pantanal - reino das águas

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Nossa equipe cruzou o Pantanal, uma região com um ciclo de cheias e secas impressionante, que mantém sua fauna silvestre vibrante e um povo com modos de vida peculiares águas Reino das TEXTO NATÁLIA MARTINO | FOTOS VALDEMIR CUNHA O incrível reflexo nas águas que invadem a Fazenda Barra Mansa nos períodos de cheia Outubro 2011 64

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Cruzamos o Pantanal, uma região com um impressinante regime de secas e cheias, que mantém sua fauna silvestre vibrante e um povo com modos de vida peculiares

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Page 1: Pantanal - Reino das águas

pantanal

Nossa equipe cruzou o Pantanal, uma região com um ciclo de cheias e secas impressionante,

que mantém sua fauna silvestre vibrante e um povo com modos de vida peculiares

águasReino das

texto Natália MartiNo | fotos valdemir cunha

o incrível reflexo nas águas que invadem a fazenda Barra Mansa nos períodos de cheia

Outubro 201164

Page 2: Pantanal - Reino das águas

Animais selvagens e a delicada

vida natural se confundem no Pantanal

Tuiuiús e colhereiros ecoam seus cantos e espalham sua cor pelo rio Negro. Capivaras tentam driblar o calor sufocante com longos mergulhos. Jacarés, dezenas deles, deixam a água passar pelos dentes da boca escancarada aguardando um peixe mais desavisado. Do barco, observo a vida vibrando na maior planície alagável do mundo, com seus

210 mil quilômetros quadrados, duas vezes maior do que a área de Cuba. “A água é o coração do Pantanal”, havia me dito Guilherme Rondom quando estávamos ainda longe do rio, atravessando os campos secos entre a cidade de Aquidauana e a sua fazenda, a Barra Mansa. A frase ressoa em minha cabeça. Tento imaginar como é aquele lugar quando emerge sua outra face, aquela que se revela como um infindável mar de água doce.

“Os espelhos d’água duplicam o mundo, é belíssimo”, descreve Guilherme, que usa o cenário como inspiração para a carreira de músico

marcada por parcerias com nomes como Almir Sater e Ivan Lins. Nessa época, os animais se escondem entre as árvores dos pequenos morros

descobertos, que numa região desprovida de acidentes geográficos como ali são chamados de cordilheiras, mas navegando sobre as terras

submersas é possível encontrá-los também. “Definitivamente, é a época em que o Pantanal está mais bonito”, reafirma. Confesso que é difícil acreditar. O rio Negro seguindo o seu curso sinuoso já me parece majestoso o suficiente. Mas o coração do Pantanal precisa bater. E quando novembro chegar, um aguaceiro vai desabar sobre a região. A água vai se acumular nos campos. A terra sem declives não conseguirá escoá-la e ela ficará ali, deixando que os peixes se reproduzam e a vegetação se delicie para crescer esverdeante mais tarde.

Para os homens que vivem ali é um tempo difícil. Chegar e sair, só de avião. Todo tipo de provisão, de comida a gasolina, precisa ser estocada antes que desabem as chuvas. Mas os pantaneiros parecem não se importar. Afinal, a essência do Pantanal deve prevalecer. “Esse ano a água foi subindo, subindo, subindo, parecia que não ia mais parar”, conta, às gargalhadas, Iolanda de Couto, cozinheira da

Detalhe da indumentária do peão pantaneiro, para o qual o berrante é um dos instrumentos mais importantes na lida com o gado. Na página ao lado, no alto: a piúva, árvore que floresce durante a seca, enche o Pantanal de cor. Abaixo: revoada de príncipes-negros dá vida à paisagem

panTanal

67Outubro 2011

Page 3: Pantanal - Reino das águas

Animais selvagens e a delicada

vida natural se confundem no Pantanal

Tuiuiús e colhereiros ecoam seus cantos e espalham sua cor pelo rio Negro. Capivaras tentam driblar o calor sufocante com longos mergulhos. Jacarés, dezenas deles, deixam a água passar pelos dentes da boca escancarada aguardando um peixe mais desavisado. Do barco, observo a vida vibrando na maior planície alagável do mundo, com seus

