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Para a minha mãe e para o meu pai,que me ensinaram que tudo é possível

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Nota do Autor

Mudei alguns pormenores pessoais dos doentes para ajudar a pro-teger a sua privacidade. Nos casos em que é provável a identidade do doente ser conhecida devido à sua natureza invulgar, pedi auto-rização ao mesmo — ou consentimento aos seus familiares — para partilhar esses pormenores consigo. Embora todos os casos clínicos se baseiem em doentes reais que conheci, combinei algumas das suas histórias e melhorei a narrativa para os leitores. Só incluí factos que acredito serem verdadeiros, embora não tenha pedido uma verificação independente dos pormenores indiretos que me foram fornecidos por colegas, familiares ou amigos. Alguns dos temas discutidos neste livro foram adaptados e desenvolvidos a partir dos meus blogues publicados pelo BMJ (The British Medical Journal ).

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Índice

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1 Uma introdução ao mundo da medicina

de cuidados intensivos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

2 O sistema imunitário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

3 Pele e ossos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

4 O coração . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

5 Os pulmões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

6 O cérebro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

7 Os intestinos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175

8 O sangue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193

9 A alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211

Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229

Apêndice de Figuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 241

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 243

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Prefácio

Em 2016, fui a uma conferência médica em Dublin, na Irlanda. Os oradores eram brilhantes, o local era impressionante e toda a experiência foi inspiradora. No último dia, saí com uma verdadeira sensação de esperança e motivação, ansioso para enfrentar o meu trabalho como médico intensivista e cheio de ideias novas. Nessa noite, um feliz acaso guiou os meus passos até um velho bar irlan-dês e mudou a minha vida. Uma habitante local perguntou-me o que estava a fazer na cidade. Eu expliquei-lhe que tinha estado numa conferência médica.

— Oh, fantástico —, disse ela. — Que tipo de médico é?— Sou intensivista —, respondi-lhe.— Que diabo é isso? —, perguntou ela. Naquele momento, fiquei profundamente abalado. Tinha passado

a última década a escrever artigos de investigação académica que poucas pessoas leriam. Tinha viajado pelo mundo para falar em conferências médicas para públicos que compreendiam melhor que eu os tópicos sobre os quais falava. Apesar de todo este trabalho e esforço árduos, tinha-me esquecido da pessoa mais importante: você.

Você é o meu doente passado, o meu doente futuro, o filho, filha, pai, mãe ou vizinho do meu atual doente. Muito embora uma

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Dr. Matt Morgan

em cada cinco pessoas internadas acabe por falecer numa unidade de cuidados intensivos, muitas nem sequer saberão o que isso é.

Naquela fria noite na Irlanda, no meio do nevoeiro escuro da minha última Guinness, comecei a escrever este livro. Não é um livro cheio de alegria — na verdade, haverá tristeza —, mas há sempre esperança. Vou levá-lo numa viagem pelos lugares lumi-nosos e escuros que os doentes em estado crítico visitam. Mesmo na morte, vislumbres do futuro podem refletir-se nos mais peque-nos dos espaços. Vou pedir emprestados os corpos, as vidas e as famílias de doentes reais que conheci e vou usá-los para iluminar as profundas fendas onde a vida se cruza com a morte.

Se trabalhar muito hoje, amanhã e no dia seguinte, talvez salve uma vida. Em toda a minha carreira, é possível que salve centenas. Contudo, espero que este livro faça muito mais. Espero que lhe mostre o que os cuidados intensivos podem, devem e talvez não devam fazer. Vou oferecer-lhe importantes conhecimentos que poderão impedir que as pessoas que lhe são próximas precisem de me conhecer. Até o ensinarei a salvar uma vida. Vou sensibilizá-lo para os perigos mais importantes na sociedade e deixá-lo vislumbrar os limiares da vida. A fragilidade da vida ficará clara, mas isso só servirá para mostrar que é compensada pela incrível resistência e tenacidade da humanidade.

Agora, vou levá-lo numa viagem pelo mundo dos cuidados intensivos e oferecer-lhe um vislumbre dos doentes que tratamos todos os dias, com cada capítulo inspirado pelas pessoas que conheci na linha da frente da medicina clínica. Vamos explorar o funcionamento da UCI (unidade de cuidados intensivos) física e do meu cérebro de médico a trabalhar nela. Vai sentir os sons, cheiros e visões da zona mais dramática do hospital. Vamos viajar pelos principais sistemas de órgãos do corpo humano, descobrir como podemos manter pessoas vivas sem batimentos cardíacos e o que acontece

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quando um doente fica em morte cerebral. Vou partilhar consigo os altos e baixos que os doentes, famílias e prestadores de cuidados de saúde testemunham enquanto estão no limiar da existência. Através desta lente, todos os dias sou recordado da beleza da vida. O falecido Steve Jobs disse num discurso de concessão de um grau académico que «a morte foi a maior invenção da vida», permitin-do-nos apreciar o tempo que temos nesta terra para partilhar com outras pessoas. Por vezes, a escuridão pode mostrar-nos a luz.

