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Paisagem e memória: a transformação dos Campos de Altitude no Rio Grande do Sul, século XX Esther Mayara Zamboni Rossi * Samira Peruchi Moretto ** Eunice Sueli Nodari *** A região dos Campos de Altitude no Rio Grande do Sul, durante o século XX, sofreu um processo de transformação da paisagem em função da ocupação da região, principalmente por migrantes. A região dos Campos de Altitude é marcada pela presença de Campos entremeados por capões de Araucárias, é uma paisagem específica que influenciou as práticas cotidianas e as apropriações do ambiente. A relação dos seres humanos com o mundo natural foi pouco documentada, no entanto, as práticas cotidianas e empíricas que envolviam tais relações, ainda estão presentes na memória dos moradores locais. O objetivo desse trabalho é analisar através da visão de ex- madeireiros (atuais agricultores), como ocorreram o processo de desmatamento e alteração da paisagem, que resultou no esgotamento da floresta nativa na região. A metodologia da História Oral, aliada à História Ambiental, legitima a importância da memória do indivíduo como instrumento de análise da relação dos seres humanos com o meio natural. Os relatos de ex- madeireiros auxiliam não apenas no entendimento de como ocorreram as drásticas mudanças na paisagem, mas também, como era a relação deste grupo com a floresta. Os Campos de Altitude: “coroado pela Araucária” A história ambiental é, em resumo, parte de um esforço revisionista para tornar a disciplina da história muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tem tradicionalmente sido. Acima de tudo, a história ambiental rejeita a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolveu sem restrições * Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista REUNI. E-mail: ** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected] *** Professora do PPG em História e do PPG Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Auxilio Financeiro: CNPq – Projeto Germânias Tropicais: as colônias alemãs e a modelagem antrópica das paisagens em biomas do Brasil e da África e FAPESC – Projeto A natureza dominada: ocupação e desmatamento no Rio Grande do Sul e no Oeste de Santa Catarina (1875-1970).

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Paisagem e memória: a transformação dos Campos de Altitude no Rio Grande do Sul, século XX

Esther Mayara Zamboni Rossi* Samira Peruchi Moretto∗∗

Eunice Sueli Nodari∗∗∗

A região dos Campos de Altitude no Rio Grande do Sul, durante o século XX,

sofreu um processo de transformação da paisagem em função da ocupação da região,

principalmente por migrantes. A região dos Campos de Altitude é marcada pela presença

de Campos entremeados por capões de Araucárias, é uma paisagem específica que

influenciou as práticas cotidianas e as apropriações do ambiente. A relação dos seres

humanos com o mundo natural foi pouco documentada, no entanto, as práticas cotidianas e

empíricas que envolviam tais relações, ainda estão presentes na memória dos moradores

locais. O objetivo desse trabalho é analisar através da visão de ex- madeireiros (atuais

agricultores), como ocorreram o processo de desmatamento e alteração da paisagem, que

resultou no esgotamento da floresta nativa na região. A metodologia da História Oral,

aliada à História Ambiental, legitima a importância da memória do indivíduo como

instrumento de análise da relação dos seres humanos com o meio natural. Os relatos de ex-

madeireiros auxiliam não apenas no entendimento de como ocorreram as drásticas

mudanças na paisagem, mas também, como era a relação deste grupo com a floresta.

Os Campos de Altitude: “coroado pela Araucária”

A história ambiental é, em resumo, parte de um esforço revisionista para tornar a disciplina da história muito mais inclusiva nas suas narrativas do que ela tem tradicionalmente sido. Acima de tudo, a história ambiental rejeita a premissa convencional de que a experiência humana se desenvolveu sem restrições

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista REUNI. E-mail: **Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected] ***Professora do PPG em História e do PPG Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Auxilio Financeiro: CNPq – Projeto Germânias Tropicais: as colônias alemãs e a modelagem antrópica das paisagens em biomas do Brasil e da África e FAPESC – Projeto A natureza dominada: ocupação e desmatamento no Rio Grande do Sul e no Oeste de Santa Catarina (1875-1970).

