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Palavras de Revolução e Guerra: Discursos da imprensa paulista em 1932
LUCAS PALMA MISTRELLO*
Resumo:
Buscando entender o voluntariado e o esforços de guerra empreendidos na Revolução
Constitucionalista de 1932, em São Paulo, o artigo tenta estabelecer como as principais
bandeiras daquele movimento – normalmente descritas como reconstitucionalização do país e
autonomia estadual – e seus discursos poderiam ressoar com a população, observando o debate
político da época. Tendo como fontes principais os periódicos que circularam em São Paulo
durante a ocorrência da guerra civil, entre 9 de julho e 2 de outubro daquele ano.
Palavras Chave: Revolução Constitucionalista; Era Vargas; Revolução de 1930
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Na noite do dia 25 de fevereiro de 1932, três caminhões com militares do quartel de São
Cristóvão estacionaram na Rua Alcindo Guanabara, no centro da capital federal, próxima à
Câmara Municipal, e assaltaram a sede do jornal Diário Carioca. Relatos veiculados na
imprensa paulista contavam sobre tiros de metralhadoras e fuzis, depredação das oficinas,
agressão a funcionários e tentativa de incendiar o edifício (Folha da Manhã, 26/02/1932). A
ação foi registrada no diário do presidente:
Neste período, o governo atravessa uma fase aguda de boatos e inquietação pública.
Um grupo de oficiais do Exército e Marinha, levando praças armadas do 1º
Regimento de Cavalaria, ataca, à noite, o Diário Carioca, empastela o jornal e fere
alguns operários. O Ministro da Guerra declara que não pode conter os oficias,
dispostos a atacar outros jornais se continuarem a campanha de desprestígio ao
governo. [...] A polícia nada faz para evitar, o espírito público está inquieto, há
* Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo.
divergências no Ministério. Os jornais desta capital e das de São Paulo, Rio Grande
do Sul e outras suspenderam por 24 horas a publicação em sinal de protesto. [...]
Tenho que me decidir entre as forças militares que apoiam o governo e um jornalismo
dissolvente, apoiado pelos políticos e instigado mesmo por estes contra o governo.
Estou numa encruzilhada em que urge uma decisão. (VARGAS, 1995: 92)
Um ferrenho apoiador da Revolução de 1930 – a redação do periódico (a mesma ser
atacada naquela noite) chegou a receber um encontro entre os conspiradores da Aliança Liberal
naquele ano, contando com presenças como a do próprio Vargas – o Diário Carioca rompeu
poucos meses depois com o Governo Provisório e passou a ser veículo de fortes críticas
direcionadas ao Catete. (LUCA, 2011: 168)
O contexto dos primeiros anos da década de 30 foi dominado por uma disputa intensa
de projetos para o Brasil, fruto da heterogeneidade do movimento de outubro, que tinha como
marco a reconstitucionalização do país; pois dela seriam construídos os alicerces do novo
regime, assim como estabeleceria a duração do Governo Provisório. Algumas alas desejavam
o retorno mais rápido o possível ao regime constitucional e democrático para colocar os projetos
do país, supostamente, em discussão pública; enquanto outras, ligadas ao tenentes e aliados
civis, que possuíam maior força no governo, acreditavam que o poder oligárquico ainda estava
enraizado demais nas estruturas sociais do país e qualquer eleição no curto prazo estaria ainda
sob domínio dos inimigos derrotados na vidada da década. (PANDOLFI, 2015: 17) O Diário
Carioca foi uma das principais plataformas do primeiro grupo.
Além de incisivas críticas ao governo e aos setores políticos identificados com os
tenentes – que rendeu episódios de apreensão de edições do jornal por figuras tenentistas em
postos de autoridade – aquele periódico tentou patrocinar a criação de um “Clube 24 de
Fevereiro”, uma ironia com o Clube 3 de Outubro, principal organização política dos tenentes
e aliados civis, e anunciava a organização de manifestações no centro do Rio de Janeiro pela
reconstitucionalização do país. A data de 24 de fevereiro foi a de promulgação do inédito
Código Eleitoral brasileiro, prevendo justiça eleitoral, sufrágio universal, voto feminino e
secreto. Considerado um avanço do sentido do retorno ao regime legal, pois haviam sido
marcadas também eleições para uma Constituinte. “Coincidentemente”, o dia anterior ao ataque
à redação do jornal.
