paradigma da construção de vida

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5 Revista Brasileira de Orientação Prossional, 2009, 10(2), pp. 5-14 RESUMO Reexões sobre as teorias do século XX na área da psicologia da orientação constituem a base para se discutir e apresentar uma nova abordagem, e a consequente mudança de paradigma, que se pretende inovador e integrador: o paradigma da psicologia da construção da vida. Assim, os principais princípios estruturantes deste novo paradigma, bem como os objectivos, os processos, os pressupostos, e ainda um referencial abrangente para a intervenção, serão objecto de análise e discussão. Palavras-chave: orientação vocacional; aconselhamento de carreira; psicologia da construção da vida; carreira. ABSTRACT: A century after Frank Parsons: Choosing a vocation or a bet in the psychology of life construction? Reections about the theories in the eld of psychology of guidance in the XX century constitute the basis for the discussion and proposition of a new approach and the consequence change of paradigm, which is expected to be innovating and integrating: the paradigm of the psychology of life construction. Thus, the main principles underpinning this new paradigm as well as the objectives, the processes, the assumptions, and a comprehensive theoretical frame for interventions are the object of analysis and discussion in this paper. Keywords: vocational guidance; career counseling; psychology of life design; career. RESUMEN: Un siglo después de Frank Parsons: ¿Elegir una profesión o apostar a la psicología de la construcción de la vida? Las reexiones sobre las teorías del siglo XX en el área de la psicología de la orientación constituyen la base para discutir y presentar un nuevo enfoque, y el consecuente cambio de paradigma que se pretende innovador e integrador: el paradigma de la psicología de la construcción de la vida. Así, los principales fundamentos estructurantes de este nuevo paradigma y también los objetivos, los procesos, los presupuestos, y además un referencial inclusivo para la intervención, serán objeto de análisis y discusión. Palabras clave: orientación vocacional; asesoramiento de carrera; psicología de la construcción de la vida; carrera. Um século depois de Frank Parsons: Escolher uma prossão ou apostar na psicologia da construção da vida? 1 Maria Eduarda Duarte 2 Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal 1 Conferência internacional proferida no II Congresso Latino-Americano de Orientação Prossional da ABOP e IX Simpósio Brasileiro de Orientação Vocacional & Ocupacional realizado de 1 a 3 de outubro de 2009 em Atibaia-SP, Brasil. 2 Endereço para correspondência: Universidade de Lisboa. Faculdade de Psicologia. Alameda da Universidade, P-1649-013. Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected] No começo do século XX, o mundo estava em mudança. Frank Parsons (1854-1908), americano de ori- gem, democrata, engenheiro de prossão e advogado em luta pela defesa dos direitos humanos, procurava dar res- posta a um conjunto de necessidades sociais, que foram acompanhando o desenrolar da Revolução Industrial. Para

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  • 5Revista Brasileira de Orientao Profi ssional, 2009, 10(2), pp. 5-14

    RESUMORefl exes sobre as teorias do sculo XX na rea da psicologia da orientao constituem a base para se discutir e apresentar uma nova abordagem, e a consequente mudana de paradigma, que se pretende inovador e integrador: o paradigma da psicologia da construo da vida. Assim, os principais princpios estruturantes deste novo paradigma, bem como os objectivos, os processos, os pressupostos, e ainda um referencial abrangente para a interveno, sero objecto de anlise e discusso.Palavras-chave: orientao vocacional; aconselhamento de carreira; psicologia da construo da vida; carreira.

    ABSTRACT: A century after Frank Parsons: Choosing a vocation or a bet in the psychology of life construction? Refl ections about the theories in the fi eld of psychology of guidance in the XX century constitute the basis for the discussion and proposition of a new approach and the consequence change of paradigm, which is expected to be innovating and integrating: the paradigm of the psychology of life construction. Thus, the main principles underpinning this new paradigm as well as the objectives, the processes, the assumptions, and a comprehensive theoretical frame for interventions are the object of analysis and discussion in this paper. Keywords: vocational guidance; career counseling; psychology of life design; career.

    RESUMEN: Un siglo despus de Frank Parsons: Elegir una profesin o apostar a la psicologa de la construccin de la vida?

    Las refl exiones sobre las teoras del siglo XX en el rea de la psicologa de la orientacin constituyen la base para discutir y presentar un nuevo enfoque, y el consecuente cambio de paradigma que se pretende innovador e integrador: el paradigma de la psicologa de la construccin de la vida. As, los principales fundamentos estructurantes de este nuevo paradigma y tambin los objetivos, los procesos, los presupuestos, y adems un referencial inclusivo para la intervencin, sern objeto de anlisis y discusin.Palabras clave: orientacin vocacional; asesoramiento de carrera; psicologa de la construccin de la vida; carrera.

    Um sculo depois de Frank Parsons: Escolher uma profi sso ou apostar na

    psicologia da construo da vida?1

    Maria Eduarda Duarte2Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal

    1 Conferncia internacional proferida no II Congresso Latino-Americano de Orientao Profi ssional da ABOP e IX Simpsio Brasileiro de Orientao Vocacional & Ocupacional realizado de 1 a 3 de outubro de 2009 em Atibaia-SP, Brasil.

