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TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO PRIVADO: ANÁLISE DOS SEUS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS À LUZ DOS MODELOS DE ESTADO TRANSFORMACIONES DEL DERECHO PRIVADO: ANALISIS DE SUS PRESUPUESTOS TEÓRICOS A LA LUZ DE LOS MODELOS DE ESTADO Francisco Emilio Baleotti Maria Celia Nogueira Pinto e Borgo RESUMO Analisa as transformações sofridas no âmbito do Direito Privado e, de modo geral, das relações interprivadas a partir dos modelos estatais vigentes ao longo da trajetória do Estado Moderno. Apresenta, a partir de análise sintética, as principais características do Estado Liberal de Direito, marcado pela atuação abstencionista do Estado e calcado na liberdade e igualdade formal dos indivíduos. Passa em seguida pelo Estado Social de Direito, marcado pela atuação intervencionista do Estado nas relações interprivadas, que resultou no aumento quantitativo e qualitativo dos limites estatais. Por fim, observa as características do Estado Democrático de Direito, como paradigma superador dos modelos estatais anteriores, e que busca o equilíbrio entre Estado e indivíduo, sempre de acordo com os valores e propósitos estampados na Constituição de 1988. Em seguida, passa-se à análise de pressupostos concretos do redimensionamento do Direito Privado, buscando demonstrar a necessidade de releitura de seus institutos e princípios à luz da ideologia decorrente do regime democrático, a fim de permitir o contínuo aprimoramento do Estado Democrático de Direito. PALAVRAS-CHAVES: Estado Liberal de Direito; Estado Social de Direito; Estado Democrático de Direito; Direito Privado; intervencionismo; relações interprivadas; constitucionalização. RESUMEN Analiza lãs transofrmaciones sufridas en âmbito del Derecho Privado y, en general, de lãs relaciones interprivadas a partir de los modelos estatales durante la trajectoria del Estado Moderno. Presenta, a partir de analisis sintética, las principales características del Estado Liberal de Derecho, marcado por la actuación abstencionista del Estado y firme em la liberdad y igualdad formal de los indivíduos. Va, em seguida, ao Estado Social de Derecho, marcado por la actuación intervencionista del Estado em las relaciones interprivadas, que resultou em el crescimiento quantitativo y qualitativo de los limites estatales. Por fin, observa las características del Estado Democratico de Derecho, como paradigma superador de los modelos anteriores, y que busca el equilíbrio entre Estado y indivíduo, siempre de acordo con los valores y propósitos estampados en la Constitución de 1988. En seguida, analiza los presupuestos concretos de redimensión del Derecho Privado, buscando demonstrar la necesidad de relectura de sus institutos y princípios a la luz de la ideología decurriente del régimen democrático, con fin de permitir el continuado aprimoramiento del Estado Democrático de Derecho. PALAVRAS-CLAVE: Estado Liberal de Derecho; Estado Social de Derecho; Estado Democratico de Derecho; Derecho Privado; intervencionismo; relaciones interprivadas; constitucionalización. INTRODUÇÃO O Direito reflete as características dos paradigmas estatais porquanto impregnado pelos valores, * Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 8091

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TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO PRIVADO: ANÁLISE DOS SEUS PRESSUPOSTOSTEÓRICOS À LUZ DOS MODELOS DE ESTADO

TRANSFORMACIONES DEL DERECHO PRIVADO: ANALISIS DE SUS PRESUPUESTOSTEÓRICOS A LA LUZ DE LOS MODELOS DE ESTADO

Francisco Emilio BaleottiMaria Celia Nogueira Pinto e Borgo

RESUMOAnalisa as transformações sofridas no âmbito do Direito Privado e, de modo geral, das relaçõesinterprivadas a partir dos modelos estatais vigentes ao longo da trajetória do Estado Moderno. Apresenta, apartir de análise sintética, as principais características do Estado Liberal de Direito, marcado pela atuaçãoabstencionista do Estado e calcado na liberdade e igualdade formal dos indivíduos. Passa em seguida peloEstado Social de Direito, marcado pela atuação intervencionista do Estado nas relações interprivadas, queresultou no aumento quantitativo e qualitativo dos limites estatais. Por fim, observa as características doEstado Democrático de Direito, como paradigma superador dos modelos estatais anteriores, e que busca oequilíbrio entre Estado e indivíduo, sempre de acordo com os valores e propósitos estampados naConstituição de 1988. Em seguida, passa-se à análise de pressupostos concretos do redimensionamento doDireito Privado, buscando demonstrar a necessidade de releitura de seus institutos e princípios à luz daideologia decorrente do regime democrático, a fim de permitir o contínuo aprimoramento do EstadoDemocrático de Direito.PALAVRAS-CHAVES: Estado Liberal de Direito; Estado Social de Direito; Estado Democrático deDireito; Direito Privado; intervencionismo; relações interprivadas; constitucionalização.

RESUMENAnaliza lãs transofrmaciones sufridas en âmbito del Derecho Privado y, en general, de lãs relacionesinterprivadas a partir de los modelos estatales durante la trajectoria del Estado Moderno. Presenta, a partirde analisis sintética, las principales características del Estado Liberal de Derecho, marcado por la actuaciónabstencionista del Estado y firme em la liberdad y igualdad formal de los indivíduos. Va, em seguida, aoEstado Social de Derecho, marcado por la actuación intervencionista del Estado em las relacionesinterprivadas, que resultou em el crescimiento quantitativo y qualitativo de los limites estatales. Por fin,observa las características del Estado Democratico de Derecho, como paradigma superador de los modelosanteriores, y que busca el equilíbrio entre Estado y indivíduo, siempre de acordo con los valores ypropósitos estampados en la Constitución de 1988. En seguida, analiza los presupuestos concretos deredimensión del Derecho Privado, buscando demonstrar la necesidad de relectura de sus institutos yprincípios a la luz de la ideología decurriente del régimen democrático, con fin de permitir el continuadoaprimoramiento del Estado Democrático de Derecho.PALAVRAS-CLAVE: Estado Liberal de Derecho; Estado Social de Derecho; Estado Democratico deDerecho; Derecho Privado; intervencionismo; relaciones interprivadas; constitucionalización.

INTRODUÇÃO

O Direito reflete as características dos paradigmas estatais porquanto impregnado pelos valores,

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ideologia e aspirações almejados pelo Estado. A análise do fenômeno jurídico não pode prescindir daobservação de questões sociológicas, filosóficas, ideológicas e axiológicas em torno dos elementos queintegram o Direito.

No campo do Direito Privado acontece da mesma forma, de sorte que este ramo também sofreinfluência direta de acontecimentos políticos e sociais de um determinado momento histórico.

Assim, este estudo pretende analisar as transformações havidas na seara jurídica privatística, apartir das características da atuação estatal no decorrer da história do Estado.

Para isso, parte-se da análise das principais características dos paradigmas estatais e do modo deconformação e desenvolvimento das relações interprivadas inicialmente no Estado Liberal de Direito,passando em seguida ao Estado Social de Direito, culminando com o Estado Democrático de Direito. Comeste enfoque pretende-se demonstrar a importância dos modelos estatais sobre as relações interprivadas,especialmente no que tange à sua regulação jurídica.

Estabelecidas esses pressupostos teóricos, parte-se à análise de fatores que contribuíramsignificativamente para as transformações ocorridas no campo do Direito Privado, abrindo caminho ànecessária renovação do processo de compreensão dos seus princípios e institutos. Deste modo, busca-secontextualizar o redimensionamento do Direito Privado a partir da maior ingerência do Estado na esferainterprivada, característica marcante do Estado Social de Direito em oposição à atuação abstencionista doEstado Liberal de Direito, marcado pela máxima laissez faire, laissez passer. Em seguida, procura-sedemonstrar a necessidade de releitura da autonomia do indivíduo - na condição de princípio supremo doDireito Privado – havida em razão da superação dos modelos estatais anteriores pelo Estado Democrático deDireito.

Importante destacar a importância da construção e afirmação democrática neste processo deredimensionamento do Direito Privado, pois é o Estado Democrático de Direito com sua tábua de valores eprincípios que deve dar – e dá – o tom de um novo Direito Privado, que corresponda aos anseios que oregime democrátio busca concretizar na sociedade.

Por essa razão não se pode deixar de abordar o tema da vinculação dos particulares aos direitosfundamentais, tampouco o status do princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição de 1988,como base de construção e desenvolvimento das relações interprivadas. Por fim, analisa-se o fenômeno daconstitucionalização do Direito Privado – em especial do Direito Civil, na condição de representantemáximo daquele ramo – intimamente ligado à necessidade de penetração, no campo jurídico, dos valores eprincípios do Estado Democrático de Direito e que tem em seu centro o princípio da dignidade da pessoahumana.

Deste modo, pensa-se fazer uma interessante análise a respeito do Direito Privado e suastransformações em razão dos valores apregoados pelos Estado Democrático de Direito em superação aosparadigmas que o antecederam.

1 O Estado Liberal de Direito

O Estado Liberal surgiu da crise do Estado Absolutista e da necessidade de desprendimento de seus

princípios, que tolhiam a liberdade do indivíduo e, por conseguinte, também das instituições que ficavam à

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mercê do governante.Assim, desde o século XVIII – período em que foi deflagrada a Revolução Francesa, que lhe deu

origem – até o século XX, com o advento do Estado Social e das constituições pragmáticas, o mundo passoupor consideráveis mudanças em busca no campo social, econômico e também normativo.

