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A preservação do patrimônio histórico-cultural na escola: memórias da EEB Bom Pastor (Chapecó-SC) Tatiane Modesti 1 Bom Pastor: memória e identidade A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades [...] (Le Goff, 2003, p.469.) Não é incomum relacionar memória e identidade, visto que a memória é representada como lembranças de um tempo que passou. Essas lembranças podem ser individuais ou coletivas e muito frequentemente expõe um sentimento de pertencimento. Para Pollak, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade”, que leva ao reconhecimento de si, do outro e um grupo social (POLLAK, 1992, p. 204). Para Delgado (2006, p. 38) a memória acaba se relacionado com a construção das identidades, pois “é elemento constitutivo do auto-reconhecimento como pessoa e/ou como membro de uma comunidade pública, como uma nação, ou privada, como uma família”. A autora aborda ainda que “por meio da memória, as comunidades e os indivíduos podem, por exemplo, resgatar identidades ameaçadas e construir representações sobre sua inserção social e sobre sua cultura”. (DELGADO, 2006, p. 62). Nessa perspectiva compreende-se que as memórias da EEB Bom Pastor constroem a identidade dos alunos dessa escola. Assim, o objetivo deste artigo é perceber a relação das memórias escolares com patrimônio histórico-cultural e demais fontes de pesquisa histórica presentes nas instituições escolares. Este trabalho relata um projeto desenvolvido na EEB Bom Pastor 2 , no ano de 2014, no qual buscou-se promover um estímulo à preservação da 1 Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Educação e graduada em História. Professora de história da EEB Bom Pastor. Contato [email protected]. 2 O projeto relatado neste trabalho foi desenvolvido juntamente com as professoras Patrícia Heffel e Mara Paulina Wolff de Arruda, e com a assistente técnico-pedagógica Valentina Marchiori, sendo possível a partir colaboração dos pais, professores, direção, equipe pedagógica e funcionários técnico-administrativos da EEB Bom Pastor. O Memorial foi idealizado e instalado pela equipe gestora da escola antes desse projeto, sendo a inaugurado a partir do desenvolvimento do projeto aqui exposto.

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A preservação do patrimônio histórico-cultural na escola: memórias da EEB Bom

Pastor (Chapecó-SC)

Tatiane Modesti1

Bom Pastor: memória e identidade

A memória é um elemento essencial do que se costuma

chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é

uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das

sociedades [...] (Le Goff, 2003, p.469.)

Não é incomum relacionar memória e identidade, visto que a memória é representada

como lembranças de um tempo que passou. Essas lembranças podem ser individuais ou

coletivas e muito frequentemente expõe um sentimento de pertencimento. Para Pollak, “a

memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade”, que leva ao

reconhecimento de si, do outro e um grupo social (POLLAK, 1992, p. 204).

Para Delgado (2006, p. 38) a memória acaba se relacionado com a construção das

identidades, pois “é elemento constitutivo do auto-reconhecimento como pessoa e/ou como

membro de uma comunidade pública, como uma nação, ou privada, como uma família”. A

autora aborda ainda que “por meio da memória, as comunidades e os indivíduos podem, por

exemplo, resgatar identidades ameaçadas e construir representações sobre sua inserção social

e sobre sua cultura”. (DELGADO, 2006, p. 62).

Nessa perspectiva compreende-se que as memórias da EEB Bom Pastor constroem a

identidade dos alunos dessa escola. Assim, o objetivo deste artigo é perceber a relação das

memórias escolares com patrimônio histórico-cultural e demais fontes de pesquisa histórica

presentes nas instituições escolares. Este trabalho relata um projeto desenvolvido na EEB

Bom Pastor2, no ano de 2014, no qual buscou-se promover um estímulo à preservação da

1 Doutoranda em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Educação e graduada em História.

Professora de história da EEB Bom Pastor. Contato [email protected]. 2 O projeto relatado neste trabalho foi desenvolvido juntamente com as professoras Patrícia Heffel e Mara Paulina Wolff de

Arruda, e com a assistente técnico-pedagógica Valentina Marchiori, sendo possível a partir colaboração dos pais, professores,

direção, equipe pedagógica e funcionários técnico-administrativos da EEB Bom Pastor. O Memorial foi idealizado e

instalado pela equipe gestora da escola antes desse projeto, sendo a inaugurado a partir do desenvolvimento do projeto aqui

exposto.

