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DOS S I Ê , PADRE CICERO , , E SEU ESPIRITO PUBLICO P ersonagens que, por sua existência contra- ditória, por sua forte ação, por seu desempenho intenso e fora dos padrões considerados normais e corriqueiros, tenham deixado marcas indeléveis na História, este gênero de personagens, repito, ten- dem quase sempre a provocar dissensão ea suscitar polêmica na interpretação de seus atos, de sua personalidade e de seu percurso vital. O Pe. Cícero Romão Batista (1844-1934) é, na nossa história provincial e regional, a mais bem talhada figura a.entrar no molde dessa tendência. Assim, diferentemente do que costuma rezar a tradição segundo a qual o distanciamento trazido pelo tempo propiciaria a serenidade da análise crítica e de seu julgamento, quanto mais se toma longínqua a sua existência concreta, tanto mais acumula-se a montanha dos escritos de seus detratores e de seus apologistas. Dessa literatura vasta e desigual a seu respeito, talvez a única validade resida no registro de alguns fatos relevantes; e, por vezes, nem isso, visto que não passam de meras repetições. Além do mais, sua hermenêutica inclina-se sempre no rumo que toma exclusivas as vias de acesso, que enquadra rigidamente os questionamentos, tendendo a obstar ou dissimular a possibilidade de outros olhares e, enfim, a adensar a bruma da incompreensão no horizonte de sua historiografia. Daí que sejam raras as obras que, como Milagre emjoaseiro, de Ralph Della Cava, logram escapar a essa espécie de maldição que se exprime numa obsessão persecutória ou laudatória. Mas impõe-se, como exigência permanente, a revisão de rumos. A tarefa é difícil, mas não é impossível. Posto que, no caso, esteja em jogo antes a obra de uma vida e não, propriamente, obra literária do passado, pode-se encontrar bom princípio de leitura crítica nesta sintética e lúcida observação do vetusto Cõnego Femandes Pinheiro (1825-76), conservador, porém de boa cepa em matéria de ensaio histórico: "Condição essencial é do crítico a transportar-se pela imaginação à época em que foi escrita a obra que tem de julgar, fazendo consciencioso estudo das idéias que então dominavam(. ..)"l.Obvia- mente, não pretendo aqui empreender esse esforço. Apenas assinalo o caminho a explorar. E para ilustrâ-Io, nos limites desta exposição, pinçarei três ou quatro exemplos na vasta, complexa e fecunda atividade do criador da cidade de ]uazeiro do Norte, no Ceará. Para tanto, utilizarei cópias ou documentos origirIais da extensa correspondência que manteve o padre ao longo de sua vida, correspondência quase sempre cuidadosamente arquivada.! A maior parte do acervo da documentação ciceroniana constitui hoje os "Arquivos do Padre Cícero", cujos depositários são os Salesianos de ]uazeiro do Norte (Ceará), seus herdeiros testamentários. Todavia, parte significativa desse material desapareceu, extraviou-se ou se deteriorou. Mesmo assim, são milhares de documentos manuscritos ou datilografados, pois o Padre, ínclusíve pela prudência que lhe aconselhava a longa luta que teve de manter com o autoritarismo de seus superiores hierárquicos, cultivava a louvável providência de reproduzir a correspondência que expedia ou recebia. Tais cópias foram na sua maioria manuscritas por ele mesmo, pois só depois de 1926, aos 82 anos de idade, quando a dupla catarata se intensificara, é que se observam outras caligrafias: ou seja, a partir dessa data, quase tudo que escreveu era ditado e os textos manuscritos ou datilografados vêm assinados por ele. Além dessa documentação, existem dezenas de livros que foram da sua biblioteca particular. Foi somente a partir de EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES* RESUMO Estudo crítico do correspondência mantido pelo Podre Cícero, ressaltando os questões que o inquietavam, seu espírito público e suo índole missionário. Anexo índice dos Postos e Arquivos do Podre Cícero deposi- tado em Juazeiro do Norte. * ProfessorTitular do Departamento de Ciências So- ciais e Filosofia do UFC. 84 Revisto de Ciências Sociais v.26 n.l/2 1995