Dr. Matt Morgan@dr_mattmorgan

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Uma introdução ao Mundo da Medicina de Cuidados Intensivos

Como uma menina ajudou a salvar o mundo

Médico especialista em cuidados intensivos:

Intensivista, médico especializado em

cuidados intensivos, médico especializado

em medicina intensiva, especialista em

reanimação, mas, em última análise,

apenas um ser humano.

Estava um bonito e soalheiro fim de tarde de agosto em Copenhaga e a Vivi dançava no jardim depois de voltar da escola. Era uma menina de 12 anos muito feliz, com cabelo louro-claro e faces rosadas. A vida era difícil desde que os pais se tinham separado e a mãe esforçava-se para sustentar as duas com o seu trabalho como chapeleira. À janela, a mãe sorriu para si mesma enquanto observava a filha a dançar descalça na relva e a rir. Quarenta e oito horas mais tarde, a Vivi estava às portas da morte. Esta é a história das pessoas, práticas e tecnologia que lhe permitiram viver. A sua jornada foi o primeiro passo de um percurso de 65 anos que nos

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permite agora viver quando confrontados com uma devastadora doença crítica. É a história de como os cuidados intensivos lhe podem salvar a vida.

A Vivi não reparou no momento em que uma gota lhe caiu na mão nesse dia*. Também não sabia que um milhão de cópias do vírus mortal da poliomielite estavam naquela gota de água quando esfregou os olhos naquela noite. Enquanto a canção de embalar da mãe a adormecia, o vírus começou o seu trabalho. Viajou das mãos para as células da boca, antes de atravessar as membranas celulares. Quando o sol se pôs, o vírus infetou-lhe as amígdalas, os gânglios linfáticos no pescoço e, por fim, os intestinos. De manhã, a Vivi tinha uma dor de cabeça que a impediu de dançar. A mão fria da mãe tocou-lhe na testa quente e esfregou-lhe o pescoço rígido. No dia seguinte, a menina esforçou-se para abotoar o vestido de verão. Os dedos moviam-se desajeitadamente na ponta de dois braços pesados e fracos. Depois de ser levada para o Hospital Bleg-dam, o hospital da sua área de residência, deixou de responder quando a chamavam e a respiração tornou-se rápida e superficial. Pouco depois, conheceria o homem que lhe salvaria a vida. Foi o primeiro médico de cuidados intensivos do mundo, o Dr. Bjorn Ibsen (ver Apêndice: Figura 1).

O Dr. Ibsen era um anestesista de 36 anos quando conheceu a Vivi e percebeu de imediato que ela sofria de poliomielite aguda grave (aguda porque a doença começou e progrediu rapidamente e grave porque a poliomielite da Vivi causou-lhe uma profunda fraqueza). Um total de 27 pessoas já tinham morrido devido à doença nas primeiras duas semanas do surto de poliomielite de

* Embora a transmissão através de partículas de água fosse a mais provável e típica para esta infeção, é impossível dizer com certeza que foi a via exata de transmissão no caso da Vivi. [N. A.]

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Copenhaga em 1952. Antes de o surto chegar ao fim, mais de 300 pessoas contrairiam a doença, um terço das quais com a insuficiência respiratória grave que a Vivi estava a desenvolver, e 130 pessoas morreriam em consequência disso. O Dr. Ibsen sabia que o chamado pulmão de aço — a máquina que poderia salvá-la — já estava a ser usado. Aquela máquina era a única hipótese que ela teria de sobreviver à doença que levara os seus músculos respi-ratórios a ficarem demasiado fracos para transformarem o ar que a rodeava em respiração. O pulmão de aço criava um selo hermé-tico entre o peito do doente e o mundo exterior, permitindo que uma potente bomba de ar criasse um vácuo que sugaria a parede torácica e faria o ar afluir aos pulmões através da traqueia.

O Dr. Ibsen sentiu-se impotente enquanto observava a respi-ração da Vivi tornar-se ainda mais superficial. O dióxido de carbono dissolvido acumulado na corrente sanguínea, que é normalmente removido pela respiração, fazia aumentar ainda mais a sua pressão arterial e deprimia tanto o seu estado de consciência que ela já não conseguia impedir que a saliva a sufocasse. O Dr. Ibsen decidiu fazer uma coisa radical que mudaria a medicina para sempre.

Num bloco operatório, o seu trabalho de anestesista consistia em administrar potentes fármacos que deixavam a pessoa inconsciente e em seguida usar outros fármacos para parar todas as contrações musculares, incluindo as dos músculos respiratórios. Só nessas circunstâncias é que um cirurgião podia realizar em segurança complexas operações que requeriam um acesso imóvel e controlado ao interior do corpo humano. Enquanto isso, para manter o doente vivo, o Dr. Ibsen necessitava de respirar por ele inserindo-lhe um tubo de plástico na traqueia. Embora esse tubo costumasse ser introduzido pela boca ou pelo nariz, de vez em quando era inserido diretamente na traqueia através da parte da frente do pescoço — um procedimento conhecido como traqueostomia.

