os sentidos do lulismo

140
I I , I It It I , It r~ A REELEICAO de Luiz Inacio Lula da Silva no pleito de 2006 se consumou pela mesma diferenca numerica dos resultados de 2002: cerca de 20 milhoes de votos. Essa semelhanca mascara, no entanto, urn inedito realinhamento eleitoral, indicativo de profundas transformacoes na sociedade brasileira. Enquanto 0 primeiro triunfo petista obedeceu ao padrao hist6rico de Lula desde a decada de 1980 - isto e, alta votacao nas grandes cidades e na dasse media -, a reeleicao rnarcou a consolidacao de urn fenomeno sociopolitico ainda em curso: 0 !ulisnw. Os pobres e os muito pobres abandonaram 0 ternor da "desordem" associado a esquerda e abracararn em b1ocoa candidatura do ex-torneiro mecanico. A partir do escandalo do mensalao, pOT outro lado, a dasse media tradicional transferiu seus votos para a direita. Neste ensaio fecundo, Andre Singer, ex-porta-voz do governo Lula e professor de ciencia politica na USP, elucida a genese do movimento politico-eleitoral mais importante das ultimas decadas, realizando uma arguta radiografia das relacoes de classe e poder no Brasil contemporaneo. ANDRE SINGER O'S 'SENTIDOS DO . , LULISMO REFORMA GRADUAL E PACTO CONSERVADOR COMPANHlA DAS[ETRAS

Upload: wallace-da-silva-mello

Post on 08-Dec-2014

121 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

Page 1: Os Sentidos Do Lulismo

••I•I,IItIt•I•,Itr ~••

A REELEICAO de Luiz Inacio Lulada Silva no pleito de 2006 se consumoupela mesma diferenca numerica dosresultados de 2002: cerca de 20 milhoesde votos. Essa semelhanca mascara,no entanto, urn inedito realinhamentoeleitoral, indicativo de profundastransformacoes na sociedade brasileira.

Enquanto 0 primeiro triunfo petistaobedeceu ao padrao hist6rico de Luladesde a decada de 1980 - isto e,alta votacao nas grandes cidades e nadasse media -, a reeleicao rnarcoua consolidacao de urn fenomenosociopolitico ainda em curso: 0 !ulisnw.Os pobres e os muito pobresabandonaram 0 ternor da "desordem"associado a esquerda e abracararnem b1ocoa candidatura do ex-torneiromecanico. A partir do escandalodo mensalao, pOT outro lado, a dassemedia tradicional transferiu seusvotos para a direita.

Neste ensaio fecundo, Andre Singer,ex-porta-voz do governo Lula eprofessor de ciencia politica na USP,elucida a genese do movimentopolitico-eleitoral mais importante dasultimas decadas, realizando uma argutaradiografia das relacoes de classe epoder no Brasil contemporaneo.

ANDRE SINGER

O'S 'SENTIDOS DO. ,

LULISMOREFORMA GRADUAL E PACTO CONSERVADOR

COMPANHlA DAS[ETRAS

Page 2: Os Sentidos Do Lulismo

.••••••.........•................. ,

Page 3: Os Sentidos Do Lulismo

•t•••tttttttt•ttttt•tt•tttt••t••••

DFSC~.!x.0i1I

MlsroP.~I produrldO.~rtlfd.

font•• r..pond .•••11

FSC- C019498

A marca FSC· e a garantia de que a madeira utilizada na fabricacao dopapel deste livro provem de florestas que foram gerenciadas de maneiraambientalmente correta, social mente justa e economicamente via vel,alern de outras fontes de origem controlada.

ANDRE SINGER

as sentidos do lulismoReforma gradual e pacto conservador

-~-COMPANHIA DAS tETRAS

Page 4: Os Sentidos Do Lulismo

}..

Sumario

Introducao: Alguns temas da questao setentrional .

1.Raizes sociais e ideologicas do lulismo .2.A segunda alma do Partido dos Trabalhadores3.0 sonho rooseveltiano do segundo mandato4. Sera 0 lulisrno urn reforrnisrno fraco?

Apendice: Tabelas e quadros citados no textoPosfacio: No rneio do carninho tinha urna pedraBibliografia .Indice onomastico .

••••••••••4•4•49 t

t51 •84 •125 ,169

•223 •233 •263 •271 ••~

•t4

•••till

Page 5: Os Sentidos Do Lulismo

••••••••••••••••••••••••••••••••••

Introducao

Alguns tern as da questao setentrional

Afirmamos que 0 camponis meridional estd ligado ao grandeproprietario rural por meio do intelectual. Este tipo de organiza-fao e,o mais difundido em todo 0Mezzogiorno e na ~icflia. For-ma urn monstruoso bloco agrdrio que no seu conjunto [unciona

como intermediario eguardiiio do capitalismo setentrional e dosgrandes bancos. Seu anico objetivo e conservar 0 status quo.

Antonio Gramsci, Alguns temas da questao meridional

o lulismo existe sob 0 signa da contradicao. Conservacao emudanca, reproducao e superacao, decepcao e esperan<;:a nummesmo movimento. Eo carater ambiguo do fen6meno que tornadificil a sua interpretacao. No entanto, e preciso arriscar os senti-dos, as resultantes das forcas em jogo, se desejamos avancar acornpreensao do periodo. Paco a minhaaposta principal em for-ma de pergunta, pois 0 processo ainda esta em curso: a inesperadatrajet6ria do lulismo incidira sobre contradicoes centrais do capi-talismo brasileiro, abrindo caminho para coloca-las em patamarsuperior?

9

Page 6: Os Sentidos Do Lulismo

Para ten tar uma resposta, e necessario refazer os passos histo-ricos e descer aos detalhes materiais e ideol6gicos que os sustenta-ram. Na aparencia, tendo vencido a eleicao de 2002 envolto aindapor restos da aura do movimento operario dos anos 1980,0 ex--rnetalurgico apenas manteve a ordem neoliberal estabelecida nosmandatos de Collor e PHC.Decidido a evitar 0 confronto com 0

capital, Lula adotou politica economica conservadora. Nos do isprimeiros meses de 2003, 0 Comite de Politica Monetaria (Co-porn) do Banco Central (BC) aumentou os juros de 25% para26,5%.' De modo a pagar a divida contraida com essa elevacao, 0Executivo subiu a meta de superavit primario de 3,75% em 2002,2ja considerada alta,' para 4,25% do PIB(Produto Interno Bruto) eanunciou em fevereiro enorme corte, de 14,3 bilhoes de reais, noorcamento publico, quase 1% do produto estimado para aqueleano.' 0 poder de compra do salario minimo foi praticamentecongelado em 2003 e 2004.5 Para completar 0 pacote, em 30 deabril de 2003 0 presidente desceu a rampa do Planalto a frente deextensa comitiva para entregar pessoalmente ao Congresso proje-to com reformaconservadora da Previdencia Social. Entre outrascoisas, a PEC(Proposta de Emenda a Constituicao) 40 acabava coma aposentadoria integral dos futuros servidores publicos,

o efeito das decisoes foi 0 esperado. 0 crescimento caiu de2,7% nos ultimos doze meses de Fernando Henrique Cardosopara 1,3% do PIBnos primeiros doze do PT.0 desemprego aumen-

1.De acordo com Ralph Machado, a taxa real passou de 6% para 13% entre 2002e 2003. Ver Ralph Machado, Lula a.c.-d.c., p. 36.2. Ralph Machado, Lula a.c.-d.c., p. 37.3. Ver Luis Nassif, "Polltica macroeconomica e ajuste fiscal", em B. Lamounier eR. Figueiredo (orgs.), A era FHC, p. 45.4. Ver <www.jusbrasil.com.br/noticiasI2560604>.consultado em 14 mar. 2010.5. Houve urn aumento real de 1,2% no salario minimo entre 2003 e 2004. VerFolha de SPaulo, 1mar. 2008, p. B1.

10

tou, passando de 10,5% no derradeiro dezembro tucano para10,9% no primeiro dezembro petista (2003).6 A renda media do

trabalhador caiu 12,3%.7 As instituicoes financeiras tiveram urn

resultado 6,3% maior," Cornpreende-se, portanto, que na conclu-

sac de 0 ornitorrinco, datada de julho de 2003, 0 sociologo Fran-

cisco de Oliveira tenha afirmado que 0 Brasil era "uma acumula-cao truncada e uma sociedade desigualitaria sem rernissao'"

Entretanto, pass ados oito anos, 0 cenario era outro. Em de-

zembro de 2010 os juros tinham caido para 10,75% ao ana, comtaxa real de 4,5%.10 0 superavit primario fora reduzido para 2,8%

do PIBe, "descontando efeitos contabeis', para 1,2%." 0 salario

rninimo, aumentado em 6% acima da inflacao naquele ano, totali-

zava 50% de acrescimo, alern dos reajustes inflacionarios, entre2003 e 2010. Cerca de 12 milhoes de familias de baixissima rendarecebiam urn auxilio entre 22 e duzentos reais por mes do Progra-ma Bolsa Familia (PBP).120 credito havia se expandido de 25% para

••••••••••4141••t••t41•t41•t••t41••tt41••

6. Dados do 'BGE, segundo <http://economia.uol.com.br>,consultado em 22 fev.201l.7. Cornparacao entre a renda media do trabalhador de marco a dezembro de 2002em relacao a marco-dezernbro de 2003, de acordo com a Pesquisa Mensal de Em-prego do IBGE. Em marco de 2002, 0 lUGE adotou nova metodologia de pesquisa, porisso a cornparacao parte desse mesoVer Folha de SPaulo, 25 jan. 2008, p. B7.8. Citado em Leda Paulani, Brasil delivery, p. 50.9. Francisco de Oliveira, Critica a razdo dualistal 0 ornitorrinco, p. 150.10. Ver <http://economia.uol.com.br>/ultimas-noticias/redacao/20 10/12/081brasil-tem-maior-taxa-real-de-juros-do-mundo.jhtm>.11.Ver <http://economia.estadao.com.br>, consultado em 22 fev. 2011. Segundoo ex-presidente do BNDES, Demian Fiocca, "descontando efeitos contabeis doFundo Soberano e da concessao do pre-sa}, 0 superavit prirnario federal foi redu-zido de 2,8% em 2008 para 1,2% em 2009 e em 2010'~Ver Demian Fiocca, "Perque 0 Brasil cresceu mais", Folha de S.Paulo, 21 fev. 2011, p. A3.12. Eduardo Scolese, "Bolsa Familia ja beneficia 26% dos novos assentados",Folha de S.Paulo, 7 jun. 2010, p.A11.

"

11

Page 7: Os Sentidos Do Lulismo

45% do PIB,13 permitindo 0 aumento do padrao de consumo dosestratos menos favorecidos, em particular mediante 0 credito con-signado.

As consequencias dessas medidas, voltadas para reduzir apobreza, ativando 0 mercado interno, foram igualmente logicas.o crescimento do PIB, em 2010, pulou para 7,5%. 0 desemprego,em dezembro, havia caido para 5,3%, taxa considerada pelos eco-nomistas pr6xima ao pleno emprego. 0 indice de Gini, que medea desigualdade de renda, foi de 0,5886 em 2002 para 0,5304 ern2010.14Entrevistada em novembro de 2010, a economista de ori-gem portuguesa Maria da Conceicao Tavares afirmava: "Eu estoulutando pela igualdade desde que aqui cheguei [1954]. E s6 agorae que eu acho que estamos no rumo certo"," Urn ana antes, Con-ceicao assinalava que 0 governo Lula estava "tocando tres coisasimportantes: crescimento, distribuicao de renda e incorporacaosocial". 16

o que teria acontecido nos do is quadrienios em que Lulaorientou 0 Brasil? Confirmou-se 0 truncamento da acumulacao ea desigualdade "sem remissao", previstos por Oliveira, ou se en-trou em fase de desenvolvimento com.distribuicao de renda, ob-servada por Tavares? 0 pais teria dado seguimento a vocay~oconservadora, que afogara, no passado, as possibilidades de desen-

13.0 dado corresponde a expansao do credito entre 2003 e 2010. Ver EduardoCucolo, "Credito subsidiado chega al/3 do total", Folha de S.Pau/o, 29 jun. 2010,p. Bl.14. Usamos aqui os dados de Marcelo Neri, A nova classe media, 0 lado brilhantedos pobres, p. 40, e "Desigualdade no Brasil atinge 0 menor nivel em 2010, dizFGV", em <http://wwwl.folha.uol.com.br/poder/91 0726-desigualdade-no-bra-sil-atinge-o-menor-nivel-em-2010-dizfgv.shtml>, consultado em 4 jan. 2012.Ver quadro 2 do Apendice,15. Maria da Conceicao Tavares, Desenvolvimento e igualdade, p. 17.16. Idem, entrevista a Vera Saavedra Durao, Valor, 6 novo2009.

12

volvimento dernocratico, ou estariam certas as avaliacoes de que aaceleracao do crescimento e a reducao da desigualdade inaugura-yam etapa distinta? E, caso estivessem corretas as perspectivasotimistas, como teria sido possivel destravar a economia e reduzira iniquidade sem radicalizacao politica, numa transicao quaseimperceptivel do vies supostamente neoliberal do primeiro man-dato para 0 reformismo do segundo?

Este livro nao tern a pretensao de dar respostas definitivas aessas perguntas, mas procura oferecer urn esquema interpretativocom base no qual elas podem ser equacionadas. Em resumo, 0 es-quema proposto tern 0 seguinte roteiro. Teria havido, a partir de2003, uma orientacao que permitiu, contando com a mudanca daconjuntura economics internacional, a adocao de politicas para re-duzir a pobreza - com destaque para 0 combate a miseria - e paraa ativacao do mercado interno, sem confronto com 0 capital. Isso te-ria produzido, em associacao com a crise do "mensalao" 17 urn reali-nhamento eleitoral que se cristaliza em 2006, surgindo 0 Iiilismo. 0aparecimento de uma base lulista, por sua vez, proporcionou aopresidente maior margem de manobra no segundo mandato, possi-bilitando acelerar a implantacao do modele "diminuicao da pobre-za com manutencao da ordem" esbocado no primeiro quadrienio.

A expressao "realinhamento eleitoral" foi elaborada nos Esta-dos Unidos para designar a mudanca de clivagens fundamentaisdo eleitorado, que definem urn cicIo politico longo. Apesar de 0

conceito de realinhamento ser objeto de extenso debate na cienciapolitica," interessa-me nele apenas a ideia de que certas conver-s6es de blocos de eleitores sao capazes de determinar uma agendade longo prazo, da qual nem mesmo a oposicao ao governo conse-

17. Escandalo politico-midiatico envolvendo 0 PTem 2005.18. Para urn resume didatico dos debates sobre a nocao de realinhamento, verCees van der Eijk e Mark N. Franklin, Elections and voters, pp. 183-7.

13

Page 8: Os Sentidos Do Lulismo

gue escapar. Por isso, a meu ver, 2002 pode ser 0 marco inicial defase prolongada no Brasil, como aconteceu nos EVA com a ascensaode Franklin Delano Roosevelt. 'Em 1932, nos EVA, assim como em2002 no Brasil, numa tipica eleicao de alternancia, forma-se novamaioria. Em 2006, em pleito de continuidade, ha relevantes trocasde posicao social no interior da coalizao majoritaria: em funcaodas opcoes governamentais tomadas no primeiro mandato deLula, a classe media se afasta e contingentes pobres ocupam 0 seulugar. Isso quer dizer que, embora 0 processo de mudanca tenhacornecado em 2002, a eleicao decisiva do ponto de vista das clas-ses, na qual 0 subproletariado adere em bloco a Lula e a classemedia ao PSDB, e a de 2006.

Na realidade, conforme fui advertido nos debates em tornoda tese do realinhamento, e possivel que ele tenha cornecado an-tes, com a lenta penetracao do PT em camadas mais pobres e noNordeste" desde 1989, enquanto 0 PSDB vinha consolidando desdeo seu pr6prio surgimento, em 1988, a condicao de partido de clas-se media. Isso, alias, seria compativel com 0 tipo de realinhamentoque V.O. Key, Jr. chama de "secular"," Conforme explica AntonioLavareda, no realinhamento secular as "transforrnacoes podemdecorrer [... ]de umprocesso bem mais discreto de acumulo demodificacoes de longo prazo, on de uma extensa sequencia de plei-tos gradativamente corporifica 0 deslocamento de lealdades, for-talecendo urn partido ou grupo de partidos em detrimento deou tro (s)",2l

Distinguir com precisao 0 tipo de realinhamento (critico ou

19. Agradeco a Fernando Limongi, Gustavo Venturi e Timothy Power as obser-vacoes a respeito.20. V. O. Key, Ir., "Secular realignment and the party system", The Journal of Poli-tics, vol. 1, n. 2, maio 1959.21. Antonio Lavareda, A democracia nas urnas, p. 63.

14

secular) em curso, bem como 0 papel relativo nele jogado pelaseleicoes de 2002 e 2006, alem das anteriores, demandaria pesqui-sas especificas que excedem os prop6sitos deste trabalho e esperovenham a mobilizar outros cientistas politicos. 0 meu objetivoera chamar a atencao para as importantes mudancas que se divisa-yam nos dados relativos a eleicao de 2006, alteracoes capazes de"definir urn novo tipo de politica, urn novo conjunto de clivagens,que pode, entao, durar por decadas'." No caso brasileiro, a agendadesse possivel realinhamento e, a meu ver, a reducao da pobreza.Note-se que, durante a vigencia do realinhamento, pode havertroca de partidos no poder, como sucedeu em 1952 e 1956 com avitoria republicana nos Estados Unidos, seguida da volta do Parti-do Democrata a Presidencia em 1960 e 1964, sem solucao de con-tinuidade em relacao aos gran des objetivos nacionais estabeleci-dos na decada de 1930, ate que sobreviesse outro realinhamento,capaz de mudar a fase da politica.

Em suma, foi ern 2006 que ocorreu 0 duplo deslocamento declasse que caracteriza 0 realinhamento brasileiro e estabeleceu aseparacao politica entre ricos e pobres, a qual tern forca suficientepara durar por muito tempo. 0 lulismo, que emerge junto com 0

realinhamento, e, do meu ponto de vista, 0 encontro de uma lide-ranca, a de Lula, com uma fracao de dasse, 0 subproletariado, pormeio do programa cujos pontos principais foram delineados en-tre 2003 e 2005: combater a pobreza, sobretudo onde ela e maisexcruciante tanto social quanta regionalmente, por meio da ativa-cao do mercado interno, melhorando 0 padrao de consumo dametade mais pobre da sociedade, que se concentra no Norte e

•••••I•••••••••••I••••••••••••••••

22. John C. Berg, "The debate over realigning elections: where do we stand now?",Paper apresentado na reuniao anual da North Eastern Political Science Asso-ciation, 2003. Consultado em <www.allacadernic.com», 18 ago. 2010. Versaooriginal em Ingles, traducao livre minha.

15

Page 9: Os Sentidos Do Lulismo

••••It••••••••••••••I••I•••••ItIII••

Nordeste do pais, sem confrontar os interesses do capital. Ao mes-mo tempo, tambem decorre do realinhamento 0 antilulismo quese concentra no PSDB e afasta a classe media de Lula e do PT, crian-do-se uma tensao social que desmente, como veremos, a hip6tesede despolarizacao da politica brasileira pos-ascensao de Lula.

Foram as opcoes praticas do primeiro mandato, as quais pre-cederam a crise do "mensalao" (2005) e com ela conviveram, maisdo que qualquer programa explicito, que cristalizaram 0 realinha-mento e fizeram surgir 0 lulismo. 0 piv6 do lulismo foi de umaparte a relacao estabelecida por Lula com os mais pobres, os quais,beneficiados por urn conjunto de politicas voltadas para melhoraras suas condicoes de vida, retribuiram na forma de apoio macicoe, em algumas regioes, fervoroso da eleicao de 2006 em diante.Paralelamente, 0 "mensalao" catalisou 0 afastamento da classemedia, invertendo a f6rmula de 1989, quando Lula foi derrotadoexatamente pelos mais pobres, que tin ham votado em Collor.

o lulismo, por sua vez, alterou a base social do PT e favoreceu,em particular no segundo mandato, a aceleracao do crescimentoeconornico com diminuicao da desigualdade, sobretudo mediantea integracao do subproletariado a condicao proletaria via empre-go formal. No plano ideol6gico, isso trouxe, outra vez, a tona agramatica varguista, que opunha 0 "povo" ao "antipovo". Nao edificil perceber, tambern, por que se repoern, no esquema inter-pretativo sugerido, alguns temas caros a tradicao da ciencia socialbrasileira. Impossibilitado de fazer, por ora, a necessaria revisaoda bibliografia pertinente, permito-me citar, de passagem, doisautores canonicos, apenas para ilustrar a volta de assuntos recor-rentes. Para Celso Furtado e Caio Prado Ir., as virtualidades e e~-pecilhos que tinha a nacao para romper 0 clrculo vicioso do atrasoestavam vinculados a existencia da massa de miseraveis no pais.Vale a pena transcrever trecho de Caio Prado:

16

[ ••. J a heranca colonial brasileira ainda faz sentir, no essencial, to-dos ou pelo menos seus principais efeitos. Constituimos ainda,numa perspectiva ampla e geral [...J, urn aglomerado humane he-terogeneo e inorganico, sem estruturacao economica adequada, eem que as atividades produtivas de grande significacaoe expressaonao se acham devidamente entrosadas com as necessidades pr6-prias da massa da populacao, Ecomo consequencia desse estado decoisas [...J vai a economia brasileira incidir no circulo vicioso a queja nos referimos: os baixos padroes e nivel de vida da grande massa dapopulacao brasileira nao dao margem para atividades produtivas emproporcoes suficientes para absorverem aforra de trabalho disponivel,e assegurarem com isso ocupacao e recursos adequados aquela popu-lacao," [grifosmeus]

Deve-se recordar que 0 livro de Prado Jr. foi escrito depois dainterrupcao abrupta do percurso inaugurado pela Revolucao de1930,0 qual, do seu jeito, atacara as principais contradicoes nacio-nais. Lembra Celso Furtado: "0 modele de industrializacao subs-titutiva de importacoes estava longe de haver esgotado suas possi-bilidades como motor de crescimento"," Em outras palavras, 0

golpe de 1964 interrompeu 0 processo antes que a construcaoiniciada por Vargas se completasse.

Aspecto interessante da contradicao brasileira e que a"grande massa" empobrecida abria e fechava simultaneamenteasperspectivas de desenvolvimento autbnomo do pais. Abria, poisse tratava de mercado interno de que raros paises. dispunharn;mas fechava, uma vez que 0 padrao de con sumo era tao baixoque impedia a realizacao daquele potencial. A miseria anulava apossibilidade de surgir urn setor industrial voltado para 0 mer-

23. Caio Prado Ir., A reyolufao brasileira; pp. 252-3.24. Celso Furtado, 0 longo amanhecer, p. 17.

17

Page 10: Os Sentidos Do Lulismo

cado interno. Sem ter emprego, a massa rniseravel tornava-seuma especie de "sobrepopulacao trabalhadora superempobre-cida perrnanente"," Seria necessario elevar as condicoes deexistencia das camadas rnais pobres, superando a "situacao demiserabilidade da grande massa da populacao do pais, que deri-va em ultima instancia da natureza de nossa formacao hist6ri-ca", para iniciar urn circulo virtuoso, pensava Caio Prado." Aofaze-lo, 0 mercado interno ampliado estimularia a criacao deinvestimentos e empregos, rompendo finalmente 0 circulo vi-cioso anterior.

Apesar do quase meio seculo transcorrido desde a reflexaode Prado, e das expressivas transforrnacoes pelas quais passararno Brasil e 0 mundo, a contradicao fundamental, quando Lula to-mou posse, em 12de janeiro de 2003, continuava de pe. Uma seriede relevantes contribuicoes intelectuais da decada de 1970 procu-rou dar conta de como e por que a sobrepopulacao trabalhadorasuperempobrecida permanente se reproduzia, nao obstante a re-tomada da industrializacao pela ditadura militar, a partir de1967, no chamado "milagre econornico" 0 que se via naquelaepoca era 0 paradoxo da expansao do setor dinamico com 0 au-mento da desigualdade, atestado pela piora na distribuicao darenda. Como era possivel que, mesmo ativando 0 mercado inter-no, como indicava Paul Singer," a economia brasileira assistisseao continuo afastamento "entre a cupula (0 'setor capitalista') e a

25. Sem querer entrar no debate especializado, uso de modo livre a expressao"sobrepopulacao trabalhadora" inspirado em Marx, que fala em "sobrepobtacionobrera" como "producto necesario de la acumulaci6n 0 del desarrollo de la riquezasobre una base capitalista"; Karl Marx, EI capital; Livro 3, cap. 23, p. 786. Acres-cento "superernpobrecida e perrnanente" para marcar a especificidade brasileira.26. Caio Prado Ir., A revolurao brasileira, p. 264.27. Paul Singer, A crise do "milagre", p. 76.

18

base da pirarnide (0 'setor subdesenvolvido')", nas palavras deMaria da Conceicao Tavares?"

Francisco de Oliveira sugeriu que, por tras da aparente duali-dade entre urn sistema dinamico e outro atrasado, na realidade ha-veria uma integracao de ambos, em detrimento dos pobres. 0 au-mento da exploracao, refletido na menor renda dos pobres,canalizaria riqueza para 0 alto, permitindo aumentar 0 suficiente 0

consumo dos ricos para sustentar a expansao do mercado interno,sem precisar diminuir a pobreza e a desigualdade." A grande massaempobrecida estaria sendo absorvida pelo setor de services infor-mal, por assim dizer, lavando os carros que a pr6spera industriaautomobilistica vendia para a dasse media, numa das vividas ima-gens de Oliveira. "Esses tipos de services, longe de serem excrescen-cia e apenas dep6sito do 'exercito industrial de reserva', sao adequa-dos para 0 processo de acumulacao global e da expansao capitalistae, por seu lado, reforcam a tendencia a concentracao da renda.""

Em 1981, Paul Singer percebeu que a sobrepopulacao traba-lhadora superempobrecida permanente constituia, na realidade,fracao de dasse, a qual denominou subproletariado," e logrouquantifica-la, conduindo tratar-se de nada menos que 48% dapopulacao economicamente ativa (PEA), contra apenas 28% deproletarios (dados de 1976). Estava ali a chave para entender porque 0 processo politico brasileiro nao pode ser pens ado sem se

••I•••••I4141•41•41•••41•t41•t••41•ttt41tIII

28. Maria da Conceicao Tavares, "0 caso do Brasil", em M. da C. Tavares, Desen-volvimento e igualdade, p. 121. 0 ensaio foi publica do originalmente em 1972.29. Francisco de Oliveira, Critica a razdo dualista/ Oornitorrinco.30. Idem, ibidem, p. 58. Entre as obras importantes do perfodo encontra-se,tambern, A revolurao burguesa no Brasil. Ensaio de interpretacao sociologica, deFlorestan Fernandes. Esperamos, em outra oportunidade, realizar a revisao queo conjunto desses trabalhos merece.31. Ver Paul Singer, Dominacao e desigualdade. Estrutura de classe e reparticao darenda no Brasi/.

19

Page 11: Os Sentidos Do Lulismo

•••••••••••••••••••••••It••••••••••

levar em consideracao 0 elemento subproletario. Afinal, apresen-tando-se na cena politica como massa, 0 subproletariado, por seutamanho, influi decisivamente na luta de classes.

o fim do "milagre", a crise da divida externa e a introducaodo receituario neoliberal, que marcaram sucessivamente as deca-das de 1980 e 1990, repuseram com vigor 0 problema da sobrepo-pulacao trabalhadora superempobrecida perrnanente. Primeiro, aestagnacao da economia e, depois, 0 combate a inflacao por meiodas importacoes produziram explosao de desemprego, jogandoparcela do proletariado formado na epoca do milagre de volta aprecariedade do subproletariado, alem de segmentos do subprole-tariado no lumpemproletariado," 0 que favoreceu a constituicaodo crime organizado nas zonas metropolitanas. Em 1999, CelsoFurtado escrevia:

Nosso pais se singulariza por dispor de consideravel potencial de

solos araveis nao aproveitados, fontes de energia e mao de obra su-

butilizadas, elementos que dificilmente se encontram reunidos em

outras partes do planeta. Por outro lado, abriga dezenas de milhoes

de pessoas subnutridas e mesmo famintas [...J. 0 cerne da questao

e definir que modelo de desenvolvimento vai se propor ao Brasil

para os pr6ximos anos. E fundamental solucionar 0 problema da

criacao de empregos."

A singularidade das classes no Brasil consiste no peso dosubproletariado, cuja origem se deve procurar na escravidao,

32. A distincao entre a sobrepopulacao trabalhadora atingida pelo pauperismo eo lumpemproletariado (marginalidade) esta em Marx. Ver Karl Marx, ELcapital;Livro 3, cap. 23, p. 802. Comparece tambern em Paul Singer: 0 subproletariado ~composto de "pobres que trabalharn" iDominacao e desigualdade, p. 23).33. Celso Furtado, 0 Longo amanhecer, pp. 32 e 102.

20

que ao longo do seculo xx nao con segue incorporar-se a condi-c;:aoproletaria, reproduzindo massa rniseravel permanente e re-gionalmente concentrada. 0 Norte e 0 Nordeste tern indices depobreza bem maiores que os do SuI e do Sudeste. 0 populo soNordeste, em particular, e 0 principal irradiador de imigrantespara as regioes mais pr6speras. Por isso, entendo que, ao tocar naquestao da miseria, dinarnizando, sobretudo, a economia nor-destina, 0 lulismo mexe com a nossa "questao setentrional": 0

estranho arranjo politico em que os excluidos sustentavam aexclusao.

o lulismo partiu de grau taoelevado de miseria e desigualda-de, em pais cujo mercado interno potencial e expressivo, que asmudancas estruturais introduzidas, embora tenues em face dasexpectativas radicais, tiveram efeito poderoso, especialmentequando vistas da perspectiva dos que foram beneficiados por elas:o pr6prio subproletariado. A conjuntura econ6mica mundial fa-voravel entre 2003 e 2008, nao s6 por apresentar urn ciclo de ex-pansao capitalista como por envolver urn boom de commodities,ajudou a produzir 0 lulismo. No en tanto, foram as decisoes doprimeiro mandato, intensificadas no segundo, que canalizaram 0

vento a favor da economia internacional para a reducao da pobre-za e a ativacao do mercado interno. Lula aproveitou a onda de ex-pansao mundial e optou por caminho interrnediario ao neolibe-ralismo da decada anterior - que tinha agravado para pr6ximodo insuportavel a contradicao fundamental brasileira.- e ao re-formismo forte que fora 0 programa do PT ate as vesperas da earn-panha de 2002. 0 subproletariado, reconhecendo na invencao lu-lista a plataforma com que sempre sonhara - urn Estado capaz deajudar os mais pobres sem confrontar a ordem -, deu-lhe suportepara avancar, acelerando 0 crescimento com reducao da desigual-dade no segundo mandato, e, assim, garantindo a vit6ria de Dilmaem 2010 e a continuidade do projeto ao menos ate 2014.

21

Page 12: Os Sentidos Do Lulismo

Mas, se esta claro urn dos possiveis sentidos do lulismo, cabeapontar 0 tipo de contradicao que 0 acompanharia: ao promoverurn reformismo suficientemente fraco para desestimular confli-tos, ele estende no tempo a reducao da tremenda desigualdadenacional, a qual decai de modo muito lento diante do seu tama-nho, em compasso tipico dos andamentos dilatados da hist6riabrasileira (escravatura no Imperio, politica oligarquica na Repu-blica, coronelismo na modernizacao p6s-1930).

Eis, em resumo, 0 esquema interpretativo que pretendo de-senvolver nas paginas a seguir. Antes de deixar 0 leitor julgar por simesmo, na leitura dos quatro capitulos que compoern a exposi-cao, a qualidade das evidencias empiricas que recolhi em beneficiodesta analise, devo fazer do is breves apontamentos te6ricos. Aosque se aborrecem com as excursoes pela teoria, mesmo que ligei-ras, sugiro irem diretamente ao capitulo 1.

PERSPECTIVA DE CLASSE E REPOLARIZA<;:AO DA POLlTICA

Se, do ponto de vista do comportamento eleitoral, 0 senti doideol6gico do realinhamentolulista confirm a as pesquisas queempreendi sobre os pleitos de 1989 e 1994,34quando assinalei queos votantes mais pobres queriam urn Estado fortalecido para pro-mover acoes de combate a pobreza, mas rejeitavam 0 caminho daruptura proposto pela esquerda, 0 lulismo enquanto rearranjo dobloco no poder me levou a bus car os fundamentos de classe dofen6meno. Decidi fazer a opcao te6rica de que 0 angulo de classecontinuava util para explicar as sociedades capitalistas, em quepesem as mudancas ocorridas desde os anos 1950. Embora fuja ao

34. Ver Andre Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. As identificacoesideologicas nas disputas presidenciais de 1989 e 1994.

22

•I••••I•I••••••••••41•tI•41

41I41•41••t•41••••

escopo do livro, voltado para a discussao do Brasil conternpora-neo, entrar nos meandros do caudaloso debate a respeito do esta-tuto das classes sociais no seculo XXI, espero que algumas referen-cias gerais sejam capazes de situar minimamente 0 leitorinteressado no tema.

Ainda que fora de moda nos ultimos anos, a perspectiva declasse continua a dar sinais de vitalidade nas duas tradicoes de re-flexao que a utilizam - a originada em Marx e a que se nutre emMax Weber. Para relembrar de maneira esquernatica as formula-coes de ambos, Marx propoe no Manifesto comunista a nocao deque as classes se efetivam na luta de classes, sendo esta sempre"uma luta politica"," Os auto res do Manifesto indicam que 0 de-senvolvimento das forcas produtivas tende a criar diferentes rela-~oes de producao e, portanto, distintas classes, em potencial, masque estas s6 se realizam no plano da politica.

Forcas produtivas e relacoes de producao constituem modosde producao, que na forrnulacao do Prefacio a "Contribuicao acritica da economia politica" aparecem assim: "A gran des tracespodemos designar como outras tantas epocas de progresso, naformacao economica da sociedade, 0 modo de producao asiatico, 0antigo, 0 feudal e 0moderno burgues"," Em cada urn deles ha clas-sesem si, ocupando posicoes objetivas nas relacoes de producao. Asclasses podem transforrnar-se em classespara si, isto e, conscientesde seus interesses e dispostas a lutar por eles no plano da politica.No caso de classes em si que nao logramse unificar e conscientizar--se para a acao coletiva, tendem a aparecer na luta politica como

35. Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista, p. 27.36. Ha uma extensa literatura a respeito do desenvolvimento dos modos de pro-ducao. Como nao e objetivo aqui discutir 0 assunto, mantivemos a referencia aoesquema do Prefacio it "Contribuicao it critica da economia politica", sabendoque para Marx 0 suposto evolucionismo e uma simplificacao consciente. Ver KarlMarx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (vol. i), p. 302.

23

Page 13: Os Sentidos Do Lulismo

massa, estruturada de fora para dentro, como acontece em 0 ·18Brumario," As classes fundamentais, por serem portadoras de urnprojeto hist6rico, como e 0 caso da burguesia e do proletariado nocapitalismo, tenderiam a se organizar enquanto classes; as demais,a surgir na politica como massa. 0 funcionarnento da consciencia,nas fracoes de classe que aparecem como massa, assemelha-se aoda pequena burguesia, istoe, seriam incapazes de perceber 0 con-texto real em que estao situ adas, pois este lhes e adverso.

Na visao alternativa de Weber, classe seria "todo grupo hu-mana que se encontra em uma mesma situacao de classe" A "si~tuacao de classe" e definida por urn "conjunto de probabilidadestipicas" de acesso a bens, a status, e de destino pessoal dentro deuma determinada ordem economica." Dai a tendencia, nos estu-dos de extracao weberiana,em localizar as classes a partir de mul-tiplos criterios objetivos, 'como renda, escolaridade, consumo etc.Sobre esse solo com urn, diz Weber, "podern surgir processos deassociacao'." Mas nao e obrigat6rio que isso ocorra. Como a rno-bilidade de uma classe a outra e razoavelmente simples, a "unida-de" das classes sociais se "manifesta de modo muito diverse';" Demaneiramais rest rita, segundo Richard Aschcraft, "numa leituraplausivel de Weber (adotada por urn extenso segmento de sociolo-gos politicos americanos), e possivel afirmar que ele definiu clas-ses no senti do econ6mico em terrnos da fonte e da natureza darenda dos seus membros","

37. Karl Marx, "018 Brumario de Luis Bonaparte", em K.Marx, A revolufiio antesda revolufiio.38. Max Weber, Economla y sociedad, p. 242. Traducao minha.39. Idem, ibidem.40. Idem.41. Richard Aschcraft, "A analise do liberalismo em Weber e Marx", p. 208. Maisadiante vamos ver, sobretudo no capitulo 4, como 0 criterio de renda e decisivopara certa cornpreensao das classes no Brasil hoje.