210 mil quilômetros quadrados, duas vezes maior do que a área de Cuba. “A água é o coração do Pantanal”, havia me dito Guilherme Rondom quando estávamos ainda longe do rio, atravessando os campos secos entre a cidade de Aquidauana e a sua fazenda, a Barra Mansa. A frase ressoa em minha cabeça. Tento imaginar como é aquele lugar quando emerge sua outra face, aquela que se revela como um infindável mar de água doce.

“Os espelhos d’água duplicam o mundo, é belíssimo”, descreve Guilherme, que usa o cenário como inspiração para a carreira de músico

marcada por parcerias com nomes como Almir Sater e Ivan Lins. Nessa época, os animais se escondem entre as árvores dos pequenos morros

descobertos, que numa região desprovida de acidentes geográficos como ali são chamados de cordilheiras, mas navegando sobre as terras

submersas é possível encontrá-los também. “Definitivamente, é a época em que o Pantanal está mais bonito”, reafirma. Confesso que é difícil acreditar. O rio Negro seguindo o seu curso sinuoso já me parece majestoso o suficiente. Mas o coração do Pantanal precisa bater. E quando novembro chegar, um aguaceiro vai desabar sobre a região. A água vai se acumular nos campos. A terra sem declives não conseguirá escoá-la e ela ficará ali, deixando que os peixes se reproduzam e a vegetação se delicie para crescer esverdeante mais tarde.

Para os homens que vivem ali é um tempo difícil. Chegar e sair, só de avião. Todo tipo de provisão, de comida a gasolina, precisa ser estocada antes que desabem as chuvas. Mas os pantaneiros parecem não se importar. Afinal, a essência do Pantanal deve prevalecer. “Esse ano a água foi subindo, subindo, subindo, parecia que não ia mais parar”, conta, às gargalhadas, Iolanda de Couto, cozinheira da

Detalhe da indumentária do peão pantaneiro, para o qual o berrante é um dos instrumentos mais importantes na lida com o gado. Na página ao lado, no alto: a piúva, árvore que floresce durante a seca, enche o Pantanal de cor. Abaixo: revoada de príncipes-negros dá vida à paisagem

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67Outubro 2011

Page 4: Pantanal - Reino das águas

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Fazenda Barra Mansa, sobre a cheia histórica que deixou quase tudo embaixo d’água. Só a casa principal foi poupada. Se Iolanda se incomodou? Claro que não. “Ah, foi divertido, a gente ficava brincando logo aqui na porta, jogando água um no outro”, diz, apontando para o quintal.

pode até ser divertido, mas nem sempre é bom para os negócios. Desde que se instalaram ali os bandeirantes, ainda no século 18, nasceram grandes fazendas dedicadas à pecuária. O problema é

que se nas regiões mais altas do Mato Grosso do Sul é possível criar três cabeças de gado por hectare, no

Pantanal a proporção é inversa, são três hectares, no mínimo, para cada animal: é preciso espaço para o gado fugir

das áreas alagadas durante as cheias. Isso sem contar que a grama natural não é tão rica em proteínas quanto aquela usada

tradicionalmente em pastos. Assim, as fazendas nasceram grandes, enormes, para lá de 30 mil hectares para que os negócios conseguissem

pulsar junto com os ciclos de cheia e seca no Pantanal. A questão é que sucessivos processos hereditários foram reduzindo essas