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DOS S I Ê

,PADRE CICERO, ,

E SEU ESPIRITO PUBLICO

Personagens que, porsua existência contra-ditória, por sua forte

ação, por seu desempenhointenso e fora dos padrõesconsiderados normais ecorriqueiros, tenham deixadomarcas indeléveis naHistória, este gênero depersonagens, repito, ten-dem quase sempre aprovocar dissensão e asuscitar polêmica nainterpretação de seus atos,de sua personalidade e deseu percurso vital. O Pe. Cícero Romão Batista(1844-1934) é, na nossa história provincial eregional, a mais bem talhada figura a.entrar no moldedessa tendência.

Assim, diferentemente do que costuma rezar atradição segundo a qual o distanciamento trazidopelo tempo propiciaria a serenidade da análisecrítica e de seu julgamento, quanto mais se tomalongínqua a sua existência concreta, tanto maisacumula-se a montanha dos escritos de seusdetratores e de seus apologistas. Dessa literaturavasta e desigual a seu respeito, talvez a únicavalidade resida no registro de alguns fatos relevantes;e, por vezes, nem isso, visto que não passam demeras repetições. Além do mais, sua hermenêuticainclina-se sempre no rumo que toma exclusivas asvias de acesso, que enquadra rigidamente osquestionamentos, tendendo a obstar ou dissimulara possibilidade de outros olhares e, enfim, a adensara bruma da incompreensão no horizonte de suahistoriografia. Daí que sejam raras as obras que, comoMilagre emjoaseiro, de Ralph Della Cava, logramescapar a essa espécie de maldição que se exprimenuma obsessão persecutória ou laudatória.

Mas impõe-se, como exigência permanente, arevisão de rumos. A tarefa é difícil, mas não éimpossível. Posto que, no caso, esteja em jogo antesa obra de uma vida e não, propriamente, obraliterária do passado, pode-se encontrar bom

princípio de leitura críticanesta sintética e lúcidaobservação do vetustoCõnego Femandes Pinheiro(1825-76), conservador,porém de boa cepa emmatéria de ensaio histórico:"Condição essencial é docrítico a transportar-se pelaimaginação à época em quefoi escrita a obra que tem dejulgar, fazendo conscienciosoestudo das idéias que entãodominavam(. .. )"l.Obvia-mente, não pretendo aqui

empreender esse esforço. Apenas assinalo ocaminho a explorar. E para ilustrâ-Io, nos limitesdesta exposição, pinçarei três ou quatro exemplosna vasta, complexa e fecunda atividade do criadorda cidade de ]uazeiro do Norte, no Ceará. Para tanto,utilizarei cópias ou documentos origirIais da extensacorrespondência que manteve o padre ao longode sua vida, correspondência quase semprecuidadosamente arquivada.! A maior parte doacervo da documentação ciceroniana constitui hojeos "Arquivos do Padre Cícero", cujos depositáriossão os Salesianos de ]uazeiro do Norte (Ceará), seusherdeiros testamentários. Todavia, parte significativadesse material desapareceu, extraviou-se ou sedeteriorou. Mesmo assim, são milhares dedocumentos manuscritos ou datilografados, pois oPadre, ínclusíve pela prudência que lhe aconselhavaa longa luta que teve de manter com o autoritarismode seus superiores hierárquicos, cultivava a louvávelprovidência de reproduzir a correspondência queexpedia ou recebia. Tais cópias foram na suamaioria manuscritas por ele mesmo, pois só depoisde 1926, aos 82 anos de idade, quando a duplacatarata se intensificara, é que se observam outrascaligrafias: ou seja, a partir dessa data, quase tudoque escreveu era ditado e os textos manuscritosou datilografados vêm assinados por ele. Além dessadocumentação, existem dezenas de livros que foramda sua biblioteca particular. Foi somente a partir de

EDUARDO DIATAHY B. DE MENEZES*

RESUMOEstudo crítico do correspondência mantidopelo Podre Cícero, ressaltando os questõesque o inquietavam, seu espírito público esuo índole missionário. Anexo índice dosPostos e Arquivos do Podre Cícero deposi-tado em Juazeiro do Norte.