O empastelamento causou extrema comoção de alcance nacional; o evento foi
interpretado não apenas como uma retaliação à oposição ao Governo Provisório, mas ao
pretenso ideal democrático como um todo. Um recado de que forças políticas e militares não
permitiriam o reingresso à constitucionalidade tão cedo. O evento foi rapidamente associado ao
Clube 3 de Outubro – desde as primeiras notícias já se sabia que havia sido empreendido por
oficiais militares – e, eventualmente, ao próprio prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, que
também era presidente da associação tenentista. Em outra anotação do diário de Vargas:
Recebi Pedro Ernesto, a quem mandei chamar para ouvir sua impressão e a do
público, através dele, sobre o sucesso do empastelamento do Diário Carioca. Achei-
o insensível e parece até convencido de que praticou um ato louvável. Recebi depois
a visita de Maurício Cardoso, que pretende retirar-se para o Rio Grande, sentindo a
impossibilidade de levar adiante, no momento, o programa constitucional.
(VARGAS, 1995: 93)
Sendo organizado pelas próprias autoridades da capital, Vargas encontrou dificuldade
para organizar qualquer tipo de investigação ou punição sobre o episódio. O que fora entendido
pela oposição como, na melhor das hipóteses, má vontade do presidente, e, na pior, compactuar
com o posicionamento dos agressores. A escalada da crise continuou nos dias seguintes até
culminar com a renúncia de Maurício Cardoso, citado pelo presidente acima, então Ministro da
Justiça, que passou desacreditar nas intenções legalistas do governo – sendo seguido por outros
políticos importantes que eram aliados de Vargas no momento, como o Ministro do Trabalho,
que renunciaram coletivamente em apoio a Cardoso, todos gaúchos, e representes das elites
daquele estado no governo federal. Todos entenderam que, tanto o empastelamento do Diário
Carioca, quanto a não punição de nenhum dos envolvidos, sinalizava a direção política do
Governo Provisório. O Estado de S. Paulo ponderou após as renúncias:
A crise gravíssima que atravessa o governo da República, acentuada pela demissão
de vários auxiliares, dos auxiliares que representavam a corrente liberal e
constitucionalista, enche-nos de apreensões. Reputamos uma desgraça a marcha do
governo para o absolutismo, e essa crise, ao menos na sua face externa, nas suas
aparências mais acessíveis ao olhar, denota uma inflexão para aquele rumo. Parece
que, no seio do governo, já se decidiu contra o espírito constitucionalista a luta que
armara entre esse espírito e o ditatorial. (O Estado de S. Paulo, 05/03/1932)
O episódio do assalto ao periódico da capital nos é bastante caro ao revelar a
centralidade que a imprensa possuía na discussão política daquele contexto. Causou a renúncia
de dois ministros e outros políticos influentes (que iriam cerrar fileiras com a Revolução
Constitucionalista meses depois), acabando por ressoar pelo país como um marco decisivo de
orientação política do Governo Provisório e da Revolução de 1930. A reposta dos setores
agrupados no Clube 3 de Outubro, aliás, foi a realização de uma caravana até Petrópolis, onde
Vargas estava em reclusão, com mais de duzentas pessoas, entregar uma moção contrária à
realização da Constituinte1 e demonstração de total apoio ao governo (VARGAS, 1995: 94).
A imprensa era entendida como um veículo, como linha de frente, dos grupos políticos
que disputavam o poder e os projetos da época; eram intimamente associados às correntes e
agremiações, percebidos como representantes de primeira importância delas. Não apenas de
forma, ativa, ao veicular manifestos e opiniões, mas passiva: ataques aos órgãos jornalísticos
significavam ataques às próprias lideranças e ideários que eles representavam. Meses depois,
em 23 de maio de 1932, nos protestos que ocasionaram a morte dos jovens Martins, Miragaia,
Dráuzio e Camargo na Praça da República, em São Paulo, um dos alvos de fúria dos
manifestantes, ao lado da sede do Partido Popular Paulista (de onde partiram os tiros que os
vitimaram) controlado por membros do Clube 3 de Outubro, fora o jornal A Razão, contrário à
reconstitucionalização do país, empastelado naquela noite.