Nesse contexto a Revolução Francesa tem inegável importância e suas conquistas são irrevogáveis.Tratou-se de revolução burguesa em oposição ao Ancien Régime, e cuja ideologia se apresentava em trêspilares distintos e complementares: liberdade, igualdade e fraternidade.

No campo político a Revolução Francesa foi responsável não apenas pela quebra das instituiçõesabsolutistas, mas principalmente da universalização do princípio político. Para o autor, buscou-se construir“...menos a polis deste ou daquele povo, mas a de todo o gênero humano; polis cujos alicerces, postos queainda abstratos, não foram outros senão a liberdade, a igualdade e a fraternidade” (BONAVIDES, 2004, p.30). A burguesia passou, então, de classe dominada à classe dominante.

A aspiração da classe burguesa àqueles ideais se justificava porque no contexto absolutista atéentão vigente o Estado – detentor do poder – era visto como algoz dos indivíduos, verdadeiro inimigo daliberdade individual, razão pela qual qualquer restrição estatal ao indivíduo era considerada nefasta.

Opõe-se o individualismo, assim, ao estatismo e à intervenção do Estado. De acordo com UbirajaraMach de Oliveira (1997, p. 48) a sociedade não se considerava como fim, uma vez que não se consideravaexistir um fim superior aos indivíduos que a integravam. Eram eles a única fonte das normas jurídicas,como também a causa final de toda atividade das instituições jurídicas, especialmente do Estado.

Exacerbava-se sobremodo o homem que este passou a ser considerado o centro, fonte e fim de todoo sistema de Direito (antropocentrismo jurídico), impulsionando, assim, a adoção de medidas quegarantissem a sua intangibilidade pelo Estado.

Uma das técnicas do Estado Liberal para isso foi a tripartição (das funções) do poder, cujaformulação mais completa se atribui a Montesquieu. No cenário do liberalismo, a manutenção da liberdadesignificava também a manutenção do poder político pela burguesia, pois limitava a soberania, através daidéia de que o poder detém o próprio poder. O Estado organizaria as funções do poder em Executivo,Legislativo e Judiciário, cada qual com atividades distintas, funcionando separadamente, mas contendo-semutuamente.

No campo econômico-social, ao trazer à luz os seus ideais, a Revolução Francesa rompeu com osistema até então vigente para privilegiar a livre circulação de bens, dando início ao mercantilismocapitalista. Os reflexos econômicos e sociais do novo modelo de Estado que nascia desencadearam umasérie de modificações no sistema jurídico, que para reger a nova sociedade, passou a considerar aquelesideais em toda produção normativa. Era preciso viabilizar e preservar a livre circulação de bens(propriedade privada) e a limitação do poder do Estado.

Segundo Dalmo de Abreu Dallari (1998, p. 275): Essa foi a raiz individualista do Estado liberal. Ao mesmo tempo, a burguesiaenriquecida, que já dispunha do poder econômico, preconizada a intervençãomínima do Estado na vida social, considerando a liberdade contratual um direitonatural dos indivíduos. Sob influência do jusnaturalismo, outros direitos naturais

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foram sendo proclamados, sobretudo no âmbito econômico, como a propriedade,visando impedir qualquer interferência do Estado no sentido de criar algumcondicionamento à manutenção e ao uso dos bens, ou alguma restrição aos termosde qualquer contrato.

Dessa forma, o ordenamento jurídico torna-se um reflexo daquelas idéias liberalistas, dirigindo-seo Direito para o aperfeiçoamento dos indivíduos e constituindo-se em instrumento de realização dos seusinteresses.

Assim, o princípio da legalidade constituiu-se meio específico de garantia da liberdade individual,impedindo o Estado de interferir na esfera privada, salvo quando expressamente autorizado por lei, e semprenos limites e modo impostos por ela. É a transferência do império do monarca para o império da lei. A partirdaí (do princípio da legalidade) o Estado passa a ser “Estado de Direito”. A ideologia liberal implantada apartir da Revolução Francesa foi decisiva para essa conquista, pois até então o Estado se achava entregue aoregime monárquico absolutista.

Conforme Luiz Guilherme Marinoni (2007, p. 23):

O Estado Liberal de Direito, diante da necessidade de frear os desmandos do regimeque lhe antecedeu, erigiu o princípio da legalidade como fundamento para a suaimposição. Esse princípio elevou a lei a um ato supremo, objetivando eliminar astradições jurídicas do absolutismo e do ancien régime. A administração e os juízes, apartir dele, ficariam impedidos de invocar qualquer direito ou razão pública que sechocasse com a lei.

Delamar José Volpato Dutra (2004, p. 68) aponta as características da juridificação do modelo

estatal:

O característico desta etapa de juridificação é que a Lex civilis incorporará comoregras positivas direitos subjetivos (rights) que podem ser alegados contra os atos dosoberano ou da soberania. [...]. Instaura-se o princípio da legalidade no sentido,agora, do império da lei, no qual a administração pública não pode agir nem contra,nem praeter, nem ultra legem. [...].

O melhor exemplo dos reflexos legislativos do Estado Liberal ainda é o Código Civil Francês, que

introduziu significativas mudanças no sistema jurídico da época e que, posteriormente, inspirou acodificação da maior parte dos países de tradição jurídica romana. Impregnadas pelos ideais revolucionáriosde liberdade, igualdade e fraternidade, suas normas afastavam tanto quanto possível a intervenção do Estadona esfera privada, limitando-o à regulação de conflitos eventualmente surgidos em decorrência da violaçãoda Lei ou então das cláusulas estipuladas pelas próprias partes no exercício de sua liberdade.

José Afonso da Silva (1999, p. 116-117) resume de modo bem objetivo as principais característicasdo Estado Liberal em três pilares básicos, a saber: a submissão ao império da Lei; a divisão das funções dopoder e o enunciado e garantia dos direitos individuais.[1] Ainda segundo o autor são essas também asgrandes conquistas do Estado Liberal e constituem postulados básicos do Estado de Direito.

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Assim, pois, o Estado Liberal – com o lema laissez faire, laissez passer - teve papel relevantíssimona estruturação do Direito Privado a partir do século XVIII, bem como dos institutos que o inspiraram.

2 O Estado Social de Direito

A igualdade formal pregada pelo liberalismo[2] resultou, com o passar do tempo, em gravesinjustiças sociais, uma vez que a exacerbação da autonomia da vontade dava ao indivíduo liberdadepraticamente absoluta para regular a esfera negocial segundo os seus interesses. Deste modo, sobrepujava-seo social em favor do privado, do individual.

Nesta mesma linha restou frustrada a busca pela fraternidade, na medida em que não há sociedadefraterna onde predominam injustiças sociais.

Estavam, pois, em declínio, os pilares do Estado Liberal.Após o fortalecimento da economia capitalista implantada no liberalismo e as duas grandes Guerras

Mundiais, impulsionadas também pelo fator econômico, o modelo liberal eminentemente abstencionista semostrou insuficiente para regular a sociedade que emergia. Paulatinamente se entrevia a necessidade desuperação daquele paradigma estatal por outro que se preocupasse com as novas questões econômicas esociais que se impunham.

Sobre o tema ensina Roberto Eros Grau (2005, p. 21-22):

Inicialmente as imperfeições do liberalismo, bem evidenciadas na passagem doséculo XIX para o século XX e nas primeiras décadas deste último, associadas àincapacidade de auto-regulação dos mercados, conduziram à atribuição de novasfunções ao Estado.À idealização de liberdade, igualdade e fraternidade se contrapôs a realidade dopoder econômico.

O enfrentamento dos novos contornos da sociedade e a busca pelo fortalecimento cada vez maior

da economia exigia, em contrapartida, a garantia de direitos fundamentais diferentes daqueles asseguradosno Estado Liberal.

As Constituições passaram a prever não apenas garantias fundamentais voltadas ao resguardo doindivíduo em relação ao Estado, senão também relativas à tutela da ordem econômica, social, e de questõescoletivas em geral, visando o alcance da liberdade, igualdade e fraternidades em sentido material. Exemplosempre citado é o da Constituição da República Federal Alemã que definia aquele Estado como democráticoe social.

Ascendeu, então, o Estado Social que, em outras palavras, realçou uma nova percepção daquelesmesmos valores almejados pela Revolução Francesa e que o Estado Liberal não foi capaz de concretizar,senão em sentido formal. O Estado passou a interferir naquelas esferas antes ignoradas pelo abstencionismoliberalismo, deixadas à mercê da auto-regulação pelos particulares e, assim, houve por bem delimitar opoder econômico e reconhecendo direitos sociais.

Importante atentar para o perigo de se compreender o Estado Social como redentor da sociedadedesgastada pelo excessivo abstencionismo estatal apregoado pelo liberalismo. Embora tivesse também esse

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propósito José Afonso da Silva (1999, p. 119) é preciso no sentido de que o Estado Social

Caracteriza-se no propósito de compatibilizar, em um mesmo sistema, anota ElíasDíaz, dois elementos: o capitalismo, como forma de produção, e a consecução dobem-estar social geral, servindo de base ao neocapitalismo típico do Welfare State.

