os yanomami sob a ditadura militar

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Comissão Nacional da Verdade Relatório Sobre a Violação de Direitos Humanos na TIY 1960-1988 Rogerio Duarte do Pateo Agosto de 2014

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Relatório da Comissão Nacional da Verdade acerca das atrocidades cometidas pela Ditadura Militar contra os Yanomami

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  • Comisso Nacional da Verdade

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    Relatrio Sobre a Violao de Direitos Humanos na TIY

    1960-1988

    Rogerio Duarte do Pateo Agosto de 2014

  • 2

    ndice!

    Sobre o relatrio! 3!Resumo das violaes dos Direitos Humanos entre os Yanomami (1960-1988)! 4!

    Perimetral Norte! 4!Garimpo! 6!Massacre!do!Couto!de!Magalhes! 7!Expulso!sumria!de!equipes!de!atendimento!!sade! 8!Projeto Calha Norte! 10!

    Relatrio!sobre!a!violao!de!direitos!humanos!na!TIY:! 12!1960@1988! 12!O!Brasil!grande!e!seus!nativos! 12!A!Estrada! 13!

    Epidemias! 21!O Plano Abortado! 26!KM 211! 28!

    Garimpo! 31!Serra das Surucucus! 33!

    Armas de fogo! 36!A nova Serra Pelada e a intensificao da invaso! 38!

    Eric! 42!Serra da Mocidade! 43!Parna Pico da Neblina! 44!Paapiu! 45!O!Massacre!do!Couto!de!Magalhes! 47!Homoxi! 54!O Colapso da Fiscalizao! 56!Ao Pela Cidadania! 61!

    Segurana Nacional e Projeto Calha Norte! 63!Concluso! 72!Referencias bibliogrficas! 75!

    Publicaes! 75!Documentos! 78!

    Anexos! 83!

  • 3

    Sobre o relatrio

    O presente relatrio fruto de cerca de um ano de pesquisas sobre as violaes dos

    direitos humanos ocorridas entre os Yanomami que habitam o Brasil no perodo de 1960

    a 1988. Durante a pesquisa foram examinados centenas de documentos oriundos de

    acervos como do Instituto Socioambiental, que agrega os arquivos do antigo Centro

    Ecumnico de Documentao e Informao (CEDI) e da Comisso Pr-Yanomami

    (CCPY), e da Funai, alm de acervos pessoais de pesquisadores especializados nos

    Yanomami, incluindo o meu prprio, acumulado em 18 anos de pesquisa sobre esses

    ndios. Alm disso, foram includas informaes coletadas em visitas a campo realizadas

    em 2013 por mim e por outros representantes da Comisso Nacional da Verdade, que em

    diferentes ocasies registraram depoimentos de indgenas e no-indgenas sobre os

    acontecimentos ocorridos no perodo em exame. Publicaes cientficas, materiais de

    campanha pela defesa dos direitos indgenas, notcias de jornais e revistas, relatos

    etnogrficos, alm de um documentrio cinematogrfico, tambm foram utilizados como

    fonte a fim de dar subsidio organizao, descrio e anlise dos acontecimentos.

    O documento dividido em quatro partes principais. A primeira um resumo das

    concluses resultantes do exame do material. A segunda dedicada aos fatos ocorridos

    na construo da Perimetral Norte. A terceira, focada nas decorrncias das diversas ondas

    de garimpeiros invasores e, por fim, a quarta aborda a atuao direta das Foras Armadas

    na ampliao/construo de pistas de pouso e Pelotes Especiais de Fronteira dentro da

    Terra Indgena Yanomami.

    Vinte anexos trazem cpias dos documentos mais importantes e imagens reveladoras

    encontrados durante os trabalhos. Sua finalidade dar materialidade aos fatos relatados e

    subsidiar a reconstruo de cadeias de causalidade que ligam a ao/omisso do poder

    pblico s decorrncias nocivas e o desrespeito aos direitos humanos que ainda produzem

    consequncias entre os Yanomami.

  • 4

    Resumo das violaes dos Direitos Humanos entre os

    Yanomami (1960-1988)

    Perimetral Norte Como veremos a seguir, a abertura da BR-210, mais conhecida como Perimetral Norte,

    foi marcada pela omisso e o despreparo do poder pblico para lidar com populaes

    indgenas. Aldeias yanomami foram destrudas e toda a populao das proximidades do

    trajeto da estrada sofreu com a ecloso de epidemias, alm da desestruturao social fruto

    do alcoolismo, prostituio e da violncia.

    A partir do exame dos documentos, podemos afirmar que:

    1) Ausncia de processos de explicao e busca de consentimento prvio, livre e informado

    Nenhum processo de explicao e/ou consulta prvia foi realizado com a

    populao afetada pela abertura da estrada, ignorando os preceitos do Pacto

    Internacional sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais da ONU, adotado

    em 19661, e a declarao de Barbados, de 1971.

    Consequncias: A ausncia total de consulta ou explicaes populao afetada

    deu aos ndios uma falsa impresso, levando-os a se aproximarem da estrada

    inadvertidamente. Sem experincia no trato com no-ndios, o desconhecimento

    do contexto ou das possveis consequncias negativas da obra afetaram a

    capacidade de julgamento da populao indgena, agravando a desagregao

    social e afastando os Yanomami de seus costumes. A prostituio, o abandono do

    trabalho nas roas, o alcoolismo, a mendicncia e o nomadismo de beira de

    estrada desestabilizaram a vida das comunidades, criando consequncias nocivas

    at os dias de hoje.

    1 Apesar de adotado pela ONU em 1966, o Pacto Internacional Sobre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais s oficialmente adotado no Brasil em 1992.

  • 5

    2) Ausncia de infraestrutura de sade, vacinao prvia, controle sanitrio de trabalhadores e acesso de pessoas no autorizadas

    A abertura da estrada no foi acompanhada de procedimentos voltados garantia

    da integridade sanitria das populaes indgenas e dos trabalhadores. Segundo

    relatos testemunhais e documentos, a Funai, responsvel poca pela sade

    indgena, no realizou companhas de vacinao prvias, no controlou a situao

    sanitria dos trabalhadores que entravam em contato com os ndios, no controlou

    satisfatoriamente o acesso de pessoas no autorizadas rea de ocupao indgena,

    no deu suporte s misses religiosas que atuavam na regio no sentido de

    aparelha-las e prepara-las para a tarefa e tampouco deu o suporte necessrio nos

    momentos de crise.

    Consequncias: ecloso de diversas epidemias com alta letalidade, como

    sarampo, gripe e malria, caxumba, tuberculose, alm da contaminao por DSTs.

    Estima-se centenas de mortes decorrentes de doenas nesse perodo. Apenas no

    vale do rio Ajarani a populao foi reduzida de cerca de 400 pessoas nos anos

    1960 a 79 indivduos em 1975 (ver pag 10 deste relatrio).

    3) Degradao Ambiental Alm do desmatamento, as obras da Perimetral Norte assorearam rios e criaram

    grandes lagos de gua parada que se tornaram criadouro de vetores de doenas.

    Consequncias: Aumento de doenas como a malria, desaparecimento de

    animais de caa e insegurana alimentar.

    4) Colnia Penal Agrcola no Km 211 Reportagens de jornal de 1978 e 1979 denunciam a instalao de uma colnia

    penal agrcola no km 211 da BR-210, autorizada pelo diretor da COAMA,

    General Demcrito de Oliveira, em flagrante desrespeito dos artigos IV, V, IX e

    XI da Declarao Universal dos Direitos Humanos.

    Consequncias: Alm da privao de liberdade de ndios Macuxi encarcerados

    na priso agrcola, as denncias mencionam utilizao de mo de obra yanomami

    em condies anlogas escravido, sem remunerao adequada, alm de caa

  • 6

    ilegal de animais silvestres e contrabando de peles. Por fim, a colnia penal do km

    211 teria atrado os ndios das proximidades devido ao acesso facilitado

    alimentao e bens industrializados, desestruturando as comunidades do entorno.

    Garimpo!Iniciado em grande escala em 1975 na Serra das Surucucus, a cassiterita, que era

    explorada no incio das invases, logo deu lugar ao ouro. Levas de milhares de

    garimpeiros se espalharam por toda a regio de ocupao indgena, com destaque para os

    rios Mucaja, Couto de Magalhes, Eric e Uraricoera, impactando uma rea de 21.000

    Km2. Alm de balsas atuando no leito dos rios, mais de 100 pistas de pouso clandestinas

    foram abertas no interior da floresta, por onde foram contrabandeadas de duas a trs

    toneladas de ouro por ms. Alm da demora da demarcao das terras Yanomami, os

    documentos examinados mostram a omisso da Funai no controle das invases, alm da

    conivncia, e por vezes o apoio explcito, de diferentes instncias do poder pblico aos

    invasores. O impacto da presena dos garimpeiros, que chegaram a cerca de 40 mil no

    final da dcada de 1980, foi devastador. No h um nmero oficial de mortos em

    decorrncia dessas invases, mas estima-se que cheguem aos milhares. O garimpo

    assoreou e contaminou os rios, espantou os animais, as epidemias se tornaram constantes

    e a violncia, sobretudo a perpetrada por armas de fogo, se tornou intensa e cotidiana.

    Comunidades inteiras desapareceram em decorrncia das epidemias, dos conflitos com

    garimpeiros, ou assoladas pela fome. Os garimpeiros aliciaram indgenas, que largaram

    seus modos de vida e passaram a viver nos garimpos. A prostituio e o rapto de crianas

    agravaram a situao de desagregao social. Por fim, a expulso de todos os

    profissionais que atuavam no atendimento sade dos Yanomami, em 1987, caracterizou

    uma dupla omisso dos rgos responsveis. No meio da mais grave situao sanitria

    vivenciada por esses ndios, o estado Brasileiro, que j no prestava o atendimento

    necessrio, impediu tambm que organizaes da sociedade civil o fizessem. Essa ao,

    realizada por determinao da presidncia da Funai com o apoio do governo de Roraima,

    gerou uma denncia contra o Brasil na Comisso dos Direitos Humanos do Conselho

    Econmico e Social da ONU. Vamos aos fatos:

  • 7

    1) Inoperncia no controle das invases Casos documentados:

    a) Serra das Surucucus entrada livre de garimpeiros a partir de 1975

    chegando a centenas em poucos meses. Presena garimpeira na regio

    permanece ate o final dos anos 1980, com destaque para uma tentativa de

    invaso armada da regio em fevereiro de 1985.

    b) Eric Garimpo Furo de Santa Rosa aberto no incio da dcada de 1980.

    Devido vigilncia intermitente de Funai e do Exrcito a regio foi

    ocupada por cerca de 3.800 garimpeiros, alm de atrair indgenas de nove

    aldeias do rio Urarica.

    c) Serra da Mocidade presena de garimpeiros durante toda a dcada de

    1980. O acesso era feito pela Perimetral Norte, chegando em 1987 aos

    Opik theri, um dos grupos mais atingidos pela abertura da estrada.

    d) Pico da Neblina - Invaso orquestrada em 1987 envolvendo aeronaves

    vindas de garimpos o Alto Mucaja e de Barcelos (AM). Cerca de 500

    garimpeiros instalados com suporte de estaes de rdio.

    e) Paapiu/Couto de Magalhes iniciado a partir da ampliao de uma

    antiga pista de pouso pela COMARA em 1986. A Funai e demais agentes

    pblicos abandonam a regio, deixando a rea livre para a ao dos

    garimpeiros.

    f) Homoxi/Alto Mucaja iniciado em 1988 como expanso do garimpo do

    Paapiu. Produz uma grande rea de assoreamento ao longo do rio Mucaja,

    alm de ter pistas abertas sobre as roas dos Yanomami.