24

As intensas transforrnacoes sofridas pela estrutura social ca-pitalista no seculo xx,matriz das experiencias analisadas por Marxno seculo XIX, tornaram dificil a tarefa dos que procuram pensar apartir das categorias formuladas por ele. Perry Anderson, ja noiniciodos anos 1990, fazia 0 seguinte balance de "cinco eixos dediferenciacao?? das classes no capitalismo avancado. Em primeirolugar, houve a ascensao dos services, com declinio da classe traba-lhadora manual para cerca de 1/4 da forca detrabalho, sendo su-perada pelo mimero de empregados do setor terciario, e, simulta-neamente,o afrouxamento dos Iacos de solidariedade entre osdois segmentos. Em segundo, aumentou a diversidade intern a dapr6pria classe trabalhadora manual, com bons salaries na pontamais alta e longos periodos de desemprego na mais baixa. Emterceiro, surgiram novas clivagens etarias. 0 prolongamento daadolescencia, com uma demora e dificuldade para ingressar nomercado profissional, gerou cultura juvenil aut6noma. Simulta-neamente, a longevidade incrementou 0 peso dos aposentados napopulacao, restando aos trabaIhadores da "segunda idade" carre-gar sozinhos pesado fardo econ6mico. Em quarto, 0 incrementodo numero de mulheres no mercado de trabalho fez crescer a im-portancia da clivagem por genero, tornando as reivindicacoes fe-inininas pauta obrigat6ria das lutas trabalhistas. Em quinto, 0

maior numero de imigrantes "erodiu a cultura de solidariedade napopulacao trabalhadora'l? 0 resultado de tudo isso foi uma in-tensa fragrnentacao da "antiga" classe operaria.

Mas justamente pela compreensao das transforrnacoes apon-tadas acima ~ ou seja, pela captura das novas configuracoes declasse - e que seria possive! apreender a din arnica politic a con-

42. Perry Anderson e Patrick Camiller (orgs.), Um mapa da esquerda na EuropaOcidental.43. Idem, ibidem, p. 22.

25

Page 14: Os Sentidos Do Lulismo

ternporanea. Escrevendo em marco de 2009, Anderson argumen-ta, por exemplo, que a incapacidade de uma das tradicoes intelec-tuais mais respeitaveis da Europa, a que foi inaugurada porGramsci, para lidar com a fragmentacao p6s-moderna do traba-lho dificulta-lhe a decifracao da politica italiana atual."

Na linha de pesquisa que le preferencialmente Weber, en-contram-se afirrnacoes parecidas. Os trabalhos de GeoffreyEvans, entre outros, procuram mostrar como 0 voto de classe,incorporadas, e claro, as novidades ocorridas desde os anos 1950,continua a ser relevante para explicar 0 comportamento politicona Europa e nos Estados Unidos." Sem duvida, em funcao dastransforrnacoes sociais, as classes precisam ser redefinidas. Suge-re-se urn esquema de quatro classes, separando a pequena bur-guesia (autonomos), uma classe gerencial de services, uma classede trabalhadores nao manuais de baixa responsabilidade (empre-gados de escrit6rio de escalao baixo) e a classe trabalhadora pro-priamente dita." 0 reconhecimento de uma fracao de classe ge-rencial e outra ligada as funcoes de qualificacao menor nosescrit6rios tambem comparece na tradicao marxista. Ia na decadade 1970, Nicos Poulantzas assinalava que os engenheiros e tecni-cos seriam "portadores da reproducao das relacoes ideologicas noproprio seio do processo de producao material"," Por volta damesma epoca, Paul Singer indicava no Brasil a existencia de duasfracoes da pequena burguesia: a tradicional, composta de "pro-dutores diretos nao assalariados, proprietaries dos seus meios de

44. Perry Anderson, ''An invertebrate left", London Review of Books, vol. 31, n. 5,mar. 2009, pp. 12-8.45. Ver Geoffrey Evans (ed.), The end of classpolitics? Class voting in comparativecontext.46. Ver Ben Clift, "Social-democracy in the 21st century: still a class act?", em<http://wrap.warwick.ac.uk>. consultado em 23 fev. 2011.47. Nicos Poulantzas, As classes sociais no capitalismo de hoje, p. 256.

26

producao", e a pequena burguesia recente, a qual incluiria assala-riados que nao se confundem com a classe trabalhadora porexercerem atividades gerenciais." Decadas mais tarde, FernandoHaddad acrescentaria a sugestao de que. a segunda camada e inte-grada tambern por "agentes socia is inovadores"."

Em resumo, ha urn conjunto de sintomas de que a categoriaclasse vem sendo reabilitada nas duas escolas para explicar a so-ciedade conternporanea." De olho nessas contribuicoes, 0 socio-logo Louis Chauvel propos uma definicao de classe que buscatornar complementares os criterios de uma e de outra formula-cao. De acordo com Chauvel, classes deveriam ser entendidascomo grupos sociais definidos, de urn lado, pela quantidade deriqueza apropriada e, de outro, por tres dimensoes de identida-de: temporal, cultural e coletiva. Na primeira, esta em jogo adurabilidade da identificacao. Na segunda, a existencia de refe-rencias simb6licas comuns e estilos de vida compartilhados. Naterceira, a capacidade de participar de acao coletiva. Os elemen-tos de identidade dao conta dos valores imateriais e poderiam seaplicar a qualquer agrupamento: de genero, etnico, regional, re-ligioso etc. 0 que os transforma em atributos de classe e 0 fato dese referirem a grupos sociais definidos no plano da economia(apropriacao da riqueza).

No Brasil, afora a tradicao inspirada em Marx, a qual voltare-mos adiante, autores como Marcelo Neri, Amaury de Souza e Bo-livar Lamounier, de urn lado, e Jesse Souza, de outro, recorreram anocao de classe para dar conta das rnudancas em curso no lulismo.Neri usa instrumental economico e estatistico para medir classes

48. Paul Singer, Domina~ao e desigualdade, p. 18.49. Fernando Haddad, Trabalho e linguagem, p. 110.50. Ver Louis Chauvel, "Are social classes really dead? A French paradox in classdynamics", em G. Therborn (ed.), Inequalities of the world, pp. 298-9.

27

Page 15: Os Sentidos Do Lulismo

••• de renda. Inspirados em Weber, Souza e Lamounier buscam empesquisas quantitativas as "caracteristicas objetivamente mensu-raveis, como a educacao, a renda e a ocupacao, entendidas comoatributos individuals';" que seriam elementos para identificar asclasses na sociedade brasileira. A partir delas, procedem a extensaanalise de crencas e atitudes do que chamam "nova classe media".Ia Jesse Souza, tambern leitor de Weber e Pierre Bourdieu, argu-menta que e na "transferencia de valores imateriais" que reside 0

"rnais importante" fator para separar as classes.v Procurara, pormeio de pesquisas qualitativas, capturar a unidade simb6lica doque chama "rale" e "nova classe trabalhadora" no Brasil de hoje.Nos capitulos 3 e 4 0 assunto sera retomado.

Por agora, deseja-se destacar que este livro nao se encontraisolado na decisao de usar a categoria "classe" para entender 0 pe-riodo 2002-10. E original apenas a sugestao de que 0 deslocamen-to do subproletariado, uma fracao de classe com importante pesoeleitoral, provocou 0 surgimento do lulismo (capitulo 1).0 lulis-mo, por seu turno, teria impactado 0 PT (capitulo 2), dando su-porte a virada programatica que comecara em 2002. Em seguida,no segundo mandato, 0 governo Lula, sustentado pelo subproleta-riado e por urn partido lulista.afiancou 0 modelo de arbitragementre as classes fundamentais, dando asas a urn imaginario roose-veltiano (capitulo 3). E 0 conjunto de mudancas pode ser entendi-do como urn reformismo fraco, que, simultaneamente, reproduz eavanc;:aas contradicoes brasileiras (capitulo 4).

o angulo de classe, diferentemente da maioria das explica-coes que tendem a enxergar despolarizacao e despolitizacao noperiodo do lulismo, me levou a pensar que 0 realinhamentoprovocou uma repolarizacao e uma repolitizacao da disputa

••••••••••••••••It•••••••••••••

51. Amaury de Souza e Bolivar Lamounier,A classe media brasileira, p. 13.52. Jesse Souza, as batalhadores brasileiros, p. 23.

28

partidaria, E verdade que ate em relacao a autores do mesmocampo te6rico ha diferencas a esse respeito. Avaliando 0 pleitode 2006, Francisco de Oliveira refere-se a urn suposto desinteres-se do eleitorado, "reflexo de que a politica nao passa pelo conflitode classes"," De acordo com Oliveira, nesse pleito teria havido "aporcentagem mais aha de 'indiferenca' eleitoral da hist6ria mo-derna brasileira, aproximando-se dos mimeros da abstencao dosnorte-americanos nas eleicoes presidenciais";" Ruy Braga obser-va que haveria urn "efeito regressivo" do lulismo: nele, a politicaafasta-se dos embates hegem6nicos e refugia-se "na sonolenta edesinteressante rotina dos gabinetes"," Desde esse ponto de vis-ta, a polarizacao entre ricos e pobres ocorrida na eleicao de 2006(e reproduzida em 2010) teria sido ilusao de 6tica. Mas, como sepode observar na tabela 1 do Apendice, as taxas de abstencao em2006 nao foram maiores do que as apresentadas desde 1994,sendo ate urn pouco menores que as de 1998 e 2002, 0 que indicainteresse pelo pleito. Retornaremos ao assunto adiante,

Em outra chave, Brasilio Sallum Jr.56tambern avalia haverdespolarizacao, po is acha que se estabeleceu urn consenso liberal--desenvolvirnentista. Para ele, 0 governo Lula se aproximou daplataforma liberal de FHC, que consistia em tirar 0 Estado das ati-vidades empresariais, desenvolver politicas sociais, equilibrar as

53. Francisco de Oliveira, "Hegernonia as avessas", em F.de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemoniaas avessas, p. 23.54. Idem, ibidem.55. Ruy Braga, "Apresentacao', em F.de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), He-gemonia as avessas, p. 8.56. Brasilio Sallum Jr. e Eduardo Kugelmas, "Sobre 0 modo Lula de governar'; emB. Sallum Ir., Brasil e Argentina hoje; Brasllio Sallum Jr.,"A crise do governo Lulaeo deficit de democracia no Brasil", em 1. C. Bresser-Pereira (org.), A economiabrasileira na encruzilhada; idem, "El Brasil en la 'pos-transicion': la instituciona-lizaci6n de una nueva forma de Estado", em I. Bizberg (org.), M6cico en el espejolatinoamericano.

29

Page 16: Os Sentidos Do Lulismo

financas publicas e derrubar a antiga protecao varguista a empresanacional. Sobretudo, haveria urn consenso de que a estabilidademonetaria seria urn valor supremo. A plataforma liberal teria secombinado, desde 0 governo do PSDB, com a busca de insercao in-ternacional competitiva, passando pelo estimulo a diversas ativi-dades agricolas, industria is e de services, e atracao de multinacio-nais que pudessem adensar cadeias produtivas internas. Em outraspalavras, seria urn liberalismo seletivo, associado a defesa de seto-res especificos da economia.

Mas as medidas de protecao a parcela mais pobre da popula-cao nao teriam carater liberal. Por isso, 0 terreno comum entretucanos e petistas deveria ser considerado "liberal-desenvolvi-mentista". Sallum Jr. reconhece 0 que denomina de "novo ativismoestatal" no segundo mandato de Lula, que, embora pudesse signi-ficar uma inflexao desenvolvimentista, continuaria a ser liberal,ou seja, atuaria dentro dos marcos estabelecidos no governo ante-rior. A hip6tese de uma inflexao desenvolvimentista, sugerida porSallum Ir., e interessante para caracterizar 0 lulismo, como vere-mos no capitulo 3. Porem, cabe ressaltar que a politica social, vol-tada para os mais pobres, com reflexos sobre 0 mercado interno eas relacoes de classe, inicia desde 2005-06 uma polarizacao entrericos e pobres que escapa ao terreno comum de urn possivel libe-ral-desenvolvimentismo, pois ela opoe de maneira consistente osque desejam maior intervencao estatal aos que preferem solucoesde mercado.

Igualmente para Luiz Werneck Vianna, 0 empenho, bem-su-cedido, do governo Lula teria sido 0 de despolitizar e, portanto,despolarizar os conflitos." Vianna percebe na constituicao de urn"Estado de compromisso', arbitrando em seu interior a negocia-

57. Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo do PT", no sltio Gramsci e 0 Brasil,<www.acessa.com/gramsci/>. consultado em 24 fev. 2011.

30

):ao entre grupos de interesse, a caracteristica central do lulismo."~esse ambiente fechado a circulacao da politica, a sua pratica selimita ao exercicio solitario do vertice do presidencialismo de coa-lizao, 0 chefe de Estado.?" A despolitizacao resultante se refletiriano esvaziamento do Parlamento e do sistema de partidos, cujafuncao de comunicar a opiniao que se forma na sociedade civilestaria, assim, bloqueada. Ou seja, por razoes diferentes das suge-ridas por Oliveira e Braga, que estao pensando no sequestro neo-liberal da politica, Sallum Jr. eWerneck Vianna coincidem quantaa inclinacao do governo Lula a pasteurizacao.

Urn quinto autor, Marcos Nobre, expoe, com outras nuances,o que seria a "anulacao" da politica no lulismo. Nobre sugere que acultura politica brasileira teria encontrado, na saida da ditadura,urn estilo particular, 0 peemedebismo, de absorver a "ascensao depobres e remediados a condicao de representados politicos"," 0peemedebismo se caracterizaria por urn sistema de vetos cons-truido no periodo de transicao a dernocracia, 0 qual representariaa capacidade de bloquear mudancas estruturais. A partir de 2005,com a plena incorporacao do PMDB ao seu governo, Lula teria pas-sado a "ampliar de tal maneira 0 centro politico que a polarizacaopraticamente desapareceu". Ao faze-lo, destruiu a bipolaridadeexistente no periodo FHC. A peemedebizacao do lulismo implica-ria uma "regressao politica", fazendo preyer "uma reorganizacaode grandes proporcoes", uma vez que "0 sistema politico nao so-brevive sem polarizacao" Enquanto isso nao acontece, teriamos"uma sociedade amputada por uma representacao politica exclu-dente",o que explicaria por que a eleicao de 2010 teria ficado "en-tre 0 chocho e 0 abstruso, sem nada de realmente relevante entre

•••••I••••••I••I••••t•I41••••t4141••••

58. Idem, ibidem.59. Marcos Nobre, "0 fim da polarizacao", piaui, n. 51, dez. 2010, pp. 70-4. Todasas citacoes de Nobre se referem a esse artigo.

31

Page 17: Os Sentidos Do Lulismo

as duas coisas", numa analise que lembra a de Oliveira sobre 0

pleito de 2006. Em suma, 0 sistema de vetos teria retirado qual-quer possibilidade de movimento a politica.

Penso, entretanto, que, nesse aspecto, a razao esta com Fabio

Wanderley Reis, quando indica que 0 lulismo produziu nao despo-

larizacao, mas urn tipo de polarizacao distinto: "0 lulismo, combi-

nando simbolismo popular e empenho redistributivo, resultou emalgo inedito nas disputas presidenciais, tendendo a caracterizar 0

processo eleitoral de maneira geral: a intensa correlacao, que trans-

pareceu com nitidez especial na eleicao de 2006, entre 0 apoio

eleitoral a urn candidato ou outro e a posicao socioeconomica dos

eleitores - com as projecoes regionais dessa correlacao';'" Mas,

coerentemente com a visao construida desde a decada de 1970,

Reis nao ve polaridade ideo16gica, e sim processo de identificacao

com base em "imagens toscas", desde 0 qual se poderia enxergar "0

caso de Lula como parte de uma nova onda populista na America

Latina, que alguns identificam em casos como 0 dos Kirchner, na

Argentina, e os de Hugo Chavez (Venezuela), Evo Morales (Boli-via) e Rafael Correa (Equador)"," Procuraremos argumentar que

o lulismo faz uma rearticulacao ideol6gica, que tira centralidadedo conflito entre direita e esquerda, mas reconstr6i uma ideologiaa partir do conflito entre ricos e pobres.

Note-se que, embora Reis tenha tentado evitar as conotacoesnegativas da expressao "populismo", ao argumentar que 0 neopo-pulismo nao precisa estar carregado de apelos fraudulentos e ins-

tituicoes frageis, como aparece, por exemplo, na exposicao de

60. Fabio Wanderley Reis, "Identidade polltica, desigualdade e partidos brasilei-ros', Novos Estudos, n. 87,jul. 2010, p. 70.61. Idem, ibidem.

32

Fernando Henrique Cardoso em conferencia na OEA,62ambos en-tendem 0 populismo pelo vies cognitivo. "0 populismo esta devolta, ainda de forma restrita. Mas esta de volta e e uma arneaca ademocracia", disse 0 ex-presidente referindo-se aAmerica Latina.o populismo, de acordo com Cardoso, caracteriza-se por umarelacao personalista e direta do lider carisrnatico com a populacao,em lugar do governo baseado em regras e instituicoes. Notabiliza--se, outrossim, pela crltica constante a essas mesmas instituicoes,que passam a ser desacreditadas, e por urn discurso simplificado evazio, "assente na manipulacao e na propaganda em vez de em fa-tos ou na opiniao informada". A visao "cognitivista" do lulismoexdui a visada de dasse, desde a qual Francisco Weffort analisou,em sua epoca, 0 populismo varguista," e que atualizada permite, ameu ver, entender 0 lulismo. Voltarei a debater 0 esquema inter-pretativo de Reis, urn dos mais completos sobre a politica brasilei-ra conternporanea, ao longo do livro. .~

Ha, finalmente, uma terceira linha de compreensao, que des-taca a existencia de polarizacao, mas sem identificar 0 desloca-mento ideol6gico produzido pelo lulismo no interior dela. RudaRicci vincula a vit6ria de Lula em 2006 ao voto dos mais pobres e,ao analisar a eleicao de 2008, chega a conclusao de que se manteve apolarizacao PT-PSOB, "tendo 0 PMOB como fiel desta balanca"," Aanalise de Fernando Limongi e Rafael Cortez vai adiante, indican-do que a polarizacao entre PT e PSOB foi transplantada para os esta-dos na eleicao de 2010. "Apolarizacao PT-PSOB na eleicao presiden-cial repercute e reorganiza as disputas pelos governos estaduais."65

62. Ver a conferencia pronunciada por Fernando Henrique Cardoso em 30 mar.2006 na OEA. Consultado em <http://www.oas.org>,2S jan. 2011.63. Francisco Weffort, 0 populismo na politica brasileira.64. Ruda Ricci, Lulismo, pp. 9S e 124.

6S. Fernando Limongi e Rafael Cortez, "As eleicoes de 2010 e 0 quadro partida-rio'; Novos Estudos, n. 88, dez. 2010, p. 37:

33

Page 18: Os Sentidos Do Lulismo

Juarez Guimaraes, por sua vez, tomando como foco 0 segundoturno da eleicao de 2010, afirma que se deu uma "polarizacao ine-dita na hist6ria brasileira recente"," Nela, Guimaraes enxergacomponentes ideo16gicos: esquerda e direita teriam vindo a tona,"conformando uma disputa que indicava dois caminhos diame-tralmente opostos para 0 Brasil':

A diferenca entre a minha abordagem e ados autores dessaultima corrente e que, embora estejamos de acordo que a polari-zacao PT-PSDB,estabelecida desde 1994, continua a existir e e deci-siva, penso que ela mudou de conteudo. Estariamos em face deuma repolarizacao da politica brasileira, na vigencia da qual 0

sentido da disputa entre PTe PSDBse alterou. Guimaraes tern razaoao perceber que 0 PT se tornou "mais Brasil". 0 busilis e que, ao setornar "mais Brasil': ele se torna menos "dos trabalhadores", isto e,opera urn deslocamento de classe e, portanto, ideol6gico, que Gui-maraes nao incorpora a sua analise. A ascensao do subproletaria-do, do qual 0 PTse tornou 0 representante na arena politica, porisso se assemelhando a urn "partido dos pobres" de estilo anteriora 1964, significa que as classes fundamentais pass am para 0 fun doda cena. Foi por isso que a polarizacao entre esquerda e direita es-maeceu, sendo substituida por uma polarizacao entre ricos e po-bres, parecida com a do periodo populista.

Urn sintoma de que nao ha despolarizacao e 0 compareci-mento estavel nas eleicoes presidenciais de 2002, 2006 e 2010 (vertabela 1 do Apendice), Sem voltar ao recorde de participacao esta-belecido na eleicao de 1989, com abstencao de somente 12% noprimeiro turno e 14% no segundo, a ausencia nas eleicoes desde2002 esteve dentro da faixa estabelecida em 1994 e 1998, ao redorde 20%. Nao houve diminuicao do interesse porque a disputa en-

66. Juarez Guirnaraes, "A nova dialetica da vida politica", Teoria e Debate, n. 90,nov./dez. 2010, p. 12.

34

tre ricos e pobres mobiliza 0 eleitorado. Os numeros apresentadosnos capitulos 1 e 4 sac expressivos de que em 2006 e 2010 houvenitida separacao entre 0 voto dos pobres e 0 dos ricos. Simultanea-mente, ocorreu diminuicao do alinhamento ideol6gico que pre-valeceu entre 1989 e 2002, quando os votos da esquerda estavamcom 0 PTe os da dire ita eram anti-PT.A hip6tese que testei em Es-querda e direita no eleitorado brasileittr' se confirmou ate 2002(inclusive). Apesar da baixa escolaridade media do eleitorado, ha-via uma coerencia ideologica dos votos em cerca de 3/4 dos eleito-res: aqueles que se colocavam a dire ita, entre os quais os de baixarenda, tendiam a votar nos candidatos mais conservadores, a co-mecar por Collor, 0 contrario acontecendo conforme se avancavapara as rendas maiores, em queaumentava, estatisticamente, aadesao a esquerda e 0 voto em Lula. Mas isso se altera em 2006.

Em suma, penso que no lulismo a polarizacao se da entre ri-cos e pobres, e nao entre esquerda e direita. Por isso, a divisao lu-lista tern uma poderosa repercussao regional, e 0 Nordeste, -que emais pobre, concentra 0 voto lulista. Dai, igualmente, termosmaioria tucana de Sao Paulo para 0 Sul, e petista do Rio de Janeiropara 0 Norte. Isso significa que 0 lulismo dilui a polarizacao es-querda/direita porque busca equilibrar as classes fundamentais eesvazia as posicoes que pretendem representa-las na esfera politica.Desse angulo, as analises que falam em despolarizacao e despolitiza-,~a6.tern urn momento de verdade, isto e, descrevem parcialmente 0

processo. Acontece que 0 lulismo separa os eleitores de baixa rendadas camadas medias, tornandoos do is principais partidos do pais;,;...,.,·PT'e.psDB.:,.....representativos desses polos sociais. Assim, mesmoque'obtigados a ficarem programaticamente pr6ximos em funcao'dcil~~~inhamento, PT e PSDBsac as expressoes de uma polarizacao

•••I••••••••••••••••tt•4••••t41•••••

,f

67.Andre Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. A identificafiio ideol6-gica nas disputes presidenciais de 1989 e 1994.

35

Page 19: Os Sentidos Do Lulismo

"

social talvez ate mais intensa do que a dramatizada por PTB e UDN

nos anos 1950.A diferenca esta em que os partidos de agora evitama radicalizacao politico da polarizacao sociaL

Nao por acaso, 0 realinhamento iniciado em 2002 lembra 0

descrito por Maria do Carmo Campello de Souza para a etapa1945-64.68 A autora mostra que 0 PTB comecava a ganhar terrenofora dos gran des centros, obrigando a UDN a buscar refugio noseu reduto natural, a classe media urbana. 0 lulismo fez 0 PT

crescer no interior do Nordeste, solapando as fileiras do DEM, 0

que empurrou a oposicao a procurar energia junto as camadasurbanas em ascensao, como explicitou 0 ex-presidente FernandoHenrique Cardoso." Ainda segundo Campello de Souza, nessapassagem de acordo com a analise de Glaucio Soares," 0 eleito-rado do pre-1964 estava se realinhando com 0 PTB (pobres dascidades e do interior) e a UDN (classes medias urbanas), como seda hoje com 0 PT e 0 PSDB.•

POLiTICA DE MASSAS E REVOLU<;:AO PASSIVA

A aplicacao mecanica de conceitos atrapalha a apreensaodo objeto. Bern usados, entretanto, os conhecimentos geradospela explicacao de circunstancias hist6ricas anteriores podemser aliados na iluminacao do presente. Constituindo, desde 0 alto,o subproletariado em suporte politico, 0 lulismo repete mecanis-

68. Maria do Carmo Campello de Souza, Estado e partidos politicos no Brasil(1930-1964). Cabe registrar que Souza apJica 0 termo "realinhamento" it ten-dencia hist6rica detectada antes por Glaucio Ary Dillon Soares. Ver, desse autor,Sociedade epolitica no Brasil; pp. 89-93.69. Fernando Henrique Cardoso, "0 papel da oposicao", Interesse Nacional; n. 13,abr./ jun. 2011.70. Glaucio Ary Dillon Soares, Sociedade epolitico no Brasil.

36

mo percebido por Marx em 0 18 Brumario." A analise de Marxe que as fracoes de classe que demonstram dificuldades essen-ciais para se organizar e tomar consciencia de si, como ja vimos,apresentam-se na politica enquanto massa. Destituida da possi-bilidade de agir por meios pr6prios, a massa se identifica comaquele que, desde 0 alto, aciona as alavancas do Estado parabeneficia -la.

Quando a massa encontra uma lideranca que a unifica, entraem cena de maneira intempestiva, por nao ser precedida do vaga-roso percurso que acompanha a ascensao de classe que se auto--organiza. No entanto, e necessario deixar explicito, para evitarmal-entendidos, que as similitudes entre 0 Bonaparte III e Lula saolimitadas." Nenhuma revolucao antecedeu 0 lulismo, como aeon-teceu na Franca com Bonaparte III.Tampouco ha elementos mili-tares envolvidos em sua genese, como no epis6dio frances. Pare-cem-se apenas na politica de mass as de carater projetivo, sem aqual 0 vies profundamente popular do lulismo se torna incom-preensivel, e na inclinacao a pairar acima das classes, deixandoopaco 0 solo em que finca as raizes.

Do ponto de vista dos resultados, sendo urn exemplo de mo-vimento sem mobilizacao, poder-se-ia considerar o lulismo urncaso de "revolucao passiva", conforme pensada por Gramsci. Caberecordar a definicao de Carlos Nelson Coutinho: "Deve-se subli-nhar, antes de mais nada, que urn processo de revolucao passiva, aocontrario de uma revolucao popular, realizada a partir 'de baixo',jacobina, implica sempre a presenca de dois momentos: 0 da 'res-tauracao' {na medida em que e uma reacao a possibilidade de uma

71. Karl Marx, "0 18Brumario de Luis Bonaparte"; em K.Marx, A revolufi'io antesda revolucao.72. Agradeco a Paulo Arantes e Ina Camargo Costa a recomendacao de cautelacom.a analogia ..

37

Page 20: Os Sentidos Do Lulismo

transforrnacao efetiva e radical 'de baixo para cima') eo da'renova-cao' (na medida em que muitas demandas populares sao assimila-das e postas em pratica pelas velhas camadas dominantes)"," 0pr6prio Coutinho adverte que "0 conceito de revolucao passivaconstitui [...] urn importante criterio de interpretacao para com-preender nao s6 epis6dios capitais da hist6ria brasileira, mastambem, de modo mais geral, todo 0 processo de transicao denosso Pais a modernidade capitalists"." Nao seria 0 lulismo maisurn capitulo a ser adicionado ao rol de passagens modernizado-ras sem mobilizacao as quais·se aplicaria a nocao de revolucao

passiva?Werneck Vianna, para quem 0 Brasil "po de ser caracteriza-

do como 0 lugar por excelencia da revolucao passiva"," entendeque, no caso do lulismo, entretanto, ocorre uma inversao domodelo. Aqui, as forcas da antitese (leia-se: OPT) "nao quiseramassumir os riscos de sua vit6ria", optando por assumir 0 progra-ma da tese (leia-se: 0 PSDB), contra a qual haviam construido asua identidade." Entao, foi "0 elemento de extracao jacobina"quem acionou "os freios"," Ou seja, em lugar de 0 partido con-servador cooptar os quadros revolucionarios para executar demaneira controlada as alteracoes renovadoras, na pratica lulistaos elementos conservadores e que foram cooptados pelos diri-gentes de origem progressista, corroborando 0 diagn6stico deOliveira, para quem "parece que os dominados dominam, pois

73. Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, urn estudo sobre seu pensamento politico,p.19S.74. Idem, ibidem, pp. 202-3. Ver tambem Emir Sader (org.), Gramsci, poder,politico epartido, pp. 77-S6.75. Luiz Werneck Vianna, A revoluf/lo passiva, p. 43.76. Idem, "0 Estado Novo do PT", no sitio Gramsci e 0 Brasi~ <www.acessa.comJgramsci/>, consultado em 24 fev. 2011.77. Idem, ibidem.

38

fornecem adirecao moral'e, fisicamente ate, estao a testa de or-

ganizacoes do Estado"." :Oliveira esta as voltas com 0 paradoxo de uma troca no co-

mando do Estado, sem que houvesse urn correspondente desviona orientacao do Estado. Ele interpretara 0 enigma como sendo "0

avesso" da hegemonia, isto e, a transformacao do consenso para amanuteruiio da dorninacao. Eis 0 absurdo: em lugar de justificar aconservacao,o consenso simula a mudanca, que na superestruturade fato se realiza (0 paradoxo de Werneck), apenas para afiancar adorninacao antiga. Diante do tamanho da encrenca, Oliveira afir-ma: "E uma revolucao epistemol6gica para a qual ainda nao dis-pomos de ferramenta te6rica adequada","

Werneck resolve de modo distinto a "inversao da logica darevolucao passiva"," Enquanto Oliveira enxerga "capitulacao antea exploracao desenfreada'l" Werneck aponta que a "forma bizar-ra" da revolucao passiva lulista implicou 0 bloqueio da agendaconservadora constituida pelas reformas tributaria, previdencia-ria, sindical e trabalhista. A estranheza do quadro leva Werneck aressaltar 0 papel da "acao carismatica do seu principal fiador eartifice"," 0 presidente da Republica, que precisa equilibrar astensoes "importadas" para dentro do Estado a partir do seu presti-gio popular. Na esteira desse raciocinio, Ricci sugere que s6 Lulaseria capaz de formular urn discurso que articula retardo e mo-

~•••••,••I•••II•I••t••••••••,••t•••

7S. Francisco de Oliveira, "Hegernonia as avessas",em F.de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 26.79. Idem, ibidem, p. 27. '.SO. Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo do PT", no sitio Gramsci e 0 Brasil,<www.acessa.com/gramsci/> , consultado em 24 fev. 2011.SI. Francisco de Oliveira, "Hegemonia as avessas",em F.de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 27.S2. Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo do PT", no sitio Gramsci e 0 Brasil,<www.acessa.com/gramsciJ> , consultado em 24 fev.2011., .

'-.39

Page 21: Os Sentidos Do Lulismo

••••••••••••••••••••••••••••••••••

dernizacao, atingindo assim uma sociedade em que 0 capitalismotern forma hibrida, meio norte-americana (capitalista moderna) emeio atrasada." Vale notar que 0 primeiro ana do governo DilmaRousseff desmentiu as expectativas tanto de Werneck Viannaquanta de Ricci, pois, mesmo sem 0 carisma e a capacidade ret6ri-ca de Lula, Dilma conseguiu equilibrar as tensoes importadas paradentro do Estado e manter 0 discurso que equaciona, em estilolulista, as disparidades do capitalismo nacional.

Para complicar ainda mais 0 quadro; a contar de 2005-06, 0setor "at rasa do" da sociedade brasileira, a saber, a massa rural esemirrural do Nordeste, que nao encontrava lugar nas relacoes demercado capitalistas "normals'; se desliga do bloco hist6rico aoqual sempre esteve vinculada, ultimamente representado pelo PFL-

-OEM, aderindo ao lulismo." Para ficar no ambito das categoriasgramscianas, a importancia desse descolamento equivale a resolu-~ao do que poderiamos chamar de a nossa "questao setentrional"aludindo ao famoso ensaio do comunista sardo sobre a "questaomeridional" na Italia. Gramsci acredita que a burguesia industrialitalian a formara urn bloco hist6rico com os latifundiarios do SuI.A debilidade do capitalismo.italiano residia em nao ter rompidocom os elementos do SuI retardatario, quando da unificacao dopais. 0 Risorgimento do seculo XIX resultou de uma alianca da bur-guesia liberal moderada com os gran des proprietaries, sob a egideda monarquia, numa tipica revolucao passiva. 0 atraso do SuI erafuncional para a burguesia do Norte, uma vez que representavaurn mercado cativo e tambern fonte de mao de obra barata." A

83. Ruda Ricci, Lulismo, pp. 85-93.84. Ver, a respeito, Ricardo Luiz Mendes Ribeiro, "A decadencia longe do poder.Refundacao e crise do PFL~ dissertacao de mestrado, Sao Paulo, DCP/U5P, 20 II.85. Ver Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento poli-tico, p. 67.

40

massa camponesa, incapaz de "dar uma expressao centralizada assuas aspiracoes e necessidades"," fica ligada, por meio dos intelec-tuais locais, "ao grande proprietario rural"," Em outras palavras, 0desenvolvimento do capitalismo na Italia estava travado por vastobloco hist6rico que reunia dos industria is do Norte ao camp onesdo SuI, deixando a classe operaria isolada." A situacao beneficiavaate mesmo a aristocracia operaria, cuja expressao politic a seria 0

reformismo social-democrata, que podia ser cooptada devido asaltas margens de lucro da burguesia nortista. Nao seria possivelalterar 0 quadro, a menos que S'\! operasse "com base nas forcaspopulares tais quais sao historicamente determinadas", pensava 0

dirigente do PCI.89

No Brasil ha inumeras indicacoes de que as massas agrariastambern estiveram tradicionalmente sob 0 dominio dos gran desproprietaries rurais. 0 coronelismo, que expressa 0vinculo e a fun-~ao dos chefes locais na evolucao do pais, nao deve ser desconside-rado, como atesta Victor Nunes Leal," mesmo depois da redemo-cratizacao de 1945.As constatacoes concernentes as bases sociais doconservadorismo na decada de 1990 por Scott Mainwaring, RachelMenegueUo e Timothy Power" revelama durabilidade da ligacao,quase adentrando 6 seculo XXI.

o populismo varguista deixou intocada a estrutura corone-

86. Antonio Gramsci, "Alguns temas da questao meridional", Temas de CienciasHumanas, n. I, 1977, p. 36.87. Idem, ibidem, p. 38.88. Ver Carlos Nelson Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento poli-tico, p. 67. .89.Antonio Gramsci, "Un esame della situazione italiana", conforme Carlos Nel-son Coutinho, Gramsci, um estudo sobre seu pensamento politico, p. 61.90. Ver Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto.91. Scott Mainwaring, Rachel Meneguello e Timothy Power, Partidos conservado-res no Brasil contemporaneo.

41

Page 22: Os Sentidos Do Lulismo

lista, embora deslocasse a oligarquia cafeeira paulista do centro dopoder. De acordo com Weffort,920 varguismo representa tentativade equilibrar as diferentes fracoes burguesas, tendo como suporteas massas urbanas em expansao, oriundas da migracao rural, e oscoroneis do interior. Por isso, quando os movimentos popularesdos anos 1960 tentaram romper 0 elo entre as massas rurais e oslatifundiarios, por meio de uma reforma agraria substantiva, 0

pacto populista veio abaixo. Com a ditadura militar (1964-85), auniao entre as massas rurais nordestinas e 0 bloco conservador serenova, gerando repetidas vit6rias da.Arena.nos chamados gro-toes, 0 que postergou a decomposicao do regime castrense. Rede-mocratizado 0 pais, 0 PFL constituira urn dos principais partidosnacionais, herdando 0 vinculo conservador secular. Sustentadopela antiga fidelidade de extra~o coronelista, 0 PFLchegou a com-petir com 0 PSDB pela primazia na sucessao de FHC em 2002.93Arelacao entre conservadores e massas do interior, sobretudo noNordeste, e rompida apenas quando acontece 0 deslocamento lu-list a em 2006, que se projeta para 2010 e alem, Em resumo, 0 rea-linhamento eleitoral de 2006 significa a mudanca de urn padraohist6rico de comportamento politico das carnadas populates noBrasil, em particular no Nordeste.