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Para o Dr. Ibsen, o estado da Vivi espelhava o dos doentes de quem cuidava todos os dias. A única diferença residia no facto de a fraqueza muscular ser causada pelo vírus da poliomielite a agir diretamente nos nervos motores e na medula espinal que davam instruções aos músculos. Contudo, a solução era a mesma, e, às 11h15 do dia 27 de agosto de 1952, o Dr. Ibsen levou-a para o bloco operatório, realizou uma traqueostomia de urgência e ligou o tubo da traqueia a um saco insuflável que depois apertou, obri-gando o ar a entrar nos pulmões por pressão positiva.

Este processo é o oposto do processo respiratório dos seres huma-nos em condições normais. Inspire fundo agora mesmo e sinta o grande músculo do seu abdómen, o diafragma, a fazer pressão para baixo enquanto, em simultâneo, os músculos entre as costelas se contraem, empurrando-as para cima e para fora. Em conjunto, isto cria uma pressão negativa nas camadas entre os pulmões elásticos e o interior da caixa torácica. Esta pressão é transmitida aos pulmões, puxando-os para fora, diminuindo a pressão nos 500 milhões de minúsculos sacos de ar no seu interior e deixando entrar o ar. É neste momento que o ar se torna respiração. No entanto, em vez disso o Dr. Ibsen estava a apertar um saco para empurrar ar para os pulmões num processo muito semelhante ao que acontece se puser a cabeça fora da janela de um carro que se desloca a grande velocidade e abrir a boca.

Após uma respiração, o peito da Vivi subiu e desceu. A segunda respiração foi mais fácil do que a primeira e à décima os seus pesa-dos olhos abriram-se e ela viu de novo através das janelas da vida.

Muitas vezes, são as ideias simples que implementam as mudan-ças mais profundas. Este foi um desses momentos. Para manter e não apenas salvar uma vida, o Dr. Ibsen necessitava de dar o próximo importante passo — criar um lugar seguro onde manter a criança e reunir uma equipa de pessoas para cuidarem dela

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apertando o saco até os seus músculos respiratórios recuperarem. Ninguém sabia quanto tempo aquele processo poderia demorar. Na verdade, foi preciso uma equipa de estudantes de medicina a fazerem turnos até oito horas cada, a apertar o saco sem parar — não com força de mais nem de menos — durante meses numa pequena enfermaria temporária para a manter viva (ver Apêndice: Figura 2). Seria a primeira unidade de cuidados intensivos do mundo, e foram precisos mais de 1500 estudantes de medicina voluntários para apertar o saco da Vivi e, mais tarde, os sacos de inúmeros outros doentes, dia após dia, durante seis meses, enquanto durou a epidemia de poliomielite de Copenhaga. Por fim, em janeiro de 1953, o saco foi substituído por um ventilador mecânico que respiraria por ela.

Contra todas as probabilidades, e apesar de não conseguir mexer-se do pescoço para baixo, a Vivi sobreviveu. Sete longos anos depois de adoecer, teve alta do hospital e mudou-se com a mãe para um apartamento de um prédio recentemente construído, onde passou a viver ligada ao seu ventilador 24 horas por dia. Era uma jovem muitíssimo feliz, cheia de vida e corajosa. Adorava ler, usando um pau na boca para virar as páginas dos seus livros pre-feridos (ver Apêndice: Figura 3), e pintava joias com um pincel preso entre os dentes. Viajava com frequência para festas de famí-lia, sempre acompanhada de pesadas baterias presas por baixo da cadeira de rodas para alimentar os pulmões mecânicos, e o seu adorado border-collie, Bobby, ajudava-a a passar o tempo enquanto ela contemplava o contorno dos telhados de Copenhaga no apar-tamento do 12.º andar do prédio onde vivia. Com o passar do tempo, a Vivi criou um laço especial com um dos seus cuidadores, apaixonaram-se e pouco depois ficaram noivos, alheando-se da realidade da sua situação ao passarem longos dias de verão juntos numa casa de férias da família na companhia do seu cão, Bobby.

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Apesar dos anos de intensa reabilitação e cuidados, o fardo continuado de incapacidade que acompanha muitas vezes a sobre-vivência a uma doença crítica impediu-a de recuperar a indepen-dência total. Contudo, ela não deixou que as dificuldades que enfrentava ensombrassem a dádiva que recebera. A mãe tinha a filha de volta, ela recuperara a sua vida e o Dr. Ibsen nunca mais olhou para trás. E a medicina também não.

Os cuidados intensivos não são apenas um lugar, um conjunto de pessoas ou uma máquina de suporte de vida. Como uma igreja dos tempos modernos, usam edifícios concebidos especificamente para esse efeito, equipamento dispendioso, métodos específicos e pessoas formadas na arte e práticas de uma certa tradição para concentrarem toda a sua atenção numa coisa. Em vez do deus imortal, os cuida-dos intensivos centram-se no doente muito mortal e cuidam dos doentes em estado mais grave de qualquer hospital.

O local físico pode ser denominado unidade de cuidados inten-sivos (UCI), unidade de alta dependência ou apenas serviço de medicina intensiva. Deve conter 10 por cento do número total de camas do hospital e estar situado perto dos blocos operatórios e do serviço de urgência. Cada área individual de cama dispõe de equipamento especial, incluindo uma máquina de suporte de vida ou ventilador, múltiplas bombas de medicação, máquinas de hemo-diálise e equipamento de monitorização. Porém, o item mais importante ao lado de cada cama não é nenhuma destas coisas. É um enfermeiro para o doente.

