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1 1 1 a a a a JIED JIED JIED JIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008 DISCURSO DA MEGA-INSTÂNCIA DE PRODUÇÃO À NOTÍCIA Sandra FALCÃO DA SILVA (PUC-SP) Introdução No presente artigo 1 analisou-se, num primeiro momento, à luz das teorias de Marcondes Filhos (1989), o discurso institucional do conglomerado jornalístico representado pelo grupo Abril e, num segundo momento, uma notícia publicada na Veja 2 , em 12 de setembro de 2007, cujo título é A guerra por outros meios. Para a análise da notícia, valemo-nos de teorias da Análise do Discurso midiático, desenvolvidas por Charaudeau (2006), Maingueneau (1998) e Marcsuschi (2007). A aplicação dessas teorias ao corpus selecionado permitiu mostrar que a neutralidade, ao se tratar de informação midiática, não existe e permitiu compreender melhor como alguns conceitos, propostos por Marcondes Filho, se verificam lingüístico-discursivamente. Os conceitos que procuramos verificar por meio da linguagem são os de: - ideologia da notícia; - dialética entre atemorização e tranqüilização; - ideologia do não-conflito ou do cultivo à passividade; - lógica mercantil da notícia ou valor de uso e valor de troca; - marketing jornalístico; - encobrimento ou falseamento da notícia; - particularização ou personificação dos fenômenos sociais. Em seu livro, O capital da notícia (1989), Marcondes Filho contextualiza a atividade jornalística no mundo capitalista, alertando-nos sobre a natureza mercadológica da imprensa dita de informação. A reflexão obriga-nos a repor em questão o caráter objetivo da notícia, ou seja, supostamente desprovido de interesses de poderes. Marcondes Filho define a notícia como sendo uma informação transformada em mercadoria com todos seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais; para isso a informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e negação de subjetivismo. (ibid: 13) Em seu discurso, Marcondes Filho propõe um olhar menos ingênuo que parte do pressuposto de que existe, sempre, por detrás de uma notícia, uma intencionalidade mascarada que exige, inevitavelmente, uma reflexão sobre a natureza discursiva do gênero jornalístico chamado notícia. Segundo ele (ibid.: 11-13 passim), criam-se jornais para elevar os interesses e disseminar as opiniões de determinados grupos econômicos e classes sociais privilegiadas, por meio de uma suposta impessoalidade e objetividade com valor de “verdade”. O jornalismo passa a atuar junto com grandes forças econômicas e sociais: um conglomerado jornalístico raramente fala sozinho. Ele é ao mesmo tempo a voz de outros conglomerados econômicos ou grupos políticos que querem dar às suas opiniões subjetivas e particulares o foro de objetividade. (ibid.: 11)

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1111a a a a JIEDJIEDJIEDJIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008

DISCURSO DA MEGA-INSTÂNCIA DE PRODUÇÃO À NOTÍCIA Sandra FALCÃO DA SILVA (PUC-SP)

Introdução

No presente artigo1 analisou-se, num primeiro momento, à luz das teorias de

Marcondes Filhos (1989), o discurso institucional do conglomerado jornalístico

representado pelo grupo Abril e, num segundo momento, uma notícia publicada na Veja

2, em 12 de setembro de 2007, cujo título é A guerra por outros meios.

Para a análise da notícia, valemo-nos de teorias da Análise do Discurso midiático, desenvolvidas por Charaudeau (2006), Maingueneau (1998) e Marcsuschi (2007). A aplicação dessas teorias ao corpus selecionado permitiu mostrar que a neutralidade, ao se tratar de informação midiática, não existe e permitiu compreender melhor como alguns conceitos, propostos por Marcondes Filho, se verificam lingüístico-discursivamente. Os conceitos que procuramos verificar por meio da linguagem são os de:

- ideologia da notícia; - dialética entre atemorização e tranqüilização; - ideologia do não-conflito ou do cultivo à passividade; - lógica mercantil da notícia ou valor de uso e valor de troca; - marketing jornalístico; - encobrimento ou falseamento da notícia; - particularização ou personificação dos fenômenos sociais.