A fracao de classe "sempre esquecida enquanto uma classe deindividuos 'precarizados' que se reproduz ha geracoes"?' se desligoudas classes dominantes em 2006. Dal a polarizacao entre ricos e POc

bres. Para Jesse Souza, a rale, como ele chama a fracao de classe quen6s denominamos subproletariado, seria explorada enquanto "cor-

92. Ver Francisco Weffort, 0 populismo na politica brasileira, a quem sigo naanalise do populismo.93. A morte de Luis Eduardo Magalhaes, em abril de 1998, representou urn baquepara as pretensoes pefelistas.94. Jesse Souza, A ral« brasileira, p. 2l.

42

po" pela classe media tradicional." "A classe media brasileira, porcomparacao com suas simi1ares europeias, por exemplo, tern 0 sin-gular privilegio de poder poupar 0 tempo das repetitivas e cansati-vas tarefas domesticas. que pode ser reinvestido em trabalho produ-tivo e reconhecido fora de casa,"Dai a resistencia da classe media aoprograma do lulismo de erradicacao da miseria, produzindo-se rea-~aomuito distante da indiferenca politica.

o lulismo mexe com urn conflito nuclear no Brasil, aqueleque opoe "incluidos" e "excluidos" Jesse Souza chega a propor quen.uma "sociedade perifericamente moderna como a brasileira"esse e 0 conflito central, e nao 0 que opoe trabalhadores e bur-gueses," subordinando em "importancia todos os demais". Naoobstante haver urn equfvoco, como veremos, nessa forrnulacao, elaexpressa a relevancia de termos quase 113 da populacao brasileiradespreparada "para 0 trabalho produtivo no capitalismo altamen-,.te competitivo de hoje"," Ou'seja, no fato marcante de que nascamadas populares brasileiras ha uma vasta porcentagem que estaaquem do proletariado. Sem essa compreensao, nao se perfila aimportancia do lulismo. .'"

o problema e que Jesse Souza, ao dar centralidade ao conflitoinclusiio versus exclusiio, tira 0 capitalismo de cena. Embora numasociedade que reproduz a exclusao de maneira tao estrutural e,continua 0 conflito que a exclusao produz seja de alta relevancia,nao se pode esquecerque a oposicao entre 0 capital e 0 trabalhodefine 0 destino de todaa epoca em que vivemos, sendo necessa-rio integrar 0 problema da exclusao ao conjunto das relacoes deproducao, se quisermos desvendar a totalidade. Na resolucao de seo mercado sera livre para movimentar 0 moinho satanico de Po-

••••••••••••••••••••••••••••41••••••95. Idem, ibidem, p. 24.96. Idem, p. 25.97. Idem, p. 22. ,

43

Page 23: Os Sentidos Do Lulismo

lanyi, como gosta de dizer Francisco de Oliveira, ou se 0 trabalhoimpora restricoes que preservem 0 sentido da vida human a, joga--se 0 futuro da humanidade. Dai decorre que as classes que encar-nam as forcas organizadas do capital e do trabalho travem umaluta que e a mais central de todas nas sociedades capitalistas, aindaque, no chao brasileiro, ela se combine com a existencia hist6ricada sobrepopulacao trabalhadora superempobrecida permanente,como procurei apontar acima.

E mister, portanto, reconhecer que 0 conflito de classes estacondicionado no Brasil pela existencia de uma vasta fracao de

. \

classe que luta por aceder ao mundo do trabalho formal em regi-me capitalista, com todos os defeitos que ele possui, tendo est~dohistoricamente dele excluida. Dai a relevancia do que poderiamoschamar de a nossa "questao setentrional" se considerarmos que 0

epicentro dessa fracao de classe esta no Nordeste. Como lembraSonia Rocha, "a pobreza no Brasil tern urn forte componente re-gional", sendo que "0 Nordeste permanece como a regiao maispobre do pais";"

Deve-se, entao, enxergar que a existencia dessa camada davaa burguesia uma supremacia sobre a classe trabalhadora, fazendocom que esta nao pudesse aspirar a conquistas mais amplas en-quanto nao atraisse para a sua orbita 0 subproletariado. Olulismoniio representa tal passagem - que talvez fosse mais bem sintetiza-da pela organizacao autonoma, como e tentada pelo Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),caso ela fosse capaz decongregar dezenas de milhoes de subproletarios. Porern, 0 lulismoconstituiu a ruptura real da articulacao anterior, ao descolar 0

subproletariado da burguesia, abrindo possibilidades ineditas apartir dessa novidade historica.

Mais que inversiio de quadros (Werneck Vianna) ou de propo-

98. Sonia Rocha, Pobreza no Brasil; p. 135.

44

sitos (Oliveira), 0 lulismo representa a criacao de urn bloco de podernovo, com projeto proprio, para cuja compreensao as nocoes depolitica de massa (018 Brumdrio) e de revoluiiio passiva (Gramsci)me parecem uteis, desde que filtradas pela cor local. Urn poder apa-rentemente acima das classes que leva adiante a integracao do sub-proletariado a condicao proletaria, assim como 0 varguismo soldouos migrantes rurais a classe trabalhadora urbana por meio da in-dustrializacao, da CLTedo PTB.Donde as linhas de continuidade en-tre varguismo e lulismo devam ser objeto de cuidadosa pesquisa.

o que torna dificil avaliar 0 tamanho da virada em curso nolulismo, fazendo pensar ate em retrocesso, e 0 fato de que se espe-rava a execucao de urn programa "intensamente reformista nosentido classico que a sociologia politica aplicou ao terrno"," Issoteria, provavelmente, levado a uma radicalizacao entre burguesia eproletariado, com urn incremento da mobilizacao social, comoqueria a primeira alma do PT."Comecadas as grandes mudancasestruturais, seguir-se-ia 0 momento da mobilizacao popular e dasua continua intensificacao't'?? escreveu Werneck Vianna. Mas arevolucao passiva em andamento, mesmo cumprindo parte da.agenda dos subordinados, nao inclui 0 roteiro imaginado antes.

Na pratica ocorreu algo como urn "semitransformismo". Osquadros do PTque anteriormente defendiam 0 program a "inten-samente reformista" se tornaram agentes de urn reformismo fraco,comprometidos com a decisao de nao causar a radicalizacao quepregavam na origem. Meu argumento e que 0 reformismo lulistae lento e desmobilizador, mas e reformismo. Cria-se a ilusao deotica da estagnacao para, na realidade, promover modificacoes em

99. Francisco de Oliveira, "0 avesso do avesso", em F. de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 369.100. Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo do PT", no sftio Gramsci e 0 Brasil,<www.acessa.com/gramscil>.consultadoem 24 fev. 2011.

45

Page 24: Os Sentidos Do Lulismo

silencioso curso. Com respeito a pobreza, por exemplo, cabe res-saltar que a velocidade de reducao nem e pequena em termos ab-solutos, sobretudo no Nordeste. A queda da desigualdade, medidapelo indice de Gini, como veremos nos capitulos 3 e 4, ganhourapidez no lulismo do segundo mandato. Representa, entretanto,urn movimento vagaroso diante da abissal desigualdade brasileira,mantendo-se urn largo estoque de iniquidade para as decadas se-guintes, e se realiza sem mobilizacao e organizacao desde baixo, 0que pode compromete-lo numa situacao de crise.

Note-se, por fim, que a reacao das camadas medias as infle-xoes em curso, mesmo que 0 espirito que as preside seja moderadoe conciliador, reflete a brisa da rnudanca. A polarizacao que ocorrena sociedade e sintoma de movimento nas estruturas. 0 subprole-tariado se firma no suporte a Lula e ao PT, na expectativa de que secumpra 0 programa de inclusao, enquanto a classe media se unifi-ca em torno do PSDB, na procura de restaurar 0 status quo ante,mesmo que isso nao possa ser dito com todas as letras.

Ao longo dos capitulos procurei dar substancia ernpirica aoesquema interpretativo adiantado nesta Introducao. Tomei, con-tudo, a opcao de nao fechar a porta as explicacoes alternativas.Como ja disse, 0 lulismo e recente e 0 seu senti do hist6rico nao sefixou. Em outras palavras, 0 fenomeno esta em movimento quan-do este livroe concluido, nao recomendando conclusoes precipi-tadas. Acresce 0 fato de eu ter participado do primeiro mandatode Luiz Inacio Lula da Silva na Presidencia da Republica - comose conta no Posfacio -, obrigando-me a redobrar os cuidadoscom a objetividade. Afinal, a meta do trabalho, por ser acadernico,e contribuir para aumentar 0 conhecimento sobre 0 lulismo -independentemente das virtudes e defeitos que cada urn nelepossa depositar do ponto de vista subjetivo.

46

Comecei a estudar 0 assunto quando deixei 0 governo fede-ral, em meados de 2007, tendo publicado 0 primeiro resultado dapesquisa em 2009, na revista Novos Estudos, do Cebrap. Em 2010,a mesma publicacao editou artigo que escrevi sobre 0 impacto dolulismo no PT, segundo passo do conjunto. Depois, uma exposicaoa respeito do segundo mandato, preparada para seminario da FGV-

-SP, saiu em piaui em outubro de 2010. Agradeco aos editores Fla-vio Moura e [oaquim Toledo Jr. (Novos Estudos) e Mario SergioConti (piau£) a oportunidade de apresentar os meus argumentosnos dois prestigiosos veiculos que dirigiam.

A divulgacao dos tres artigos suscitou uma serie de debatesque me levaram a mudar aspectos do argumento, ampliar outrose ate mesmo eliminar alguns,chegando ao esquema interpretativoacima exposto. Sou, desse modo, devedor de todos os que partici-param das referidas discussoes. Pela natureza dispersa da contri-buicao nao poderei citar cada urn dos presentes, mas gostaria deque soubessem do meu reconhecimento.

Por meio de Roberto Schwarz, agradeco aos circulos de do-mingo, em cujas conver~as esclareci diversos pontos. Roberto, aquem estou ligado por amizade e antigos vinculos familiares, foiinspirador na construcao de hip6teses que comparecem no livro,mas nao tern responsabilidade alguma sobre seus problemas e in-

. suficiencias.Gracas ao convite de Francisco de Oliveira e Ruy Braga pude

me integrar ao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Ce-nedic) da Faculdade de Pilosofia, Letras e Ciencias Humanas dausr e ouvir experientes colegas pesquisadores. Chico, que foi meu. principal interlocutor na volta de Brasilia, mostrou que pensa-mento radical e aceitacao das divergencies podem conviver e sefertilizar. Por meio dele, e de Ricardo Musse, quero agradecer,igualmente, aos companheiros do Laborat6rio de Estudos Karl

. ""

•••••••••••••••••••I•••••••••••••••47

Page 25: Os Sentidos Do Lulismo

Marx (Lemarx) da USP, parceiro do Cenedic, por inumeras sessoesde animado debate.

Fui beneficiado pelo ambiente academico civilizado e respei-toso do Departamento de Ciencia Politica (DCP) da USP, a cujoscolegas, orientandos e alunos, agradeco por meio dos que exerce-ram a chefia no periodo, professores Alvaro de Vita e FernandoLimongi. As aulas e os seminaries do DCP foram oportunidades deavaliar hip6teses, passo indispensavel para a conforrnacao de ra-ciocinios que, afinal, tern muito de coletivos. Marcia, Rai e Ana,assim como a equipe que lideram, ofereceram, como sempre •.oapoio logistico e administrativo imprescindivel. Em nome deGustavo Venturi, do Departamento de Sociologia, gostaria deagradecer, tarnbem, aos colegas dos demais departamentos daFFLCH que participaram das discussoes.

A sessao presidida por Gabriel Cohn no Instituto de EstudosAvancados (lEA) da USP, com a presenca de Jose Augusto GuilhonAlbuquerque e Luiz Carlos Bresser-Pereira, em marco de 2010, foivaliosa para fazer avancar a pesquisa. Por meio do lEA, agradecotarnbem ao Ipea, a PUC-SP, a usscar, ao Cedec, ao Cebrap, a ABCP, aANPOCS, a Escola de Governo e ao Instituto Moreira Salles (IMS)

pela oportunidade de discutii os temas do livro.Fora do ambiente acadernico, companheiros de atividade

partidaria, jornalistas e amigos deram contribuicoes ao desenvol-vimento do trabalho. Em nome de Eloi Pieta, Ricardo de Azevedoe Carlos Henrique Arabe, agradeco a Fundacao Perseu Abramo,aos militantes da Mensagem ao Partido (PT), a Casa da Cidade, aVia Campesina e ao MST. Amir Khair aceitou convite para conver-sar sobre aspectos economicos da analise. A ele e aos participantesda mesa das segundas, obrigado. Renato Pompeu, depois de meentrevistar, fez 0 obsequio de me mandar urn 6timo livro de GoranTherborn, que usei. Por seu intermedio deixo registrada a dividacom os jornalistas que se interessaram pelas minhas ideias.

48

A forma final do livro tern por base tese de livre-docenciadefendida no Departamento de Ciencia Politica da Universidadede Sao Paulo. Procurei, na medida de minhas forcas, incorporarao volume ora apresentado as sugestoes da excelente banca cons-tituida pelos professores Fernando Limongi, Francisco de Olivei-ra, Leda Paulani, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Maria Victoria Be-nevides, que proporcionaram urn momento de vivo confrontointelectual no Salao Nobre da Faculdade de Filosofia, Letras eCiencias Humanas no final de setembro de 2011. Agradeco aosexaminadores a generosidade de considerar os meus argumentos,mesmo quando deles discordavam, sempre com a seriedade e 0espirito critico indispensave] a boa atividade universitaria.

Os editores que deram guarida ao trabalho na Companhia dasLetras, Matinas Suzuki Jr. e Otavio Costa, fizeram sugestoes valio-sas, sobretudo para as secoes completamente ineditas (a Introdu-I):ao,0 capitulo 4 e 0Posfacio). Sou grato a eles tanto pela inteligenciadas observacoes quanto pela calorosa acolhida de que fui objeto.

Por fim, a familia foi crucial. Paul Singer, que me ensinou aolongo do tempo quase tudo 0 que sei, leu, discutiu e corrigiu erros(os muitos que certamente sobraram nao passaram por ele). Aspalavras sao poucas para expressar 0 quanta the devo. Silvia ElenaAlegre - animo dos dias, luz da vida -leu, conversou, ajudoucom os rnimeros, caminhou junto passo a pas so. Por interrnediodela, aceitem, filhas, netos, irmas, cunhados e sobrinhos, a minhagratidao.

Cumpre reiterar, entretanto, que os defeitos doJivro sao ex-clusiva responsabilidade do autor.

49

Page 26: Os Sentidos Do Lulismo

1. Raizes sociais e ideol6gicas dolulismo'

UM DESLOCAMENTO SILENCIOSO

. No futuro, quando for escrita a cronica dos dois mandatos deLuiz Imido Lula da Silva, talvez 0 pleito de 29 de outubro de 2006apareca como mera repeticao dos resultados de quatro anos antes,eleicao em que 0 candidato do PT venceu 0 do PSDBpor uma diferencade 20 milhoes de votes.' Na superflcie, a reiteracao da maio ria fir-mada em 2002. Mas, encoberto sob cifras quase identicas, houve em2006 urn realinhamento de bases sociais, fazendo emergir 0 lulismo.

Aos esforcos despendidos para entender 0 lulismo,' vale

1.Versao rnodificada de artigo CDm 0.mesrno titulo. publicado em Novas Estudos,n. 85, nDV.2009, pp. 83-102.2. Lula teve 47% dDSVDtDS validos no. primeiro turno de 2002 e 49% na reelei-~aDde 2006. Em numeros absolutos, Lula teve 52 788 428 de VDtDS contra 33 366430 de VDtDS para JDSe Serra, no. segundo. turno de 2002, e 58 295 042 de VDtDS

contra 37 543 178 de VDtDS para Geraldo Alckmin, no. segundo. turno de 2006.3. A bibliografia sobre 0. lulismo tern se rnultiplicado CDm rapidez. Cita-se aquiuma amostra, Ver, no. campo.petista,"O PT e 0. lulismo'; artigo assinado pDr Gilney

51

Page 27: Os Sentidos Do Lulismo

-.acrescentar a sugestao de que ele e, sobretudo, representacao deuma fracao de classe que, embora majoritaria, nao con segue cons-truir desde baixo as pr6prias formas de organizacao. Por isso, s6podia aparecer na politica depois da chegada de Lula ao poder. Acombinacao de elementos que empolga 0 subproletariado e a ex-pectativa de urn Estado suficientemente forte para diminuir a'de-sigualdade sem ameaca a ordem estabelecida. Dado tal arranjoideol6gico, a possivel hegemonia lulista nao seria "as avessas",como sugeriu Oliveira, ainda que, ao juntar elementos de esquer-da e de dire ita, cause a impressao 'de inverter 0 arranjo logico dosargumentos, pois sempre se teve como evidente que, para dimi-nuir a desigualdade no Brasil, seria preciso alterar a ordem.'

A percepcao do movimento profundo que ocorreu em 2006foi dificultada porque ele sedeu sem mobilizacao e "sem fazer-senotar", como assinalou urn ex-rninistro.' 0 silencio causado peladesmobilizacao provocou confusao a direita e a esquerda. Dezmeses antes da reeleicao, a revista Veja publicava que Lula seriaderrotado porque, de acordo com pesquisa do Ibope, 40% doapoio obtido em 2002 tinha se esfumado e a "politica assistencia-lista" nao conseguiria segurar 0 eleitor de baixa renda. "A disputaeleitoral de verdade se dara entre Serra e Alckmin", escrevia a Veja,

Viana em 31 out. 2007, e "Duas agendas: na crise, de duas, uma", de Renato Simoes,23 maio 2009, ambos no sitio cwww.pt.org.br>, consultado em 25 ago. 2009. Emoutra vertente, verificar Merval Pereira, 0 lulismo no poder, e Ruda Ricci, Lulismo.Da era dos movimentos sociais a ascensilo da nova classe media brasileira.4. Ver Francisco de Oliveira, "0 avesso do avesso", em F.de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas. Quando ia adiantada a redacao deste livro,foi publicado por Jose de Souza Martins A politico do Brasil, lumpen e mistico, queapresenta interpretacao alternativa tanto 11minha quanto 11de Oliveira. Infeliz-mente nao houve tempo para analisar os argumentos de Martins com 0 devidocuidado,o que ficara para oportunidade pr6xima.5. Roberto Amaral, "As eleicoes de 2006 e as massas: uma ernergencia frustrada?",no sitio <www.psbnacional.org.br>. consultado em 25 ago. 2009, p. 6.

52

mesmo avisando que previsoes de longo prazo em materia deeleicao falhavam tanto quanta as rneteorologicas,s Mesmo aber-tas as urnas, Oliveira ainda duvidava da "interpretacao corrente"segundo a qual "0 Brasil eleitoral se dividiu entre pobres e rices""Seria 6timo, se fosse plausivel que os 40% de votos de Alckminforam dos 'ricos', e que a votacao de Lula foi exclusivamente dos'pobres"; escreveu Oliveira sobre 0 primeiro turno.?

A origem do mal-entendido e dupla. De urn lado, houve urnmovimento subterraneo de eleitores nao de baixa renda, mas debaixissima renda, que tendem a ficar invisiveis para os analistas;reforcou esse efeito 0 fato de 0 deslocamento ter sido simultaneoao estardalhaco em torno do "mensalao'; escandalo que teceu, apartir de maio de 2005, urn cerco polltico-midiatico ao presiden-te, deixando-o na defensiva por cerca de seis meses." No periododo "mensalao', 0 governo efetivarnente perdeu parcel a irnportan-te do suporte que trazia des de a eleicao de 2002. Nas carnadasmedias, a rejeicao desdobrou-se em nitida preferencia por candi-dato de oposicao a Presidencia em 2006. "Entre os brasileiros deescolaridade superior, a reprovacao a Lula deu urn salto de dezes-seis pontos percentuais, passando de 24% em agosto para 40%hoje", escrevia a Folha de S.Paulo em 23 de outubro de 2005. Tresmeses depois, porern, enquanto os rnais ricos, seguin do no vies

6. Veja, n. 1936,21 dez. 2005, p. 55: "De agosto para ca, segundo 0 Ibope, Lulaperdeu nove pontos percentuais entre aqueles que, ate a eclosao da crise, eramseus eleitores mais fieis: brasileiros que ganham ate urn salario mlnimo"7. Francisco de Oliveira, "0 avesso do avesso", em F.de Oliveira, R. Braga e C. Ri-zek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 21. No primeiro turno de 2006, que ocorreuno dia 1° de outubro, Lula teve 46 662 365 de votos e Geraldo Alckmin, 39 968369, Heloisa Helena, 6575393, e Cristovam Buarque, 2538544.8. Usando balizamentos de midia, pode-se dizer que a fase aguda do "mensalao"se iniciou com a reportagem da Veja que comecou a circular em 14 de maio de2005 e terminou com a entrevista presidencial ao program a Roda Viva, da TV

Cultura de Sao Paulo, em 7 de novembro do mesmo ano.

53

Page 28: Os Sentidos Do Lulismo

anterior, optavam em massa (65%) pelo entao pre-candidate doPSDB, entre os de renda familiar de ate cinco salaries minimosocorria uma virada em sentido contrario, com urn aumento dosindices de satisfacao a respeito do mandato de Lula." Sobretudono fundo da sociedade, onde circulam personagens de escassarepercussao, houve uma crescente inclinacao, desde pelo menos 0

inicio de 2006', a manter no Palacio do Planalto 0 ex-retirantepernambucano que tinha as mesmas origens dos seus recern--apoiadores."

A divergencia entre os estratos de renda crescera ao longo de2006, e os numeros encontrados pelo Ibope perto do primeiro edo segundo turno expressam uma disputa socialmente polariza-da, como mostram as tabelas 1 e 2.11 Nelas, a disposicao da parcelamais pobre de sufragar Lula inverte-se de maneira linear a medidaque aumenta 0 rendimento, de sorte que os mais ricos dao folgadamaioria a Alckmin.

o que atrapalhou a compreensao e levou analistas como Oli-veira a considerarem pouco plausivel que os quase 40 milhoes devotos em Alckmin no primeiro turno proviessem apenas dos "ri-cos" foi a singularidade brasileira, que grosso modo transforma em"classe media" todos (at incluidos setores assalariados de baixarenda) os que nao pertencem a metade da populacao que ternbaixissima renda. Lula foi eleito, sobretudo, pelo apoio que teveneste segmento, enquanto Alckmin contou, alem do voto dos maisricos, com certa sustentacao na fatia de eleitores de classe mediabaixa, que vagamente corresponde ao que 0 mercado chama de

9. Folha de S.Paulo, 5 fey. 2006.10. Ver resultados das pesquisas Datafolha nas edicoes da Folha de S.Paulo de 23out. 2005 e 5 fey. 2006.11. Agradeco ao Centro de Estudos de Opiniao Publica (Cesop) da Unicamp acessao de dados do Ibope12006 e a Gustavo Venturi a cessao de dados da Funda-s;ao Perseu Abramo.

54

TABELA 1:

INTEN9AO DE VOTO POR RENDA FAMILIAR MENSAL

NO PRIMEIRO TURNO DE 2006

ATt 2 SM + OE2a5 SM +OE5UOSM + de io SM TOTAL

Lula 55% 41% 30% 29% 45%

Alckmin 28% 38% 45% 44% 34%

Heloisa Helena 6% 9% 14% 11% 9%

Cristovam 1% 3% 4% 5% 2%

Outros 1% 1% 0,3% 1% 1%

BR/Nulo/8% 9% ' 7% 9% 9%Indecisos

TOTAL 100% 100% 100% 100% 100%*

••••••••••t•••••••••••••••••••~

Fonte: Ibope. Pesquisa com arnostra nacional de 3010 eleitores realizada entre 28e 30 de setembro de 2006.

* Pequenas variacoes no total correspondemao arredondamento das porcentagens.

"classe C". Na faixa de mais de dois a cinco salaries minimos derenda familiar mensal, por exemplo, Alckmin quase empatavacom Lula as vesperas do primeiro turno (tabela 1), mas, entre oseleitores de baixissima renda (ate dois salaries rninimos de rendafamiliar mensal), Lula aparecia com uma vantagem de 26 pontospercentuais sobreAlckmin. Era, destarte, verdadeira a interpretacaode que 0 Brasil se dividiu entre pobres e ricos. A polarizacao socialdo pleito efetuou-se pela implantacao de Lula entre os eleitores debaixissima renda, visivel desde 0 primeiro turno, assim como a deAlckmin entre os de ingresso mais alto (acima de dez salaries rni-nimos de renda familiar mensal).

55

Page 29: Os Sentidos Do Lulismo

,TABELA2:

INTEN<;:AO DE VOTO POR RENDA FAMILIAR MENSAL NO

SEGUNDO TURNO DE 2006

ATE 2SM + DE2a5 SM + DE5 a 10 SM + de io SM TOTAL

Lula 64% 56% 44% 36% 57%

Alckmin 25% . 35% 46% 54% 33%

Branco/Nulo/

10% 9% 11% 10% 10%Nao sabe/Nao opinou

TOTAL 100% 100% 100% 100% 100%*

Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 8680 eleitores realizada entre 26e 28 de outubro de 2006.* Pequenas variacoes no total correspondem ao arredondamento das porcentagens.

Os dados indicam que 0 lulismo foi expressao de uma cama-da social especifica e a clivagem entre eleitores de baixissima rendae de "classe media", que apareceu nos debates p6s-eleitorais sob aforma de "questionamento do real papel dos chamados 'formado-res de opiniao"," outorgou lima caracteristica unica a eleicao de2006. Em perspectiva comparada, as cientistas politicas DenildeOliveira Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky observaram que em2002 0 voto em Lula "nao estava especialmente associado comnenhum estrato social', enquantoern 2006 "os eleitores de classebaixa se mostram significativamente mais inclinados a dar seuvoto a Lula"," 0 unico caso anterior de polarizacao por renda em

12. Roberto Amaral, "As eleicoes de 2006 e as massas: uma ernergencia frustra-da?", no sitio <www.psbnacional.org.br>.consultado em 25 ago. 2009, p. 9..13. Denilde O.Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky, "Classe, ideologia e politica:uma interpretacao dos resultados das eleicoes de 2002 e 2006", Opiniao Publica,vol. 13, n. 2, novo2007, pp. 294-6.

56

eleicoes presidenciais, desde a redernocratizacao, surgira no se-gundo turno de 1989, sendo que naquela ocasiao a candidaturaLula estava, nao por acaso, no lado oposto da linha que dividiapobres e ricos. Enquanto Fernando Collor de Mello alcancavavantagem de dez pontos percentuais na faixa de ate do is salariesminimos de renda familiar mensal, no segmento mais alto quemobtinha vantagem analoga era Lula (tabela 2 do Apendice).

Se no primeiro turno de 1989 havia uma nitida tendencia decrescimento do apoio a Collor com a queda da renda, levan do aconcentracao do voto collorido entre os mais pobres, no campooposto ("classe media") ocorria uma dispersao nas opcoes porLula, Brizola, Covas e Maluf, nao caracterizando, ainda, a polariza-raa, que viria a acontecer no segundo turno." Em entrevista conce-dida ap6s aquele pleito, Lula afirmava: "Averdade nua e crua e quequem nos derrotou, alem dos meios de comunicacao, foram os se-tores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade [...J.N6s temos amplos setores da classe media com a gentei--; umaparcela muito grande do funcionalismo publico, dos intelectuais,dos estudantes, do pessoal organizado em sindicatos, do chamadosetor medic da classe trabalhadora" 15 Consciente do peso eleitoraldos "rnais desfavorecidos'[ acrescentava: "Aminha briga e sempreesta: atingir 0 segmento da sociedade que ganha salario minimo.Tern uma parcela da sociedade que e ideologicamente contra n6s, enao ha por que perder tempo com ela: nao adianta tentar conven-cer urn ernpresario que e contra 0 Lula a ficar do lado do trabalha-dor. N6s temos que ir para a periferia, onde estao milhoes de pes-soas que se deixam seduzir pela promessa facil de casa e comida'l"

14. Andre Singer, "Collor na periferia: a volta por cima do populismo?", em B.Lamounier (org.), De Geisel a Collar, 0 balance da transidio, p. 138.15.Andre Singer (org.), Sem medo de ser feliz, pp. 98-9.16. Idem, p. 98.

57

Page 30: Os Sentidos Do Lulismo

Em trabalhos sobre 1989, notei, entretanto, que a vit6ria deCollor nao decorria apenas de "promessas faceis" Havia uma hosti-lidade as greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 ateas vesperas da primeira eleicao direta para presidente, e da qual Lulaera, entao, 0 simbolo maior. Observava-se aumento linear da con-cordancia com 0 uso de tropas para acabar com as greves conformedeclinava a renda do entrevistado, indo de urn minimo de 8,6%,entre os que tinham renda familiar acima de vinte salaries minimos,a urn maximo de 41,6% entre os que pertenciam a familias cujo in-gresso era de apenas dois salaries minimos (ver tabela 3 do Apendi-ce). Em outras palavras, ao contrario do esperado, os mais pobresdemonstravam maior hostilidade as greves do que os mais rieos.

Na epoca, assinalei que a resistencia as greves e a candidaturaLula, manifestada por eleitores de baixissima renda, estava asso-ciada, alern do mais, a uma autolocalizacao intuitiva a direita doespectro ideol6gico (quadro 1).17 Nao obstante, tratava-se de di-reita peculiar, uma vez que favoravel a intervencao do Estado naeconomia, como se pode ver na tabela 4 do Apendice. Como resol-ver a aparente contradicao? Sugeri que os eleitores mais pobresbuscariam a reducao da desigualdade, da qual teriam consciencia,por meio de intervencao direta do Estado, evitando movimentossoeiais que pudessem desestabilizar a ordem. Para eleitores de me-nor renda, a clivagem entre esquerda e direita nao estaria em sercontra a reducao da desigualdade ou a favor desta, e sim em eomodiminui-Ia, Identificada como opcao que punha a ordem em risco,a esquerda era preterida em beneficio de solucao pelo alto, de umaautoridade constituida que pudesse proteger os mais pobres semameatya de instabilidade. Esse seria 0 senti do da adesao intuitiva adire ita no espectro ideol6gico. Era comum, nas pesquisas, os elei-

17. Ver Andre Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. As identificacoesideologicas nas disputas presidenciais de 1989 e 1994.

58

t~res de baixa escolaridade entenderem a direita como 0 que e"direito" ou como sinonimo de "governo", a esquerda sendo 0

"errado" e a oposicao. Se aceitarmos que tais associacoes expres-sam escolha pela ordem, 0 presumivel erro de acepcao fica mitiga-do e torna inteligivel 0 vies desfavoravel a Lula.

Como vimos, 0 modelo de comportamento politico descritoacima tern antecedentes. Marx, em 0 18 Brumario." revela que aprojecao de anseios numa figura vinda de cima, que deriva da ne-cessidade de ser constituido enquanto ator politico desde 0 alto, etipica de classes ou fracoes de classe que tern dificuldades estruturaispara se organizar. A natureza do vinculo esclarece por que 0 seusurgimento sempre causa surpresa. Como eles "nao podem repre-sentar-se, antes tern que ser representados" 19 aparecem na politicade repente, sendo criados de cima para baixo, sem aviso previo, sem amobilizacao lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organiza-cao autonoma das classes subalternas quando se da nos formatostipicos do seculo XlX, isto e, dos movimentos e partidos operarios,

o fato de Collor ter decepcionado a camada que 0 elegeu aoprovocar a recessao de 1990-'91, levando a perda de suporte que fa-voreceu 0 impedimento em 1992, nao afetou os fundamentos docomportamento politico que 0 pleito de 1989 revelara. Nas eleicoespresidenciais seguintes, de 1994 e 1998,0 "conservadorismo popu-lar': acionado pelo medo da instabilidade, venceu Lula pela segundae terceira oportunidade. Percebia-se, vagamente, urn poder de vetodas classes dominantes, oqual residia na capacidade de mobilizar 0

voto de baixissima renda contra a esquerda. 0 que nao se distinguiacom nitidez eram as raizes ideol6gicas do mecanismo.

Em 1993, a pesquisa Cultura Politica voltou a investigar a 10-

18.Karl Marx, "0 18Brumario de Luis Bonaparte", em K.Marx, A reyolu~iioantesda reyolu~iio,p. 325.19. Idem, ibidem.

59

Page 31: Os Sentidos Do Lulismo

calizacao dos eleitores no espectro ideol6gico, usando distribuicaode dez pontos em lugar de sete. 0 resultado foi semelhante ao co-lhido quatro anos antes. A esquerda (posicoes de 1 a 4) reunia27% das preferencias, contra 45% da direita (posicoes de 7 a 10).20Os levantamentos de opiniao, alias, indicam permanente supre-macia conservadora na distribuicao do eleitorado entre esquerdae direita, como se observa no quadro 1.

QUADR01:

POSIyAO NO ESPECTIl.O IDEOL6GICO (BRASIL), 1989-2006,

---OUTRAS

ESQUERDA CENTRO DIREITA RESPOSTAsi

NAO SABE

1989 (Datafolha, set.) 22% 19% 37% 22%

1997 (F. Perseu Abramo, nov.) 19% 21% 34% 25%

2000 (Datafolha, jun.) 2r>Al 16% 37% 21%

2002 (Criterium, out.) 26% 18% 39% 16%

2003 (Datafolha, abr.) 26% 16% 41% 16%. -.._-.

2006 (F. Perseu Abramo, mar.) 26% 20% 40% 14%

2006 (Datafolha, ago.) 22% 17% 35% 26o/d2010 (Datafolha, maio) 20% 17% 37% 26%

Fonte: Para Datafolha, relat6rio "Posicao polltica, 20/21 de maio de 2010", em<http://datafolha.folha.uol.com.br>,consultado em 3 abr. 2012, exceto para 2000,em <wwwl.folha.uol.com.br/folha/Brasil!ult96u301O.shtml>, consultado em 3 abr.2012. Para Criterium e Fundacao PerseuAbramo: Fundacao Perseu Abramo, con for-me 0 sitio <www2.fpa.org.br>, consultado em 18 set. 2009. Obs.: As posicoes na es-cala de 1a 7 foram assim agrupadas: esquerda = 1a 3; centro = 4; direita = 5 a 7.

20. Andre Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro, p. 182.

60

As pesquisas mostram, igualmente, que a tendencia a direitacai com 0 aumento da renda, dando-se 0 contrario com a esquer-da. Por isso, as derrotas de Lula em 1994 e 1998 podem ser enten-

didas, ao menos em parte, como reedicoes de 1989. Apesar de aestabilidade monetaria ter se sobreposto, em 1994 e 1998, aos ar-

gumentos abertamente ideologicos utilizados por Collor (arneacacomunista) em 1989,0 resultado foi que as duas campanhas deFernando Henrique Cardoso mobilizaram os eleitores de menorrenda contra a esquerda. Antonio Manuel Teixeira Mendes e Gus-tavo Venturi demonstraram que.na esteira do Plano Real, 0 me-

. lhor resultado de Lula em 1994 ocorreu entre os estudantes, entreos assalariados registrados com escolaridade secundaria ou supe-rior, e entre os funcionarios publicos, Ja os trabalhadores sem re-

gistro formal, portanto desvinculados da organizacao sindical,deram os melhores resultados a Fernando Henrique." E~.1998, acoligacao governista procurou convencer, com sucesso, os eleito-res de que Cardoso seria 0 melhor condutor do pais em meio acrise financeira internacional que ameacava a estabilidade con-

quistada quatro anos antes e que Lula supostamente nao conse-guiria manter," De acordo com Tarso Genro, "boa parte das massas

excluidas simplesmente repercutiram esta estrategia manipulado-ra [...l". Para Genro, em 1998 "pesou significativamente, mais do

que ocorreu com a eleicao de Collor, uma grande parte da popula-s:aomarginalizada, lumpesinada ou meramente excluida do mun-

21. Antonio Manuel Teixeira Mendes e Gustavo Venturi, "Eleicao presidencial: 0

Plano Real na sucessao de Itamar Franco", Opiniao Publica, vol. 2, n. 2, dez. 1994,pp.43-5.

22. Ver Paul Singer, "No olho do furacao", Teoria e Debate, n. 39, out.! dez. 1998,p. 22: "Muitos votaram pela reeleicao porque Fernando Henrique Cardoso tinhaapoio internacional, do qual Lula carecia"

61

Page 32: Os Sentidos Do Lulismo

do da Lei e do Direito"," Em decorrencia, os argumentos da cam-panha de Lula de que Fernando Henrique tinha abaixado "acabeca para os banqueiros e agiotas internacionais [...J, aumentouos juros [...J e as empresas estao fechando e demitindo'?' nao atrai-ram mais do que os cerca de 30% de votos validos que pareciam,entao, constituir 0 teto do candidato, quando, na realidade, eram 0

teto da esquerda, socialmente limitada pela rejeicao do subprole-tariado no extrema inferior de renda.