Em termos sociológicos o Estado Social representou grande ganho no campo do trabalho através

de regulamentação legal daquilo que, até então, estava à mercê do mercado liberal e das desigualdades queele proporcionava. Segundo o autor “trata-se da constitucionalização de uma relação de poder social,ancorada numa estrutura de classes. Temos, nesta etapa, a limitação do tempo de trabalho, o direito ao lazer,o salário mínimo, etc” (DUTRA, 2004, p. 69).

Mesmo assim, o modelo de Estado Social falhou na medida em que, no intuito de solucionar osproblemas advindos da ideologia liberal, ampliou sobremaneira os limites de sua interferência em esferas dasociedade até então deixadas ao alvitre dos particulares que, em contrapartida, acabou por restringirdemasiadamente a liberdade individual. A consciência disso tornou cada vez mais forte o anseio por umnovo paradigma estatal capaz de encontrar o equilíbrio entre o capitalismo, a liberdade individual e aintervenção estatal. 3 Estado Democrático de Direito

Assim como o Estado Liberal de Direito teve o seu auge e declínio, assim também o Estado Socialde Direito foi superado por outro modelo estatal que melhor atendesse a sociedade contemporânea,transformada em razão de naturais movimentos econômicos, sociais, filosóficos e ideológicos eespecialmente políticos.

Questão importante a destacar diz respeito à insuficiência do Estado de Direito – seja assumindo aideologia liberal ou a social – para a concretização da democracia nascida com as revoluções burguesas, emespecial a francesa. A lição de José Joaquim Calmon de Passos (1988, p. 92) é segura ao afirmar que tanto ademocracia liberal como a democracia social transitaram entre extremos: de um lado, a dissociação entreEstado e economia e a exacerbação do individualismo; de outro, o Estado provedor que mostrou tambémsua face opressora. É o que aponta também Sérgio Alves Gomes (2008, p. 268):

Por vezes, o Estado que demonstrou preocupações com problemas sociais como osda pobreza e da miséria, exibiu uma face paternalista, enquanto a outra seencarregou de suprimir liberdades fundamentais de pensamento e de expressão dequem ousasse apresentar o menor sinal de discordância com a ideologia imposta porum partido único e pelas esferas governamentais. Em outras ocasiões, adotouatitudes ditatoriais, porém, revestidas de um discurso “desenvolvimentista” queafastava qualquer oposição ou crítica mediante violenta repressão. Tudo issoestimula a busca por um paradigma estatal capaz de superar as limitações egoísticase opressoras detectadas tanto no Estado Liberal quanto no Estado Social.

Percebeu-se a necessidade da implantação de novo paradigma estatal capaz de superar os anteriores

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sem, contudo, refutar as conquistas de cada um deles. Era preciso superar a partir do aprimoramento dasexperiências até então vivenciadas. Willis Santiago Guerra Filho (1999, p. 16-17) faz referência ao final daSegunda Guerra Mundial como sendo o marco histórico para essa tomada de consciência, na medida em queaquele momento evidenciou a falência do Estado de Direito, fosse ele Liberal ou qualquer outro modeloautoritário surgido como alternativa[3].

Assim, sem descurar da necessária democratização não apenas do Estado, mas também sociedade –como fez referência José Joaquim Calmon de Passos (1988, p. 92) – o Estado Democrático de Direitocomeçou a tomar forma. Diz-se assim porque o paradigma se acha em plena construção, num processocontínuo de aprimoramento e concretização dos valores inerentes ao modelo[4].

Feito este registro, convém analisar os elementos constitutivos do Estado Democrático de Direitoque, segundo Sérgio Alves Gomes (2008, p. 271-272), “[...] não é instituição desenvolvida por um únicopaís. Traz em si, [...], dois princípios de longa trajetória: o princípio democrático e o do Estado de Direito”,que seguramente podem ser considerados fundamentos do Estado contemporâneo. Entretanto, ao se referirao tema, José Afonso da Silva (1999, p. 123) faz a interessante observação:

A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unirformalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, naverdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos doselementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componenterevolucionário de transformação do status quo (grifo do autor).

Diante disso é possível concluir que o Estado Democrático de Direito se compromete com os

valores democráticos e a Lei é instrumento posto à concretização de cada um desses valores para atransformação real da sociedade. Bem por isso Sérgio Alves Gomes (2008, p. 269) que “este modelo estatalorienta-se por leis democraticamente elaboradas e não por ordens oriundas da vontade arbitrária de ummonarca”. Por essa razão José Afonso da Silva (1999, p. 125) se refere à “legalidade democrática”,esclarecendo que o paradigma “sujeita-se, como todo Estado de Direito, ao império da lei, mas da lei querealize o princípio da igualdade e da justiça não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização dascondições dos socialmente desiguais” (SILVA, 1999, p. 125).

Ademais, passam a fazer parte do conteúdo das Leis não apenas os direitos fundamentaisindividuais – conquistas de longo processo histórico – mas também aqueles de caráter transindividual detoda natureza (políticos, econômicos, sociais, ambientais), que igualmente constituem o núcleo dademocracia (GOMES, S., 2008, p. 270).

Em relação à experiência brasileira Willis Santiago Guerra Filho (2001, p. 129) afirma que

A mudança constitucional por que passou o Brasil em 1988 foi conseqüência de umaevolução dos fatos políticos, no sentido de superar o autoritarismo e arbítrio entãovigentes, rumo à democratização e ao pleno Estado de Direito.

Não obstante ter implantado o Estado Democrático de Direito (art. 1º), a Constituição de 1988

trouxe ao cenário brasileiro os princípios e aspirações do Estado Social. E muito embora se mantenha o

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lema de igualdade “perante a Lei” no art. 5º do texto constitucional de 1988 – que permite recorrer a noçãode igualdade formal -, nele mesmo se consagra como princípios fundamentais da República a cidadania, adignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, dentre outros (art. 1º). Domesmo modo, o art. 3º elenca como objetivos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, capazde garantir o desenvolvimento nacional, erradicar pobreza e marginalização e reduzir desigualdades sociais,promovendo o bem comum. Neste sentido, os arts. 6º e 7º da Constituição revelam o seu caráterintervencionista e social, preocupado – ao menos é assim que se deve entender – com a promoção daigualdade em sentido material (SARMENTO, 2003, p. 245).[5]

Pensa-se, deste modo, que o Estado Democrático de Direito buscado pela Constituição vigente éfruto das conquistas dos paradigmas estatais que lhe antecederam. Exatamente por isso não se pode negar oseu caráter social e regulador da ordem econômica e social, embora a sua compreensão exija leituradiferenciada, pelo viés da democracia e com papel transformador da sociedade (GOMES, S., 2008, p. 273).

Os princípios basilares do Estado Democrático de Direito, conforme se disse anteriormente, são ademocracia (art. 1º) e a legalidade (art. 5º, II). Entretanto, a concretização desses princípios depende dainteração de outros tantos, capazes de aumentar seu alcance (GUERRA FILHO, 2001, p. 132). De acordocom José Afonso da Silva (1999, p. 126) esses outros princípios e valores – além da legalidade edemocracia - podem ser resumidos nos seguintes: princípio da constitucionalidade; sistema de direitosfundamentais (títulos II, VII e VIII); princípio da justiça social (art. 170, caput e art. 193); princípio daigualdade (art. 5º, caput e I); princípio da divisão de poderes (art. 2º) e independência do juiz (art. 95);princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI a LXXXIII).

A esses princípios e valores eleitos pelo Estado Democrático de Direito e estampados – explícitaou implicitamente – na Constituição Federal de 1988, entende-se indispensável incluir o princípio dadignidade da pessoa humana, pois acredita-se estar nele o sentido e o fim último do Estado Democrático deDireito. 4 Redimensionamento do Direito Privado

As transformações sociais, econômicas, filosóficas e ideológicas que contribuíram e culminaramcom a superação dos paradigmas estatais através dos processos brevemente referidos nos tópicos anterioresrefletiram necessariamente no plano jurídico. De acordo com os propósitos deste trabalho interessa analisaros impactos sentidos no âmbito do Direito Privado, especialmente em razão das modificações econômicasda sociedade, e ainda, da ampliação de atuação do Estado naquela esfera (GIORGIANNI, 1998, p. 35).

Os impactos ora referidos foram fortes a ponto de pôr em crise o binômio público-privado, e seusreflexos ainda ecoam, permitindo-se concluir que se trata de processo irrevogável. Daí a necessidadeconstante de se perguntar qual a concepção que se tem do Direito Privado (GIORGIANNI, 1998, p. 37-39).A meditação a respeito dessas questões determinará a maneira como deve ser a sua leitura e, mais adiante, omodo mais adequado de se prestar a tutela jurisdicional capaz de, efetivamente, concretizar o direitoobjetivo.