Uma trajetória como a do Diário Carioca, de apoiador da Aliança Liberal e do
movimento de outubro de 1930, para opositor do Governo Provisório foi bastante comum com
a imprensa de São Paulo. Em graus diferentes, com mais paciência ou mais hesitação, com o
governo derrubado e com o governo empossado, às vésperas da Revolução de 1932, a narrativa
dos periódicos para seu passado recente havia se estabelecido desta forma: como simpáticos à
Revolução de 1930, mas críticos aos rumos tomados pelo governo. Seja o caso das Folhas de
S. Paulo, que cobriram com entusiasmo os eventos daquele mês de outubro e teve postura mais
conciliatória nos anos seguintes (CAPELATO, MOTA, 1981: 81-96), ou de O Estado de S.
Paulo, que manteve bastante austeridade naquele episódio, mas já realizava críticas e
ponderações contra o regime anterior (CAPELATO, 1989).
1 De forma irônica ou tragicômica, Vargas descreve o episódio como: “Ato de solidariedade com a ditadura”.
O jornal da família Mesquita cedeu profissionais e equipamentos para a edição de O
Jornal das Trincheiras, órgão de imprensa oficial do governo revolucionário de São Paulo
durante a guerra civil de 1932. Circulou em 13 edições, entre 14 de agosto e 25 de setembro,
publicado duas vezes por semana e distribuído gratuitamente pelo estado, nas cidades e fronts
– e eventualmente até mesmo nos fronts inimigos através de “bombardeios”. Constituindo
importante fonte para entendermos os discursos daquele movimento. Em sua primeira edição,
havia um longo texto atribuído ao General Bertoldo Klinger, comandante maior das Forças
Constitucionalistas:
Antes de apelarmos para a última instância das armas, sofremos, pacientamos,
advertimos, renunciamos. Nenhuma solução airosa houvéramos repelido. Dez dias
após o triunfo da Revolução de 1930 [posse de Vargas], já chamava eu a atenção do
governo provisório para percalços a que estava, nestas palavras:
“Aproveito para deixar bem claro que vai longe do meu pensamento [...] de que só
discordo de ditadura militar, julgo que também uma ditadura civil é inaceitável, e
creio que comigo pensa toda a nação.
Nada teria adiantando a presente revolução nacional: ditadura civil era o que
tínhamos até aqui, apenas como mera satisfação aos imanentes de dignidade
nacional, mascaradas por uma organização de poderes nominais em torno do poder
realmente único do presidente da República”. (Jornal das Trincheiras; 14/08/1932)
Para além da capacidade mediúnica do general, que na posse de Vargas já o denunciava
como futuro ditador, o que nos chama a atenção é que a fala não desmerece o movimento de
1930. Continua o chamando pelo mesmo título que o de 1932, como Revolução. E, mais
importante, descreve uma noção de (falta de) ruptura com o regime anterior; a República Velha
se tratava de uma ditadura civil mascarada por rituais democráticos de fachada, e a presente
Revolução deveria tratar de romper com essa forma política. A questão é que para os
constitucionalistas, a quebra com a política anterior não havia sido, e nem seria alcançada, com
o Governo Provisório, que funcionava, segundo eles, como uma ditadura devido à ausência da
carta legal para o Brasil.