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memória da escola e do patrimônio histórico-cultural, através da identificação da comunidade

com a escola por meio de reconstrução das memórias escolares.

O projeto consistiu, primeiramente, na elaboração de um questionário a ser respondido

pelos familiares dos alunos do 1 ao 5 ano. Esse questionário foi desenvolvido com o intuito de

investigar as gerações que passaram pela escola, perceber as lembranças que tinham da escola

antiga e estabelecer, entre a escola e a comunidade, uma forma de identificação através das

memórias.

O sótão, as freiras, o prédio antigo, a capela, a biblioteca e os quadros, são algumas

lembranças relatadas por ex-alunos da EEB Bom Pastor, entre as décadas de 1950 e 1990 que

demonstram as representações da escola para os alunos e a comunidade.

O ato de lembrar acontece a partir do presente. Um objeto, uma fotografia, uma

música, um cheiro... tornam vivas as memórias do passado. Delgado (2006, p. 09) lembra que

“a memória é uma construção sobre o passado, atualizada e renovada no tempo presente”,

dessa forma sofre influências do tempo presente, que pode alterar a percepção do fato

passado. Mas isso não inviabiliza o trabalho do historiador a partir de fontes orais, muito pelo

contrário, busca-se a subjetividade, a forma de lembrar, os sentimentos. Mesmo carregando o

presente consigo, a memória é importante para compreender os significados individuais e as

mudanças de entendimento do fato histórico para as pessoas e de acordo com o tempo.

A memória pode ser entendida, nesta perspectiva, como uma fonte para a História.

Compreende-se que o testemunho histórico não trás consigo a verdade, mas sim uma visão,

do que presenciou, sentiu, viveu, e mesmo cruzando-se com o tempo presente, a subjetividade

e aquela visão são importantes para construir uma interpretação do passado.

A memória e a identidade dos alunos da EEB Bom Pastor foram algumas

preocupações iniciais que levaram ao projeto, isso em virtude da mudança de local da escola,

que ocorreu em 2010. O Bom Pastor foi fundado em 1947, mas recentemente ganhou um

novo espaço, deixando o prédio histórico3. O local que abrigava anteriormente a escola tinha

forte representação para os alunos e para a comunidade.

3 A EEB Bom Pastor iniciou suas atividades na década de 1940 como uma escola particular. Na década de 1970 todos os

cursos da escola tornaram-se públicos, passando para o Governo do Estado de Santa Catarina, mas a escola manteve-se nas

antigas instalações que foram alugadas da Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria Auxiliadora. Em

2010, a escola ganhou um prédio próprio.

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Como finalização do projeto foi inaugurado o Memorial da EEB Bom Pastor, um

acervo composto por mobiliário da escola antiga, quadros de formandos, materiais didáticos,

fotografias, livros raros, entre outros. Dessa forma, este projeto visou incentivar a preservação

da memória escolar e do patrimônio histórico-cultural, visto a escola mudou, mas considera-

se que as memórias permanecem vivas nas gerações que passaram pela escola.

A escola antiga: história, memória e imaginário

A história da EEB Bom Pastor faz parte da história de Chapecó. Sua fundação em

1947, como Grupo Escolar Particular Bom Pastor, remete a história local e a construção da

cidade. Segundo Petrolli (2008, p. 87), é na década de 1930 que ganha força a elaboração de

um “projeto de cidade moderna para Chapecó”4. Buscam-se a “civilização” e o “progresso”,

para romper com o passado de “sertão” isolado e abandonado. Estes desejos se ancoravam nas

políticas do governo Vargas, como a “Marcha para Oeste”5 e nos sentimentos nacionalistas

que emergiam no período (PETROLLI, 2008).

A escola era vista como promotora do progresso, se compreendia que, “junto à

instrução viria o tão sonhado ‘desenvolvimento’, a tão sonhada ‘civilização’” (VIEIRA, 2000,

p. 96). Assim, não somente a escola, mas o surgimento de um grupo escolar6, símbolo do

moderno da educação, garantiria também um ar urbano e colaboraria para o desenvolvimento

pretendido pelo município no período.