    Massacre!do!Couto!de!Magalhes!Em decorrncia das invases no alto rio Couto de Magalhes, ocorre em agosto de 1987

    um conflito entre garimpeiros e ndios que acaba com um garimpeiro e quatro indgenas

    mortos com requintes de crueldade. Esse fato precipita uma ao de retirada dos

    invasores que, todavia, no produz resultados concretos. Segundo denuncias do Conselho

    Indgena de Roraima, cerca de 3.500 garimpeiros permaneceram no local. Mesmo com a

    gravidade da situao, a operao suspensa sob alegao de defeito nos trs

  • 8

    helicpteros utilizados pela Funai e pela PF. Entre os garimpeiros presos encontrada

    uma arma da Aeronutica. Alegando no possuir advogados disponveis, a Funai no age

    para derrubar uma liminar da justia que garante o lanamento de vveres para os

    garimpeiros dentro da terra indgena. Mesmo com constantes apelos dos chefes de posto,

    que repetidamente denunciam a intensificao da invaso, a Funai retira seu pessoal das

    vias de acesso rea. Um novo conflito eclode e uma criana morta. Relatos dos

    indgenas mencionam o uso de uma metralhadora. A Polcia Federal informa que a Funai

    no tomou as providncias necessrias para o deslocamento de agentes para o interior da

    terra indgena. Nas palavras do sertanista responsvel, explicitada em uma

    correspondncia oficial em 1988:

    entre os dias 21 e 27/03/88 a situao anterior no alterou-se; no dia 28/03/88 havia

    manifestao do comandante da PM/RR de que o efetivo na rea foi duplicado e de que seria

    impedida a entrada de garimpeiros; porm, o fluxo de voos a rea indgena continuam sem que

    houvessem o cumprimento da medida acordada de interdio com barreiras nas pistas de pouso;

    a PM no colocou a guarnio para emergncia, conforme acordado, na rea indgena; a FAB no

    colocou transporte para a evacuao dos garimpeiros; a DPF no recebeu ordens para atuar no

    contexto, tanto interno quanto externo do problema; continuam os abastecimentos aeronaves, que

    destinam-se a rea indgena, em pistas clandestinas, situadas nas periferias das cidades de Boa

    Vista, Mucaja e Alto Alegre/Roraima. (Amncio da Costa, 1988: ver pag 43 deste relatrio).

    Expulso!sumria!de!equipes!de!atendimento!!sade!Em meio s presses nacionais e internacionais para a retirada dos garimpeiros e a

    demarcao da TI Yanomami, o ento presidente da Funai, Romero Juc, opta, em 1987,

    por expulsar todas as equipes de ONGs e misses religiosas que atuavam no atendimento

    sade dos Yanomami. Alegando reagir a denncias que afirmavam que os religiosos

    estavam insuflando os ndios contra os garimpeiros, Juc determina a retirada das equipes

    de sade em meio a uma srie de epidemias, sobretudo de gripe e malria, agravando

    ainda mais a situao. No encontramos nenhum documento que demonstre algum tipo

    de averiguao sobre as denncias. As alegaes sobre a ao de falsos missionrios

    estrangeiros, supostamente interessados nos recursos minerais na TI Yanomami, base

  • 9

    para instalao de uma CPI no Congresso Nacional na mesma poca, tambm no se

    verificaram. A expulso dos profissionais de sade, religiosos ou no, abarcou brasileiros

    atuando legalmente no interior da TI e se estendeu a regies onde no havia presena de

    religiosos, contradizendo as acusaes que basearam as decises do presidente da Funai.

    Em decorrncia dessa ao, a Terra Indgena Yanomami permaneceu fechada por cerca

    de um ano e meio. A Funai abandonou o posto no Paapiu, epicentro da invaso, deixando

    os garimpeiros livres para atuarem sem nenhum tipo de controle.

    A expulso das equipes de sade repercutiu internacionalmente devido verdadeira crise

    humanitria que se instalou na TI Yanomami. Por meio de uma denncia formal da

    Indian Law Resource Center, a Comisso dos Direitos Humanos do Conselho Econmico

    e Social da ONU solicitou esclarecimentos ao governo brasileiro. Em 1989 uma comisso

    batizada Ao Pela Cidadania, composta por parlamentares, juristas, antroplogos e

    jornalistas consegue adentrar Terra Indgena para averiguar a situao, que descrita

    pelo do senador Severo Gomes nos seguintes termos:

    O posto da Funai est abandonado. Remdios e seringas descartveis amontoados em desordem

    e misturados a latas de cerveja vazias. O Livro de Registros folheado pelo vento. O rdio

    transmissor sumiu, ningum sabe como. Os ndios entregues aos garimpeiros. Enfim, uma

    amostra desse estercal que se transformou o nosso pas. Doena, desnutrio e mortalidade

    infantil. A malria, que no existia, agora flagela grande parte da populao. A catapora deixa na

    cara dos que sobrevivem o sinal dos tempos de incria.(FSP, 18/06/19892 - ver pag 53 deste

    relatrio).

    Os documentos examinados nos permitem observar uma ao contraditria do poder

    pblico, pois ao mesmo tempo em que ha denncias de intensificao das invases de

    garimpeiros por funcionrios da Funai e reunies de planejamento no nvel federal para a

    desintruso da rea indgena, segmentos polticos, setores militares e da segurana

    pblica regional, juzes e empresrios, conseguem protelar as aes de retirada dos

    garimpeiros e, orquestrando acusaes contra setores apoiadores dos direitos indgenas,

    2 Ver Cedi, 1991.

  • 10

    mantm a TI Yanomami livre para a explorao de ouro sem que nenhuma testemunha in

    loco pudesse registrar os acontecimentos.

    Consequncias: A inoperncia da Funai na retirada dos garimpeiros, agravada pela

    expulso dos profissionais de sade, teve como consequncia direta as mortes decorrentes

    de conflitos que vinham sendo anunciados nos telegramas enviados sede do rgo

    indigenista pelos sertanistas locados na TI. Alm disso, a degradao ambiental intensa

    destruiu os recursos hdricos utilizados pelos ndios, a caa indiscriminada de animais

    silvestres e a impossibilidade do trabalho nas roas entre os adultos vitimas de doenas

    introduzidas pelos garimpeiros provocaram uma fome generalizada em toda a Terra

    Indgena. As epidemias de gripe, malria, sarampo e coqueluche, somadas s doenas

    venreas, ceifaram milhares de vidas aniquilando aldeias inteiras. A dependncia, a

    prostituio e o alcoolismo desestruturaram ainda mais das comunidades. Por fim, a

    proliferao de armas de fogo aumentou a letalidade dos conflitos intercomunitrios

    indgenas aumentando ainda mais a mortalidade.

    Projeto Calha Norte!Artigos cientficos e um documentrio cinematogrfico revelam que a Fora Area

    Brasileira abriu duas pistas de pouso em territrio venezuelano mediante a utilizao de

    bombas incendirias (provavelmente Napalm) em 1961 (ver pag. 54 e anexo XX do

    relatrio). Quinze anos depois, a Comara amplia uma antiga pista de pouso aberta por

    missionrios evanglicos conhecida como Maraxiu Theri, que vem a se tornar a principal

    via de acesso de garimpeiros regio do rio Couto de Magalhes/Paapiu. No foram

    encontrados documentos que justificassem a expanso dessa pista, uma vez que no havia

    pelotes de fronteira planejados para a regio.

    Durante as obras no houve a ampliao da estrutura de atendimento sade nem

    vacinao preventiva dos trabalhadores. Esse fato provocou o aumento da incidncia de

    doenas como gripe, conjuntivite, parasitoses intestinais, desinteria, malria, doenas

    venreas e uma srie de infeces de pele. Bebidas alcolicas e revistas pornogrficas

    foram introduzidas entre os Yanomami. Os animais de caa foram afastados pelo barulho

    incessante de mquinas ou mortos pelos trabalhadores, que caavam nas redondezas.

  • 11

    Na Serra das Surucucus, onde habitavam cerca de 3.500 ndios, 40 operrios trabalhavam

    em regime de revezamento na ampliao da pista. Como no caso do Paapiu, nenhum

    controle sanitrio preventivo foi realizado pelos rgos competentes. A equipe de

    paramdicos baseada no posto da Funai (que se reduzia na poca a um enfermeiro) no

    foi ampliada, e a ausncia de uma estrutura prpria de sade obrigou os trabalhadores

    doentes a buscarem atendimento junto Funai, que utilizou medicamentos destinados aos

    ndios nas 263 consultas registradas nos primeiros 6 meses de atividades de instalao do

    PCN na regio (Albert, 1989:9).

    Incessantes epidemias de gripe, com uma taxa de complicaes respiratrias entre 30% a

    70% dos casos, ocasionaram uma srie de mortes e uma degradao brutal da situao

    sanitria em toda a regio. De apenas duas em 1985, antes do incio das obras, o nmero

    de mortes registradas entre as comunidades prximas de Surucucus saltou para 29 entre

    1986 e junho de 1987, atingindo principalmente crianas de 0 a 5 anos (11 mortes) e

    adultos com mais de 55 anos (10 mortes) (cf. Menegola et al. 1988:14-15, apud Albert,

    1989 ver pag 61 do relatrio). Alm da degradao das condies de sade, a

    utilizao da mo de obra indgena para servios recusados pelos operrios envolveu o

    trabalho de homens, mulheres e, s vezes, crianas que, segundo denuncias apresentadas

    no relatrio, no recebiam pagamento adequado, infringindo mais uma vez o artigo XXII

    da Declarao Universal dos Direitos Humanos. Por fim, a instalao do peloto na Serra

    das Surucucus provocou tambm denncias de assdio sexual sobre as mulheres

    indgenas, registrado no documentrio cinematogrfico A Casa e a Floresta, utilizado

    como fonte.

    Essas e outras denuncias so explicitadas detalhadamente no corpo do relatrio

    apresentado a seguir.

  • 12

    Relatrio!sobre!a!violao!de!direitos!humanos!na!TIY:!!

    1960J1988!

    O!Brasil!grande!e!seus!nativos!

    A dcada de 60 do sculo XX marcou uma virada no processo de desenvolvimento do

    Brasil. Envolto no clima do milagre econmico, nasce em 1966 um novo plano de

    valorizao da Amaznia, voltado, sobretudo, fixao de populaes regionais nas

    zonas de fronteira mediante a execuo de uma poltica de imigrao especfica para a

    regio.

    Em 1974-75, o chamado Plano de Integrao Nacional (PIN) atinge o ento Territrio de

    Roraima por meio de trs frentes principais: o Projeto Fundirio Boa Vista, as obras da

    rodovia Perimetral Norte, e as empresas de minerao e garimpo atradas pelas riquezas

    minerais encontradas na regio (cf. Ramos, 1979, Taylor, 1979, Davis, 1978).

