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OUTROS SABERES SOBRE A ESCOLA: A VOZ DO ALUNO NA PESQUISA
EM EDUCAÇÃO
Carmen Lucia Guimarães de Mattos
University of British Columbia (UBC)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Walcéa Barreto Alves
Centro Universitário La Salle (UNILASALLE)
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
RESUMO
Este texto discute a voz aluno na pesquisa educacional. Seu objetivo é compreender os
processos e práticas interativas no ambiente escolar na perspectiva dos estudantes que
fazem parte desse contexto. As análises derivam de duas pesquisas; uma bibliográfica
que investigou (683) artigos sobre o fracasso escolar baseados em entrevistas
“com/sobre” alunos que fracassam na escola e encontrou somente (1) que realmente
ouviu esse aluno; e a outra é uma pesquisa etnográfica que privilegiou o aluno como
agente ativo no ato de dar sentido aos dados coletados durante a realização da pesquisa,
sentidos estes que podem provocar mudanças na escola. Estudos de Fine (2013), Grion
(2013), Cook-Sather (2013), Mattos (2011, 1992) e Alves (2003, 2012) formam a base
teórico-epistemológica dos resultados apresentados. Fatores como: relações assimétricas
de poder, currículo centrado em práticas pedagógicas que não privilegiam os saberes
dos alunos, pouca sensibilidade da escola em relação aos temas que permeiam o
ambiente escolar e a violência da/na escola, emergiram da voz do aluno que,
transformadas em vinhetas etnográficas, demonstram como eles se descolam do
entendimento e realização de suas tarefas, dos professores, dos pais e de outros alunos e
priorizam emergências que surgem na sala de aula, na escola e na família. Como
resultado, esses alunos experimentam situações de vulnerabilidades em sua
escolarização e as descrevem no enfrentamento das vivências do dia a dia. Para os
alunos a escola é percebida como um espaço de construção de experiências com
potencial transformador, especialmente a partir de suas vozes, permitindo compreender
que o ensinar não se restrinja a uma mera transferência de conhecimentos, mas que a
escola seja lugar de vida, de produção de conhecimento e de vicissitudes que
propulsionem novas formas de interpretar, ver e ouvir a realidade a partir do outro. Em
particular, invertendo-se as relações hierárquicas de poder e flexibilizando a assimetria
existentes entre elas.
Palavras-chave: aluno; etnografia; pesquisa bibliográfica
Introdução
Este texto busca dialogar com professores e pesquisadores sobre a importância de
ouvir o aluno como fonte primária de conhecimento sobre a escola, o ensino e a
pesquisa. Assim, pensa-se nos alunos como agentes do conhecimento, potencialmente
transformadores da escola. O suporte teórico para as análises da voz do aluno tem como
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base os conceitos e teorias derivados dos estudos de Fine (2013) a respeito da pesquisa
participativa, Cook-Sather (2013) e Grion (2013) sobre o potencial da voz do aluno
como contribuição para promoção de mudanças na escola, Mattos (2011, 1992) sobre a
abordagem “bottom-up” (de baixo para cima) e (2003, 2012) sobre a reflexividade dos
participantes na pesquisa etnográfica.
Dentre as diversas etapas que envolvem o trabalho de pesquisa, em uma delas,
realizada por Mattos e Castro (2010a), intitulada “Fracasso Escolar: Gênero e Pobreza”
foram estudados 2.017 textos científicos nacionais sobre o fracasso escolar em escolas
públicas brasileiras. Este estudo bibliográfico chamou a atenção das autoras para o
grande número de textos que argumentavam que os seus dados expressavam as
percepções e o entendimento dos alunos sobre o fracasso escolar. Mediante interesse
destas pesquisadoras sobre como estes alunos foram ouvidos, selecionou-se 683 textos
que utilizavam entrevistas como instrumentos. Os objetivos foram: verificar a presença
ou não de alunos como informantes primários dos estudos realizados; compreender
como essas pesquisas situavam os alunos; e verificar se eles foram ouvidos ou não.