É de todo evidente que o conteúdo do sistema privatístico – e aqui prefere-se limitar a análise aosCódigos Civis de 1916 e 2002, pela expressividade como estatuto regulador das relações privadas - tem se

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modificado com o passar dos anos, e atualmente não tem os mesmos contornos do Direito Privado do séculoXVIII, quando veio à luz o Estado Liberal. Parece adequado esclarecer, ainda, que a principal modificaçãodo seu conteúdo não se atribui tão somente às mudanças normativas. O redimensionamento do DireitoPrivado – em especial do Direito Civil – se deve principalmente à necessidade de sua releitura, à luz deprincípios e valores mais adequados à realidade social, econômica, política e ideológica do Estado. Essamudança de perspectiva axiológica e teleológica do Direito Privado necessariamente implicou também asmudanças normativas acima referidas, através da positivação de normas que tornassem o sistema coerentecom aquele cenário.

Entretanto, se verá no desenrolar deste estudo, ainda que aspectos externos do Direito Privado(institutos e estruturas de determinadas relações) se mantenham inalteradas, modificou-se o olhar que se lhedeve lançar, o que é imprescindível à compreensão e aplicação prática do direito material.

Conforme se referiu no início deste tópico, vários são os fatores que contribuíram para astransformações do Direito Privado, razão pela qual não se poderia abordá-los todos, senão aqueles que sejulga mais apropriados à abordagem que se pretende dar ao estudo. Os processos aos quais se fará referênciaa seguir são extremamente imbricados e se dão num fluir contínuo e recíproco, de modo que a suasegmentação só é possível – e por isso é feita - para fins didáticos. Além disso, faz-se necessária aadvertência de que a abordagem não será – nem poderia ser – exaustiva, mas se dará na medida doindispensável ao alcance dos objetivos deste trabalho.

4.1 Intervencionismo estatal nas relações interprivadas

A partir da superação do Estado Liberal pelo Estado Social, cada vez mais preocupado com a tutelada ordem econômica e social, constatou-se um considerável aumento da intervenção estatal em esferas queantes não eram sua prioridade.

Convém ressaltar que a postura do Estado no período liberal era, sem dúvida, predominantementeabstencionista e neutra no que concerne às questões relativas aos interesses privados. Entretanto, nãosignifica que o Estado não fosse chamado a intervir em determinadas situações (GRAU, 2005, p. 19-21).

Significa dizer que o Estado nunca foi absolutamente alheio às atividades econômicas e sociais.Com maior ou menor intensidade, ou ainda, com propósitos e ações diferentes em dado momento histórico,o Estado sempre intervém, uma vez que esta é a sua vocação.

De toda forma, com o advento do Estado Social a atuação interventiva do Estado elevou-seconsideravelmente em relação ao período liberal que o antecedeu. De início, a intervenção teve caráterempreendedor, fazendo com que, paulatinamente, o Estado se posicionasse como regulador da economia.Essa transição se deu especialmente pela constatação de que aumentar (em extensão e profundidade) asfunções do Estado em termos econômicos e sociais implicaria sua ineficiência diante da imensa demanda deatividades que se lhe exigem.

Assim, diante da necessidade de encontrar o equilíbrio para a intervenção estatal, mostra-seadequado adotar a posição reguladora da economia, no sentido de dar-lhe o direcionamento mais apropriadoao alcance dos objetivos do Estado segundo a tábua de valores positivada na Constituição e que deve balizartoda a sua atuação.

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A esse fenômeno se dá o nome de dirigismo econômico, o qual não implica renúncia ao carátersocial do Estado. Ao contrário, mantém-se a sua função de regulação e fiscalização sem que se caracterizeintervenção, efetivamente, nas relações de interesses dos particulares.

Neste ponto é importante lançar luzes ao art. 170 da Constituição Federal, em cujo caput constaque “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fimassegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social [...]”. A leitura do texto apontacom certa clareza a transcendência da ideologia liberal para a social intervencionista (GRAU, 2005, p. 74).

A evidência disso está em que a ordem econômica ganha contornos distintos do que se poderiaconceber à luz do liberalismo. O seu fundamento passa a ser a valorização do trabalho humano e a livreiniciativa, como braço especializado da liberdade, e a sua finalidade é assegurar a dignidade da pessoahumana e a justiça social. Entretanto, a passagem da ordem econômica liberal para intervencionista nãosignifica necessariamente ruptura dela (ordem econômica) porque:

A introdução, no nível constitucional, de disposições específicas, atinentes àconformação da ordem econômica (mundo do ser), não consubstancia, em rigor,uma ruptura dela. Antes, pelo contrário, expressa – como venho afirmando – odesígnio de se a aprimorar, tendo-se em vista a sua defesa. A ordem econômica(mundo do dever ser) capitalista, ainda que se qualifique como intervencionista, estácomprometida com a finalidade de preservação do capitalismo. (GRAU, 2005, p.75).

A superação de paradigmas estatais – do Estado Liberal ao Estado Social e finalmente ao Estado

Democrático – resultou necessariamente em modificações em relação ao nível de intervenção estatal emesferas antes deixadas em grande medida à auto-regulamentação pelos particulares.

À toda evidência, a expansão dos limites de atuação do Estado na esfera econômica refletiudiretamente nos limites também do Direito Privado, reforçando a crise – já mencionada anteriormente – dobinômio público-privado. Nessa fase ganhou força o fenômeno ao qual Michele Giorgianni (1998, p. 45)chama de “publicização” ou “socialização” do Direito Privado. Segundo ele:

A consciência da ‘publicização’ fez-se presente na doutrina privatística somentequando as limitações que o Estado moderno estava introduzindo à liberdadeeconômica se fizeram mais insistentes. Os primeiros gritos de alarme a essepropósito levantaram-se por ocasião das limitações introduzidas durante a PrimeiraGuerra Mundial e foram-se reforçando cada vez mais à medida que as limitações àiniciativa econômica privada eram acentuadas e à medida que o Estado assumia opapel de supremo regulador das forças econômicas. Paralelamente, falou-se de‘socialização’ do Direito Privado e de ‘função social’ do direito subjetivo,principalmente do direito de propriedade.O uso dos termos ‘publicização’ ou ‘socialização’ deriva, portanto, [...], daconstatação do fenômeno ‘intervencionista’ do Estado na economia.

Convém esclarecer desde logo que a (re)leitura do Direito Privado à luz dessas transformações

apontadas pelo autor – com destaque à função social da propriedade, na medida em que ela, ao lado da

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autonomia privada constitui um de seus pilares básicos – legitima a adoção de técnicas processuaisdiferenciadas daquelas desenvolvidas segundo os interesses dos propósitos liberais, para que a tutelajurisdicional corresponda, em termos práticos, àquilo que determina o direito material. Isso serádemonstrado ao longo deste trabalho.

Por fim, cabe ressaltar que embora a marca do intervencionismo no campo jurídico-normativo sejapromover o redimensionamento do Direito Privado segundo valores socializantes, é certo que a atuação doEstado visa à manutenção do modo de produção vigente (no caso, o capitalista). Nem por isso se pode abrirmão da busca pela concretização dos valores e fundamentos positivados na Constituição e da constanteconstrução do Estado Democrático de Direito. 4.2 Redimensionamento da autonomia privada

A consagração da autonomia da vontade[6] remonta à ciência jurídica medieval, a partir da

distinção de um direito originário da vontade divina e dos homens (ius voluntarium) e de um direito natural(ius naturalis), inerente ao homem como ser racional. A compreensão disso resultou no reconhecimento deque a declaração de vontade do homem era capaz de influir e ser fonte de obrigações. Neste sentido ensinaUbirajara Mach de Oliveira (1997, p. 46).

Posteriormente, com a implantação do modo de produção capitalista o trabalhador, ao contrário doque acontecia no sistema feudal vigente até então, se desvincula da terra e do senhor feudal, tornando-oproprietário de sua força de trabalho. Por conseguinte, surge a necessidade de universalização dapropriedade – à medida em que todos passam a ser reconhecidos como proprietários, ainda que apenas daforça de trabalho – e de sujeito de direito e capacidade negocial, a fim de que o trabalhador pudessenegociar sua força de trabalho conforme lhe conviesse.

No mesmo sentido é a lição de Orlando Gomes (1967, p. 68) ao afirmar, apoiando-se emScognamiglio que a autonomia privada tem seu fundamento prático na necessidade de circulação de bens eesta, por sua vez, somente se vislumbra em regimes que reconhecem a propriedade privada. Do contrário,não passaria de mera conjectura teórica.

Assim, os vários conceitos estabelecidos pela doutrina, quase sempre com conteúdos semelhantes ea partir dos mesmos elementos, optou-se pela transcrição de alguns. Segundo Orlando Gomes (1967 p. 66-67):

[...]. Por autonomia privada se deve entender, segundo a famosa definição de Betti, aauto-regulação dos interesses particulares. O negócio jurídico é, por excelência, oato de autonomia privada, isto é, a atividade humana, simples ou complexa,correspondente à essência da autodeterminação dos interesses particulares, dirigida,por conseguinte, a esse fim. Consiste a auto-regulação na composição que osparticulares realizam dos próprios interesses, disciplinando-os concretamente. Aesses atos de auto-regulação de interesses, realizados nas condições permitidas, dotaa lei de eficácia jurídica.[...]. Contudo, a atividade desenvolvida nessa direção somente se configura comoato de autonomia privada, se realizada como “pressuposto e fonte geradora de

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relações jurídicas já reguladas, em abstrato e em geral, pelas normas jurídicas”. [...].A autonomia privada é reconhecida pela ordem jurídica no campo do DireitoPrivado, segundo Betti, como a atividade destinada a criar, modificar ou extinguirrelações jurídicas entre indivíduo e indivíduo, relações cuja vida e vicissitudes jáestão disciplinadas por normas jurídicas existentes.

