papo sobre humanização
DESCRIPTION
Médicos da Alegria - Unesp, Botucatu Este documento é resultado de uma noite de discussões em que integrantes do projeto Médicos da Alegria da Unesp de Botucatu se propuseram a se aprofundarem na questão da Humanização das relações sociais e o papel das propostas 'humanizadoras' neste contexto. O compartilhamento deste fica para a reflexão e propagação da discussão em outros projetos.TRANSCRIPT
Papo Sobre Humanização
Relato: Natanael S. Adiwardana (Aluno do quarto ano de Medicina na Faculdade de Medicina de
Botucatu, UNESP - SP)
O papo sobre humanização aconteceu no dia 13 de novembro de 2012 com um objetivo: compartilhar
visões e firmar o conceito sobre o termo ‘Humanização’ dentro dos participantes do projeto Médicos
da Alegria (Unesp, Botucatu). A partir daí, os resultados de tal reflexão coletiva seriam colocados à
prova a partir da forma como os participantes se colocarão à frente da proposta de trabalhar com a
humanização das relações sociais. Estavam presentes graduandos dos cursos de Medicina,
Enfermagem, Física Médica e Biomedicina, além de um pós-graduando em Engenharia Florestal.
Primeiro momento: A primeira impressão – Por que praticamos atos ‘humanizadores’?
Iniciamos a conversa analisando os termos ‘top of mind’ de cada pessoa ao pensar no termo
‘Médicos da Alegria’, ‘Doutores da Alegria’ ou qualquer outro projeto de humanização. Os termos
prevalentes foram: sorriso, paz, diferença. De tais palavras pudemos perceber que a impressão geral
sobre tais tipos de projetos são positivos, porém subjetivos. Como o subjetivo, apesar de seu mérito,
pode dificultar uma análise clara, pusemos-nos então a explorar mais a fundo as características em
comum entre tais verbetes e entre cada pessoa presente no momento, a fim de tentar compreender
o motivo de tais impressões e seus reflexos sobre a prática de atividades ‘humanizadoras’.
O que possuíamos em comum? Em cada depoimento, era perceptível que todos sentíamos uma
satisfação pessoal em mudar a rotina de alguém em estado fragilizado. Negamos o puro altruísmo
para notar que nós participantes permanecemos por tanto tempo na prática humanizadora não
porque fôssemos imbuídos de espíritos extremamente altruístas, mas pelo benefício psicológico que
isso nos traz. Quebrando o mito de que aqueles que participam de tais atos são pessoas totalmente
abnegadas de si mesmos.
Seguimos, então, a questionar a relação da arte com a saúde e conosco.
Segundo Momento: A relação entre a Arte e a Saúde – Uma visão de corpo e mente como um só.
Primeiramente observamos breves considerações históricas sobre a inserção da arte na saúde (ex. os
quatro humores gregos, os bobos da corte, os Dervishes turcos e os palhaços de 1917 num hospital
infantil em Londres). Com isso pudemos entender que a arte sempre esteve intrinsecamente
relacionada à concepção de saúde. Em todas as culturas, um mal-estar físico só poderia ser resolvido
após um ritual artístico-cerimônico onde os humores deveriam ser reequilibrados para que o corpo
pudesse se regenerar. Os termos corpo e mente não se separavam – o que hoje chamamos de
percepção integral da saúde. Já nos dias de hoje, percebemos que a concepção de cuidado integral,
corpo e arte foram fragmentados entre partes do corpo físico (o biológico) e partes psicológico-
espirituais a partir da lógica cartesiana.
Terceiro Momento: Por que o palhaço? – O diferencial do ‘clown’ como estratégia de humanização
Em segundo lugar, começamos a compreender o motivo pelo qual a arte clown, dentre tantas outras,
prevaleceu e se disseminou de tal forma como nenhuma outra nas instituições de saúde. Após cada
um tentar explicar a presença do palhaço num hospital, concluímos que a resposta se baseia na
subversão dos pudores sociais. Com sua própria máscara invertida que busca expor e amplificar
todas as facetas humanas, o palhaço escancara os tabus da sociedade. Ao fazê-lo, aquilo que a
sociedade condena e tenta esconder torna-se aceitável e não precisa mais ser omitido ou repelido do
cotidiano da plateia. E tal lógica foi muito conveniente para o ambiente hospitalar, onde a morte do
paciente e a falha do médico não podem ser corriqueiras e, logo, não podem fazer parte das
reflexões cotidianas. Ao inserir o clown num ambiente tão cheio de preconceitos, torna-se mais fácil
quebrar o silêncio imposto na relação médico-paciente. A morte não é mais vista como empecilho,
mas parte natural da vida. As limitações das ações terapêuticas do profissional de saúde também
deixam de ser incompetência para serem agregadas à evolução inevitável – mas totalmente
compreensível – de muitas patologias. E aceitar tais fatos da relação médico-paciente e da vida
torna o ambiente mais reflexivo, mais ‘humanizado’. Então, dessa reflexão sobre o palhaço,
chegamos à primeira parte da definição sobre a ‘Humanização’: ela é reflexiva e implica em auto-
aceitação.
Quarto Momento: A crise – O que justifica o surgimento das estratégias de humanização?
A próxima questão abordada foi a crise. Já entendíamos o que nos motivava a participar de projetos
humanização. Também compreendemos o porquê da maioria dos projetos de humanização envolver
a arte. Mas o que criou a necessidade da existência de tais projetos? O que gerou essa fragmentação
da arte contra a saúde e o corpo?
Cada um deu sua teoria. Um individualismo crescente. A falta de perspectiva de mudanças. A
sensação de impotência. A responsabilização do outro sobre o fazer. E o excesso de conhecimentos.