O resultado da pesquisa apontou que: dos 683 textos, somente dez (10) relatavam
ter incluído em suas entrevistas a participação de alunos como sujeitos da pesquisa,
assim como outros participantes: professores, pais e diretores de escola. Essas
pesquisas, embora variando o modelo de entrevistas, fizeram uso, prioritariamente, de
entrevistas que pudessem lançar luz sobre o fracasso escolar e a realidade de crianças e
jovens que o viviam. Entretanto, na descrição sobre esse fracasso priorizaram as falas
dos demais entrevistados e não dos alunos.
Entre os dez (10) textos que incluíram os alunos como entrevistados, apenas um
(1) utilizou entrevista aberta, isto é, que ofereciam liberdade para que os entrevistados
respondessem o que pensavam, independentemente das perguntas pré-concebidas pelo
entrevistador. Pode-se inferir sobre os 683 estudos analisados, que existe uma
dificuldade, entre os pesquisadores, em lidar “com a fala do outro”, sobre o seu objeto
de estudo. No caso dos estudos analisados, as vozes sobre o fracasso escolar. Ao mesmo
tempo em que parece existir uma necessidade, entre esses mesmos pesquisadores, de
controlarem “o que este outro fala”, a partir da tentativa de falar sobre este outro e,
assim, comprovar suas próprias hipóteses sobre o que é o fracasso escolar na visão dos
sujeitos de suas pesquisas, embora sem a participação dos mesmos nesses resultados.
Esses estudos revelam a necessidade de pesquisas que deem relevância à voz do
aluno enquanto agência humana no ato de dar sentido ao conhecimento acerca de sua
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realidade, especialmente na escola e na sala de aula. Revela, ainda, que essas pesquisas
educacionais, embora os tenha descrito como sujeitos primários, não os reconhece como
vozes legítimas e válidas, pois interpretam o que esses alunos falam sem, efetivamente,
ouvir a sua voz enquanto produtores do conhecimento.
A ausência das vozes de alunos nas pesquisas educacionais releva a importância
de se explorar mais detalhadamente o que eles tem a nos dizer sobre si próprios e sobre
as suas escolas.
Entendemos que numa Pedagogia vivenciada na condição pós-moderna (PINAR,
2003), os alunos têm acesso a uma variedade infinita de informações e que o papel de
professores, sabedores dos conteúdos validados culturalmente, é de auxiliá-los a
fazerem sentido dessas informações, transformando-as em conhecimento e atribuindo
significado à sua realidade com seus próprios conteúdos.
Reconhecendo a ausência da voz do aluno em pesquisas educacionais (MATTOS;
CASTRO, 2010b), pretende-se estudar o que dizem essas vozes, a partir do acervo de
pesquisa do banco de dados do Núcleo de Etnografia em Educação (NetEdu/UERJ).
Esses dados, envolvem coletas realizadas em escolas públicas com a participação e
colaboração de alunos da educação básica e de graduação (bolsistas de iniciação
científica da UERJ) considerados sujeitos primários e agentes ativos nessas pesquisas.
Portanto, as bases empíricas que compõem as vinhetas etnográficas exploradas no texto
advém de pesquisas desenvolvidas ao longo dos últimos 10 anos por este Núcleo.
Ouvindo a voz do aluno: contribuições teóricas
O Projeto Ciência Pública (Public Science Project), atualmente desenvolvido por
Michelle Fine, na Universidade da Cidade de Nova York (City University of New York
– CUNY), nos Estados Unidos da América (EUA), tem como uma das atividades, a
pesquisa que é realizada em aliança entre universidades, pesquisadores, estudantes de
graduação, ativistas, jovens em desvantagem social e membros de diversas
comunidades e instituições da cidade, procuradores públicos, advogados, entre outros.
