pandolfi, imaginário e viajantes no brasil do século xix- cultura e cotidiano. resenha

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Imaginário e Viajantes No Brasil

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  • Fernanda C. PANDOLFI1

    BARREIRO, J. C. Imaginrio e viajantes no Brasil do sculo XIX: cultura e coti-

    diano, tradio e resistncia. So Paulo: Editora UNESP, 2002. 243 p.

    Os relatos dos viajantes estrangeiros que vieram para o Brasil, aolongo de quatro sculos, deixaram as impresses da descoberta de umanova natureza e do estranhamento dos europeus diante dos costumesdos homens que aqui habitavam. Esses relatos produziram as primei-ras representaes geogrficas e sociais do Brasil para os europeus e re-presentam o olhar do estrangeiro que descobriu, nomeou e catalogouo Pas.

    Pensando na formao do Brasil como parte do imenso movi-mento de povos, culturas, idias e polticas de que tem sido palco omundo Atlntico desde fins do sculo XV, o historiador Jos CarlosBarreiro definiu como um dos objetivos de seu livro, ilustrado compinturas da poca, investigar o imaginrio de viajantes estrangeirosque percorreram vrias provncias do Brasil durante do sculo XIX.

    No sculo XIX, sobretudo aps a abertura dos portos em 1808,foi intensa a visitao ao Brasil por viajantes europeus de diversas na-cionalidades, que produziram registros minuciosos sobre a sociedade. a partir desses registros que Barreiro, em Imaginrio e viajantes noBrasil do sculo XIX: cultura e cotidiano, tradio e resistncia, investigao imaginrio dos viajantes, como tambm dedica-se reconstituiodo cotidiano e das lutas sociais das classes subalternas.

    Do ponto de vista terico possvel identificar dois eixos no tra-balho. O primeiro refere-se aos recursos conceituais utilizados para es-tudar o imaginrio dos viajantes, fundamental na compreenso da lei-tura que fizeram do Brasil. Para Barreiro, no era possvel entend-lossimplesmente como filhos do capitalismo nascente, limitando a for-mao de sua viso de mundo s influncias econmicas da poca. Oautor utilizou-se do conceito modernidade (formulado inicialmentepor Weber e retomado posteriormente por outros autores, dentre elesHabermas e Berman), definido fundamentalmente como o tempo da

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    ANARealce

    ANARealce

    ANARealce

  • modernizao da sociedade e da cultura que se fazia progressivamente

    a partir do sculo XVIII. No plano da cultura, a modernidade tradu-

    ziu-se num processo de desencantamento por meio do qual as concep-

    es religiosas de mundo, ao se desintegrarem, acabaram por engen-

    drar na Europa uma cultura profana. O desenvolvimento das sociedades

    modernas, ao lado da laicizao da cultura, com o surgimento das cin-

    cias empricas modernas e a autonomizao das artes, constituiu o ou-

    tro plo que permitiu determinar a existncia da modernidade. As no-

    vas estruturas sociais passaram a ser caracterizadas pela diferenciao

    de dois sistemas, cristalizados em torno de centros organizadores. Tais

    centros so a empresa capitalista e o aparelho burocrtico do Estado,

    que do ponto de vista funcional se interpenetram. Vivendo numa so-

    ciedade com tais caractersticas, qual Brasil foi inventado pelos viajan-

    tes? Esta questo norteou o trabalho de compreenso de alguns aspec-

    tos da sociedade brasileira do sculo XIX, a partir da investigao do

    imaginrio dos viajantes.

    O segundo eixo terico norteador da investigao aplica-se re-

    constituio do cotidiano e das lutas sociais das classes subalternas da

    sociedade brasileira no perodo, a partir da leitura dos viajantes. Aqui

    o autor serve-se de mtodos da histria social, para reavivar aspectos

    esmaecidos da vida e da identidade de negros livres, ndios, escravos,

    agregados, artesos, sitiantes, marinheiros e vadios das mais diversas

    raas e etnias. Edward Thompson, historiador militante da nova es-

    querda inglesa, foi inspirao importante no trabalho de Barreiro.

    Thompson flexibilizou e enriqueceu os conceitos marxistas para en-

    tender as manifestaes da plebe inglesa contra o movimento liberal

    no sculo XVIII. Reelaborou a noo de cultura, antes quase sempre

    tratada como mero reflexo da infra estrutura.

    Trilhando os caminhos de Thompson, Barreiro pesquisou o ex-

    tenso e diversificado segmento social formado pelas classes subalter-

    nas da sociedade brasileira do perodo, num momento em que as mes-

    mas no haviam ainda incorporado a tica do trabalho capitalista e a

    noo de propriedade privada. Emerge, pois, deste estudo um cenrio

    rico e surpreendente de valores, idias, costumes e, sobretudo, de con-

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    .

  • fronto cultural e multitnico no qual a cultura no entendida na acep-o de consenso, mas constituda por criao e luta.

    Este quadro terico foi sustentado por densa pesquisa empricaenvolvendo relatos de viajantes estrangeiros (sua fonte principal), mastambm cronistas, folcloristas e relatrios de Congressos Agrcolas defazendeiros do sculo XIX.