Sobre esta última teoria, discutimos o fato da quantidade crescente de informações científicas tornar
impossível absorvê-las para a prática profissional de qualquer setor. Seguindo pela mesma lógica
cartesiana, notamos que por aprofundar-se demasiadamente em suas especificidades, a ciência
acaba perdendo o motivo pelo qual se iniciou tal aprofundamento: o conhecimento da ciência em si.
Por exemplo, o médico, para especializar-se, necessita de dedicar-se em regime absurdo de estudos
e exclusividade para que atinja um nível socialmente aceitável e seguro de prática. Isso pode acabar
por isolá-lo por tempo prolongado do contato com a prática da medicina geral e, por isso, acaba por
relegar parte de sua função como promotor de saúde integral (corpo e mente) para outros que
atuam na mesma lógica: cada um cuida de sua especialidade, num boneco de remendos – o
psicólogo aprofunda-se na mente, o psiquiatra na loucura, o nutricionista na alimentação, o
fisioterapeuta nos membros, o dentista na boca. Finalmente, cada profissional não é mais
responsável pela saúde – que é a ciência máxima de onde surgiram todas as especialidades. Não são
mais que interpretações individuais de um problema muito mais amplo. Percebemos como é
impossível tratar um problema de saúde física se sua causa básica é psicossocial. Assim também
aprendemos que não se pode tratar de uma necessidade social sem que o corpo esteja saudável. É
necessidade uma abordagem que leve todos esses aspectos concomitantemente. É necessário passar
do multidisciplinar para o transdisciplinar, onde não nos limitemos somente às nossas áreas de
conhecimento, mas onde haja diálogo e compreensão das outras formas de intervenção em saúde.
Além disso, outro fator que precipitou a necessidade por projetos ‘humanizadores’ foram os abusos
nas infraestruturas sociais e nas condições precárias de trabalho que prejudicam uma relação
saudável ou atendimento em saúde. Por melhor que seja o profissional, se ele precisar trabalhar 48
horas seguidas para sustentar sua família, não possuir instrumentos adequados ou tiver 30 pacientes
para atender em 4 horas, é certo que não haverá tempo suficiente para cultivar um relacionamento
adequado entre profissional de saúde e paciente. Mais uma vez as condições físicas estão
condicionadas à disponibilidade de recursos sociais. Há que se tratar as necessidades físicas de infra-
estrutura ao mesmo tempo que se garante qualidade de vida e saúde mental para os promotores de
saúde. E por promotores de saúde entendemos todo indivíduo que integra uma sociedade. Além dos
médicos, enfermeiros e biomédicos, toda pessoa é capaz de promover saúde à medida que suas
atitudes e expressões irão influenciar a próxima atitude e expressão de outros com quem convive.
Basta-nos lembrar daquela pessoa que está mal-humorada e consegue espalhar seu estresse no
ambiente de trabalho. Logo mais, um ambiente hostil se formará e a saúde mental laboral não
existirá mais. Como consequência há prejuízo na empatia e na vontade de fazer um trabalho bem
feito, o que por sua vez prejudica o paciente ou cliente, prosseguindo numa cascata de
acontecimentos que evidencia nossa interconexão. Tudo o que acontece no mundo nos afeta. Os
engenheiros florestais e outros que lidam com recursos naturais são guardiões de nosso ambiente,
do lugar onde moramos e da forma como utilizamos esse lugar. Se eles não estiverem nem aí para as
implicações de suas relações com outras pessoas ao redor do mundo, que forma de produção e
extração adotarão? Com certeza não ligarão para comunidades nativas das florestas onde atuam,
nem com a poluição produzida. O resultado disso já vemos nas notícias atuais: conflitos com povos
indígenas, destruição de mananciais, empobrecimnento de solos, redução de diversidade natural,
alterações climáticas. O prejuízo social é certo e o único enganado serão os que não enxergarem isso.
Assim é para qualquer profissional, indivíduo social em sua essência.
Logo, as estratégias de humanização se justificam à medida que tentam resgatar a segunda parte da
definição de humanização: o diálogo.
Quinto Momento: Agora que entendemos tudo
Depois de tanta discussão, chegamos a uma conclusão crucial: sabendo de tudo isso, o que podemos
fazer a respeito? Onde o Médicos da Alegria se encaixa nisso tudo?
Para conseguir apreender na prática a falta desse diálogo, utilizamos o palhaço. A partir dele
iniciamos o processo de expor o que a sociedade se recusa a admitir e a dialogar sobre si própria. E,
para que o diálogo não apenas surja, mas se desenvolva, é necessário que continuemos a debater e a
refletir sobre a humanização e suas milhares de vertentes em cada lado sombrio da sociedade.
Cabe ao Médicos da Alegria e a qualquer projeto que se proponha a ‘humanizar’ as relações sociais
promover a prática pela reflexão teórica. E o aprofundamento da reflexão teórica pelos relatos e
constante adaptação da prática ao que se tem aprendido na teoria.
É lutar enquanto se anda. Buscar mais do que ser um sujeito engraçado uma vez por semana numa
enfermaria qualquer. É lutar pela resolução das causas básicas desumanizadoras enquanto se atende
emergencialmente aos que já estão extremamente vitimizados por essa lógica friamente humana.
É permitir um momento em que possamos perceber quem e como somos. É estimular momentos em
que se pense antes do agir. É promover a conversa e compreensão esquecidas entre todas as
pessoas que convivem.
É lutar com corpo e mente pelas condições sociais. Pelo diálogo na sociedade. Pelos sorrisos. Pelo
que realmente valha a pena viver.