áreas e, em muitos casos, famílias tradicionais foram embora. Mas a batida ritmada do pulso pantaneiro acabou atraindo a atenção de forasteiros. Eles chegam

ali às centenas todos os anos, garantindo a sobrevivência da Fazenda Barra Mansa. Guilherme Rondom se mantém no Pantanal, representando uma das famílias pioneiras na região, apenas com o turismo. Em companhia das duas próximas gerações, o filho Daniel e o pequeno neto Antônio, recebe os visitantes que chegam de todas as partes para observar os belos pássaros e, claro, o maior felino das Américas, a onça pintada. Sorrateira, ela não gosta de posar para fotos, mas não há quem chegue ao Pantanal sem desejar avistá-la. Dessa vez, nossas lentes não

captaram sua presença. Uma boa desculpa para uma nova visita em breve – até porque é quase impossível não ter a sensação de deixar para trás novos amigos

ao sair da casa da família Rondom.

Imerso num ecossistema

tão peculiar, o homem teve

de se adaptar para viver aqui

em sentido horário: as pegadas provam que a onça esteve por ali; peão prepara a carne de um boi para consumo; a paisagem das fazendas é ideal para ver a elegância dos cervos. Na página ao lado: mesmo com dentes afiados e olhos arregalados, o jacaré que habita o rio Negro não é um animal perigoso

panTanal

69Outubro 2011

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pantanal

Fazenda Barra Mansa, sobre a cheia histórica que deixou quase tudo embaixo d’água. Só a casa principal foi poupada. Se Iolanda se incomodou? Claro que não. “Ah, foi divertido, a gente ficava brincando logo aqui na porta, jogando água um no outro”, diz, apontando para o quintal.

pode até ser divertido, mas nem sempre é bom para os negócios. Desde que se instalaram ali os bandeirantes, ainda no século 18, nasceram grandes fazendas dedicadas à pecuária. O problema é

que se nas regiões mais altas do Mato Grosso do Sul é possível criar três cabeças de gado por hectare, no

Pantanal a proporção é inversa, são três hectares, no mínimo, para cada animal: é preciso espaço para o gado fugir

das áreas alagadas durante as cheias. Isso sem contar que a grama natural não é tão rica em proteínas quanto aquela usada

tradicionalmente em pastos. Assim, as fazendas nasceram grandes, enormes, para lá de 30 mil hectares para que os negócios conseguissem

pulsar junto com os ciclos de cheia e seca no Pantanal. A questão é que sucessivos processos hereditários foram reduzindo essas

áreas e, em muitos casos, famílias tradicionais foram embora. Mas a batida ritmada do pulso pantaneiro acabou atraindo a atenção de forasteiros. Eles chegam

ali às centenas todos os anos, garantindo a sobrevivência da Fazenda Barra Mansa. Guilherme Rondom se mantém no Pantanal, representando uma das famílias pioneiras na região, apenas com o turismo. Em companhia das duas próximas gerações, o filho Daniel e o pequeno neto Antônio, recebe os visitantes que chegam de todas as partes para observar os belos pássaros e, claro, o maior felino das Américas, a onça pintada. Sorrateira, ela não gosta de posar para fotos, mas não há quem chegue ao Pantanal sem desejar avistá-la. Dessa vez, nossas lentes não captaram sua presença. Uma boa desculpa para uma nova visita em breve – até

porque é quase impossível não ter a sensação de deixar para trás novos amigos ao sair da casa da família Rondom.

Imerso num ecossistema

tão peculiar, o homem teve

de se adaptar para viver aqui

em sentido horário: as pegadas provam que a onça esteve por ali; peão prepara a carne de um boi para consumo; a paisagem das fazendas é ideal para ver a elegância dos cervos. Na página ao lado: mesmo com dentes afiados e olhos arregalados, o jacaré que habita o rio Negro não é um animal perigoso

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69Outubro 2011

Page 6: Pantanal - Reino das águas

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partimos para outra fazenda mais adiante. Trepidando a bordo de um 4X4 avançamos por dentro do Pantanal, abrindo novas porteiras desse mundo desconhecido. A paisagem vista pela janela vai se alterando, a vegetação fica mais escassa, os campos mais abertos. Poços d’água no caminho, que em setembro já deveriam estar secos, dão sinais de que a cheia este ano realmente bateu recordes.