    A rodovia Perimetral Norte foi planejada para unir a parte leste da regio amaznica a

    seu limite a oeste, concluindo o tamponamento de toda a regio pela conexo com a

    Transamaznica a partir da estrada Cruzeiro do SulRio Branco, no Acre (Ramos, 1979,

    Davis, 1978). Sua abertura levou ao interior do territrio yanomami centenas de

    trabalhadores totalmente despreparados para o trato com os ndios, que at ento

    permaneciam preservados de um contato macio com a sociedade nacional. Como

    veremos, nenhuma providncia em relao preveno de doenas contagiosas foi

    tomada no incio, e nos seus primeiros 50 km, a rodovia j havia atingido trs aldeias da

    regio do rio Ajarani, causando mortes e uma violenta desestruturao social e sanitria

    entre seus habitantes (Ramos, 1979).

  • 13

    A!Estrada!A BR 210 teve o processo de concorrncia iniciado em 1973 dividido em 6 frentes de

    trabalho3 . Com 2.586 km de extenso planejada, a estrada ligaria Macap (AP) a Mitu,

    na fronteira com a Colmbia. Esse trajeto cortaria os afluentes da margem esquerda do

    Amazonas (sobretudo os rios Trombetas, Branco e Negro), impactando uma rea total de

    1.400.000 Km2 . Com esse projeto, o governo brasileiro pretendia abrir o acesso aos

    recursos da regio, induzindo a colonizao da rea e permitindo a integrao das

    rodovias dos seis pases fronteirios, formando assim um sistema rodovirio

    multinacional para a integrao das amricas.

    O trecho Caracara-rio Padauiri foi o que causou impacto sobre os Yanomami por

    atravessar a rea de ocupao indgena nos rios Ajarani e Catrimani, provocando

    consequncias nunca antes vivenciadas por esses ndios. Dois anos depois da abertura das

    concorrncias, os Yanomami j sentiam os efeitos da construo da estrada.

    Segundo documento enviado pela Prelazia de RR ao presidente do Departamento Geral

    de Patrimnio Indgena da Funai, o trecho entre Caracara e o limite entre os estados de

    Roraima e Amazonas era habitado por cerca de 250 pessoas no rio Ajarani e afluentes, e

    450 no rio Catrimani (Prelazia de RR, 15/04/1975).

    No mesmo documento, o Padre Joo Batista Saffirio chama a ateno para o fato de que

    os trabalhadores estavam requerendo terras a margem da estrada junto ao Incra, e que a

    estrada estava potencializando a entrada de gateiros, garimpeiros e marreteiros nas

    comunidades indgenas.

    Os impactos negativos da construo de estradas na Amaznia no eram novidade para

    os rgos governamentais. Experincias negativas na abertura da Transamaznica e na

    BR 174 (Manaus-Boa Vista) anunciavam o que estava por vir entre os Yanomami. Os

    3 Segundo matria veiculada pelo jornal O Estado de So Paulo, os trechos licitados foram: 472,9 quilmetros de Porto Seguro at rio Citar; 498,6 quilmetros entre o rio Citar, rio Turuna e Cachoeira Porteira; 471,2 quilmetros do rio Turuna a Caracara; 402,5 quilmetros de Caracara at o rio Padauiri; 335,2 quilmetros do rio Padauiri at o entroncamento de acesso a So Gabriel da Cachoeira e da at o entroncamento perimetral. O ltimo trecho de 386,1 quilmetros at a fronteira Brasil-Colmbia, prximo a cidade de Iana (OESP, 11/04/1973).

  • 14

    impactos dessas obras foram to intensos que obrigaram a Funai a transferir de Braslia

    para Manaus a Coordenao Nacional do ndio para a Amaznia, a fim de melhorar o

    atendimento s frentes de atrao e pacificao que atuavam na regio (OESP,

    04/04/1973).

    Em outubro de 1974, o auxiliar de Frente de Atrao Jamiro Batista Arantes envia

    correspondncia ao coordenador da Coama relatando os acontecimentos observados entre

    os quilmetros 266 no rio Demini e 412 no rio Padauiri. Aps comentar que a construtora

    Camargo Corra, responsvel pelo trecho, teria lanado de avio os brindes a serem

    ofertados aos ndios, declara que todos os Yanomami visitados foram encontrados

    doentes com gripe e malria. O sertanista nota tambm que todos eles eram abertamente

    contrrios construo da estrada. Aps permanecer vinte dias tratando dos ndios

    doentes, Jamiro se mostra preocupado com a sobrevivncia dos Yanomami. Em suas

    palavras:

    O aldeamento consta 60 pessoas e segundo os mesmos ndios nos informaram, tempos atrs a

    aldeia era muito grande e contavam com inmeros guerreiros mas agora devido as guerras e

    doenas a aldeia est quase se extinguindo considerando que dos 60 existentes, somente 15 so

    menores de 13 anos [...] (Funai, GO 01.10.1974).

    Sobre o trecho So Gabriel da Cachoeira-rio Padauiri (AM), o sertanista Giuseppe

    Cravero nos conta em relatrio de 15 de fevereiro de 1975, que os cerca de 400

    trabalhadores da Empresa Industrial Tcnica (EIT), responsvel pela obra, estavam

    apavorados com os acontecimentos do ms de dezembro anterior na rea Waimiri-

    Atroari. Nela cinco indigenistas responsveis por realizar a aproximao com os ndios

    arredios foram atacados e mortos em uma emboscada. Da parte dos ndios, Giuseppe nos

    informa que os cerca de 400 habitantes da regio, at ento atendidos por uma misso

    salesiana, tinham a inteno de mudar para as proximidades da estrada, pois no estavam

    satisfeitos com a poltica de troca de bens industrializados praticada pelos missionrios

    (Funai-EIT, 02/1975). O sertanista alerta para a necessidade da presena permanente da

    Funai no municpio de So Gabriel da Cachoeira, devido situao de vulnerabilidade

  • 15

    dos indgenas frente ao grande contingente de pessoas ligadas ao empreendimento. Alm

    dos Yanomami, ndios Maku tambm se aproximavam do municpio e dos acampamentos

    da empreiteira a fim de adquirir bebidas alcolicas.

    Ainda em 1975, em uma visita do ento presidente da Funai, General Ismarth de Arajo,

    s misses Catrimani e Ajarani, ambas na rea de influncia da Perimetral Norte, foi

    constatada uma alta incidncia de gripe e tuberculose (OESP, 25/03/1975). Na ocasio, o

    General fez criticas pesadas ao trabalho da misso Catrimani. Ao entrar na primeira

    maloca indgena afirmou: Isso aqui uma imundcie, uma vergonha!. O General se

    mostrou insatisfeito pelo fato dos Yanomami no falarem portugus, no usarem roupas e

    no serem produtivos. Em resposta ao general Ismarth, o Pe. Joo Saffirio declara que:

    ...at maro de 1974, a misso prestava 150 a 200 atendimentos mdicos por ms. Com

    a chegada das primeiras turmas de trabalhadores da Perimetral Norte, em abril de 1974,

    os atendimentos subiram para 450-500 por ms. Nos ltimos doze meses os ndios

    sofreram 11 surtos de gripe, um de sarampo, e a incidncia de malria vem aumentando

    consideravelmente (OESP, 04/04/1975).

    Os primeiros impactos da construo da estrada foram descritos pelo mesmo padre

    Saffirio em matria publicada pela revista Veja em agosto de 1977. Segundo Saffirio, em

    maro de 1974:

    comearam a aportar na regio do Catrimani levas de pees, que desembarcavam de avies em plena estrada, ou surgiam aos bandos, na curva do rio. Fascinados, muitos indgenas deslocaram-

    se para a estrada, onde se encontravam os machados, tratores, armas e cachaa. [...] A primeira

    epidemia, em junho de 1974, eliminou vinte ndios.

    Aos poucos, os pees das empreiteiras e subempreiteiras passaram a arregimentar mo de

    obra nativa para o exaustivo trabalho de desmatamento, muitas vezes pagando com um simples

    calo o trabalho de um dia. Os ndios passaram a usar vrios cales superpostos provocando,

    em alguns casos, srias infeces de pele. A lavoura j havia sido abandonada e os mais velhos

    passavam fome. ndios mais moos preferiam almoar na cantina dos pees, enquanto suas

    companheiras se prostituam. Completamente desenraizados, foram batizados por outros grupos

    de estradatheri habitantes da estrada. (Veja, 10/08/1977).

  • 16

    Em entrevista gravada em 2013 a fim de subsidiar o presente relatrio, o irmo leigo

    Carlos Zacquini, vinculado Prelazia de Roraima e habitante da Misso Catrimani nos

    anos 1970, nos conta que os trabalhadores contratados pelas subempreiteiras a servio da

    Camargo Corra exerciam suas atividades sem as mnimas condies sanitrias ou de

    subsistncia. Segundo o irmo Carlo, os grupos de trabalhadores recrutados no Maranho

    tinham como misso desmatar faixas de 70 metros de mata ao longo do traado da

    Perimetral, que ia sendo marcado por equipes de engenheiros alguns quilmetros a frente.

    Subsistiam na selva abandonados a sua prpria sorte, caando para sobreviver e

    alimentando o sonho de trabalhar em um projeto muito importante para o futuro do

    Brasil. Nas palavras do irmo Carlo:

    Quando os primeiros chegaram l [na Misso Catrimani] aps alguns meses, foi uma coisa

    chocante, porque era um bando de maltrapilhos miserveis, quase todos doentes, muitos com

    leishmaniose, que pegaram durante o trabalho, e chegavam ansiosos para pegar um avio para

    voltar, para ir embora. Outros para receber simplesmente remdios, alguma proviso, alguma

    coisa, para poder continuar desmatando mais. Foi uma coisa chocante! (Zacquini, 2013).

    Sobre a falta de assistncia sade, Carlo Zacquini comenta:

    No havia absolutamente ningum preparado para uma coisa dessas. Eu j tinha pedido antes,

    vrias vezes, aqui em Boa Vista, vacinas para sarampo, porque eu sabia que era uma coisa grave,

    mas eu no era mdico, no podia impor isso. A minha autoridade no existia nesse campo. Eu

    tentava fazer o que eu achava importante, mas no tinha o respaldo de algum, profissionais e tal.

    E sempre a resposta que vinha era que no tinha. No tinha vacina para sarampo. S sei que nesse

    perodo, quando chegaram os pees, um deles apareceu com sarampo, e logo ele se espalhou. Por

    sorte, no havia um nmero muito grande de Yanomamis circulando naquele momento e o

    sarampo atingiu um nmero pequeno. (idem)

    Os tratamentos de sade realizados mediante remoes para Boa Vista, longe de

    melhorarem a situao, acabavam, segundo o irmo Carlo, por agrav-la:

  • 17

    Depois de alguns desses casos eu tentei evitar de mandar para Boa Vista toda vez que eu podia,

    porque toda vez que vinha algum doente para Boa Vista, voltava as vezes com a mesma doena,

    outras vezes com outras doenas, que espalhava para os outros. Enfim, sempre tinha algum

    problema. Quando eles voltavam a gente no sabia o que fazer. No vinham instrues, no vinha

    um diagnstico, no tinha um acompanhamento, enfim. A Funai no tinha estrutura para fazer

    coisas assim.[...] Em certo momento nos sentimos to impotentes que tentamos recorrer Funai

    para ver se chegava algum para dar uma ajuda para parar um pouco o desastre, a matana.[...]