Ainda em 2002, depois de unir-se a partido de centro-direita,anunciar candidato a vice de extracao empresarial, assinar carta--compromisso com garantias ao capital e declarar-se 0 candidato dapaz e do amor, Lula contava com menos intencao de voto entre oseleitores de renda mais baixa do que entre os de renda superior.Wendy Hunter e Timothy Power notaram que "no nucleo de apoiorecebido por Lula nas suas quatro tentativas previas de chegar apresidencia, ocorridas entre 1989 e 2002, encontravam-se os eleito-res com maior nivel de escolaridade, concentrados principalmentenos estados mais urbanos e industriais do SuI e do Sudeste'." Emsuma, a base social de Lula e do PT expressava a esquerda numa so-ciedade cuja metade mais pobre pendia para a direita. •.

S6 depots de assumir 0 governo Lula obteve a adesao plena dosegmento de dasse que buscava desde 1989, deixando, po rem, decontar com 0 apoio que sempre tivera na dasse media. "Lulaper-deu intencoes e, provavelmente, votos entrealguns de seus eleito-res 'tradicionais', 'decepcionados' com osescandalos' Substituiu-

.i :'; ':::'

23. Tarso Genro, "Urn confronto desigual e combinado', Teoria e Debate, n. 39,out.!dez.1998,p.5. .,,,1 ,:: ... " . ".24. Jorge Almeida, Marketing politico, hegemonia. e contra-hegemonia, p. 2 L9.Note-se 0 tom enrage da campanha de 1998, abandonado em 2002.25. Wendy Hunter e Timothy J. Power, "Recompensando Lula - Poder executi-YO, polltica social e as eleicoes brasileiras em 2006", em C. R. Melo e M. A. Saez(orgs.), A democracia brasileira, p. 334.

62

-os, porern, e compensou as perdas, com votos de 'niio eleitores',pessoas que nunca haviam votado nele antes'," afirma MarcosCoimbra, diretor do Instituto Vox Populi (grifos meus). Entre aeleicao de 2002, entendida como sendo a da demorada ascensiio daesquerda em pais de tradicao conservadora, e a reeleicao de Lulapor outra base social e ideol6gica, em outubro de 2006, operou-seumatransforrnacao decisiva e que se faz necessario entender.

AS BASES MATERIAlS DO VOTO

Marcos Coimbra registra que "as primeiras pesquisas feitaslogo ap6s 0 corneco do governo captaram uma nitida mudancanas atitudes dos eleitores de dasse popular, apontando para 0 au-mento de sua autoestima e da confianca, de que 0 Brasil iria me-lhorar, agora que as politicas de governo passariam a ter outra in-tencao e finalidades: urn governo diferente, com gente diferente,fazendo coisas diferentes"," 'Ires anos depois da posse, quandooutro pleito apontava no horizonte, tais "mudancas nas atitudes"se expressariam na forma de uma adesao que salvou Lula da mor-:te politica a que parecia condenado pela rejeicao da dasse media.

Na analise de Coimbra, 0 "fundamento" da aprovacao ao go-verno, que por sua vez levou ao voto em 2006, "foi a sensacao deeleitores de renda baixa e media de que 0 seu poder de consumoaumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material deconstrucao), seja em novos (celulares, DVDS, passagens aereas)","Com efeito, a partir de setembro de 2003, com 0 lancamento do

26. Marcos Coimbra, "Quatro razoes para a vitoria de Lula", Cadernos F6rurnNacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fey. 2007, p. 7.27. Idem, ibidem, p. 13.28. Idem, p. 11.

63

Page 33: Os Sentidos Do Lulismo

·

Programa Bolsa Familia (PBF) inicia-se uma gradual melhora nacondicao de vida dos mais pobres. No principio apenas unificacaode programas de transferencia de renda herdados da administra-s:aoFernando Henrique, 0 qual, por sua vez, copiara a f6rmula degovernos locais petistas, 0 PBF foi aos poucos convertido, pelaquantidade de recursos a ele destinados, numa especie de pre--renda minima para as familias que comprovassem situacao deextrema necessidade. Em 2004, 0 programa recebeu verba 04%maior e, em 2005, quando explode 0 "mensalao", teve urn aumen-to de outros 26%, mais que duplicando em dois anos 0 numero defamilias atendidas, de 3,6 milhoes para 8,7 milhoes, Entre 2003 e2006,0 Bolsa Familia viu 0 seu orcamento multiplicado por treze,pulando de 570 milhoes de reais para 7,5 bilhoes de reais, e atendiaa cerca de 11,4 milhoes de familias perto da eleicao de 2006.29

Diversos estudos encontraram indicios de que 0 PBF teve in-fluencia nos votos recebidos por Lula em 2006. Elaine CristinaLicio e colaboradores verificaram, por meio de survey, "no que serefere a atitude dos beneficiaries do Programa", que entre eles "aporcentagem de voto em Lula foi cerca de 15% maior no primeiroe segundo turnos" em compa~as:ao com a obtida na media do elei-torado." Yan de Souza Carreirao associa a alta votacao de Lula nasregioes Nordeste e Norte ao fato de 0 programa ter se concentradonaquelas areas. Lula teve, no primeiro turno, por exemplo, cercade 60% dos votos validos do Nordeste e apenas 33% dos do SuI,sendo que 0 investimento do PBFna regiao nordestina foi tres vezes

29. Sobre 0 crescimento do PBF, ver Iairo Nicolau e Vitor Peixoto, "As basesmunicipais da votacao de Lula em 2006", Cadernos Porum Nacional (InstituteNacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 20, e Jose Prata Araujo, Um retratodo Brasil, p. 155.30. Elaine Cristina Licio, Lucio R. Renn6 e Henrique Carlos de O. de Castro,"Bolsa Familia e voto na eleicao presidencial de 2006: em busca do elo perdido",Opiniiio Publica, vol. 15, n. 1,jun. 2009, p. 43.

64

maior do que na sulista." Em observacao mais segmentada, Nico-lau e Peixoto observaram que "Lula obteve percentualmente maisvotos nos municipios que receberam mais recursos per capita doBolsa Familia";" mostrando a repercussao do programa nos cha-mados grotoes, tipicamente 0 interior do Norte/Nordeste, quesempre fora tradicional territ6rio do conservadorismo. Vale notarque, de acordo com Coimbra, entre os que votaram em Lula pelaprimeira vez em 2006, a maio ria eram mulheres de renda baixa, "0publico-alvo por excelencia do Bolsa Familia", po is sao as maesque recebem 0 beneftcio."

Soa consistente a afirmacao de que 0 PBF cumpriu urn papelna segunda vit6ria de Lula. Porem, "a importancia do Bolsa Fami-lia nao deve ser subestimada e nem exagerada" adverte Coimbra."Sozinho nao bastaria para explicar 0 resultado da eleicao';" diz 0

diretor do Vox Populi. Claudio Djissei Shikida e colaboradoresargumentam que raciocinios centrados no local de votacao cor-rem 0 risco de apenas mostrar a coincidencia geografica de doisfatores, a saber, a presens:a do PBF,dada a pobreza do lugar, e 0 votoem Lula, mas nao a relacao causal entre ambas. 0 Bolsa Familia foilogicamente destinado em maior proporcao as regioes pobres eaos municipios de menor Indice de Desenvolvimento Humano(IDH), pois la se localizava a maior parte das familias que a ele fa-ziam jus. Mas 0 fato de a votacao em Lula ter sido maior nessas

31. Van de Souza Carreirao, "Evolucao das opinioes do eleitorado durante 0

governo Lula e as eleicoes presidenciais brasileiras de 2006': em <www.waporco-lonia.com>, 2007, consultado em 30 ago. 2009.32. Iairo Nicolau e Vitor Peixoto, "As bases municipals da votacao de Lula em2006': Cadernos Porum Nacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fey.2007, p. 21.

33. Marcos Coirnbra, "Quatro razoes para a vit6ria de Lula", Cadernos Forum

Nacional (Instituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 7.34. Idem, ibidem.

65

Page 34: Os Sentidos Do Lulismo

regioes e municipios nao implica que ela fosse causada pelo PBFous6 por ele. Fazendo uso de outro instrumentalestatistico paracompulsar as tendencias municipais, Shikida e colaboradoresconcluem: "0 PBFmostrou alguma evidencia de impacto positivona eleicao, porern os resultados nao se mostraram robustos. Mes-mo se significativo fosse, 0 valor do estimador seria bem menor doque 0 necessario para que essa fosse a variavel-chave para a com-preensao da eleicao de Lula","

Shikida e colaboradores sugerem que 0 controle dos prec;:os,enquanto impulsionador do aumento do poder de compra entre ascamadas pobres, pudesse ser mais explicativoda inflexao ocorridaem 2006. Chamam a atencao, por exemplo, para 0 fato de que, entre2003 e 2006, a cesta basica subiu 8,5% e 10,4% em Porto Alegre eSao Paulo, e em Recife e Fortaleza a variacao foi de 4% e de -3%.

Tera sido coincidencia Lula ter perdido no Rio Grande do SuI e emSao Paulo nos dois turnos, ao passo que no estado de Pernambucorecebeu 82% dos votos no segundo turno e, no Ceara, 75%?J6

Na mesma linha, mirando alern do Boisa Familia, Hunter ePower lembram que 0 aumento real de 24,25% no salario minimodurante 0 primeiro mandato teve urn imp acto mais abrangentedo que 0 PBF.Ademais, 0 Bolsa Familia e a elevacao do salario mi-nimo, somados, dinamizaram as economias locais menos desen-volvidas, "que dependem, em grande medida, de cornercio peque-no e gastos no varejo para a sua sobrevivencia, En tao, nao esurpreendente que as vantagens da minoria [sic] tenham aumen-tado dramaticamente nos ultimos tres anos nas regioes Norte e

35. Claudio Djissey Shikida, Leonardo Monteiro Monasterio, Ari Francisco deAraujo Junior, Andre Carraro e Otavio Menezes Dame, "Tt's the economy, com-panheirol': an empirical analysis of Lula's re-election", em <http://works.bepress.com>, 2009, consultado em 30 ago. 2009. Texto original em Ingles, traducaominha.36. Idem, ibidem.

66

Nordeste do Brasil. Tampouco causa surpresa que tanto 0 compa-recimento como 0 apoio a Lula nessas duas regioes tenham cresci-do em 2006 comparado a 2002".37

o primeiro aumento importante do salario minimo, 8,2%

reais, ocorreu em maio de 2005,38 e e razoavel imaginar que a po-derosa combinacao Bolsa Pamilia-salario minimo tenha demora-do alguns meses para produzir efeitos, 0 que ajuda a entender porque as pesquisas de intencao de voto registram crescente adesaodos mais pobres a partir do inicio de 2006. Mas, alern do acresci-mo de renda obtido pelos milhoes de brasileiros que recebem urnsalario minima da Previdencia Social," outra possibilidade aber-ta aos aposentados, as vezes principal fonte de recursos em peque-nas comunidades, foi 0 uso do credito consign ado. 0 creditoconsignado fez parte de uma serie de iniciativas oficiais a qual ti-nha por objetivo expandir 0 financiamento popular, que incluiuuma multiplicacao expressiva do ernprestimo a agricultura fami-liar (sobretudo no Nordeste), do rnicrocredito e da bancarizacaode pessoas de baixissima renda.

Criado em 2004,0 recurso do credito consign ado permitiuaos bancos descontar ernprestimos em parcelas mensais retiradasda folha de pagamento do assalariado ou do aposentado. A redu-c;:aodo risco decorrente da devolucao garantida acarretou umaqueda em quase treze pontos percentuais da taxa de juros dessesernprestimos, e, em 2005, depois de crescer quase 80%, 0 credito

~

~~

~•~II•-I••••••••••••t!41••

37.Wendy Hunter e Timothy J. Power, "Recornpensando Lula - Poder executi-vo, politica social e as eleicoes brasileiras em 2006", em C. R. Melo e M. A. Saez(orgs.), A democracia brasileira, p. 347. No original em ingles, ha uma referendaque esta truncada na traducao para 0 portugues: "retail sales over the past threeyears have climbed most dramatically in the North and Northeast':38. Folha de S.Paulo, 1mar. 2008, p. B1.39. Em 2011, 18,6 milhoes de beneficiaries recebiam salario minirno, quase 10%da populacao. Folha de S.Paulo, 17 fev. 2011, p. A6.

67

Page 35: Os Sentidos Do Lulismo

consignado punha em circulacao dezenas de bilhoes de reais, usa-

dos, em geral, para 0 consumo popular. No capitulo da assistencia

social, com a promulgacao do Estatuto do Idoso, em janeiro de

2004, a idade minima para receber 0 Beneficio de Prestacao Con-

tinuada (BPC), que paga urn salario minimo a idosos ou portadores

de necessidades especiais cuja renda familiar per capita seja infe-

rior a 1/4 de salario rninimo, caiu de 67 para 65 anos. Em 2006, 2,4

milhoes de cidadaos recebiam 0 BPC.

Alern das medidas de alcance geral, que propiciaram a ati-\

vacao de setores antes inexistentes na economia (por exemplo,

clinicas dentarias para a baixa renda), uma serie de programasfocalizados, como 0 Luz para Todos (de eletrificacao rural), re-gularizacao das propriedades quilombolas, construcao de cister-

nas no serniarido etc., favoreceu 0 setor de baixissima renda.Carreirao reproduz cruzamento realizado pelo Datafolha em

junho de 2006 que mostra a influencia de ser atendido por pro-

grama governamental sobre a disposicao de reeleger 0 presiden-

te. Os mimeros revelam que a intencao de voto em Lula pulava

de 39%, na media, para 62%, quando 0 entrevistado participava

de algum programa federal."Em resumo, 0 tripe formado pelo Bolsa Familia, pelo salario

minimo e pela expansao do credito, somado aos referidos progra-

mas especificos, e com 0 pano de fundo da diminuicao de precos da

cesta basica, resultou em diminuicao da pobreza a partir de 2004,

quando a economia voltou a crescer e 0 emprego a aumentar. E 0

que Marcelo Neri chama de "0 Real do Lula": "No bienio 199~-95 a

40. Yan de Souza Carreirao, "Evolucao das opinioes do eleitorado durante 0

governo Lula e as eleicoes presidenciais brasileiras de 2006", em <www.waporco-Ionia. com>, 2007, consultado em 30 ago. 2009, p. 19.

68

proporcao de pessoas abaixo da linha da miseria cai 18,47% e, noperiodo 2003-05, a mesma cai 19,18%':41

Em particular no ana de 2005, quando eelodiu 0 escandalo do"mensalao", ocorreu, segundo classificacao de Waldir Quadros, aprimeira reducao significativa da miseria desde 0 Plano Real," pre-sumivelmente em con sequencia do conjunto de acoes do governoLula. Ou seja, durante a fase em que os atores politicos tinham aatencao voltada para as demincias do "mensalao', 0 governo con-cluia em silencio 0 "Real do Lula'; que, diferentemente do original,beneficiava apenas a camada da sociedade que nao sai nas revistas."No capitulo 3 vamos examinar de que maneira, durante 0 segundomandato, a geracao de empregos, decorrente da ativacao do merca-do interno, tornou-se 0 esteio da reducao da pobreza, acelerando osefeitos obtidos no primeiro quadrienio lulista.

FRAyAO DE CLASSE E IDEOLOGIA

Tomadas em conjunto, as iniciativas do primeiro mandatoforam muito alern de simples "ajuda" aos pobres. Sem falar nosprogramas especificos, 0 aumento do salario minimo, a expansaodo credito popular; 0 aumento da formalizacao do trabalho (0

41. Marcelo Neri, "Miseria, desigualdade e politicas de renda: 0 Real do Lula",2007, em <www3.fgv.hr>, consultado em 30 ago. 2009.42. Denilde O. Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky, "Classe, ideologia e politica:uma interpretacao dos resultados das eleicoes de 2002 e 2006", Opiniao Publica,vol. 13, n. 2, novo 2007, p. 289, reproduzem interessante estudo de Waldir Qua-dros, segundo 0 qual a massa de miseraveis teria caido de 38% em 2004 para 22%em 2005.43. "La nao tern mocas douradasl Expostas, andam nusl Pelas quebradas teusexusl Nao tern turistasl Nao sai foto nas revistas"; Chico Buarque de Holanda,"Suburbio", em Carioca.

69

Page 36: Os Sentidos Do Lulismo

desemprego caiu de 10,5% em dezembro de 2002 para 8,3% emdezembro de 2005)44e a transferencia de renda pelo PBF, aliados acontencao de prec;:os,sobretudo da cesta basica (e em alguns casosdeflacao, como decorrencia da desoneracao fiscal), constituemuma plataforma, no sentido de tracar uma direcao politica para osanseios de certa fracao de classe. Nao apenas porque objetivarnen-te foram capazes de aumentar a capacidade de consumo de pes-soas de baixa renda, como atesta 0 acesso de 29 milhoes a "classeC" entre 2003 e 2009,45mas porque sugerem um caminho a seguir:manutencao da estabilidade com expansao do mercado interno.Nesse sentido, colocam Lula a frente de urn projeto, que e tambemcompativel com aspectos de sua biografia, dando projecao ideolo-gica aos ganhos materiais.

Coimbra, orientador de diversas pesquisas quantitativas equalitativas na epoca, chama a atencao nao so para 0 fato de Lulaser 0 politico de origem mais humilde a ter chegado ao topo dosistema, como para "a intensa campanha negativa que sofreu emsuas tentativas anteriores", tendo feito dele alguern que mexeucom a "autoimagern e 0 amor-proprio" do eleitorado popular."Convern lembrar que Lula e 0 primeiro presidente da Republicaque sofreu a experiencia da miseria, 0 que nao e irrelevante, dadaa sensibilidade que demonstrou, uma vez na Presidencia, para arealidade dos miseraveis. E plausivel a suspeita de Francisco deOliveira de que a eleicao de 2006 comprove que Lula se elevou "acondicao de condottiere e de mito'."

Oliveira acrescenta, entretanto, que esse e urn tipo de lideran-

44. Dados do IBGE citados por Jose Prata de Araujo, Um retrato do Brasil, p. 145.45. Calculo de Marcelo Neri, da FGV-RJ. Para mais detalhes, ver capitulo 3.46. Marcos Coimbra, "Quatro razoes para a vit6ria de Lula", Cadernos ForumNacional (lnstituto Nacional de Altos Estudos), n. 6, fev. 2007, p. 12.47. Francisco de Oliveira, "Hegemonia as avessas", piaui, n, 7, jan. 2007.

""Q

ca que "despolitiza a questao da pobreza e da desigualdade", 0 queleva 0 autor a questionar a natureza da hegemonia que estariasurgindo e a lancar a sugestao de que ela agiria as avessas, isto e,para consolidar a "exploracao desenfreada", em lugar de minar 0

modelo superexplorador. A primeira vista, urn lulismo despoliti-zante seria compativel com a "sindrome do Flamengo", hipoteseformulada por Fabio Wanderley Reis para explicar a ascensao doMDB nos anos 1970 e depois generalizada como visao estrutural dapolitica brasileira. Esse enquadramento sustenta que urn eleitora-do de baixa escolaridade tera necessariamente que orientar-se por"imagens toscas"," nao se devendo esperar que esteja informadodas orientacoes substantivas adotadas pelos atores nem que seguie por elas. A "sindrome do Plamengo" faz 0 eleitor de baixa es-colaridade escolher 0 partido mais ou menos como opta por urntime de futebol. 0 MDB dos anos 1970 ~ra 0 "partido do povo", as-sim como 0 Flamengo era 0 "time do povo". Da mesma forma queo voto popular no MDB rao simbolizava necessariamente, para es-panto do senso com urn, rejeicao ao governo militar, 0 voto emLula nao representaria nenhum tipo de opcao ideologica, antes,pelo contrario, seria fruto de uma desideoiogizacao. As opcoes po-pulares, regidas por mecanismos de identificacao e acionadas porimagens difusas, nada expressariam de substantivo.

Tal esquema foi relancado pela analise de Carreirao sobre 0

Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) de 2006, que, em dezembro da-quele ano, detectou declinio do apoio a esquerda quando compa-rado ao Eseb 2002 (de 26% para 9%), bern como urn salta do nu-mero de entrevistados que nao sabia se posicionar na escala (de23% em 2002 para 42% em 2006).490 expressivo aumento dos

i•••••••••I

tI.,tI

I••I•41••••II•••48. Fabio Wanderley Reis, "Participacao politica", Valor Economico, 7 jul. 2008.49.Yan de Souza Carreirao, "Identificacao ideol6gica, partidos e voto na eleicaopresidencial de 2006", Opiniao Publica, vol. 13, n. 2, novo 2007. De acordo com

-.71

Page 37: Os Sentidos Do Lulismo

que ficavam fora do espectro ideo16gico f01entendido por Carrei-rao como corroboracao de "que ap6s 0 primeiro mandata dopresidente Lula houve na percepcao dos eleitores brasileiros umadiluicao das diferencas ideo16gicas entre os partidos (e liderancaspoliticas)"." Conclusao semelhante a de Holzhacker e Balbache-vsky, segundo as quais ocorrera "urn esvaziamento da dimensaoideol6gica e do confronto de classes para explicar a vit6ria de Lulanas eleicoes de 2006':51Nessa visao, e como se, depois do primeiromandato, uma parte dos eleitores localizados a esquerda tivessemperdido 0 rumo, retirando a ideologia a influencia que esta antespudesse ter tido no processo eleitoral.

Sem entrar em discussao metodol6gica, vale registrar que 0resultado do Eseb 2006 e algo discrepante do encontrado pelas pes-quisas resumidas no quadro 1.Embora se possa detectar nos levan-tamentos do Datafolha uma reducao daesquerda (de 26% em 2.003para 22% em 2006, segundo 0 quadro 1) 'e da direita (de 41% em2003 para 35% em 2006), e urn concomitante crescimento do mi-mero de entrevistados que nao sabia se posicionar no espectro (de16% para 26%) entre abril de 2003 e agosto de 2006, as oscilacoessac bem menores que as apontadas pelo Eseb (0 fato desta pesquisater utilizado escala de 0 a 10, enquanto as do quadro 1 usam escalade 1a 7, nao seria suficiente para explicar 0 tamanho da diferenca),

A partir dos dados do Eseb, Carreirao argumenta que, se deurn lade teria havido perda de substancia ideol6gica, os "senti-mentos partidarios', a saber, tanto a preferencia quanta a rejeicao de

Carreirao,o Eseb 2002 foi uma pesquisa empreendida pelo Dataurr e pelo Cesop/Unicarnp, enquanto 0 Eseb 2006 foi levado adiante pelo Cesop/Unicamp e Ipsos.50. Yan de Souza Carreirao, "Identificacao ideologies, partidos e voto na eleicaopresidencial de 2006", Opinino Publica, vol. 13, n. 2, novo2007, p. 332.51. Denilde O. Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky, "Classe, ideologia e politica:uma interpretacao dos resultados das eleicoes de 2002 e 2006", Opiniao Publica,vol. 13, n. 2, novo2007, p. 304.

72

determinado partido, "mostraram-se associados a decisao do voto".Pergunta-se ele, entao, se estariamos diante do que fora antevistopor Fabio Wanderley Reis e Monica Mata Machado de Castro em1992, quando, usando a nocao de "sindrome do Flamengo", pre-viam, em artigo que analisava dados colhidos no comeco da rees-truturacao partidaria (1982), que decantada a nova configuracao departidos se divisariam outra vez "as linhas basicas de clivagem", comuma sigla adquirindo "a imagem de partido dos pobres - ou dostrabalhadores, desde que esta expressao seja tomada de maneirasuficientemente difusa para tornar-se equivalente aquela'i" Ou seja,nao urn partido de classe, mas do povo. Nesse script, 0 PT estariaagora substituindo 0 MDB dos anos 1970, tanto na falta de conteudoquanta na capacidade de reter a lealdade popular.

Hunter e Power, contudo, perceberam sinais de que, na elei-cao de 2006, 0 PT nao teria acompanhado 0 ex-presidente em suatroca de base. Lula teria deixado urn eleitorado tipicamente urba-no e escolarizado por urn francamente popular, mas 0 mesmo naoteria ocorrido com 0 PT. "Ao comparar a tendencia da base deapoio geografico do partido na Camara dos Deputados com a deLula, a incongruencia e crescente. Enquanto Lula obteve seu de-sempenho mais notavel nas regioes menos desenvolvidas (oschamados 'grotoes, calcanhar de aquiles hist6rico do PT), 0 ba-luarte do partido continuou sendo as zonas mais urbanizadas eindustriais do Brasil?" Em outras palavras, 0 candidato a reelei-cao foi mais sufragado quanta menor 0 IDH do estado, mas a vota-yao da bancada federal do partido manteve-se associada as unida-

52. Fabio Wanderley Reis e Monica Maja Machado de Castro, "Regioes, c1asseeideologia no processo eleitoral brasileiro", Lua Nova, n. 26,1992, p, 131.53. Wendy Hunter e Timothy J. Power, "Recornpensando Lula - Poder executi-vo. politica social e as eleicoes brasileiras em 2006", em C. R. Melo e M. A. Saez(orgs.), A democracia brasileira, p. 338.

73

Page 38: Os Sentidos Do Lulismo

des de maior IDH.54 Lula teve particular sucesso no Nordeste e noNorte, ao passo que a votacao do PT continuou relevante no Su-deste e no Sui. Por isso, Lula teria crescido entre 0 primeiro turnode 2002 eo de 2006, passando de 47% para 49% dos votos validos,enquanto a bancada federal petista caiu, de 91 para 83 eleitos."

No capitulo 2 procurarei mostrar que, posteriormente a2006, houve uma inflexao da base social do PT, diminuindo a dis-tancia inicial entre lulismo e petismo. Em resumo, argumentareique 0 lulismo era uma forca nova em 2006, a qual aderiu ao PT

lentamente, mas acabou por tomar conta do partido, que, por seuturno, ja vinha mudando de orientacao programatica desde 2002.o resultado e que 0 PT ofereceria, depois de 2006, urn canal parti-dario s6lido ao lulismo, afastando 0 risco populista de se projetaruma lideranca carisrnatica "solta", sem partido. Entretanto, a des-conexao ternporaria entre as bases do lulismo e as do petismo em2006 foi 0 sinal de que havia entrado em cena uma [orca nova,constituida por Lula a frente de uma fracao de classe antes cauda-taria dos partidos da ordem. Mais que urn efeito geral de desideo-logizacao e despolitizacao, portanto, 0 que estava em curso era aernergencia de outra orientacao ideol6gica, que antes nao se en-contrava no tabuleiro politico. 0 lulismo, ao executar 0 programade combate a pobreza dentro da ordem, confeccionou via ideol6gi-ca propria, com a uniao de bandeiras que nao pareciam combinar.

A meu ver a "continuidade do governo Lula com 0 governoFHC" na conducao macroeconomica "baseada em tres pilares: me-tas de inflacao, cambio flutuante e superavit prirnario nas contaspublicas?" foi uma decisao politica e ideol6gica. A elevacao dosuperavit primario para 4,25% do PIB, a concessao de independen-

54. Idem, ibidem, p. 11.55. Idem, p. 7.56. Jose Prata Araujo, Um retrato do Brasil, p. 75.

74

cia operacional ao BC, que teve a sua frente urn deputado federaleleito pelo PSDB com autonomia para determinar a taxa de juros, ea inexistencia de controle sobre a entrada e saida de capitais cons-tituirarn 0 meio encontrado para assegurar elemento vital naconquista do apoio dos mais pobres: a manutencao da ordem.

o governo Lula afastou-se de aspectos do programa de es-querda adotado pelo PT ate 0 fim de 2001, 0 qual criticava "a esta-bilidade de precos [...) alcancada com 0 sacrificio de outros obje-tivos relevantes, como 0 crescimento economico", a abolicao das"restricoes ao movimento de capitais" e a Lei de ResponsabilidadeFiscal por tolher "elementos importantes de autonomia dos entesfederados, engessando, em alguns casos, os investimentos em po-liticas sociais"," 0 objetivo foi impedir que uma reacao do capitalprovocasse instabilidade economics e atingisse os excluidos dasrelacoes economicas formais. Para trabalhadores com carteira as-sinada e organizacao sindical, a luta de classes em regime demo-cratico oferece alternativas de autodefesa em momentos de insta-

I

bilidade. Porern, os que nao podem lancar mao de instrumentosequivalentes, por nao estarem organizados, seriam vulneraveis apropaganda oposicionista contra a "bagunca"

Os anos FHC legaram urn pacto com a burguesia que envolviajuros altos, liberdade de movimento dos capitais e contencao dogasto publico. Se e verdade que '0 desemprego resultante inviabili-lOU 0 sonho peessedebista de vinte anos seguidos no poder (a pe-rene quimera do ciclo rooseveltiano, como se vera no capitulo 3),tambem e certo que 0 Real conquistara 0 eleitorado popular. Acontinuidade do "pacote FHC" foi a condicao da burguesia paranao haver guerra de classes e consequente risco de Lula ser vistocomo 0 presidente que destruiu 0 Real.

=~•I•••tI••I•~

~•I

~I

~

~

~

~

~

~

~~

~

I~

~

57.Diret6rio Nacional do PT, Concepiao e diretrizes do programa de govern 0 do PTpara 0 Brasil, mar. 2002, pp. 20-1 e 25.

75

Page 39: Os Sentidos Do Lulismo

Nao tenho elementos para julgar ~ea correlacao de forcaspermitia arriscar outra via, implicando algum grau de confrontocom 0 capital. 0 fato e que 0 governo optou por conter a subidados precos pelo caminho ortodoxo, aprofundando as receitas neo-liberais, com a combinacao de corte no gasto publico e aumentode juros. Com efeito, a reducao da demanda e a volta dos d6laresque haviam fugido com medo da esquerda seguraram a inflacao,que tinha alcancado a marca de 12,53% em 2002, caindo a 9,3%. em 2003, 7,6% em 2004 e 5,7% em 2005. 0 presidente vocalizou,entao,o discurso conservador de que 0 seu mandato nao adotarianenhum plano que pusesse em risco a estabilidade, preferindoadministrar a economia com a "pruden cia de uma dona de casa".Se, ao faze-lo, estabelecia urn hiato em relacao ao passado do seupr6prio partido, em troca criava uma ponte ideologica com osmais pobres.

No entanto, se tivesse se limitado a conceder ao capital as ga-rantias necessarias para manter a estabilidade, Lula s6 repetiria 0

relativo sucesso do primeiro mandato de FHC, 0 qual nao logrougalvanizar 0 eleitorado mais pobre, apesar de emplacar 0 discursode que "tudo e urn processo'[equivalente tucano da "prudencia dadona de casa",garantindo a vit6ria de 1998.0 pulo do gato de Lulafoi, sobre 0 pano de fundo da ortodoxia economics, construirsubstantiva politica de promocao do mercado interno voltado aosmenos favorecidos, a qual, somada a manutencao da estabilidade,corresponde a nada rnais nada rnenos que a realizacao de urn corn-pleto prograrna de classe (ou fracao de dasse, para ser exato). Nao 0

da classe trabalhadora organizada, cujo movimento iniciado nofinal da decada de 1970 tinha por bandeira a "ruptura com 0 atualmodelo economico"," mas 0 da fracao de classe que Paul Singer

58. Idem, p. 15.

76

chamou de "subproletariado" ao analisar a estrutura social doBrasil no comeco dos anos 1980.

Subproletarios sao aqueles que "oferecern a sua forca de tra-balho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri--la por urn preco que assegure sua reproducao em condicoesnormals";" Estao nessa categoria "empregados domesticos, assa-lariados de pequenos produtores diretos e trabalhadores destitui-dos das condicoes minimas de participacao na luta de classes","Para encontrar uma maneira de quantifica-los, Singer usou infor-macoes sobre ocupacao e renda fornecidas pelo Pnad de 1976,concluindo que seria razoavel considerar subproletarios os quetinham renda de ate urn salario minimo per capita e meta de dosque tinham renda de ate dois salaries minimos per capita," Deacordo com esse criterio, 63% do proletariado era, na realidade,composto de subproletarios." Em numeros absolutos, significavadizer que, dos 29,5 milhoes de proletarios existentes no Brasil na-quela epoca, 18,6 milhoes faziam parte da fracao subproletaria dadasse. Dos outros participantes da populacao economicamenteativa (PEA), 8 milhoes seriam pequeno-burgueses e 1,3 milhaoburgueses." Em outras palavras, 0 subproletariado constituia48% daPEA.

Apesar de nao se dispor de uma atualizacao para 0 trabalhorealizado por Paul Singer, a 16gica permite supor que os processosde aumento da produtividade, desindustrializacao, desempregoestrutural, subemprego, precarizacao do trabalho em geral e cres-cimento da pobreza que acompanharam a implantacao do neoli-

59. Paul Singer, Dominaplo e desigualdade, p. 22.60. Idem, ibidem, p. 83.61. Idem, p. 86.62. Idem, p. 129.63. Idem, p. 108.

77

Page 40: Os Sentidos Do Lulismo

beralismo nos anos 1990 tenham, no rninimo, mantido a propor-r;:aode subproletarios na sociedade. Oliveira vai nessa direcao emtexto originalmente publicado em 2003, no qual afirma que "0

trabalho sern-forrnas inclui mais de 50% da forca de trabalho, e 0desemprego aberto saltou de 4% no-corneco dos anos 1990 para8% em 2002, segundo a metodologia conservadora do IBGE; entreo desemprego e 0 trabalho sem-forrnas, transita, entre 0 azar e asorte, 60% da forca de trabalho brasileira"." Cumpre lembrarque, em 1980,44% das familias no Brasil tinham renda de ate do issalaries minimos" e, urn quarto de seculo depois, 47% do eleito-rado estava na mesma faixa de renda."

Dado 0 seu tamanho, 0 subproletariado encontra-se no cen-tro da equacao eleitoral brasileira, e 0 coracao do subproletariadoesta no Nordeste. Nao somente porque na regiao empobrecida,que e a segunda mais populosa do pais, habita boa parte dos sub-proletarios, mas porque dela irradiam os subproletarios que bus-cam oportunidade no centro capitalista, que e 0 Sudeste. Nuclea-do no Nordeste, onde Lula conta com elementos biograficos, masestendendo-se para 0 conjunto no pais, 0 lulismo, segundo indi-cam os dados eleitorais de 2006 ~2010, fincou raizes no subprole-tariado brasileiro."

64. Francisco de Oliveira, "Politica numa era de indeterrninacao: opacidade eencantamento", em F. de Oliveira e C..Rizek (orgs.), A era da tndeterminaciio,p. 34. Na arguicao da minha tese, Oliveira recJamou da frouxidao do conccitode subproletariado para caracterizar uma fracao de cJasse. Possivelmente estejacerto, po is se trata de uma primeira aproximacao que aguarda novas pesquisaspara melhor elaboracao.65. Paul Singer, Reparticao da renda, p. 42.66. "Segundo 0 Datafolha, os eleitores com renda de ate do is salarios minimosrepresentam 47% do total", publicou a Folha de SPaulo em 8 out. 2006.67. Ver no capitulo 4 os dados referentes a eleicao de 2010, que confirmaram 0

enraizamento do luJismo no subproletariado, especialmente no Nordeste.

78

E AGORA, JOSE?

•••••••••••••••••••••••t•I••,

A persistencia do que poderiamos chamar de "conservado-rismo popular" marca a distribuicao das preferencias ideol6gicasno Brasil pos-redemocratizacao, com a dire ita reunindo quasesempre cerca de 50% mais eleitores do que a esquerda (quadro 1).Venturi mostra que a pendencia para a direita do eleitorado demenor escolaridade (que esta associada a renda), ja observada em1989, continuava presente quase duas decadas depois." Em 2006,enquanto os eleitores de escolaridade superior se dividiam porigual entre a esquerda (posicoes 1 e 2 = 31%),0 centro (posicoes 3,4 e 5 = 32%) e a direita (posicoes 6 e 6 = 31%), entre os que fre-quentaram ate a quarta serie do ensino fundamental a direita ti-nha 44% de preferencia, quase 0 triplo de adesao que tinha a es-querda (16%) eo centro (15%).69 A conclusao de Venturi e que,"passadas mais de duas decadas de democracia, a construcao deuma hegemonia politico-cultural identificada como de esquerdanao avancou","

Em outras palavras, apesar do sucesso do PT e da CUT, a es-querda nao foi ~apaz de dar a direcao ao subproletariado, fracaode classe particularmente dificil de organizar. 0 subproletariado,a menos que atraido por propostas como a do Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tende a ser politicamenteconstituido desde cima, como observou Marx a respeito dos earn-poneses da Pranca em 1848. Atomizados pela sua insercao no sis-tema produtivo, ligada ao trabalho informal intermitente, comperiodos de desemprego, necessitam de alguern que possa, desde 0

68. Gustavo Venturi, "Esquerda ou direitai", Teoria e Debate, n. 75, jan.lfev. 2008,p.39.69. Idem, ibidem.70. Idem.

79

Page 41: Os Sentidos Do Lulismo

alto, receber e refletir as suas aspiracoes dispersas. Na ausencia deavanco da esquerda nessa seara, 0 primeiro mandato de Lula ter-minou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado,amoldando-se a ele, mais que 0 modelando, e, ao mesmo tempo,fazendo dele uma base politica autonoma, E isso que obriga a es-querda a se reposicionar.