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naturais, de que os humanos são uma espécie distinta e “super-natural”, de que as conseqüências ecológicas dos seus feitos passados podem ser ignoradas. (WORSTER, 1991)

Estudar a relação de homens/mulheres com o meio natural é levar em consideração

que os seres humanos fazem parte da natureza. Desta forma, estudar a História da alteração

da paisagem nos Campos de Altitude significa estudar os diferentes personagens presentes

neste contexto, não apenas os seres humanos, mas também os ecossistemas locais.

Apesar das características dos Campos parecerem de uma paisagem sem variedade

fisionômica, os campos são um rico ecossistema necessário ao equilíbrio ecológico (UFSM,

2011). No Bioma Mata Atlântica esta formação está presente em áreas de maior altitude,

nos chamados Campos de Altitude ou Campos de Cima da Serra, acima de 800 metros

(BOLDRINI, 2009:09).

A paisagem local é um mosaico de Campo e Floresta de Araucária

(PILLAR,2009:17), que caracterizam-se pela presença de capim-caninha

(Andropogonlateralis), pequenos arbustos de Melastomataceae, Ericaceae, Eriocaulaceae,

Asteraceae e Verbenaceae (Safford 1999a, Safford 1999b) e são ricos em espécies

endêmicas, entremeadas por capões ou porções de florestas de Araucária (Araucaria

angustifólia). A região de estudo possui tipologia característica dos Campos de Altitude,

especificamente a Savana Gramíneo-Lenhosa:

A Savana Gramíneo-Lenhosa tem expressão considerável no Sul do país, distribuindo-se, principalmente, no âmbito da região das Araucárias, cujas espécies características vão constituir-lhe as matas-de-galeria e capões. Geralmente os campos são conhecidos pelo nome do local ou município onde se encontram, podendo-se distinguir vários tipos. (LEITE; KLEIN, 1990: 134)

As formações com Araucárias muitas vezes serpenteiam o curso dos rios e

protegem as nascentes, fornecendo um importante papel na preservação do ecossistema e

da grande biodiversidade da Mata Atlântica. Devido a esta característica a região suscitou

inúmeras investigações de naturalistas ao longo do tempo:

(...) como Lindman viajando pela região no final do século XIX, observaram que a vegetação deveria ser capaz de expandir sobre esses campos e atribuíram a presença do mosaico a uma situação de transição entre floresta tropical, ao norte, e vegetação de campo, ao sul (Lindman 1906). Rambo (1956a, b) e Klein (1975), baseando-se principalmente em evidências fitogeográficas, conjeturaram que os campos eram o tipo de vegetação mais antigo e que a expansão da floresta seria um processo mais recente, decorrente das mudanças no clima para condições mais úmidas. Hueck (1966) também questionou como os campos do sul do Brasil poderiam existir sob as atuais condições climáticas úmidas, propícias para vegetação florestal. (PILLAR, 2009:15)

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Os campos surgiram à cerca de 60 milhões de anos, anteriormente ao surgimento da

Floresta Ombrófila Mista, e são uma vegetação de altitudes, podendo ser encontrados a

mais de 1.200m acima do nível do mar. A característica principal dos campos é seu relevo

suavemente ondulado, em áreas de fratura, onde surgem vales mais intensos por onde

cortam rios com trechos subterrâneos (MEDEIROS, 2004: 18).

O volume madeirável da região era realmente “soberbo”, em função das Araucárias

que “coroavam” (OLIVEIRA, 1959) as pradarias. Esta dicotomia, formada pelos campos e

pelas araucárias que permeia o imaginário e a construção sociocultural local, ainda

chamam a atenção para as investigações históricas que analisam o ambiente.