    Depois que a estrada j estava bem pra frente do Catrimani acabou chegando depois algum da

    Funai e montaram um posto de controle na entrada da estrada, no Ajarani (idem)

    Por fim, sobre a entrada de pessoas no autorizadas pela recm aberta Perimetral Norte o

    irmo Carlo nos conta que:

    Chegavam at nibus cheios de turistas que vinham de Boa Vista para o Catrimani para ver os

    ndios pelados. Era uma coisa nojenta! Alm disso, carros cheios de putas que iam l atrs dos

    pees, e outras coisas mais. (idem)

    As denncias do padre Saffirio e os relatos de Carlo Zacquini se confirmam em

    documentos oficiais, relatos indgenas e depoimentos de outras pessoas envolvidas na

    defesa dos direitos dos Yanomami poca da construo da estrada. Em entrevista

    gravada no dia 24 de agosto de 2013 na aldeia Xikawa, localizada no limite leste da TI

    Yanomami, os indgenas Antnio, Macaxi e Santarm, habitantes da regio durante a

    construo da estrada, relatam que:

    Antnio: [...] Nossa liderana no sabia de nada, no avisaram a gente antes. Pegaram a gente

    de surpresa. A Funai no falou com os nossos velhos (pais, avs). Os velhos Yanomami pensaram

    que era gente boa. Logo ofereceram comida, primeiro o homem branco oferece comida: janta,

    almoo, caf. Achamos eles legais. Os brancos usaram os Yanomami para trabalhar com eles,

    cortar pau, carregar. S pagavam com comida. Yanomami no entendia lngua de branco, nem os

    brancos entendiam a nossa. [...]. Os Yanomami ficaram muito irritados de trabalhar para ganhar

    prato de comida. Depois da entrada dos invasores veio doena, gripe, sarampo; morreu mulher

    velha, homem velho, criana, porque no estavam vacinados. O governo no cuidou de mandar

    vacinas. Morreram sete adolescentes (homens) da minha famlia, mais pai e me, de

  • 18

    gripe. Muitas crianas morreram. Sobraram poucos ndios.[...] A estrada passou em cima de uma

    aldeia. Acabaram as malocas, a mquina passou por cima.

    Macaxi: Acima do rio Ajarani, a estrada no passou l, mas a doena entrou. Gripe vai em

    qualquer lugar. Morreram muitas pessoas. Dez, quinze. Fui no posto da Funai. A gente chamava o

    posto de Barronai. Minha mulher e um filho morreram. Outra filha foi embora. A Funai e o

    Presidente da Repblica no pensaram primeiro em cuidar da sade, vacinar. Naquele tempo a

    Funai no se preocupava. O General Ismarth no se preocupou com meu povo Yanomami.

    [...]A Camargo Correia pegou de surpresa, no avisou a Funai. Os ndios no sabiam o que era

    uma estrada. Pensavam que era costume do branco para levar mercadoria e transportar madeira,

    trazer invasores. Tiraram muita mata. Milhares de rvores derrubadas. A pele da terra ficou

    ferida. Cortavam montanhas para botar piarra (pedregulhos) na estrada, para a pista ficar firme.

    Santarm: Para os que moravam longe da estrada no mudou muita coisa, mas os que moravam

    perto, morreram muitos. Depois, quando acabou o dinheiro e os brancos foram embora, os

    Yanomami no sabiam mais como viver, foram andando, mudando de lugar. [...]Depois da

    estrada a doena no saiu. A doena ficou no lugar da Camargo Correia. At hoje o governo

    federal no assumiu a responsabilidade de cuidar da sade que ele estragou, deixou espalhar

    doena nas aldeias.[...] A bebida uma grande doena.[...] O sarampo acaba com a gente. Matou

    quatro aldeias. Quem ajudou a salvar nosso povo foi a Diocese de Roraima os padres da Misso

    Catrimani que salvaram quem podiam. O governo no mandou equipe para cuidar dos povos de

    Roraima e do Amazonas. Hoje nossa preocupao so os filhos. Crescem aqui e saem com 15, 16

    anos pela estrada.

    No primeiro relatrio trimestral do Plano Yanoama (ver abaixo), o antroplogo Kenneth

    Taylor escreve:

    Devido passagem da construo da estrada, os ndios do vale do rio Ajarani, alm de perderem

    20% dos seus membros, a maioria destes mortos como resultado de gripe transmitida pelos

    operrios da estrada, sofreram um processo de desagregao social dos mais srios. Tais jovens

    tornaram-se prostitutas, quase todos os ndios da rea passaram a mendigos e parasitas das

    serrarias, etc. da estrada, e quase todos entraram numa fase de abandono dos seus costumes

    tradicionais, incluindo (pelo menos na presena dos brancos) a fala de sua prpria lngua.

    Evidentemente, o resultado foi a emergncia de um grupo, alm de desagregado, seriamente

    desanimado e desorientado (Taylor, 1976a:7)

  • 19

    Entre os Yawari, habitantes prximos ao km33, havia 16 pessoas vivendo a dois

    quilmetros ao sul da linha da Estrada. Quando esta os atingiu, dois morreram de

    pneumonia e dois foram viver com brancos caadores de peles de ona. Na regio

    conhecida como Castanheira a situao era deprimente. Taylor descreve um cenrio no

    qual os ndios fingiam no saber a prpria lngua, no possuam cestaria, no faziam o

    beiju, no possuam mais redes de fabricao nativa e todos usavam roupas velhas, sujas

    e rasgadas (Ramos &, Taylor 1979:17).

    Ainda segundo Taylor e Ramos, com a chegada da estrada, a maioria dos Yanomami

    conhecidos como Opiktheri optaram por um roadside nomadism(nomadismo de beira-

    de-estrada). Passavam o tempo indo de um acampamento de trabalho a outro, cobrindo

    distncias de mais de 50 km. Eles desenvolveram uma tcnica de bloqueio da estrada

    fazendo uma barreira humana, a fim de forar os motoristas a pararem para pedirem

    comida, roupas ou apenas carona. Estavam sempre reclamando de fome, mendigando por

    comida nos canteiros de obra, na beira da estrada e na aldeia Wakathau theri. Comearam

    a roubar produtos da misso Catrimani, a pouca distncia do km 146. Caa e produtos da

    floresta ajudavam a melhorar a situao alimentar, mas havia uma seria ameaa de

    desnutrio, particularmente entre mulheres e crianas.

    Os indios de Wakathau theri, que viviam prximos misso Catrimani, trabalharam

    como carregadores no incio da construo da estrada. Nesse processo, foram infectados

    com vrus da influenza. Em 15 meses, com a chegada da estrada, eles sofreram 15

    epidemias de gripe, isto , uma por ms. Entre abril e maio de 1975 quatro pessoas foram

    tratadas com pneumonia, dez com bronquite e vinte e cinco com gripe. A malria se

    tornou epidmica. O desmatamento e a formao de lagoas com gua estagnada, ambas

    resultado da construo da estrada, contriburam para o aumento dramtico da incidncia

    da doena. Pelos dados da misso, antes da construo, uma media de 150 ndios eram

    tratados para vrios problemas de sade. Em junho de 1974, no pico das epidemias,

    foram feitos 575 atendimentos. Nos meses de abril, maio e junho de 1974 juntos, foram

    realizados 1348 tratamentos, enquanto antes a mdia era 1350 para cada 9 meses (idem,

    pag. 27).

  • 20

    Citando uma proposta de demarcao da Terra Indgena Yanomami, elaborada pela Funai

    em 1980, Elias Bigio apresenta de forma sinttica o diagnstico sobre a situao de

    contato ao longo da estrada assim como explicitada pelo rgo indigenista:

    Os Yanomami do Rio Ajarani, cuja populao nos anos 60 era estimada em cerca de 400

    pessoas (Migliazza: 1978), em 1974 contava com 102 indivduos, em 1975 estavam reduzidos a

    79 ndios (Ramos: 1979). Suas quatro aldeias sofreram uma baixa de 22% em decorrncia

    principalmente de doenas respiratrias introduzidas por trabalhadores da estrada. Alm das

    mortes, a prostituio, com consequentes doenas venreas, a mendicncia, e o desenraizamento

    de famlias inteiras, levaram ao esfacelamento de todas essas aldeias (Ramos: 1979). Um pequeno

    grupo de 19 Yanomami do Rio Ajarani foi incorporado a uma aldeia do rio Pacu situada a cerca

    de 80 quilmetros das comunidades do rio Ajarani. Alm desses duas famlias constitudas por

    cerca de sete indivduos passaram a vaguear pela estrada, utilizando-se das choas abandonadas

    pelos trabalhadores da rodovia. Os sobreviventes da regio do rio Ajarani levam hoje uma vida

    errante, constroem precrias habitaes beira da estrada e alguns passaram a vender sua fora de

    trabalho a serrarias instaladas nos limites da rea antes interditada pela Funai, entre os

    quilmetros 29 e 49 da Estrada (Bigio, 2007:193).

    Sobre a comunidade do rio Pacu o relatrio da Funai nos informa que:

    A comunidade do rio Pacu tinha em 1975 uma populao de 58 pessoas. O grupo como um todo

    foi atrado para a estrada, abandonando sua aldeia e suas roas no rio Pacu, a cerca de 10

    quilmetros ao sul da Perimetral. Passaram a mendigar na estrada, nos acampamentos da

    Camargo Corra e na Misso Catrimani, localizada na altura do quilmetro 146 da Perimetral.

    Como seria de esperar, essa populao passou a sofrer de desnutrio, contraiu gripe, faringites,

    pneumonia e tuberculose. Uma das vtimas de tuberculose, depois de vrios meses de tratamento

    irregular, morreu em Boa Visa em 1977 (Bigio, 2007:193).

    O trecho Caracara-rio Padauiri foi definitivamente abandonado no incio de 1976. Longe

    de completar sua meta original, a estrada acabou na altura do quilmetro 225, ao p da

    Serra do Demini, na divisa entre Roraima e o Amazonas.

  • 21

    Os impactos da construo da estrada somaram-se a outras situaes nas quais o contato

    com populaes no indgenas provocou mortes e desestruturao social devido falta de

    estrutura do rgo indigenista. Uma srie de epidemias eclodiram em vrias partes da

    rea ocupada pelos Yanomami a partir do final dos anos 1950, aumentando ainda mais o

    drama vivido no interior da selva.

    Epidemias

    Em uma reportagem do jornal O Estado de So Paulo de agosto de 1977, a fotgrafa

    Claudia Andujar descreve a situao dos ndios que viviam prximos Misso

    Catrimani, e os efeitos de uma epidemia de sarampo levada regio por uma criana

    indgena que estivera em tratamento de sade em Boa Vista:

    Num dia de abril chegou misso um ndio de uma maloca distante. Ele disse que entre os seus

    havia dois doentes graves. Pedia ajuda. Mas ndio s sabe contar at dois, passando de dois ele

    fala muitos. Eu e o missionrio conversamos com o ndio e acabamos sabendo que muitos

    tinham morrido.

    Foi ento que empreendemos uma expedio de 120 quilmetros, passando por trs

    malocas. Foram cinco dias de viagem a p. Na primeira maloca vimos ndios se arrastando pelo

    cho, porque j no podiam andar. Eram ndios da segunda maloca que tinham se refugiado ali.

    Estavam todos doentes. No podiam caar; estavam esquelticos, fracos, famintos. Eles tinham

    tido sarampo e agora sofriam com as complicaes, como bronquite e pneumonia.

    Ns tratamos deles enquanto pudemos. Mas seguimos viagem e apenas passamos pela

    segunda maloca. Ela estava vazia. No caminho para a terceira maloca achamos um esqueleto e

    depois soubemos que era de um ndio doente. Esse ndio estava sendo carregado no colo, por um

    parente, quando morreu. Ele foi deixado ali mesmo, contrariando os costumes dos Yanomami.