4 O município de Chapecó foi criado pela Lei nº 1147, de 25 de agosto de 1917, mas somente em 1931 a sede da comarca e

do município foi fixada em Passo dos Índios (região onde se encontra a atual cidade de Chapecó). A possibilidade de uma

vila se tornar sede municipal impõe-lhe, de certa forma, um destaque sobre as demais vilas do município. Nesse período são

iniciadas políticas de modernização e desenvolvimento no município. 5 Durante o Estado Novo (1937-1945), Vargas lançou a campanha “Marcha para Oeste” para assegurar a nacionalidade no

interior do País e em regiões de fronteira. Esse discurso tinha também um objetivo econômico: desenvolver o interior, fixar o

homem no campo e fazer com que essas regiões contribuíssem para o crescimento do País. Dentre as medidas, destacam-se

os incentivos ao povoamento, como a criação de colônias agrícolas, além de condições estruturais para a permanência desse

homem no interior, com a abertura de estradas, escolas, hospitais, órgãos públicos, e uma indústria ligada ao campo. Segundo

Lopes (2002, p. 111) “Dentro do espírito da nacionalização e no contexto da “Marcha para Oeste”, a ocupação das fronteiras

deveria atender à urgente necessidade de estabelecer e desenvolver, rápida e racionalmente, as condições mínimas de

nacionalização, de organização social, econômica e de segurança das regiões fronteiriças (...)”. 6 O grupo escolar se caracteriza como uma escola graduada, de nível primário, com um ensino seriado aonde o aluno avança

os níveis gradativamente, de acordo com sua idade e aprendizagem. As classes são homogêneas, com alunos em mesmo nível

de adiantamento escolar e idade correspondente. Surgiram para substituir as escolas isoladas, em que um só professor

ensinava a todos os alunos ao mesmo tempo, em uma mesma sala de aula, mesmo que estes estivessem em diferentes níveis

de adiantamento escolar (FIORI, 1975, p. 100). Os primeiros grupos escolares surgiram, em Santa Catarina, a partir da

reforma do ensino de 1910, implementada pelo paulista Orestes Guimarães. Por essa reforma, foram criados, entre 1911 e

1913, os seguintes grupos: Grupo Escolar Conselheiro Mafra, em Joinville, considerado o primeiro grupo de estado; Grupo

Escolar Jerônimo Coelho, em Laguna; Grupo Escolar Lauro Muller, em Florianópolis; Grupo Escolar Vidal Ramos, em

Lages; Grupo Escolar Silveira de Souza em Florianópolis; Grupo Escolar Vitor Meirelles, em Itajaí, e Grupo Escolar Luiz

Delfino, em Blumenau.

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A construção de um grupo escolar do município de Chapecó foi objeto de discussão

durante toda a década de 1930. Observam-se em matérias divulgadas em um jornal local as

dificuldades encontradas pelo município para custear a construção de prédios escolares no

período, de forma que se discute a competência estadual ou municipal para isso: “São escolas

públicas estaduais, mas, o Estado que na maior parte dos municípios tem construído

verdadeiros palácios para escolas primárias, em Chapecó, nem sequer conseguimos um

pardieiro” (NOTAS, 1940, p. 01).

O primeiro Grupo Escolar da cidade de Chapecó foi criado em julho de 1941, sob o

nome de Grupo Escolar Coronel Fernando Machado conforme decreto nº 998, publicado no

Diário Oficial, entrando oficialmente em funcionamento no ano de 1942. Posteriormente

sendo alterado o nome para Grupo Escolar Marechal Bormann7, mas a existência dessa

escola, não como grupo escolar, remonta a década de 1930.

E justamente na década de 1930 os primeiros contatos são realizados com a

Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria Auxiliadora8, que se estabelecem

em Chapecó em 1940, vindas da cidade gaúcha de Erechim, “atendendo pedidos dos

moradores da sede do Município, liderados por padres franciscanos e pelo Coronel Ernesto F.

Bertaso”9.

As Irmãs são responsáveis pela fundação do Grupo Escolar Particular Bom Pastor, em

1947, que foi construído em um terreno doado e com apoio da comunidade. Perdersetti

(2005), ao pesquisar essa escola, observou a mobilização da comunidade para a construção do

prédio escolar. Segundo a autora, “de 1945 a 1946, as chamadas “festas de igreja” eram

realizadas com o objetivo de angariar fundos para a construção do prédio onde funcionava a

escola das Irmãs” (PERDERSETTI, 2005, p. 24).