Nesse sentido, um traço característico do discurso da revolta de 1932 era não se
apresentar como contrarrevolucionário, pelo contrário, seria ainda mais revolucionário que a de
1930. Desta forma, podendo atingir todos aqueles que, além de estarem descontentes com o
Governo Provisório, já vinham descontentes com a República Velha – o que não era incomum,
tamanha a postura antipopular daquele regime e o consenso da grande imprensa paulista, em
maior ou menor grau, de que ele precisava ser superado, como já apontava O Estado de S. Paulo
(CAPELATO, PRADO, 1980: 34-40). Ao mesmo tempo, os movimentos ainda mais anteriores,
como os de 1922 e 1924 continuavam a ser resgatados e colocados ao lado de 1930 e 1932 –
que continuavam a ser chamados de “revoluções” (Jornal das Trincheiras, 14/08/1932), mesmo
quando criticados (A Platéa, 15/08/1932). Insatisfeito os membros tenentistas que compunham
o governo Vargas, o editorial de A Platéa ironiza a situação:
Interessante, a população de S. Paulo, governista em 1924, mostra-se, oito anos
depois perfeitamente integradas nas ideias que fizeram o movimento de então. Ao
passo que os maiorais desse movimento surgem, a 5 de julho de 1932, perfeitamente
satisfeitos nos andrajos da maroteira política para cujo extermínio se fez a revolução
de há oito anos. (A Platéa, 05/07/1932)
Da mesma maneira que se criticava o Governo Provisório tentando preservar aspectos
da Revolução de 1930, despejavam descontentamentos sobre os participantes das revoltas de
década de 20 ao mesmo tempo que desejava-se manter uma eventual simpatia que a população
pudesse ter com o tenentes e, especialmente, seu símbolo de contestação a um governo
autoritário – além de se entenderem como herdeiros, mais esclarecidos, daquelas rebeliões.
Sobre o movimento de 1924, Ilka Cohen define que, apesar da participação mais restringida aos
militares, “permite perceber com clareza os mecanismos pelos quais a política interfere na vida
de cada indivíduo” e que “obriga-os a toma partido, definir posições, defender interesses.”
(COHEN, 2007: 106). Nesse sentido, os discursos de 1932, procuram transferir aquele cenário
de contestação para alguns anos depois, na construção de uma narrativa que demonstre uma
grande revolução nacional em curso que vêm a culminar e consolidar-se na Revolução
Constitucionalista.
O ideal de constitucionalidade era a primeira bandeira desfraldada naqueles discursos;
a maioria dos textos do Jornal das Trincheiras têm por objetivo engrandecer “a restauração da
lei. O pálio que abrigará a nação inteira. [...] freio do arbítrio, nome tutelar dos direitos e
franquias, condição descrime entre civilização e barbárie” (Jornal das Trincheiras, 14/08/32).
Eram vários e longos tratados explicando e enaltecendo o mais nobre dos ideais, que viria desde
os tempos mais remotos:
A concepção do direito é sobre-humana, no espírito humano. Não há civilização, não
há cultura, não há povo que possa existir sem o predomínio consensual das leis, e
muito menos da respectiva lei fundamental, conjunto de sínteses jurídicas que é a
Constituição. (Jornal das Trincheiras, 04/09/1932).
A bandeira constitucional da Revolução de 32 é uma de suas características mais
criticadas, entendida como um desespero das elites de São Paulo para se reconduzirem à
liderança política nacional, pois assim era possível “trazerem os adversários para lutar em um
campo previamente conhecido: o político partidário.” (CODATO, 2010: 295). Também poderia
ser enxergada como uma forma das elites políticas de São Paulo, como resposta a crescente
participação popular nos eventos políticos daqueles anos, “reforçar[em] seus esquemas de
dominação” (CAPELATO, 1982: 85), engessando-os nas estruturas legais.
Esta preocupação legal não era nova, durante o calor da Revolução de 1930, A Platéa
publicava uma suposta entrevista com o recém-empossado presidente:
[tema] O respeito à Constituição e às Leis: [resposta de Vargas] Em geral, quando se
emprega a palavra “revolução” tem-se a impressão de estar em presença de uma
generalização, subversão de espírito e tendências políticas. O caso do Brasil não
confirma essa impressão, o que o povo brasileiro queria era que respeitasse a
constituição, as leis. [...]