Os Campos, quando descritos pelos moradores da região, aparecem indissociáveis

do gado, e são muitas vezes avaliados como um ecossistema de menor valor, em oposição

à pujante Mata Atlântica. Por esta razão este bioma foi bastante degradado, estima-se que

metade dos Campos (incluindo o Bioma Pampa) no Rio Grande do Sul já está

descaracterizada por enormes áreas homogêneas de “desertos verdes” da agroindústria;

pastoreio e plantio de Pinnus e Eucalyptus que parecem tornar pouco sustentável o manejo

ao longo prazo. Segundo MORETTO (2010:171), em função das condições climáticas,

fisiológicas e da melhor adaptação, o sul do país foi reflorestado com Pinnus e Eucalyptus.

No planalto catarinense, o Pinnus foi preferível por seu rápido crescimento, podendo

abastecer o setor madeireiro em um curto espaço temporal. O Pinnus é utilizado no

beneficiamento da celulose para a fabricação de papel e derivados.

No entanto, o Pinnus e Eucalyptus foram avaliados como espécies exóticas

invasoras, isto é, se desenvolvem com altas taxas de crescimento, reprodução e dispersão

sem apresentar inimigos naturais no local onde são introduzidas, neste caso, no sul do

Brasil. A plantação de espécies exóticas invasoras é uma ameaça à preservação da Mata de

Araucária. Segundo o Atlas dos remanescentes florestais da Mata Atlântica 2008-2010,

realizado pela Fundação SOS Mata Atlântica, da área florestal original que o Estado do

Rio Grande do Sul possuía restam hoje apenas 7,48% (Atlas dos remanescentes florestais

da Mata Atlântica 2008-2010).

A instalação das madeireiras e a alteração da paisagem

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Para avaliar o impacto das madeireiras e as transformações da paisagem podem-se

observar as estatísticas dos remanescentes florestais, ou comparar os relatos de viajantes,

com a paisagem atual. Entretanto, mesmo assim, é difícil quantificar exatamente todas as

modificações, as perdas para o ecossistema, como também os lucros econômicos da

indústria da madeira. Não há consenso sobre como avaliar o impacto ambiental

(CORREA; BUBLITZ, 2006: 15). Segundo a resolução de 23 de janeiro de 1986, nº 001,

do Conselho Nacional de Meio Ambiente, impacto ambiental é:

(...) é qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: a saúde, a segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; a qualidade dos recursos ambientais. (CONAMA, nº 001 de 23 de janeiro de 1986).

O desmatamento na Floresta de Araucária começa a ocorrer de maneira mais

intensa no final do século XIX. No Rio Grande do Sul, especificamente, este aumento é

paralelo a imigração para as áreas de floresta do Estado. A natureza deveria ser controlada

pela força do trabalho humano, demonstrando o triunfo do empreendimento. Inicialmente

os imigrantes desmatavam para implantar a lavoura. As colonizadoras, no começo da

imigração, lucravam com a retirada e venda das árvores.

O desmatamento na Floresta de Araucária foi diferente do restante da Mata

Atlântica por diversos motivos. Além da retirada para a produção agrícola, a extração

principalmente da Araucária tornou-se importante fonte de renda, tão importante a ponto

de ser considerada uma commodity.

A exploração da Araucária começou de forma mais intensiva com a construção no

Paraná da ferrovia Paranaguá-Curitiba em 1885, o que diminuiu o valor do transporte e deu

início ao processo de expansão do mercado interno de madeiras, sendo o Paraná pioneiro e

seu principal produtor no país. Antes das ferrovias e da melhoria nas estradas existiam

pequenas serrarias, engenhos de serrar que abasteciam o mercado local para a construção

de estabelecimentos comerciais, casas, pontes, galpões etc. Geralmente movidas à roda

d'água, o processo era quase totalmente manual e, para o transporte, eram utilizadas

carroças puxadas a boi (CARVALHO, 2006: 132). Apesar do grande volume madeirável,

fatores como a falta de linhas para escoamento da produção e o trabalho artesanal

demonstra o porquê do grande número de importações de madeira feito pelo Brasil.