O prédio inicialmente construído era de madeira, incluindo instalações para o Jardim

de Infância e o Grupo Escolar, que contava com o regime de internato feminino. Alguns

7 Em 1948, consta no jornal local uma certa confusão quanto à denominação da escola, conhecida como Grupo Escolar

Estadual General Bormann, denominação retificada para Marechal Bormann, conforme Decreto 3,639, de 6 de novembro de

1946 (MARECHAL BORMANN, 1948). 8 A congregação religiosa foi fundada em 1888, na Suíça, e foram desenvolvidas missões na América Latina, principalmente

na área da saúde, educação e assistência social. (PARISOTO, 2014). As escolas fundadas pelas irmãs tinham o caráter

católico. 9 Essas informações foram extraídas do Projeto Político Pedagógico da Escola, de relatos das Irmãs Franciscanas Missionária

de Maria Auxiliadora e de documentos pertencentes à escola.

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relatos demonstram que essa era uma das lembranças que se tinha da escola: “eu morava na

escola, dormia no andar de cima e estudava no andar de baixo”10.

Muitas memórias estavam presentes naquele prédio, como pode ser constatado a partir

de algumas respostas dadas pelos familiares dos alunos: “a escola era no antigo prédio, existia

muitas escadas e corredores estreitos, e uma história que havia o fantasma de uma freira”11.

O imaginário também está presente na memória, mas Paul Ricoeur (2007, p. 26),

aponta para as diferenças: “uma, a da imaginação, voltada para o fantástico, a ficção, o irreal,

o possível, o utópico; a outra, a da memória, voltada para a realidade anterior, a anterioridade

que constitui a marca temporal por excelência da ‘coisa lembrada’, do ‘lembrado’ como tal”.

Ainda conforme Ricoeur (2007, p. 26), o ato de lembrar mistura-se a um imaginário de

modo que este se torna imagem da lembrança. Às vezes é difícil separar o que é imaginação,

como atenta Huyssen (2000), acerca da mídia tecnológica e da memória, que muitas vezes,

confunde fato e ficção, real e imaginário, na contemporaneidade.

Para Sarlo (2007, p. 93) “jornais, televisão, vídeo, fotografia são meios de um passado

tão forte e persuasivo como a lembrança da experiência vivida, e muitas vezes se confundem

com ela”.

Outro aspecto importante acerca da memória é pensar nas reconstituições que os

terceiros fazem da memória: “lembro-me que meu pai dizia” ou “lembro que falavam assim”.

10 Vizinha de uma aluna do 2 ano, 2014 11 Familiar de um aluno do 5 ano, 2014.

Primeiro prédio do Bom Pastor. Final da década de 1940. Imagens constantes no Memorial da escola.

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Essas memórias apresentam-se mais fragmentadas, compostas por outras interpretações que

se misturam com as lembranças, contextos históricos e imaginários. (SARLO, 2007).

O projeto desenvolvido na EEB Bom Pastor também buscou ouvir os alunos do 2 ano

do ensino médio acerca desses imaginários sobre a escola, suas memórias nesse caso,

apresentaram-se permeadas pelo ilusório, utópico ou fantasioso.

Como o projeto investigou as gerações que estudaram na EEB Bom Pastor, alguns

relatos apontados pelos alunos referem-se a memórias de um terceiro: “minha avó dizia que”,

“meu pai contou”, mas são referências que estavam sendo buscadas no caso proposto.

Muitos relatos apontam para as lembranças das festas escolares, dos professores, do

pátio e das árvores. Entre os alunos do ensino médio ouvidos, os que vivenciaram essa

mudança de local da escola, apontavam muitas lembranças positivas acerca da área externa da

antiga escola, como um espaço importante para o convívio dos alunos no ambiente escolar. O

relatório do inspetor escolar Teodósio Mauricio Wanderley, em 1949, já ressaltava essa

importância “o pátio é todo arborizado, oferecendo aos alunos um bom e agradável recreio”.

(SANTA CATARINA, 1949).

O inspetor escolar continua seu relato apontando as características do prédio escolar “é

de madeira, pintado a óleo, coberto de telhas e de 2 andares. No térreo estão o gabinete do

diretor, 5 salas de aula, sala de visitas, refeitório e cozinha; no primeiro andar: 2 dormitórios

para as internas, capela e clausura”. (SANTA CATARINA, 1949).

Tão importante se mostra a identidade da escola vinculada ao prédio antigo que uma

aluna respondeu: “vô ajudou a construir a gruta do antigo colégio”12, e esse avô também foi

aluno da escola na década de 1950.