* ProfessorTitular do Departamento de Ciências So-ciais e Filosofia do UFC.

84 Revisto de Ciências Sociais v.26 n.l/2 1995

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1964 que Ralph Della Cava, com a ajuda dobibliotecário do Colégio Salesiano, Pe. Manuel Isaú,iniciou a enorme tarefa de organização e classificaçãodesse arquivo. Algum tempo depois, foram tiradascópias xerográficas desse material e distribuídas aalguns cicerólogos (Amália Xavier de Oliveira,Renato Casimiro, Luitgarde de Oliveira, etc.).Posteriormente, desde 1976, o Pe. Antenor deAndrade Silva, então diretor do Colégio, assumiu aresponsabilidade de sua divulgação mediantealgumas publicações. 3

Um aspecto que ressalta à vista de quem se der aotrabalho de percorrer essa volumosa correspondência,que se manteve regularmente até perto de sua morteem 20 de julho de 1934 - tanto a que já foiorganizada e publicada, quanto aquela que se achadispersa em arquivos privados de inúmeras pessoas-, é o seu arguto senso da realidade, a constantededicação à sua gente romeira, o atento eempenhado interesse pelas graves questões de suaregião e do país, enfim, numa palavra, seu admirávelespírito público.

Uma das questões que mais parecia inquietar oseu espírito generoso era naturalmente a presençacíclica das secas no vasto território de nosso serní-árido, das quais ele testemunhou, na sua longaexistência de quase 90 anos, algumas das maiores,como as de 1877-1880, 1888-1889, 1903-1904,1915 e a de 1931-1932.

Quando da pavorosa seca de 1915, aquela quefornecera o quadro para o primeiro romance deRacheI de Queiroz, constata-se amplamente a suaempenhada diligência em buscar soluções, conformese constata neste telegrama, de 11 de novembrodaquele ano, ao "Dr. Floro", que se achava emFortaleza: "Faça esforço telegraphando Governosalvar vidas mandando ja trabalhos, socorros. Aquisepultam todos dias de pura fome. Outros caidosruas, caminhos. Socorros agenciados todos Estados,nada vem aqui. (...). Cearenses tem direito reclamar.Pe. Cícero".

Desde essa época, segundo se pode observar emcarta datada de "[oaseiro, 12 de outubro de 1915",dirigida ao Dr. Thomaz Pompeu Sobrinho," na qualo Pe. Cícero afirma ter escrito ao "illustre Dr. AarãoReis,s pedindo para que mande iniciar os trabalhosdo açude de Carás, já estudado, bem como outrasobras públicas, a fim de que, por esses meios, possasalvar-se a população desta zona, maximé destacidade que está a morrer de fome. C .. ). Ao Mestreamigo peço empregar toda sua influência peranteo digno Dr. Aarão ...".

E pelas décadas seguintes, é possível acompanharsuas insistentes demandas junto às autoridades para