O povo brasileiro é um dos povos mais inteligentes do mundo e pode também ser
contada sua elite, como das mais cultas. Não seria possível que um país, como o meu,
continuasse a tolerar uma política artificial, sem nenhuma ressonância popular,
egoística e visivelmente abaixo das necessidades de seu povo. Assim sendo, o que
houve no Brasil, foi antes uma verdadeira contra-revolução, orientada no sentido de
fazer observadas as leis e respeitada a vontade popular. (A Platéa: 06/11/1930)
A imprensa de São Paulo já debatia longamente no final dos anos 20 a necessidade de
reformas legais para o capenga regime republicano, em tom de alerta, especialmente, para evitar
convulsões sociais mais agudas e consolidar que o Brasil necessitava de apenas de
transformações políticas e não sociais; na esperança que a Revolução de 1930 funcionasse como
“um anti-modelo das revoluções sociais. [...] A Revolução vira bloquear as possibilidades de
ruptura.” Buscando criar uma “tranquilidade que advinha da certeza de que a revolução popular
fora impedida pela revolução conservadora” (CAPELATO, 1982: 171). A fala atribuída a
Vargas2 acima também nos é cara no sentido de que é possível reforçar nossa ideia anterior; a
noção de grande revolução nacional corrente suprimiu completamente o uso do termo
“contrarrevolução” para descrever o ideal legalizante; anos depois não houve problemas em
chamar o Movimento Constitucionalista de Revolução.
Ainda que as intenções dos políticos paulistas sobre os ideais constitucionalistas estejam
mais ou menos claras à historiografia, e demonstram certo caráter manipulatório, a importância
do regime legal para o país encontrava forte eco com a população. Como demonstrou o trabalho
de Jorge Ferreira, Trabalhadores do Brasil. Nele, o historiador estudou correspondências
endereçadas ao próprio Vargas, por meio da Secretaria da Presidência, e percebeu que a maioria
das reivindicações feitas ao chefe de Estado possuía um intenso clamor por justiça,
especialmente aqueles escritas no período Pré-Estado Novo pois tinham como comparação a
“prática política do regime anterior [...] definida como efetiva dominação política e social,
materializada em arbitrariedades e protecionismo políticos e pessoais.” Isso porque, naquele
período, “as perseguições políticas, listas negras, pistolões, leis sem garantia de cumprimento
e apadrinhamento não escapavam aos olhos da população”. (FERREIRA, 2001: 49). Em suas
correspondências, segue o autor, os trabalhadores usavam de referência a legislação vigente. A
legitimação de seus reclames buscava indicar como eles se adequavam às leis pertinentes à
situação descrita. Ele ainda conclui que:
[...] tinha um parâmetro para avaliar os períodos anterior e posterior a 1930: a
justiça. Para os trabalhadores, o regime anterior a Vargas foi marcado
fundamentalmente pela inexistência da justiça. A revolução [de 1930], por sua vez,
trouxe no seu próprio acontecer, a possibilidade sua efetivação. (FERREIRA, 2001:
51
Os paulistas também fizeram coro com a esperança nacional de efetivação de justiça:
Peço venia vir, novamente a presença de V. Excia. como pequeno servidor da
República Nova, pedindo o amparo e a valiosa interferência na minha justa
pretensão, que é a minha promoção, ao cargo de Porteiro, da Delegacia Fiscal de
São Paulo. Quando servente na mesma Delegacia era perseguido, marquei passos
sem nunca ter sido promovido, pois tinha meu obscuro nome na Lista do ex-Partido
2 Não foram encontradas reproduções daquelas falas em outros periódicos consultados. Na edição do dia seguinte de O Estado de S. Paulo é mencionado que Vargas havia concedido uma grande entrevista à imprensa, mas o veiculado por ele são declarações diferentes das publicadas por A Platéa. De qualquer forma, nos interessa a publicação delas por parte dos jornais.
Republicano Paulista, por pertencer e cooperar como fiscal do Partido Democrático,
em diversos pleitos eleitorais. (APUD: FERREIRA, 2001: 49)
Os redatores de Jornal das Trincheiras também buscavam tocar neste ponto do debate
político da época:
[...] faltou à revolução vitória [de 1930] um programa sério, positivo, prático,
composto de soluções de soluções honestas aos problemas nacionais da atualidade.
[...]