Em seu livro, O capital da notícia (1989), Marcondes Filho contextualiza a

atividade jornalística no mundo capitalista, alertando-nos sobre a natureza mercadológica da imprensa dita de informação. A reflexão obriga-nos a repor em questão o caráter objetivo da notícia, ou seja, supostamente desprovido de interesses de poderes. Marcondes Filho define a notícia como sendo uma informação

transformada em mercadoria com todos seus apelos estéticos, emocionais e sensacionais; para isso a informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e negação de subjetivismo. (ibid: 13)

Em seu discurso, Marcondes Filho propõe um olhar menos ingênuo que parte do

pressuposto de que existe, sempre, por detrás de uma notícia, uma intencionalidade mascarada que exige, inevitavelmente, uma reflexão sobre a natureza discursiva do gênero jornalístico chamado notícia. Segundo ele (ibid.: 11-13 passim), criam-se jornais para elevar os interesses e disseminar as opiniões de determinados grupos econômicos e classes sociais privilegiadas, por meio de uma suposta impessoalidade e objetividade com valor de “verdade”. O jornalismo passa a atuar

junto com grandes forças econômicas e sociais: um conglomerado jornalístico raramente fala sozinho. Ele é ao mesmo tempo a voz de outros conglomerados econômicos ou grupos políticos que querem dar às suas opiniões subjetivas e particulares o foro de objetividade. (ibid.: 11)

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A respeito do poder das mídias, Charaudeau (op.cit.), também, afirma que toda “instância de informação, quer queira, quer não, exerce um poder de fato sobre o outro” e que “considerando a escala coletiva da mídia, isso nos leva a dizer que as mídias constituem uma instância que detém uma parte do poder social” (ibid.: 63). Essa visão nos remete, inevitavelmente, ao ato do discurso, pois, segundo ele, qualquer

que seja a pergunta que se faça a respeito da informação, volta-se sempre para a questão da linguagem. A linguagem não se refere somente aos sistemas de signos internos a uma língua, mas a sistemas de valores que comandam o uso desses em circunstâncias de comunicação particulares. (ibid.:33)

Sendo assim, impõe-se uma reflexão sobre quem informa quem, por que

informa, o que informa, quais são as provas e as fontes de informação. De acordo com Marcuschi (op.cit.), “toda informação é fruto de uma certa compreensão do fenômeno apresentado” que “funda-se nas estruturas sócio-político-culturais daquele que informa, seja ele um indivíduo, o jornalista, ou uma entidade, a agência noticiosa ou linha editorial do órgão jornalístico” (ibid.: 146). O que propomos, então, é uma análise discursiva de linguagem a fim de entender as articulações do texto com o meio no qual ele é produzido.

1. A respeito da mega-instância de produção

Chamamos de mega-instância de produção o conglomerado jornalístico que preside a produção da informação midiática, representado por várias “vozes” que têm um projeto comum e representam a ideologia do organismo de informação (cf. Charaudeau, op.cit.: 73). Hoje, a instância midiática institui-se, segundo Charaudeau, num “meganarrador”3 incluindo as fontes de informação. Essa característica da instância de produção faz com que seja cada vez mais difícil identificar-se o responsável pela informação selecionada e tratada para ser transmitida a uma determinada instância-alvo de recepção, sobre a qual o suporte de transmissão tem informações imprecisas de valores ético-sociais e afetivo-sociais (ibid.: 79), mas que pretende informar, como também seduzir e conquistar. É interessante verificar que é, segundo Marques de Melo (2003), através da seleção dos fatos, definida, por ele, como sendo a “ótica através da qual a empresa jornalística vê o mundo”, que a instância de produção constrói sua linha editorial ao decidir privilegiar “certos assuntos, destacando determinados personagens, obscurecendo alguns e ainda omitindo diversos” (ibid.: 75).