A emergencia do lulismo tornou necessario, tambem, 0 repo-sicionamento dos demais segmentos politico-ideologicos. 0 dis-curso de Lula em defesa da estabilidade tirou a plataforma a partirda qual a direita mobilizava os mais pobres, sobrando-lhe apenaso recurso as denuncias de corrupcao, assunto limitado a classemedia. 0 aumento dos votos para Lula a direita, como se podeverificar na cornparacao entre as tabelas 5 e 6 do Apendice, res-tringe praticamente ao centro a base da oposicao. Diante da difi-culdade de ganhar eleicoes presidenciais s6 com a classe media, osoposicionistas precisam, de algum modo, se aproximar do lulis-mo, como se comprova pelo discurso da campanha presidencialdo PSDB em 2010 e pela criacao do Partido Social Democratico(PSD) em abril de 2011.

Em 2002, embora os Indices de Lula fossem maio res em to-dos os segmentos ideol6gicos, a situacao permanecia como em1989: 0 crescimento da intencao de voto no candidato do PT sedava conforme se ia da direita para a esquerda. Em situacao dessetipo, 0 centro ainda tinha chances de recuperar, adiante, 0 eleito-rado popular de dire ita e sonhar com a volta ao Planalto, sobretu-do se a ordem viesse a estar ameacada. Note-se que, dada a exis-tencia de uma "direita popular", 0 centro e a posicao maisassociada a classe media conservadora no Brasil, e nao a direita."Em 2006, como reflexo do deslo earnen to de classe, 0 voto em Lulaaumenta em direcao aos extremos, tanto esquerdo quanta direi-

71. VerAndre Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro, pp. 177-84.

80

to, e cai ao centro (tabela 6 do Apendice). 0 fato de Lula recebervotos a esquerda e a direita de modo equivalente deixa em mino-ria a alternativa de classe media, organizada em torno de formu-lacao centrista.

Para a esquerda, isso impoe a tarefa de redefinir 0 discurso asombra de uma lideranca popular no sentido pleno da palavra eter que se defrontar com 0 retorno de imagens que marcaram aera Vargas. Esta certo Oliveira quando afirma que ha "urn fenome-no novo" em curso, que "nao e nada parecido com qualquer daspraticas de dorninacao exercidas ao longo da existencia doBrasil?" (embora nao seja a "hegemonia as avessas', e sim umaefetiva representacao do subproletariado). Mas ha sintomas deque, como s6i acontecer na hist6ria, 0 recern-nascido busque nopass ado a linguagem para se expressar, como aponta Marx nosparagrafos iniciais de 0 18Brumario.

o popular que havia ficado fora de moda, seja pela.ret6ricaneoliberal, ao centro, seja pelo conteudo de classe, a esquerda, estade volta. Diferentemente da experiencia peessedebista, 0 "Real doLula" veio acompanhado de mensagem que faz sentido para osmais pobres: a de que pela primeira vez 0 Estado brasileiro olhapara eles, os deserdados, e, portanto, se popularizou. Eis 0motivode 0 ex-presidente insistir que "nunca na hist6ria deste pais ...': Ir-

. ritados, os supostos "formadores de opiniao" nao percebem queLula nao esta se dirigindo a eles e martelam a tecla de que a hist6-ria nao cornecou com Lula, 0 que e verdade. Contudo, ouvido va-rIOS degraus abaixo, 0 bordao adquire sentido distinto: Nunca nahistoria dos mais humildes o Estado olhou tanto para eles.

o relativo des interesse de Lula pelos "formadores de opiniao"significa que 0 deslocamento de classe tirou centralidade dos es-

72. Francisco de Oliveira, "Hegernonia as avessas", em F.de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 25.

81

Page 42: Os Sentidos Do Lulismo

tratos medics, que eram importantes no alinhamento anterior.Nele, a esquerda organizava 0 proletariado e segmentos da "classemedia", notadamente servidores publicos, em torno de uma ideo-logia de esquerda, isto e, do discurso classista. 0 centro agregavaas "classes medias" privadas ao redor da modernizacao do capita-lismo, e a direita mobilizava 0 subproletariado contra a esquerdanos momentos cruciais. 0 conflito politico geral era filtrado pelodebate entre os setores ilustrados. "

A medida que passou a ser sustentado pela camada subprole-taria, Lula obteve autonomia similar a que Luis Bonaparte adqui-riu com a subita adesao dos camponeses em 10 de dezembro de1848.73 Com ela, Lula cria urn ponto de fuga para a luta de classes,que passa, sobretudo no segundo mandato (ver capitulo 3), a serarbitrada desde cima, ao sabor da correlacao de forcas, Se a refor-ma da Previdencia, que tirava beneficios do servidor publico e fa-zia parte do programa do capital, foi aprovada, a reforma traba-lhista, que visava tirar direitos dos assalariados, foi adiada sine die,e assim por diante.

[uiz acima das classes, 0 lulismo nao precis a afirmar que 0

povo alcancou 0 poder ou que.os dominados "cornandam a poli-tica", como na forrnulacao que Oliveira foi buscar na Africa do Suip6s-apartheid.74 Ao incorporar pontos de vista tanto conservado-res, principalmente 0 de que a conquista da igualdade nao requerurn movimento de classe auto-organizado que rompa a orderncapitalista, quanto progressistas, a saber, 0 de que urn Estado for-talecido tern 0 dever de proteger os mais pobres independente-

73. Na Introducao mencionamos os .pontos de 0 18 Brumario, de Marx, quesao aplicaveis ao lulismo. No capitulo 3 retomamos a ideia de solucao arbitral,utilizada por Gramsci.74. Francisco de Oliveira, "Hegernonia as avessas', em F.de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p,,26.

82

mente do desejo do capital, ele achou em slmbolos dos anos 1950. a gramatica necessaria para a sua construcao ideol6gica. A velhanocao de que 0 conflito entre urn Estado popular e elites antipovose sobrepoe a todos os demais cai como uma luva para urn perio-do em que a polaridade esquerda/direita foi empurrada para 0

fundo do palco. Enunciado por urn nordestino saido das entra-nhas do subproletariado, 0 discurso popular ganha uma legitimi-dade que talvez nao tenha tido na boca de estancieiros gauchos.Nao espanta que 0 debate sobre 0 populismo tenha ressurgido dascamadas pre-sal anteriores a 1964, onde parecia destin ado a dor-mir para sempre.

~••~;:,~

~

~

i~

~

~

83

Page 43: Os Sentidos Do Lulismo

••••••IIt••••••ItItIt•It•ItIt•t••It•ItIt•ItIta

2. A segunda alma do Partido dosTrabalhadores'

o conflito de duas almas num mesmo peito provavelmente naoerafticil para nenhum de nos.Konrad Haenisch, sobre 0 Partido Social- Democrata da Ale-

manha ao votar os creditos de guerra, em agosto de 19142

A transforrnacao do Partido dos Trabalhadores (PT) salta avista daqueles que, por diferentes motivos, acompanham 0 per-curso da agrerniacao fundada em fevereiro de 1980 no ColegioSion,' em Sao Paulo. Militantes percebem, dia a dia, que antigaspraticas ja nao vigoram, cedendo 0 lugar a condutas inusitadaspelos criterios de antes. Jornalistas acostumados aos vaivens da

1.Versao bastante modificada de artigo com 0mesmo titulo publicado em NovosEstudos, n. 88, dez. 2010, pp. 89-111.2. Citado em Carl Schorske, German Social Democracy (1905-1917), p. 290. Tra-

ducao minha.3. Funcionando em Sao Paulo desde 1901, a escola da Congregacao Nossa Se-nhora do Sion e das mais tradicionais da cidade. A sede do colegio, no tamberntradicional bairro de Higien6polis,abrigou a reuniao fundadora do PT.

84

politica brasileira com frequencia assinalam 0 contraste entre 0

passado e 0 presente do partido. A literatura academica se esforcapor dar conta do sentido das mudancas que 0 PT atravessa. Enten-der os rumos petistas tornou-se urn dos assuntos prediletos dodebate informado no Brasil desde que Lula chegou a Presidenciada Republica.

A dificuldade esta em, como escreveu sobre outro tema Gil-do Brandao, tratar-se de materia rebelde.' Quando parece fixar--se uma forma - por exemplo, a de grupo pragrnatico -, eisque surge a sombra da velha ideologia na diretriz para 0 progra-ma presidencial de 2010. Quando se pensa divisar a passagempara 0 lado da ordem capitalista, umcongresso partidario reafir-ma, por unanimidade, a conviccao socialista. Afinal, para ondevai 0 PT?

No que concerne as pesquisas universitarias, podem-se dis-tinguir quatro macro-orientacoes (sem atentar aos aspec~os espe-cificos que singularizam cada contribuicao). A primeira aborda acrescente moderacao do discurso. Com tonalidades diversas, adepender da inclinacao do autor, urn conjunto de trabalhos notaque 0 PT nao pretende mais revolucionar a sociedade.' Uma se-gunda vertente concentra-se na passagem de partido acentuada-mente ideol6gico, com insercao eleitoral marcada por tal trace,para legenda com acento maximizador, isto e, disposta a qualquer

4.Aos que acompanharam a trajet6ria de Gildo Marcal Brandao, saudoso colegado Departamento de Ciencia Politica da Universidade de Sao Paulo, nao escaparaque 0 titulo deste capitulo alude tambem ao subtitulo do seu livro A esquerdapositiva. As duas almas do Partido Comunista, 1920/1964.5. Ver Oswaldo E. do Amaral, A estrela nao e mais vermelha; David Samuels,"From socialism to social democracy", Comparative Political Studies, vol. 37, n. 9,2004; Antonio Ozai da Silva, "Nern reforma nem revolucao: a estre1a e branca",em V.A. de Angelo e M. A. Villa (orgs.), 0 Partido dos Trabalhadores e a politicabrasileira (1980-2006).

85

Page 44: Os Sentidos Do Lulismo

tipo de alianca para conseguir votes." Em terceiro estao os queapontam para 0 enfraquecimento do vinculo com os movimentossociais e uma paralela insercao estatal privilegiada. Ainda na linhade fechamento dos canais de participacao, e olhando para a orga-nizacao interna, indicam a transicao de estrutura na qual a mili-tan cia tinha peso - com a existencia de nucleos por locais detrabalho e contribuicao financeira dos membros - para uma emque a cupula profissionalizada ten de a dar as cartas e 0 financia-mento e externo,? Por fim, encontram-se os textos acadernicosque salientam 0 cambio na origem social dos simpatizantes, comintensa popularizacao das fontes de apoio."

Em que pese 0 interesse da ciencia politica no PT ter propicia-do urn painel rico e nuancado, captando variados matizes da sagapetista, 0 que se completa por meio de producao que busca rela-ciona-la a elementos de natureza estrutural na sociedade bra-sileira,? restam perguntas no ar, como a que ressoa num dos titulos

6. Ver Wendy Hunter, "The normalization of an anomaly, the worker's party inBrazil': World Politics, vol. 59, abr. 2007; idem, "The Partido dos Trabalhadores:still a party of the left?", em P.R.Kingstone e T.J. Power (orgs.), Democratic Brazilrevisited.7.Ver Pedro Floriano Ribeiro, "0 PT, 0 Estado e a sociedade'; e David Samuels, "Ademocracia brasileira sob 0 governo de Lula e do PT", ambos em V.A. de Angelo.eM. A.Villa (orgs.), 0 Partido dos Trabalhadores e a politica brasileira (1980-2006).8. Ver Luciana Fernandes Veiga, "Os partidos brasileiros na perspectiva dos elei-tores: mudancas e continuidades na identificacao partidaria e na avaliacao dasprincipais legendas ap6s 2002", Opiniao Publica, vol. 13, n. 2, novo2007; GustavoVenturi, "PT 30 anos: crescimento e mudancas na preferencia partidaria, impactonas eleicoes de 2010", Perseu, n. 5, segundo semestre 2010.9. Ver Francisco de Oliveira, "Polltica numa era de indeterrninacao: opacidadee reencantamento" e "0 momenta Lenin", em F. de Oliveira e C. Rizek (orgs.),A era da indeterminaiiio; Juarez Guirnaraes, A esperania critica; Carlos Henri-que Goulart Arabe, "Desenvolvimento nacional e poder politico, 0 projeto doPartido dos Trabalhadores em urn periodo de crise", dissertacao de mestrado,Campinas, Unicarnp, 1998.

86

acima mencionados: "0 Partido dos Trabalhadores: ainda urnpartido de esquerda?". Munido das devidas cautelas, este capituloprocura desenvolver urn raciocinio em tres etapas. Na primeira,conta-se a trajet6ria da agrerniacao vincada pela conexao entreclassee postura radical ate a emergencia, na campanha de 2002, dasegunda alma, que, ao tornar-se dominante, arquivou 0 radicalis-mo de origem. A diferenca desta analise, comparada a anteriores,reside sobretudo na periodizacao adotada e na caracterizacao doconteudo envolvido no movimento de moderacao, No segundopasso, relata-se 0 processo de popularizacao do PT que ve surgir,sociologicamente, uma especie de "partido dos pobres", conformeantecipou Fabio Wanderley Reis em entrevista publicada em ou-tubro de 2004,10 com caracteristicas que lembram as do PTB ante-rior a 1964. Por fim, no terceiro movimento, argumenta-se que,embora a segunda alma tenha sido amplamente reforcada pelapopularizacao recern-analisada, 0 partido nao se desfez da sua alaesquerda, sugerindo a hip6tese de que os man datos de Lula te-nham representado sintese, ad hoc, das duas almas.

AS DUAS ALMAS

:•I•••••••t•41•41•4141•4tI41il

o espirito do Sion

Vindo a luz na crista da onda democratica que varreu 0Brasilda segunda metade dos anos 1970 ate 0 fim dos 1980,0 PT foi em-balado pela aspiracao de que a volta ao estado de direito represen-tasse tambern urn reinicio do pais, como se fosse possivel comecardo zero, proclamando uma verdadeira Republica em lugar da

10. Rafael Cariello, "PT e PSDB fazem polarizacao de pobres e ricos, diz analista",Folha de S.Paulo, 8 out. 2004. ,

87

Page 45: Os Sentidos Do Lulismo

"

"falsa" prornulgada em 1889. Sob 0 signo da "nova sociabilidade" I I

forjada na oposicao a ditadura, a proposta de fundacao do parti-do, aprovada em Congresso dos Metahirgicos (janeiro de 1979),falava em criar urn partido "sem patroes", que nao fosse "eleitorei-ro" e que organizasse e mobilizasse "os trabalhadores na luta porsuas reivindicacoes e pela construcao de uma sociedade justa, semexplorados e exploradores"," expressao que significava, na epoca,uma referencia cifrada a socialismo.

o carater radical do partido, que fazia desse trace elementodiferenciador numa cultura politica tingida pela ambiguidade epela conciliacao de elites, tinha 0 sentido de negar as limitacoesdas fases anteriores. Nao poderei desenvolver aqui, mas desconfioque tal radicalismo esteja vinculado a tradicao que Antonio Can-dido afirmou ser "essencialmente urn fen6meno ligado as classesmedias"," 0 importante e que nao se entendera 0 significado davirada ocorrida em 2002 sem que se leve em conta a origem radi-cal do PT. Conforme Angelo Panebianco, "poucos aspectos da fi-sionomia atual e das tensoes que se desenvolvem diante dos nossosolhos em tantas organizacoes parecem compreensiveis se nao seretroceder a sua fase constitutiva","

Cabe recordar que 0 pr6prio golpe de 1964 abriu periodo deradicalizacao na historia brasileira. Na area cultural, em particu-lar, como mostra Roberto Schwarz, IS a derrubada do governoIoao Goulart ensejou inesperado crescimento da esquerda, 0 qual

11. Francisco de Oliveira, "Politica numa era de indeterminacao: opacidade e en-cantamento", em F.de Oliveira e C. Rizek (orgs.), A era da indeterminafllo, p. 20.12. Diret6rio Nacional do PT, Reso/ufoes de Encontros e Congresses; Sao Paulo,Fundacao Perseu Abramo, 1998, p. 48.13.Antonio Candido, Vdrios escritos, p. 196.14.Angelo Panebianco, Modelos de partido, p. xvii.15. Roberto Schwarz, "Culture e polltica, 1964-1969", em R. Schwarz, 0 pai defamilia e outros estudos.

88

durou pelo menos ate a edicao do AI-5 (dezembro de 1968). Entreas teses em yoga na esquerda da epoca, estava a de que na Republi-ca de 1946 a tentativa de alianca do "povo" com a burguesia nacio-nal teria prejudicado a nitidez da perspectiva de classe. Nessa vi-sao, a concepcao etapista difundida pela esquerda tradicional"atrapalhou os subalternos, que ficaram desorganizados diante daofensiva da direita militar, apoiada pelos empresarios, em 1964,deixando cair, como urn castelo de cartas, os projetos de emanci-pacao acalentados sob a protecao do populismo.

Segundo Francisco Weffort, una adesao das massas ao popu-lismo tende necessariamente a obscurecer-se a divisao real da socie-dade em classes com interesses sociais conflitivos e a estabelecer-se aideia do povo (ou da Nacao) entendido como uma comunidade deinteresses solidarios"," A critica ao populismo e ao Partido Cornu-nista Brasileiro (PCB) passou a ser comum na intelectualidade deesquerda e acabou levada aos foros de fundacao do gr; (1980),quando a abertura trouxe de volta algo da efervescencia universi-taria reprimida em 1968. Nao por acaso, Weffort tornou-se, pormuitos anos, secretario-geral do PT, 0 segundo homem, ap6s Lula,na hierarquia do partido recern-fundado.

A radicalizacao havia atingido tambern 0 meio cat6lico, 0

qual desenvolveu, nos intersticios da repressao, extensa rede deorganismos populares, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBS),ainda durante a vigencia da ditadura. Iniciada a transicao para a

16."Segundo esse esquema, a humanidade em geral e cada pais em particular-o Brasil naturalmente ai incluido - haveriam necessariamente que passar atra-ves de estados ou estagios sucessivos de que as eta pas a considerar, e anterioresao socialismo, seriam 0 feudalismo e 0 capitalismo"; Caio Prado Ir., A revolufaobrasileira, pp. 38-9. De acordo com essa visao, a etapa brasileira daquele momen-to era de passagem do feudalismo para 0 capitalismo, 0 que excluia qualqueriniciativa pelo socialismo.17. Francisco Weffort, 0populismo na politica brasileira, p. 159.

89

Page 46: Os Sentidos Do Lulismo

democracia, as CEBS, imbuidas de uma perspectiva critica ao capi-talismo, tiveram destaque na conforrnacao do PT. Foi crucial 0

papel exercido pelo cristianismo como fonte do sentimento radi-cal que caracterizou 0 espirito a que, nao por acaso, estou cha-mando "do Sion".

o terceiro e mais decisivo Jrontforam os sindicatos de traba-Ihadores que cresceram nos recessos da ditadura, representando,em parte, camada operaria recente, advinda do "milagre" econo-mico, os quais propunham ruptura com 0 velho sindicalismo doperiodo populista. Com 0 vigor tipico dos gestos inaugurais, 0

"novo sindicalismo" pregava a liberdade sindical e a revogacao dalegislacao varguista que, segundo se dizia, inspirada no fascismoitaliano, atrelava 0 movimento operario ao Estado.

A confluencia das tres vertentes produziu rara associacao depensamento radical com amplos estratos da sociedade, comohavia ocorrido na Europa urn seculo antes, quando a extensa pe-netracao de ideais socialistas marcou 0 fim do seculo XIX e inicio .do xx. A singularidade brasileira foi anotada por Perry Anderson,para quem 0 PT constituiu 0 unico partido de trabalhadores demassas criado no planeta depois da Segunda Guerra Mundial. 18

Cercado pela atmosfera euf6rica da redernocratizacao, sobretudoa partir das greves que eclodiram em 1978 no ABC paulista, 0 PT

despertou a atencao do mundo. Compreende-se: quando emoutras partes do planeta a reacao neoliberal comecava a desmon-tar 0 que fora construido no pos-guerra, no Brasil greves de mas-sa pareciam civilizar 0 que Rosa Luxemburgo chamou de as"formas barbaras de exploracao capitalista". Conviria, tambem,comparar a trajet6ria do PT com a do PSOE, refundado em 1976.0programa espanhol falava em "partido de classe com carater de

18. Perry Anderson, "Jottings on the conjuncture", New Left Review, n. 48, nov.!dez. 2007, p. 23.

90

massas, marxista e dernocratico", rejeitava "qualquer caminho deacomodacao ao capitalismo" e visava "a assuncao do poder eco-nomico e politico, e a socializacao dos meios de producao, distri-buicao e troca pela classe trabalhadora"," Eduardo G. Noronhaaponta a existencia de varies fatores comuns as transicoes na Es-panha e no Brasil: longo periodo autoritario, transicao sob criseeconornica e "economias complexas e recem-saidas de booms

•~•••economicos","

o PT soube cultivar 0 terreno aberto pela classe trabalhadora.Da cultura participativa aos direitos cidadaos da Constituicao de1988,0 partido cumpriu papel hist6rico semelhante ao desempe-nhado por socialistas europeus, a saber, 0 de generalizar "dimen-soes fundamentais da igualdade"!' 0 discurso voltado "a organiza-yao de classe num sentido estrito?" obteve exito entre ostrabalhadores industriais, nas categorias em expansao do setor deservices, como bancarios e professores, entre os funcionarios pu-blicos e, ate mesmo, junto ao universo agrario, tao duramente cer-ceado pelo coronelismo. A militancia entusiasmada e a autentici-cladedas propostas fizeram do PT experiencia aberta a participacao.Fraco do prisma eleitoral, embora em crescimento permanente,extraia vigor de ser a voz de forcas sociais vivas, enquanto estas ti-veram energia para avancar,

Falando por esse movimento social, 0 partido se propos acombater, mesmo que isolado, os vicios e arcaismos do patrimo-nialismo nacional. Em nome dele, recusou-se a sufragar Tancredo

19.Ver, a respeito, Patrick Carniller, "Espanha: sobrevivencia do socialismo', emP.Anderson e P. Camiller (orgs.), Um mapa da esquerda na Europa Ocidental,p.1l6.20. Eduardo G. Noronha, "Cicio de greves, transicao politica e estabilizacao:Brasil, 1987-2007", Lua Nova, n. 76,2009, pp. 119-68.21. Jesse Souza, A constru~ao social da subcidadania, p. 166.22. Francisco de Oliveira, Colier, a falsifica~ao da ita, p. 24.

91

Page 47: Os Sentidos Do Lulismo

Neves no Colegio Eleitoral (1985), arcando com 0 onus de frag-men tar a frente antiditadura; decidiu nao votar a favor da Consti-tuicao de 1988, apesar de seus aspectos altamente progressistas,em beneficio de urn projeto ainda mais avancado: recusou 0 apoiodesinteressado do PM DB no segundo turno de 1989,0 qual poderiater significado a vit6ria de Lula.A medida que expressava impulsosocial florescente, 0 radicalismo do PT acabou por influenciar aredernocratizacao brasileira, deixando vestigios nos avances da-quela primavera. 0 reconhecimento de direitos fundamentaispara a classe trabalhadora, como a "educacao, a saude, 0 trabalho"

\ .

(artigo 62 da Constituicao), e de institutos de participacao direta(plebiscito, referendo e iniciativa popular, previstos no artigo 14)e urn dos resultados da decada das greves (1978-88).0 PT, nosanos 1980, contribuiu para que, como na Espanha e Portugal nadecada anterior, aspiracoes longamente represadas emergisserncom potencia suficiente para deslocar opendulo da trajet6ria na-cional. Segundo Noronha, "a conjuncao de fatores favoraveis aeclosao de greves verificada no Brasil dos anos 1980 s6 encontraparalelo em paises que passaram por transicoes politicas nas deca-das de 1970 e 1980".23

A derrota da Frente Brasil Popular, em 1989, inicia, entre-tanto, a restauracao, Os governos seguintes buscaram emendara Constituicao recem-prornulgada, de modo a retirar os direitosaprovados e dar conteudo neoliberal 11 democracia em constru-cao, Com a derrubada das barreiras protecionistas, a recessao,o desemprego, a quebra das cadeias produtivas, Collor, e depoisFernando Henrique Cardoso, demoliram as fundacoes da ondadernocratica, e vasta parcela da classe trabalhadora "virou suco"(leia-se: caiu na "sobrepopulacao trabalhadora superempobrecida

23. Eduardo G. Noronha, "Cicio de greves, transicao politica e estabilizacao:Brasil, 1987-2007", Lua Nova, n. 76,2009, pp. 123-4.

92

-

perrnanente")." Em decorrencia, os sindicatos recuaram. 0 mi-mero de greves despencou da media anual de 1102 entre 1985 e1989 para 440 entre 1999 e 2002.25Nao obstante 0 impedimentode Collor em 1992,0 avanco neoliberal prosseguiu atraves dos do isgovernos de Cardoso. Vencedor das eleicoes no primeiro turno em1994e 1998, e sustentado por ampla coalizao de centro-direita, FHC

realizaria de maneira s6lida e organizada 0 programa vitorioso em1989:ajustar 0 pais ao neoliberalismo, desfazendo as conquistas doperiodo anterior. Nesse percurso complexo, aqui altamente resu-mido, dois pontos merecem ser destacados. A derrota da greve dospetroleiros em 1995, que partiu a espinba do combalido movimen-to sindical, e a elevacao do desemprego, a partir de 1996, que tevenitida incidencia sobre 0 declinio das greves."

No plano ideol6gico, a queda do Muro de Bedim, ainda quelibertadora para a esquerda dernocratica, somou-se 11 reacao inter-na, fazendo dos anos 1990 momento de avanc;:odos valores capita-listas. Reconhecendo que 0 quadro havia se transformado, 0 I

Congresso do PT, em 1991, elabora estrategia que busca ampliar 0espac;:opara a luta institucional, uma vez que 0 movimento socialentrara em descenso. "0 PT situa-se, hoje, num terreno mais vastoe complexo da luta de classes. Questoes como a combinacao daluta de massas com acao de governo [...] apresentam-se como ta-refas imediatas"," afirma 0 texto aprovado na ocasiao.

Mas 0 problema de fundo nao podia ser resolvido por meiode resolucoes congressuais. Com? enfrentar a mare montante dacontraofensiva burguesa, quando as condicoes objetivas determi-

24.Ver nota 25 na p. 18.25. Eduardo G. Noronha, "Cicio de greves, transicao politic a e estabilizacao:Brasil, 1987-2007", Lua Nova, n. 76, 2009; p. 126.26. Idem, ibidem, p. 135.27. Diret6rio Nacional do PT, Resolufoes de Encontros e Congressos, Sao Paulo,Fundacao Perseu Abramo, 1998, p. 517.

93

Page 48: Os Sentidos Do Lulismo

nadas pela conjuntura internacional e nacional eram tao desfavo-raveis? As dificuldades praticas da tarefa podem ser capturadas naanalise das campanhas presidenciais de 1994 e 1998, realizada porJorge Almeida." Na primeira oportunidade, diz Almeida, "0 en-frentamento da questao do Plano Real foi marcado por uma suces-sao de indecisoes que acabavam sendo percebidas pela populacao"Na segunda, transmitia-se "inseguranca e incerteza, sobretudo emrelacao ao programa de FHe':

Privado da forca motriz dos anos 1980,0 PT procura afiancar--se no plano institucional, 0 que implicava buscar aliancas. 0 in-teressante e que 0 carater crescentemente eleitoral do partido, queaparece em 1998 sob a forma de uma associacao com 0 PDT quequase custou a extincao do PT no Rio de Janeiro, nao foi acompa-nhado de revisao programatica, 0 encontro nacional de 1998, porexemplo, propunha a "implementac;:ao de urn programa radical dereformas" que contribuira "para a refundacao de uma perspectivasocialista no pais': 29 Pode-se dizer, talvez, que os anos 1990 repre-sentaram a passagem de urn partido de tipo ideol6gico, cujo an-seio por votos se subordina ao carater doutrinario da campanha,para urn partido responsavel, que busca maximizar votos, masnao altera 0 seu programa com vistas a iSSO.30

28. Ver Jorge Almeida, Como vota a brasileiro, p. 144, e Marketing politico, hege-mania e contra-hegemonia, p. 188.29. Diret6rio Nacional do PT, Resolucses de Encontros ~ Congressos, Sao Paulo,Fundacao PerseuAbramo, 1998, p. 675.

30. A tipologia aqui utilizada e a de Giovanni Sartori. De acordo com 0 autoritaliano, haveria cinco tipos de partido: "(i) partidos de testemunho, que naoestao interessados em maximizar votos; (ii) partidos ideologicos, interessadosem votos principalmente pela doutrinacao; (iii) partidos responsaveis, que naosubmetem suas politicas e seus programas a obtencao de mais votos; (iv) partidossensiveis, para os quais ganhar eleicoes ou maximizar os votos tern prioridade; e,finalmente, (v) partidos puramente demag6gicos, irresponsaveis, que SaD apenasmaxirnizadores de votes": G. Sartori, Partidos e sb"temasparridarios, p. 357.

~

=Apesar de fazer concessoes eleitorais, 0 PT continuou a ser urn

vetor de polarizacao. As diretrizes aprovadas em dezembro de2001 afirrnavam: "A implernentacao do nosso programa de gover-no para 0 Brasil, de carater democratico e popular, representara aruptura com 0 atual modelo econornico, fundado na abertura edesregulacao radicais da economia nacional e na consequente su-bordinacao de sua din arnica aos interesses e humores do capitalfinanceiro globalizado" (grifo meu). Sem abrir rnao da perspectivade dasse, 0 partido foi relevante para a maior iniciativa anticapita-lista do inicio do seculo XXI: 0 F6rum Social Mundial (2001), naopor coincidencia inaugurado na capital do Rio Grande do SuI, 0estado mais importante govern ado pelo PT na epoca. E que entre 0

esplrito de Porto Alegre" eo do Sionhavia continuidade eviden-te: ambos expressavam insatisfacao com 0 mundo organizado emoldado pelo capital.

I

io espirito do Anhembi

Se existe urn momenta especifico que simboliza a irrupcaoda segunda alma do PT, acredito ter sido 0 da divulgacao da "Cartaao Povo Brasileiro", em 22 de junho de 2002. E 6bvio que houvelonga gestacao anterior, e seus fios podem ser rastreados, no mini-mo, ate a derrota de 1989, cuja hist6ria foge aos objetivos destecapitulo. Mas a silenciosa criatura veio a luz somente quando seiniciava a campanha de 2002 e, em nome da vit6ria, se impos comfacilidade surpreendente. Nao ocorreu 0 vagaroso confronto quepor anos protagonizaram as alas esquerda e direita da social-de-mocracia alema.ate que, na data fatal de 4 de agosto de 1914,0espirito pragmatico tomou conta da organizacao fundada sob os

31.Referencia ao titulo do volume editado por Isabel Loureiro, Jose Correa LeiteeMaria Elisa Cevasco (orgs.), 0 espirito de Porto Alegre.

-,

95

Page 49: Os Sentidos Do Lulismo

••

auspicios do intemacionalismo proletario de Marx e Engels, apro-vando os famigerados creditos para a participacao da Alemanhana Primeira Guerra Mundial.

Quando 0 comite de Lula decidiu comprometer-se com asexigencies do capital, cujo pavor de suposto prejuizo a seus inte-resses com a previsivel vit6ria da esquerda levava a instabilidadenos mercados financeiros, foi dado 0 sinal de que 0 velho radica-lismo petista tinha sido, no minimo, suspenso. Mas poucos foramos que entenderam 0 simbolismo do gesto. De inicio, pareceuapenas uma decisao de campanha, mesmo que urn mes depois 0

Diret6rio Nacional, reunido no centro de convencoes do Anhem-bi, em Sao Paulo, tenha aprovado, contra 0 desejo de parcelas daesquerda partidaria, as propostas antecipadas pela carta, transfor-man do-as em orientacoes oficiais.

No programa da Coligacao Lula Presidente, divulgado no fi-nal de julho de 2002,Mperceptivel cambio de tom em relacao aocapital. Em lugar do confronto com os "humores do capital finan-ceiro globalizado",32 que havia sido aprovado em dezembro de2001,0 documento afirmava que "0 Brasil nao deve prescindir dasempresas, da tecnologia e do capital estrangeiro". Para dar garan-tias aos ernpresarios, 0 texto assegurava que 0 futuro govemo iria"preservar 0 superavit primario 0 quanto for necessario, de ma-neira a nao permitir que ocorra urn aumento da divida interna emrelacao ao PIB, 0 que poderia destruir a confianca na capacidade dogoverno cumprir os seus compromissos", seguindo pari passu 0

que fora anunciado na carta urn mes antes." Compromete-secom a "responsabilidade fiscal", com a "estabilidade das contas

32, Diret6rio Nacional do PT, Concepcao e diretrizes do programa de governo do PTpara 0 Brasil, Lula 2002, Sao Paulo, mar. 2002, p. 15.33, Coligacao Lula Presidente, Programa de governo 2002, Brasilia, 23 ju\. 2002,pp, 8 e 17.

96

publicas" e com "s6lidos fundamentos macroeconomicos" Sus-tenta que nao vai "romper contratos nem revogar regras estabele-cidas". Afinal, "governos, empresarios e trabalhadores terao de le-var adiante uma grande mobilizacao nacional', conclui."

A alma do Anhembi, expressa no programa "Lula 2002",compromete-se com a estabilidade e atira as propostas de mudan-ca radical ao esquecimento. Enquanto a alma do Sion, poucosmeses antes, insistia na necessidade de "operar uma efetiva ruptu-ra global com 0 modelo existente"," a do Anhembi toma comosuas as "conquistas" do periodo neoliberal: "a estabilidade e 0

controle das contas public as e da inflacao sao, como sempre fo-,ram, aspiracao de todos os brasileiros", afirrna."

Considerado por alguns uma "tatica" para facilitar a transi-cao, 0 ideario ali exposto compunha, na realidade, urn segundosistema de crencas, que passaria a residir definitivamente dentrodo peito do partido, lado a lado cpm 0 que 0 havia precedido, 0compromisso com a "estabilidad~ monetaria e responsabilidadefiscal" volta a comparecer no programa presidencial quatro anosdepois, e "a preservacao da estabilidade economica" continuavacomo diretriz, agora para 0 governo Dilma Rousseff, oito an osmais tarde." A defesa da ordem viera para ficar, e a direcao deci-dida no Anhembi se tornaria programa permanente. 0 que estava

34, Idem, pp, 17-8.35.Diret6rio Nacional do PT, Concepiao e diretrizes do programa de govetno do PTpara 0 Brasil, Lula 2002, Sao Paulo, mar. 2002, p. 27.36. Coligacao Lula Presidente, Programa de governo 2002, Brasilia, 23 jul, 2002,p. 18.Ver tarnbern, a respeito, Brasilio Sallum Jr. e Eduardo Kugelmas, "Sobre 0

modo Lula de governar", em B.Sallum Jr.,.Brasil eArgentina hoje.37. Para 2006, ver Coligacao A Forca do Povo, Lula presidente-Programa dego-verno 2007-2010, p. 6. Para 2010, ver rv Congresso do Partido dos Trabalhadores,Resolucoes sobre as diretrizes do programa de governo, 2011-2014, item 19a, em<www.pt.org.brc-.ccnsultado em 22 fev. 2010.

97

Page 50: Os Sentidos Do Lulismo

em jogo, na verdade, era 0 abandono da postura anticapitalistaque 0 partido adotara na fundacao.