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Segundo CARVALHO (2006: 133), o Rio Grande do Sul estava numa situação

intermediária entre o Paraná e Santa Catarina, pois ao mesmo tempo em que já tinha em

1920 uma indústria madeireira mais desenvolvida na região de araucária (como em Passo

Fundo), também tinha centenas de pequenos engenhos de serra. A região norte do Estado

teve um impulso muito grande com a construção do trecho da estrada que ligava Santa

Maria a Passo Fundo em 1889.

Liliane (WENTZ, 2004:127), quando estuda a indústria madeireira no norte do Rio

Grande do Sul afirma, que a primeira serraria desta região foi construída em 1902. A autora

mostra também que toras de madeiras ficavam estocadas nas margens das linhas dos trens,

esperando por mais vagões, que eram solicitados pelos madeireiros. Muitas vezes, a

preferência era para o gado, cereais, banha, vinho, charque, fumo, produtos de consumo

imediato; dava-se preferência para frigoríficos que exportavam para a Europa. As linhas

férreas eram as preferidas pelos madeireiros, pois as estradas eram de péssimas condições

tornando o serviço por caminhão muito caro. Algumas empresas valiam-se de artimanhas

para conseguir mais vagões, como por exemplo, afirmavam ter madeira para uma obra

beneficente, que na verdade não existia. Não eram somente as toras que precisavam ser

transportadas, havia também as caixas, as madeiras aplainadas, os resultados das indústrias

de móveis.

Era recorrente ainda, a utilização dos rios para escoamento da madeira. Através de

balsas, esperavam as cheias e desciam até o ponto desejado, tendo um custo baixo e

empregando muitos trabalhadores. O maior volume de madeira era transportado pelo Rio

Uruguai e assim exportado para Argentina. No Rio Grande do Sul, um dos rios utilizados

para este transporte era o Rio das Antas.

A partir da década de 1930, a indústria madeireira atinge altos índices de

exportação, chega a aumentar em 302%. Na Mensagem apresentada pelo Governo do

estado do Rio Grande do Sul, em 1930, podemos verificar o aumento gradativo na década

de 1920:

A produção do Estado, no qüinqüênio, salvo pequeno decréscimo observado em 1926, desenvolveu-se auspiciosamente, como se vê abaixo: 1925......................140.500 Tons

1926......................136.200 1927......................180.100 1928......................187.516 1929.....................200.700

Não só a nossa produção, entretanto, vem progredindo a passos largos. A valorização do produto também se acentua dia a dia. Segundo as estatísticas nacionais, em 1912, o preço da tonelada de madeiras brasileiras mal atingiu a 99$000, no passo que, em 1920, apareceu com 163$000 e, em 1928, com 225$000. Na exportação nacional, destacam-se, em 1º lugar, o pinho e, em 2º o

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cedro, precisamente as espécies exportadas pelo Rio Grande do Sul. (Mensagem RS, 1930)

Como podemos perceber, mesmo que muitas das madeireiras não declarassem o

total das suas retiradas ou não conseguissem transporte para a exportação, o volume

aumentava consideravelmente, demonstrando a expansão desta comercialização e da

importância que se incumbia à indústria madeireira.

O aumento da produção coincide com o aumento da população, que ocorreu nas

décadas 1940 e 1950. As grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires e

Montevideo se abasteceram com a Mata de Araucária em sua vertiginosa expansão urbana.

Do mesmo modo a construção de Brasília, no final de 1950, se torna um dos maiores

mercados para indústria da madeira possibilitando o crescimento destas e também das

pequenas cidades onde estão instaladas. Sendo assim podemos supor que a expansão das

grandes cidades possibilitou um crescimento, mesmo que em muitos casos momentâneo,

das pequenas cidades (CARVALHO, 2006:154).