    2 Endereo para correspondncia: Universidade de Lisboa. Faculdade de Psicologia. Alameda da Universidade, P-1649-013. Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

    No comeo do sculo XX, o mundo estava em mudana. Frank Parsons (1854-1908), americano de ori-gem, democrata, engenheiro de profi sso e advogado em

    luta pela defesa dos direitos humanos, procurava dar res-posta a um conjunto de necessidades sociais, que foram acompanhando o desenrolar da Revoluo Industrial. Para

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    muitos autores, era o incio de um novo domnio da psico-logia, a psicologia vocacional. Alfred Binet (1857-1911), em 1905, em Frana, publicava a primeira Escala Mtrica de Inteligncia, onde afi rmava que a inteligncia era aqui-lo que os seus testes mediam; para muitos autores, era o incio da psicologia diferencial. William Stern (1871-1939) e Hugo Munstterberg (1863-1916) aplicavam pela primeira vez, na dcada de 1910, o mtodo dos testes aos problemas de trabalho; para muitos autores, era o incio da psicologia do trabalho naquilo que diz respeito relao entre aptides e predio de xito profi ssional, isto , o incio da seleco de pessoal. Noutra rea, Sigmund Freud (1856-1939), em 1889, mas com data de 1900, publicava A interpretao dos sonhos; para todos os autores, era a fundao da psicanlise.

    O que poder haver de comum a todos estes cientis-tas, aqui referidos a ttulo de exempla? Enquanto Parsons acreditava que uma das formas de efi cincia social e de desenvolvimento de ideais progressistas tinha como base a maneira como as pessoas escolhiam a sua vida de tra-balho, isto , como faziam as suas escolhas vocacionais, para Binet o estudo das diferenas individuais e a pro-moo do ensino, mesmo para os considerados menos capazes, serviam de mote a uma procura de respostas no sentido de promover melhores condies de vida para os mais desfavorecidos, e melhores condies sociais para aqueles que, mesmo sem o saberem, tinham entrado para a Histria como os primeiros empregados. Para Stern e Munsttenberg, a predio e o controlo psicolgico eram os elementos determinantes para a execuo de tarefas profi ssionais. E, ao mesmo tempo, assistia-se descober-ta do inconsciente.

    Estava-se no momento em que o mundo comeava a fabricar a noo de emprego, de trabalho remunerado, de ascenso na profi sso, e da associao de uma vida activa e socialmente aceite a quem trabalhasse um elevado n-mero de horas, com dedicao e lealdade mesmo aqueles que, por difi culdades de aprendizagem, eram excludos da sociedade produtiva. Estava-se no momento da abertura de um caminho em que seria necessrio derrubar um con-junto de barreiras ideolgicas para assim se chegar, mais tarde, noo de individualidade.

    Barreiras ideolgicas, porque os primeiros psic-logos, imbudos ainda do positivismo baseados no pen-samento de Auguste Comte (1789-1857), acreditavam que a cincia e o conhecimento cientfi co poderiam ser somente de tipo quantitativo o que teve como conse-quncia imediata a edifi cao da psicologia baseada na observao de fenmenos que permitiam a explanao e a predio. O predomnio do quantitativo, a expanso da in-dstria e da tcnica, e a procura de leis gerais e universais

    determinaram, assim, a construo dos primeiros modelos aplicados ao sector industrial e produtivo, nos quais a pro-dutividade e a organizao se sobrepunham s diferenas individuais, dentro dos espaos organizacionais.

    Foi neste contexto que Frederick Taylor (1856-1915) imps o primeiro modelo no mbito das organizaes: orga-nizar um conjunto de tarefas para determinar os processos mais econmicos e mais efi cazes, cortando assim, em defi -nitivo, com a tradio do trabalho artesanal (Taylor, 1911).

    Tambm o liberalismo econmico, predominante desde os fi nais do sculo XIX e at ao fi nal da I Grande Guerra, foi sendo substitudo pela intromisso do Estado na economia. A Grande Depresso de 1929, nos Estados Unidos, intensifi cou a reavaliao dos princpios da cha-mada administrao cientfi ca do trabalho na sua essncia mais dogmtica e prescritiva. Tambm os modelos asso-ciados industrializao reforaram o esquecimento das caractersticas psicolgicas, at ao surgimento, nos anos de 1930, da primeira teorizao sobre relaes humanas com Elton Mayo (1880-1949), em Hawthorne, e as suas experincias (Mayo, 1933).

    Gradualmente, as diferenas individuais foram ga-nhando signifi cado conceptual e importncia prtica, principalmente depois do esforo empreendido durante a II Guerra Mundial, procurando-se uma relao entre de-sempenho e sucesso. Os modelos desenvolvimentistas, decorrentes dessa aprendizagem, marcaram uma viragem no estudo da psicologia at ento chamada vocacional: da vocao passou-se para a carreira, considerando-se que esta acompanha o indivduo ao longo do seu ciclo de vida; e esboou-se o princpio da relatividade aplicado ao desempenho do papel de trabalhador. Subtilmente, a expresso orientao vocacional foi sendo substituda por aconselhamento de carreira, e as abordagens de-senvolvimentistas foram ganhando a fora sufi ciente para que expresses como comportamento de carreira, im-plementao de auto-conceitos e desenvolvimento ao longo do ciclo de vida fossem entrando no vocabulrio cientfi co.

    Os modelos psico-sociais e psico-educacionais co-nheceram o seu momento de glria nos anos de 1970 e 1980, tendo entretanto sido introduzidas outras refe-rncias que se foram ajustando noo de carreira: o desenvolvimento de competncias e a aprendizagem estruturada. Os anos de 1990 apostaram claramente na interveno, e os psiclogos que estudavam a carreira iniciaram uma outra era na qual as abordagens cogni-tivo-comportamentais e as abordagens construtivistas ganharam o relevo sufi ciente para que um conjunto de variveis e dimenses psicolgicas que, at ento, eram como que propriedade de outras psicologias como,

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    por exemplo, a narrativa e a psicoterapia, o stress e a psicologia do trabalho se fossem integrando na noo de aconselhamento de carreira.