Todos os doentes que estão nos cuidados intensivos sofrem de falência de um ou mais dos seus órgãos vitais. Pode ser insuficiência pulmonar, que requer um ventilador, como no caso da Vivi, mas também insuficiência cardíaca, insuficiência renal, insuficiência intestinal, insuficiência metabólica, insuficiência sanguínea ou até

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insuficiência cerebral. Qualquer pessoa com este nível de doença, que requer suporte de órgãos, está em estado crítico. Podemos clas-sificar a gravidade do estado de um doente hospitalizado — e os subsequentes cuidados necessários — em cinco níveis distintos, de 0 a 4. Os doentes de nível 0 são os que sofrem de uma doença relativamente ligeira que pode ser tratada em segurança numa enfer-maria normal, com um enfermeiro para 7 a 20 doentes. Os doentes de nível 1 são os que correm risco de agravamento e que requerem observações mais regulares dos sinais vitais. Muitas vezes são trata-dos numa enfermaria de cuidados agudos, com intervenções de enfermagem mais frequentes. É no nível 2 que são necessários cui-dados de alta dependência. Estes doentes são pessoas com falência de um órgão e serão tratadas com um rácio de um enfermeiro para dois doentes. Isto acontece normalmente numa zona próxima dos cuidados intensivos, ou até na unidade de cuidados intensivos. Entretanto, doentes em estado mais grave necessitam de cuidados de nível 3, o que significa que um enfermeiro extremamente bem formado permanece à sua cabeceira todas as horas de todos os dias. Isto acontece sobretudo quando os doentes necessitam de uma máquina de suporte de vida para os ajudar a respirar ou quando há falência de mais de um órgão. De vez em quando, um doente neces-sita de tantos equipamentos complexos que é preciso mais do que um enfermeiro. Estes doentes são denominados nível 4 e são sempre tratados numa UCI. Aqui, os doentes em estado crítico necessitam não apenas de fármacos ou máquinas especiais, mas também de tempo: tempo para cuidados específicos para os seus problemas, e equipamento para dar tempo aos seus corpos para se curarem. Essen-cial para tudo isto é o tempo de enfermagem exclusiva que recebem.

As competências que um médico intensivista tem de possuir são vastas. Fazemos cirurgia ao introduzir tubos no peito, pescoço e vasos sanguíneos das pessoas. Temos de ser hábeis comunicadores,

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pois muitas vezes vemos as famílias pela primeira vez para lhes dar a pior notícia das suas vidas. Ajudamos a realizar e interpretar exames a todas as partes do corpo, desde radiografias de ossos até TAC cerebrais. Ajustamos a fisiologia do corpo com potentes fár-macos que temos de conhecer como as palmas das nossas mãos. O nosso ambiente de trabalho está cheio de monitores, que apre-sentam centenas de informações diferentes e brilham com comple-xas e multicoloridas linhas em forma de onda. Combinamos todas estas competências para perceber o que está errado com uma pessoa enquanto o seu corpo se esforça para viver. Em seguida, procuramos resolver os problemas que encontrámos através da coordenação de uma equipa de pessoas que podem ajudar.

Por vezes, a dimensão de conhecimentos e competências neces-sárias fazem-me sentir um impostor no meu próprio hospital. A primeira vez que me senti assim foi em 2003. Era um aluno de medicina e estava a fazer uma apresentação para uma grande e refinada plateia de prestigiados cirurgiões plásticos militares durante o seu encontro anual. Depois de passar um verão a estagiar no deserto do Nevada com médicos militares americanos, queria partilhar as minhas experiências daquele estágio numa simulação de campo de batalha. Quando me levantei e a lâmpada do proje-tor se acendeu, a minha voz ficou paralisada. Durante o que me pareceu uma eternidade, fiquei a olhar para a audiência perfeitamente engomada enquanto perguntava a mim mesmo: «Que direito tenho de estar aqui?» Até certo ponto, estava certo em duvidar de mim: eu não tinha grandes qualificações para falar sobre aquele tópico para um público com uma enorme experiência. Felizmente, alguma coisa fez um clique quando o primeiro diapositivo apareceu no ecrã atrás de mim e os 20 minutos seguintes passaram a voar, mas mais tarde, na messe dos oficiais, quando as pessoas me disseram que tinham gostado muito da minha palestra, não acreditei.

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Passados 15 anos, estou perfeitamente qualificado para falar sobre muitos temas, mas quando faço uma apresentação numa conferência médica por vezes essas sensações regressam, como acontece com muitos outros médicos. Não admira que nós, médi-cos intensivistas, nos sintamos inseguros quando se espera que assimilemos os 13 mil diagnósticos, 6000 fármacos e 4000 pro-cedimentos cirúrgicos de que poderemos necessitar para tratar praticamente qualquer doença a qualquer momento. É como ser um médico especialista em medicina geral e familiar, que se espera que saiba tudo sobre medicina, mas só aplicamos os nossos conhe-cimentos nos doentes em estado mais grave. A capacidade de conseguir fazer as perguntas certas e saber onde encontrar as res-postas é mais importante que qualquer conhecimento médico decorado. No hospital, intrometemo-nos com muita frequência noutras especialidades médicas de um momento para o outro e tratamos problemas que podemos não ver há anos, antes de sairmos tão depressa como chegámos. Somos especialistas na resolução de problemas e pensamos depressa enquanto tentamos manter o nosso cérebro baseado em provas.