O modelo de pesquisa participativa adotado, evidencia o engajamento político e
acadêmico entre os membros da equipe. Existe uma prioridade em ouvir, de forma
igualitária, as vozes de todos os participantes, em especial os marginalizados
socialmente. Fine explica que o grupo criou uma “zona de contexto” (TORRES, et. al.,
2008), o que significa que pessoas de diversos segmentos sócio-educacionais se reúnem
com os pesquisadores e, juntos, partilham conhecimentos e criam as questões da
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pesquisa, os instrumentos, as amostras, as análises e os produtos, tornando-se uma
equipe e constituindo o que ela considera “campo de pesquisa”. Nesse contexto, todos
os membros da equipe são treinados juntos sobre métodos de pesquisas, projetos e
epistemologia. Todas as diferentes vozes são consideradas e as diferentes opiniões são
colocadas no campo de compreensão e negociação. Para Fine (2013), a chave para que
isso aconteça é acreditar na “ação de pesquisa crítica participativa”, de forma que as
pessoas que viveram injustiças e que tem um entendimento íntimo sobre os caminhos
pelos quais a injustiça opera, possam ter liberdade para relatar esses eventos.
Fine (2013) explica que, nesse processo, o mais desafiador é convencer as pessoas
com Doutorado de que os estudantes marginalizados, também têm conhecimento. O
cultivo de diferentes opiniões, quase sempre, significa uma “queda de braço” sobre as
divergências. Segundo a pesquisadora, se existem diferentes tipos de jovens na sala,
normalmente, os “bons alunos” acham que devem ensinar aos “maus alunos”, quando,
na verdade, ela está interessada, justamente, nos pontos de vista dos “maus alunos”:
“eles sabem de coisas... eles são experientes... eles seguram um pedaço diferente da
história” (Idem).
Fine (2013) contrasta, ainda, o tipo de investigação conhecida como “pesquisa-
ação” com a “pesquisa participativa” que delineia em seus projetos. Quatro princípios
modelam esta última: a) as pessoas que viveram injustiças têm profundo, íntimo
conhecimento sobre as estruturas, histórias, efeitos e consequências da injustiça.
Portanto, dispõem de um ponto de vista importante para fazer sentido a respeito dela; b)
essas pessoas também têm o direito de fazer pesquisa; c) na universidade, os
pesquisadores têm a obrigação de projetar pesquisas que não contribuam para ampliar o
quadro de violência em que essas pessoas vivem, como a “violência epistemológica”
(TEO, 2010), isto é, empreender mais violência aos grupos sobre os quais se pesquisa;
d) a pesquisa deve ter ação aderente a ela, seja através de uma organização política ou
um movimento social que visem mudanças.
Para Fine (2013), esses são os elementos críticos da “pesquisa participativa”, que
é diferente da “pesquisa-ação”, pois a pesquisa participativa desafia especialistas a
tomarem posições mais democráticas em todo o processo de fazer pesquisa, sem que se
promova uma ação de pesquisa de forma unilateral, isto é, levar a um grupo vulnerável
aquilo que achamos ser bom para ele.
Fine comenta que para isso é preciso que pesquisadores se posicionem em favor
da comunidade, pois ela também “possui os dados”. Assim, em colaboração, podem-se
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pensar os tipos de produtos mais apropriados para essa comunidade. Ela exemplifica
que os seus projetos começam pela questão política sob o ponto de vista do
marginalizado, porque as pessoas das comunidades estão interessadas no que a
comunidade pensa sobre as questões que enfrentam no seu dia a dia (FINE, 2013).
O trabalho de Fine e sua equipe servem como subsídio e aporte teórico para este
trabalho na medida em que ela inclui como participantes primários da pesquisa pessoas
que, na maioria das vezes, são esquecidas, e dá importância a voz do excluído de
maneira a legitimar os resultados da pesquisa. Esta é uma postura crítica frente a
realidade do excluído.