A fim de verificar, num primeiro momento, como se materializam na linguagem os conceitos propostos por Marcondes Filho, analisou-se o discurso da editora Abril, em seu vídeo institucional de apresentação do grupo, disponível na internet4, cujas partes representativas foram transcritas neste artigo. Tratando-se de um discurso de natureza oratória, ou seja, de um discurso publicitário previamente construído para ser lido, não encontramos dificuldades de transcrição quando da passagem do texto oral para o texto escrito. Em seu discurso, a editora define a revista Veja, veículo de informação objeto deste artigo, como sendo:

(...) a maior e mais influente revista do Brasil e a quarta revista semanal de informação no mundo / com sua competência jornalística e credibilidade / Veja vem exercendo um papel importante na historia do país desde que foi lançada

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em 1968 / Veja existe para ajudar os leitores a entender melhor o mundo em que vivemos... 5

No início do vídeo, o grupo Abril é, também, definido como sendo “um dos

maiores e mais influentes grupos de comunicação da América Latina” porque atento “ao como, quando e onde você consome informação”.

Observamos que, no próprio discurso da editora, o interesse mercadológico, do qual fala Marcondes Filho, se faz presente pela necessidade, não apenas de informar, como, também, de satisfazer os desejos e anseios dos leitores-consumidores de informação. A editora informa que sua razão de existência é a de ajudá-los a entender, ou seja, ajudá-los a construir sentido a respeito do mundo que os rodeiam. Ora, construir sentido de acordo com que escala de valores, a do potencial leitor ou a do veículo de informação? A natureza hipotética do leitor-receptor acaba respondendo, em parte, à questão.

Não dá para negar a força do grupo Abril, o poder de influência da revista Veja e de formação de opinião, legitimado pelo próprio discurso do grupo como argumento comprovador de qualidade. Mais recentemente, citamos, apenas a título de exemplo, o papel ativo da revista Veja nas acusações e nos processos de investigação feitos contra diversas personalidades da política nacional.

Ao ligar a revista Veja à história do país, o suporte de informação passa, também, a ser um veículo de reprodução parcial da realidade, de grupos políticos de maior poder e, segundo Marcondes Filho (op.cit.: 12), geralmente, de uma minoria, em detrimento da maioria. A esse respeito, explicitando a problemática levantada pela pauta6, as fontes e o copidesque7, Marques de Melo (op.cit.) também afirma que

os grandes jornais e outros veículos jornalísticos geralmente estruturam sua cobertura no sentido de legitimar os núcleos de poder. Dá-se cobertura à Presidência da República, ao Congresso Nacional e às Câmaras Estaduais e Municipais; aos Municípios s [sic] Secretárias de Estado; aos tribunais e instâncias judiciárias; às associações das classes produtoras, etc. O fluxo noticioso rege-se pela atuação das instituições hegemônicas e marginaliza os núcleos de arregimentação e mobilização comunitária. Tais entidades, evidentemente mais próximas da vivência dos leitores, ficam excluídas do fluxo noticioso, passando a figurar apenas quando surgem problemas de grande repercussão (greves, acidentes, catástrofe). Predominando uma cobertura dessa natureza, inevitavelmente o jornalismo brasileiro, em especial aquele que se difunde através da imprensa, assume um caráter elitista tratando predominantemente dos assuntos que interessam a uma minoria, e deixando de lado as questões que afetam o dia-a-dia da população (ibid.: 81).

Atuar no jornalismo acaba sendo, pela própria natureza da máquina midiática

(Charaudeau, op.cit.: 125), uma opção ideológica, porque, em nome do direito de informação dos cidadãos, setores particulares, que chamamos de mídia, definem quem vai falar, “o que vai sair, como, com que destaque e com que favoritismo” (ibid.: 34).