    Modelos incompletos (como todos os modelos), mas modelos prescritivos e normativos (como nem to-dos os modelos), que chegaram ao fi nal do sculo XX com algumas difi culdades em dar resposta s novas ne-cessidades impostas por uma sociedade mais preocupada em globalizar o econmico do que o social. Tornou-se, ento, necessrio repensar a psicologia da orientao vo-cacional, a psicologia do aconselhamento de carreira, e lanar as bases para mais uma mudana de paradigma, chegando-se assim psicologia da construo da vida, fatalmente to transitria como outra qualquer designa-o ou abordagem.

    Mas o sculo XXI exige mudanas rpidas, adapta-es constantes e respostas efi cazes, da parte do indivduo e de quem tem a responsabilidade de o ajudar a treinar as competncias para enfrentar a vida. Este agora novo mo-delo vai beber na fsica, tal como o fi zeram os pioneiros da psicologia, vai beber na fi losofi a, como manda a tradio epistemolgica, e vai beber noutras reas da psicologia, tal como impe a nova cincia.

    Porque, tal como escreveu Guimares Rosa, a vida muito discordada. Tem partes. Tem Artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Co, e as vertentes do viver. disso, afi nal, que se vai falar: de vida.

    Os caminhos percorridos para se chegar ao modelo da construo da vida

    No modelo clssico de trao e factor (Parsons, 1909), o trabalho do orientador consiste em analisar as capacida-des do indivduo, comparando-as s exigidas pela profi s-so, e em ajud-lo a escolher a profi sso melhor adequada s suas capacidades. Este tipo de abordagem caracteriza-se pela importncia que os atributos mensurveis tm en-quanto preditores de sucesso vocacional: a psicologia das diferenas individuais, qual est subjacente o mtodo de determinao de variveis mensurveis, procura determi-nar a relao entre as capacidades do indivduo e a escolha da profi sso.

    Trata-se de um modelo clssico que, no decorrer do processo de aconselhamento, tem como objectivo permitir que o indivduo tenha sucesso e satisfao profi ssionais. Isto , o seu objectivo a procura da melhor combinao entre as caractersticas do indivduo e as das profi sses, assentando no princpio de que todos os indivduos tm as dimenses avaliadas estveis, e que so capazes de utilizar o auto-conhecimento para tomarem decises vocacionais. Mas algumas questes se colocam, como por exemplo:

    como proceder se o cliente no tem um conhecimento adequado de si prprio e das profi sses, se no tem cons-cincia da importncia que para ele fazer escolhas, ou se no revela competncias para lidar com os dados pro-venientes do aconselhamento? A utilizao deste modelo pode portanto ser vlida para o planeamento de activida-des exploratrias com indivduos que estejam motivados, e para aqueles que podem efectuar processos de tomada de deciso porque se encontram vocacionalmente maduros. Da experincia de cada um, se confi rmar da actualidade desta abordagem... No entanto, pela minha parte, ela tal-vez s faa sentido e seja consequente para um cliente em cada mil.

    Nos anos de 1950, os trabalhos de Ginzberg, Ginsburg, Axelrad e Herma (1951) e, posteriormente, os de Super (1957), marcaram a evoluo da psicologia vocacional, assumindo a orientao uma perspectiva mais ampla, com a introduo de outros objectos de estudo, e, consequen-temente, da necessidade de desenvolver metodologias e tcnicas de avaliao de conceitos como, por exemplo, a tomada de deciso, os auto-conceitos, o estilo de vida, os valores, os tempos livres, a escolha livre e fundamentada, a fl exibilidade, e a capacidade para lidar com a mudana (Herr & Cramer, 1996).

    O desenvolvimento da carreira passa ento a ser visto como um processo contnuo, e a avaliao deve sistema-ticamente procurar a sua utilidade e efi ccia em qualquer momento do ciclo de vida. Para tal, importante ter como base de trabalho um modelo conceptual, na medida em que pode providenciar um mtodo sistemtico para se es-tabelecerem objectivos de avaliao e a consequente utili-zao dos resultados da avaliao.

    a Donald Super, com o seu modelo desenvolvi-mentista de avaliao e aconselhamento, que se deve o grande contributo para encarar a avaliao como um pro-cesso desenvolvimentista (Super, 1983, 1990), posterior-mente alargado pelo prprio e seus colaboradores (Super, Osborne, Walsh, Brown, & Niles, 1992) sob a designao de modelo desenvolvimentista de avaliao e aconselha-mento da carreira (C-DAC). O contributo destes modelos consistiu em considerar a maturidade vocacional, no caso de jovens, e a adaptabilidade, no caso de adultos, como o elemento determinante para a maior ou menor facilidade de o indivduo tomar decises de carreira. Estes modelos colocaram como aspecto crucial a avaliao do grau de preparao para a medida das aptides e dos interesses e para a realizao de escolhas vocacionais, o que implicou a avaliao da salincia do trabalho e a medida da ma-turidade vocacional (Super, 1983). Avaliar a importncia do trabalho em comparao com outras actividades que se vo desenvolvendo ao longo da vida, e em estreita ligao

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    com a maturidade vocacional, foi (e sublinho o tempo do verbo, foi) uma questo importante, na medida em que a evoluo da estrutura profi ssional veio contribuir para au-mentar a importncia de outros papis na procura da satis-fao das necessidades e na realizao, e para encontrar satisfao pessoal.

    Como salientam Herr e Cramer (1996), os modelos desenvolvimentistas centram-se nas expresses longitu-dinais do comportamento, evidenciam a importncia do auto-conhecimento, e dirigem as suas concepes para a compreenso do desenvolvimento e das mudanas que o comportamento na carreira vai tendo ao longo do tempo.