Alison Cook-Sather também contribui teoricamente com este trabalho. Ela
explica a partir do projeto de pesquisa “Ensinando e aprendendo juntos” (Teaching and
Learning Together), desenvolvido na cidade da Filadélfia, EUA, que no “esforço de
posicionar os alunos como sujeitos ou protagonistas” das interpretações de suas próprias
vivências e experiências, a pesquisa qualitativa coloca em primeiro plano a voz e a
experiência do estudante (COOK-SATHER, 2013, s/p). Especificamente, a pesquisa
posiciona os alunos como informantes, redefine seu papel, "ouvindo-os", e muda o
quadro de referência, alterando assim a apresentação.
Cook-Sather (2002) explica que a voz dos alunos é orientadora dos resultados e
que os objetivos políticos e pedagógicos precisam preponderar na pesquisa. Para que
isso aconteça, esses objetivos devem: 1) desafiar o modelo tradicional de ensino
segundo o qual teóricos e pesquisadores geram conhecimentos e os passam para os
professores. Estes, por sua vez, são pressionados a implementá-los como um novo
conhecimento, posicionando os alunos como receptores passivos desta transferência; 2)
alterar a dinâmica de poder na relação professor/aluno: preparar professores
comprometidos a agirem sobre as perspectivas dos alunos; e, 3) promover a consciência
crítica no aluno sobre as suas experiências e oportunidades educacionais, de modo que
este adquira mais confiança em expressar o que precisa como aprendiz.
Este trabalho também se pauta nas pesquisas de Valentina Grion, que estuda
questões como – o que é uma boa escola a partir do ponto de vista do aluno? Suas
colocações partem do pressuposto de que “os alunos têm ideias muito positivas e
realistas a respeito de sua escola e de como ela pode ser melhorada” (GRION, 2013,
s/p). Ela explica que os alunos querem realmente mudar a escola e isso não pode ocorrer
sem que a participação democrática na escola seja levada mais a sério. Para a autora é
necessário empreender ações onde “os alunos possam atuar como copartícipes nos
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processos de mudança” (GRION, 2013, s/p), garantindo que espaços de discussão sejam
legítimos e valorizados e onde alunos e alunas possam falar. Faz-se necessário,
portanto, que “reajustemos os nossos ouvidos para que possamos ouvir o que eles dizem
e, assim, redirecionarmos nossas ações em resposta ao que ouvimos” (GRION, 2013,
s/p). Na esteira de Cook-Sather, Grion assenta que "os alunos têm uma perspectiva
única sobre o que acontece na escola e nas salas de aula” (COOK-SATHER 2009, p. 5)
e que, por isso, podem e devem ser considerados pela política nacional de avaliação
escolar.
A partir da explanação acima, torna-se evidente a relevância e necessidade de se
ouvir a voz do aluno na realização de pesquisas que buscam compreender a escola com
seus sujeitos e pretendem contribuir para sua transformação. Alves (2012) aponta a
necessidade de se iniciar o planejamento das ações pedagógicas e educacionais sob uma
perspectiva “bottom-up” (MATTOS, 1992) levando-se em consideração as demandas
que emanam da base (o aluno) para o topo (gestores educacionais). A partir deste
prisma, considera a viabilidade de uma aplicabilidade significativa das ações educativas,
tomando como ponto relevante na construção conjunta a voz de alunos e alunas em suas
compreensões sobre a escola em seus papéis social e educativo.
O que acontece quando a voz do aluno é ouvida na escola?
Nas pesquisas realizadas pelo NetEdu, lidou-se com temas que não são
usualmente motivadores para os professores, como: violência na/da escola; interações e
discriminação de gênero; percepção dos alunos sobre o fracasso escolar; a situação de
pobreza associada ao desempenho do aluno; dentre outros. Pesquisou-se, ainda, como
os alunos se percebem na realização de tarefas escolares, os processos de avaliação da
aprendizagem; como se dá a relação “professor-aluno” no contexto das classes de
programas compensatórios (como classes de repetentes, progressão, aceleração, dentre
outros).