Reiterando essa idéia, no vídeo de apresentação institucional, o grupo afirma que “o problema não é ter acesso à informação, mas saber que informação vale a pena”. Ora, vale a pena por que e para quem? Verifica-se, também, que o discurso dogmático, do qual fala Marcondes Filho (op.cit.: 14), ao prometer a verdade, a seriedade e objetividade, se faz presente na fala do Grupo:

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(...) integridade / excelência no tratamento da informação / valorização das pessoas / pioneirismo são as bases que orientam as diversas empresas que formam o grupo Abril / o grupo se empenha em contribuir para a difusão da informação de qualidade / da cultura / da educação e do entretenimento / é por isso que a historia do Grupo Abril se confunde com a nossa história e hoje / na era da comunicação / ele se faz ainda mais presente... 8

Mais adiante, o discurso de foro mercadológico continua, afirmando ter produtos:

(...) para todas as idades / um leque de opções para todos os gostos / e se a procura é por notícias e entendimento dos fatos cotidiano suas revistas apresentam opiniões bem fundamentadas / obtidas por meio das mais confiáveis fontes / entre essas publicações está a revista Veja / qualquer que seja o interesse tem sempre uma revista Abril para contemplá-lo...9

Perante o argumento de que se “dá ao publico o que ele quer” estão “as formas

monopolistas de ocupação do mercado que liquidam amplamente com qualquer aspiração à soberania do consumidor” (Marcondes Filho, op.cit.: 35). O discurso é, de fato, questionável porque sugere uma “liberdade de escolha, sem dá-la” efetivamente, ou seja, dito de outra forma, o que o público quer seria, na realidade, “o que lhe foi sugerido querer” (ibid.: 14-15). Sendo assim, a orientação do discurso do grupo Abril para o “gosto do público” deve ser entendida como uma técnica de marketing

jornalístico com nítidos objetivos de sedução e manipulação. Do ponto de vista histórico, é interessante observar que o primeiro lançamento

da ainda futura editora foi, em 1950, a adaptação brasileira das histórias em quadrinhos do Pato Donald, uma publicação tradicional norte-americana dirigida a crianças10. O grupo Abril surge, de fato, em 1968, em plena ditadura militar, regime que teve, direto ou indiretamente, o apoio dos Estados Unidos. Naquele momento, o governo norte- americano encontrava-se preocupado com a não divulgação de ideais comunistas na América Latina. O grupo também criou a MTV Brasil e, hoje, do ponto de vista econômico, muitos de seus acionistas são empresas norte-americanas, como a Falcon

Cable, a ABC Capital Cities, a Hearst Corporation e o Chase Manhattan Bank, citando apenas algumas, principalmente envolvidas no projeto de televisão por assinatura, a TVA

11. Pensamos que essa rápida contextualização histórica e social da revista Veja na

realidade nacional e a análise do discurso de apresentação institucional do grupo Abril, ao qual ela pertence, torna mais evidente a lógica mercadológica de qualquer conglomerado editorial, seu interesse financeiro, suas influências políticas e seu decorrente poder de formação de opiniões. A tomada de consciência dessas articulações deve sensibilizar o leitor a fim de torná-lo mais atento, na leitura de qualquer fato noticioso, a questões como: quem fala, para quem, sobre o quê e para quê.

2. Da mega-instância à notícia

A notícia publicada na revista Veja12, do dia 12 de Setembro de 2007, trata de

ataques cibernéticos vindos da China aos computadores do Departamento de Defesa Americana e de alguns países europeus. A República Popular de China, o país mais povoado do mundo é, desde 2007, a 4ª potência econômica mundial13. Por ser um país

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de tradição comunista, com estado socialista de mercado, a China nunca foi vista, ao longo da história, com “bons olhos” por parte dos governos estadunidenses, de tradição liberal e capitalista.

De início, se considerarmos os parceiros econômicos (verificados mais acima) e decorrentes possíveis influências políticas da Veja, observamos poder existir diferenças ideológicas entre a linha editorial da revista e as convicções políticas chinesas, relembrando velhas dicotomias: ocidente versus oriente, capitalismo versus comunismo:

A GUERRA POR OUTROS MEIOS - Ataques cibernéticos da China dão idéia de como os conflitos serão travados daqui em diante.