Em sentido semelhante Ana Prata (1982, p. 11; 18-20) apresenta a noção de que A autonomia privada ou liberdade negocial traduz-se pois no poder reconhecidopela ordem jurídica ao homem, prévia e necessariamente qualificado como sujeitojurídico, de juridicizar a sua actividade (designadamente, a sua actividadeeconómica), realizando livremente negócios jurídicos e determinando os respectivosefeitos.

Convém esclarecer que a autonomia privada deve ser considerada a partir de dois aspectos

interligados: de um lado, ela diz respeito à liberdade à auto-regulamentação dos próprios interesses, doponto de vista do seu conteúdo, enquanto que de outro, se refere à liberdade de se vincular ou nãojuridicamente a determinada obrigação.

Portanto, a autonomia privada guarda íntima ligação com a liberdade do indivíduo não apenas emrelação ao aspecto negocial – onde a liberdade contratual é sua expressão máxima[7] -, mas também e maisamplamente, com o aspecto da intangibilidade da esfera privada pelo Estado, manifestando-se com maior oumenor intensidade nos vários âmbitos do Direito Privado[8]. De acordo com Wilson Steinmetz (2004, p.191) significa dizer que, embora normalmente presente, a função ordenadora da autonomia privada não sedá de modo linear no âmbito das relações privadas.

Historicamente, porém, é no Estado Liberal que a autonomia da vontade ganha força na medida emque se constituiu a face econômica e jurídica daquele regime, ao permitir ao indivíduo criar, modificar eextinguir relações jurídicas com a menor interferência possível do Estado. Preservava-se, ao menosformalmente, os pilares de liberdade, igualdade e fraternidade defendidos pela Revolução Francesa, aomesmo tempo em que se justificava juridicamente as relevantes transformações sócio-econômicas doEstado.

Interessante a observação de Ricardo Fiúza e Giordano Bruno Soares Roberto (2002, p. 25-26),para quem

Vários fatores contribuíram para a ampliação da autonomia da vontade, cada umcom um modo, intensidade e objetivos próprios. A teoria do Direito Natural, noplano jurídico; o pensamento de Kant e o jusracionalismo, no plano filosófico; asteorias contratualistas e a Revolução Francesa, no plano político, e as teoriaseconômicas do século XVIII, bem como o Liberalismo no século XIX, no planoeconômico [...] Josserand, citado por Rezzónico, afirma que ‘en toda comunidadsocial, la vida del derecho está ampliamente condicionada por la vida económica’.Assim, todos os pensamentos jurídicos e filosóficos que demandavam maiorautonomia aos indivíduos, encontraram eco nas exigências do capitalismo nascente.Foi o encontro das concepções que proclamavam que os homens nasciam livres e

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iguais, que essa liberdade e igualdade eram da essência do homem e que eramconceitos abstratos, independentes da real condição em que os homenseventualmente se encontrassem, com as necessidades econômicas de produção ecirculação de riquezas.

A partir do período de decadência do Estado Liberal dando lugar ao Estado Social e, por

conseguinte, à intervenção estatal nas relações privadas, exigiu-se um novo olhar sobre a autonomia davontade para adequá-la à realidade social e jurídica estabelecida pelo novo modelo. Houve, assim, amitigação daquele conceito, entendido como a possibilidade de auto-regulação dos interesses individuaisdentro de certos limites.

Abrem-se parênteses para concluir que o seu conceito não é estanque, mas se sujeita aosmovimentos históricos (PIERLINGIERI, 1999, p. 277), sob pena de inadequação à realidade em que seinsere.

É bem verdade que a autonomia do indivíduo sempre esteve de alguma maneira limitada peloordenamento jurídico. Entretanto, o nível dessa limitação variou conforme os fatores externos (econômicos,sociais, filosóficos e políticos) dominantes em cada momento histórico. Daí porque se diz que a autonomiada vontade tinha contornos praticamente absolutos no Estado Liberal, representado pelos princípios dopacta sunt servanda e do contractus est lex inter partes. Por outro lado, apresentava-se limitada de modomais contundente pela tendência à intervenção estatal nas relações privadas.

Relativizar o peso da autonomia privada não implica, de modo algum, a dissolução do seu mínimoessencial, especialmente porque qualquer limitação àquele poder visa à sua funcionalização (STEINMETZ,2004, 192-193), de acordo com os valores eleitos pelo Estado Democrático de Direito. De acordo comOrlando Gomes (1967, p. 69):

Reconhecê-la não significa, porém, contestar a conveniência de restringi-lo (sic) nopropósito de estabelecer o equilíbrio de interesses individuais, subordinando-os aoautêntico interesse coletivo. A redução vem se realizando, a olhos vistos, sob ainspiração de política legislativa de cunho anti-individualista.[...]. As limitações sempre existiram, apenas se apertaram na atualidade, apanhandoo campo econômico e se tornando tanto mais numerosas quanto mais se compenetrao Estado da necessidade de intervir com o objetivo de realizar superior justiça social.

Ressalta o autor que, em termos práticos, a restrição da autonomia privada se tem mostrado a partir

do aumento de normas cogentes (a exemplo do Código de Defesa do Consumidor) e também do dirigismocontratual que mitigam o nível de liberdade de auto-regulação dos indivíduos.[9] Além disso, “[...] osdireitos fundamentais operam como mais um tipo de limites à autonomia privada, ao lado dos já construídosno campo do direito privado” (STEINMETZ, 2004, p. 196).

Prossegue o autor no sentido de que se mantém válida a constatação de que a autonomia privada setraduz na possibilidade legal de auto-regulação de interesses particulares, enquanto espaço livre conferidopelo ordenamento. Entretanto, a conformação da autonomia privada deve ser diversa daquele que seentendia adequado à luz dos modelos estatais anteriores. Busca-se, portanto, fazer uma releitura do princípio

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a partir do sistema constitucional e do parâmetro coletivo que ela impõe (NALIN, 2005, p. 169-170).Muito embora se mantenha a liberdade para a criação de negócios atípicos – mesmo porque assim

o exige a sociedade contemporânea – o Estado[10] tem o poder-dever de zelar pelo equilíbrio negocial semo qual não se alcança a justiça social. Por isso não se pode negar a tutela constitucional da autonomiaprivada, cujo papel é justamente imprimir os valores do Estado Democrático de Direito também no âmbitoda autonomia privada, compatibilizando-os.

No ordenamento jurídico brasileiro a tutela constitucional da autonomia privada se materializapelas disposições contidas em várias normas constitucionais, dentre as quais o art. 5º, caput (representativodo direito geral à liberdade), art. 5º, XXII (direito à propriedade), arts. 1º, IV e 170, caput (princípio da livreiniciativa), art. 5º, XIII (direito ao exercício profissional), art. 226 (relativo ao reconhecimento e proteção denovos modelos familiares). De modo geral, todas essas normas manifestam o poder de auto-determinaçãodo indivíduo, ainda que em níveis distintos. Estando todas elas expressamente previstas no textoconstitucional inegavelmente gozam de proteção constitucional.

Não há, portanto, como exercer a autonomia privada em quaisquer desses âmbitos semcompatibilizá-la com a Constituição, cujos princípios e valores – vetores do Estado Democrático de Direito– indicam e legitimam sua atual dimensão e limites.

4.3 Vinculação dos particulares a direitos fundamentais.

O redimensionamento do Direito Privado tem ligação direta com o reconhecimento da eficáciadireta e imediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas, e não apenas contra o Estado[11],como apregoava o liberalismo, na intenção de preservar o dogma da liberdade individual.

O marco inicial para esse reconhecimento foi justamente a transição do Estado Liberal para oEstado Social, quando em função do aumento da ação interventiva do Estado, também a sociedade passou ater participação cada vez mais ativa no exercício do poder. Neste diapasão, a necessidade de tutela daliberdade individual deixou de se restringir às ações do Estado, mas se estendeu também “[...] contra osmais fortes no âmbito da sociedade, isto é, os detentores do poder social e econômico, já que é nesta esferaque as liberdades se encontram particularmente ameaçadas” (SARLET, 2008, p. 399).

Na doutrina brasileira tem maior expressão o entendimento de que os direitos fundamentais seestendem também às relações privadas de modo direto e imediato[12] (SARMENTO, 2003, 245;STEINMETZ, 135-183; SARLET, 2008, p. 403). Isso porque a Constituição de 1988 se baseia empressupostos diversos daqueles que sustentaram o pensamento liberal, na medida em que traz inspirações nomodelo social de Estado, conforme já referido neste trabalho. Convém lembrar que o art. 3º, I, traz comofundamento da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ao estabelecer um rolconsiderável de direitos sociais (arts. 6º e 7º) diretamente relacionados às relações privadas, a Constituiçãoreconhece que os direitos fundamentais não são oponíveis apenas contra o Estado (SARMENTO, 2003, p.245-246), mas sim erga omnes.