    Mas que seu parente no podia fazer outra coisa, porque tambm estava muito doente.

    Na terceira maloca havia tambm muitos doentes. Alguns eram sobreviventes de uma

    quarta maloca, que no chegamos a visitar por saber que estava vazia. O missionrio italiano

    voltou para a sede da misso para buscar mais remdios. Passamos dois meses naquela maloca.

    No total, do que ns soubemos, morreram 67 ndios. Os da primeira maloca

    sobreviveram, porque j tinham tido sarampo antes. Da segunda maloca, morreu exatamente a

  • 22

    metade da populao, incluindo todas as crianas e a maior parte das mulheres. O mesmo

    aconteceu na terceira maloca; na quarta foi quase isso. (OESP, 05/08/1077).

    Os surtos de sarampo entre os Yanomami se iniciaram em 1959, coincidindo com a

    chegada dos primeiros missionrios que se instalaram na rea, bem como com o aumento

    da penetrao de pessoas no autorizadas entre os ndios. Em um levantamento sobre a

    situao sanitria realizado em 1981, o Dr. Rubens Brando, da Escola Paulista de

    Medicina, sistematiza as informaes sobre a incidncia de sarampo entre os Yanomami

    chegando ao seguinte retrato:

    Ano Local n0 de

    bitos

    Procedncia do surto Fonte

    1959 Misso

    Waika 2

    Garimpeiro vindo da

    Venezuela

    Sr. Rondiney

    Superior da MEVA em

    BV

    1963 James Neel Amer.

    Jou. of Epid. 91 - 1970

    1967 Mucaja e

    Toototopi

    1

    12

    Filha de um

    missionrio infectada

    em Manaus

    James Neel Amer.

    Jou. Of Epid. 91 - 1970

    1970 Boas Novas 4 ndios habitantes da

    regio referida

    1974 Misso

    Catrimani 7

    Trabalhadores da

    estrada BR 210

    Alcida Ramos

    Arc/IWGIA doc

    37/1979

    1975 Misso

    Maturac 40

    Trabalhadores que

    construam a Pista

    Os prprios ndios desta

    regio

    1977 Lobo

    DAlmada 67

    Retorno de um ndio

    infectado de Boa Vista

    Folha de SP :

    18/05/1977

    Veja:25/05/1977

    Ao final da tabela reproduzida acima, o Dr. Rubens observa que:

  • 23

    Estas so as epidemias de sarampo entre os Yanomami de que temos notcias. possvel que

    outras tenham ocorrido ou mesmo que estas tenham atingido outras reas. Provavelmente o

    nmero de bitos deve estar subestimado, pois geralmente so de reas que tiveram algum tipo de

    assistncia. (Brando, 1981:9).

    Mais frente o Dr. Rubens nos informa que em junho/julho de 1981 um novo surto

    atingiu os grupos localizados entre os rios Uraricoera e a Serra das Surucucus, causando

    cerca de dez bitos conhecidos. A doena foi introduzida por um ndio que, levado para

    Boa Vista pra auxiliar os missionrios em um trabalho lingustico, se infectou, retornando

    aldeia durante o perodo de incubao (idem, pag13). Resumindo os dados apresentados

    acima chegamos a um total de 143 mortes conhecidas causadas pelo sarampo ao longo de

    22 anos, todas elas resultantes da ao (direta ou indireta) de no ndios entre os

    Yanomami.

    A percepo indgena sobre o aparecimento das doenas provocou uma srie de

    reelaboraes de sua cosmologia e a readequao de categorias culturais a fim de dar

    sentido s mortes que se avolumavam. O aumento da circulao de pessoas

    desconhecidas, a utilizao de explosivos e a destruio da floresta passaram a compor o

    cenrio para a construo de explicaes nativas para o cenrio apavorante que se

    descortinava entre eles. No livro La Chute du Ciel: paroles dun chaman yanomami,

    Davi Kopenawa Yanomami comenta a dramtica situao vivida por seus parentes com a

    abertura da Perimetral Norte.

    Aps acompanhar uma expedio da Funai voltada para a localizao e atrao de um

    grupo isolado conhecido como Moxi hatetema, Davi descreve como uma epidemia de

    gripe atingiu o grupo de seu futuro sogro, matando sua principal liderana e, sobretudo,

    mulheres e crianas. Em seu relato, Davi nos conta que os habitantes de Werihi shipi u

    ouviram o barulho de um helicptero que estava circulando acima da floresta. Era a

    estao seca, as guas estavam baixas. Os rios tinham muitas praias de areia e em um

    determinado momento o helicptero pousou em uma delas, longe da casa coletiva. Aps

    um perodo de silncio, ele partiu desaparecendo no cu. Ao cair da noite foi ouvida uma

  • 24

    grande exploso. Em nota, o antroplogo Bruce Albert, coautor do livro, esclarece que

    possivelmente se tratava de uma das equipes de prospeco geolgica que percorriam a

    regio na poca da abertura da Perimetral Norte. Muitos voos de helicptero partiram da

    Misso Catrimani em maro de 1973, e possvel que algum artefato explosivo deixado

    na praia tenha entrado em combusto acidentalmente.

    Aps o incidente, um grupo de jovens interessados em possveis bens industrializados

    deixados no local foi ate a praia mas encontrou apenas lixo, botas de borracha e um

    chapu de palha. Davi chama a teno para o fato de que a praia estava cheia de buracos

    vazios. Depois do retorno dos jovens comunidade irrompe a epidemia:

    ...algum tempo depois seu grande homem adoeceu e morreu muito rapidamente. Todos os

    habitantes da casa comearam a arder de febre. Eles tremiam e sentiam uma sede insacivel. No

    entendiam o que estava acontecendo. No era uma tosse qualquer. Muito rapidamente, vrias

    outras pessoas morreram. Elas caram uma aps a outra, cada vez mais, especialmente mulheres e

    crianas. Alguns tentaram fugir para a floresta, mas morreram mesmo assim. Apenas alguns deles

    sobreviveram epidemia de fumaa. A casa dos Werihi Shipi u era grande, no entanto, em um

    curto espao de tempo, esse mal a deixou quase completamente vazia (Kopenawa & Albert,

    2010:305-306. Traduo minha).

    Novamente em nota, Albert comenta que a epidemia pode ter sido passada aos ndios por

    meio de objetos materiais, e que a contaminao pode ter sido fruto de uma visita ao

    posto Ajuricaba, trazida por visitantes ou transmitida por caadores que transitavam pela

    regio. A identificao das epidemias a uma entidade malfica conhecida como

    Xawara comum entre os Yanomami. Liberada pela queima de objetos

    industrializados, a Xawara assola aldeias inteiras, devorando todos que encontra pela

    frente. Essa concepo est na raiz do diagnstico indgena que tende a relacionar a

    incidncia das doenas fumaa e s exploses que expe partes do subsolo. A relao

    entre as mortes por doenas e a abertura da estrada ficam cada vez mais claras a Davi,

    que um pouco mais a frente em seu livro ele comenta:

  • 25

    ...foram muitas mulheres, crianas e velhos que morreram por causa da estrada. Eles no foram mortos

    pelos soldados, verdade4. Foram as fumaas da epidemia trazidas pelos trabalhadores que os devoraram.

    (Kopenawa & Albert, 2010:316 traduo minha)

    A ausncia total de qualquer procedimento de consulta prvia, livre e informada justifica

    a postura inicial dos ndios, que absolutamente mal informados e sem experincia no trato

    com os brancos, acreditaram nas promessas de bens industrializados e alimentos em

    abundncia:

    Nossos velhos no tiveram essas preocupaes porque, mais uma vez, eles no estavam cientes

    da estrada. Os grandes homens do governo no se reuniram para que suas vozes fossem ouvidas.

    Eles no lhes perguntaram: Podemos abrir esse caminho na sua terra? O que vocs pensam sobre

    isso? Vocs no vo ficar com medo? Os poucos brancos que tinham mencionado seu traado

    no disseram quase nada. Nem o povo da Funai nem aqueles de Teosi [missionrios] nos tinham

    prevenido realmente sobre o que aconteceria. [...] Ento, as mquinas chegaram um dia na

    floresta sem que nenhuma palavra as precedesse. Em seguida, os nossos velhos, mantidos na

    ignorncia, no foram hostis com os brancos da estrada. Nem os do rio Ajarani ou aqueles do

    Catrimani, do Mapulau ou Ara disseram nada. Eles pensavam que, no importava o que

    acontecesse, a floresta no desapareceria jamais e eles continuariam a viver como sempre tinham

    vivido. Foi-lhes dito ainda que eles poderiam obter bens e comida em abundncia. Eles sabiam

    que o povo da estrada os havia lanado de suas aeronaves e os distribudo generosamente. Eles

    no sabiam nada sobre as verdadeiras intenes dos brancos. E eu, em Mapulau, era muito jovem

    para convenc-los do que os ameaava. Ento eu desci o rio e fui para Manaus sozinho, mantendo

    a minha ansiedade e minha tristeza no peito. (Kopenawa & Albert, 2010:317 traduo

    minha)

    A grande incidncia de epidemias (gripe, sarampo, coqueluche, rubola e malria)

    somadas s doenas sexualmente transmissveis, tuberculose e a oncocercose, poderiam

    ter tido sua letalidade reduzida por aes do poder pblico. A realizao de campanhas

    de vacinao em massa, o controle sanitrio das equipes de trabalhadores e o

    acompanhamento da situao nas aldeias poderiam ter diminudo a incidncia das

    doenas e evitado centenas de mortes. Alm disso, o acompanhamento das relaes entre 4 Referncia ao caso do bombardeio realizado sobre os Waimiri-Atroari na abertura da BR-174.

  • 26

    ndios e no ndios ajudaria tambm a minimizar a degradao social decorrente do

    contato indiscriminado, como o alcoolismo, a prostituio e o abandono total do modo de

    vida nativo.

    O Plano Abortado

    Como mencionado acima, as decorrncias da construo de estradas entre as populaes

    indgenas na Amaznia no eram novidade. Nesse contexto, a Funai lanou mo de um

    convnio com a UnB voltado a implementar o Plano Yanoama. Elaborado por K.

    Taylor, ento professor de antropologia, o plano foi apresentado ao rgo indigenista em

    junho de 1974, aprovado no dia 3 de dezembro e formalmente criado pela portaria n

    214/E de 19 de setembro de 1975 , tendo seus trabalhos de campo iniciados em 15 de

    outubro do mesmo ano.

    Em sua primeira verso, o Plano Yanoama teve como objetivo orientar e controlar os

    contatos entre ndios Yanomami e brancos na regio da Perimetral Norte em RR e no AM.

    Por meio da aplicao de conhecimentos cientficos (antropolgicos, sociolgicos,

    econmicos, etc.), inclusive com a elaborao e implementao de um sistema

    econmico, seriam, segundo seu coordenador, impossibilitados quaisquer conflitos ou

    abusos nas relaes entre os Yanomami e os brancos. Com esse intuito, o Projeto

    forneceria: uma superviso constante comeando antes do incio da construo, e

    continuando num programa de longo prazo no decorrer da colonizao da Estrada.

    (Taylor, 1974). Em 1976, K. Taylor amplia os objetivos e a rea da atuao do projeto,

    incluindo assistncia mdica e a demarcao de terras para os Yanomami. Alm da BR

    210 e a elaborao de uma proposta de demarcao, o Plano passou a ter mais dois

    subprojetos de alta prioridade: um plano de recuperao sociocultural na regio do rio

    Ajarani chamado Projeto Humait, e o controle da interao entre ndios e garimpeiros

    de cassiterita que se avolumavam na Serra das Surucucus, ou Projeto Surucucus

    (Taylor, 1976b) .