Os madeireiros: personagens junto à transformação da floresta

As memórias das pessoas que vivenciaram as transformações na paisagem podem

ajudar a elucidar como ocorreram estes processos. Quando estudamos a relação de

homes/mulheres com a natureza, podemos entender que a História Oral não é um

complemento às fontes oficiais, como tradicionalmente era utilizada, mas é sim um objeto

de pesquisa. Desta forma, a metodologia da história oral apresenta versões do passado, ou

seja, remete-se à memória. Segundo Portelli:

A História Oral é uma ciência e arte do indivíduo. Embora diga respeito – assim como a sociologia e a antropologia – a padrões culturais, estruturais sociais e processos históricos, visa aprofundá-las, em essência, por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada uma. (PORTELLI, 1997: 47)

A história Oral propicia a descoberta não somente dos múltiplos conhecimentos

gerados, mas também ao acesso a outras fontes, antes escondidas em acervos pessoais.

Muitas vezes as fontes não estão disponíveis nos arquivos e museus, principalmente nas

pequenas cidades onde não há uma estrutura ou ainda porque a população não está bem

informada das inúmeras formas de doação a um acervo. Muitas fotos são guardadas nos

álbuns de família e podem trazer novos enfoques para a pesquisa e às entrevistas.

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Neste artigo elencamos dois personagens que nos relataram suas impressões a

respeito da transformação da paisagem nos Campos de Altitude, na serra gaúcha. Os

entrevistados são Pedro Ari Minella (2011) e Máximo Alfonso Zamban (2011), residentes

no município de Vacaria - RS, antigos madeireiros e atualmente agricultores.

Foram inúmeros os madeireiros que atuaram neste período na Floresta de

Araucária, sendo que estes dois personagens foram indicados como personalidades

reconhecidas na cidade por suas atividades na época e ainda hoje como agricultores. As

Entrevistas foram pensadas na modalidade História de Vida, onde poderíamos não só

propiciar um registro mais detalhado, mas também entender através destas autobiografias

não escritas e pouco mediadas pelas pesquisadoras o alcance da atividade madeireira nas

famílias de imigrantes e o lugar deste trabalho na memória. Para isto elaboramos roteiros

abertos, segundo Paul Thompson:

O argumento em favor da entrevista livre fica mais forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidencias que valham por si mesmas, mas sim fazer um registro subjetivo de como um homem, ou uma mulher, olha para trás e enxerga a própria vida. Exatamente o modo como fala sobre ela, como a ordena, a que dá destaque, o que deixa de lado, as palavras que escolhe. Assim, quanto menos seu testemunho seja moldado pelas perguntas do entrevistador, melhor. (THOMPSON, 1992)

A primeira entrevista foi realizada com Pedro Ari Minella, que juntamente com

seus irmãos possuía uma serraria na localidade denominada Oitavo, na cidade de Vacaria.

Nascido na colônia em Santa Lucia em 1926, onde seu pai já exercia a atividade de

madeireiro, relatou que suas terras ficavam aproximadamente 20 km acima do rio Cai,

onde o trabalho era ainda muito artesanal:

A gente comprava, comprava pinheiros mas por exemplo o meu falecido pai no começo ele comprou terra com pinheiro(...) e ali ele instalou a serraria. Aquela ali naquele tempo(...) ela era tocada a serraria com o locomóvel. O locomóvel ele queimava lenha, era uma maquina assim que tinha agua dentro esquentava agua e ela fervia e quando ela fervia subia ela ia fazia pressão e quando abria aquela pressão tocava, a maquina toca a serraria (...) E a primeira serraria era uma armação que serrava uma taboa por vez. Depois mais adiante eles inventaram, eles chamavam de pitiça. Então a armação fazia o quadro o quadro grande de madeira assim e aquela madeira era colocada na tal de pitiça, passava. Essa pitiça tinha de 10 a 12 serras e saia 8, 10 ate 15 tábuas por vez,era devagarzinho. Então os primeiros anos era só uma armação serrava uma taboa por vez pegava tora redonda deixava quadrada. E depois essa taboa então ela tinha que ser engradiada, fazia pilha de tábua botava um refil no meio. Se botava digamos oito tábuas assim pra secar e depois mais um refete encavalado mais oito tábuas e fazia pilha de 5, 6 metro 4 e ficava ali pra secar.