    Este modelo pode ser utilizado quer com jovens, quer com adultos, inseridos em vrias prticas de orientao e em contextos diversos. Quando se trata da avaliao de jovens inseridos no sistema educativo, a nfase centra-se sobretudo nos processos de tomada de deciso, porque se parte do princpio de que a necessidade principal consiste em fazer escolhas vocacionais (Savickas, 1992). No caso dos adultos, proporciona a possibilidade de conhecimento e compreenso do ciclo de vida, de procurar os valores adequados aos vrios momentos e os papis que se de-senvolvem na vida adulta, e at infl uenciar o desenvolvi-mento das carreiras dos indivduos. Mas, fatalmente, um modelo tambm j ultrapassado pelas novas organizaes do trabalho e da sociedade: os resultados da avaliao no aconselhamento da carreira, feita a partir do entendimento de que aquilo que cada instrumento mede no contempla todas as necessidades do indivduo, que no podem ser satisfeitas atravs da aplicao de testes. A escolha dos instrumentos a aplicar pressupe, da parte do conselhei-ro, um conhecimento vasto e profundo no s do material existente e disponvel, um slido conhecimento das carac-tersticas do material, nomeadamente ao nvel dos testes, mas tambm das caractersticas metrolgicas, e o domnio do manual da prova. Trata-se, agora, de compreender no somente o modo como o indivduo pode desenvolver-se e progredir na sua carreira, mas tambm aquela que uma questo fundamental neste dealbar de mudana: como que os indivduos constroem as suas vidas, quais so os factores e processos da construo de si? A construo das vidas de trabalho no independente da construo das ou-tras vidas. Ou seja, preciso compreender-se como que o indivduo constri a sua vida atravs do seu trabalho.

    com base nesta questo que se pretende apresentar um novo paradigma.

    A converso de conceitos em descries comporta-mentais (Duarte, 2008a) sustenta-se na compreenso da renovao dos auto-conceitos, numa refl exo contnua so-bre si prprio e sobre os contextos em que actuam; trata-se de um processo constante de construo e reconstruo

    dos eus (Guichard, 2005) que cada indivduo comporta dentro de si numa dinmica de que o nosso Fernando Pessoa, dando a palavra a um dos seus eus, Ricardo Reis, j muito fi namente se apercebera no derradeiro po-ema que escreveu, em 13 de novembro de 1935 (Pessoa, 1935/1994, transcrio modernizada da autora):

    Vivem em ns inmeros; Se penso ou sinto, ignoroQuem que pensa ou sente.Sou somente o lugarOnde se sente ou pensa.()Os impulsos cruzados Do que sinto ou no sinto,Disputam em quem sou.()

    Desperdiar todo o conhecimento em qualquer das suas formas e expresses acumulado ao longo destes cem anos passados, seria no mnimo insensato. Por isso, optou-se por dedicar uma parte deste texto a uma muito breve descrio do caminho percorrido at agora. Est-se, ento, no momento de pensar no futuro que era nisso, tambm, que pensaria Pessoa neste seu testamento-narra-tiva de vida.

    O paradigma da construo da vida

    Passada j uma dcada do sculo XXI, verifi ca-se que os estudos sobre a carreira tendem a retornar ao seu ponto de origem, por duas ordens de razes. A primeira centra-se no indivduo, j no para ajudar a colocar o homem certo no lugar certo (ainda resqucios da Revoluo Industrial, de procedimentos tayloristas e de ideais autocrticos), mas antes para ajudar as pessoas a desenvolverem competn-cias e capacidades que, naturalmente, diferem muito das aptides e do conhecimento exigidos no incio do sculo XX para o acesso s profi sses. Os trabalhadores de hoje, precrios, devem tornar-se aprendizes durante todo o ci-clo de vida, devem saber utilizar tecnologias sofi sticadas, devem assumir a fl exibilidade em vez da estabilidade, e devem criar as suas prprias oportunidades (Savickas e cols., 2009). Numa palavra, a carreira deixou de ser per-tena da organizao: ela pertence ao indivduo e da sua responsabilidade (Duarte, 2004).

    A segunda ordem de razes fundamenta-se em ques-tes de natureza terico-prtica, que tm a ver com a ne-cessidade de se procurar pontes de entendimento, de se aglutinar trabalhos desenvolvidos em subdisciplinas aden-tro da psicologia (que no raras vezes se ignoram entre si)

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    que se debruam sobre o estudo da carreira, enfi m, de se procurar criar sinergias, promovendo-se a formao e o desenvolvimento de uma disciplina sem barreiras e agluti-nada em torno do estudo da construo da vida, incluindo a construo da vida de trabalho.

    Creio que ambas as razes podero e devero corresponder a um imperativo de natureza social. Afi nal, sempre que h mudanas na organizao social do traba-lho, mudam tambm os mtodos e processos para ajudar o indivduo a fazer escolhas que se prendem com a sua vida de trabalho.

    Numa tentativa de contribuir para a refl exo dos pro-blemas de carreira e de responder s novas exigncias da psicologia, um grupo de investigadores decidiu formar o Life Design International Research Group, no qual me integro. Este grupo pretende apresentar comunidade cientfi ca um conjunto de abordagens potencialmente ino-vadoras no domnio dos estudos sobre aconselhamento de carreira, estando j publicada on-line a sua primeira toma-da de posio (Savickas e cols., 2009). Tambm se pre-tende a maior divulgao possvel do nosso trabalho, pelo que promovemos a traduo do nosso primeiro position paper em vrias lnguas, incluindo a lngua Portuguesa, verso brasileira, que aguarda publicao (Duarte e cols., no prelo).