Veja , n° 36, 12 setembro 2007. O título e o lead da notícia fazem apelo a um saber de crença (Charaudeau,

op.cit.: 45), a um imaginário de conflito, como querendo introduzir uma nova preocupação no mundo do receptor. Monta-se a dialética de atemorização e

tranqüilização, a encenação dramatizada da notícia e é por meio do efeito de pregnância

14 (antigos conflitos) que a saliência15 (novas formas de conflitos - ataques

cibernético) adquire sentido (cf. ibid.: 100). O jornalista inicia seu discurso informando que o Pentágono foi vítima de

invasões por parte de centros militares da China, e não de simples hacker aventureiros, ou seja, havendo confirmação da origem das invasões:

O Pentágono em Washington, onde funciona o Departamento de Defesa americano, é um dos prédios mais bem guardado do mundo, inclusive contra ataques cibernéticos. Apesar disso, o serviço de inteligência do órgão não é capaz de evitar invasões a seus computadores. A mais recente delas veio a público há três meses, quando um programa malicioso – conhecido como cavalo-de-tróia – foi detectado no sistema de e-mail do gabinete do secretário de Defesa, Robert Gates. Na semana passada, revelou-se que o ataque partiu não de simples hacker em busca de aventura, mas de centros militares da China.

Veja , n° 36, 12 setembro 2007.

No entanto, observa-se que o verbo “revelou-se”, com sujeito indeterminado, não permite, por parte do leitor, a identificação da fonte de informação a respeito dos supostos ataques. Fica-se, na realidade, sem definição sobre quem procedeu à investigação, sobre a origem e a natureza da revelação dos fatos relatados. A seguir, o jornalista informa que:

(...) o comando militar recebeu a notícia com apreensão. Em maio, foram descobertos cavalos-de-tróia nos computadores da chanceler alemã Ângela Merkel e de seus ministros. Militares alemães suspeitam que os ataques vieram da China.

Veja , n° 36, 12 setembro 2007.

Por um lado, o jornalista introduz uma avaliação atribuída a uma entidade-fonte

coletiva (cf. ibid.: 149), ou seja, vaga (militares alemães). Por outro lado, ao relatar que militares alemães “suspeitam”, ou seja, não dispõem de certezas sobre a origem dos

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ataques, perguntamo-nos qual seria o valor de uso, a matéria-prima informação ou o valor de verdade (cf. ibid.: 25) dessa informação? Apenas o caráter de tecnicidade da fonte “militares alemães” produz certo efeito de verdade (cf. ibid.: 48), de validade e de seriedade, considerando a natureza conflituosa da informação relatada. Mais adiante, o jornalista relata também que:

(...) o serviço de inteligência da Inglaterra repetidas vezes encontrou programas maliciosos nos computadores do governo. Origem do ataques: China.

Veja , n° 36, 12 setembro 2007.

O jornalista concluiu que a origem dos ataques é a China, apesar das incertezas e sem que fique clara, para o leitor atento, a identificação da fonte informadora sobre essa última avaliação. Observa-se que a enunciação não dispõe de sujeito, nem de predicado, ficando o leitor sem saber quem validou a origem dos ataques: o Pentágono, o serviço de inteligência americano, o governo inglês, os militares alemães ou outra fonte informadora ainda desconhecida. Verifica-se, também, uma indefinição na escolha lexical, no relato dos fatos, entre as palavras “ataques”, “invasões”, “programas maliciosos” e “cavalos-de-tróia”; seriam eles todos da mesma natureza?

O jornalista prossegue afirmando que toda essa situação constitui uma prova suficiente, segundo declaração de fontes especialistas nessas questões, para afirmar que o exército chinês teria adotado os ataques cibernéticos como estratégia militar:

Para os militares e especialistas em segurança dos três países vítimas de programas maliciosos, a invasão do Pentágono é mais uma prova de que o Exército Chinês adotou os ataques a redes de computadores de governos como estratégia militar.

Veja , n° 36, 12 setembro 2007.