Revisitando os dados do Núcleo supracitado, mostra-se aqui alguns eventos nos
quais alunos e alunas se revelam conhecedores de suas próprias ações, limites e
possiblidades no interior da escola e da sala de aula, constituindo-se atores críticos do
seu papel social como educandos (MATTOS; CASTRO, 2010b).
Em pesquisa realizada em uma escola localizada na Baixada Fluminense, no
Estado do Rio de Janeiro, em 2010, um dos procedimentos de coleta de dados utilizado
foi a realização de entrevistas feitas por alunos e alunas do 1º ano do Ensino Médio com
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seus colegas do 6º ano do Ensino Fundamental. Os pesquisadores treinaram os
estudantes como entrevistadores para que as entrevistas se desenvolvessem de modo
que permitisse a liberdade de resposta dos entrevistados.
Os temas propostos pelos pesquisadores foram: ordenações de gênero e situação
de pobreza como indicadores do fracasso escolar. Entretanto, por proposta dos alunos
do Ensino Médio, foi acrescentado o tema violência. De acordo com eles e com seus
professores, a escola é situada num bairro muito violento, envolvendo crimes, roubos e
guerra do tráfico de drogas que refletem de modo negativo no ambiente escolar, levando
os estudantes a situações de desespero e vulnerabilidade.
O resultado dessas entrevistas e das observações de campo, identificam instâncias
de reflexividade crítica dos entrevistadores e entrevistados sobre os temas perguntados.
Neste texto, serão apresentadas somente as análises do tema da violência, por este ter
sido de escolha dos alunos. Serão apresentados dois eventos, em forma de vinheta
etnográfica, contendo: sua contextualização, as inferências dos alunos; interpretação das
falas e seus fundamentos teóricos.
Evento 1: Aprendendo sobre violência
Renato – Alguém já tentou violência contra você?
Maria – Já, teve uma vez que eu quase fui estuprada. Só que eu falei com o meu
pai, o meu pai veio resolver.
Renato – Você já presenciou algum caso de violência em sua família?
Maria – Já, eu odeio o meu tio! Cara, assim! O meu sonho sempre foi matar ele
[...] eu odeio ele! Ele metia a porrada na minha mãe [...] eu sempre defendi a
minha mãe[...] eu já puxei a faca pra ele, quase que eu meti a faca nele!
Renato – O que você acha desses atos de violência?
Maria – É muita coisa!!! O meu pai era assim, o meu pai começou com faca,
enfiava a faca nos outros, depois o meu pai começou a levar armas pra casa. Aí
um dia eu cheguei pro meu pai e pedi uma arma pra ele de presente de
aniversário...
Maria, menina de 9 anos com a estatura de 7 devido a uma doença rara que limita
seu crescimento físico é consciente da violência em que vive e visualiza como saída a
própria violência. Renato, seu colega entrevistador, alarmado com a forma como ela
falou do “quase estupro”, mudou imediatamente de assunto após a resposta de Maria.
Ele declarou ter ficado “sem palavras” diante do sofrimento da menina, embora já
soubesse do caso, pois Maria havia sido afastada dos pais e vivia com a avó por ter sido
vítima de violência doméstica.
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Renato declarou que não fazia ideia de que a pesquisa levasse os alunos a falarem
tão abertamente sobre as suas vidas, e que ele se sentiu útil ao “ouvir” os colegas.
Lembrou que na comunidade não existe preocupação das autoridades em oferecer
suporte social e psicológico para as vítimas de violência. Junto à equipe de pesquisa, ele
argumentou que a violência vivida pelos alunos desta escola criou um círculo vicioso
que impede as pessoas de viverem em liberdade e que a escola é um lugar onde se
sentem livres, embora esta reproduza, na forma de agir, a lógica de violência das
famílias e da sociedade que a circunda. O sentimento de liberdade relatado por Renato
reflete o potencial existente nas relações escolares, um sentimento de pertencimento, de
compartilhamento de valores que podem auxiliá-los a reverter o quadro de violência em
que vivem. Nesse contexto, a escola se assemelha a um laboratório onde os alunos
experimentam a violência brincando e desafiando uns aos outros.