Admitir o contrário seria incompatível com o modelo constitucional vigente pois

A própria compreensão de que o princípio da dignidade da pessoa humana

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representa o centro de gravidade da ordem jurídica, que legitima, condiciona emodela o direito positivado, impõe, no nosso entendimento, a adoção da teoria daeficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. De fato,sendo os direitos fundamentais concretizações ou exteriorizações daquele princípio,é preciso expandir para todas as esferas da vida humana a incidência dos mesmos,pois, do contrário, a proteção à dignidade da pessoa humana – principal objetivo deuma ordem constitucional democrática – permaneceria incompleta. (SARMENTO,2003, p. 255)

Reconhece-se, por conseqüência do princípio da unidade da Constituição, que os direitos

fundamentais devem permear a conformar toda a ordem jurídica inclusive no plano privatístico, de maneiraque se torna indispensável acolher a teoria da vinculação dos particulares aos direitos fundamentaisconforme sustentado até aqui.

Independentemente das divergências é certo que o tema tem inegável influência do processo deconstitucionalização do Direito Privado, que a seguir será tratada de modo mais específico. O fato é que odesdobramento dos direitos fundamentais ao plano das relações interprivadas se dá numa relação contínuaentre eles, de sorte que a aplicação das normas de Direito Privado implica, em última análise, a aplicação daprópria Constituição.

4.4 O status da dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito

Referiu-se, anteriormente, à Segunda Guerra Mundial como o momento histórico do

reconhecimento da falência do Estado de Direito, pois nenhuma de suas manifestações – especialmenteaquelas que encampavam regimes totalitários – foi capaz de promover o equilíbrio entre Estado, indivíduo eDireito[13].

Passados os horrores daquele período, percebeu-se a urgência de reconstruir o que dos direitoshumanos havia sido destruído pelos regimes totalitários. A partir daí a dignidade da pessoa humana passariaa direcionar a estruturação e interpretação do novo paradigma, que veio a ser o Estado Democrático deDireito. Por isso a afirmação feita no tópico anterior, no sentido de que o princípio da dignidade humana dásentido e representa o fim do Estado Democrático de Direito. Para quê a sua concretização senão embenefício do homem, enquanto sujeito de direitos e obrigações?

Tem razão Karl Larenz (apud POPP, 1999, p. 166) quando, referindo-se ao “personalismo ético”,afirma o seguinte:

El personalismo ético atribuye al hombre, precisamente porque es “persona” emsentido ético, um valor em sí mismo – no simplesmente como médio para los finesde otros – y, em este sentido, uma “dignidad”. De ello se sigue que todo ser humanotiene frente a cualquier otro el derecho a ser respetado por él como persona, a no serprejudicado em su existência (la vida, el cuerpo, la salud) y em ámbito própio delmismo y que cada individuo está obligado frente a cualquier otro de modo análogo.

Flávia Piovesan (2008, p. 32), ao analisar em profundidade o referido princípio em suas várias

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dimensões, afirma ser ele o critério valorativo de interpretação das normas constitucionais. Segundo a autoraa dignidade da pessoa humana, concomitantemente com os direitos e garantias fundamentais, “[...] vêm aconstituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos,conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro”. Em semelhante sentido Carlyle Popp(1999, p. 168) ressalta que o princípio não só indica um dever do Estado, “[...] mas sim um norteinterpretativo de todo o sistema jurídico, constitucional e infraconstitucional.”

Com base nessas considerações é possível concluir que o princípio da dignidade da pessoa humana,na condição de fundamento axiológico do sistema jurídico no cenário do Estado Democrático de Direito,implica a supremacia do ser humano sobre todos os outros valores que integram o paradigma estatal, desorte que deve ser observado e respeitado em toda manifestação do Estado, seja através do PoderLegislativo, Executivo ou Judiciário. Bem por isso Carlyle Popp (1999, p. 170) anota que “a proteção àdignidade da pessoa humana é fundamento de direito natural, antecedente inclusive de qualquer positivaçãolegislativa”.

Deste modo, a elevação da dignidade da pessoa humana a princípio constitucional fundante doEstado Democrático de Direito (art. 1º, III) fez dela o prisma através do qual todo o ordenamento jurídicodeve ser estruturado, fundamentado e interpretado, a fim de promover a transformação – de cima para baixo– do status quo da sociedade, conforme propõe o paradigma estatal ora vigente. 4.5 Constitucionalização do Direito Privado

A constitucionalização é fenômeno que integra o tema das transformações havidas no âmbito do

Direito Privado, umbilicalmente ligadas aos processos referidos anteriormente.O individualismo exacerbado (representado pela autonomia da vontade ilimitada), a supremacia da

Lei e o abstencionismo do Estado em regular as relações privadas foram as características mais marcantesdo Estado Liberal como conquista das revoluções burguesas. Nesse cenário, o movimento de codificação doDireito – em específico do Direito Civil, posto que destinado a reger as relações interprivadas e, assim,norma mestra do Direito Privado – se constituiu na forma legislativa mais adequada aos ideais da classeburguesa.

Pretendia-se com isso que o maior número de situações fáticas estivessem previstas na legislaçãoordinária, até mesmo para impedir ingerências indevidas, por parte do Estado, na esfera privada individual.Assegurava-se, deste modo, a completude da legislação, bem como segurança jurídica e estabilidade. Alémdisso, buscava-se dotar o sistema de Direito Privado de coerência, porque quanto mais completo em termosnormativos, o Código Civil dispensaria o recurso a leis esparsas para solucionar os conflitos concretos quesurgissem[14].

Assim, a “[...] a razão concreta da existência de um código, que acaba refletindo a sua realidadeideológica, decorre, mormente, da necessidade social de sistematização de um corpo legal, reunida em umaúnica compilação [...]” (NALIN, 2004, p. 73) que passe a ser referência legislativa. Assim, no períodoliberal o Código Civil passou a ser o centro de todo o ordenamento jurídico.

Conforme já referido neste trabalho, o Código Civil de Napoleão ainda é o exemplo maisexpressivo do movimento de codificação difundido pelo liberalismo. Paulo Nalin (2004, p. 41) refere-se ao

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Code como legislação que

[...] colocava, no centro de suas atenções, a propriedade imobiliária e o contrato,como instrumento de acesso daquela classe emergente àquele valor jurídico supremo(propriedade imobiliária), em detrimento de uma decadente aristocracia.[15]

Diante das características ressaltadas pelo autor é possível concluir que o Código Civil, na

condição de estatuto-maior de Direito Privado, privilegiava basicamente dois valores a propriedade privadae a liberdade contratual como especialização da autonomia da vontade.

Este era o cenário jurídico no período em que o Código Civil brasileiro de 1916 foi concebido, comconteúdo “oitocentista” e ainda arraigado ao pensamento liberal do final do século XIX.

Entretanto, com a superação do Estado Liberal pelo Estado Social e o conseqüente aumento daintervenção estatal nas relações interprivadas, foi natural o aumento da legislação esparsa a fim deredirecionar o ordenamento jurídico à nova realidade que sobressaía[16]. Desse modo, algumas disciplinasespecíficas do Direito Privado foram relegados à normatização específica, através de legislação esparsa[17],reduzindo-se, então, a abrangência do Código Civil. Ou seja, em relação àquelas matérias já reguladas porlegislação específica restaria a aplicação subsidiária do Código.

Essa tendência também alcançou o sistema brasileiro, eis que logo em seguida à promulgação doCódigo Civil o legislador lançou mão de leis excepcionais para regular situações não contempladas, muitasvezes a partir de princípios opostos àqueles contidos no corpo codificado. E porque as leis ditasexcepcionais podiam divergir entre si – já que eram concebidas a partir de princípios dissidentes do Código– este não perdia o status de “[...] ordenador único das relações privadas [...]”, sem abalar, pois, a ideologiaque sustentava a codificação (TEPEDINO, 1999, p. 4-5).

Embora não desestabilizassem o sistema codificado, o advento dos estatutos representou o início datransição para a abertura do sistema, até então fechado num único diploma legal regulador do DireitoPrivado, uma vez que a normatização extravagante passou a ser cada vez mais expressiva. Assim,paulatinamente o Código Civil passa a ter seu papel modificado, especialmente porque muitas matériasrelegadas aos estatutos eram disciplinadas a partir de princípios até opostos em relação àqueles queinformavam o direito codificado. Este foi, em boa medida, o primeiro passo rumo à descodificação e,conseqüentemente, ao deslocamento do Código Civil do centro do ordenamento jurídico, relativamente aoDireito Privado.

Com a crescente abertura do sistema e a necessidade cada vez maior da normatização de situaçõesnovas, até então não previstas no Código Civil – reflexo, repita-se, do individualismo liberal – fez com quea produção legislativa avançasse à “era dos estatutos”, sobre a qual Gustavo Tepedino (2000, p. 3-4) tece asseguintes considerações:

A evolução do cenário econômico e social passou a exigir do legislador umaintervenção que não se limita à tipificação de novas figuras do direito privado (antesconsideradas como de direito especial), abrangendo, ao revés, em legislação própria,toda uma vasta gama de relações jurídicas que atingem diversos ramos do direito.Cuida-se de leis que regulamentam exaustivamente extensas matérias, e passam a

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ser designadas como estatutos, veiculando não apenas normas de direito material,mas também processuais, de direito administrativo, regras interpretativas e mesmode direito penal. Anuncia-se, em doutrina, a era dos estatutos. [...]. Em relação aestes o Código Civil perdeu qualquer influência normativa, configurando-se umpolissistema, caracterizado por um conjunto crescente de leis tidas como centros degravidade autônomos e chamados, por conhecida corrente doutrinária, demicrossistemas[18] (grifo do autor)

Interessante lembrar que o aumento de leis esparsas orientadas por princípios diferenciados em

relação ao Código Civil tem implicações diretas na coesão do sistema de Direito Privado. Isso porque acoexistência de princípios diversos pode dificultar a interpretação e, principalmente, a aplicação dalegislação.