Nesse trecho, o jornalista recorre à voz de terceiros (“Para os militares e

especialistas em segurança dos três países”), uma fonte coletiva, permitindo-lhe certo distanciamento e um grau baixo de engajamento (cf. ibid: 54) em relação à enunciação. Também, ao tratar-se de um enunciador genérico (Maingueneau, 1998, op.cit.: 124), o caráter literal da fala acaba perdendo-se, explicando a ausência de marcas tipográficas. Mais adiante, o discurso de atemorização continua, atingindo seu ápice no seguinte trecho da notícia:

Em caso de guerra, ataques cibernéticos seriam empreendidos, por exemplo, para interromper o fornecimento de energia elétrica em grandes áreas. Segundo o Pentágono, num eventual conflito com os Estados Unidos, táticas como essas, destinadas a tumultuar as ações do inimigo, compensariam em grandes em grande parte a inferioridade bélica chinesa frente ao poderio americano.

Veja , n° 36, 12 setembro 2007.

O jornalista recorre, novamente, à voz do outro (“o Pentágono”), enunciador-

genérico, mas de autoridade, produzindo um o efeito de verdade e de credibilidade em relação ao fato relatado. A fala (não-literal) é modalizada com o emprego do futuro do

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pretérito (seriam e compensariam), colocando a enunciação na esfera da suposição e não da certeza.

O jornalista prossegue seu relato qualificando, negativamente, a postura de governo chinês, sem que apareça, de forma clara, o autor dessa última avaliação: ele, jornalista “enunciador” do discurso, ou as fontes citadas no relato:

O governo chinês tem adotado uma postura dúbia diante das suspeitas de que seu Exército vem espionando computadores em outros países. Ao governo alemão, as autoridades chinesas prometeram tomar providência para evitar novos ataques. Na semana passada, os chineses negaram o envolvimento na invasão dos computadores do Pentágono e afirmaram que as acusações americanas eram fruto de “mentalidade de Guerra Fria”. Os Chineses negam as invasões cibernéticas, mas não escondem que, como muitos outros países, mantêm programas que visam aos usos de computadores em ações militares.

Veja , n° 36, 12 setembro 2007.

O jornalista relata os ditos, hierarquizando os discursos alheios, usando-se da voz do “governo chinês”, em seguida, da das “autoridades chinesas” para chegar à dos “chineses”, produzindo um efeito de generalização e, de certa maneira, de depreciação das fontes de informação, ao passar do discurso do poder para o discurso de populares (cf. Marcuschi, op.cit.: 152). A ação dos verbos introdutores do discurso dessas diversas instâncias é também indicadora de “retomadas opositivas, organizadores de aspectos conflituosos e negativos” (loc. cit.): “as autoridades chinesas prometeram”, “os chineses negaram”, “os chineses negam”.

O jornalista faz uso da voz do outro e resgata uma informação existente no inconsciente coletivo do leitor-receptor, no caso, “Guerra Fria”, confirmando, conforme explica Peter Brückner (apud. Marcondes Filho, 1989: 15), que mediante

o emprego de posições já pré-formadas [...], isto é, dos elementos existentes de uma estrutura cognitiva, procura-se, por meio da técnica de difusão de notícias, primeiro, que essas posições se reforcem, e, segundo criar-lhes um clima social apropriado.

O discurso parece reforçar idéias pré-concebidas qualificando, inevitavelmente,

a China como sendo um país que “tem ou terá” posições antagônicas aos interesses do mundo ocidental, aos interesses da sociedade de capitais, ou seja, muito provavelmente, aos interesses do potencial leitor da Veja.

Entretanto, no sentido de completar a dialética de atemorização -

tranqüilização, com o intuito de “garantir a passividade, a acomodação e a apatia em seus receptores” (Marcondes Filho, 1989: 15), o jornalista apazigua o leitor, em dois momentos do discurso, ao afirmar que, de certa maneira, o suposto inimigo é militarmente inferior (trecho citado acima) e afirmando, no término da notícia, que

(...) o general James Cartwrignht, do alto-comando militar americano, avaliou que uma invasão cibernética em larga escala aos Estados Unidos não chegaria a causar uma catástrofe, mas teria um enorme impacto na população. “Do ponto de vista psicológico, seria como um ataque de verdade”, disse ele.