Este evento, da forma como foi significado pelo próprio aluno-pesquisador,
denota a importância de se ouvir a voz do aluno e como este sente a necessidade de
expor a sua realidade numa solicitação e consequente permissão de ser ouvido e visto. A
maneira como a aluna entrevistada falou sobre a sua realidade não seria assim colocada
se não lhe houvesse sido dada esta possibilidade, mediante a realização da entrevista. O
fato de uma aluna ser ouvida, em ambiente de pesquisa, por outro aluno, também aponta
um referencial importante para compreendermos esses atores enquanto potenciais
agências de transformação da escola e da sua própria realidade: a entrevistada, por ter
tido a oportunidade de compartilhar algo que lhe era extremamente significativo e
marcante; o entrevistador, por se deparar com as possibilidades que a pesquisa traz a
partir do momento em que ouve o outro.
Evento 2: Escola como laboratório da violência
Renato –Você já viu alguma briga na escola?
Pedro – Já(risos).
Renato – Por que esse sorriso, aí (risos)?
Pedro – Pô, lá na sala tem um monte, cara.
Renato – Por que motivo?
Pedro – Pô, porque começa assim, eles brincam depois levam tudo a sério.
Pesquisadora – Mas tem umas brincadeiras assim na sala de aula?
Alunas entrevistadas [em grupo] – TEM!
Pesquisadora – Mas como é ? [pergunta ao grupo de alunas]
Carol – Eles ficam brincando de soquinho... essas coisas. Mas também quando
um se machuca o outro já quer machucar também, aí começa a briga.
Pedro – A mesma coisa, tudo a mesma coisa... só na hora da saída que não... na
hora da saída que tem alguns que fica... tipo assim, calmo! É engraçado que eles
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ficam levados só na hora na escola... Parece que eles sofrem uma transformação
quando pisam do portão para fora. Lá dentro é diferente! Parece que do portão
pra fora eles se transformam, é um negócio esquisito.
Como vemos na asserção acima, os alunos usam e escola para experimentar
formas de se libertar da violência que vivenciam fora dela, transformando o ambiente
escolar em um caos, onde eles próprios, os professores e o pessoal da escola – gestores,
professores e funcionários, não compreendem o que acontece. As brincadeiras são
transformadas em lutas corporais e modificam o clima escolar, limitando as
possibilidades de aprendizagem e de convivência pacífica. Alunos e escola, como um
todo, se opõem em seus propósitos básicos. A escola, além de ensinar os conteúdos
acadêmicos, ensina também a viver, a se defenderem da vida lá fora. O entendimento
que os alunos têm sobre o papel da escola e dos professores também se altera, assim
como as práticas relacionadas à violência da/na escola. Ao serem perguntados sobre
como os professores reagem às brincadeiras que envolvem violência na escola, os
alunos explicam que a violência física é a única que pode ser considerada violência pela
escola, as outras não contam.
A visão sobre este tipo de violência a partir da perspectiva do próprio aluno ganha
outras cores e versões se vistas pela escola sob este aspecto. Se o olhar e o ouvir da
pesquisa não estiverem atentos ao que a voz do aluno traz, significando os fatos
ocorridos no cotidiano escolar, a violência entre os alunos não passa de uma concepção
estratificada de “bagunça”, “desrespeito” e “atos de marginalização”. A apresentação da
concepção trazida pelos próprios alunos e a interpretação dos dados pelo processo da
pesquisa que tem como prerrogativa ouvir a voz destes atores, permite à escola uma
visão diferenciada, possibilitando ações de transformação na forma de lidar com os
aspectos de violência no cotidiano da sala de aula e do próprio contexto educacional
como um todo.