Algumas baías, vales que represam a água e estendem seu tempo de permanência nessas paragens, vão secar em breve. Outras permanecerão para manter a vida silvestre vibrando e o coração do Pantanal batendo. Uma delas emprestou seu nome para a próxima fazenda do nosso percurso, a Baía das Pedras.

Comandada por Rita de Barros, também descendente de uma família tradicional da região, a fazenda encontrou outras formas para sobreviver aos novos tempos. Ali, o gado resiste, mas com a ajuda de técnicas modernas de manejo, como a inseminação artificial. Mas ela também não dispensa os

visitantes. Pelo contrário, faz questão de acompanhá-los pessoalmente pelos caminhos da propriedade, onde outros animais, diferentes daqueles

habituais do rio Negro, transitam todo o tempo. Seja a cavalo ou de carro, não é difícil deparar-se, por exemplo, com elegantes cervos ou

surpreender-se com os inusitados tamanduás-bandeira. Quando não estão observando essa vida selvagem, os visitantes dividem a mesa de

refeições não apenas com Rita. Em vários momentos do ano é possível cruzar ali com um animado grupo de pessoas que se vestem com

roupas camufladas e saem diariamente à caça de antas e tatus. Caça no sentido figurado, claro.

São pesquisadores que se dedicam ao estudo desses dois animais. Quando o dia amanhece, eles saem para um lado, nós para o outro. “Capturamos uma, Rita. Câmbio”. É o que ouvimos pelo rádio horas depois. Quem falava era Patrícia Medici, que chefia o estudo sobre as antas, comunicando que um animal havia caído na armadilha montada semanas antes. Seguimos para o local indicado e lá está ele, com seus mais de dois metros de comprimento, sedado. Em meio à respiração ofegante da anta, a equipe recolhe sangue e amostras de pele, mede diferentes partes do corpo, fotografa dentes. Trata-se de uma velha conhecida da equipe, já com colar de monitoramento. É a Rita, nome dado em homenagem, claro, à dona da fazenda que apoia o trabalho. Não acha que batizar uma anta com o seu nome seria exatamente uma homenagem? Isso é porque não viu a paixão de Patrícia pelos animais que já pesquisa há 15 anos.

A observação privilegiada

dos animais faz do Pantanal

o verdadeiro safári do Brasil

Bando de queixadas corre por uma das praias do rio Negro. Abaixo: botas e arreios

aguardam a chegada do peão para mais um dia de trabalho. Na página ao lado: araras

azuis se deliciam com coquinhos de acuris

panTanal

71Outubro 2011

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partimos para outra fazenda mais adiante. Trepidando a bordo de um 4X4 avançamos por dentro do Pantanal, abrindo novas porteiras desse mundo desconhecido. A paisagem vista pela janela vai se alterando, a vegetação fica mais escassa, os campos mais abertos. Poços d’água no caminho, que em setembro já deveriam estar secos, dão sinais de que a cheia este ano realmente bateu recordes.

Algumas baías, vales que represam a água e estendem seu tempo de permanência nessas paragens, vão secar em breve. Outras permanecerão para manter a vida silvestre vibrando e o coração do Pantanal batendo. Uma delas emprestou seu nome para a próxima fazenda do nosso percurso, a Baía das Pedras.

Comandada por Rita de Barros, também descendente de uma família tradicional da região, a fazenda encontrou outras formas para sobreviver aos novos tempos. Ali, o gado resiste, mas com a ajuda de técnicas modernas de manejo, como a inseminação artificial. Mas ela também não dispensa os visitantes. Pelo contrário, faz questão de acompanhá-los pessoalmente pelos caminhos da propriedade, onde outros animais, diferentes daqueles habituais do rio Negro, transitam todo o tempo. Seja a cavalo ou de carro,

não é difícil deparar-se, por exemplo, com elegantes cervos ou surpreender-se com os inusitados tamanduás-bandeira. Quando não

estão observando essa vida selvagem, os visitantes dividem a mesa de refeições não apenas com Rita. Em vários momentos do ano é possível

cruzar ali com um animado grupo de pessoas que se vestem com roupas camufladas e saem diariamente à caça de antas e tatus. Caça no sentido figurado, claro.