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Veja , n° 36, 12 setembro 2007.

Dificultada a construção de sentido a respeito da verdadeira natureza de um ataque cibernético (que não chegará a transformar-se em catástrofe, mas que terá um impacto do ponto de visto psicológico semelhante ao de um ataque de verdade), a participação dos receptores não é possibilitada, confirmando-se a ideologia do não-

conflito (cf. ibid.: 16), construída através da linguagem. O jornalista termina seu discurso com a fala citada, em discurso direto, do

general James Cartwrignht, fechando a notícia com uma “citação de autoridade” atribuindo-lhe um caráter de autenticidade e produzindo, de novo, um efeito de verdade e seriedade. Tal procedimento permite, novamente, ao jornalista um grau mínimo de

engajamento em relação ao dito relatado. Observada a dialética de atemorização e tranqüilização e pensando no possível

valor de uso e valor de troca (cf. ibid.: 25) dessa notícia, perguntamo-nos se é possível afirmar-se haver, na notícia ora analisada, um real valor informativo? Por que deveria estar o leitor da Veja preocupado com a suspeita de eventuais “invasões” chinesas aos computadores do governo americano ou europeu? A esse respeito, segundo Marcondes Filho, uma informação pura e simples não é mercadoria, tornando-se necessário transformá-la em notícia, em show noticioso (a guerra cibernética), ou seja, é necessária a “produção de uma manifestação de valor de uso” (Haug, 1972 apud. Marcondes Filho, 1989: 29) a fim de atingir-se o valor de troca, objetivo de marketing da revista. É a compra do produto, da notícia, que a mantém viva, financeira e ideologicamente, no mercado de consumo. A respeito do tratamento e das formas de encobrimento e falseamento de uma notícia, Marcondes Filho (ibid.: 39) afirma que

o tratamento que sofre a notícia antes de chegar ao receptor é o principal modo de se operar a chamada “manipulação” jornalística. Entre a ocorrência de um fato social relevante, o acontecimento “objetivo” e sua apresentação ao publico surgem diversas formas de intervenção que alteram sensivelmente o caráter e, principalmente, o efeito dessa noticia. É nessa altura que se opera a adaptação ideológica, a estruturação da informação com fins de valorização e interesse de classe.

No presente estudo sobre o discurso da notícia A guerra por outros meios

veiculada na revista Veja, em setembro de 2007, e analisada praticamente na sua integralidade, observa-se que a retomada, por parte do jornalista, de diversas “vozes” entrecruzando-se num discurso maniqueísta, acaba fazendo apelo a diferentes saberes

de crença, cujo efeito de verdade e credibilidade apenas se garantem pela tecnicidade das fontes evocadas.

3. Algumas considerações finais

Ao analisar a notícia publicada na revista Veja, verificamos que há reprodução de relações de dominação, de lutas políticas “enraizadas no psiquismo dos indivíduos na sociedade capitalista” (Marcondes Filho, op.cit.: 40). O jornalista da Veja, ao construir seu show noticioso, construiu um hipotético futuro cenário de conflitos internacionais e acabou particularizando o possível futuro inimigo do mundo ocidental. A China, país com o qual, por coincidência ou não, o atual governo brasileiro vem consolidando e

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ampliando a parceria comercial, passa a ser, um possível “mal social”, um bode

expiatório da sociedade capitalista como método de disseminação de desconfiança e de quebra de solidariedade, pois, segundo Marcondes Filho, “jogam-se as nações umas contra as outras a fim de diluir laços que poderiam torná-las mais fortes diante do monopólio das atuais potências mundiais” (ibid.: 44).