    Partindo do estudo da carreira profi ssional, passando pelo estudo do desenvolvimento da carreira, est-se ago-ra, no comeo do sculo XXI, no estudo da construo da carreira (Savickas, 2005), ou seja, da construo da vida. Trata-se, como se disse no incio, de uma verdadei-ra mudana de paradigma: da psicologia vocacional en-quanto estudo do comportamento nas escolhas de carreira, passou-se para o estudo da importncia relativa que o tra-balho tem na vida de cada um, considerando o conjunto de variveis que afectam e interagem com o desenvolvimen-to: as dimenses psicolgicas e os contextos socioecon-micos e culturais (Duarte, 2006a).

    Assim sendo, o conceito de carreira passa a ser mais abrangente, signifi cativo e intrnseco, bem como os pro-cedimentos adoptados, por exemplo, nas organizaes: a fase da gesto de recursos humanos defi ne a carreira em termos pessoais, com elementos subjectivos que respeitam sequncias de experincias relacionadas com emprego; no est portanto circunscrita ao emprego por si prprio, na medida em que pode incluir emprego em diferentes profi sses; no envolve necessariamente profi sses de elevada categoria, nem to pouco envolve a sua promoo (Arnold, 1997).

    Trata-se, no entanto, de uma abordagem restritiva, ou at desactualizada, porque ligada a percursos profi ssionais e/ou ao progresso que se verifi ca dentro da organizao,

    no destacando a importncia dos contextos na medida em que eles podem fornecer dispositivos para melhor se entender como as pessoas constroem as suas vidas atravs da vida de trabalho.

    Os contextos assumem, ento, uma importncia que at agora no tinham: os aspectos de natureza cultural, o impacto das novas tecnologias, o encarar a prpria orga-nizao como um sistema de carreira no seu conjunto, os novos empregos e a evoluo dos conceitos de trabalho, e a promoo para o sucesso que depende das prticas de planeamento e da gesto dos recursos, constituem aspec-tos inovadores que interagem, integram e sustentam a vida de trabalho de cada indivduo e de cada contexto.

    Trazer para um plano cientfi co um conjunto de ques-tes sociais que interferem no desenho que cada pessoa pretende fazer do e no seu percurso de vida, constitui um desafi o. Sem dvida que mais fcil estabelecer padres uniformes, defi nir regras ou ditar contrataes de trabalho e planos de carreira comuns aos mesmos sectores, sejam eles de produo ou de servios. O que difcil assumir a nova (embora fatalmente transitria) realidade em que as pessoas e as suas vidas de trabalho se movimentam, e encontrar um paradigma que enfatize a evoluo conjunta e permanente das pessoas, da economia e da sociedade (Duarte, 2008b).

    Em termos gerais, encontramos diferenas entre cul-turas, entre regies, entre pases, mas tambm encontra-mos alguns denominadores comuns; o problema reside em os encontrar sem cair na tentao do etnocentrismo inter-pretado como a crena de que a cultura de cada um pode ser universalmente aplicvel na avaliao e julgamento do comportamento humano (Baruth & Manning, 1992). As diferenas culturais podem afectar expectativas e produzir vrias fontes de erro de interpretao (Duarte & Rossier, 2008).

    Mas detenhamo-nos ainda mais um pouco sobre o sig-nifi cado de contexto. As questes de natureza econmica, as leis laborais, a poltica social, a cultura, so elementos que moldam a carreira de cada um. Para alguns autores, o contexto considerado para alm do controlo individual, e contra essas foras poderosas o indivduo pouco ou nada pode infl uenciar a sua carreira (Inkson & Elkin, 2008), qua-se que, diria, como se tratasse da luta entre David e Golias. Tratar-se- da luta pela predominncia do estudo dos me-canismos internos das escolhas individuais contra a glo-balizao, o desenvolvimento tecnolgico e as mudanas nas organizaes? Em meu entender deve tratar-se, antes, de estabelecer parcerias, de apostar em contratos sociais: o objectivo no prever o futuro, mas sim procurar anteci-par os trilhos emergentes como a globalizao econmica (porque a social ainda no aconteceu), o alargamento da

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    idade de reforma, a maior feminizao da fora de traba-lho (e, consequentemente, uma maior ateno salincia dos papis, colocando o papel de trabalho relativamente ao desempenho de outros papis), uma maior mobilidade, ou o aumento do nmero de trabalhadores temporrios, s para dar alguns exemplos.

    O sucesso e a fora da psicologia da carreira psi-cologia da construo da vida residem na capacidade de responder a questes de investigao diferentes das formuladas at agora. Mesmo que seja fundamental com-preender-se como as pessoas escolhem as suas carreiras e como estas hoje se desenvolvem, a grande questo de investigao entender quais os factores e os processos de construo de si (Guichard, 2005), isto , como que as pessoas podem construir as suas vidas na sociedade em que vivem. Est-se numa fase da construo; evidente que no se pode dar com o p em todas as teorias e m-todos que, de alguma maneira, foram perpassando todo o sculo XX: da importncia do mentor, importncia do orientador, e depois do conselheiro, chega-se, hoje, ao tra-balho da construo (Savickas, 2008).