Mudanca analoga ocorreu no campo da politica de aliancas.Enquanto a alma do Sion primava pela enfase ideol6gica, naoaceitando juntar-se sequer a partidos de centro, a do Anhembiaprovou chapa composta por Lula e urn grande ernpresario filiadoao Partido Liberal (PL), agrerniacao que levava no pr6prio nome aadesao ao credo oposto ao socialismo. Surgido por ocasiao daConstituinte para defender principios liberais, a PL foi considera-do, por cientistas politicos que estudaram 0 assuhto, como per-tencendo ao bloco da direita "com base em seu posicionamentorelativo nas votacoes nominais ocorridas durante a vigen cia doatual regime constitucional"." Embora a justificativa para a alian-ca com 0 PL fosse a presenca de Jose Alencar, note-se, lateralmente,que 0 vinculo evangelico do PL (rebatizado de Partido da Republi-ca - PR - ao fundir-se com 0 direitista Prona em outubro de2006) abria canais com setores religiosos que sempre haviam sidohostis ao radicalismo petista. .

o fato de que 0 ernpresario Alencar tenha mais tarde se re-velado, sob diversos aspectos, homem notavel, alern de critico(muitas vezes a esquerda da alma do Anhembi) da politica eco-nornica do governo Lula, em particular dos altos juros, nao alte-ra a circunstancia que a escolha do PL como parceiro em 2002mostrava que 0 criterio ideol6gico para as aliancas estava sendoenviado para as calendas gregas. Sinal dos tempos: diferente-

38. Rogerio Schmitt, Partidos politicos no Brasil (1945-2000), p. 84. Avaliandodiversos elementos, como atuacao no Congresso constituinte e imagem juntoaos eleitores, classifiquei 0 PL como partido de centro em 1989 (ver Andre Sin-ger, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro, p. 75). Obra posterior a minha,no entanto, colocou 0 PLa direita a partir de criterios prograrnaticos e votacoesparlamentares (ver Scott Mainwaring et aI., Partidos conservadores no Brasilcontemporaneo, p. 32).

98

mente do que ocorrera em 1998, quando a alianca com urn par-tido de centro-esquerda (PDT) obrigou 0 Diret6rio Nacional (DN)

petista a intervir na secao carioca, a ligacao com a direita em2002 passou quase ilesa.

E que tambem a opcao por alianca com 0 agrupamento da di-reita foi tomada, de inicio, como recurso ocasional, em engano queobscureceu por urn tempo relativamente prolongado a verdadeiranatureza do espirito do Anhembi. A medida que 0 governo Lulaexpandiu 0 raio de acordos a outros partidos de direita, como 0

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e 0 Partido Progressista (pp),deixou de haver quaisquer restricoes aos arranjos eleitorais. Na elei-~aomunicipal de 2008, a decisao do Diretorio Nacional de coibiraliancas com 0 PSDB foi, na pratica, ignorada em Belo Horizonte,semmaio res problemas. Em 2010, a oposicao interna, em nome dosvelhos principios, ao acordo com a secao maranhense do PMDB, do-minada pela familia Sarney, foi derrotada na direcao do partido.

Ao estabelecer pontes com a dire ita sem levar em considera-~ao as razoes ideo16gicas, a alma do Anhembi demonstrou umadisposicao pragrnatica que estava no extremooposto do antigopurismo do Sion. Nao era uma flexibilizacao, e sim urn verdadeiromergulho no pragmatismo tradicional brasileiro, cuja recusa foraantes bandeira do partido. Sob a aparencia de ajustes voltados

\

para 0 momenta eleitoral de 2002, uma revolucao estava em cur-so, deixando atonita boa parte da esquerda petista sintonizadacom 0 espirito do Sion." Mas em dezembro de 2003, quando fo-ram expulsos os poucos parlamentares que haviam se rebeladocontra as diretrizes "renovadas", a maior parte da esquerda perrna-neceu no PT. OS rebeldes tinham se oposto, em particular, a pro-

•~:••~

~

39.Deve-se registrar, contudo, que, em maio de 2003, Paulo Arantes publicava 0

artigo "Beijando a cruz", no qual ja indicava que a l6gica recente tinha vindo paraficar.R.eportagem, n. 44, maio ~003.

99

Page 51: Os Sentidos Do Lulismo

••I••I•••••••••••••••••••••••••••f.•

posta de reforma da Previdencia Social encaminhada pelo gover-no Lula ao Congresso Nacional. Ao encampar posturas antessustentadas pelo PSOB, 0 projeto atendia a reclamos do capital, quevia no excesso de gastos previdenciarios ameacas a estabilidadedas contas publicas. A decisao de excluir do partido os opositoresdo projeto previdenciario evidenciava que 0 espirito do Anhembinao aceitaria oposicao.interna ao governo Lula. .

Mais tarde, em 2005, 0 pragmatismo venceu outra batalhasignificativa. A crise do chamado "mensalao" reabrira 0 tema dofinanciamento partidario e, embora por uma diferenca de poucosvotos, a proposta de "refundacao", que tinha 0 prop6sito de resga-tar as tradicoes perdidas, foi derrotada no PEO (Processo de EleicaoDireta) daquele ana pela corrente que se opunha a uma voltaatras. Estudos posteriores mostraram que desde meados dosanos1990 as atividades partidarias ja nao eram financiadas pela contri-

. .buicao voluntaria dos militantes, como era a praxe ini~ial. "Agrande guinada na estrutura de financiamento do PT ocorre em1996: de urn ana a outro, a participacao do fundo partidario nototal de receitas petistas passa de 12,3% para mais de 72%", escre-veu Pedro Floriano Ribeiro." A partir de 2000, teria subido tam-bern a contribuicao das empresas: "Em termos reais (corrigidospela inflacao), as doacoes de empresas ao ON quadruplicaram en-tre 2000 e 2004", chegando a 27% do total arrecadado, contraapenas 1% em 1999, segundo 0 mesmo autor." Em contraste, aparticipacao dos filiados no financiamento do partido, que fora de30% em 1989, caira para menos de 1% em 2004.42

40. Ver Pedro Floriano Ribeiro,"O PT, 0 Estado e a sociedade (1980 a 2005)", emV.A. de Angelo e M. A. Villa (orgs.), 0 Partido dos Trabalhadores (1980-2006),p.195.41. Idem, ibidem, p. 197.42. Idem. Pedro Floriano Ribeiro, op. cit., p. 194.

100

Para fechar 0 quadro de mutacao, as pesquisas que examina-remos a seguir demonstram que a alma do Anhembi teria, aolongo do primeiro mandato de Lula, crescente chao social dentrodo PT. A medida que 0 governo evoluia, 0 Anhembi deixava de ser,apenas urn espirito a flutuar, po is 0 realinhamento cristalizado em2006 afastava setores anticapitalistas e trazia outros, mais dispos-tos a aceitar a ordem do capital, para dentro do partido. 0 quesoava, a principio, como estado de espirito passageiro se convertiaem orientacao permanente.

A POPULARIZA<;:AO DO PETISMO

Que 0 PT cresceu desde a vit6ria de Lula, passando a consti-tuir-se, possivelmente, no mais importante partido brasileiro,nao e dificil perceber. Em outubro de 2002, no auge da campa-nha que levari a Lula a Presidencia da Republica, 0 PT atingia acondicao de lider isolado na preferencia dos eleitores, de acordocom as pesquisas de opiniao de institutos comerciais de reno-me. A me did a que a candidatura petista se fazia majoritaria, 0

partido se distanciava, quanta ao volume da identificacao parti-daria, do PMOB, do PSOB e do PFL (depois convertido em Demo-cratas), seus competidores diretos. As vesperas da alternanciano poder, 21% dos consultados em survey nacional afirmavamter simpatia pelo PT, enquanto 0 PMOB era indicado por 8% e 0PSOB por apenas 4% (tabela 7 do Apendice), Quase oito anosmais tarde, os numeros encontrados diferiam pouco: 0 PT tinha24% das mencoes, enquanto 0 PMOB contava com 6% e 0 PSOB

com outros 6%.Se em 2001, quando se deu 0 primeiro Processo de Eleicao

Direta (PED) para escolha do presidente da sigla, 0 partido jareunia 500 mil filiados, em funcao de quase vinte anos de empe-

101

Page 52: Os Sentidos Do Lulismo

nho organizativo, por ocasiao do quarto PED,43 decorridos oitoanos, 0 numero havia mais que duplicado, com quase 1,2 mi-lhao de aderentes, e 0 PT subira, entre 2002 e 2009, de quartopara segundo colocado entre os partidos brasileiros quanto aonurnero de filiados, superando tucanos e Democratas. Em 2010,os petistas ainda perdiam nesse quesito para os peemedebistas,os quais somavam 1,9 rnilhao de inscritos, quantidade, po rem,que vinha em queda, ao contrario do que acontecia com 0 PT, 0

que fazia preyer uma ultrapassagem ao longo da segunda deca-da do seculo."

Triplicou tambern 0 mimero de ~unicipios govern ados peloPT. Em 2000, eram 187, pulando em 2008 para 559.45 A proporcaode cidades em que 0 partido estava presente saltou de 40% em1993 para 96% em 2009.46 A bancada petista no Senado Federal- que pulou do quarto para 0 segundo lugar - aumentou de tresmembros em 1998 para dez em 2006, pass ando a catorze em 2010,a uma distancia de apenas cinco pontos percentuais do primeirocolocado (PMDB). 0 partido elegeu tres governadores em 1998 ecinco em 2006 e 2010. A menor taxa de incremento se deu na Ca-mara dos Deputados, em parte devido ao recuo de 2006 (que dis-cutiremos abaixo). Todavia, a comparacao com a legislatura daCamara iniciada em 1999 mostra urn progresso de quase 50% (de59 para 88 cadeiras) em 2011, passando de quinto para 0 primeirolugar na proporcao de assentos na Casa.

Em suma, 0 PT ingressou no bloco dos gran des partidos,

43. Para 0 dado de 2001, ver Andre Singer, 0 PT, p. 87. Agradeco a Roseli Coelhopor ter me chamado a atencao para 0 fato de haver crescido de maneira expressi-va a filiacao ao PT ap6s 0 inicio do governo Lula.44. Ver <http://gl.globo.com>,consultadoem 18 maio 2010.45. Grupo de Trabalho Eleitoral (GTEi do PT, 2008.~. Uira Machado e Mauricio Puls, w,\prO\~ mais alto. do zr projeta bancadare~~. Fc8..l .:if 5...P.;:;••.b, 2 ~ 2010.,p.._\.12..

~

,.

onde divide com 0 PSDB, 0 PMDB, 0 DEM, 0 PSB (pelo numero degovernadores eleitos em 2010) eo recern-formado PSD a condi-~ao de ser uma das principais agrerniacoes brasileiras, estando,em alguns quesitos, acima das demais. Se continuava atras doPSDB em numero de governadores (sete tucanos eleitos em 2010)e do PMDB em filiados e cadeiras senatoriais, 0 PT ultrapassou asoutras legendas no que diz respeito a perrnanencia na Presiden ..cia da Republica, a proporcao de cadeiras na Camara e, sobretu-do, a identificacao partidaria.

Porern, quando os dados sao observados mais cuidadosa-mente, 0 que chama a atencao nao e tanto 0 crescimento do parti-do, mas a mudanca de base social que ocorre a partir de 2006.47 Ademonstracao dessa passagem requer exame detido dos levanta-ment?s disponiveis, e peco desculpas antecipadas ao leitor pelacansativa descricao de dados. Os que desejarem obviar a arideznumeric a podem ir diretamente a proxima secao, onde as condu-soes sao expostas.

A cientista politica Luciana Fernandes Veiga, ao compararos dois Estudos Eleitorais Brasileiros (Eseb), realizados logo ap6sos pleitos de 2002 e 2006, ja: havia percebido a alteracao a queestou me referindo. A renda familiar media do simpatizante doPT diminuira (de 1349 reais para 985 reais); reduzira-se a pro-porcao dos que tinham acesso a universidade (de 17% para 6%);caira a participacao do Sudeste (de 58% para 42%). "Essa trans-formacao no perfil do eleitor que se identifica com 0 PT pode es-tar relacionada com a perda de parte do segmento mais ideol6gi-co e mais intelectualizado entre os simpatizantes, pois muitosseguiram os seus lideres e se transferiram tambern para 0 PSOL, e

••••••••••••••~•~

=~

47. Agradeco ao Centro de Estudos de Opiniao Publica (Cesop) da Unicampa cessao de dados do Instituto Datafolha, e a Silvia Elena Alegre pela ajuda notratamento estatistico do material.

103

Page 53: Os Sentidos Do Lulismo

••

a adesao de urn segmento novo do eleitorado, beneficiario dosprogramas sociais e dos programas de inclusao", sugeriu a autoraem 2007.48

No entanto, outros artigos, tambem portadores de funda-mentacao empirica, deixaram por algum tempo em suspenso 0

alcance da descoberta de Veiga. David Samuels, utilizando fontede dados diferente, embora confirmasse a menor escolarizacao e adiminuicao da influencia do Sudeste entre os apoiadores do PT,

sugeriu que as variacoes tinham sido de "baixo grau". Em particu-lar, considerou pouco provavel que os programas do governo fe-deral, sobretudo 0 Bolsa Familia, houvessem atraido para 0 parti-do os eleitores de baixissima renda. Na sua visao 0 petismo teriapermanecido "nao associado a pobreza'."

Como vimos no capitulo 1,Wendy Hunter e Timothy Po-wer pensavam em direcao semelhante. Ao estabelecer distincoesentre 0 desempenho do lulismo e do PT na eleicao de 2006, ha-viam afirmado, a partir da analise dos resultados em funcao doIDH, que, enquanto Lula teria obtido seu desempenho mais nota-vel nos chamados "grotoes", 0 baluarte do partido continuavasendo as zonas de maior urbanizacao." Os autores mostraramque 0 montante de votos em Lula e no PT para a Camara dosDeputados, por estado da federacao, estava positivamente corre-lacionado em 1994, 1998 e 2002, mas nao em 2006. Isto e, no ul-timo pleito os lugares onde Lula teve mais exito nao foramaqueles que deram a maior votacao as listas de candidatos a par-lamentares do partido. Chama ram a atencao, igualmente, para 0

48. Luciana Fernandes Veiga,"Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores:mudancas e continuidades na identificacao partidaria e na avaliacao das principaislegendas ap6s 2002", Opiniilo Publica, vol. 13, n. 2, novo2007, p. 362.49. David Samuels, "A evolucao do petismo (2002-2008)", Opiniilo Publica, vol.14, n. 2, novo2008, p. 315.50.Ver nota 22 na p. 61.

104

fato de que a distancia entre a votacao de Lula e do PT aumentavaconforme caia 0 IDH do estado." Em outras palavras, nos estadosmais pobres 0 expressivo contingente que votou em Lula em2006 nao votou no PT.

Embora parcialmente corretas e relevantes, as observacoes deSamuels, de uma parte, e de Hunter e Power, de outra, tenderam aencobrir a dimensao e a direcao das correntes que afetaram 0 PT

com 0 surgimento do lulismo. Para percebe-las, e necessario olharda perspectiva da propria trajet6ria partida ria, pois a comparacaocom 0 dramatico deslocamento de classe que aconteceu com Lulaem 2006 sombreia e borra 0 ocorrido com 0 partido. Ao longo desua hist6ria, os estudos sobre 0 PT haviam reiteradamente subli-nhado que a simpatia diminuia entre os segmentos de baixa rendae escolaridade. Tal marca ja constava dos surveys de 1982, ocasiaodas eleicoes inaugura is disputadas pelo partido. Com base nos le-v.antamentos feitos naepoca, Rachel Meneguello escrevia que aproposta do PT atingira "urn publico socioeconomicamente dife-renciado, pertencente a estratos mais favorecidos da populacao?"(com excecao da capital paulista). Ao cabo dos anos 1980, Marga-ret Keck reiterava que, "embora 0 partido tenha ampliado a con-cepcao inicial da sua base na classe trabalhadora", ele continuava a"sensibilizar urn segmento ativo e organizado da sociedade civilbrasileira"," Ao analisar pesquisa de 1996, junto com Scott Main-waring e Timothy Power, Meneguello voltava a apontar que 0 PT sedestacava entre os "eleitores com maior escolaridade"," Ainda em

51.Wendy Hunter e Timothy J. Power, "Recompensando Lula - Poder executi-vo, politica social e as eleicoes brasileiras em 2006", em C. R. Melo e M. A. Saez(orgs.), A dernocracia brasileira, pp. 338-9.52. Rachel Meneguello, PT, a forrnafilo de urn partido, p. 173.53.Margaret Keck, PT, a l6gica da diferenfll, p. 275.54.Scott Mainwaring, Rachel Meneguello e Timothy Power, Partidos conservado-res no Brasil contemporaneo, p. 66.

105

Page 54: Os Sentidos Do Lulismo

2002, "os petistas eram mais educados do que os demais brasilei-ros', conforme percepcao de David Samuels ao escrutinar 0Eseb."Yan Carreirao e Maria D'Alva Kinzo, que estudaram de maneiralongitudinal a serie de 1989 a 2000, resumiam: "Ha urn padraoconstante em todos os registros realizados: os percentuais de pre-ferencia pelo PMDB crescem inversamente ao nivel de escolaridade,enquanto ocorre 0 contrdrio no caso do PT, ou seja, seus percentuaissao proporcionalmente mais altos quanta maior 0 nivei de escolari-dade" (grifos rneus)."

Ou seja, ate 0 fim do seculo xx 0 tipo de alinhamento estabe-lecido na decada de 1970, em que 0 MOB se fixou como "partidodos pobres", ainda se refletia no sistema partidario, apesar dasderrotas da agrerniacao em 1989 e 1994. Na outra ponta, estavamcertos Hunter e Power ao entenderem 0 "PT como urn partidoconsolidado em torno de interesses organizados, de intelectuais eda classe media urbana progressista'."

Em 2002 houve urn crescimento da simpatia pelo PT em todasas faixas de renda (tabela 3). Embora persistisse expressiva dife-renca da faixa superior (32%) em relacao a mais baixa (15%),0partido comecava a exercer uma atracao significativa entre os elei-tores que tinham de dois a cinco salaries minimos de renda familiarmensal (23%). Se isso nao modifica, de imediato, a matriz anterior,pela qual 0 apoio cresce com 0 rendimento do eleitor, da ao PT umaabrangencia desconhecida. 0 partido passa a ser querido por umaporcao nao desprezivel da enorme quantidade de eleitores situados

55. David Samuels, "A evolucao do petismo (2002-2008)': Opiniao Publica, vol.14, n. 2, novo 2008, p. 313.

56. Yan de Souza Carreirao e Maria D'Alva Kinzo, "Partidos politicos, preferenciapartidaria e decisao eleitoral (1989/2002)': Dados, vol. 47, n. 1,2004, p. 150.57. Wendy Hunter e Timothy J. Power;"Recompensando Lula - Poder executi-vo, politica social e as eleicoes brasileiras em 2006", em C. R. Melo e M. A. Saez(orgs.), A democracia brasileira, p. 334.

106

nas duas camadas de renda mais baixas (nada menos que 76% doeleitorado, segundo 0 calculo do Datafolha usado na epoca). Issosignifica que, em 2002, 0 PT adquire nova feicao, como se pode verna tabela 4. Nela, a maioria dos simpatizantes pertence aos escaloesinferiores no que tange ao rendimento familiar.

I•I•~

~•41•I••1

~•i~

~

~;~

~

TABELA3:

PREFER~NCIA PELO PT POR RENDA FAMILIAR MENSAL, 1996-2010

ATE2 SM + DE2a5 SM +DE5alOSM + de io SM TOTAL

1996 8% 11% 150/0 19% 13%

1998 8% 12% 17% . 15% 12%

2002 15% 23% 28% 32% 22%

2006 17% 21% 22% 17% 19%

2007 21% 21% 19% 21% 21%

2010 22% 27% 21% 24% 24%

Fonte: Datafolha. Iunho de 1996, a partir de S. Mainwaring, T. Power e R. Mene-guello. Partidos conservadores no Brasil contempotaneo. Sao Paulo: Paz e Terra,2000, p. 70 (recalculado pelo autor); setembro de 1998, setembro de 2002, janeirode 2006 e marco de 2007, via Cesop (Unicamp); 2010 via <www.datafolha.com.br>, consultado em 29 jun. 2010 e recalculado pelo autor.

Sem que a estrutura estabelecida em 2002 chegasse a se con-solider, uma segunda inflexao ocorre em 2005, quando 0 partidoe envolvido na crise denominada pela imprensa de "mensalao"Em dezembro daquele ano, registra-se urn retrocesso na predile-c;:aopelo PT, que a faz voltar a patamares tipicos da decada ante-rior (tabela 7 do Apendice). Elementos coligidos por Samuels eVenturi dao a entender que a queda pode ter sido ainda maior doque a apontada na tab~la 7 do Apendice, levando-se em conta

107

Page 55: Os Sentidos Do Lulismo

-•I••I•III••••I•••••,•II

I•

que 0 vies de aumento da preferenciapelo PT prosseguiu ate asvesperas da eclosao do escandalo, Segundo Samuels, 0 Datafolhaencontrava 24% de identificacao com 0 PT no fim de 2004 e, deacordo com Venturi, a Criterium detectava 27% em abril de

2005, pouco antes de 0 noticiario ser invadido pelo tema do"mensalao"," As evidencias indicam que 0 epis6dio interrompeurn cielo de 25 anos de aumento constante do apreco pelo PT nasociedade brasileira, provocando uma retracao de ate onze pontospercentuais na preferencia pelo partido. 0 impacto do "mensalao". .

esta razoavelmente documentado na literatura, porern 0 que nao

foi percebido, a nao ser mais tarde, e que ele nao atingiu por igualas diferentes camadas socia is.

Poi ao fazer 0 balance dos trinta anos do PT, em 2010, queVenturi acabou por confirmar 0 que Veiga notara em 2007: a in-tensa popularizacao do partido." Todavia, restava esclarecer urnparadoxo. Se Samuels, Hunter e Power estavam certos ao assinalarque nao ocorrera uma aproximacao em massa dos pobres ao PT

em 2006, como acontecera com Lula, como pode ter 0 partido sepopularizado? A resposta edupla. De urn lade, 0 partido ja tinhaem parte se popularizado, ao receber urn apoio inedito de eleitores

de menor renda em 2002, e sofreu nova fornada de popularizacao,por subtracao, ao perder simpatia entre 0 eleitorado de classe media,retendo, no entanto, a sustentacao popular conquistada. De fato,nao aconteceu, como em relacao a Lula em 2006, uma aproxima-c;:aoabrupta de eleitores de baixissima renda. Todavia, na compa-

58. David Samuels, "Sources of mass partisanship in Brazil", Latin AmericanPolitics and Society, vol. 48, n. 2, verso 2006, p. 5; Gustavo Venturi, "PT 30 anos:mudancas na distribuicao regional", Teoria eDebate, n. 87, mar./abr. 2010, p. 15.59. Gustavo Venturi, "PT 30 anos: mudancas na base social", Teoria eDebate, n. 88,maio/jun. 2010, p. 9.

.!• 1

• 1

108

TABELA4:

RENDA FAMILIAR MENSAL DOS QUE PREFEREM 0 PT, 1996-2010

ATE 2 SM + DB2a5 SM + DE5 a 10 SM +de io SM TOTAL

1996 17% 23% 28% 30% 100%*

2002 27% 40% 18% 15% 100%

2006 42% 43% 10% 4% 100%**

2007 48% 370/0 10% 5% 100%

2010 47% 38% 8% 4% 100%***

Fontes: Datafolha. Iunho de 1996, via S. Mainwaring, T. Power e R. Meneguello.Partidos conservadores no Brasil contemporaneo. Sao Paulo: Paz e Terra, 2000, p.70; setembro de 2002, janeiro de 2006, marco de 2007, via Cesop (Unicamp);marc,:ode 2010 via <www.datafolha.com.br>.consultadoem24abr.2010.*Aporcentagem nao totaliza 100% porque alguns respondentes nao forneceramurn nivel salaria!.** Pequenas variacoes no total correspondem ao arredondamento das porcen-tagens.***A porcentagem nao totaliza 100%, po is 3% dos respondentes n1lo fornece-ram urn nivel salaria!.

racao com 0 momenta anterior a 2002, ha nitida popularizacaopelas duas razoes citadas em combinaiao.

A tabela 3 mostra como em janeiro de 2006 0 PT apresenta umaqueda acentuada de suporte na camada de renda mais alta (acima dedez salaries minimos de renda familiar mensal): de 32% para 17%.Ha tambern uma reducao, de 28% para 22%, entre os de renda fa-miliar de cinco a dez salaries minim os. Contudo, nao foi afetado 0

apoio entre os de renda mais baixa, com variacoes dentro da margemde erro, de 23% para 21% dos que recebiam de dois a cinco salariosminimos (SM), e, ate, uma elevadio, de 15% para 17%, dos que rece-biam ate do is SM.Visto desse prisma, pode-se dizer que 0 PT perdeuapelo em todas as faixas de renda menos na mais baixa, e, quantamais alto 0padriio economico, mais forte a queda .

109

Page 56: Os Sentidos Do Lulismo

Segundo Venturi, depois do "mensalao" "observa-se recupe-racao no sentido inverso ao perfil encontrado na origem: a prefe-rencia pelo PT passa a ser decrescente quanto maior a renda -25% entre os eleitores com RFM (renda familiar mensal) inferior adois SM, contra 20% entre os eleitorescom renda mensal superiora cinco SM (Criteriumj'l'" Resumindo, ap6s 0 fim da crise, 0 PT

recupera os indices de escolha (tabela 7 do Apendice), porern 0 fazde acordo com padriio invertido, no qual a atracao pelo partidoten de a ser maior na metade inferior da distribuicao de renda.Somados os movimentos de afluxo popular em 2002 e afastamen-to da classe media em 2005, eles estabelecem imagem oposta da-quela que vigorou nas primeiras duas decadas de existencia do PT:

a partir de 2006, a curva de sustentacao do partido deixa de subircom a renda (tabela 3). Em outras palavras, 0 deslocamento declasse que caracteriza 0 lulismo se transfere para 0 PT e passa a ha-ver predominio dos de baixa renda na sua base, sendo que antesera 0 contrario (tabela 4). Quando comparado 0 ana de 1996 ao de2010, e [dcil verificar a inversao: os petistas com renda na metadesuperior da distribuicno caem de 58% para 12% do total, enquantoos da metade inferior sobem de 40% para 85%; os de baixissimarenda (ate dois SM) passam de 17% para 47%.61

60. Gustavo Venturi, "PT 30 anos: crescimento e mudancas na preferencia par-tidaria", Perseu, n. 5, 2010, p. 207. Convern notar que os dados da Criterium,utilizados na analise de Venturi, indicavam urn Indice de identificacao com 0 PT

de 23% em marco de 2006, enquanto 0 Datafolha, em maio daquele ano, aindaapontava urn patamar de 17%. No en tanto, no que se refere a mudanca da dis-tribuicao da preferencia pe!o PT por faixa de renda, os dois institutos revelam amesma tendencia,61. Observe-se que os dados apurados pela Criterium para junho e outubro..k ~,~~.:moo pda F~ Perseu_-\bnmoem abril de :!.OO5, diferem.l-:~~~~ pdv I\w.i..'ol!u em ~ Cae:2O.l2.. E.:::i:l..~,~~'7 ~~.:-~~~~~~6<.:e:. ';<E=~ i.~4:~. ~ Q::'St.~'C..~ c~ .:r~·2

::u

Conforme se poderia esperar, 0 padrao de escolaridade foiigualmente afetado. Na tabela 8 do Apendice observa-se que ate2002 prevalece a tendencia de aumentar a estima pelo partidoconforme crescia a escolaridade. Ap6s 2005, 0 PT piora nas faixasde escolaridade mais altas, indo de 29% para 22% entre os quechegaram a universidade e de 28% para 20% entre os que tinhamacesso ao ensino medic. Em compensacao, fica estavel a parcelados que simpatizavam com 0 PT no campo dos que s6 haviam cur-sado ate 0 ensino fundamental. Isto e, com 0 "mensalao", 0 partidoperde apoio na alta escolaridade, guardando, no entanto, apreferen-cia conquistada entre os menos escolarizados. Pela primeira vez, adiferenca na identificacao com 0 PT.P9r anos de frequencia a esco-la reduz-se a margem de erro.

A partir de marco de 2007, com a perda daqueles de maiorescolaridade,o partido, que sempre fora mais potente no meio dosque tinham ensino superior, fica mais saliente entre os que ternpassagem pelo ensino medic. Uma advertencia de Venturi a res-peito das novidades no perfil da escolarizacao da populacao talvezexplique 0 porque de os apoiadores no ensino medic serem emquantidade tao elevada. E que, com a expansao geral do ensino, 0

nivel medio tern se estendido para os de baixa renda, justificandoa penetracao petista no estrato educacional interrnediario simul-tanea ao crescimento entre os de menor rendimento familiar."

-t••••41••t41•tt•••••••••••=~•

baixissima renda, entre os que apoiam 0 PT, teria dobrado, indo de aproximada-mente 25% para cerca de 50%, sem retorno aos patamares anteriores nos oitoanos seguintes. Com isso, 0 pape! da perda de apoio de e!eitores de ciasse media,ainda que verificado em todos os levantamentos, seria re!ativamente menor. VerGustavo Venturi, "PT 30 anos: crescimento e mudancas na pr,eferencia partidaria",Perseu, n. 5, 2010 .62.Afirma Venturi: "0 processo re!ativamente acentuado de escolarizacao da po-pulacao ao longo da Ultima decada e meia, com aumento consideravel do acessoaos ensinos medic (governo FHC) e superior (governo Lula), fazem do grau de esco-

".

111

Page 57: Os Sentidos Do Lulismo

-••••••••••••••••••••~

~

Ao traduzir porcentagens em mimeros absolutos, Venturiilustra a transicao do PT. Em 1997,0 partido tinha cerca de 3,1milhoes de simpatizantes de baixissima renda e 5,5 milhoes dealta renda. Em 2006, os de baixissima renda saltaram para 17,6milhoes e os de alta renda cafram para 3,3 milhoes." Venturi evi-den cia, de maneira analogs, as perdas do partido nas regioes maisricas, enquanto preservava as conquistas nas mais pobres. NoSudeste a preferencia pelo PT cai de 26% para 19% depois de 2005,enquanto no Nordeste ela se mantem, oscilando, dentro da mar-gem de erro, de 32% para 30%:\"Ao se recuperarem da crise, urnana depois, 0 desbalanco na distribuicao dos petistas reaparece-ria, s6 que agora com 0 SEabaixo de sua proporcao no eleitorado(apenas 37%) e 0 NE acima (34%)",64dizVenturi (0 Sudeste con-tern cerca de 44% do eleitorado brasileiro, enquanto 0 Nordestetern perto de 28%). A queda da participacao do estado de SaoPaulo no conjunto doli que gostavam do PT, de mais de 50% paraapenas 20% entre 1989 e 2007, conforme indica Samuels." traca a

mesma linha.Esses, os elementos empiricos centrais. Alern deles, alguns

dados acess6rios corroboram a popularizacao, Se olharmos paraa composicao da bancada federal, fica claro que, embora conti-nue a ser majoritariamente composta de parlamentares do SuI edo Sudeste, confirmando a percepcao de Hunter e Power, a pro-porcao de parlamentares dos estados mais ricos e cada vez menor

laridade urn indicador ruim para a observacao do fenomeno aqui em foco"; "PT 30anos: crescimento e mudancas na preferencia partidaria', Perseu, n. 5,2010, p. 204.63. Gustavo Venturi, "PT 30 anos: crescimento e mudancas na preferencia parti-daria", Perseu, n. 5, 2010, p. 204.64. Idem, ibidem.65. David Samuels, "Sources of mass partisanship in Brazil", Latin AmericanPolitics and Society, vol. 48, n. 2, verao 2006, p. 312.

~

112

(tabela 9 do Apendice). 66Ate 1998, quase 70% da bancada federaldo partido provinha do Sui e do Sudeste, caindo essa proporcaopara cerca de 50% em 2010. Em compensacao, 0Norte/Nordeste,que representava 24% da bancada em 1998, passou a quase 40%

dela em 2010.Em 2006, pela primeira vez em sua trajet6ria, 0 partido perde

assentos na Camara dos Deputados no SuI, no Sudeste e no Cen-tro-Oeste, s6 continuando a crescer no Nordeste (0 numero de ca-deiras provindas do Norte ficou estavel). Quando cotejada com avotacao de Lula, que no primeiro turno de 2006 foi derrotado noSuI e no Sudeste, ganhando no Norte e no Nordeste, a bancada dopartido se diferencia por ainda ter a maio ria dos seus represen tan-tes provindo das regioes mais ricas; no entanto, a participacao re-lativa destas apresenta queda, passando 0 Sudeste de 41% para36% da bancada federal, enquanto 0 Nordeste sobe de 19% para28%. Na eleicao seguinte (2010), a distribuicao alcancada em 2006grosso modo se manteve: 0 Sudeste ficou com 34%, o Nordestecom 27% e 0Norte com 11% do total dos deputados federais elei-tos pelo partido, enquanto 0 SuI ficaria com 19% e 0 Centro--Oeste com 8% (ver tabela 9 do Apendice).

Em 2006, Lula obteve rapidamente uma torrente de votos debaixissima renda, a qual compensou 0 abandono da classe media,resultando num desempenho ate urn pouco superior no primeiroturno em relacao ao de 2002. 0 PT, contudo, sofreu uma subtracaopara a Camara dos Deputados de 18% dos votos validos em 2002para 15% em 2006.61 Ou seja, enquanto a candidatura de Lula a

66.Agradeco a Brandon Van Dyck, doutorando da Universidade Harvard, por terme chamado a atencao para os dados referentes a Camara dos Deputados.67. Dados para 2002 e 2006 obtidos em.<www.tse.gov.br>.consultado em 5 ju!.2010. Em 2010, 0 PT recupera parte dOHOtOSperdidos em 2006, chegando a 17%dos votos validos. Dado obtido em <www.pt.org>. consultado em 30 jan. 2012.

113

Page 58: Os Sentidos Do Lulismo

reeleicao, dotada da enorme visibilidade pelo exercicio da Presi-dencia, avancou para 0 interior, em direcao aos pequenos munici-pios e aos eleitores mais pobres - produzindo "a virada [...] deuma eleicao a outra nos estados que registram menores indices delDH" _,680 PT se ressentia das perdas ocasionadas pelo afastamen-to da classe media nos estados mais ricos, compensando-as apenasparcialmente com uma penetracao moderada nas regioes pobres.Lula aumentou em cerca de 50% a quantidade de votos que rece-bera, por exemplo, em Pernambuco, enquanto 0 PTexperimentavaurn acrescimo em torno de apenas 10% no estado, na votacao paraa Camara dos Deputados. De acordo com 0 TSE, Lula passou de46% dos votos validos em Pernambuco no prirneiro turno de2002 para 71% no primeiro turno de 2006, ao passo que a votacaonos candidatos do PT para a Camara dos Deputados subiu de 13%para 16%. E isso que leva a percepcoes como a do jornalista Mel-chiades Filho, quando afirma: "0 PT nao cresceu como 0 previstona era Lula. No Nordeste, por exemplo, foi 0 aliado PSB que maisposicoes conquistou'P? Na verdade, a ascensao do PT demoroumais para acontecer, mas terminou ocorrendo.

Os melhores numeros do PT para os governos estaduais em2006 se deram no Nordeste e no Norte, com vit6rias em disputasimportantes, como as da Bahia e do Para, sem equivalentes nasareas de maior desenvolvimento. Nao obstante, em 2010, a derrotano Para e a alianca com 0 PSB no Piau! tiraram das maos do PT do isgovernos estaduais das regioes pobres, havendo, simultaneamente,vit6rias no Rio Grande do SuI e no Distrito Federal. Na dimensao

68. Wendy Hunter e Timothy J. Power, "Recornpensando Lula - Poder executi-vo, politica social e as eleicoes brasileiras em 2006", em C. R. Melo e M. A. Saez(orgs.), A democracia brasileira, p. 335.69. Folha deS.Paulo, 8 jun. 20IO,p.A2.

U4

-estadual moderou-se, assim, em 2010 0 ritmo de popularizacaodo partido.

.Consideradas as eleicoes municipais de 2008, verifica-se que,se os estados do Sul/Sudeste ainda respondem pela maio ria dascidades administradas pelo PT (53%), essa proporcao vem caindo,uma vez que era de 70% em 2000, enquanto a do Nordeste/Nortesubiu de 21% para 33% no mesmo intervalo. 0 aumento de cida-des governadas em apenas quatro estados do Nordeste e do Norteentre 2004 e 2008 - Bahia (de 21 para 67), Piaui (de sete paradezoito), Para (de dezoito para 27) e Sergipe (de quatro para oito)- constituiu quase metade das novas prefeituras conquistadaspelo PT na eleicao municipal de 2008.