O fato é que o Código Civil foi se deslocando do centro do sistema de Direito Privado, numprocesso natural motivado pela necessidade de adequação da realidade jurídica à realidade social eeconômica que, aos poucos, vinha à luz. O processo culminou com a promulgação da Constituição de 1988que, inspirada em anseios sociais e comprometida com os valores do Estado Democrático de Direito, inseriuem seu texto normas com reflexo direto no Direito Privado, revitalizando-o todo.[19]

A partir disso exigiu-se releitura do Código Civil, as leis esparsas e os microssistemas sempre à luzda Constituição, a fim de que todo o Direito Privado reflita os princípios e valores por ela eleitos e seja, emúltima análise, apto a concretizar o Estado Democrático de Direito.[20]

Na realidade, o fenômeno da constitucionalização não é privilégio do Direito Civil ou do DireitoPrivado, mas abrange todo o sistema jurídico. Significa dizer que toda a ordem infraconstitucional deve serinterpretada à luz da Constituição, sob pena de inadequação em relação à tábua de valores eleita peloparadigma estatal vigente.

Assim, considerando-se o a dignidade da pessoa humana o princípio supremo da Constituição,conforme se referiu anteriormente, o centro do Direito Privado (e do Código Civil) deixa de ser opatrimônio para estabelecer-se na pessoa, recondicionando-o. Neste sentido é a lição de Teresa Negreiros(1999, p. 339), para quem a constitucionalização “[...] permite a identificação de novos valores em que se(re)funda o direito civil, os quais não mais têm no indivíduo, mas na dignidade da pessoa humana, o seuponto de convergência”.

Há, pois, evidente mudança de paradigma axiológico do sistema privatístico sem, contudo, tirar asua essência. Como adverte Gustavo Tepedino (1999, p. 21), “[...] a perspectiva de interpretação civil-constitucional permite que sejam revigorados os institutos de direito civil, muitos deles defasados darealidade contemporânea [...]”.

Além da repersonalização, o fenômeno da constitucionalização tem importante papel de unificaçãodos institutos e normas do Direito Privado, evitando justamente o perigo da coexistência de princípiosdivergentes estabelecidos em legislações produzidas em diferentes momentos históricos. A partir de 1988, asistemática privatística deve tirar sua raiz axiológica e teleológica dos valores e princípios entabulados naConstituição.

Convém ressaltar que o advento do atual Código Civil (Lei 10.406/02) não modifica o raciocínioaqui exposto. Isso porque embora tenha iniciado sua vigência sob a égide da Constituição de 1988, a

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elaboração dos Projetos que deram origem ao Código Civil teve início no final da década de 60, razão pelaqual, não obstante os avanços alcançados, ainda se percebem resquícios do individualismo epatrimonialismo próprios da legislação anterior.

De todo modo, é oportuno destacar que o atual Código se direciona pelo tripé principiológico –eticidade, sociabilidade e operabilidade – que orienta também sua interpretação e aplicação, dando aoCódigo a flexibilidade necessária à sua compatibilização com a experiência histórico-social (REALE, 2005,p. 37-42). À toda evidência esses princípios têm guarida no texto constitucional e, em última análise, devemser sempre considerados conjuntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana para, com isso,potencializar os efeitos concretos buscados pela norma.

CONCLUSÃO

De acordo com o que foi exposto no desenvolvimento deste estudo, resta clara a influência de

questões políticas, sociológicas, ideológicas, filosóficas e mesmo econômicas na conformação do DireitoPrivado e, em última análise, no modo como se desenvolvem as relações interprivadas, seus limites eimplicações jurídicas.

Essa constatação corrobora a idéia de que o Direito deve refletir os valores e a ideologia adotadospelo Estado, a fim de permitir a construção do modelo de sociedade almejado pelo paradigma estatal.

Nesse sentido, o Direito Privado sofreu, ao longo da trajetória do Estado Moderno, diversastransformações e conformações em razão das modificações na atuação estatal, especialmente quanto à maiorinterferência no campo das relações interprivadas. Com isso, princípios e institutos privatísticos,desenvolvidos séculos atrás, demandaram uma releitura, sempre à luz da tábua de valores vigente emdeterminado momento histórico.

Pôde-se verificar essa situação em relação à autonomia privada, na condição de princípo máximo doDireito Privado. A transformação em relação à compreensão e aos limites da autonomia privada é visívelquando se faz um panorama dos três modelos estatais analisados neste trabalho. No Estado Liberal deDireito os contornos da autonomia do indivíduo eram indubitavelmente maiores e mais amplos em relaçãoao que se verificou no Estado Social de Direito, tendo em vista o aumento da ingerência do Estado nasrelações privadas. Por outro lado, o advento do Estado Democrático de Direito trouxe, pode-se dizer, umanova conformação à autonomia privada que, embora permaneça no topo dos princípios de Direito Privado,não pode ter mais os mesmos contornos de outrora. Deve, em contrário, alinhar-se à ideologia e valores doregime democrático, em que se destaca a dignidade da pessoa humana.

Essa visão está intimamente ligada ao processo de constitucionalização do Direito Privado, namedida em que o Código Civil deixa de ser o ponto de partida para o raciocínio daquele ramo do Direitopara transferi-lo à Constituição, por se tratar da norma porta-voz do Estado Democrático de Direito.

Busca-se, assim, implantar um sistema de Direito Privado calcado nos preceitos constitucionais porserem reflexo do regime democrático adotado pelo Estado.

Diante disso, é lícito concluir que ainda que os institutos e princípios sejam os mesmos em termos deestrutura, o seu conteúdo e suas dimensões se modificam ao longo da história, dando-lhes o sentido que oEstado busca em determinado momento. Não há, pois, como separar o fenômeno jurídico do fenômeno

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social, político, ideológico, econômico e filosófico. Ao contrário, é imperioso considerá-los como partes deum todo, conectando-os e considerando a interferência de uns sobre os outros, na construção cotidiana doDireito, em especial do Direito Privado como ordenador das relações interprivadas.