Com o passar do tempo o prédio escolar sofreu modificações em sua estrutura, com a

substituição do prédio de madeira por alvenaria e ampliação do espaço escolar. Hoje não é

mais o mesmo prédio, nem o mesmo lugar, e as memórias que estavam vinculadas aquele

espaço acabam fadadas ao esquecimento.

O Memorial e a preservação do patrimônio-histórico cultural

12 Aluna do 5 ano, 2014.

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Com a mudança de local veio a constatação da importância daquele espaço e daquele

prédio para os alunos e ex-alunos do Bom Pastor, de forma que houve a necessidade de

preservação da história e da memória da escola. Com isso surgiu o Memorial da EEB Bom

Pastor.

O Memorial é composto por objetos da escola antiga, como quadros de formandos,

mobiliário, materiais didáticos, entre outros. Busca-se lembrar da escola antiga a partir desse

espaço constituído no novo prédio, objetivando a preservação do patrimônio histórico-

cultural. Para Horta (2000 apud SOARES et al., 2007, p. 117), a definição de patrimônio

“indica bens e valores materiais e imateriais, transmitidos por herança de geração em geração

na trajetória de uma comunidade”.

Grunberg (2000, p. 164) observa que bens patrimoniais como museus, acervos,

arquivos, biblioteca, entre outros, “devem possibilitar a quem observa e estuda, uma

experiência concreta de evocação do passado e sua compreensão, do contrário, não teria

sentido a sua guarda e preservação”. Ainda, segundo a autora, é importante criar espaços de

preservação da história desde que, ao estudar os objetos ali guardados, eles se “tornem vivos e

cumpram sua função de transmitir a memória da época” (GRUNBERG, 2000, p. 165).

Através da criação de um local específico de preservação do patrimônio histórico-

cultural, busca-se manter a memória da escola. O projeto desenvolvido com comunidade

escolar visou um resgate de identidades e o estabelecimento de um sentimento de

pertencimento dos sujeitos com a escola e sua história.

Delgado (2006, p. 49) lembra que a história enriquece as representações possíveis da

memória, reativa as lembranças, de forma que o reconhecimento de identidades está

profundamente ligado com a história e a memória. Essa busca de identidade que, para a

autora, faz com que muitos se debrucem sobre o passado, procurando referências reais para

suas lembranças.

Nesse sentido surgem os “lugares de memória”. Para Pierre Nora (1981), há uma

necessidade do homem de criar arquivos, museus, organizar, selecionar e guardar suas

memórias, numa tentativa de evitar o esquecimento. Nessa perspectiva, os documentos e

objetos utilizados pela história, foram selecionados de acordo com as memórias de alguém,

escolhidos para serem guardados de acordo com a visão de uma pessoa ou de um grupo. Para

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o autor, a memória é carregada pelo homem, está em transformação, modificação, sujeita a

esquecimento, suscetível a manipulações (NORA, 1981, p. 09).

Para Delgado (2006, p. 49)

Os lugares de memória e os objetos biográficos podem ser considerados como

esteios das identidades sociais, como monumentos que têm, por assim dizer, a

função de evitar que o presente se transforme num processo contínuo, desprendido

do passado e descomprometido com o futuro.

Le Goff (2003) também expôs uma intencionalidade da memória na definição de

“documentos monumentos”. Mas isso não inviabiliza o uso de memórias em pesquisas

histórias ou demais pesquisas científicas, muito pelo contrário, a subjetividade da memória é

o que enriquece a produção histórica, pois através da memória podemos constatar como as

pessoas pensavam, sentiam e agiam em relação a determinado fato, período ou lugar na

história. Até mesmo podemos constatar que fatos influenciam na atualidade a percepção

dessas pessoas sobre o acontecimento do passado.

Nessa perspectiva, a preservação de um espaço de memória na EEB Bom Pastor se

mostra em consonância com as novas possibilidades de pesquisa histórica e possibilidades de

trabalho em sala de aula, bem como com a preservação do patrimônio histórico-cultural.

Ao criar um museu ou um memorial temos a noção de que aqueles objetos foram

selecionados e podem ter sido preservados até o presente com uma intencionalidade ou não,

mas também sabemos que uma comunidade escolar faz parte desse “lugar de memória”.