Urna analise do desempenho por grau de urbanizacao igual-mente revel a modificacoes no que era predominante ate 2000,quando 0 PT era tido como "partido das capita is".Naquele ano, ospetistas elegeram prefeitos nos centros ricos, com vit6rias expres-

. .

sivas no Sudeste e no SuI, em particular em Sao Paulo e PortoAlegre. lei em 2008, 0 PMDB iguala 0 PT em mimero de capitais go-vernadas, sendo que as do PT se concentram nas regioes menosdesenvolvidas (Nordeste/Norte). A sua forca parece deslocar-separa 0 que Reis, seguin do Bolivar Lamounier, chamou de "metro-poles perifericas","

Nos centros das zonas desenvolvidas, onde ha urn eleitoradode classe media numericamente expressivo, 0 partido foi empur-rado para a extrema periferia e ate mesmo para fora dos limitesmunicipais, obtendo expressiva votacao nos populosos munici-pios das respectivas regioes metropolitanas." Em Sao Paulo, porexemplo, segundo Fernando Limongi e Lara Mesquita, 0 PT perde

•I~

~

~

~

••=~f

70.VerFabio Wanderley Reis, "Regioes, classe e ideologia", em F.W. Reis, Mercadoe utopia, p. 321.71.Agradeco a Camila Rocha a imagem da transposicao dos limites municipais.

115

-.l

Page 59: Os Sentidos Do Lulismo

-••••••••••••••••••••••~

"

para 0 PSDB votos dos eleitores com maior escolarizacao, enquanto"acentua-se a penetracao do partido entre as camadas rrienoseducadas"," situacao que parece se estabelecer com clareza em2004 e ficar mais aguda em 2008.73

Ha nitida percepcao do sentido da transforrnacao do PT naafirmativa do entao presidente do partido, Ricardo Berzoini, emmar~o de 2008: "Hoje 0 PT tern uma forca no Nordeste que haquinze anos nem sonhava ter. Em regioes onde 0 imp acto das po-liticas do governo foi menor, muitas vezes 0 questionamento eticosupera a forca das realizacoes. Depende muito da regiao e do es-trato social"," Nao por acaso, 0 pr6prio Berzoini foi sucedido em2010, na presidencia partidaria, por urn politico do Nordeste (JoseEduardo Dutra), regiao que pela primeira vez designou 0 princi-pal dirigente petista."

Em resumo, os indicadores empiricos convergem na direcaode que, depois de 2002,0 partido passa a ter menos forca relativana classe media, nos eleitores de alta escolaridade, no Sul/Sudestee nas capita is das regioes mais ricas, cuja aceitacao 0 caracterizavadesde a fundacao, Por outro lado, ampliou em escala significativeo suporte entre os eleitores de baixa renda, de baixa escolaridade,no Norte/Nordeste, nas metr6poles perifericas e no entorno dascapitais.P O PT vai, portanto, na mesma direcao que 0 lulismo,

72. Fernando Limongi e Lara Mesquita, "Estrategia partidaria e preferencia doseleitores", Novas Estudos, n. 81, ju!. 2008, p. 64.73.0 caso do PT em Sao Paulo apresenta a peculiaridade de antecipar, em 2004,0movimento que se tornara geral depois de 2005. De acordo com levantamentospre!iminares de Diogo Frizzo, a popularizacao ja corneca em 2004 e se acentuaem 2008.74. Em <wwwLfolha.uo!.com.br>, 17mar. 2008, consultado em 8 jul. 2009.75. Em 2011, lose Eduardo Dutra renunciou ~presidencia do PT, alegando razoesde saude, e foi substituido pelo vice, Rui Falcao, que ~de Sao Paulo.76. ~ possivel que isso expJique 0 fato de, no Encontro Nacional de 2006, Rache!Meneguello e Oswaldo E. do Amaral terem encontrado urn aumento de',dele-

116

L

tornando-se urn partido popular. Na sua versao atual, a composi-~ao petista ficou parecida com a da sociedade. Segundo a amostrausada pelo Datafolha em marco de 2010, 52% dos eleitores doBrasil, e 47% dos simpatizantes do PT, estavam na faixa de ate do issalaries minimos de renda familiar mensal; 33% dos eleitores, e38% dos apoiadores do PT, na faixa de dois a cinco salaries mini-mos; 5% e 8%, respectivamente, na camada de cinco a dez sala-rios minimos; e 4%, para ambos, na faixa superior a dez salariesminim os. Pode-se dizer que, depois de 2006, 0 partido ficoumuito mais pr6ximo do Brasil do que era ate meados dos anos1990, mostrando que estava certa a intuicao de Juarez Guimaraesquando ele escreveu que "0 PT tornou-se nos ultimos an os maisnacional, mais brasileiro, mais sertao, mais samba, mais negro,rnais nordestino e mais amazonico, mais agrario"," 0 PT tern hojecerca de dez vezes mais simpati~antes que vivem no piso da pira-mide econornica brasileira do que entre os que estao, no topodela, diferenca que simplesmente nao existia em meados da deca-da de 1990. Por ter entrado no coracao do subproletariado, 0 PT

adquire a feicao de "partido dos pobres", lugar que estava vago napolitica brasileira desde pelo menos 1989, quando 0 PMDB foi fra-gorosamente derrotad~ pelo fracasso economico do governoSarney.

gados de menor renda. Ver Rachel Meneguello e Oswaldo E. do Amaral, "Aindauma novidade: uma revisao das transformacoes do Partido dos Trabalhadoresno Brasil", Occasional Paper Number Bsp-02-08, Brazilian Studies Programme,Oxford, 2008. Os autores anotam uma queda no numero de delegados aos en-contros do partido com renda superior a vinte salaries mlnimos, de 28% em1997 para 13,4% em 2006, enquanto 0 numero de delegados com renda de cincoa dez salaries minimos foi de 19% para 33% no mesmo periodo.77. Juarez Guimaraes, A esperanca crltica, pp. 52-3.

117

Page 60: Os Sentidos Do Lulismo

DUAS ALMAS E UMA SfNTESE. PROVIS6RIA?

A mudanca do suporte social, com intensa popularizacao,nao poderia deixar de ter impacto na alma do PT, como na de qual-quer partido em que acontecesse. No caso do PT, 0 efeito foi darcarne e osso ao espirito do Anhembi. A razao e simples: tanto osapoiadores recentes quanto a alma expressa em 2002 ansiavampor postura mais amigavel ao capit~l. A transforrnacao sociol6gi-ca do PT implicou dar perspectiva estrategica a rnoderacao supos-tamente tatica da "Carta ao Povo Brasileiro".

Diversas analises de dados dao conta da mudanca ideol6gica.A comparacao do Eseb 2002 com 0 de 2006levou Veiga a apontarque, "em 2006, 0 PT, na media, representou urn eleitorado mais decentro do que em 2002".78Levantamentos da Criterium e da Fun-dacao Perseu Abramo indicam que, de 2002 a 2006, a proporcaode eleitores situados a esquerda entre os apoiadores do PT caiu de50% para 42%, ao passo que ados situados a direita subiu de 20%para 30%, e dos posicionados ao centro de 6% para 12%. De acor-do com Samuels, que utilizou dados de uma quarta pesquisa (La-pop 2007), "a ideologia esquerda-direita nao prediz mais 0

petismo"," Segundo 0 Instituto Datafolha, em 2010 a proporcaode apoiadores do PT situados a esquerda teria se reduzido para32%, ao passo que a direita ela teria subido para 35% e ao centropara 16% (quadro 2). Isso significa que a base do PT, que era pre-dominantemente de esquerda, passou a abrigar urn contingenteanalogo de eleitores situados a direita, os quais, somados aos decentro, deixam a esquerda em minoria.

78. Luciana Fernandes Veiga, "Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores:mudancas e continuidades na identificacao partidaria e na avaliacao das principaislegendas ap6s 2002", Opiniao Publica, vol. 13, n. 2, novo2007, p. 349.79. David Samuels, "A evolucao do petismo (2002-2008)", Opiniao Publica, vol.14, n. 2, novo2008, p. 310.

118

-QUADR02:

POSI«AO DOS APOIADORES DO PT NO

ESPECTRO IDEOL6GICO, 2002-10

~

~••~~

~

~

~

~

=;•~

~

~

=.j

~

ESQUERDA CENTRO NS/NRDIREITA

2002 (Criterium, out.) 50% 6% 20% 23%

2006 (F. Perseu Abramo, mar.) 42% 120/0 30% 16%

2010 (Datafolha, maio) 32% 16% 35% 17%

Fontes: Criterium e Fundacao Perseu Abramo, no sitio <www2.fpa.org.br>,consultado em 18 set. 2009. Datafolha via Folha de S.Paulo, 30 maio 2010, p. A9.Obs.: As posicoes na escala de 1 a 7 foram assim agrupadas: esquerda = 1 a 3;centro = 4; direita = 5 a 7.

o principal efeito da configuracao adventicia e que 0 espiritoherdado do periodo pos-golpe, e que dominara 0 PT ate as vespe-ras da campanha de 20q2, resvala para uin segundo plano, encer-rando 0 cicIo radical aberto com a derrota do populismo em1964. Embora seja urn equivoco desconhecer que 0 governo Lulacumpriu parte do program a original do partido ao estimular 0

mercado interno de massas, e verdade que, desconectados de pos-tura anticapitalista, os ganhos materiais conquistados levam aguapara 0 moinho do estilo individualista de ascensao social, embu-tindo valores de competicao e sucesso no lulismo. Enquanto 0

modele "reducao da pobreza e manutencao da ordem" puder fun-cionar, alimentara 0 PT como "partido dos pobres" e, dentro dele,o espirito do Anhembi. 0 exito eleitorallhes augura dorninacaoprolongada.

No entanto, aspecto peculiar do modo petista de vida ate 2012,ao menos, e que 0 espirito do Anhembi, embora dominante, naosuprimiu 0 do Sion: convivem lade a lado, como se urn quisessedesconhecer a existencia do outro. 0 PT nunca reviu as posicoes

119

Page 61: Os Sentidos Do Lulismo

•••••••••••••••••••••~

hist6ricas. Nao houve urn Bad Godesberg" para retirar do progra-ma os itens radicais. Nem ocorreu algo como a exclusao da famosaclausula 4, momenta em que 0 Partido Trabalhista britanico, con-

, duzido por Tony Blair, abdicou da socializacao dos meios de produ-cao,Ao contrario, 0111Congresso do PT, em 2007, reafirmou que "asriquezas da humanidade sao uma criacao coletiva, hist6rica e social"e que "0 socialismo que almejamos s6 existira com efetiva dernocra-cia economica, Devera organizar-se, portanto, a partir da proprie-dade social dos meios de producao'." A resolucao politica do IV

Congresso Nacional Extraordinario (realizado em setembro de2011) sustenta que 0 partido deve "aprofundar seu compromissocom outra visao de mundo e com outro modelo de desenvolvimen-to, reafirmando a defesa da construcao do socialismo'."

Alern de disperso em milhares de militantes formados nosanos anteriores ao espirito do Anhembi, 0 do Sion esta nos cader-nos destinados aos ingressantes, editados pela direcao partidariaem 2009. "0 Partido dos Trabalhadores define-se, programatica-mente, como urn partido que tern por objetivo acabar com a rela-~ao de exploracao do homem pelo homem", diz urn dos tex~os di-rigidos aos recem-filiados.8~ Ao descrever a evolucao do partido,alude, em feicao elegante, as eventuais incongruencias entre teoria

80. No program a de 1959, aprovado pelo SPD alernao na cidade de Bad Godes-berg, pela primeira vez 0 partido deixa de fora qualquer mencao a Marx e a pro-posta de socializacao das industrias de base. Ver, a esse respeito, Donald Sassoon,One hundred years of socialism, p. 251.81. III Congresso Nacional do PT, Resolufoes do III Congresso do Partido dos Tra-balhadores, 30 de agosto a 2 de setembro de 2007, Sao Paulo, Pundacao PerseuAbramo, 2007, p. 16.82. IV Congresso do Partido dos Trabalhadores. Etapa Reforma Estatutaria, Reso-IUfaopolitico, p. 12, em <www.pt.org.brc-.consultado em 31 jan. 2012.83. Secretaria Nacional de Formacao Politica/Pundacao Perseu Abramo, Cadernode Formafao, M6dulo 1,Sao Paulo, 2009, p. 25, em <www.pt.org.brx.consultadoem 23 ago. 2010.

120

.-

e pratica: "0 PT e urn partido de massas e, como tal, perrneavel ascontradicoes de nossa sociedade e de nossa epoca", Porem, reafir-ma 0 desiderato absoluto de superar as "desigualdades sociais".

A primeira alma pode ser encontrada, outrossim, nas ativida-des da Fundacao Perseu Abramo (FPA), instituida pelo Diret6rioNacional em 1996, com 0 objetivo de "promover a reflexao politica,disseminar os conhecimentos produzidos, formar quadros politi-cos, preservar a mem6ria do partido e da esquerda brasileira"!'(grifo meu). La, 0 pensamento que presidiu a criacao do PT seguevivo. Na apresentacao da colecao de livros que faz 0 balance dosmandatos de Lula, El6i Pieta, vice-presidente da FPA, dava enfase aofato de ser "inedito ter no governo toda uma geracao de liderancassindicais e populares de esquerda" (grifo meu)."

Pieta esta certo, pois 0 ethos de origem se encontra presenteno Executivo federal, onde militantes do PT se destacam por trans-formar em politicas publicas 0 compromisso firmado no Sion. Acriacao do Ministerio do Desenvolvimento Social (~Mbs),porexemplo, que entre muitas incumbencias tern a de administrar 0Bolsa Familia e 0 Beneficio de Prestacao Continuada (BPC), c010-cou no centro do Estado brasileiro a visao de que e preciso comba-ter a pobreza visando uma sociedade menos desigual. Acima detudo, somadas ao Territ6rios da Cidadania, sob coordenacao doMinisterio do Desenvolvimento Agrario, e aos projetos cooperati-vos apoiados pela Secretaria Nacional de Economia Solidaria doMinisterio do Traba1ho, as iniciativas do MDS procuram fornecerurn carater emancipat6rio ao trabalho de resgate dos excluidos.

Pode-se dizer que, grosso modo, a presenca do PT no governofederal organizou-se ao redor de dar materialidade aos preceitos daConstituicao de 1988. Em Ultima analise, 0 partido tern sido 0 ins-

84. El6i Pieta (org.), A nova politica econ6mica, a sustentabilidade ambiental, p. 8.85. Idem, ibidem.

121

Page 62: Os Sentidos Do Lulismo

trumento de avances na direcao de urn Estado de bem-estar social,com aumento do emprego, transferencia de renda para os mais po-bres, e progresso na construcao de sistemas publicos de saude e deeducacao. 0 senti do de dernocratizacao radical, caracteristico dasorigens, influenciou ainda a realizacao, durante 0 governo Lula, dedezenas de Conferencias Nacionais, inspiradas nas que se organiza-yam no campo da medicina e foram decisivas para a existencia doSistema Unico de Saude (sus). Nas conferencias, milhares de cida-daos mobilizaram-se em torno dos temas mais-diversos - desde 0

meio ambiente aos direitos dos homossexuais -, dando continui-dade ao processo de participacao aberto na primavera democratica(1978-88), do qual 0 pr6prio PT foi urn dos frutos. Se os resultadospraticos das conferencias sao discutiveis, nao se po de negar seremelas espacos de exercicio da cidadania.

Em resumo, os dois man datos de Lula a frente do Executivoformaram sintese contradit6ria das duas almas que hoje habitamo PT. Poi 0 fato de ter sido viavel promover, simultaneamente, po-Iiticas que beneficiam 0 capital e a inclusao dos mais pobres, commelhora relativa na situacao dos trabalhadores, que permitiu aconvivencia dos espiritos do Anhembi e do Sion. A unidade doscontraries se expressa nas diretri'zes para 0 periodo 2011-14, apro-vadas em fevereiro de 2010. Delas se excluem os itens mais carac-teristicos de uma e outra fracao, Nao ha mencoes ao socialismo,mas tambem nao esta posto 0 compromisso de preservar supera-vits primaries altos. Se a "estabilidade economica" foi incorporadacomo valor, figura, lado a lado, com a defesa da distribuicao darenda como nucleo do governo Dilma Rousseff.

Em con sequencia, a proposta de programa aprovada pelo IV

Congresso pode ser lida como o dificil ponto de equilibrio entrecoracoes que batem em ritmos desencontrados. Nao por acaso, avalorizacao do nacional- que permite a unidade de diferentesclasses - ganhou relevo. Enquanto na compreensao antiga 0 PT

122

queria nao a "adocao de uma politica 'desenvolvimentista' queagrega 0 'social' como acess6rio, mas sim uma verdadeira trans-formacao inspirada nos idea is eticos da radicalizacao da democra-cia e do aprofundamento da justica social"," a solucao unitariadestaca que "0 Governo Lula criou as condicoes para urn Projetode Desenvolvimento Nacional Democratico Popular, sustentavel ede longo praza para 0 pais"," Todavia, em lugar de propor a ela-boracao de leis "para modernizar a atual Consolidacao das Leis doTrabalho"," como chegou a ser incluido no programa final de Lulaem 2002, assume urn "cornpromisso com a defesa da jornada detrabalho de quarenta horas semanais, sem reducao de salaries";"

E claro que a luta de classes perdeu 0 lugar de honra ondefora colocada pelo espirito do Sion. Poi substituida, como se vt;por urn projeto nacional-popular, que nao e incompativel com osinteresses do capital. Segundo 0 programa aprovado em 2010, 0Estado devera promov~r 0 "crescimentoda renda dos trabalhado-res, nao s6 pelos aumentos salariais, mas por eficientes politicaspublicas de educacao, saude.transporte, habitacao e saneamento",e, concomitantemente, aprofundar "as politicas crediticias para 0

setor produtivo por parte do BNDES" e apoiar a "internacionaliza-craodas empresas brasileiras't'" Trata-se de urn programa capitalis-ta com forte presencra estatal, de distribuicao da renda sem con-fronto, que nao por acaso lembra 0 ideario varguista. Para executar

86.Diret6rio Nacional do PT, Concepcao e diretrizes do programa de governo do PTpara 0 Brasil, Lula 2002, Sao Paulo, mar. 2002, p. 27.87. IV Congresso do Partido dos Trabalhadores, Resolucoes sobre as diretrizes de.programa 2011-2014, item 16, em <www.pt.org.br>, consultado em 22 fev.2010.88.Coligacao LulaPresidente, Programa de governo 2002, Brasilia,23 jul. 2002,p. 30.89. IV Congresso do Partido dos Trabalhadores, Resoluiiies sobre as diretrizes deprograma 2011-2014, item 19p, em <www.pt.org.br>, consultado em 22 fev.2010.90. Idem, itens 1ge, 21a e 21b.

123

Page 63: Os Sentidos Do Lulismo

••••••••••••••••••••:

,

tal programa, as aliancas ocorrerao independentemente dos argu-mentos ideol6gicos.

A convivencia das duas almas do PT leva a paradoxos. 0 par-tido defende, simultaneamente, reformas estruturais profundas ea estabilidade economics: propriedade social dos meios de produ-<;:aoe respeito aos contratos que garantem os direitos do capital;urn postulado generico anticapitalista e 0 apoio as grandes empre-sas capitalistas; "a formacao de uma cultura socialista de massas""e acordos com partidos de direita. As diferentes descricoes damudanca do PT, que apontam ora no sentido da mudanca maxi-mizadora ora no da manutencao \do modele organizativo original,perdem de vista que 0 caracteristico da fase que se abre em 2002 ea coexistencia de dois vetores opostos num mesmo corpo partida-rio. A linguagem disponivel e, curiosamente, a gramatica nacio-nal-popular, como assinalamos no capitulo 1, que parecia defini-tivamente revogada pelo golpe de 1964.9~Para quem viveu oSion,com seu animo antipopulista, e ironico. Para quem assistiu aonascimento da segunda alma no Anhembi, com sua valorizacao daordem neoliberal, parece ate avancado,

91. III Congresso Nacional do PT, Resolufoes do III Congresso do Partido dos Tra-balhadores, 30 de agosto a 2 de setembro de 2007, Sao Paulo, Pundacao PerseuAbramo, 2007, p. 24.92.Marcelo Ridenti, em "Vinte anos ap6s a queda do Muro: a reencarnacao do de-senvolvimentismo no Brasil", Revista USP, n. 84, dez.rjan.rfev, 2009-10, antecipaalgo dessa discussao, remetendo a mudancas que j~ estariam em curso no PT nofim dos anos 1990.

124

3. 0 sonho rooseveltiano do. .

segundo mandato'

. Conforme mencionamos no capitulo 1,Marx lembra que ecomum os atores de certa epoca buscarem imagens do passadopara justificar acoes no presente. Se 0momento historico evocadopelos homens e mulheres contemporaneos for revelador da natu-reza das tarefas que pretendem realizar, mesmo que 0 saldo finalseja diferente do esperado, vale a pen a deter-se na consideracao doseu significado, pois informa algo da ideologia do momento.

o Brasil chegou a conclusao do segundo governo Lula, em2010, envolvido pela atmosfera imaginaria de estar em situacaosemelhante aquela em que, mais de meio seculo antes, a democra-cia norte-americana criou 0 arcabouco de leis, as instituicoes e osprogram as do New Deal. A instauracao do ambiente rooseveltianono pais foi alavancada desde 2007 pela aceleracao do crescimento,geracao de emprego e 0modo de enfrentar a crise financeira inter-

1.Este capitulo in corpora extensas passagens de Andre Singer, "0 lulismo e seufuturo", piaul, n. 49, out. 2010, e "Realinhamento, ciclo longo e coalizoes de clas-se",Revista de Economia da PUC-SP, ano 2, n. 4, jul./dez. 2010.

125

Page 64: Os Sentidos Do Lulismo

nacional de 2008, elementos que se somaram as alternativas decomb ate a pobreza inventadas no primeiro mandato. Se a hipotesedo realinhamento eleitoral que levantei estiver certa, 0 sonho roo-seveltiano tornar-se-a marco regulat6rio da politica brasileira porperiodo extenso.

Convem explicitar que foge aos limites deste trabalho umacomparacao ponto a ponto do que foi obtido nos EVA e no Brasil.Nem sequer tenho, por ora, a veleidade de aproximar os rasgosgerais das duas experiencias, tao diferentes sao as condicoes histo-ricas.' Restrinjo-me a assinalar que 0 lulismo introduziu 0 NewDeal no imaginario nacional, funcionando como sintoma ideol6-gico. A titulo de exemplo, vamos lembrar tres mencoes, oriundasde campos suficientemente distantes para indicar a existencia defenomeno geral.

Wendy Hunter e Timothy Power compararam 0 Boisa Familia(BF), lancado em setembro de 2003, ao Social Security Act, com 0

qual, em 1935,Roosevelt instituiu 0 sistema de previdencia publica.Hunter e Power vaticinavam, ja em 2007, que 0 BF poderia se tornar,como 0 Social Security, urn "terceiro trilho" na cena nacional, ouseja, aquilo que e intocavel, sob 0 risco de morte polttica.' A julgarpelas propostas dos candidatos a Presidencia da Republica em 2010,Hunter e Power acertaram. A candidata governista comprometeu--se a que, em seu mandato, 0 BF abrangeria "a totalidade da popula-

2. Agradeco aMario Sergio Conti a advertencia para a profundidade das diferen-cas dos dois casos e a Jose Eli Veiga 0 envio do seu livro Metamorfoses da politicaagricola dos Estados Unidos, no qual fica clara a diversidade de leituras sobre 0

que, de fato, representou 0 New Deal nos EVA.

3. Wendy Hunter e Timothy J. Power, "Recornpensando Lula - Poder executi-vo, politica social e as eleicoes brasileiras em 2006", em C. R. Melo e M. A. Saez(orgs.), A democracia brasileira, p. 358. A expressao "terceiro trilho" refere-seao condutor de eletricidade que corre paralelo a via do trem e que, se tocado,e mortal.

126

c;:aopobre",' enquanto a oposicao, pela voz de Jose Serra (PSDB),propos-se a dobraro numero de familias atendidas pelo programa.'Ninguem falou em diminuir ou eliminar 0 beneficio.

Uma segunda referenda encontra-se no fecho de balance dogoverno Lula feito por do is economistas ligados ao Ministerio daFazenda. Segundo Nelson Barbosa e Jose Antonio Pereira de Sou-za, "a superacao de dogmas recentes en contra paralelos em mo-mentos nos quais os Estados das economias capitalistas centraisoptaram pela ruptura de seus modelos de atuacao [...]. Assim foi,por exemplo, com a G.!. Bill (1944) e com 0 Employment Act(1946) [... ]".6 A G.!. Bill, assinada por Roosevelt em junho de1944,dava direito aos militares veteranos dos EVA que retornavamda Segunda Guerra Mundial a ingressar nas universidades. 0 Em-ployment Act, promulgado pelo presidente Harry Truman em fe-vereiro de 1946, ainda no contexto do New Deal, atribuia ao go-verno federal norte-americano a incumbencia de promoveroportunidades de emprego. A ultima medida, em particular, tevecarater duradouro: "Desde a Segunda Guerra Mundial, 0 governofederal havia reconhecido suas responsabilidades pela manuten-c;:aoda economia em pleno ernprego', lembra Joseph Stiglitz.'

Por fim, em julho de 2010, citando Paul Krugman, 0 jornalis-ta Fernando de Barros e Silva escrevia na Folha de S.Paulo: "OsEstados Unidos do p6s-guerra eram, sobretudo, uma sociedade declasse media. 0 grande boom dos salaries que comecou com a Se-

,

4. Coligacao para 0 Brasil seguir mudando, Os 13 compromissos programaticos deDilma Rousseff para debate na sociedade brasileira, Brasilia, set.!out. 2011, item 5.Consultado em: <wwwl.folha.uol.com.br>, 11 mar. 2012.5."Serra diz que vai duplicar Bolsa Familia", Folha de S.Paulo, 7 jul. 2010, p. A9.6. Ver. Nelson Barbosa e Jose Antonio Pereira de Souza, "A inflexao do governoLula: politica economica, crescimento e distribuicao de renda", em E. Sader e M.A. Garcia (orgs.), Brasil entre 0passado e 0futuro, p. 98.7. Joseph E. Stiglitz, Os exuberantes anos 90, p. 41.

127

-

Page 65: Os Sentidos Do Lulismo

••••••••••••••••,••••

gunda Guerra levou dezenas de milhoesde americanos - entre osquais meus pais - de bairros miseraveis nas regioes urbanas ouda pobreza rural a casa pr6pria e a uma vida de conforto sem pre-cedentes'" Krugman relata a "sensacao admiravel" de viver numacomunidade em que a maio ria das pessoas leva "uma vida mate-rial reconhecidamente decente e similar". Continua 0 jornalista:"Essa 'middle-class society' que encarnava 0 sonho americano naofoi obra de uma 'evolucao gradual: mas, diz Krugman, 'muito pelocontrario foi criada, no curto espaco de alguns anos, pelas politi-cas do governo Roosevelt": Observa, por fim, Barros e Silva:"Tudoisso nos fala a imaginacao - tao longe, tao perto".

Apesar das diferencas que os separavam, todos os postulan-tes presidenciais em 2010 estiveram envolvidos no movimentorooseveltiano de eliminar, num "curto espaco de alguns anos", 0atraso do pais no que diz respeito a pobreza. Dilma Rousseffcomprometeu-se a "erradicar a pobreza absoluta'" no prazo doseu mandato. Jose Serra tambem falou em "partir para a erradi-cacao da pobreza";" Marina Silva, do rv, elogiou 0 fato de 25milhoes de brasileiros terem superado a linha de pobreza nogoverno Lula e afirmou que nao iria mexer na orientacao que 0

perrnitiu.!' Plinio de Arruda Sampaio fez do combate a desigual-dade 0 centro da sua campanha.

Todavia, quais as condicoes reais para transformar em fatos 0

sonho rooseveltiano da maneira como aparece na descricao deKrugman, ou seja, de acesso a uma vida material "reconhecida-

8. Paul Krugman, A consciencia de um liberal apud Fernando Barros e Silva em"Krugman e n6s", Folha de S.Paulo, 21 jul, 2010, p. A2.-9, Coligacao para 0 Brasil seguir mudando, Os 13 compromissos programdticos deDilma Rousseff para debate na sociedade brasileira, Brasilia, set/out. 2011, item 5.Consultado em <wwwl.folha.uo!.com.br>, 11 mar. 2012.10. Folha de S.Paulo, 7 jul. 2010, p. A9.11. <http://portalexame.com.br>,consultadoem 22 jul. 2010.

128

mente decente" e "similar" num "curto espayo de alguns anos"?Para alern das peyas de campanha, quais as forcas sociais e politi-cas efetivamente a favor de diminuir rapidamente a pobreza e adesigualdade? Em particular, quais classes e quais partidos estaocomprometidos com esse objetivo? Por meio de tais perguntas,este capitulo deseja map ear 0 solo material e politico da agendalulista ao cabo de dois mandatos presidenciais. Examinarei, emprimeiro lugar, os avances na reducao da pobreza e da desigualda-de; em segundo, os conflitos macroeconomicos que limitaram ouaceleraram 0 ritmo da empreitada; e, em terceiro, as relacoes declasse envolvidas no processo.

A POBREZA MONETARIA CAI RAPIDO; A DESIGUALDADE,

DEVAGAR

Ha na discussao jornalistica referente a pobreza baita confu-sao, Termos como "pobreza", "pobreza absoluta", "pobreza extre-ma': "miseria" e "indigencia" sao usados em linguagem corrente demodo intercambiavel, e e com urn encontrar urn associ ado a esta-tistica do outro, ocasionando verdadeira balburdia, Existem, alemdo mais, as controversias de especialistas sobre como definir emensurar a pobreza. De acordo com 0 economista Jose Eli da Vei-ga, por exemplo, a pobreza, na linha do prernio Nobel AmartyaSen, deveria ser entendida como "privacao de capacidades basicas"e "jamais [... J medida apenas com estatisticas de insuficiencia derenda";" Veiga argumenta que a ausencia de acesso ao saneamentobasico seria urn potente indicador de pobreza, mesmo que umaparte das farnilias carentes de esgoto possua renda acima do limiar.estabelecido. Recorde-se que 56% da populacao brasileira nao

12.Jose Eli da Veiga,"Osso muito duro de roer'; Folha deS.Paulo, 1jan. 2011, p.A3.

129

Page 66: Os Sentidos Do Lulismo

usufrui de acesso ao esgotamento sanitario," e segundo 0 IBGE, em2008, 43% das moradias deveriam ser consideradas inadequadas,por ausencia de coleta de lixo, de abastecimento de agua, de esgo-tamento por rede coletora ou fossa septic a, ou por terem mais dedo is moradores por quarto."

o raciocinio defendido por Veiga parece sensato. No entanto,a utilizacao da chamada "linha de pobreza', fixada sobre base mo-netaria, tornou-se referencia comum nos debates a respeito doassunto, talvez por apresentar facilidade de medida. Ficou conhe-cida a designacao, pelo Banco Mundial, das populacoes que vivemcom ate do is d6lares diaries per capita como padecentes de pobre-za extrema ou, na linguagem com urn, miseria. E claro que podehaver urn aspecto enganoso na formulacao se ela for tomada ao peda letra. Imaginemos urn individuo que sobreviva com menos dedois d6lares ao dia no mes X. Se no mes Y, seguinte, a sua rendativer passado a 2,01 d6lar diario, ele teria "superado a miseria", 0que seria apenas urn efeito estatistico, e nao uma superacao real;ou, se pensarmos na situacao de urn individuo que tivesse apenas2,10 d6lares diaries para sobreviver na Grande Sao Paulo, veremosquao perto ele estaria da indigencia, mesmo que acima da marcainternacional da miseria."

A regua monetaria permite, contudo, aferir tendencias geraisno quadro da pobreza. Todos concordarao que, embora nao sereduza a dinheiro, a "privacao de capacidades" esta tambem rela-cionada a renda. Quanto maior a renda, menor a privacao de ca-pacidades, ainda que esta nao seja a unica variavel a ser controlada.

13. Idem, "Metade do Brasil continua pobre", Valor Economico, 21 set. 2010. Con-sultado em -cwww.zeeli.pro.br>, 4 fev. 2011.14.Ver Denise Menchen e Fabio Grellet, "43% dos domicilios SaD inadequados",Folha de S.Paulo, 2 set. 2010, p. C5.15.Ver Silvio Caccia Bava, "Recuperar as perdas", Le Monde Diplomatique Brasil,ana 4, n. 43, fev. 2011.

130

Na realidade, os indices de pobreza monetaria constituem um dosmodos de medir a pobreza, que, ao lado de outros, sao uteis paradescrever 0 sentido geral do processo, mais que para detalhar acondicao exata de vida dos habitantes reais do pais.

Com as devidas reservas, entao, vamos examinar os mime-ros disponiveis de renda monetaria. Segundo 0 Ipea, entre 2003e 2008 0 percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza abso-luta no Brasil, a saber, aquelas com rendimento inferior ao "valorde uma cesta de alimentos com 0minimo de calorias necessariaspara'suprir adequadamente uma pessoa, com base em recomen-dacoes da FAO e da OMS'~ reduziu-se de 36% para 23% da popula-s;ao,depois de permanecer praticamente estagnado nos oito anosde mandato tucano: eram 35% em 1995, reduzindo-se para 34%em 2002.16Cabe registrar que a renda fixada para estabelecer a li-nha de "pobreza absoluta" ja e 0 dobro daquela utilizada para de-signar a "pobreza extrema" (ou miseria/indigencia), cuja abran-gencia teria se reduzido de 15% para 8%da populacao brasileiraentre 2003 e 2008.17

Foi, sobretudo, a subida na renda dos cerca de 20 milhoesque atravessaram a divisa da pobreza absoluta que despertou 0

sonho do New Deal brasileiro. Deve-se lembrar que, entre 2003 e2008, houve uma valorizacao de 33% do salario minimo," signi-ficando que 0 aumento do numero de cidadaos que passou a vi-ver com mais de meio salario minimo- medida que 0 comuni-cado do Ipea de julho de 2010 considera como equivalente a

16. Em 2009, ana em que a economia nao cresceu, a pobreza caiu para 21% dapopulacao, segundo 0 Ipeadata. Dados obtidos em <www.ipeadata.gov.br>.consultado em 3 fev. 2011 e 20 mar. 2012. Cabe assinalar que, entre 1993 e 1995(Plano Real), a pobreza absoluta caiu de 42,9% para 35%, de acordo com a mes-ma fonte.17.<www.ipeadata.gov.br>. consultado em 3 mar. 2011.18.Folha de S.Paulo, 1mar. 2008, p. B1.

131

Page 67: Os Sentidos Do Lulismo

-••••••••••••••••••••

linha de pobreza absoluta _19 representou, na pratica, elevacaoainda maior da possibilidade de consumo. "Quando se projetano tempo a reducao nas taxas de pobreza absoluta (3,1 pontospercentuais [ao ano]) e extrema (2,1 pontos percentuais [aoana 1) alcancada no pertodo de maior registro de sua diminuicaorecente (2003~08), pode-se inferir que em 2016 0 Brasil tera su-perado a miseria e diminuido a 4% a taxa nacional de pobrezaabsoluta", afirma 0 Ipea."

Embora Veiga insista que "chega a soar como propagandaenganosa 0 uso do tosco criterio de renda monetaria para dizerque a pobreza esta despencando';" 0 tamanho dos indicadoresde diminuicao da pobreza monetaria durante 0 governo Lulanao devem ser, pela sua dimensao, desprezados. 0 economistaMarcelo Neri, da FGV-R], nota que "a pobreza caiu 45,5%" entredezembro de 2003 e 2009.22 Mesmo utilizando classificacao dife-rente da usada pelo Ipea, Neri acaba em numeros parecidos aosdo instituto governamental. Afirma que havia 49 milhoes depobres no Brasil (a classe E), em 2003, com uma renda domici-liar (de todas as fontes da familia) de ate 705 reais (a pre~os de2009 na Grande Sao Paulo), representando 28% da populacao

19. Ipea, "Dirnensao, evolucao e projecao da pobreza por regiao e por estado doBrasil", Comunicados do [pea, n. 58,13 ju!. 2010, p. 3.20. Idem, p. 11. Ha uma diferenca entre os nurneros do comunicado do Ipea e osdo Ipeadata. 0 primeiro aponta 29% de pobreza absoluta para 2008 contra 23%do ultimo. Ja a pobreza extrema estaria em 11% para 0 primeiro e em 8% para 0

segundo. Supondo que os dados do Ipeadata, consultados alguns meses depoisda publicacao do comunicado, estejam mais atualizados, decidimos usa-los notexto, embora a analise citada seja do comunicado do Ipea. Essa e a razao paraque as taxas de dirninuicao da pobreza citadas sejam mais moderadas do que asque se poderiam deduzir dos numeros fornecidos pelo Ipeadata.21. Jose Eli da Veiga, "Metade do Brasil continua pobre", Valor Bcon6mico, 21 set.2010. Consultado em <www.zeeli.pro.br>, 4 fev. 2011.22. Marcelo Neri, A nova classe media, 0 lado brilhante dos pobres, p. 31.