    Para os trabalhadores-colaboradores que esto no centro daquilo a que vulgarmente se chama o olho-de-boi3 , para esses, o aconselhamento (coaching) de carreira ter que incidir na aprendizagem de investimento pessoal e de desenvolvimento de outras competncias para con-seguirem sobreviver num mercado sem fronteiras. Para os que esto no segundo crculo do olho-de-boi, os tra-balhadores temporrios, a incidncia do aconselhamento(coaching) de carreira dever ser nos ciclos de aprendizagem e na capacidade de lidar com transies, e ainda na promoo da empregabilidade (respostas consubstanciadas em novas competncias e assuno de novas responsabilidades). Para ajudar os que se encontram no terceiro crculo do olho-de-boi, os que tm trabalho precrio, os mais marginalizados, a aposta dever ser na preparao para a fl exibilidade, para encararem projectos de curto prazo, ou orient-los no senti-do de encontrarem enquadramentos de natureza social, ou ainda apoi-los na reinveno de outras formas de trabalho, que podero ser determinadas pela sua empregabilidade.

    Trata-se, afi nal, de um processo de construo da vida.Na perspectiva construcionista, a noo de carreira

    ou de percurso profi ssional evidencia uma perspectiva de movimento que atribui signifi cados a memrias do passa-do, a experincias do presente e a aspiraes para o futuro,

    reunindo-as a fi m de constiturem um tema de vida. o signifi cado contido nestes temas biogrfi cos que fornece aos indivduos os pr-requisitos necessrios que lhes per-mitem adaptarem-se s mudanas sociais que vivenciam nas vidas de trabalho. Este signifi cado pessoal substitui o contexto conservador antes oferecido pelas organizaes, que detinham a tarefa da auto-integrao dos seus empre-gados atravs do cuidado, da proteco e da interpretao das suas experincias. Actualmente, a histria de vida que permite esta sntese de si e estabelece as pontes atra-vs das quais se passa de um emprego para outro, e at de uma profi sso para outra. Ajudar o indivduo a construir a sua vida e o seu percurso profi ssional, nesta sociedade do conhecimento, requer novos mtodos de interveno (Savickas e cols., 2009).

    necessrio, pois, um paradigma que enfatize a co-evoluo conjunta e permanente dos indivduos, da econo-mia e da sociedade. Um novo paradigma para o aconselha-mento deve produzir os conhecimentos e as capacidades especfi cas necessrios para analisar e lidar com contextos ecolgicos, com dinmicas complexas, com causalida-des no-lineares, com mltiplas realidades subjectivas, e com uma modelagem dinmica. Nesta perspectiva de de-senvolvimento deste novo paradigma para acompanhar o projecto de construo da vida no sculo XXI, cinco mu-danas so necessrias: (1) admitir que o aconselhamento ocorre em condies no controladas; (2) colocar a nfase nas estratgias de sobrevivncia e na dinmica de coping (como fazer, e no o que fazer); (3) adoptar estratgias interactivas para a resoluo de problemas e desenvolver a polivalncia; (4) favorecer o poder de aco do indivduo e a sua adaptao fl exvel (ou a reconstruo) ao seu prprio ecossistema, abrindo novas perspectivas de co-evoluo; e (5) dar nfase modelagem de estruturas fractais4 , com o objectivo da predio de confi guraes estveis de vari-veis (Savickas e cols., 2009).

    Assim sendo, o aconselhamento (coaching) na pers-pectiva da construo tem como principal objectivo aju-dar o indivduo a articular a sua misso pessoal, que o ajudar a perceber qual o trilho atravs do qual vai de-fi nir quem , que prioridades estabelece, e como vai lidar com o futuro.

    a promoo do desenvolvimento humano atravs do trabalho e das relaes interpessoais. Numa palavra, trata-se de planear em vez de escolher, de perceber construtos em

    3 A expresso olho de boi frequentemente utilizada no mundo das organizaes para designar os vrios tipos de vinculao que os trabalhadores tm com a empresa. Grafi camente, muitas vezes representada por trs circunferncias concntricas.

    4 Um fractal uma fi gura geomtrica no Euclidiana, e que gerada por um padro repetitivo, que pode ser dividido em partes, sendo que cada uma dessas partes semelhante ao objecto original. Assim sendo, neste modelo o que se pretende procurar confi guraes estveis de um conjunto de variveis psicolgicas, a fi m de se poder predizer os futuros e provveis comportamentos.

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    vez de desenvolver conceitos, de perspectivar a vida em vez de fi car apegado a factos, de encontrar especifi cidades em vez de discutir princpios, de inventar signifi cados em vez de descobrir a verdade (Savickas, 2008). Trata-se, afi nal, de perceber o signifi cado individual de construo.

    E no que respeita s intervenes? Tendo por base as cinco pressuposies referidas, a base da interveno decorre das abordagens, naturalmente construcionistas, que reconhecem que o indivduo e a sua identidade so produto de processos sociais e cognitivos que ocorrem em contextos interactivos (Gasper, 1999), e ainda que o signifi cado atribudo realidade por cada indivduo co-construdo nesse mesmo contexto social na sua dimenso histrica e cultural (Young & Collin, 2004). por isso que, em termos gerais, o aconselhamento considera (1) o ciclo de vida, (2) holstico, (3) contextual e (4) preventivo.

    Procurando responder questo muitas vezes colo-cadas pelo tcnicos que esto no terreno: para que serve, tudo isto?, quais os objectivos que se pretende alcanar? A resposta : promover e facilitar a adaptabilidade, a narra-bilidade e a actividade em cada um dos clientes (Savickas e cols., 2009).

    Mas este modelo pretende, igualmente, implantar prticas de investigao-aco e, consequentemente, prati-car a avaliao sistematizada, ou seja, elaborar programas centrados na investigao que forneam possibilidades de interveno cientifi camente suportadas.