Muitos dos momentos notáveis na minha carreira envolveram este tipo de resolução de problemas e não a lembrança de triviais factos médicos. Enquanto trabalhava num serviço de urgência, recordo-me de 32 enlameados jogadores de rugby da equipa local de menores de 10 anos amontoados numa movimentada sala de espera num sábado à tarde. Uma partida pregada por um dos jogadores da equipa adversária — juntar creme de massagem mus-cular de mentol ao caril a seguir ao jogo — tinha corrido mal. As 32 crianças seguravam garrafas de água e lavavam constantemente a boca a arder por causa do mentol. O creme continha aspirina como ingrediente ativo, o extrato de casca de salgueiro usado pelos antigos Egípcios como remédio para as dores. Lamentavelmente,

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a aspirina também é tóxica quando usada em quantidades exces-sivas, sobretudo por crianças. Com uma sala de espera repleta de miúdos assustados e pais preocupados, a abordagem-padrão para testar os níveis do fármaco no sangue de todas as crianças era tudo menos ideal, tendo em conta o tempo que demoraria. Era neces-sária uma abordagem médica mais criativa para resolver o problema, por isso parei à entrada da sala de espera, que tresandava a botas sujas e lama, e perguntei em voz alta: «qual de vocês é que comeu mais caril?»

Felizmente, um miúdo magro levantou a mão, lembrando-se de como os amigos se tinham rido dele por terminar a refeição tão depressa que as suas papilas gustativas nem sequer tinham tido tempo de ser despertadas pelo mentol. Levámo-lo e fizemos-lhe uma análise ao sangue. Li os resultados com alívio, pois o nível de ácido acetilsalicílico (o nome químico da aspirina) estava muito abaixo do patamar que necessitava de tratamento. Dado o grande apetite do miúdo e o seu baixo peso em comparação com os cole-gas, foi possível presumir em segurança que todos os outros joga-dores podiam voltar para o campo. Só um merecia o título de homem do jogo depois de a sua análise ao sangue ter poupado todos os outros colegas à ponta afiada de uma agulha.

Quando me faziam uma pergunta complicada durante os exames de pós-graduação, eu costumava ganhar tempo respondendo com a minha frase feita: «Bem, vamos dividir esta resposta em três partes principais…» Os poucos segundos extra que aquela intro-dução me dava punham o meu cérebro a gerar pelo menos uma das três respostas que tinha prometido. Todavia, quando respondo à pergunta, «Como é que os doentes chegam à UCI?», há três respostas genuinamente possíveis: pela porta principal, pela porta das traseiras ou pela porta do bloco operatório.

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O serviço de urgência é coloquialmente conhecido como a «porta da frente» do hospital. É a principal via de entrada para doentes que chegam de ambulância rodoviária ou aérea, para doen-tes que se apresentam pelos seus meios num serviço de urgência ou para os que são atirados de um carro em movimento, como testemunhei uma vez. Aqueles cujos valores dos sinais fisiológicos — incluindo frequência cardíaca, pressão sanguínea e estado de consciência — levam a que sejam considerados em estado crítico são levados diretamente para uma zona chamada «reanimação» no serviço de urgência. A zona de reanimação tem áreas individuais para cada doente, idealmente preparadas para cuidar dos doentes em estado mais grave de uma forma eficaz e atempada. Cada área da reanimação dispõe de fármacos de emergência de reserva, equi-pamento para ligar o doente a uma máquina de suporte de vida que está perto e um elevado rácio de funcionários, todos treinados e prontos para lhe salvar a vida. É semelhante a uma UCI em miniatura que precisa de agir depressa, mas apenas durante um curto período. Alguns médicos especialistas em reanimação tratam os doentes nesta fase da sua jornada. Os intensivistas vão à reani-mação quando lhes é pedido que tratem doentes em estado crítico.

Na qualidade de médico intensivista, há alguns números que reconheço logo porque piscam no meu velho e gasto pager vezes sem conta. Ler os dígitos 915 — o número da reanimação — dá à minha glândula suprarrenal um impulso para agir mesmo quando estou confortavelmente sentado no pub que costumo frequentar, a mais de 15 quilómetros do hospital. Muitas vezes, a reanimação é o lugar mais empolgante e perigoso para cuidar de doentes quando eles chegam do confuso mundo exterior cobertos de terra e sangue, e com poucas informações para trabalharmos. Se entrarmos em pânico, outras pessoas entram em pânico — e o pânico nunca salvou uma vida. Quando atravesso as portas vermelhas, sem saber

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o que me espera, ensaio na minha mente os cenários mais temidos, respiro fundo, devagar, e assumo uma capa exterior de calma para atenuar o turbilhão interior. Tento criar lagos de ordem num mar de desordem. Os intensivistas contribuem muitas vezes para esta-bilizar os doentes durante a fase inicial da doença, ajudando a fazer um diagnóstico ou planos de curto prazo e a decidir se os doentes apresentam critérios para serem internados na UCI. Só quando os mares ficam calmos é que os doentes estão seguros para passarem para a fase seguinte da sua viagem para a nossa UCI, se continua-rem em estado crítico.