construção desse Açude Carás. De fato, em cartade 28 de fevereiro de 1934, na sua avançada velhice,ele ainda se dirigia ao "Dr.José Américo [de Almeidal,Ministro da Viação, para lembrar-lhe a promessadessa obra: "Tanto lhe tenho pedido o que aindavai ser o objectivo desta que já temo serconsiderado importuno. V. Excia. entretanto mesaberá desculpar porque sabe, por conhecimentoproprio, que se trata de pedido justo e patriotico,cuja insistência, de minha parte, se apoia no meugrande amor a esta terra e á sua gente, adivinhando,certamente, que me refiro á construção do "AçudeCarás". Quando V. Excia. andou aqui e,pessoalmente observou o local desse reservatorio,deixou-nos a confiança inabalavel de que o açudeseria construido. Entretanto, não sei porque motivo,longo já é o silêncio sobre o assumpto. Mas elle nosinteressa profundamente, porque o consideramosproblema vital da continuidade do progresso deJoaseiro, e dahi a razão porque não me canço debater á porta de V. Excia., na esperança de aindaser atendido. C ..). Isto aliás nada valerá (Pe. Cíceroreferia-se aos custos da obra) em comparação como beneficio patriotico que V. Excia. fará a esta terrae ao seu povo, dando meios sufficientes para adefinitiva estabilidade de uma cidade de cerca decincoenta mil habitantes ...". E terminava a carta,firmando-a com assinatura trôpega e quase ilegível.

Nessa mesma quadra, que se desenrola à voltada destruidora seca de 1932, há um longo telegramado Padre para o mesmo Ministro José Américo (cujacópia ele assinala ter enviado também para oPresidente Getúlio Vargas), que vale como umtestemunho ousado e veemente de sua dedicaçãoao seu povo nordestino, mas também onde já senotam as divergências e desigualdades regionaisentre norte e sul do país: "Em 16 abril 1932. Dr.José Américo, M. D. Ministro Viação - Rio. Acabo lerjornaes Fortaleza governo deliberou concederpassagem flagellados nordeste, fim escaparemterrivel morte pela fome em outro lugares maisfavorecidos natureza. Minha alma de sacerdote epatriota sente-se profundamente compungida comesse exilio forçado nossos patricios, comocertamente se sentirá a de V. Excia. authenticonordestino, tanto pela origem, como pela grandeza,generosidade e heroismo das acções. Nestascondições, peço a V. Excia. que, como legitimorepresentante deste povo soffredor e forte, eprestigiado auxiliar do actual governo da Republica,se opponha a essa medida extrema e dolorosa desupposta salvação da nossa gente, ja em outrostempos lembrada, como um escarneo aos nossossofrimentos, por certas mentalidades do Sul. Confio

MENEZES, Eduardo Diotohy B. de. Podre Cícero e seu espírito público. pp 84 o 89 85

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que V. Excia. agirá com desassombro e os maioresesforços no sentido de se conseguir que os nossospatricios sejam socorridos nos seus proprios Estados,como é patriotico e humano. Mande pois o governotrabalho e elles, derramando o seu suor, se salvarãosem o sacrifício supremo de abandonarem seus larese a terra querida onde nasceram, contribuindo aomesmo tempo para o desenvolvimento e grandezada Nação. (...). Espero na sabia, generosa e superioradministração do actual governo que, ouvindo onosso clamor, attenderá ao nosso pedido, mandandosem demora necessarios recursos para salvação deum povo que é incontestavelmente, na expressãode Euclydes da Cunha, o cerne da nacionalidade".

Na mesma época, o jornal O Globo, do Rio deJaneiro, reproduziu esse telegrama.

Noutro telegrama desse período, dirigido aopresidente Getúlio Vargas, o Padre Cícero retomaessa mesma preocupação: "Inteirado patrióticasugestão desembargador alivio Camara aberturacredito especial 20 mil contos [deréislpara imediatosocorro flagellados nordeste, iniciando-se serviçosdifferentes municipios regiões torturadas criseclimaterica, tomo liberdade insistir, perante V. Excia.,serem atacados trabalhos ramal ferroviario joaseíro-Barbalha, açude Carás ja estudado, bem comoprolongamento RVC partindo de Missão Velha ...".

Por outro lado, em meio à sua correspondênciapassiva, não é difícil assinalar cartas e telegramasde personalidades ou instituições que buscavam eagradeciam a ajuda prestada pelo Padre Cícero aquestões do mesmo gênero. É o caso, por exemplo,de carta datada de Orós, em 3 de abril de 1922, aele dirigi da por J. A. Sargent, Superintendente de"Dwight P. Robinson and Company, Inc., EngineersAnd Constructors, Administradores pela InspectoriaFederal de Obras contra as Seccas", na qual, entreoutros assuntos, ele agradece ao Padre: "O valiosoauxilio de V. Revma. e os esforços do Sr. JoséMacedo em angariar pessoal para os nossos serviços,são immensamente apreciados por nós".