São pesquisadores que se dedicam ao estudo desses dois animais. Quando o dia amanhece, eles saem para um lado, nós para o outro. “Capturamos uma, Rita. Câmbio”. É o que ouvimos pelo rádio horas depois. Quem falava era Patrícia Medici, que chefia o estudo sobre as antas, comunicando que um animal havia caído na armadilha montada semanas antes. Seguimos para o local indicado e lá está ele, com seus mais de dois metros de comprimento, sedado. Em meio à respiração ofegante da anta, a equipe recolhe sangue e amostras de pele, mede diferentes partes do corpo, fotografa dentes. Trata-se de uma velha conhecida da equipe, já com colar de monitoramento. É a Rita, nome dado em homenagem, claro, à dona da fazenda que apoia o trabalho. Não acha que batizar uma anta com o seu nome seria exatamente uma homenagem? Isso é porque não viu a paixão de Patrícia pelos animais que já pesquisa há 15 anos.

A observação privilegiada

dos animais faz do Pantanal

o verdadeiro safári do Brasil

Bando de queixadas corre por uma das praias do rio Negro. Abaixo: botas e arreios

aguardam a chegada do peão para mais um dia de trabalho. Na página ao lado: araras

azuis se deliciam com coquinhos de acuris

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71Outubro 2011

Page 8: Pantanal - Reino das águas

pantanal

Durante o almoço daquele mesmo dia, ficamos sabendo que o francês Arnaud Desbiez, que chefia o estudo dos tatus-canastras, e seu ajudante, o veterinário Danilo Keuyber, haviam ficado, na noite

anterior, cinco horas parados em frente à toca para ver o animal. E não conseguiram. Mas eles não desistem e no meio da tarde saem novamente.

Acompanhamos os dois na caminhada com seu radar, parecido com uma pequena antena, apontado para o alto. Cena curiosa, para dizer o mínimo. Estavam

em busca dos sinais do animal que já tinha um transmissor. E durante a perseguição, nos contam mais sobre sua rotina e seu trabalho. “É ótimo porque quem vem aqui se

interessa muito mais pelo que fazemos do que os meus amigos lá em São Paulo, que não conseguem entender o que me faz querer sempre estar no mato. Aqui sentimos até que somos normais”, brinca Danilo, falando sobre a interação com os hóspedes da pousada. Quem os acompanhar e encontrar o tatu-canastra poderá considerar-se um privilegiado: poucos são os que conseguem avistar o animal de hábitos estritamente noturnos. Mesmo muitos dos antigos moradores do Pantanal conhecem suas tocas, mas nunca os viram.

Pesquisadores hospedados em fazendas pantaneiras. Parece mesmo que os novos tempos chegaram por ali. Tempos bem diferentes daqueles em que só se saía da fazenda

com carro de boi. “Para comprar mantimento, eram seis dias para ir e seis para voltar de Aquidauana”, relembra Sebastião Roman da Conceição ou, seu Tião, como é

conhecido. Tímido, ele conta que trabalhou a vida inteira na Baía das Pedras. Acompanhou todas as mudanças do lugar ao longo dos últimos 64 anos e diz que a

tecnologia facilitou demais a vida. “Só que agora não tem mais peão bom, bravo como antigamente”, diz, com uma pitada de saudosismo. Antes de seguir

viagem, porém, ainda presenciamos uma cena clássica, uma rotina que sobreviveu ao passar dos anos: a cura dos bezerros. Trabalho de peão bravo esse de laçar os bezerros para medicá-los diante da fúria das vacas tentando defender os filhotes – mesmo que seu Tião não concorde.