Pessoas que fizeram parte da história do local se percebem como agentes construtores dessa

história e se reconhecem nos objetos preservados. Conforme apresenta Bosi, muitas vezes

desejamos que um conjunto de objetos que nos rodeiam permaneçam na forma como estão,

amamos a quietude, a disposição tática mais expressiva. Mais que um sentimento

estético ou de utilidade, os objetos nos dão um sentimento de nossa posição no

mundo, nossa identidade [...], falam em nossa alma em doce língua natal (BOSI,

1994, p. 441).

O Memorial da EEB Bom Pastor é um acervo composto por objetos oriundos da

escola antiga, mas que, ao mesmo tempo, não remete somente à história, também transmite

uma cultura escolar inserida naqueles objetos: as práticas, os valores, a transmissão de

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conhecimento, incorporação de comportamentos, os tipos de saberes escolares, as normas e

regulamentos, tudo isso compõe uma cultura escolar.

Focar a cultura material não é um exercício de êxtase perante o passado, mas um

processo de questionamento, que nos leva dos objetos, sua proveniência e autoria

aos sujeitos que os produziram, deles se apropriaram e/ou os utilizaram em

contextos educativos. (FELGUEIRAS, 2011, p. 79).

Os objetos contidos no acervo Memorial da EEB Bom Pastor possibilitam essa

abordagem, pois “a educação patrimonial tem como principal proposta desvendar essas

relações e conexões contidas no objeto, informando sobre o cotidiano das pessoas que os

produziram e utilizaram”. (SOARES et al., 2007, p. 121).

Felgueiras (2011, p. 75-76) aborda que, em Portugal, a preservação do patrimônio

educativo e seus acervos emerge na década de 1990, juntamente com a “as memórias da

escola, a guarda e a procura de acervos de professores”. Com isso surgem possibilidades de

fontes para a história da educação.

Espera-se que esse acervo possa contribuir também para as pesquisas históricas, e que

futuramente contemple o acervo documental, visto que as instituições produzem uma gama

variada de documentos que podem servir de fontes para o trabalho do historiador. O

Memorial também se apresenta como um importante espaço para o ensino de diversas áreas

do conhecimento dentro da escola, como história, arte e ensino religioso (por se tratar do

acervo de uma escola que inicialmente era católica), entre outras. Além de se um importante

espaço de preservação do patrimônio histórico-cultural da e na escola.

Considerações Finais

A finalização desse projeto ocorreu com a inauguração do Memorial da EEB Bom

Pastor, que contou com a presença da comunidade escolar e das gerações que passaram pela

escola. Nesse dia foram expostos objetos, quadros, fotografias, que pertencem ao acervo da

escola e que foram trazidos do prédio antigo. Ainda, muitas imagens foram coletadas na

pesquisa, cedidas pelas Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria Auxiliadora e por ex-

alunos que contribuíram com a memória escolar, trazendo objetos e fotografias do seu tempo

de escola para serem expostos.

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O objetivo do projeto foi justamente promover um estímulo à preservação da memória

da escola e do patrimônio histórico-cultural, mas buscando demonstrar aos alunos e ex-alunos

da escola sua importância como “sujeitos históricos”, que contribuíram na formação da escola

e que se reconheçam nos objetos expostos no memorial.

A carga ideológica e emocional que envolve a memória é responsável por dar

sentido ao reconhecimento e a conservação de bens tangíveis e intangíveis do

passado, atribuindo-lhes uma parte na construção da identidade coletiva do presente.

Dessa forma o resgate da memória deve ser o ponto de partida das ações educativas

que visam o reconhecimento e a apropriação do patrimônio por parte da sociedade

(SOARES et al., 2007, p.116).

Foi um pouco isso o que aconteceu na inauguração do Memorial, onde os ex-alunos

que estavam presentes e se encontraram naqueles objetos, os quais possibilitaram um retorno

às lembranças do tempo escolar. Alguns se emocionaram com os materiais didáticos que

ainda estavam lá, outros com a imagem no quadro de formatura e muitos se perceberam nas

fichas de matrículas e históricos escolares.

O patrimônio histórico-cultural é história, memória e identidade. Está contido no

material, nos objetos que compõe o acervo escolar, e no imaterial, nas subjetividades e

lembranças de cada indivíduo. A comunidade e os estudantes da escola perceberam-se como

agentes sociais, atuantes no processo histórico, e que a escola tem história, seus sujeitos têm

memória e a constituição de acervos escolares destina-se a preservação da história e memória

dessas instituições.

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