    Recorro a dois exemplos para comparar a abordagem desenvolvimentista (a do psiclogo desenvolvimentista) e a abordagem construtivista (a do psiclogo construtivis-ta). Se considerarmos as palavras-chave, as metforas, ou a maneira de estabelecer uma relao de ajuda com o indi-vduo, parece bvio que temos que assumir as diferenas entre os dois modelos. Enquanto o psiclogo construtivista procura a construo de si como uma fonte de satisfao, um desenvolvimentista preocupa-se em munir o indivduo com um conjunto de processos que lhe permitem antecipar e lidar com decises (Duarte, 2008b).

    Seguindo o mesmo procedimento, os problemas de carreira so encarados de maneira diferente: o constru-tivista lida com a indeciso de carreira como uma con-sequncia de como o indivduo produz o seu prprio de-senvolvimento; para um desenvolvimentista, a indeciso depende da fase de desenvolvimento em que se encontra.

    Trata-se, efectivamente, de intervenes que procu-ram ajudar o indivduo na identifi cao das suas formas identitrias subjectivas, e encoraj-lo a encontrar formas de implementar procedimentos para conseguir transfor-mar a expectativa em realidade, redefi nindo prioridades, identifi cando apoios, cultivando recursos e envolvendo-se em actividades (Savickas e cols., 2009).

    Olhe-se para a investigao e para o esforo que deve ser feito para entender a realidade e os contextos: abor-dar a resoluo de problemas, estudar e tornar a estudar as boas teorias, tentar no fazer a cincia pedante. Por outras palavras: em primeiro lugar, tentar a unifi cao das vrias psicologias, e estar atento ao que se passa no seio das instituies e das organizaes (Duarte, 2002). Em segundo lugar, criar novas metodologias de investigao: promover redes de investigao-aco, tanto no mbito nacional como no internacional, recolher dados e analisar problemas que podem ou no ser comuns (refi ro aqui o exemplo da parceria estabelecida entre o Brasil e Portugal para a validao transcultural do modelo de adaptabili-dade e respectiva operacionalizao). Em terceiro lugar, reenquadrar a psicologia do aconselhamento de carreira: promover uma formao realista e proactiva, desenvolver a empregabilidade. Para qu? Para ajudar a reduzir as de-sigualdades sociais e encorajar a igualdade de oportunida-des. Em quarto lugar, tentar pensar fora da arca, e incluir nos projectos outros colegas de outras cincias, envolver os chefes de topo, e, depois de tudo, conseguir contextua-lizar (Duarte, 2006b).

    No fi nal das contas, o que que se pode fazer? Fazer investigao relevante para as pessoas, para as

    instituies e para as organizaes, e saber comunic-la. Outra questo relevante tem a ver com a importncia do que se faz no terreno; ou seja, os tericos devem reconsi-derar o papel fundamental dos agentes no terreno.

    Isto quer dizer que preciso desafi ar o futuro. Como?Tambm aparecem novos caminhos de investigao

    para a produo de modelos abrangentes, que quase po-dem funcionar como se de uma folha volante se tratasse: a sua leitura e interpretao pode ajustar-se s necessida-des de cada um, porque so modelos fundamentados na construo de projectos de vida. Da, sempre, a psicologia da construo da vida. Da a necessidade de mudana de paradigma: da adequao da pessoa ao meio para a ade-quao da pessoa aos novos contextos em que trabalho e empregos se desenvolvem. Um novo rationale que iden-tifi que os sinais de entrada que possam conduzir predi-o do sucesso e do bem-estar. A psicologia da constru-o da vida? O caminho parece ser a procura de modelos compreensivos edifi cados em construtos abrangentes, nos quais as diferenas, psicolgicas e contextuais, tm que ser consideradas.

    CONSIDERAES FINAIS

    Passou um sculo depois de Parsons (1909) ter lanado os princpios fundadores da psicologia vocacional, origem da psicologia do desenvolvimento e gesto de carreiras;

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    meio sculo depois de Ginzberg e cols. (1951) terem sido os catalisadores de novas teorias da psicologia da carreira; e, depois, com Donald Super (1986, 1990) e o seu papel na defi nio e aperfeioamento da teoria sobre desenvolvi-mento da carreira, e ainda com as investigaes de outros autores como Holland (1992) e a sua teoria da personali-dade vocacional, ou Gottfredson (1981, 2002) e a teoria da circunscrio e compromisso enfi m, temos um sculo de refl exo e de prticas sobre um conjunto de teorias que, de formas diferentes, se preocuparam em entender, principal-mente, os mecanismos psicolgicos internos e as escolhas vocacionais, permitindo que se chegasse, agora, fase em que se entende que se deve dar uma maior ateno manei-ra como o indivduo se constri a si prprio nos diversos contextos em que actuou, actua e poder vir a actuar.

    Realmente, na primeira dcada do sculo XXI, o mundo continua em mudana, e por isso so necessrias mais e novas teorias. Teorias que devem servir como ele-mentos indicadores para se entender como as pessoas vo construindo as suas vidas, nomeadamente as suas vidas de trabalho, e como essas vidas de trabalho infl uenciam o res-to das suas vidas. Podemos dizer, e utilizando metforas de outros terrenos de investigao, que as teorias podem fun-cionar como as partituras musicais ou como os manuscritos das grandes obras literrias ou cientfi cas: tal como a parti-tura mostra a totalidade das partes de uma composio mu-sical, ou o manuscrito autgrafo (incluindo os manuscritos das partituras) regista o percurso da narrativa do autor ou do compositor, cada teoria procura registar e sistematizar a totalidade das regras aplicveis rea especfi ca a que se refere, sem nunca perder a noo de que se ocupa de algo que j histrico, ou seja, a que no so estranhas as noes de antes, agora e depois. Em qualquer dos casos, e para que sejam perfeitas as obras, h sempre que se dar uma viso global delas: elas resultam da construo de um novo paradigma, de uma nova maneira de ordenar e siste-matizar os sons (voz, msica), as palavras e os compassos (texto), as notaes da observao (tese cientfi ca).