É em meio ao mugido desafinado e constante que envolve essa lida com o gado que nos despedimos da Baía das Pedras. Cada vez mais longe das estradas asfaltadas e dos sinais de telefonia celular, seguíamos para o interior do Pantanal. Na nossa próxima hospedagem, a Pousada Mangabal, situada no meio da Fazenda Pouso Alto, tradicionalismo é a palavra de ordem. Aqui, gado ainda é a principal atividade desenvolvida. Tudo quase feito do mesmo jeito, desde o século 18, pelos ancestrais de Fernando Gomes e Silva, atual proprietário das terras. Quase, não totalmente, como relembra o pai de Fernando,

Nildo José de Barros. “A gente saía com comitiva de gado e quando chegávamos ao rio Paraguai, não tinha como atravessar.

Era a nado mesmo. Nós, os cavalos e o gado, todos nadando para vencer os mil metros entre uma margem e outra”, conta

sobre os tempos em que estradas, pontes e barcos eram escassos.

Os anos melhoraram os transportes, mas as águas do Pantanal continuam obrigando a todos que se atrevem

a viver por ali a nadarem muito. Se não chegam a atravessar o rio Paraguai, continuam cruzando as

baías e as terras alagadas quando a cheia toma conta de tudo. “Os cavalos não gostam, mas

As baías que se formam durante a época das chuvas moldam o cenário mutante do Pantanal

Quando as chuvas chegam, as águas mudam radicalmente a paisagem local

panTanal

73Outubro 2011

Page 9: Pantanal - Reino das águas

pantanal

Durante o almoço daquele mesmo dia, ficamos sabendo que o francês Arnaud Desbiez, que chefia o estudo dos tatus-canastras, e seu ajudante, o veterinário Danilo Keuyber, haviam ficado, na noite

anterior, cinco horas parados em frente à toca para ver o animal. E não conseguiram. Mas eles não desistem e no meio da tarde saem novamente.

Acompanhamos os dois na caminhada com seu radar, parecido com uma pequena antena, apontado para o alto. Cena curiosa, para dizer o mínimo. Estavam

em busca dos sinais do animal que já tinha um transmissor. E durante a perseguição, nos contam mais sobre sua rotina e seu trabalho. “É ótimo porque quem vem aqui se

interessa muito mais pelo que fazemos do que os meus amigos lá em São Paulo, que não conseguem entender o que me faz querer sempre estar no mato. Aqui sentimos até que somos normais”, brinca Danilo, falando sobre a interação com os hóspedes da pousada. Quem os acompanhar e encontrar o tatu-canastra poderá considerar-se um privilegiado: poucos são os que conseguem avistar o animal de hábitos estritamente noturnos. Mesmo muitos dos antigos moradores do Pantanal conhecem suas tocas, mas nunca os viram.

Pesquisadores hospedados em fazendas pantaneiras. Parece mesmo que os novos tempos chegaram por ali. Tempos bem diferentes daqueles em que só se saía da fazenda com carro de boi. “Para comprar mantimento, eram seis dias para ir e seis para voltar de

Aquidauana”, relembra Sebastião Roman da Conceição ou, seu Tião, como é conhecido. Tímido, ele conta que trabalhou a vida inteira na Baía das Pedras.

Acompanhou todas as mudanças do lugar ao longo dos últimos 64 anos e diz que a tecnologia facilitou demais a vida. “Só que agora não tem mais peão bom, bravo como antigamente”, diz, com uma pitada de saudosismo. Antes de seguir viagem, porém, ainda presenciamos uma cena clássica, uma rotina que sobreviveu ao passar dos anos: a cura dos bezerros. Trabalho de peão bravo esse de laçar os bezerros para medicá-los diante da fúria das vacas tentando defender os filhotes – mesmo que seu Tião não concorde.

