King. Há, portanto, esperança napostura de Carlos Fuentes. Esta explica a sua vocação para o diálogo e a sua postura deintelectual público que tem, na linha de Tocqueville, a preocupação salutar com o futuroque o fez velar e combater.
(iv) Revolução - No trato deste grande tema, que diz respeito, como aponta HannahArendt, à possibilidade de um novo início, fruto de uma aspiração trazida pelo potencialda convergência entre libertação e liberdade, Carlos observa que as duas mais coerentemente modernas foram a Francesa e a Americana.
A que teve desdobramentos mais significativos, como diz Carlos, foi a RevoluçãoFrancesa, pois o capitalismo e a democracia foram os seus rebentos.
O caráter laico de uma Revolução é, no seu entender, a garantia de sua sanidade, oque significa, em outras palavras, não acreditar, como diria Bobbio, no milagre da política. Daí, para Carlos, os descaminhos insanos da Revolução Russa, que associou herançareligiosa bizantina com o comunismo; da Revolução Chinesa que, na época de Mao, trouxe a rigidez legitimista e burocrática do antigo Império do Meio; da Revolução Cubana
que, a partir da esquerda consagrou a fraude mortal da direita latino-americana: o culto ao líder máximo.
É claro que Carlos, a partir do eu da sua circunstância, não deixa de examinar osvários paradoxos da Revolução Mexicana para concluir que a Revolução, no século XXI,como um novo início, que não se confunde nem com a revolta nem com a rebeldia, requerpluralizar o mundo e valorizar dialogicamente as diferenças étnicas, políticas, religiosas,sexuais e culturais.
Daí o significado do verbete xenofobia, no qual destaca a importância do ato fraternalnum mundo globalizado rodeado de abismos. O verbete está permeado pela sua convicção de que as culturas perecem no isolamento e prosperam na comunicação. Daí oalcance do diálogo transatlântico, no qual empenhou-se.
Concluo lembrando que, no verbete Sociedade Civil, Carlos destaca a sua importância,reflete sobre o terceiro setor e sobre as várias modalidades da sua articulação e presença. Lembra que o terceiro setor tem um pé na sociedade e outro nas instituições e podeenriquecer as instituições públicas e privadas e abrir horizontes em um mundo emtransformação. O Foro lberoamerica e o diálogo transatlântico como um terceiro setor sui
generis vêm cumprindo estas funções inspirados pelo saber com sabor que é como podemos definir a sabedoria de um grande intelectual público como foi Carlos Fuentes,que animou e vivificou as nossas atividades desde o seu momento inaugural.
254 POlfTICA EXTERNA