Cerca de um terço dos meus doentes são internados nos cui-dados intensivos vindos diretamente de outro serviço do hospital — através da «porta das traseiras». Podem ter passado dias, sema-nas ou até meses no hospital antes de ficarem doentes a ponto de necessitarem de cuidados intensivos. O desafio de cuidados numa enfermaria é muito diferente quando comparado com o quadro vazio de um doente na reanimação. Sempre que entro numa enfermaria desconhecida para ver um doente, tenho uma técnica secreta para encontrar sem demora o doente em estado crítico. Ao observar o espaço, haverá uma cortina corrida à volta de uma cama, com os pés de inúmeros enfermeiros e médicos visíveis por baixo daquela barreira de tecido. Alguns pés estão parados, a observar. Outros movem-se a um ritmo frenético para um lado e depois para o outro. Aproximo-me e oiço o familiar bipe dos monitores hospitalares. Espreito pela cortina e os pormenores que me foram dados pela equipa que me chamou fundem-se com a imagem que está diante de mim para formar a minha intuição imediata.

Os pedidos de consulta de doentes vêm com uma grande quan-tidade de informações, inúmeros resultados de análises, radiogra-fias, páginas de notas e — mais perigoso — as opiniões de outros.

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A maioria dos erros no raciocínio clínico não se deve a incompe-tência ou falta de conhecimentos; os erros são intrínsecos ao software do pensamento humano. Quando confrontado com pressões de tempo, grandes quantidades de dados, complexidade e incerteza, o nosso cérebro segue por vários atalhos razoáveis. Recorre a heu-rística para boicotar a necessidade de pensamento profundo e confia na experiência, nas opiniões de outros e em decisões que nos tranquilizam. Quando os nossos antepassados mais remotos eram confrontados com uma manada de animais selvagens na quente savana, esses atalhos salvavam-lhes a vida; quando somos confron-tados com um doente em estado crítico na enfermaria, esses atalhos podem salvar muito menos vidas.

Hoje em dia, quando um colega me diz, por exemplo, que um doente na enfermaria de traumatologia está com falta de ar há três dias, depois de um acidente rodoviário, devido a uma grande infe-ção, o meu instinto é acreditar nas suas palavras. Observo as aná-lises, concentrando-me a nível subconsciente nos valores que confirmam a suposição que já fiz. Recordo o rosto do último doente que foi transferido daquela mesma enfermaria para o meu serviço e que morreu com uma infeção grave e fico determinado a que as coisas sejam diferentes desta vez. O meu cérebro de símio está feliz, mas o meu pensamento crítico não. Não posso permitir que estes atalhos sejam o fim do meu processo. Preciso de clarividência e treino para ser alertado para a existência destes atalhos que o meu outro eu está a seguir. Preciso de voltar ao início, de pensar por mim, de ser lógico e perguntar: «E se o problema não for esse?» Se não fizer isto, vou deixar escapar o facto de que o meu mais recente doente não tem uma infeção e que, na verdade, tem uma hemorra-gia interna — profusa e que não para. Antibióticos e equipamento de suporte de vida não vão certamente curá-lo. Do que este doente precisa é de um cirurgião para travar a hemorragia. Felizmente,

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o desenvolvimento dos cuidados intensivos como uma especialidade vem com conhecimentos de ciência cognitiva que abordam alguns defeitos inerentes à condição humana.

Eu cometi muitos erros enquanto médico. No entanto, não sou um mau profissional. Sou um ser humano normal, a trabalhar num ambiente anormal. A maioria dos erros cometidos em medi-cina não está relacionada com défices de conhecimento ou capa-cidade. Eu costumava preocupar-me com a possibilidade de não conseguir fazer aquele diagnóstico raro ou cometer complexos erros procedimentais na pior altura, mas nunca aconteceu. Sei agora que os erros que cometi — e que é provável que cometa no futuro — são erros simples e previsíveis, não erros complexos. São os tipos de erros que cometerá amanhã enquanto anda a fazer compras, quando está a conversar com amigos ou a conduzir. As conclusões que tiramos baseados em heurística estão muitas vezes corretas, mas também podem estar erradas. Procura três vezes no mesmo sítio as chaves de casa, convencido de que as deixou ali. Vai às compras e esquece-se da única coisa que precisava mesmo de com-prar. Mas a vida continua.

Lamentavelmente, quando um doente está em perigo de vida, esses simples erros podem levar ao desastre. São tolerados noutros ramos, como contabilidade, banca ou desenvolvimento de software. Na medicina, podem resultar em dor, sofrimento ou morte. No entanto, os mesmos seres humanos estão envolvidos.

O reconhecimento do erro médico como erro humano permi-tiu uma transformação gradual dos sistemas de cuidados de saúde. Nos nossos dias, devia ser possível um médico cometer um erro potencialmente grave e o sistema impedir que isso prejudicasse o doente. Eu posso tentar injetar uma quantidade fatal de ar através de um tubo numa veia e não no estômago, mas um acessório especial vai impedir-me de o fazer. Os cuidados intensivos possuem

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um robusto sistema que devia poder falhar com graciosidade, não catastroficamente. Devia compensar, ter resiliência e redundância, antecipar o erro humano. No entanto, não é de forma alguma perfeito e tem muito espaço para evoluir.