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[1] Com o Estado Liberal se implantou um constitucionalismo voltado à concretização de direitos fundamentais de caráternegativistas, ou seja, que protegessem o cidadão dos desmandos interventivos do Estado, tal como acontecia no Ancien Régime. Deacordo com Paulo Bonavides (2004, p. 30) “escreveram os ingleses a Magna Carta, o Bill of Rights, o Instrumento of Government;os americanos, as Cartas coloniais e o Pacto federativo da Filadélfia, mas só os franceses, ao lavrarem a Declaração Universal dosDireitos do Homem, procederam como havia procedido o apóstolo Paulo com o Cristianismo. Dilataram as fronteiras da nova fépolítica. De tal sorte que o governo livre deixava de ser a prerrogativa de uma raça ou etnia para ser o apanágio de cada ente humano[...]”.[2] Segundo Eros Roberto Grau (2005, p. 22-23), ao analisar o modelo liberal conclui que “a igualdade, de outra parte, alcançavaconcreção exclusivamente ao nível formal. Cuidava-se de uma igualdade à moda do porco de Orewell, no bojo da qual havia – comohá – os ‘iguais’ e os ‘mais iguais’. O próprio enunciado do princípio – ‘todos são iguais perante a lei’ – nos dá conta de suainconsistência, visto que a lei é uma abstração, ao passo que as relações sociais são reais (grifo do autor)”.[3] No início deste tópico fez-se referência à insuficiência da expressão “Estado de Direito”, uma vez que um paradigma que secomprometa tão somente com a primazia da Lei pode assumir qualquer natureza, a depender do conteúdo – liberal, autoritário,repressor, injusto... – da Lei à qual se submeta. A respeito disso José Afonso da Silva (1999, p. 117), recorrendo a Carl Schmitt,ensina que “[...] a expressão ‘Estado de Direito’ pode ter tantos significados distintos como a palavra ‘Direito’ e designar tantasorganizações quanto as q que se aplica a palavra ‘Estado’. Assim, acrescenta ele, há um Estado de Direito feudal, outro estamental,outro burguês, outro nacional, outro social, além de outros conformes com o Direito natural, com o Direito racional e com o Direitohistórico. Disso deriva a ambigüidade da expressão Estado de Direito, sem mais qualificativo que indique conteúdo material” (grifodo autor). É também o que se extrai da lição de Willis Santiago Guerra Filho (2001, p. 132) ao afirmar que “o Estado de Direito,portanto, atende primordialmente às exigências de legalidade, enquanto a democracia é um princípio de legitimidade, tendo aquelaum caráter formal, cujo conteúdo é preenchido por este último. Leis e normas jurídicas em geral podem oferecer uma garantia formaldo reconhecimento da liberdade dos indivíduos e do seu tratamento justo e igualitário, pelo Estado e na sociedade [...]” (grifo doautor).[4] Assim se posiciona Sérgio Alves Gomes (2008, p. 269), para quem “[...] o referido paradigma encontra-se em construção, apesardas graves crises por que tem passado em razão de fatores que a ele se opõem. Por isso, reflete-se sobre as possibilidades de ahermenêutica constitucional participar de tão desafiador e indispensável empreendimento: a concretização do Estado Democráticode Direito” (grifo do autor).[5] Na opinião de Eros Roberto Grau (2005, p. 215) a Constituição de 1988 tem caráter dirigente, preocupada com a transformaçãoda sociedade e aberta a políticas públicas. Embora não se trate do objetivo deste trabalho, importante assinalar que a Constituiçãodirigente foi o modelo difundido pelo constitucionalismo do século XX e tem como principal característica a ampliação do conteúdoconstitucional para além da regulamentação de poder e estruturação do Estado, e teve seu principal defensor em Canotilho. Deacordo com Alceu Maurício Junior (2008, p. 138-140), a adoção desse modelo constitucional traduz a concepção da Constituiçãocomo ordem fundamental, na medida em que traça as diretrizes que deverão ser seguidas pelo Estado em conjunto com a sociedade.Contrapõe-se à concepção da Constituição como ordem marco, segundo a qual há “[...] um espaço no qual o legislador não estáobrigado a agir nem proibido de agir; um espaço em que o legislador tem permissão para atuar ou para se omitir, ou seja, um espaçode discricionariedade”.[6] Cabe registrar que embora os termos “autonomia da vontade” e “autonomia privada” comumente sejam utilizados comosinônimos, há divergência doutrinária a respeito do alcance de cada um deles. Segundo Ubirajara Mach de Oliveira (1997, p. 46), naconcepção clássica não há distinção de conceitos, significando todos eles a liberdade do indivíduo a respeito do momento e modo dese vincular obrigacionalmente. Atualmente, porém, ressalva o autor que não é possível manter a suposta identidade entre os termos,uma vez que a autonomia da vontade encerra contornos mais abrangentes, tendo-se em conta a vontade subjetiva ou psicológica doindivíduo. Por outro lado, a autonomia privada privilegia a vontade objetiva como fonte de efeitos jurídicos. Também Luigi Ferri(1969, p. 5-6) defende a desvinculação do que seja autonomia da vontade e autonomia privada, pois “quienes hablan de autonomíade la voluntad en realidad desconocen el problema mismo de la autonomía privada [...] y dan relieve a la voluntad real o psicológicade los sujetos que, según esta opinión, es la raíz o la causa de los efectos jurídicos, en oposición a quienes, por el contrario, ven másbien en la declaración o en la manifestación de voluntad, como hecho objetivo, o en la ley, la fuente de los efectos jurídicos”. Paraeste trabalho, contudo, prefere-se a expressão “autonomia privada” por parecer mais adequada aos objetivos que se pretendealcançar. Menciona-se a expressão “autonomia da vontade” quando se trata de citação de determinado autor e, ainda, no início doparágrafo pela necessidade de dar à expressão uma conotação mais abrangente.[7] Embora seja nesta seara que se dê sua manifestação mais intensa e extensa, segundo Wilson Steinmetz (2004, p. 191-192). Aindapara o autor, “ali ela se concretiza como liberdade contratual (liberdade negocial). O nexo entre autonomia privada e liberdadecontratual é tão forte que, não raras vezes, no discurso dos juristas, toma-se uma pela outra” (STEINMETZ, 2004, p. 192).[8] Evidentemente a autonomia privada tem aplicação mais ampla no âmbito das relações patrimoniais, ao passo que se mostra maisrestrita – não inexistente - em relação às relações pessoais e de família, tendo em vista que a própria natureza das relações impõemaior número de normas cogentes para sua regulação.[9] Mais abrangente é a compreensão de Joelma Ticianelli (1999, p. 41) que, arrimada na doutrina de Luis Díez-Picazo e Antonio

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Gullón, se refere à limitação da autonomia privada sob o aspecto da lei, da moral e da ordem pública.[10] A interferência do Estado se dá em todos os âmbitos do poder: Legislativo, Executivo e Judiciário. No primeiro caso, a atuaçãoestatal se materializa pela criação de normas capazes de condicionar o vínculo obrigacional estabelecido pelas partes, seja emrelação à forma, conteúdo ou em relação a determinados efeitos jurídicos Segundo Paulo Nalin (2001, 167) “[...] não se pode negarque um controle do exercício da autonomia privada é feita, em abstrato pelo Legislativo, ao estabelecer a moldura de atuação doJudiciário, o qual deve fazer o controle concreto”. Na âmbito do Executivo pode haver a fiscalização de determinados negócios, aexemplo do que acontece em relação às obrigações securitárias para as quais se exige a aprovação por órgão específico (Susep). Porfim, cabe ao Judiciário regular o vínculo obrigacional que se mostre em desconformidade com o que determina previamente oordenamento jurídico, seja combatendo ou ignorando o negócio em que se apresente, ou conforme a tendência atual, reestruturando-o a fim de retornar a bases equilibradas. A respeito disso, Orlando Gomes (1967, p. 67-68) recorre à lição de Emilio Betti no sentidode que “os fins almejados pelos particulares, ao exercerem o poder de iniciativa para autodeterminação de seus interesses, sãoapreciados, a priori, pelo ordenamento jurídico, que os ignora, reconhece ou combate. [...]. Na primeira hipótese, não se tem umnegócio jurídico, senão um ato juridicamente intranscendente. Na terceira, ato jurídico ilícito.”[11] O assunto ainda se mostra polêmico na doutrina e especialmente na jurisprudência. Apesar disso, Ingo Wolfgang Sarlet (2008,p. 397-398) observa que a discussão é estéril quando se observa o destinatário de determinados direitos fundamentais. Assim, não secontroverte a respeito da vinculação dos particulares em relação aos direitos fundamentais que, pela natureza, são especificamentedirigidos a eles, a exemplo do direito à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI da Constituição), direito ao sigilo de correspondênciae comunicações telefônicas (art. 5º, XII), além dos direitos sociais dirigidos aos empregadores particulares. Do mesmo modo, fogemà discussão os direitos fundamentais dirigidos aos órgãos estatais, dentre os quais o autor destaca os direitos políticos, os remédiosconstitucionais como mandado de segurança e habeas corpus, e no campo dos direitos sociais, o ensino obrigatório e gratuito (art.208, I), embora o autor reconheça efeitos reflexos de referido direito fundamental ao particular. Feita essa ressalva, o problema sedeslocaria, então, para o modo de vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, se direta ou indireta, ou ainda, imediata ouimediata.[12] Isto é, independentemente da vontade do legislador ou então, sem limitá-los ao papel de orientadores da interpretação decláusulas gerais do Direito Privado (SARMENTO, 2003, p. 246). De acordo com Ingo Wolfgang Sarlet (2008, p. 400), para acorrente que defende a aplicação mediata os direitos fundamentais “[...] apenas poderiam ser aplicados no âmbito das relações entreparticulares após um processo de transmutação, caracterizado pela aplicação, interpretação e integração das cláusulas gerais econceitos indeterminados do direito privado à luz dos direitos fundamentais, falando-se, neste sentido, de uma recepção dos direitosfundamentais pelo direito privado”. Para aprofundamento do assunto ver as obras de Wilson Steinmetz (2005) e Daniel Sarmento(2003), que tratam em detalhes das correntes doutrinárias e jurisprudenciais a respeito da vinculação dos particulares aos direitosfundamentais.[13] Sérgio Alves Gomes (2008, p. 274-275) faz interessante análise a respeito do tema.[14] A respeito do tema, Paulo Nalin (2004, p. 72-76) tece semelhantes considerações, embora com algumas distinções em relaçãoaos termos empregados neste trabalho.[15] No mesmo sentido se posiciona Ana Prata (1982, p. 10-11), com base na lição de Stefano Rodotà, para quem o negócio jurídico(especificamente o contrato) foi o principal instrumento jurídico no contexto do liberalismo, por permitir a circulação de bens.Segundo o autor - referido por Ana Prata – de nada adiantaria a libertação do sistema feudal e a implantação do modo de produçãocapitalista se não houvesse um instrumento jurídico que permitisse a transferência de bens.[16] Esse fenômeno ficou conhecido como a “publicização do Direito Privado”, conforme já explorado anteriormente.[17] São exemplos marcantes desse período o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62) e o Estatuto da Terra (Lei 4.591/64), alémde outras tantas leis editadas à época e que traziam princípios próprios e não raras vezes com inspiração diversa daquelesestampados no Código Civil.[18] São exemplos dos chamados microssistemas o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), que substituiu o antigoEstatuto de Menores, e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).[19] A respeito disso se fez referência à função social que modificou a compreensão do direito de propriedade, assim como da ordemcontratual, com a redefinição dos contornos da autonomia privada.[20] Interessante a observação feita por Paulo Nalin (2004, p. 32), para quem “a constitucionalização do Direito Civil não é o único,mas, sim, representa um dos caminhos possíveis para a eleição de um novo paradigma de renovação dos institutos privado”. O autorilustra sua colocação com o comunitarismo europeu, que fez emergir normas de caráter supranacionais que, por tal razão, orientamos países membros da União Européia.

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