    Na primeira parte do livro, o autor analisa as noes de trabalho,de propriedade e de tempo no pensamento filosfico e na sociedademoderna europia que permeavam o imaginrio dos viajantes euro-peus do sculo XIX, demonstrando ao mesmo tempo que tais noesda sociedade liberal europia no se encontravam ainda consolidadasentre os pobres da sociedade brasileira desse sculo. O crime contra apropriedade particular, que muitas vezes aparece analisado na histo-riografia como ato primitivo ou como ao simplesmente motivadapela fome, assume outra dimenso analtica no trabalho de Jos Car-los Barreiro, ao enfatizar o carter contraditrio com que as noes depropriedade e honestidade so apropriadas pelas classes subalternas.

    Os viajantes, ao observarem os modos e ritmos de trabalho daspopulaes locais, no conseguiam entender suas concepes de tem-po cclico, guiadas pelas estaes do ano, pelo bom tempo e pelas ati-vidades religiosas, diferentes de suas noes de trabalho disciplinadomedido por um tempo abstrato que regula as atividades dos trabalha-dores da economia capitalista. Partindo de tais conceitos, os viajantesdesqualificavam os costumes e a cultura material dos subalternos, ca-racterizando-os como ociosos e preguiosos. No entanto, no fugiu aoolhar desses estrangeiros a intensa explorao do trabalho qual o ho-mem comum encontrava-se submetido.

    Em outro eixo, o autor analisa a interveno coercitiva do Estadonas diferentes esferas da vida social. O recrutamento forado do ho-mem pobre livre e dos indgenas para compor as milcias, as ordenan-as e os regimentos de linha, desagregavam suas culturas, suas estrutu-ras familiares, a organizao de sua economia e as relaes de trabalho.A interveno do Estado tambm se manifestava na disciplinaridadedas festas dos escravos, visto ser freqente a ocorrncia em muitas pro-vncias de rebelies escravas surgidas nessas ocasies.

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  • O trabalho Jos Carlos Barreiro leitura imprescindvel para seconhecer os conflitos e as contradies da formao da sociedade bra-sileira desde os primrdios da formao do Estado nacional at o fimdo perodo imperial. A reconstruo deste universo, realizada por Bar-reiro, permite ao leitor compreender a complexidade da vida social nosculo XIX, para alm das relaes senhor-escravo, numa reconstitui-o compreendendo todo um complexo multitnico abrangendo ne-gros e ndios livres e pobres. Como bem expe o autor, as concepesliberais de propriedade, tempo linear e trabalho disciplinado da socie-dade liberal somente sero incorporadas pelos trabalhadores brasilei-ros no sculo XX, perodo em que o movimento de trabalhadores so-brepe-se ao protesto popular do sculo XIX e, nos centros urbanos, aluta social vai circunscrevendo-se cada vez mais diminuio da jor-nada de trabalho, ao aumento de salrios e criao de sindicatos li-vres (p.33).

    Cabe ressaltar, finalmente, quanto foram fortes e perenes certasimagens e interpretaes feitas pelos viajantes sobre o Brasil. O autornota a subordinao ainda hoje de nossa prpria imagem quelas ela-boraes, com repercusses danosas no encaminhamento de questessociais e culturais candentes da sociedade brasileira contempornea.Barreiro discute, por exemplo, a questo dos ndios e dos negros. Nopoucas vezes os primeiros foram caracterizados por viajantes como ex-tremamente bestiais e violentos. Os segundos, provindos diretamentedas selvas africanas, encontravam-se em completo estado de barbrie.Vem da o tom invariavelmente desqualificador e zombeteiro com quedescreviam suas cerimnias, costumes e manifestaes culturais de ummodo geral. possvel, acrescenta Barreiro, que ressonncias desse ima-ginrio estejam ainda alimentando uma insensibilidade poltica queexplique, de alguma maneira, a marginalidade social do negro na so-ciedade contempornea e a desconsiderao para com os ndios, quepoder conduzir inevitavelmente extino de sua cultura.

    Para alm da caracterizao das classes subalternas e seu modo devida, lembra tambm o autor que temas como a cidade brasileira e aorganizao de seu espao foram permanentemente tratados pelos via-jantes, de forma a transferir para c modelos europeus asspticos em

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  • consonncia com campos visuais amplos e propcios para o controledo ir-e-vir dos habitantes de uma cidade. Os desdobramentos desseimaginrio sobre a ao dos primeiros reformadores urbanos do Bra-sil foram bastante eficazes. As reformas do Recife e Rio de Janeiro deincios do sculo XIX analisadas por Barreiro so exemplares, sobretu-do pelas conseqncias funestas trazidas populao pobre. As linhasde fora desse imaginrio, acrescenta o autor, permaneceram um s-culo depois nas reformas urbanas do perodo republicano. A razo fun-cional que orientou o projeto desenvolvimentista da construo deBraslia parece ter sido o prolongamento mais recente do sonho auto-crtico e disciplinarizador que os viajantes nutriam sobre a organiza-o da cidade e seus habitantes.

    Isso revela quanto ainda est por ser feito em termos de um tra-balho historiogrfico persistente de crtica aos discursos dos viajantes,que sob muitos aspectos continuam dando forte sustentao cons-truo de nossa prpria histria.

    NOTA

    1 Doutoranda no Programa de Ps-Graduao em Histria FCL UNESP CEP 19806-900 Assis SP.

    Resenha enviada em 05/2003. Aprovada em 08/2003.

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