Estas melhorias foram alcançadas através de três correntes de inovação. The Checklist Manifesto, o livro de Atul Gawande que mudou paradigmas, apresentou à medicina técnicas simples, mas eficazes, que as pessoas já usam para se lembrarem dos produtos essenciais quando fazem compras. A sua instituição da «Lista de Verificação de Segurança Cirúrgica» da Organização Mundial de Saúde salvou milhões de vidas ao garantir que simples passos cruciais, como verificar o nome e alergias do doente, são realizados em todas as operações. Nós adaptámos as suas listas de verificação em procedimentos de cuidados intensivos como traqueostomia e visitas diárias às enfermarias.

A segunda corrente recorreu a técnicas usadas em áreas como a aviação para melhorar o comportamento das equipas durante uma crise. O CRM (Crew Resource Management — Gestão de Recursos de Tripulação) habilita os funcionários subalternos a questionarem as decisões tomadas pelos seus superiores da equipa, anulando a hierarquia e aumentando desse modo a segurança. O CRM pode ajudar as equipas a unirem-se na confusão de um desastre e trabalharem juntas com eficácia e segurança. Durante urgências nos cuidados intensivos, agora dou um passo atrás em vez de dar um passo em frente para obter uma visão de conjunto da situação, atribuir tarefas e agir de acordo com boas ideias dadas por outras pessoas.

A última corrente transformadora foi criada a partir do traba-lho de Daniel Kahneman, laureado com o prémio Nobel, no seu livro otimista Pensar, Depressa e Devagar. Reconhecer que o erro médico é, com efeito, uma manifestação de heurística humana

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enraizada, permitiu que erros cognitivos habitualmente descritos fossem antecipados nos cuidados de saúde. Todos os dias, vejo indícios do viés de ancoragem, em que um rótulo de diagnóstico incorreto fica permanentemente associado a um doente depois de ter sido feito antes por outro médico. Estou consciente de que muitas vezes testo doentes para diagnósticos raros dias depois de ter tratado um doente com esse mesmo diagnóstico. Sei que procuro informações para confirmar os meus instintos, muitas vezes des-cartando factos inconvenientes que produziriam um conflito psi-cológico conhecido como dissonância cognitiva. Preparar-me mentalmente para essas falhas humanas pode impedir que elas se tornem fins em si mesmas. Ter consciência delas torna-me um intensivista melhor.

A última rota de entrada na UCI — através da «porta do bloco operatório» — destina-se a doentes pós-cirurgia selecionados. Isto pode acontecer de uma forma planeada ou em resultado de com-plicações decorrentes da operação ou da anestesia. Certas grandes cirurgias necessitarão de um período de observação mais atenta ou de suporte de órgãos durante o período pós-operatório. Entre elas contam-se grandes cirurgias oncológicas ao esófago, a remoção de partes de um pulmão doente e cirurgias cardíacas. Por vezes, embora uma operação possa não ser grande, o quadro clínico do doente requer que ele seja internado nos cuidados intensivos de uma forma planeada. É difícil prever isto. Alguns hospitais disponibilizam testes de esforço para analisar a capacidade do doente para aguen-tar a cirurgia. Esses testes são demorados, dispendiosos e nem todos os doentes podem realizá-los. A explosão de tecnologia que os consumidores podem usar levou-me a questionar se a simples uti-lização de um relógio para medir os valores fisiológicos poderia ser um substituto destes testes mais invasivos. Muito embora a nossa investigação esteja em curso, nos próximos 10 anos é possível que

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a tecnologia que pode ser usada pelas pessoas melhore os nossos modelos de previsão de risco para cuidarmos melhor dos doentes após grandes cirurgias.

A necessidade de planear internamentos na UCI depois de cirurgias apresenta grandes desafios. Além da afluência regular que pode ser antecipada durante o inverno, é difícil prever a lotação diária de uma unidade de cuidados intensivos. Por conseguinte, se uma cirurgia requer uma cama nos cuidados intensivos, o des-tino desse doente pode ser determinado pela taxa de ocupação do hospital na noite que antecede essa cirurgia. Se fosse confrontado com um doente em estado crítico que necessita da última cama de cuidados intensivos na sequência de um acidente rodoviário, o que diria ao doente que precisa daquela cama para fazer a sua cirurgia oncológica na manhã seguinte? Os cirurgiões, intensivistas e enfer-meiros só podem pedir desculpa a um doente um número limitado de vezes antes de começar a parecer falso. Com demasiada fre-quência, o resultado deste sistema sob pressão, a funcionar a quase 100 por cento da sua capacidade, é que as cirurgias são adiadas muitas vezes. Se bem que a capacidade de expansão seja a solução mais óbvia, acarreta custos financeiros significativos. Por conse-guinte, o esforço para a eficácia nos cuidados de saúde levou à exploração de outras soluções. Qualquer vaga no sistema é consi-derada potencial não utilizado pelos departamentos financeiros em vez de uma parte essencial da segurança dos doentes. Sem a capa-cidade de ser flexível, o sistema é rígido e frágil, com tendência para quebrar.