Para concluir esse rápido perfil da face públicado Padre Cícero, em sua índole missionária, porématenta à importância política de problemas cruciaispara o interesse nacional, como fora a campanhade que resultou a Constituição de 1934, reproduzoa seguir os trechos principais de valiosa carta ao Dr.Alceu de Amoroso Lima, mais conhecido por Tristãode Athayde, seu pseudônimo literário. Antes,porém, seria fecundo contrastar o texto desta cartacom alguns trechos de um editorial passional,preconceituoso, mordaz e cruel do jornal O Ceará,de 9 de abril de 1926, quando, após a morte deFloro Bartolomeu, que ocupava então seu segundo

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mandato como deputado federal, o nome do PadreCícero foi indicado para substituí-Io:

"O Ceará em peso ficou certo ontem de que oPadre Cícero aceitou sua candidatura pararepresentante do Estado.

C .. ).Estando nós entre os que pensam dever ser a

representação de um Estado confiada a sua eliteintelectual e aos seus valores sociais, enfileiramo-nos, por isso, na legião contrária à indicação donome do chefepolítico dojuazeiro. (...).

Possui o candidato conservador energia física ecapacidade intelectual para desempenhar comeficiência o mandato que se lhe vai confiar em nomedo povo?

Evidentemente que não.Octogenário, de saúde profundamente combalida,

faltar-lhe-á talvez a força para empreender umaviagem ao Rio, onde tem de exercer as suas funçõesde nosso mandatário.

Sob o ponto de vista cultural, por mais baixoque esteja o nível da Câmara, S. S., não estâ emcondições de representar a intelectualidadecearense. De inteligência não acima do comum,tendo a ilustração teológica dos seus pares, opastor do [uazeiro, por ter confinada toda a suavida na estreiteza do meio sertanejo, é hoje umcérebro anquilosado, povoado de imagens dofanatismo e do cangaceirismo. c. .. ). "r,

O editorialista se prolonga por vários comentáriosem que imagina perversamente situações ridículasque o Padre representaria na capital da Repúblicano exercício desse mandato, ao qual na verdaderenunciou. A melhor resposta ao texto do jornal deoposição encontra-se na carta que, segundo assinaleiacima, o velho sacerdote escreveu a Tristão deAthayde seis anos depois daquele editorial. Veja-seo seu teor:

"Ioaseíro, 18 de outubro de 1932.Amigo Snr. Dr. Tristão de Athayde.Minhas Saudações.Quando se encontrava em plena actividade a

revolução de São Paulo, dirigi a sua Emminencia oSr. Cardeal D. Sebastião Leme o telegramma cujacopia envio.

aquelle tempo, preoccupava-me o espírito ohorror da guerra fratricida, que ensanguentava ofecundo solo da terra bandeirante, pondo em riscoaté a integridade do Brazil.

Agora, voltam-se as minhas preoccupaçôes paraoutra questão de igualou, quiçá, de maiorimportância, sobretudo para nós catholicos, aquestão da reforma constitucional. De facto, oslegisladores de 91, infiltrados do virus pernicioso

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dopositiuismo, deram-nos uma constituição atbéa,carecida de orientação pratica, alheia ásnecessidades bra zileiras, e dahi o cortejoinfindavel dos males, que acompanharam a nossaRepública, desde o seu inicio, e tiveram o seuepilogo na revolução de outubro de 1930.

Entendo, consequentemente, que os destinos denossa nacionalidade, a partir da nova phaseconstitucional do Paiz, dependerão, uisceralmerue,da magna carta que nos ba de reger.