Não bastava reformar toda a legislação vigente, no verdadeiro delírio que vimos
contemplando, formado de abortos legislativos e importações jurídicas de
contrabando, pois essa floração extemporânea, desambientada de início, só pode
multiplicar-se em corrigendas e resultar em leis inaplicadas.
Que não se pense, na continuidade de tais ou quais erros administrativos. Que não se
recorde, sequer, a repulsa para sempre extintas, entre as quais o profissionalismo
político, o coronelismo regionalista, os governos de igrejinhas partidárias... (Jornal
das Trincheiras, 18/09/1932).
O ataque dos discursos era frontal ao caráter entendido como ditatorial do Governo
Provisório, pela falta de Constituição e órgãos legislativos, e, conforme apontamos
anteriormente, propagava-se que acabariam por favorecer o cultivo das práticas políticas como
as do regime anterior. O adjetivo “ditatorial” era frequentemente utilizado para descrever os
adversários da guerra, martelando ideia na discussão da época, seja em editorais e textos
opinativos, ou também em notícias corriqueiras das batalhas, como este exemplo:
Travou-se hoje, na região de Grama, violento combate entre as tropas
constitucionalistas e as ditatoriais. As 16 horas, mais ou menos, o 2º B.E. das forças
constitucionalistas, sob o comando do 1º tenente Gumercindo da Fonseca,
coadjuvado pelo batalhão Elpidio Silveira, desfechou um brilhante assalto contra as
posições ditatoriais, acabando por toma-las a arma branca. Nesse ataque as tropas
ditatoriais tiveram 10 mortos e deixaram em nosso poder muitos prisioneiros, fuzis-
metralhadoras, fuzis mauser e grande cópia de munição.
Um avião da ditadura voou sobre Cascavel lançando bombas que, felizmente, não
produziram efeito algum. (O Estado de S. Paulo; 16/09/1932) [grifos nossos]
Vargas, como ditador, era o principal alvo dos discursos constitucionalistas, chamado
de “influência nefasta” (Jornal das Trincheiras, 18/08/1932) ou de “calamitosa” e “catastrófica
influência” (A Platéa: 23/08/1932), assim como era alvo de charges (Imagem 1) e tiras.
Entretanto, ainda além dele, na escala de inimigos, encontravam-se os tenentes e políticos
associados ao Clube 3 de Outubro: haviam relatos de que o interventor de Minas Gerais,
Olegário Maciel – que antes da eclosão da guerra civil, era dado como aliado do movimento –
estaria refém de políticos tenentistas dentro do palácio do governo (A Folha da Noite,
23/07/1932) ou, mais impactante ainda, de que o presidente estaria disposto a renunciar para
selar a paz do conflito, mas teria sido impedido “pelos tenentes”, que teriam o ameaçado de
morte caso saísse do governo (O Estado de S. Paulo, 18/08/1932).
(Imagem 1: Vargas na mão de um bandeirante)
Na imagem, segurando Vargas, está o bandeirante, que é o grande símbolo da luta
constitucionalista e da luta política de São Paulo até então, figura carimbada daqueles dias.
Normalmente associado a outra bandeira importante daquele movimento, a autonomia estadual.
Entretanto apesar de a elite paulista ter sido abertamente contra as políticas de centralização do
Governo Vargas pois:
Levada [s] por seus interesses políticos e econômicos mais imediatistas, sem uma
visão a longo prazo, com certa afoiteza [...] endeusar Vargas; tudo esperando de sua
atuação na chefia do Governo Provisório, sem perceber que isto significa a subida
ao poder de um novo grupo, com interesses mais nacionais. (BORGES, 1989: 188)
A questão da autonomia estadual pode ter mais de uma resposta, e mais de um eco na
população de São Paulo. Bem menos protagonista nos periódicos que a questão constitucional,
não haviam grandes textos explicando as origens ou a importância da autonomia estadual, muito
diferente dos verdadeiros tratados elaborados sobre a “causa da lei”. Esta expressão,
“autonomia estadual”, consolidada na historiografia como reinvindicação paulista, raramente
foi utilizada, e nos periódicos estudados não ocorreu com relevância. Normalmente o conceito
de autonomia vem como “autonomia dos estados” (A Folha da Noite, 11/07/32) ou “autonomia
de S. Paulo”, mas também “autonomia política” ou “autonomia da pátria” (A Folha da Manhã,
30/07, 12/07 e 06/08/1932). Mesmo para o próprio Vargas, se pronunciando ao povo paulista,
na tentativa de dissuadi-lo da luta, quando descreve a reinvindicação de São Paulo, diz: “a
autonomia do Estado, o direito de governar-se por seus próprios filhos” (Correio da Manhã,
30/09/1932). O presidente, na mesma oportunidade, alega que já cumpriu essa demanda a
nomear Pedro de Toledo interventor – o que foi feito na mesma semana da crise desencadeada
pelo empastelamento do Diário Carioca – e aceitar o gabinete e comando militar impostos nas
manifestações de 23 de maio. Todavia, isso não fora aceito como solução à demanda por
autonomia.