Uma inovadora solução envolve uma área de cuidados inten-sivos sem camas. Parece uma estranha forma de resolver a questão de não ter uma cama vazia, mas muitas vezes a indisponibilidade de camas na unidade de cuidados intensivos deve-se ao facto de os doentes que melhoraram na UCI não terem uma cama numa

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enfermaria normal para se mudarem. Pelo contrário, ter apenas um espaço físico nos cuidados intensivos permite que um doente seja admitido numa enfermaria de cirurgias programadas, faça a sua cirurgia e vá para os cuidados intensivos na mesma cama física da enfermaria onde foi internado. Após 24 horas de intensa obser-vação, o doente poderá voltar para a enfermaria onde foi internado e o ciclo continua. No último ano, esta estratégia simples, mas eficaz, permitiu que centenas de cirurgias fossem realizadas quando antes muitas talvez tivessem sido canceladas.

Sessenta e cinco anos depois daquele longo verão em Copenhaga, a UCI é um lugar muito diferente. Quase todos os hospitais com serviço de urgência no mundo Ocidental possuem agora uma área específica, concebida com o intuito exclusivo de cuidar de doentes em estado crítico. Já não precisamos dos turnos de estudantes de medicina que foram usados como ventiladores para manter os doentes vivos durante a epidemia de poliomielite em Copenhaga em 1952. Nos nossos dias, os cuidados intensivos são pioneiros na medicina, tanto a nível tecnológico como através da utilização de pessoal, fármacos e terapêuticas altamente especializados. Tudo isto implica avultados custos, com uma única noite passada nos cuidados intensivos a custar até 3000 libras. Além destes custos financeiros, os desafios de recursos humanos necessários para cui-dar destes doentes são enormes. Uma equipa típica de cuidados intensivos é composta por um enfermeiro para cada doente, auxi-liares de ação médica, uma equipa de médicos de medicina interna e especialistas, um farmacêutico, um fisioterapeuta, um nutricionista, um terapeuta ocupacional, um assistente social, um psicólogo e uma imensidão de serviços de apoio. Apesar das preocupações com o elevado custo dos tratamentos nos cuidados intensivos, ficou demonstrado que tratar um doente na UCI é mais barato do que

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muitas outras terapêuticas, incluindo fármacos usados em contex-tos de cuidados primários. Por exemplo, uma análise sugere que o custo de cada vida salva nos cuidados intensivos é de 40 mil libras, em comparação com 220 mil libras para tratamento de colesterol elevado com recurso a estatinas em doentes que estão bem.

Tratar os doentes em estado mais crítico na UCI pode reduzir muito as suas probabilidades de morrerem. A taxa de mortalidade média destes doentes tem descido de forma progressiva ao longo do tempo graças a melhores sistemas, melhor formação, melhor equipamento e terapêuticas comprovadas. Atualmente, mais de 30 milhões de doentes são internados em unidades de cuidados intensivos todos os anos no mundo inteiro, 24 milhões dos quais sobreviverão. Logo, podemos calcular que, desde que a Vivi se tornou a primeira doente, os cuidados intensivos resultaram na sobrevivência de cerca de 500 milhões de pessoas a doenças críti-cas. Contudo, o objetivo dos cuidados intensivos não é apenas conservar a vida. Quando olho uma mãe nos olhos e lhe digo que vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para salvar o seu filho, quero dizer que tentarei preservar a qualidade de vida que ele tinha antes de ficar doente. As provas mostram que os cuidados inten-sivos podem melhorar de forma significativa a hipótese de sobre-vivência a uma doença crítica e de viver uma vida com significado, não apenas estar vivo.

Nos 20 anos depois de se tornar a primeira doente em cuidados intensivos no mundo, a Vivi cresceu, apaixonou-se, ficou noiva e leu incontáveis livros. A vida estava cheia de cor e risos. Lamenta-velmente, aos 30 anos adoeceu com gravidade. Os seus pulmões continuavam fracos, a respiração era superficial e ela voltou para o hospital de Blegdam — desta vez não com poliomielite, mas em consequência de ter escapado à morte da primeira vez. A sua

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respiração superficial significava que ela tinha infeções pulmonares recorrentes, mas esta foi diferente. Foi internada em setembro de 1971 com pneumonia, e desta vez não voltaria para casa. Faleceu serenamente, com apenas 32 anos. Há 20 anos, os cuidados inten-sivos tinham-lhe dado uma segunda oportunidade de viver, mas não podiam salvá-la agora. Na verdade, 67 anos mais tarde ainda não podem salvar toda a gente e continuamos a ter muito para apren-der. Temos de descobrir como a permanência nos cuidados inten-sivos pode afetar os doentes anos depois de recuperarem. Temos de debater as questões éticas e morais relacionadas com quem deve ser tratado e não apenas quem pode ser tratado. Temos de desen-volver os cuidados intensivos como uma especialidade para que, se hoje a Vivi fosse trazida para o meu hospital aquela segunda vez, não morresse. Também temos de mostrar ao público o que é pos-sível, o que é certo e o que não é.

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