Se ella ainda vier afastada de Deus, dosensinamentos da moral cbristã, sem o sensopratico, as cautelas, asprevisões, que a experienciaaconselha, caminharemos, inevitavelmente, parao abysmo, vivendo, d'ora em diante, de choqueem choque, de esbanjamentos em esbanjamentos,de erro em erro, até a ruina completa da Nação.

Mesmo na historia hodierna da America,encontraremos exemplos justificativos desse nossomodo de pensar. Basta volvermos o olhar para oMéxico de Cales." Quando esse terrivel caudilho sedesbragava em inominaveis violencias contra o cleroe a Igreja de sua Patria, invocava, para cohonestaros seus crimes, certos dispositivos que ainexperiencia ou maldade dos legisladores da suaterra enxertaram na constituição.

Portanto, nós brazileiros e, principalmente, nóscatbolicos, devemosestaralertosIsictl na elaboraçãode nosso futuro pacto fundamental. E o Senhor,que é um catholico sincero e um espirito brilhante,deve, quanto antes, occupar o lugar de destaqueque lhe é, naturalmente, reservado, na vanguardada campanha constitucionalista, defendendocertas idéas.

Quanto a mim, desejaria, principalmente, quese instituissem normas pondo freio á falta deescrupulo com que os nossos administradores teemsacrificado o Paiz, em transações criminosas [asmesmas "tenebrosas transações" de que muito maistarde falará Chico Buarquel, como são as concessõesde terras a estrangeiros, os empréstimos externosetc. Isso deverá ficar expressamente probibido,com a cominação de não ficarem os brazileirosresponsaoeispor taes transações.

Desejaria mais que fosse criado um tribunal "permanente, com as attribuições de organizar osplanos para a solução dos differentes problemasda Nação, ou seja, oplano geral da administraçãodo Paiz, o que asseguraria a continuidade dessaadministração, evitando-se oprurido de inovaçõesde cada governo que surge, sempre emcontraposição ás iniciativas dos governos quesaem. 9 (...).

Trabalhe, Snr.Atbayde, para que tenhamos uma

constituição orientada por estas idéas. Entenda-se com sua eminencia, o Snr. Cardeal, e consigaque Elle chefie essa campanha, dando instruçõesa todos os Bispos e Arcebispos para que ponhamem acção o clero, afim de podermos despertar ocivismo dos catholicos do Brazil, fazendovictoriosas estas nossas aspirações.

Se isso acontecer, terá o Snr. contribuido para afelicidade e para a grandeza da nossa idolatradaPatria.

Com muita admiração subscrevo-me.

Seu velho am». att».Pe. CíceroRomão Batista. 11

ANEXOPastas do Arquivo de Padre Cícero Romão Batista01. Documentos Avulsos: 1926-193402. Correspondência Política e Oficial: 1911-192603. Diário Espiritual: 09 de julho de 191904. Correspondência com D. )oaquim)osé Vieira: 1889-191005. Correspondência com D. )oaquim)osé Vieira: 1884-189006. Correspondência com Pe. Alexandrino de Alencar,D. Quintino, D. Francisco de Assis Pires e D. Manuel07. Correspondência Política e Oficial: 1900-191008. Floro Bartolomeu09. Livro de José Marrocos sobre os Fatos de )uazeiro10. Ainda sobre José Marrocos11. Correspondência Política e Oficial: 1911-191412. Correspondência Pessoal e Oficial: 1827-189813. Relatório e Processo sobre os Fatos de )uazeiro.Outros documentos14. Correspondência com )uvêncio Santana15. Correspondência com D. Luiz Antônio dos Santos:1872-188016. Questão Religiosa: 189917. Questão Religiosa: 189818. Questão Religiosa: 189719. Documentos Importantes separados das pastasoriginais: 1889-192420. Comércio21. Legião da Cruz22. Correspondência para Pe. Cícero, Antero, Glycério.Mons. Monteiro, Sother23. Vários Documentos24. Questão Religiosa: 1893-189625. Correspondência do Pe. Cícero, Clero, OrdensReligiosas, etc.26. Fatos do )uazeiro e Questão Religiosa27. Correspondência depois da morte: 1935- 193928. Correspondência do Pe. Cícero29. Município do ]uazeiro30. Missas31. Salesianos32. Terras, Casas, Heranças, Juros