    Apesar de parecer adequado e bem dimensionado para a poca, o Plano Yanoama no

    conseguiu atingir seus objetivos pela falta de apoio e comprometimento dos rgos do

  • 27

    Estado. Em seu primeiro relatrio (perodo de abrangncia: de 15/10/1975 a 14/01/1976),

    os antroplogos da equipe informam que tiveram apenas dois dias e meio para realizar a

    vacinao (9, 10 e 13/11) devido reduo de um planejamento anterior no qual estavam

    programadas 3 semanas para essa atividade.

    O mal planejamento e falta de comunicao com os rgos responsveis pela sade

    indgena inviabilizou os trabalhos. No mesmo documento, a equipe denuncia que a

    Diviso de Sade da Funai se negou a vacinar os ndios da regio de Surucucus. Ao todo,

    apenas 230 ndios da rea da Perimetral e da misso Mucajai foram vacinados:

    H tempo o Dr. Molina, da Diviso de Sade, nos havia comunicado o plano de um programa de

    vacinao BCG, entre os ndios Yanoama, de trs semanas, aproximadamente, entre 01 e 20 de

    novembro [1975]. No dia 27 de outubro, ele nos informou que a equipe da UAE estava atrasada e

    somente chegaria em Boa Vista no dia 03 de novembro, passaria uma semana ministrando aulas

    no curso de Monitores de Sade, estando a vacinao prevista para o dia 08 de novembro. No dia

    03 de novembro,... nos informou em Braslia, que a equipe iria iniciar a vacinao naquele

    mesmo dia. Viajamos para Boa Vista dia 04 de novembro, onde encontramos a turma da UAE

    planejando ... vacinao dos ndios no-Yanoama e uns poucos dias de vacinao de ndios

    Yanoama. Aps uma srie de mal-entendidos e conversas pouco agradveis, os Yanoama

    receberam exatamente dois dias e meio do tempo dos vacinadores. Dois dias e meio em vez de

    trs semanas representa, parece-nos, uma reduo considervel e cumpre-nos registrar aqui nosso

    protesto do mau planejamento e falta de comunicao anterior com a Delegacia por parte da

    Diviso de Sade, a arrogncia do Delegado e do DelegadoSubstituto, e o esprito pouco

    colaborador ... da UAE. E poucssimos (sic) ndios Yanoama foram vacinados. Um dos

    argumentos apresentados pelos responsveis da Delegacia e da UAE, para justificar tanta reduo

    no tempo dedicado aos Yanoama, foi que duas atendentes de enfermagem da delegacia ... seriam

    treinadas para dar vacina BCG e estariam disposio do Plano Yanoama para programas

    posteriores da vacinao BCG, ao longo dos meses vindouros. J comuniquei ao Sr. Presidente,

    no dia 24 de novembro de 1975, a atitude do Delegado ... quando pedimos a ajuda ... para

    vacinao de ndios Yanoama na rea Surucucu, aproveitando a disponibilidade dos helicpteros

    da firma ICOMI ... A resposta do Delegado foi, em parte, a Delegacia no tem nada a ver com

    esses ndios Yanoama. E esses ndios da rea Surucucus no foram vacinados (Bigio,

  • 28

    2007:186, Taylor,1976a, p. 7-8)5.

    No segundo relatrio (referente ao perodo entre 01/01/1976 e 29/02/1976) a histria se

    repete. Apesar da disponibilizao de helicpteros da empresa Icomi, a vacinao na

    Serra das Surucucus no foi efetivada pela ausncia de profissionais de sade para

    realizao dos procedimentos. Foi negada pela 10 DR da Funai a participao de uma

    enfermeira em dezembro de 1975 e janeiro de 1976. Os 8 atendentes de enfermagem

    previstos na portaria 215/E da Funai tambm no foram contratados. Assim, o Plano

    Yanoama no disps de meios para realizar a imunizao prevista. (Taylor, 1976c).

    No final de 1976, a Funai recebe ordens superiores para impedir K. Taylor de trabalhar

    em RR por se tratar de um estrangeiro em rea de fronteira definida como rea de

    segurana nacional. Assim, recusa-se a renovar o contrato de um ano de Taylor, deixando

    as equipes do Plano localizadas em Surucucus, na Perimetral e em Humait totalmente

    isoladas e sofrendo hostilidades dos agentes governamentais at que, finalmente, foram

    obrigadas a deixar a rea. Aps quatro meses e meio em campo as atividades do projeto

    foram encerradas fora (Ramos & Taylor, 1979: 33).

    KM 211

    No final da dcada de 1970, um acampamento abandonado da construtora Camargo

    Corra no km 211 da Perimetral Norte foi utilizado por servidores da Funai como uma

    espcie de presdio agrcola nos moldes do que havia ocorrido entre os Krenak, em

    Minas Gerais. A denncia da jornalista Memlia Moreira em matria do Jornal de

    Braslia do dia 2 de abril de 1978. Segundo a jornalista, as instalaes do km211 serviram

    de cadeia para ndios, sobretudo Macuxi, que se metiam em arruaas. Alm disso,

    atraia diversos ndios pela facilidade de alimentao oferecida pela Funai, impactando

    severamente a estrutura das comunidades prximas. As denncias vo ainda mais longe.

    Descrevem a explorao da mo de obra indgena sem que houvesse salrio para os que

    5 Para uma sistematizao detalhada dos acontecimentos envolvendo a implementao do Plano Yanoama ver Bigio, 2007.

  • 29

    trabalhavam nos projetos agrcolas. Apenas redes, roupas velhas e alimento eram

    fornecidos como retribuio aos trabalhos realizados. Os presos chegavam acompanhados

    da prpria famlia em carros da Funai e ficavam de dois a trs meses em mdia. Seus

    alojamentos e de suas famlias eram os barraces da Camargo Correa, que divididos em

    quartos, abrigavam tambm os trabalhadores da roa. O responsvel pela colnia penal,

    segundo a jornalista, era o sertanista Sebastio Amncio, que por meio da explorao do

    trabalho indgena cultivava amendoim, mandioca, arroz, cana de acar, banana e feijo.

    Apesar da alegao que tratava-se de produo para subsistncia, Memlia Moreira

    afirma ter encontrado 90 sacas de arroz estocadas em um barraco. Segundo matria do

    jornal O Estado de So Paulo de 01 de novembro de 1979, a priso clandestina teria sido

    autorizada por meio da minuta 477 da Coordenao da Amaznia (Coama), assinada pelo

    General Demcrito de Oliveira, diretor do rgo. Para Memlia Moreira, tratava-se de

    um projeto voltado a: tornar autossuficiente cada grupo, proporcionando-lhes, com os

    resultados obtidos, meios de desenvolvimento e consequente independncia agrcola e

    financeira. Nesse projeto, todo o trabalho ficava a cargo dos ndios sem que houvesse

    remunerao em hiptese alguma, indo contra o estatuto do ndio e as diretrizes da

    prpria Funai. Em suma, alm da explorao da mo de obra indgena sem os pagamento

    previsto em lei e o encarceramento de ndios de outra regio sem nenhum tipo de

    julgamento ou direito a defesa, a Colnia Penal do Km 211 servia de base para a caa

    ilegal de animais silvestres e o contrabando de peles, ambos, mais uma vez segundo a

    jornalista, gerenciados por Sebastio Amncio.

    No obtive sucesso ao tentar recuperar algum documento referente Colnia Penal

    Agrcola do Km211 junto a Funai. Atualmente, a base da Funai instalada nessa regio

    continua em operao, conhecida como PIN Demini, e gerida pelos prprios indgenas

    que l se estabeleceram.

    Como procuramos explicitar at aqui, a construo da rodovia Perimetral Norte (BR-210)

    foi o vetor principal da intensificao do contato dos Yanomami do Ajarani e Catrimani,

    localizados prximo fronteira leste da rea de ocupao indgena e diretamente afetados

    pelo traado da estrada. Nesse caso, a violao dos direitos dos Yanomami se deu

  • 30

    sobretudo pela ausncia de processos explicativos e consultas aos ndios, a destruio de

    aldeias, a explorao do trabalho indgena e principalmente, mediante a desestruturao

    de seu modo de vida pela mendicncia, alcoolismo e prostituio provocados pelas

    relaes descontroladas com os trabalhadores da estrada e toda a sorte de intrusos. A

    dimenso mais grave, entretanto, refere-se ausncia de controle sanitrio por parte da

    Funai, que como vimos nos documentos e depoimentos apresentados, no s no

    monitorou a sade dos pees e demais trabalhadores que adentravam terra indgena,

    como se recusou a vacinar satisfatoriamente a populao atingida pela estrada,

    caracterizando uma grave omisso do poder pblico tendo como decorrncia centenas de

    mortes por epidemias diversas.

  • 31

    Garimpo

    Em 1970 foi criado pelo Departamento Nacional de Produo Mineral do Ministrio de

    Minas e Energia (DNPM/MME) o Projeto Radambrasil, tendo como objetivo levantar os

    elementos bsicos necessrios a um planejamento racional do aproveitamento integrado

    dos recursos naturais da regio amaznica (Cardoso & Mller, 1977). Mediante imagens

    de radar, o projeto produziu uma grande quantidade de informaes cartogrficas sobre a

    vegetao, os tipos de solo, as especificidades dos diferentes biomas e, sobretudo, sobre o

    potencial mineral do subsolo amaznico. Em 1973, o projeto Radam j havia

    praticamente concludo o exame de toda a parte norte da regio, indicando que a bacia

    amaznica possua um dos mais valiosos e diversificados perfis minerais do mundo

    (Davis, 1978: 118).

    Alm de grandes depsitos de ferro, mangans, estanho, bauxita e carvo, a presena de

    minerais radioativos, ouro e diamantes fomentou a criao de projetos de minerao em

    larga escala. Esses projetos envolviam a unio de empresas nacionais e estrangeiras,

    como a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a U.S. Steel Corporation, e o consrcio

    entre Brasil, Canad, Noruega, Espanha, EUA e Gr-Bretanha, que criaria a companhia

    de minerao Rio do Norte, um dos maiores empreendimentos do seu tipo no mundo

    (Davis, 1978).

    Em fevereiro de 1975, o projeto Radam notifica, alm da presena de diamantes,

    cassiterita e ouro, a incidncia de minerais radioativos na regio montanhosa prxima ao

    plat de Surucucus, no corao da rea de ocupao dos Yanomami. Em consequncia, o

    Ministrio das Minas e Energia declara a rea aberta a pesquisas minerais e toda a regio

    passa a ser considerada como de segurana nacional (Taylor, 1979).

    A preocupao do MME com a Serra das Surucucus estava intimamente relacionada

    assinatura, em 1975-76, do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, que previa o fornecimento

    de urnio natural quele pas em troca de tecnologia nuclear avanada, da expanso das

    atividades de prospeco do minrio e a construo de usinas para seu enriquecimento,

  • 32

    somando-se a isso a construo de oito usinas nucleares no Brasil (Costa, 1994: 166;

    Davis, 1978: 134-135; CCPY, 1989).