Isso talvez se deva porque a noção de autonomia não necessariamente estivesse isolada
da reinvindicação anterior de constitucionalidade. Um outro manifesto veiculado no movimento
dizia, “se combate no Brasil porque à nação se nega o direito de governar-se por si mesma”
(APUD: PONTES, 2004: 161), em referência à inconstitucionalidade do país; a expressão
“governar-se” é repetida. Um outro pilar da mitologia bandeirante, que age como espécie de
“mito fundador” do estado de São Paulo, residiria também em sua autonomia, seu arrojo e
dinamismo, durante o período colonial, expandindo fronteiras e descobrindo riqueza (LOVE,
2006: 66). Fórmula também utilizada, paradoxalmente, pelo Estado Novo em extensa obra do
escritor Cassiano Ricardo, ao realizar propaganda de desenvolvimento do interior do país, ou
Marcha para o Oeste (APUD: LENHARO, 1986: 61).
E se o bandeirante passou a ser usado posteriormente pelo inimigo do passado, durante
a Revolução Constitucionalista, os adversários políticos também usavam de um léxico e
argumentação muito similar no que tange ao regionalismo e à autonomia estadual. Em
manifestos circulados no estado, durante a guerra civil, que desejavam dissuadir a população
de participar tanto do voluntariado quanto dos esforços de guerra, havia conotação de classe,
mas também partia de ótica local:
“A questão social é uma questão de polícia”. Estes os termos textuais com que
Washington Luiz, Júlio Prestes e seus sequazes sumariavam o mais doloroso e grave
dentre os problemas sócio-políticos da atualidade em todo o mundo. Sempre, aliás, se
mostraram todos eles mais ferozes na prática que no pensamento, em tal matéria, com
suas brutais repressões policiais às mais pacíficas veleidades grevísticas, pois fãs ou
nefãs respondiam a pata de cavalo e tiro ou cerceavam a fio de sabre os surtos
reinvindicações do infeliz proletariado paulista. (Jornal de S. Paulo, 29/09/1932.)
Terminando com um clamor ao “Proletariado de São Paulo” o manifesto privilegia o
direcionamento aos habitantes do estado, não apenas no gentílico, mas na referência aos
políticos, Washington Luiz e Júlio Prestes foram representantes políticos do estado
initerruptamente desde 1914, ocupando prefeituras (intendências), senado, câmaras,
presidência estadual e nacional. Desta forma, explorando um drama muito particular da
população paulista. E em outros estados, o vocabulário para arregimentar forças para combater
contra São Paulo nos é bastante similar:
O Ceará, que no regime decaído viveu espoliado, que nunca teve o direito de ser
ouvido e cujos clamores nos seus momentos mais difíceis, salvo excepcionalmente,
jamais encontraram eco, não pode vacilar ante a investida de explorares de todos os
tempos. Foi com a vitória da Revolução [de 1930] que o Ceará conheceu a liberdade;
com Ela alcançou o direito de ser ouvido; somente após o triunfo dos ideais
revolucionários, foi olhado com interesse a que por todos os títulos faz jus. […] Como,
pois admitimos que o nosso Estado, que com tanto brilho auxiliou a queda dos
exploradores do Brasil, assista, indiferente, à impatriótica tentativa de reconquista do
poder por parte de nossos maiores inimigos […] cearenses, pela dignidade do Ceará,
pelo Brasil unido e forte: Às armas! (APUD: LOPES, 2009: 27)
O discurso acima foi realizado pelo interventor federal no Ceará com o objetivo e de
convencer os cearenses a contribuir com a luta do Governo Provisório contra os
Constitucionalistas; com uma cirúrgica troca de nomes, a fala facilmente porque ser atribuída
a algum político paulista. Isso nos revela que não necessariamente falas exaltando o estado,
seus valores, ou mesmo sua preponderância na união federal, correspondem à autonomia
estadual como reforço de federalismo, neste exemplo, está defendendo centralização política –
como também Cassiano Ricardo o fez com a figura do bandeirante no Estado Novo3.