MENEZES, EduordoDiotohyB. de. PodreCícero e seuespíritopúblico. pp. 84 o 89 87

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33. Questão Religiosa: 189134. Questão Religiosa: 189235. Questão Religiosa a partir de 190036. Correspondência pessoal do Pe. Cícero; por vezesrefere-se ã Questão Religiosa37. Documentos de 1890-189938. Missas e outros documentos39. Missas40. Beata Mocinha41. Pedidos Populares ao Pe. Cícero: 1900-190842. Pedidos feitos em 190943. Pedidos de janeiro a junho de 191044. Pedidos de julho a setembro de 191045. Pedidos de outubro a dezembro de 191046. Pedidos de janeiro a junho de 191147. Pedidos de julho a setembro de 191148. Pedidos de outubro a dezembro de 191149. Pedidos de janeiro a abril de 191250. Pedidos de maio a agosto de 191251. Pedidos de setembro a dezembro de 191252. Pedidos53. Correspondência popular de 1914 a 191954. Correspondência popular de 1920 a 192955. Correspondência popular de 1930 a 193456. Cartas e envelopes57. 102 Cartas58. 107 Cartas59. Correspondência Política e Oficial: 1926-193460. Regulamento Interno da Câmara Municipal do Crato61. Regra dos Crucificados de Jesus Crucificado (emitaliano)62. Apostolado da Oração, etc.63. Bispado do Cariri, Baronesa de Ibiapaba64. Correspondência com José G. Bezerra de Menezes65. Conde Adolpho Van Den Brule, Minas de Coxá,Dr. Geraldo Frank66. Documentos Irrelevantes67. Correspondência Avulsa68. Documentos Incompletos69. Duplicatas, Relatórios, Súplica70. Fragmentos: 1887-191471. Miscelânea e Diário-visão de uma beata (Mariadas Dores)72. Recortes de Jornais: 1908-1966

NOTASI.Postilas de retórica e poética. Rio de Janeiro, 4~

ed., 1901, p. 172, apud PINHEIRO, Mário PortugalFernandes: -Intr oduçã o- in PINHEIRO, CônegoFernandes: Estudos Históricos [acrescidos de "EstudosAvulsos" e "Brasileiros Ilustres"), Rio de janeiro-Brasilia,2' ed.: Cátedra/INL, 1980, p. XI.

2.Agradeço ao amigo Geová Sobreira, que me cedeualguns desses documentos do seu arquivo pessoal.

3.Para maiores informações, consultar SILVA, Pe.Antenor de Andrade (salesiano): Os Arquivos do PadreCícero. juazeiro do Norte: s/ed., 1977; do mesmo autor:Cartas do Padre Cícero (1877-1934). [Dos originais

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manuscritos). Salvador: E. P. Salesianas, 1982. Consulte-se ainda: URSULINO, Ana Cristina Azevedo (org.):Catálogo dos Telegramas do Padre Cícero. [Resumo dacorrespondência ativa e passiva do Arquivo do PadreCícero, de 1912-1916). Fortaleza: UFC-Núcleo deDocumentação Cultural (Nudoc), s/d. Ver ainda, emanexo, a lista das pastas que compõem os "Arquivosdo Padre Cícero".