    por isso que uma obra perfeita, no sentido em que a consideremos como acabada e portadora de sentido seja ela uma pea musical, um poema, uma tese cientfi ca ou um diploma legal , porque dotada de uma organizao interna, constituindo assim um texto sustentado na partitu-ra, no manuscrito ou na teoria, tem mais possibilidades de ser fruda por muito mais tempo. Foi por isso que Herdoto (sc. V a.C.) criou a nova forma de literatura que consistia em dar uma narrativa aos acontecimentos histricos por si

    investigados, e escrev-la, que os fi llogos de Alexandria (sc. III a.C.) passaram escrita os textos homricos, e que D. Afonso III (1210-1279), rei de Portugal5, mandou que as suas leis fossem reduzidas a escrito (em latim, mas tam-bm j em portugus), porque os homens som mortais e a renembrana dos feitos que fazem nom pode sempre durar em nos coraes dos homens que depois nacem, por em foi achada a escritura, que as cousas traspassadas per fi rmidom da escritura sejam sempre presentes. (Duarte, 1986).

    Portanto, como dizia Galileu, preciso encontrar sempre uma oportunidade em cada problema (Duarte, 2009a) e deste modo transformar as limitaes em mais-valias: no fora a fraca memria dos homens, como lembrou o rei Afonso, e talvez a necessidade de passar as narrativas escrita tivesse tido uma histria bem diferente da que conhecemos. A Histria, e as pessoas nela com as suas narrativas pessoais, as suas instituies e as suas organizaes , seriam, pelo menos, diferentes.

    O novo paradigma de que aqui se fala no se centra no estudo de como as carreiras se desenvolvem ao longo do tempo, mas antes no estudo de como as pessoas vo construindo as suas vidas tambm atravs do trabalho, no estudo dos trabalhos que vo realizando, dos empregos por onde vo passando, das procuras de satisfao e de realizao pessoal, em suma, dos ajustamentos que fazem s realidades sociais, polticas e econmicas em que de alguma maneira se inserem.

    A carreira do indivduo vista, agora, como um fi el registo da vida de cada um, deriva da maneira como ele capta a realidade e a ela se adapta, sem de algum modo atraioar a sua essncia, ou seja, os traos essenciais da sua personalidade e as linhas estruturantes da sua histria pessoal que, como qualquer obra do esprito humano, nica e irrepetvel. Ou seja, no reprodutvel por cpia (como de resto acontece com as falsifi caes de obras de arte ou, mesmo, com os plgios) (Duarte, 2006a).

    Este novo paradigma abre-se e porque o a con-tributos de outras cincias e de outras psicologias, com especial nfase na psicologia vocacional, na psicologia or-ganizacional e na psicologia do trabalho; e muda-se por isso que novo , porque a nfase deixa de estar exclusi-vamente na perspectiva desenvolvimentista, e passa a es-tar tambm na perspectiva de construo (Duarte, 2009b). Repegando numa frase de Ccero eu acredito na mudan-a com o tempo , subtilmente chegaramos a Cames e sua teoria da mudana: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confi ana6 e,

    5 5 Rei de Portugal6 Marcus Tullius Cicero. Ad. Familiares 20 (I9).

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    como em acto contnuo, preocupao que aqui nos traz: a psicologia da construo da vida.

    Temos, portanto, a perspectiva da psicologia da cons-truo da vida, que aconselha que se d uma maior im-portncia ao desenvolvimento de competncias individu-ais e aquisio de novas aprendizagens. Trazer o estudo de outras dimenses psicolgicas como, por exemplo, a qualidade de vida em funo dos contextos sociocultu-rais em que se vive para a psicologia da construo da

    carreira, para a psicologia da construo da vida, deve, tambm, ser um factor a considerar.

    Estamos perante um domnio eclctico, tal como o foi a psicologia vocacional no incio do sculo XX. Um domnio, tambm, de especialidade psicolgica, tal como o exige o estudo do indivduo. Tal como o requer a com-preenso da vida. Porque a psicologia da construo da vida , no fi m de contas, um procedimento que visa criar o sentido da cidadania partilhada.

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    Recebido: 13/10/20091 Reviso: 26/10/2009

    Aceite fi nal: 10/12/2009

    Sobre autoraMaria Eduarda Duarte Doutorada em Psicologia, rea de Orientao Escolar e Profi ssional (1993) pela

    Universidade de Lisboa, em cuja Faculdade de Psicologia Professora Catedrtica (Professora Titular), atuando na Graduao e na Ps-graduao como coordenadora do Mestrado e de Doutoramento em Psicologia, rea de Psicologia dos Recursos Humanos. Participou em projetos de investigao e de interveno, nacionais e internacionais, sendo de destacar: o projeto internacional Work Importance Study, o projeto internacional Investigao/Ao, Igualdade de Oportunidades e Novas Tecnologias, o Programa de Orientao da Carreira nas Escolas Europeias (Bruxelas e Luxemburgo), no Programa de Orientao para o 9 ano de escolaridade, na Avaliao PRODEP II - Medida 3. Ao 3.4, no projeto FEDORA, como correspondente nacional, sobre New skills for Vocational Guidance in Higher Education in the European Union, o projeto Developpement de la carrire de ladulte, Universidade de Sherbrooke, Canad, e o projeto internacional Life Design Research Project, com estatuto de coordenadora nacional, com sede na Universidade Livre de Bruxelas.