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Assim depois levava de 60 a 90 dias pra secar quando tava seca. (Entrevista, 2011)

O transporte, de acordo com este relato, era feito via balsas no Rio Cai até Porto

Alegre, onde apareciam compradores. O processo de transporte era muito trabalhoso e não

tinha garantia de venda. Quando os pinheirais acabaram em Santa Lucia viu-se a

oportunidade de investir em Vacaria, que possuía um volume madeirável que chamava a

atenção. Mostrando desta forma, como foi feita a escolha por esta localidade.

Segundo o Pedro Ari Minella: “Era o único serviço digamos, que tinha naquele

tempo, não tinha as indústrias. Tinha muitas serrarias aí com 10, 15 empregados”. O

transporte era por carreta puxada a boi até a Caxias do Sul, onde era mais fácil garantir a

venda para grandes madeireiras como a Industrial Madeireira de Caxias. As estradas nem

sempre estavam em boas condições; segundo Minella, como havia muitos madeireiros e o

poder público não possibilitava estas estruturas, estes se reuniam e reivindicavam junto ao

prefeito mais investimentos. Quando seus pedidos não eram atendidos, arrumavam as

estradas utilizando a mão de obra dos trabalhadores das serrarias.

Outro fato que demonstra a crescente produção madeireira e a necessidade de

estrutura para o transporte, era a falta de pontes. No caminho para Caxias um particular

construiu uma ponte e cobrava pela passagem. Assim cada carreta de madeira pagava um

taxa para atravessar. Depois com mais recursos e o avanço da tecnologia a prefeitura

adquiria patrolas e se responsabilizava pela manutenção das estradas. (MINELLA, 2011)

Quanto aos trabalhadores, Minella relata que na maioria eram jovens, pois quem

tinha mais idade geralmente já havia adquirido sua própria terra. Muitos destes

trabalhadores eram pagos por dúzia de araucárias cortadas, outros por mês. As madeireiras

deveriam disponibilizar casas para os trabalhadores e suas famílias nas proximidades. Estas

casas formam os primeiros núcleos de expansão urbana da cidade, muitos bairros e

distritos surgem destas vilas de trabalhadores.

A indústria da madeira era muito importante para a economia local, ao ponto de a

profissão conceder certo status, como exemplifica Minella: “Muitos anos aí quando dizia:

Fulano tem serraria? Opa! Tá grande!” A estrutura foi melhorando e as toras eram trazidas

para a cidade para serrar, influenciando o comércio e movimentando a vida econômica e

social também no meio urbano. Porém, era uma indústria com altos e baixos, tanto que

quando, nas palavras de Minella, “a coisa ficava ruim a gente continuava serrando e

segurava a madeira engradiada, como dizia, para secar” e depois vendia. (Entrevista, 2011)

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A exploração da mata foi intensa: “Tinha bastante mato infelizmente a gente foi

derrubando, derrubou o pinheiro daí as árvores não tinham mais valor então derrubava

queimava e plantavam milho”. Há cerca de 30 anos os pinheiros começaram a acabar e

muitos seguiram em frente em busca de novos pinhais, alguns como o senhor MINELLA

(Entrevista, 2011), investiram na pecuária e na Agricultura.

Durante a entrevista, o senhor Minella nos concedeu algumas imagens, que

propiciaram novos enfoques e lembranças. A imagem 01 é um retrato da madeireira de sua

família, na década de 1940:

Imagem 01: Madeireira de Pedro Ari Minella em Vacaria-Rio Grande do Sul, 1940. Fonte: Acervo pessoal de Pedro Ari Minella.