    A explorao de cassiterita na Serra das Surucucus a partir de 1975 foi o estopim de uma

    das maiores corridas do ouro que se tem notcia na historia recente do Brasil. Em um

    intervalo de pouco mais de 15 anos, a rea Yanomami foi tomada por dezenas de

    milhares de garimpeiros que exploravam ilegalmente os recursos minerais da regio

    deixando um rastro de devastao ambiental, desestruturao social, violncia e caos

    sanitrio que ainda hoje produz consequncias para a populao indgena.

    Alm da Serra das Surucucus, garimpeiros passaram a penetrar o interior da rea por via

    fluvial, subindo o rio Uraricoera, instalando balsas e grotas de garimpagem na regio do

    Eric, atravessando a fronteira rumo a Venezuela, por um lado, e subindo o rio chegando

    at a regio de Waikas, por outro. Por via area, os garimpeiros se aproveitaram de pistas

    antigas ou reformadas pelo Projeto Calha Norte, se instalando s margens do rio Couto de

    Magalhes (regio do Paapiu) e Alto Mucaja (regio do Homoxi), onde at hoje

    possvel verificar o rastro de destruio. No Amazonas a invaso se deu sobretudo aos

    ps do Pico da Neblina que, assim como a Serra das Surucucus, foi palco de uma invaso

    em massa orquestrada com o apoio de comerciantes e polticos locais. Por fim, a abertura

    da Perimetral Norte viabilizou a entrada de garimpeiros nas proximidades do rio

    Catrimani, potencializando ainda mais os efeitos negativos causados pela obra desde

    meados dos anos 1970.

    Em um estudo exaustivo sobre o Territrio Yanomami, o gegrafo Franois-Michel Le

    Tourneau (2010) estima, a partir da anlise de imagens Landsat 5-TM, que no final dos

    anos 80 uma rea total de cerca de 21.000 Km2 foi sistematicamente explorada pelos

    garimpeiros. O nmero de pistas de pouso clandestinas no interior da rea ultrapassou

    uma centena e estima-se que 40.000 homens, apoiados por 540 aeronaves, garimpavam

    ilegalmente no interior da floresta em 1989. A quantidade de ouro oficialmente extrada

    da Terra Yanomami chegou, em fevereiro de 1989, a 789 quilos, mas a estimativa que

    nesse perodo foram extradas e contrabandeadas por ms entre duas a trs toneladas do

  • 33

    minrio. Abaixo examinaremos os principais casos documentados a fim de oferecer uma

    viso geral dos acontecimentos. Iniciaremos com o garimpo de cassiterita na Serra de

    Surucucus e veremos como uma tentativa frustrada de invaso armada da regio

    transformou a forma de ao dos garimpeiros que, de forma dispersa, passaram a penetrar

    a rea de ocupao indgena por todos os meios disponveis.

    Serra das Surucucus

    Cerca de 4 semanas aps a divulgao dos resultados do Radam, os primeiros 6

    garimpeiros j haviam conseguido amostras da cassiterita de Surucucus. A quantidade de

    trabalhadores em busca do minrio aumentava rapidamente, atingindo 2 centenas em

    cerca de 6 meses (Taylor, 1979). Alegando propriedade sobre a rea e a nica autorizada

    a comprar a cassiterita retirada da regio, a empresa Minerao Alm-Equador Ltda era

    a principal responsvel pelo envio de garimpeiros para a serra. Sem apresentar provas de

    seu registro legal como empresa de minerao ou autorizao do Ministrio das Minas e

    Energia, a Alm-Equador era comandada por empresrios de Boa Vista que se

    comprometiam a dar alimentao, instrumentos de trabalho, assistncia mdica e

    transporte aos garimpeiros que atuavam sem vnculo empregatcio ou autorizao da

    Funai (Tayor, 1979; Cardoso, 1976). Em reunio realizada em Boa Vista dia 9 de

    dezembro de 1975, o coordenador do Plano Yanoama, Kenneth Taylor, chama a ateno

    para os problemas relacionados ao ingresso de pessoas no autorizadas e/ou registradas

    nos garimpos de cassiterita. Mesmo com as declaraes dos responsveis da empresa

    Alm-Equador sobre o interesse da firma em se manter dentro da lei, e do Diretor do

    Depto. de Polcia Federal de Boa Vista, sobre a importncia da fiscalizao peridica das

    atividades na Serra das Surucucus (Taylor, 1975), o nmero de garimpeiros saltou para

    450 em janeiro de 1976, divididos em 9 grotas de garimpagem (Santos, 1976) que

    contavam com duas novas pistas que garantiam sua operacionalidade. Alm das oficiais

    abertas pelo Radam e pela Meva, a pista batizada de guas Claras, com 500 metros de

    comprimento, e a pista Liberdade, de 420 metros, viabilizavam cerca de uma dzia de

    pousos e decolagens de diversas aeronaves responsveis pelo escoamento do minrio

    retirado do solo (Alves, 1976; Rogedo, 1976). O apoio prometido aos garimpeiros pela

    empresa mineradora revelou-se uma farsa. A alimentao fornecida pela Alm-Equador

  • 34

    era inadequada e insuficiente6, e a assistncia mdica completamente inexistente. Em um

    Termo de Ocorrncia registrado na 10a DR da Funai em 01 de fevereiro de 1976, o

    servidor Carlos Marinho dos Santos denuncia um procedimento semelhante ao sistema

    de aviamento no qual a empresa fornece ferramentas e alimentos aos trabalhadores, que

    a partir de ento ficam presos a dvidas impagveis devido a ausncia total de

    comprovantes, direitos trabalhistas, etc:

    O saldo da dvida que fica com a firma Alm-Equador, para com os garimpeiros, que ela

    encaminha para a regio, pago com a extrao de cassiterita, a qual a citada firma paga

    Cr$12,00 (doze cruzeiros) o kg. do citado minrio. Informa ainda o Sr. Luiz Bernardo da Silva,

    que j retirou, junto com o seu grupo, 2.050 Kg. de cassiterita, e que no recebeu at o presente

    nenhuma nota de fornecimento de alimentao, pois a firma citada se nega a entregar qualquer

    tipo de recibo, de despesas efetuadas pela firma, para desconto no que os garimpeiros extrarem.

    Que a citada firma no se responsabiliza por qualquer acidente de trabalho, ou doena, que venha

    a acometer os garimpeiros por ela aqui colocados para trabalhar. (Santos, 1976).

    Em janeiro de 1976 a situao era de calamidade. Os garimpeiros, famintos (incluindo 3

    famlias), eram acometidos por doenas como febre, malria, reumatismo, artrite, lcera,

    tuberculose e gonorreia. Em setembro a situao j havia se tornado desesperadora, e

    cerca de 60 garimpeiros esfomeados permaneciam acampados na antiga pista de pouso

    aberta pela Meva nutrindo planos de assaltar as roas dos Yanomami.

    Os ndios que habitavam as proximidades mantinham um contato permanente e

    indiscriminado com os trabalhadores. A fome instaurada nas grotas impelia-os a trocarem

    seus recursos alimentares por todo tipo de objetos industrializados, principalmente

    roupas, armas de fogo e munio, transferindo para si os problemas relacionados fome,

    a desnutrio e as doenas que afligiam os garimpeiros. Comunidades inteiras passaram a

    viver nos garimpos, instalando roas e deslocando-se para os acampamentos. Em 31 de

    6 Para um grupo de 15 pessoas foi distribudo: 7 quilos de arroz, 7 quilos de farinha, 3 quilos de acar e 12 latas de fiambra (conserva de carne de boi) para a alimentao de 1 semana. (Santos, 1976).

  • 35

    janeiro de 1976, o servidor do Plano Yanoama, Paulo Alves Cardoso, que atuava na

    regio da serra, escreve em seu relatrio:

    No h controle sobre a relao entre garimpeiros e ndios devido alta densidade da populao

    indgena e o aumento crescente da populao de garimpeiros na regio. O equilbrio cultural est

    ameaado devido aquisio de armas de caa e munio pelos ndios, como carabinas,

    espingardas e outras. Existe troca indiscriminada de roupas e objetos. Os ndios chegam ao

    acampamento com fome e pedindo comida. No comem seus alimentos porque levam para trocar

    com os garimpeiros... (Cardoso, 1976).

    As trocas amigveis entre os Yanomami e os garimpeiros rapidamente transformaram-se

    em verdadeiros assaltos. Portando espingardas e flechas, os ndios cercavam os

    acampamentos de garimpo tomando fora roupas, redes, panelas, alimentos e,

    principalmente, armas de fogo.

    No dia 30 de agosto de 1976, a reao a um ataque ao garimpo culminou em um conflito

    no qual um ndio foi esfaqueado no lado direito do trax e na coxa esquerda, um

    garimpeiro baleado no ombro e outro vtima de um tiro na barriga e flechadas na perna e

    no brao (Alves, 1976). No mesmo dia os ndios desferiram outros ataques, conseguindo

    mais 4 espingardas e um revlver (Taylor, 1979). A gravidade da situao forou o

    Ministrio do Interior a ordenar o fechamento do garimpo e a retirada dos trabalhadores,

    criando um clima de tenso na capital Boa Vista. Segundo informaes conseguidas

    pelos militares, pilotos de uma empresa de aviao que atuava na regio teriam solicitado

    o envio de um helicptero, 5 avies e armas para que fossem retiradas, a qualquer

    custo, cerca de 13 toneladas de minrio que permaneciam nos garimpos, mesmo que

    para isso fosse necessrio matar ndios e funcionrios da Funai instalados no local7

    (Alves, 1976). Mesmo aps a sada voluntria de cerca de 50 garimpeiros, as atividades

    ilegais continuaram por 12 meses (Taylor, 1979).

    7 No obtive informaes sobre o desfecho dessa operao, que possivelmente foi coibida pela Polcia Federal.

  • 36

    Armas de fogo

    Os efeitos da proliferao de armas de fogo j se faziam sentir em setembro de 1975,

    quando guerreiros yanomami mataram um de seus inimigos em uma regio prxima ao

    rio Couto de Magalhes. Em dezembro do mesmo ano veio a resposta. Um homem foi

    atingido no brao por um projtil de fabricao caseira disparado em represlia morte

    anterior (Taylor, 1979). A utilizao das armas de fogo fornecidas pelos garimpeiros

    provocou uma verdadeira corrida armamentista em toda a regio, alcanando as regies

    do Toototopi - onde, segundo contam os Yanomami, havia muitas armas - o rio Couto de

    Magalhes e o Parimiu. Muitas vezes iludidos pelos ndios, os garimpeiros forneciam

    munio aos Yanomami, que, sob o pretexto de fornecer-lhes carne de caa, utilizavam-

    na em seus conflitos. A identificao da origem das espingardas e dos cartuchos resultava

    na retaliao dos grupos atacados, que incluam os garimpeiros na dinmica dos conflitos

    que se tornavam mais intensos a cada dia 8.