Considerações finais
Quanto mais se realizam pesquisas que têm como pressuposto teórico-
metodológico ouvir a voz dos alunos e alunas, mais se tem consciência de que é
necessário ouvi-los ainda mais. Sucessivamente a esta consciência, urge a necessidade
de se compreender a realidade da própria escola a partir da voz daqueles que são a base
da pirâmide educacional, para quem, para onde e de onde devem ser impulsionados o
planejamento e as ações educacionais a fim de se promover igualdade e justiça social.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
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Michelle Fine (2013) descreve em seu trabalho que as pessoas marginalizadas tem
sido tratadas de modo desatento às suas demandas pelas pesquisas educacionais que,
com isso, estas podem estar promovendo a “violência epistemológica” além da
violência constante que esses sujeitos estão inseridos em seu dia a dia. Isto é, os
pesquisadores podem estar reproduzindo as relações de violência em suas próprias
relações de trabalho. Uma das formas de evitar que isso aconteça é delinear pesquisas
que sejam originárias daqueles que estão à margem da sociedade, incluindo questões
que permeiem diferentes posições, de pessoas de diferentes segmentos sócio-
educacionais, e não somente originárias de demandas acadêmicas. Além disso, faz-se
necessário que as pessoas pesquisadas sejam incluídas em todo o processo da pesquisa,
desde do projeto até o produto fina que, dessa forma, refletirá o pensamento de todos e
não apenas do acadêmico responsável.
Cook-Sater; Grion (2013), em adição à perspectiva de Fine (2013), acreditam que
ouvir o aluno pode impulsionar mudanças na escola. A abordagem das autoras é
desafiadora, mas faz sentido, quando associamos as experiências de Alves (2012) em
relação à reflexividade do aluno pesquisador sobre a sua própria realidade e a
abordagem “bottom-up” proposta por Mattos (1992). Afirmamos, portanto, que,
delineando pesquisas que incluam os sujeitos como participantes ativos do processo,
incentivando a reflexividade dos mesmos e dos próprios pesquisadores no ato de fazer
pesquisa, pode-se constituir uma chave para informar mudanças na escola.
As vinhetas etnográficas apresentadas sobre a violência, demonstram que os
alunos/pesquisadores e alunos/pesquisados são capazes de pensar sobre as situações
vividas no cotidiano da escola de uma perspectiva inédita. Suas vozes expressam
preocupação com eles mesmos, com os outros alunos, com os professores, com as
práticas de sala de aula, com as interações entre eles e o pessoal da escola, enfim, com a
escola como um todo. Nuances dessas expressões, na maioria das vezes, não são
percebidas pelos pesquisadores e pelo pessoal da escola. Nos pesquisadores provoca
uma visão equivocada desses processos interativos e dessas atividades. No pessoal da
escola, provoca a percepção de que os alunos são bagunceiros e não querem fazer as
tarefas propostas e ainda que sentem prazer em perturbar o ambiente escolar.
Entretanto, em recente reunião entre professores, gestores e profissionais da
Secretaria de Educação onde ocorreram muitas das pesquisas realizadas pelo NetEdu, os
professores se mobilizaram enfrentado os representantes da Secretaria no sentido de
promoverem mudanças no currículo e na avaliação, predominante normatizada e de
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caráter nacional. A mobilização foi no sentido de que as mudanças incluam as vozes dos
alunos e dos professores.
Os caminhos a trilhar a partir dessa perspectiva e preocupações são inerentes a
confrontações e delimitações e partem da própria dialética do campo de pesquisa e da
educação. No entanto, as possibilidades a serem criadas a partir da voz dos alunos
permite compreender que é possível articular mecanismos de transformação da
realidade educacional atual, onde o ensinar não se restrinja a uma mera transferência de
conhecimentos, mas que seja lugar de vida, de produção de conhecimento e de
vicissitudes que propulsionem novas formas de interpretar, ver e ouvir a realidade a
partir do outro. Em particular, invertendo-se as relações hierárquicas de poder e
flexibilizando a assimetria existentes entre elas.
Referências Bibliográficas
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola
EdUECE- Livro 103446