A partir da fotografia, podemos observar a grandiosidade dos pinheirais, das toras e

também o transporte utilizado na época, com carroça e mulas e a madeira já em tábuas. As

fotos demonstram a intensidade do trabalho de extração, em função da grandiosidade das

araucárias.

A segunda entrevista foi realizada com Máximo Alfonso Zamban, que também

nasceu na serra em Antônio Prado. Com sua família mudou-se para Muitos Capões, onde

derrubaram a floresta, mas como a terra não era boa para a agricultura e, à época, não

existiam insumos, compraram uma terra com pinhais em Vacaria, também na localidade do

Oitavo. O trabalho, segundo Zamban era feito “tudo a machado, veja bem, naquele tempo

não tinha nem serrote” (Entrevista, 2011). A terra foi comprada e o pinheiral não teve valor

na compra, ou seja, não foi considerado como mais tarde seria um bem em separado da

terra com alto valor. Como a terra era boa para agricultura, investiu-se em milho e trigo. O

senhor Zamban lembra que naquela época não existia a soja, cultura incentivada mais

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tarde. Foi então que venderam os pinheiros, mas os compradores não conseguiram pagar, a

partir disto começaram a trabalhar com serrarias.

Segundo Zamban, o trabalho era intenso, contínuo do dia à noite, expandindo-se tão

rapidamente que se mudaram para mais perto da estrada. Depois conseguiram comprar um

caminhão, um trator com guincho para puxar as toras e construíram um moinho que ajudou

muito no crescimento econômico da família.

Zamban analisa que quando a família não tinha posses, a convivência era ótima.

Contudo, com o dinheiro apareceram problemas, por isto vendeu sua parte da serraria e do

moinho por três promissórias. Estas promissórias, segundo ele, mais tarde valiam muito

pouco e possibilitaram a compra de uma “Kombi” na qual trabalhou como motorista.

Depois voltou a trabalhar com serrarias e chegou a possuir oito, onde investia no

aprimoramento das técnicas com novas tecnologias, como a motosserra. Sobre esta

inovação relata que um de seus trabalhadores, muito habilidoso com o serrote, ao início do

treinamento para trabalhar com a motosserra comunicou que se afastaria do trabalho, pois

não “precisava dessa coisa” (Entrevista, 2011). Isto evidencia como o corte da madeira

também era parte da cultura local e possuía modos peculiares de trabalho; as inovações

técnicas muitas vezes ocasionavam o medo de ser substituído, ou ainda, pode-se supor,

feriam o orgulho do trabalho pesado tão considerado na época.

Os relatos dos senhores Zamban e Minella evidenciam que a memória deve então

ser considerada pessoal e individual, identificar estes personagens em cada particularidade

evitando caracterizá-los como um grupo homogêneo. Ainda, segundo Portelli se a memória

de um grupo fosse uníssona, somente uma testemunha representaria uma cultura inteira. A

memória é então como todas as atividades humanas: é social e pode ser compartilhada,

razão pela qual cada indivíduo tem a contribuir para a história “social”. (PORTELLI, 2006:

127).

A partir das entrevistas que fizemos com os dois moradores locais, pudemos

constatar como a floresta nativa que ocupava grande parte da região, foi utilizada como

fonte de renda pelos madeireiros. A atividade madeireira transformou a dinâmica

econômica das cidades da região, pois as serrarias se mostraram grandes geradoras de

riqueza. No entanto, constatamos também que houve uma grande perda florestal na região

e a degradação de diversos ecossistemas. No passado não havia grandes incentivos a

preservação, hoje os remanescentes são avaliados como irrisórios e a floresta ameaçada. A

“exuberante” floresta, que ocupava a região, atualmente se encontra nas falas e na memória

dos moradores da região.

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Referências Bibliográficas:

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