4.Thomaz Pompeu de Sousa Brasil Sobrinho(Fortaleza, 1880-1967) foi indiscutivelmente umreconhecido mestre da História, da Geografia, daAntropologia, da Etnografia indígena e dos assuntosdo Nordeste brasileiro. Engenheiro Civil pela Escolade Minas de Ouro Preto, foi diretor da antiga Inspetoriade Obras Contra as Secas, o atual DNOCS, eleitomembro do Instituto do Ceará (Histórico, Geográficoe Antropológico) em 1928, assumiu a sua presidênciaem 1938, substituindo o Barão de Studart,permanecendo no cargo até o ano de sua morte; foimembro e presidente da Academia Cearense de Letras,professor da Escola de Agronomia e diretor doInstituto de Antropologia da Universidade Federal doCeará. De sua ampla bibliografia constam obras como:Pré-Histôria do Ceará; Prato-História do Ceará; Históriadas Secas; Esboço Pisiogrâfico do Ceará; A Construçãodo Orôs, Significação de Algumas Palavras Indígenas;O Homem do Nordeste; etc.

5.Aarão Leal de Carvalho Reis (Belérn, 1853 - Rio,1936) foi um dos pioneiros da eletrotécnica no Brasile professor da Escola Politécnica do Rio de Janeiro;participou de várias obras ferroviárias, portuárias e deaçudagern, foi diretor-geral e consultor técnico doMinistério da Viação e destacou-se sobretudo comochefe da comissão de construção de Belo Horizonte(1897), primeira grande inovação urbanística do país.Foi ainda diretor dos Correios e Telégrafos, do Bancodo Brasil, da Estrada de Ferro Central do Brasil, doLoide Brasileiro e da Inspetoria Federal de Obras Contraas Secas (IFOCS).

6.Esse editorial foi integralmente reproduzido porLOURENÇO FILHO: [uazeiro do Padre Cícero, 3' ed ..São Paulo: Ediç. Melhoramentos, s/d., pp. 192-194.Retirei daí os trechos citados.

7.Pe. Cícero refere-se aí a Plutarco Elías Calles, quefoi presidente da república mexicana de 1924 a 1928.Mas interessa assinalar também certas coincidênciasou analogias com a nossa situação atual: a campanhapela reforma da Constituição, a referência à situaçãodo México, a corrupção na administração pública, adívida externa, a desnacionalização do nossopatrimônio, etc., conforme se verá no restante da carta.

8.0 Padre usa esse termo em sua antiga acepçãode órgão de deliberação coletiva, de naturezaadministrativa, consultiva, etc ..

9.Esse fato assinalado lucidamente pelo Padreconstituía (e em grande parte permanece vigente hoje)episódio característico de nossa vida política, mais oumenos institucionalizado como processo normal datransferência do poder entre os partidos, e que no

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século passado era conhecido como a derrubada.Manoel de Oliveira Paiva fornece um quadro magistraldesse processo, no seu célebre romance, de que doua seguir apenas um trecho: "Derrubada velha, por todaparte. Voou o coletor provincial, e o coletor geral, oagente do Correio. Voaram o delegado de polícia e ossubdelegados com os respectivos suplentes, osinspetores de quarteirão, os escrivães das coletorias,o promotor público da Comarca, o bacharelzinhoRabelo. Foram assim postos fora, sem motivo expresso,todos os funcionários demissíveis e nomeados, emseus lugares, pessoas do outro partido, que subiracom uma sede ardente de patriotismo. Dizem que atémortos foram exonerados. O juiz Municipal e seus

suplentes, nos diferentes termos, haviam de pular logoque findassem o quadriênio, exceto algum que virassecasaca em favorável ocasião. Para a Câmara Municipale os juizos de paz, aí estavam as urnas, cuja voz nãopodia destoar dos intuitos regenera dores do partidoque subira. O juiz de Direito, se inchasse, tomariaremoção ou processo perante a Assembléia Provincial.Os oficiais superiores da Guarda Nacional, reforma comeles, para ser coronelizada nova gente. E para agaloarmais patriotas, criar-se-iamainda mais batalhões, corpos,esquadrões e seções das três armas, como exigissemos novos dungas da localidade. (...)". [Cf.PAIVA,Manoelde Oliveira: Dona Guidinba do Poço. Rio de janeiro:Edições de Ouro, 1965, pp. 123-1241.

MENEZES, Eduardo Diotohy B. de. Podre Cícero e seu espírito público. pp. B4 o 89 89