Não queremos aqui dizer que a produção ideológica seja o objetivo primeiro de uma editora, de uma revista ou de um jornal, mas ele é certamente parte do princípio de maximização dos lucros. A assimilação da ideologia é inevitável, está em permanente construção e a imprensa é um dos seus poderosos artifício (cf. ibid.: 21). Ela é um veículo formador de opinião e de comportamentos: “a longo prazo, os jornais – todos – por defenderem interesses particularistas e setorizados, influem em realidade na orientação política da sociedade” (ibid.: 35).

Torna-se difícil acreditar numa hipotética neutralidade de informação midiática, pois as técnicas de construção de uma notícia que, como verificamos, passam na e pela linguagem, podem ter nítidos efeitos políticos e ideológicos, ainda que em maior ou menor grau, em função da natureza dos fatos relatados. No entanto, é certo que todo discurso informativo passa, inevitavelmente, pelo filtro da experiência social, cultural, política e civilizacional das fontes de informação, do veículo de informação e do jornalista que seleciona, avalia, comenta, interpreta e revela a realidade de acordo com a visão de mundo da linha editorial da revista para a qual ele trabalha. Parece-nos que, em plena era da informação e comunicação, torna-se indispensável a formação de um leitor crítico e consciente dessas articulações.

Referências CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006. CORRÊA, R. A guerra por outros meios. São Paulo,Veja 2007 n° 36, Ano 40, p.78. MAINGUENEAU, D. Analyser les textes de communicação. Paris: Dunod, 1998. MARCONDES FILHO, C. O capital da notícia. 2° ed. São Paulo: Editora Ática, 1989. MARCUSCHI, L. A. Fenômenos da linguagem, reflexões semânticas e discursivas. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007. MARQUES DE MELO, J. Jornalismo opinativo. 3° ed. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003.

NOTAS 1 Este artigo é fruto de um trabalho elaborado no programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa da PUC de São Paulo, sob a orientação da Professora Doutora Ana Rosa Ferreira Dias. 2 O texto integral da notícia encontra-se na parte final deste artigo. 3 Termo tomado de empréstimo a Benoît Grevisse por Charaudeau (p. 73). 4 Acessar a página web de apresentação do Grupo Abril no site www.abril.com.br/br/home/.

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1111a a a a JIEDJIEDJIEDJIED – Jornada Internacional de Estudos do Discurso 27, 28 e 29 de março de 2008

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5 Transcrição de parte do texto do vídeo institucional disponível no site www.abril.com.br/br/home/ - acessado em 27/11/2007. 6 Marques de Melo define a pauta com sendo o roteiro destinado à pré-seleção das informações a serem publicadas (p. 81). 7 Segundo Marques de Melo, o copidesque cumpre o papel de microfiltro visto que cada matéria passa por uma verificação, do ponto de vista da linguagem, antes de ser difundida (p. 84). 8 Transcrição de parte do texto do vídeo institucional disponível no site www.abril.com.br/br/home/ - acessado em 27/11/2007. 9 Transcrição de parte do texto do vídeo institucional disponível no site www.abril.com.br/br/home/ - acessado em 27/11/2007. 10Informações veiculadas no vídeo de apresentação institucional do Grupo Abril no site www.abril.com.br/br/home/ - acessado em 27/11/2007. 11 www. terra.com.br/istoe/economia/145429.htm – informação acessada em 27/11/2007. 12 Notícia que foi divulgada na revista Veja em 12 de Setembro de 2007, ano 40, n° 36: 78. 13 Fonte: www.lexpress.to/archives/223/. 14 Segundo Charaudeau (2006), é pela pregnância que a saliência adquire sentido, se diversifica e se torna, de algum modo, uma nova saliência (p. 100). 15 Charaudeau (2006) define a saliência como sendo um efeito que remete a uma operação perceptivo-cognitiva que faz com que seja o sujeito quem impõe seu olhar no mundo, fazendo-o passar, segundo um jogo de acaso e de necessidade, de um estado de determinismo absoluto a um estado de movimento aleatório, de um estado de não acontecimento ao de acontecimento (p. 100).