É em meio ao mugido desafinado e constante que envolve essa lida com o gado que nos despedimos da Baía das Pedras. Cada vez mais longe das estradas asfaltadas e dos sinais de telefonia celular, seguíamos para o interior do Pantanal. Na nossa próxima hospedagem, a Pousada Mangabal, situada no meio da Fazenda Pouso Alto, tradicionalismo é a palavra de ordem. Aqui, gado ainda é a principal atividade desenvolvida. Tudo quase feito do mesmo jeito, desde o século 18, pelos ancestrais de Fernando Gomes e Silva, atual proprietário das terras. Quase, não totalmente, como relembra o pai de Fernando, Nildo José de Barros. “A gente saía com comitiva de gado e quando chegávamos ao rio Paraguai, não tinha como atravessar. Era a nado mesmo. Nós, os cavalos e o gado, todos nadando para vencer os mil metros entre uma margem e outra”, conta sobre os tempos em que estradas, pontes e barcos eram escassos.

Os anos melhoraram os transportes, mas as águas do Pantanal continuam obrigando a todos que se atrevem a viver por ali a nadarem muito. Se não chegam a

atravessar o rio Paraguai, continuam cruzando as baías e as terras alagadas quando a cheia toma conta de tudo. “Os cavalos não gostam, mas

As baías que se formam durante a época das chuvas moldam o cenário mutante do Pantanal

Quando as chuvas chegam, as águas mudam radicalmente a paisagem local

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73Outubro 2011

Page 10: Pantanal - Reino das águas

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até nadam quando é preciso. Só que aí estraga o arreio e comprar outro é caro”, reclama Cláudio Oliveira, funcionário da fazenda, enquanto prepara Minissaia para mais um dia de trabalho. Não, não se trata de um novo tipo de vestimenta pantaneira, é apenas o nome da montaria do dia. O traje continua o mesmo de anos atrás – botas, camisas de manga comprida, calças jeans e, o mais importante, a faca e a chaira, espécie de amolador, sempre na cintura. Cavalo preparado, ele se despede de nós para, antes do trabalho, degustar o café da manhã: arroz carreteiro, com bolo e leite.

O menu não costuma agradar os visitantes e, portanto, não faz parte do desjejum da pousada. Mas outros sabores pantaneiros oferecidos conquistam o paladar forasteiro. Quem chega à Mangabal não pode deixar de experimentar, por exemplo, o doce feito com a fruta que deu nome ao lugar, a mangaba. O cumbaru, espécie de castanha local, também surpreende. Tudo servido em uma sala adornada com

fotos da região, algumas delas tiradas pelo próprio dono do lugar. “Sou metido a fotógrafo”, brinca Fernando. Isso o torna o guia perfeito para acompanhar os safáris

fotográficos que saem da Mangabal. “Ali na frente tem um ninho de tuiuiú em um campo aberto maravilhoso para fotos”, diz quando saímos no zebrão, caminhão com

assento na caçamba. Com o sol se pondo atrás e o céu flamejando em tons alaranjados, o ninho com três filhotes e os pais revezando-se na busca de comida parecia mesmo um cenário montado, como se Fernando tivesse um estúdio em frente de casa.

Em meio a essa paisagem de cartão-postal, ele fala sobre as dificuldades de continuar com fazendas de gado por ali. Diz que é preciso mais incentivo governamental e reclama que o Pantanal é tratado com muita poesia, mas que não pode ser assim, que é preciso dinheiro para produzir. Mas, para mim, é difícil não poetizar o lugar com sua vida pulsando no ritmo das águas. Afinal, é como bem disse o poeta Manoel de Barros, inspirado por essa planície alagável onde viveu a maior parte da vida: “As águas são a epifania da criação”. LP

O turismo e a fama pouco

alteraram a essência

pantaneira ao longo do tempo

A rotina dos peões em conduzir o gado pelas estradas boiadeiras

que cruzam o Pantanal

panTanal

74 Outubro 2011