    Em dezembro de 1976, a Funai instala um posto da Frente de Atrao Yanomami na

    Serra das Surucucus. A estrutura implementada, no entanto, tornava impossvel uma ao

    efetiva e eficiente na regio. Deixado na rea sem nenhuma condio de subsistncia, o

    sertanista responsvel foi obrigado a construir uma casa de pau a pique coberta com lonas

    emprestadas, permanecendo no local sem nem ao menos um rdio para se comunicar com

    10 Delegacia Regional do rgo em Boa Vista. Dois anos depois, a atuao da Funai na

    regio ainda era aqum da desejada. Com um efetivo de apenas 1 sertanista, 1 auxiliar de

    frente, 1 atendente e 1 trabalhador braal, a construo de um local para o atendimento

    sade dos ndios no havia sido realizada. Os medicamentos eram distribudos de

    maneira irregular e espordica, agravando a situao sanitria com tratamentos

    incompletos decorrentes da falta de instalaes adequadas para manter os pacientes no

    posto. A estrutura havia aumentado para 2 casas: uma para alojamento e outra para

    oficina e casa de farinha, que, no entanto, no havia sido concluda por falta de recursos e

    material humano (Bezerra de Lima, 1979). A distribuio de bens industrializados foi

    regulamentada pela instalao de uma cooperativa Yanomami. Alm do pagamento da

    8 A esse respeito ver Bandeira, 1978:8 e Duarte do Pateo, 2005.

  • 37

    mo de obra indgena, a Funai trocava os objetos produzidos pelos Yanomami por

    ferramentas, panelas, pano vermelho e miangas, sendo vetada a distribuio de armas de

    fogo e munio. Os produtos do artesanato indgena eram escoados nos vos da FAB e

    vendidos em Boa Vista, criando um sistema de crdito e dbito minuciosamente

    controlado pelo chefe de posto9.

    A cooperativa inaugurada pela frente de atrao foi inserida nas relaes

    intercomunitrias. Os objetos por ela disponibilizados foram inseridos na dinmica das

    relaes sociopolticas entre os grupos do entorno, que haviam se tornado ainda mais

    tensas aps a entrada dos garimpeiros. O sertanista responsvel pelo posto de Surucucus,

    Francisco Bezerra de Lima, elabora um relatrio no qual se mostra apreensivo com os

    constantes conflitos entre os Yanomami: ...muitas vezes os ndios chegam no posto com

    armas em punho, na suposio de encontrarem alguns inimigos (Bezerra de Lima,

    1981).

    Com o fechamento do garimpo, a Funai altera sua posio anterior, marcada pela recusa

    em considerar a regio da Serra das Surucucus como rea indgena10. Visando uma

    brecha no estatuto do ndio que prev a minerao mecanizada do subsolo das reas

    indgenas desde que recolhidos royaties via Funai, o rgo indigenista elabora s pressas

    uma proposta de demarcao que dividia rea ocupada pelos Yanomami em 19 ilhas,

    deixando cerca de 38 malocas fora da demarcao (Taylor, 1979). A rea Indgena de

    Surucucu, com 42.500 ha, no possua as dimenses necessrias para garantir a

    sobrevivncia dos Yanomami11. Alm de negligenciar a existncia de 3 pistas de pouso

    no oficiais que poderiam permitir o acesso descontrolado de invasores, a rea

    demarcada inclua em seus limites as diversas grotas de garimpagem que haviam sido

    interditadas pelo MME.

    9 Informao pessoal de Francisco Bezerra de Lima, 2000. 10 Sobre esse ponto ver Taylor, 1979:48-66. 11 A A.I.Surucucus possua cerca de 3.600 ndios divididos em 58 aldeias, garantindo apenas 123 ha per capta, em contraste com os cerca de 765 ha necessrios para a manuteno de uma ocupao de caadores agricultores de floresta tropical (Taylor, 1979).

  • 38

    A nova Serra Pelada e a intensificao da invaso

    A viabilizao do trabalho de grandes mineradoras na regio de Surucucus posta em

    prtica em maro de 1979, quando a Rio Doce Geologia e Minerao (Docegeo),

    subsidiria da Cia. Vale do Rio Doce, instala-se na regio. Mesmo acompanhado por

    tcnicos da Funai, o pessoal da CVRD se d conta, no entanto, das inconvenincias e

    incompatibilidade da presena de elementos estranhos entre os indgenas (carta enviada

    pela CVRD ao DNPM, em 28/02/1980, apud, CCPY, 1989).

    As atividades da CVRD viam-se ameaadas, por um lado, pela existncia de outras reas

    produtoras de cassiterita na Amaznia e na regio Centro-Oeste, e por outro, pelas

    dificuldades de acesso s reas de minerao, que aumentavam demais os custos de

    pesquisa, extrao e comercializao do minrio (CCPY, 1989). Com tantos empecilhos

    frente, a Docegeo suspende os trabalhos de pesquisa e sugere ao DNPM transformar os

    depsitos minerais da Serra das Surucucus em Reserva Nacional.

    A explorao da cassiterita envolvia uma srie de interesses na esfera regional e federal.

    Mesmo com argumentos convincentes e a simpatia do ento Ministro do Interior, Mrio

    Andreazza, as sugestes da CVRD so negadas pelo rgo regulador, que exige da

    mineradora o repasse dos ttulos de autorizao para a pesquisa Companhia de

    Desenvolvimento de Roraima (Codesaima) .

    Os Yanomami, por seu turno, passam a invadir as barracas da equipe de pesquisa a

    procura de alimentos. Os efeitos da degradao ambiental e da desestruturao social e

    sanitria decorrente da presena dos garimpeiros nos anos anteriores haviam espantado os

    animais de caa e afastado os ndios do trabalho nas roas, tornando as instalaes da

    mineradora uma importante fonte de subsistncia para as populaes da regio.

    Ao mesmo tempo, os reides envolvendo a utilizao das armas de fogo se proliferavam e

    extrapolavam as fronteiras do Brasil. Dia 14 de junho de 1979, o jornal O Estado de So

    Paulo noticia que um grupo de ndios da Venezuela atacado por guerreiros Yanomami

  • 39

    oriundos do lado brasileiro, que invadem a regio do rio Siapa portando armas de fogo.

    Vrios deles so mortos a tiros e o incidente investigado pelas autoridades

    venezuelanas.

    No obstante os planos de explorao mineral na regio, em maro de 1982 a rea

    indgena Yanomami interditada pelo Ministrio do Interior com 7 milhes e 700 mil

    hectares. Mesmo com a delimitao do territrio e a denominao da rea como Parque

    Indgena Yanomami, a Funai deixa clara sua posio contrria demarcao e apia a

    Codesaima, que obtm, em 1983, uma concesso para pesquisa e lavra de cassiterita na

    bacia do rio Parima. Por meio de um convnio com o rgo indigenista, batizado de

    Plano de Aproveitamento Econmico da Jazida Estanfera de Surucucus, a Codesaima

    pretende transformar o posto indgena instalado na serra em um centro de treinamento de

    mo de obra indgena. Visando a utilizao do trabalho dos Yanomami, a empresa alega

    ter como objetivo levar os benefcios da explorao mecanizada da cassiterita de

    Surucucus populao indgena ociosa e marginalizada no processo de

    desenvolvimento regional (CCPY, 1989:13).

    Frustrados pelo fracasso da iniciativa do ento presidente Joo Figueiredo, que por meio

    de um decreto, tenta efetivar a liberao da minerao em reas indgenas12, e sentindo-se

    ameaados pela instalao de empresas multinacionais nas reas de garimpo, segmentos

    polticos e empresariais do Territrio de Roraima orquestram a invaso pacfica da

    Serra das Surucucus. No dia 13 de fevereiro de 1985 o jornal A Crtica, de Manaus,

    noticia a organizao de uma operao de guerra voltada a invadir o garimpo. Batizado

    de Operao Surucucu, o plano de ao pretendia mobilizar cerca de 30 avies que

    decolariam de Manaus carregando 800 mil litros de gasolina com destino ao rio Mucajai,

    onde seria instalada uma base de apoio para a invaso. A ao intentava criar um grave

    problema social destinado a deixar o futuro presidente Tancredo Neves sem condies

    para retirar os garimpeiros da rea indgena. Devido sua conhecida postura

    12 Devido grande mobilizao da sociedade civil contra a proposta, sua publicao no dirio oficial foi cancelada pelo prprio Presidente. Sobre minerao em terras indgenas naquele perodo, ver principalmente: Lopes da Silva, Santos & Luz, 1986.

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    conciliadora, o sucesso da empreitada garantiria a rpida transformao de Surucucus em

    uma nova Serra Pelada. O principal articulador da invaso foi Jos Altino Machado, um

    piloto e empresrio de garimpo com larga experincia em atividades ligadas

    garimpagem em Serra Pelada e nos arredores de Manaus. Com a ajuda do gelogo

    Antnio da Justa Feijo, Jos Altino identificou as principais concentraes de minerais

    preciosos de Roraima, optando pela ao na Serra das Surucucus (Eusebi, 1990). Os

    detalhes da operao foram acertados durante a eleio para a diretoria da recm criada

    Associao dos Faiscadores e Garimpeiros do Territrio Federal de Roraima, da qual

    Jos Altino era vice-presidente. Os garimpeiros foram mobilizados com panfletos

    distribudos nos bairros da periferia, no qual eram informados da abertura do garimpo e

    da disponibilizao de 5 avies localizados nas fazendas ao redor de Boa Vista (OESP,

    17/02/1985; CCPY, 1989).

    O primeiro passo era efetivar a instalao da base em Mucaja, viabilizando as operaes

    de transporte dos garimpeiros e vveres para Surucucus. Aps esse perodo inicial, a

    invaso seria intensificada, tornando possvel a entrada de 3 mil garimpeiros na rea

    Yanomami (A Crtica, 13/02/1985).

    Apesar das manifestaes de repdio feitas pelo DNPM e Funai, e aes diretas da

    Polcia Federal no sentido de tentar impedir a invaso, dia 14 de fevereiro foi deflagrada

    a operao. No perodo de 2 horas, os 5 avies a disposio dos garimpeiros levaram ao

    Surucucus cerca de 60 homens portando armas privativas das Foras Armadas e

    uniformes de combate (CCPY, 1989).

    Quatro dias antes da invaso, um destacamento da Polcia Militar havia sido enviado ao

    Surucucus a fim de barrar a chegada dos garimpeiros, e no dia 14, o sertanista

    responsvel prontificou-se, com a ajuda de 8 yanomami, a interditar as 2 pistas de pouso

    existentes na regio de extrao de cassiterita. Ao retornarem ao posto, no entanto, j

    haviam ocorrido 8 pousos e 8 decolagens e a PM estava sem condies para controlar a

    situao. Sob a liderana de 3 homens vestidos com fardas camufladas e portando

    metralhadoras, os invasores no permitiram a aproximao dos policiais, sob pena de

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    abrirem fogo. Conforme o depoimento do sargento chefe do destacamento, a PM estava

    armada apenas com revlveres e carabinas.

    No dia seguinte foi iniciada uma negociao pacfica a fim de convencer os garimpeiros a

    desistirem de seu intento. Com o apoio da FAB, panfletos informativos confirmando a

    interdio das pistas em Boa Vista e a priso de Jos Altino foram lanados sobre os

    invasores (Bezerra de Lima, 1985).

    Dia 19 os garimpeiros foram finalmente retirados. Seu principal lder, Jos Altino

    Machado, preso no incio da operao, foi mantido apenas alguns dias na Penitenciria

    Agrcola de Roraima. Liberado em seguida, Jos Altino respondeu ao processo em

    liberdade e articulou novas tentativas de invaso da rea Yanomami (CCPY, 1989).

    Manifestaes pblicas no centro de Boa Vista expressavam o descontentamento da

    populao regional com o fechamento dos garimpos, buscando pressionar o governo

    federal utilizando-se de uma retrica baseada na reedio local do mito do eldorado.

    Nas palavras de Claudia Andujar:

    A grande maioria da populao de Boa Vista e com certeza todos os garimpeiros do Territrio

    afora, assim como muitos donos de txis areos da Amaznia, acreditam firmemente que

    Surucucus ser a salvao do Brasil, por conter minrios que podem pagar a