Os sertanistas já povoavam a discussão política paulista há muito tempo, mas um
exemplo nos é caro na propaganda política do Partido Democrático nas eleições legislativas de
1928, que se tornou bastante célebre a denunciar o voto de cabresto e as fraudes eleitorais da
República Velha. Um dos cartazes era o seguinte:
(Imagem 2: Propaganda eleitoral do PD em 1928)
Na imagem 2, o bandeirante, gigante, aparece empunhando numa mão o “voto secreto”
e em outra o Partido Democrático em forma de espada, ameaçando os pigmeus representando
as fraudes eleitorais – eleitor de cabresto, eleitor estrangeiro e o fósforo eleitoral (eleitores que
votavam mais de uma vez). O ideal sufragista já circulava com força na imprensa paulista
naquele momento, inclusive como remédio para evitar uma possível revolta social, mas também
diminuir o poder das oligarquias na máquina eleitoral (CAPELATO, PRADO, 1980: 30) Neste
sentido, a mitologia da autonomia bandeirante se expressa na autonomia eleitoral; os
significados estão mesclados. Numa curiosa referência, posteriormente, uma foto (Imagem 3)
3 Por exemplo: “[O Estado Novo é] Bandeirante no apelo às origens brasileiras; na defesa de nossas fronteiras espirituais contra quaisquer ideologias exóticas e dissolventes da nacionalidade; no espírito unitário, um tanto anti-federalista; na soma de autoridade conferida ao chefe nacional”. In: RICARDO, Cassiano: O Estado Novo e seu sentido bandeirante. APUD: LENHARO, idem.
flagrou que a campanha pela legalidade do PCB, cassado em 1947, usou da expressão
“autonomia para S. Paulo”.
(Imagem 3: pichações pelo PCB em 1947)
Ficando mais claro, assim, como se acoplaram tão intimamente as duas das principais
bandeiras da Revolução Constitucionalista, a ponto de sustentar a principal guerra civil do
Brasil no século XX. As duas estavam mescladas e compartilhavam significados, que por sua
vez, possuíam uma polissemia, uma pluralidade de significados. Se por uma ótica os interesses
das elites paulistas seriam atendidos com o retorno mais rápido do país ao regime legal e com
o reforço do federalismo – e o retorno delas no poder nacional; por outra a população também
poderia identificar naqueles discursos oportunidades de impor também suas demandas.
Mergulhados numa sequência de movimentos políticos que se prolongavam desde 1922,
os leitores daqueles periódicos ressoavam a ideia de uma grande Revolução Nacional em
andamento, muito apresentada durante o movimento Constitucionalista. Desta forma, se viram
na oportunidade de participarem do processo político, por mais que tenham sido levados
entender que suas demandas poderiam ser compatíveis com as veiculadas na imprensa e talvez
não as fossem. O clamor por um sistema político mais abrangente, mais popular, mais aberto e
efetivo era muito forte – e significava muito devido a atmosfera de autoritarismo e descaso que
caracterizou a República Velha. Assim como o discurso de que o regime constitucional seria a
redenção de todo esse sentimento foi forte e significativo o suficiente para mobilizar milhares
de pessoas dispostas a pegarem em fuzis e morrerem por uma Constituição.
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