132

total." Destes, restariam, em 2009, 28,8 milhoes, ou 15% da po-pulacao, em situacao de pobreza. Significa que tambern para elecerca de 20 milhoes de pessoas teriam melhorado a sua renda aponto de sair da pobreza monetaria. Note-se que, apesar de 0

numero de pobres constatado por Neri ser ainda menor que 0 doIpea, que os estimou em 21% da populacao em 2009, a previsaodo economista para 0 futuro era mais moderada. Mantido 0 rit-mo do governo Lula, entre 2010 e 2014 0 numero de pobres seriareduzido a 8% (uma taxa de queda de 1,75 ponto percentual aoano) na interpretacao da FGV-RJ.

Se as diferencas entre 0 Ipea e a FGV mostram 0 quanta ha derelativo nas medicoes de pobreza, cabe notar que as medicoes deambos apontam na mesma direcao: a decada 2011-20 pode serpara 0 Brasil aquela em que a totalidade dos cidadaos passe ausufruir de condicao que os organismos internacionais conside-ram acima da pobreza (rnonetaria) absoluta. Mas isso nefo consti-tui a superacao da pobreza nos termos de Veiga-Sen nem o·ingressoautomatico de toda a populaciio na classe media, como ficou emvoga dizer nos ultimos anos. Pode representar que a quase metadeda populacao que nao dispunha de renda minima ate meados dadecada de 1990 passara a dispor de recursos suficientes para asse-gurar, ao men os, a alimentacao. Nao sera 0 fim da pobreza, mastalvez seja 0 fim da pobreza (rnonetaria) absoluta, aquela queimpede a pessoa de sequer se alimentar. Podera significar 0 pontode partida paraa vida "decente" do New Deal, porem certamentenao a chegada.

23. Neri esta considerando a renda domiciliar ja recalculada de acordo com 0

rnimero de integrantes da familia, de modo que expressa uma soma da rendafamiliar per capita. 0 economista nao usa 0 criterio de parcelas do salario mi-nimo per capita para medir a pobreza a fim de evitar a distorcao decorrente daflutuacao do valor do SM.

133

Page 68: Os Sentidos Do Lulismo

A obtencao da renda monetaria minima produz multiplesefeitos. Desde os relatos colhidos por jornalistas as pesquisas reali-zadas por professores universitarios, 0 impacto do Bolsa Familia,por exemplo, chama a atencao. Citaremos, a titulo ilustrativo,duas situacoes, retiradas, respectivamente, de relato jornalistico ede pesquisa acadernica. .

Urn dos nucleos familiares acompanhados pela Folha de S.Paulo na Grande Recife, em Pernambuco, desde 2005, recebia, emabril de 2010, a quantia de 134 reais do PBF. Composta de tres crian-cas de oito, dez e onze anos, pui e mae, a familia Silva progredia"devagar, mas de forma consistente", na descricao do jornalista.Alem do BF, 0 pai recebia urn salario minimo (510 reais), por invali-dez, do INSS. Eurn tipico caso em que 0 BF ajudou a fazer a passagemda pobreza extrema para a pobreza absoluta. E, a julgar pela melho-ra dos dois meninos mais velhos no ditado anual tornado pelo jor-nalista, nao se trata de mero efeito estatistico. As criancas iam regu-larmente a escola, e a letra, assim como 0 portugues, dos meninosprogredia ana a ano. Para os Silva,0BF auxiliava a melhorar as capa-cidades, representando aumento de 25% na sua renda."

A cientista politica Walquiria Domingues Leao Rego conver-sou ao longo de varies anos com mulheres no interior do Nordes-te em cujo nome esta 0 cartao do Bolsa Familia. Tal como entre osSilva, familia em que a mae, Micineia, e quem recebe 0 dinheiro, atitularidade do auxilio e sempre das mulheres. Das varias entrevis-tas citadas por Rego em exposicao na usr (dezembro de 2010), valea pena mencionar trecho da concedida por Waldeni Frasao Abreu,rnae de do is filhos, de doze e oito anos, no interior do Piaui, "Meucartao, dona, foi a unica coisa que me deu credito na vida. Antes

24. Fernando Canzian, "Progresso varia entre os pobres do Nordeste", Folha deS.Paulo, 18 abr. 2010, p. A14. A reportagem da conta tambem de outra familiabeneficiaria, com resultados bem inferiores.

134

-eu nao tinha nada. E pouco, sim, porque que ria ter uma vida me-lhor" disse a entrevistada, mostrando simultaneamente a impor-tancia do BF e a consciencia de que a quantia e pequena para 0 ta-manho da necessidade."

Muitas hist6rias poderiam ser citadas, mas nao e este 0 mo-mento parafaze-lo. 0 objetivo e tornar palpavel que a reducao dapobreza monetaria, embora new signifique a eliminacao da pobrezanos termos de Veiga-Sen, traz alteracoes em varias dimensoes daexistencia da parcela mais pobre do Brasil, sem as quais, alias, 0fenomeno do realinhamento eleitoral nao seria compreensivel.Convem recordar que 0 aumento do acesso ao dinheiro por partedos pobres no governo Lula nao ocorreu apenas por meio do Bol-sa Familia. Houve urn expressivo crescimento do emprego, do va-lor do salario minirno e do acesso ao credito, e seria urn erro igno-rar tais elementos.

Nao se deve cair no equivoco oposto, contudo, de considerara reducao da pobreza monetaria equivalente a uma transforrnacaorapida da metade pobre do Brasil em classe media. A sugestao desurgimento de uma nova classe media po de ser encontrada nostrabalhos que Neri vem publican do desde 2008 e acha guarida nofato de que as movimentacoes na estrutura de classe (medida pelarenda) no governo Lula se deram, simultaneamente, na reducaoda classe E e no aumento da classe C, com a classe D ficando nu-mericamente estagnada.

Na classificacao de Neri, pertenceriam a classe C as pessoascom renda domiciliar (de todas as fontes) entre 1126 e 4854 reais (aprecos de 2009 na Grande Sao Paulo). Assim definida, ela represen-tava 38% da populacao em 2003, tendo chegado a 50% em 2009.26

•••••••••••••••••~.,

I

~•••.-•.-!25. Walquiria Domingues Leao Rego, "Bolsa Familia: limites e alcances", texto--base para conferencia ministrada no Cenedic/usr em 10 dez. 2010.26.Marcelo Neri, A nova classemedia, 0 lado brilhante dos pobres, p. 31.

"

135

Page 69: Os Sentidos Do Lulismo

••••••••••••••••••••~•

",

Levando-se em conta 0 crescimento da populacao, deduz-se quecerca de 29 milhoes de pessoas teriam engrossado a classe Centre2003 e 2009, cifra que passou a ser veiculada como a do "ingressona classe media" durante 0 governo Lula." Ja as outras classes te-riam sofrido variacoes pequenas. A classe 0 (renda de 725 a 1126reais) teria caido urn pouco (de 27% para 24% entre 2003 e 2009);a classe B (renda entre 4854 e 6329 reais), passado de 4% para 6%no mesmo periodo; a classe A (renda acima de 6329 reais), de 4% a5% entre 2003 e 2009.28Aplicando os cortes com criterios relacio-nados ao consumo, e nao a renda, outra pesquisa, realizada em2009 pela Cetelem/lpsos, chegava a cifras semelhantes. Nas classesA e Bestariam 16% da sociedade; 49% se encontrariam na classe C,e 35% nas classes 0 e E.29Como 0 metodo de mensuracao de Neriprocura fazer equivaler as faixas de renda ao potencial de consumo,

a semelhanca era esperada,Nao se pode saber ao certo, sem pesquisas do tipo painel, mas

a deducao e que estamos diante de urn duplo movimento: a passa-gem de individuos da classe E para a classe 0, e de outros da classeD para a classe C. No entanto.dois problemas devem ser anotados.o primeiro e que a classe C, definida segundo os criterios de rendaacima, abarca urn universo amplo demais. Se observarmos a'sfai-xas de renda de cad a fatia, a da Cede longe a mais abrangente,multiplicando-se mais de quatro vezes a renda maxima em relacaoa renda minima dentro dela, oque nao ocorre nas demais. Cabeindagar se uma distribuicao mais equanime nao deveria ampliar a

27. Idem, ibidem, p. 12. ,28. As porcentagens foram calculadas a partir dos dados apresentados POI; Mar-celo Neri em A nova classe mMia, 0 lado brilhante dos pobres, p. 32.29. Tatiana Resende, "Classe C e a que mais se expande em 2009", Folha deS.Pau/o,7 abr. 2010, p. B9. . ,

136

classe B, de urn lado, e a 0, de outro, deixando a classe C como urncorpo mais hornogeneo e menor.

o segundo 6bice relaciona-se a denominacao adotada. Aclasse C nao e exatamente uma classe media, embora seja camadainterrnediaria, 0 que soa parecido, mas e distinto. Mesmo olhadaapenas do angulo da renda, a classe media consagrada historica-mente no Brasil e a que Amaury de Souza e Bolivar Lamounierchamam de "classe media tradicional", aquela que "realizou suasconquistas no passado e hoje tern seus ganhos estabilizados'PvEverdade que existe uma "nova classe media emergente", que "estagalgando posicoes", muitas vezes a custa de "endividamento delongo prazo"," e que deve fazer parte da classe C, mas nao coinci-de inteiramente com ela, pois a classe C inclui tambem outro seg-mento. Os resultados de pesquisarelatada por Souza e Lamounierdao conta de que 16% dos brasileiros se veem como pertencentesa "classe media baixa", porem, ao seu lado, outros 19% se enxer-gam como parte da "classe trabalhadora". Somados, os do is gruposcompoern 0 estrato interrnediario da formacao social brasileira,que corresponde a classe C. Tendo em vista 0 fato de que esse gru-po interrnediario e constituido por uma.fracao majoritaria quenao se ve como classe media, mesmo que seja baixa, e sim comoclasse trabalhadora, parece inadequado chama-lo de "nova classemedia". Se e verdadeiro 0 fato de que ha urn numero crescente decidadaos que esta transitando a urn nivel de renda e consumo queos afasta da "classe baixa", dos "pobres", pode-se supor que umaparte deles esteja a formar 0 que Juarez Guimaraes chamou de"novo proletariado'l" Em apoio a ideia, mencionamos que a gran-de maio ria dos empregos gerados no governo Lula oferecia baixa

30. Amaury de Souza e Bolivar Lamounier, A classe media brasileira, p. 25.31. Idem, ibidem, pp. 25-6.32. Cornunicacao oral em debate na UFMG, 14 out. 2010.

137

Page 70: Os Sentidos Do Lulismo

rernuneracao, sendo ocupados mais provavelmente por proletariosdo que por membros de uma classe media ernergente."

Imagine-se, por urn momento, a realidade social de urn jo-vem operador de uma das centrais de teleatividades (CTAS) queprosperaram no Brasil desde a decada de 2000.34Levando-se emconta 0 salario, as condicoes de trabalho e as regras de condutaimperantes, que lembram as do inicio da Revolucao Industrial-uma das gran des queixas no setor e a proibicao de ir ao banheiro,apesar de terem que ingerir Iiquidc para poder falar -, parececlaro 0 acerto do titulo Infoprole,tarios para 0 livro que procura darconta da realidade do setor. E provavelque a inaior parte dos tra-balhadores das CTAS pertencam a classe C e seja correto pensa-lacomo tendo se separado da pobreza tipica das classes E e D, pas-sando a fazer parte do estrato interrnediario da sociedade. Masparece haver mais motivos para associa-los a urn novo proletaria-do do que a uma nova classe media, cabendo sempre reafirmarque no Brasil 0 proletariado ocupa um lugar intermediario por-quanto sob ele ha a fracao subproletaria,

Na linhagem marxista, do ponto de vista da funcao que de-sempenha na producao, 0 teleoperador nao se encaixa na defini-cao da pequena burguesia quee proprietaria dos seus meios deproducao nem da pequena bur~uesia que exerce atividades geren-ciais ou criativas, nem e 0 equivalente a urn engenheiro, como"portador da ideologia nas relacoes de producao" (ver Introdu-cao), Desde esse angulo, a visao de urn Brasil de classe media ternurn componente ideol6gico, poi~ estamos assistindo, na verdade, a

33. "Cerca de 90% dos novos empregos formais nos ultirnos anos pagam ate tressalaries mlnimos', segundo Lena Lavinas, da UFRJ. Ver Fernando Canzian, "Total depobres deve cair ametade no Brasil ate 2014': Folha de SPaulo, 13jun. 2010, p. Bl.34. De acordo com a revista Call Center, havia 135647 teleoperadores contrata-dos no Brasil em 2005. Ver Ricardo Antunes e Ruy Braga (orgs.), lnjoproletarios,degradacao real do trabalho virtual, p. 74.

138

diminuicao da pobreza monetaria, de urn lado, e a ampliacao de

uma camada interrnediaria com um significative componente pro-letario, de outro. 0 assunto sera retomado no pr6ximo capitulo.

Os dois processos - reducao da pobreza e expansao do es-trato interrnediario de renda - estao relacionados a diminuicao

da desigualdade no Brasil. 0 Ipea constata, entretanto, que "0

movimento recente de reducao da pobreza tern sido mais forte

que 0 da desigualdade"." Enquanto a taxa de pobreza absoluta,

medida pelo Ipea, teve uma reducao de 36% entre 2003 e 2008, 0indice de Gini reduziu-se de 0,58 para 0,55,36 numa queda de

apenas 5% no mesmo periodo. Em 2008, 0 Brasil ainda estava

longe de paises como a Italia (Ginide 0,33), a Espanha (0,32) e a

Franca (0,28) em 2005, embora se aproximasse dos EVA (0,46 em

2005), que passava por urn conhecido aumento da desigualdade."

De acordo com 0 economista-chefe de uma das principais insti-tuicoes financeiras nacionais, eramos em 2010, todavia, "0 decimopior pais em distribuicao da renda" no mundo." Segundo escreviao economista Amir Khair em 2010, "apenas 1% dos brasileirosmais ricos detern uma renda pr6xima dos 50% mais pobres'." Por

isso, quando olhada desde 0 angulo da desigualdade, a fotografiada sociedade brasileira e "ainda grotesca", mesmo para Marcelo

35. Ipea, "Pobreza, desigualdade e politicas publicas", Comunicado da Presidencia,n.38,12jan.2010,p.7.36. <www.ipeadata.gov.br>, consultado em 7 fey. 20 II.37. Ipea, "Dimensao, evolucao e projecao da pobreza por regiao e por estado doBrasil", Comunicados do [pea, n. 58,13 jul. 2010, p. 8.38. Entrevista com Ban Goldfajn, economista-chefe do Banco Itau-Unibanco,Ver Samantha Lima, "A pior bolha que arneaca 0 Brasil e a da presuncao', Folhade S.Paulo, 21 jul. 2010, p. Bl.39. Ver Arnir Khair, "Entraves ao desenvolvimento", 0 Estado de S. Paulo, 4 jul.2010.

139

Page 71: Os Sentidos Do Lulismo

-Neri, que tern insistido na diminuicao recente da iniquidade." Emoutras palavras, os dados levam a crer que "0 combate a pobrezaparece ser menos complexo que 0 enfrentamento da desigualdadede renda'."

Alguns argumentam que, alern de ser vagarosa, a queda doindice de Gini, que mede 0 desnivel dos rendimentos do trabalho,esconde uma piora na reparticao da riqueza entre 0 capital e 0

trabalho, a chamada distribuicao funcional da renda. De acordocom essa logica, poderia ocorrer maior equidade entre os que vi-vem de salario, mas simultaneamente crescer a parcela apropriadasob a forma de lucros e dividendos pelos capitalistas em detri-mento da parcela destinada ao trabalho. Os largos gastos do Te-souro com 0 pagamento de juros e os altos lucros das empresasdurante 0 governo Lula seriam sinais visiveis do aumento da desi-gualdade funcional. No entanto, de acordo com 0 Ipea, entre 2005e 2007 a participacao do trabalho na renda nacional, que estavaestagnada desde 1995, comecou a aumentar em detrimento docapital. Em 2004 ela teria alcancado 0 ponto mais baixo, de 30,8%do PIB. Porem, a partir dai subiu, chegando a 32,7% em 2007. Maisainda: de acordo com as estirnativas do economista Ioao Sicsu, em2009 ela deve ter voltado ao patarnar de 1995, de 35,1%, apresen-tan do tendencia continua de recuperacao.?

A partir de numeros urn pouco diferentes, 0 economistaMarcio Pochmann relata a mesma tendencia. Em Desenvolvimen-to, trabalho e renda no Brasil, mostra uma queda de 56,6% naparticipacao do trabalho, em 1959-60, para 40% em 1999-2000,

40. Marcelo Neri, "A era Lula vista no espelho dos indicadores socia is': Folha deS.Paulo, 3 jul. 2010, p. B4.41. Ipea, "Pobreza, desigualdade e politicas publicae'; Comunicado da Presidencia;n. 38,jan. 2010, p. 7.

42. Ioao Sicsu, "Dois projetos em disputa", Teoria eDebate, n. 88, maio/jun. 2010,p. 14. Os dad os sao das Contas Nacionais - IBGE, a elaboracao e de Sicsu.

140

com uma ligeira ascensao, a 41,3.%, no bienio 2005-06.43 "Pareceevidente que a partir da segunda metade da decad a de 2000 hauma recuperacao na participacao do rendimento do trabalho narenda nacional, ap6s urn longo periodo de descenso inegavel', dizPochmann." E claro que muito chao resta pela frente se quiser-mos voltar ao nivel do fim dos anos 1950, mas 0 movimento dereducao da desigualdade parece Claro.

Os numeros indicam que, vista por diversos quadrantes, estaem curso uma gradual diminuicao da desigualdade no Brasil.Mas, se a renda dos assalariados - e particularmente dos maispobres - esta crescendo em ritmo suficientemente aceleradopara eliminar a pobreza monetaria ate 0 fim da decada de 2010,como se explica que a desigualdade caia tao devagar? Uma razaopossivel e que os ricos tambem estejam ficando mais ricos. A eco-nomista Leda Paul ani tern assinalado que 80% da divida publicaesta em maos de algo como 20 mil pessoas, as quais, sozinhas, re-ceberiam urn valor cerca de dez vezes maior do que os 11 milhoes(na epoca) de familias atendidas pelo BF.45 0 sociologo Franciscode Oliveira chama a atencao para os sinais de riqueza ostensivarevelados pela inclusao de dez brasileiros entre os mais ricos domundo da revista Forbes." De fato, basta abrir jornal ou revistapara deparar com noticias relativas a instalacao do cornercio dealto luxo em Sao Paulo." Sao sintomas de que a par da melhora

43. Marcio Pochmann, Desenvolvimento, trabalho e renda no Brasil, p. 24.44. Idem, "Inflexao distributiva", Folha de S.Paulo, 23 jan. 2011, Ilustrissirna, p. 8.45. Ver "Lula: governo amigo. do capital financeiro", em <www.mst.org.br>, con-sultado em 20 jul. 2010.46. Francisco de Oliveira, "0 avesso do avesso", piaui, n. 37, out. 2009, pp. 61-2.47. Em dezembro de 2010 a grafica que faz os convites para a realeza britanicaanunciou a abertura da primeira unidade fora da Inglaterra. 0 local escolhidofoi Sao Paulo, "de olho na expansao no mercado de luxo" Ver Folha de S.Paulo, 4dez. 2010, p. BlS.

141

Page 72: Os Sentidos Do Lulismo

nos padroes de con sumo dos pobres Muma elevacao tambern naponta superior. 0 senador chileno Carlos Ominami relata algo dotipo em relacao ao seu pais: "Temos bons resultados em pobreza,mas ruins em igualdade. No Chile, os ricos sap cada vezmais rices'."

Como, simultaneamente, M indlcios de que possa ter havidoachatamento nos ganhos da classe media," a resistencia da desi-gualdade decorreria do que e apropriado pelos muito ricos. Aqueda lenta da disparidade, em sociedades que partem de patamarmuito elevado de desigualdade e nas quais os mais ricos conti-nuam a acumular riqueza, mostra a dificuldade de atingir, nocurto prazo, uma situacao em que os seus membros tenham umavida material "reconhecidamente similar': nas palavras de Krug-man sobre 0New Deal. Mesmo mantido 0 ritmo atual de melhoradas condicoes de vida dos menos aquinhoados, 0 Ipea calcula queem 2016 chegaremos a urn indicador de desigualdade urn poucoinferior aquele de que dispunhamos em 1960, quando foi feita aprimeira mensuracao sobre diferencas de renda pelo IBGE: 0,49 noIndice de Gini. Ou seja, se bem-sucedido 0 esforco no sentido deerradicar a miseria entre 2010 e 2014 (compromisso do governoDilma Rousseff), 0 que esta no horizonte e, por assim dizer, voltaraoponto interrompido pelo golpe de 1964,muito distante, portanto,de urn padrao "reconhecidamente similar':

Entao, ap6s duas decadas de regime militar concentrador ede outras duas de estagnacao, as polfticas de reducao.da pobreza

. " I ,•.•j .

nos levariam de volta ao limiar de onde comecarnos a regredirquase meio seculo arras. Talvez nao seja coincidencia que 0 salario

48. Citado em Jose Natanson, La nueva izquierda, p. 247. Original em espanhol,traducao minha.

49. Disse 0 soci6logo Simon Schwartzman em entrevista para 0 portal ic emjaneiro de 2010: "Houve umachatamento do padrao de vida da classe media.Ela sofreu nesse processo, porqu.e dcpende muito mais des services, cujos precos'-C""TE:EIT~.:::c.: :s.-i;o! ~ _'.·'Ld:'O~_

••

minimo tambem tenha voltado, em 2009, ao patamar de meadosdos anos 1960.50 Os dados indicam que 0 lulismo pode produzir aerradicacao da pobreza monetaria absoluta num "curto espa~o dealguns anos", mas nao uma sociedade em que 0 padrao de vidaseja "reconhecidamente similar" no mesmo periodo. Os ricos con-tinuarao a ser muito ricos, e muitos brasileiros continuarao a serpobres, se considerados os criterios sugeridos por Veiga-Sen,

•t••••••••••••••••••••••••••••••I

~

A SUAVE INFLEXAO DO SEGUNDO MANDATO

o declinio rapido da pobreza monetaria e lento da desi-gualdade foi produto da combinacao de orientacoes antiteticas,analisadas no capitulo I, as quais constituiram 0 que se poderiachamar de "economia politica do lulismo". Por meio de pautaque, de urn lado, manteve linhas de conduta do receituario neo-liberal e, de outro, tomou decisoes no sentido contrario, isto e,pr6prias da plataforma progressista, forjou-se a cornbinacao suigeneris a« mudanca e ordem que provocou 0 deslocamento elei-toral do subproletariado.

No entanto, ao longo dos oito anos de governo, houve modi-ficacoes no peso relativo dos fatores que compuseram a formulalulista, caracterizando, talvez, tres fasesdistintas, cuja diferencia-cao explica ofato de causar impressao tao varia, para tomar osextremos, os primeiros e os ultimos seis meses do governo Lula.Penso que, na realidade, 0 modelo nao mudou, mas sim a hierar-quia de prioridades, de acordo com a margem de manobra politi-ca e economica disponivel. Embora alguns possam enxergar uma

50. Nelson Barbosa, "Uma nova politica macroeconornica e uma nova politicasocial'; em E. Pieta (org.), A nova politico economica, a sustentabilidade ambiental;p.32.

143

Page 73: Os Sentidos Do Lulismo

••••••••••••••••••••:

progressao sem retorno no suceder das efapas, inclino-me a ve-lasmais como diferentes respostas as circunstancias, sendo, portanto,plausivel imaginar repeticoes e trocas de ordem futuras. .

Na primeira fase (2003-05), a contencao da despesa publica,a elevacao dos juros, a manutencao do cambio flutuante, 0 quasecongelamento do salario minimo e a reforma previdenciaria comreducao de beneflcios, enfim, 0 pacote de "maldades" neoliberais .voltado para "estabilizar" a economia e provar ao capital que oscompromissos de campanha seriam cumpridos a risca foi aplica-do em escala superior a praticada no segundo mandato de FHC.

Como procurei evidenciar no capitulo 1,para alem de mera opcaotecnica, 0 que estava em jogo era uma escolha politica, voltadapara 0 atendimento das condicoes impostas pela classe dominantede sorte que nao houvesse radicalizacao. Como afirma 0 ex-sena-dor Saturnino Braga, "na transicao, quando findavam os ultimosmeses de Fernando Henrique Cardoso, a: inflacao e a taxa cambialdispararam. Aquilo foi urn aviso do capital"," Lula nao quis cor-rer 0 risco de pagar para ver se era urn blefe.

Ao mesmo tempo, Lula tomou iniciativas na direcao contra ria.o aumento das transferencias de renda - a partir do lancamentodo Bolsa Familia em setembro de 2003 -, a expansao do financia-mento popular - com 0 convenio assinado entre sindicatos ebancos no final do mesmo ana para criar 0 credito consignado - ea valorizacao do salario minima - a partir de maio de 2005 -,considerados em conjunto, produziram alivio na situacao dos maispobres e ativacao do mercado interno de massa, profundamentedeprimido no governo anterior.

A dupla cara do programa adotado permitiu que, enquanto

51. Saturnino Braga, "Urn novo rnodelo de desenvolvirnento: cinco caracterls-ticas"; em E. Pieta (org.), A nova politica economica, a sustentabilidade ambien-tal, p. 53.

144

perante 0 capital, interno e externo, 0 governo fizesse 0 discursodo atendimento integral dos itens pactados por meio da "Carta aoPovo Brasileiro" (junho de 2002), diante das bases populares afir-masse ter posto em pratica itens do programa hist6rico do PT, jaque 0 fortalecimento do mercado interno de massa correspondiaa plataforma petista." E verdade que, no decorrer da trajet6riaanterior, 0 partido nao acreditava que fosse possivel ativar 0 mer-cado interno sem confrontar os interesses do capital financeiro.Ter descoberto que com uma quantidade relativamente modestade recursos e opcoes que nao dependiam do orcamento da Uniao(como 0 caso do credito consign ado ) era possivel revitalizar re-gioes muito carentes, como 0 interior nordestino, foi 0 que garan-tiu, juntamente com a melhora da conjuntura economica interna-cional, 0 sucesso da f6rmula lulista. A dificuldade de escapar deavaliacoes simplistas a respeito do governo Lula, tao contradit6rionos caminhos escolhidos, levou a acusacao de que este seria, si-multaneamente, neoliberal e populista. Afinal, como entenderpolitic a que, ao mesmo tempo, reduz e aumenta a demanda?

Em 2004, 0 PIB, depois de permanecer estagnado em 2003,cresceu 5,7%, beneficiando as camadas de menor renda, mas pro-duzindo tarnbem urn alto lucro para as empresas. Em 2005 surgeo terceiro - e fundamental- apoio do tripe sobre 0 qual se sus-tentou 0 lade popular do governo. Naquele ana 0 salario minirno(SM) foi aumentado em 8,2% acima da inflacao (ate entao os au-mentos reais tin ham sido quase nulos: 1,2% em 2003 e em

52.Veja-se 0 item 26 do prograrna do PT (anterior a "Carta ao Povo Brasileiro"):"Amaterializacao de mudancas na estrutura de distribuicao de renda e riquezas6 sera possive1se as rnedidas redistributivas adotadas forern acornpanhadas portransforrnacoes na producao e no investirnento que as orientern para urn arnplomercado de consurno essencial de massas": Diret6rio Nacional do PT, Concepcaoe diretrizes do programa de governo do PT para 0 Brasil, Lula 2002, Sao Paulo, mar.2002.

145

Page 74: Os Sentidos Do Lulismo

2004).53Mesmo em meio a segunda onda contracionista lancadapelo Banco Central (Be) a partir de setembro de 2004, foi posto emmarcha, por intermedio do salario rninimo, em maio de 2005, re-force fundamental a ativacao do mercado interno de massa. Asso-ciado aos outros estimulos - transferencia de renda e expansaodo credito -, 0 SM aumentado provocaria alta do consumo popu-lar, batizada por Neri de "0 Real do Lula", cujos efeitos politicosproduziram, junto com 0 "mensalao", 0 realinhamento cristaliza-do na reeleicao de 2006.

Para fechar 0 quadro do primeiro ciclo, ja analisado no capi-tulo I, e necessario acrescentar que 0 jogo de soma positiva que 0

caracterizou foi favorecido pelo boom das commodities. A expan-sao mundial contribuiu para que no Brasil houvesse ganhos notopo (incremento no valor das exportacoes e altas margens de lu-cro em geral) e no pe da piramide social (transferencia de renda eaumento dos salaries, do credito e posteriormente do emprego).o quadro geral do capitalismo, cujas caracteristicas voltaremos aenfocar na terceira secao deste capitulo, ajudou Lula a imprimirritmo de crescimento do PIB maior do que 0 obtido no ultimomandato de Fernando Henrique, passando de uma media de 2,1%para 3,2% nos primeiros quatro anos do PT, apesar da politicacontracionista (juros e superavit primario) que favorecia 0 capitalfinanceiro. Mas nao s6 a conjuntura internacional foi deterrni-nante, uma vez que as politicas de ativacao do mercado interno demass as representaram urn uso criativo das possibilidades abertaspela retomada econornica mundial dos anos 2000.

Outra fase do governo corneca com a ascensao de GuidoMantega ao Ministerio da Fazenda, em marco de 2006, favorecen-do a quimica com menos neoliberalismo e mais desenvolvimentis-mo que iria, depois, caracterizar todo 0 segundo mandato. Nessa

53. Folha de S.Paulo, 1mar. 2008, p. B1.

146

etapa, que se estende ate a irrupcao da crise financeira internacio-nal no Brasil (Ultimo trimestre de 2008), houve maior valorizacaodo salario minima, alguma flexibilizacao dos gastos publicos ereducao dos juros," diminuindo, sem eliminar, a dose do compo-nente conservador na f6rmulalulista. Do ponto de vista da fracaode classe que sustenta 0 lulismo, 0 principal efeito dessa reformu-lacao foi que a geracao de empregos se acelerou, passando a serdecisiva no comb ate a pobreza. Em termos absolutos, foram gera-dos quase 40% a mais de postos de trabalho no segundo mandatoem relacao ao primeiro." Combinado com a valorizacao do sala-rio minimo eo credito consignado, 0 aumento das vagas de em-prego formal permitiu mudar a qualidade do combate a pobrezaem relacao aquele centrado na transferencia de renda.

A taxa de desemprego caiu para 7,4% em dezembro de 2007e 6,8% em dezembro de 2008, pouco antes da onda de dernissoesprovocada pela crise internacional. Quando se sabe que a mediaanual de desempregados em 2003 fora de 12,3%, verifica-se 0 ta-manho do caminho percorrido no que estamos chamando de se-gunda fase da economia politica lulista. Ao recuperar e compensar,em 2010, a velocidade perdida em 2009 (ano em que a debacle fi-nanceira atingiu 0 pais), 0 governo Lula terminou com urn de-semprego na casa de 5,3% (dezembro de 2010), pr6ximo do pIenoemprego. Foram gerados 2,5 milhoes de vagas formais em 2010,numero quase 70% maior que 0 de 2006, ultimo ana do primeiromandate." Nao espanta que a aprovacao ao governo (otimo e

54.Ver, a respeito, Nelson Barbosa e Jose Antonio Pereira de Souza, "A inflexaodo governo Lula: politica economica, crescimento e distribuicao de renda', em E.Sader eM.A. Garcia (orgs.), Brasil entre °passado e °futuro.55.Ver Priscilla Oliveira, "Brasil cria 1,9 rnilhao de vagas de trabalho, mas naoatinge meta", Folha de S.Paulo, 25 jan. 2012, p.A7.56. Idem, ibidem.

'.

147

••

Page 75: Os Sentidos Do Lulismo

born) tenha se aproximado dos 80% a partir de julho de 2010,enquanto girava perto dos 50% em 2006.

Com a chegada de Mantega ao centro das decisoes economi-cas houve elevacao substancial do salario minimo: l3% de au-mento real em 2006, s6 menor que 0 concedido por FernandoHenrique em 1995 (22,6%) ainda no embalo do Plano Real." Eprovavel que, isoladamente, a valorizacao do SM tenha sido a deci-sao mais importante da segunda fase, da mesma maneira que acriacao do BF foi da primeira. Entre os estudiosos do assunto, ob-serva-se convergencia em torno Ciapercepcao de que no valor doSM se encontra a chave para combater a pobreza no Brasil. "0 sala-rio rninimo estabe1ece 0 piso da remuneracao do mercado formalde trabalho, in fluencia as remuneracoes do mercado informal edecide 0 beneficio minimo pago pe1aPrevidencia Social", assinalaSicSU.58Convem lembrar que 68% dos trabalhadores ganham atedo is salaries minimos e fatia expressivados aposentados recebesomente urn SM.59 Por isso, Schwartzman afirma que "0 salariorninimo foi 0 grande fator para a reducao da pobreza"," Nao sedeve esquecer a sinergia en!~~ '0 SM e 0 BF na ativacao de regioeseconomicamente estagnadas (ver Cap. 1), potencializando 0 que

57. Ressalte-se que a progressao do SM continuou ao longo do segundo ma~datode Lula, com uma valorizacao real de 5,1% em 2007,4% em 200S, 5,S% em 2009e 6% em 2010. Ver Folha de S.Paulo, 1mar. 200S, p. B1,para 2007 e 200S, e <www.dieese.orglesp'/notatecS6SALARIOMINIM02010.pdf>, consultado em 23 mar.2010, para 2009 e 2010.5S.Ver J030 Sicsu, "Re-visoes do desenvolvimento", Inteligencia, n. 49, em <www.insightnet.corn.br>, consultado em 20 jul, 2010, p. 92. Em 200S, mais de 17mi-lhoes de beneficiaries da Previdencia e da Assistencia Social recebiam ate urnsalario minimo. Ver Iulianna Sofia, "Minimo sobe 9,2% e passa hoje a R$ 415",Folha de S.Paulo, 1 fey.200S, p. B1.59. Folha de S.Paulo, 13jun. 2010, p. B4.60. Simon Schwartzman, entrevista para 0 portal IG, jan. 2010.

14S

havia cornecado na primeira etapa do governo Lula, a saber, 0crescimento exponencial do Nordeste."

o lancamento do Programa de Aceleracao do Crescimento(PAC), em janeiro de 2007, foi 0 terceiro dado relevante da segundafase junto com a valorizacao do SM e a continuidade de expansaodo credito. "0 principal merito do PAC foi liberar recursos para 0

aumento do investimento publico", afirma Barbosa. Partindo deurn patamar muito baixo, a Uniao quase duplicou 0 montanteorcamentario destinado a investir - de 0,4% do PIB entre 2003 e2005 para 0,7% entre 2006 e 2008.62 Houve, no mesmo sentido,multiplicacao da inversao realizada pelas estatais, cabendo lem-brar que a Petrobras, sozinha, tern mais capacidade para tal do quea Uniao em seu conjunto."

Para alern daquilo que a Uniao e as estatais podem aplicar di-retamente, ha 0 efeito indutor que 0 Estado exerce sobre 0 investi-mento privado, sobretudo na area re1ativa aos projetos de infraes-trutura, quando a maquina publica se poe em movimento. SegundoDe1fim Netto, 0 PAC "recuperou 0 papel do 'Estado indutor' donosso ernpresariado';" A desoneracao de setores intensivos emmao de obra, como a construcao civil, e a elevacao do PPI (ProjetoPiloto de Investimento) de 0,2% para 0,5% do PIB, que autorizaalocar parte do superavit prirnario em areas estrategicas como 0

saneamento, aumentaram a influencia do Estado sobre as empre-

61.Agradeco a Leda Paulani por ter me chamado a atencao para esse aspecto.62. Nelson 'Barbosa e Jose Antonio Pereira de Souza, ''A inflexao do governo Lula:politica econornica, crescimento e distribuicao de renda", em E. Sader e M. A.Garcia (orgs.), Brasil entre 0passado e 0futuro, p. 76.63. Idem, ibidem, pp. 76-7. Enquanto a media de investimento da Uniao ficou em0,7% do PIB entre 2006 e 200S, a da Petrobras foi 1% do PIB no mesmo perlodo.Ver tambem, a respeito das estatais, Glauco Faria, 0 governo Lula eo novo pape!do Estado brasileiro.64.Ver Folha de S.Paulo, 16jun. 2010, p. A2.

149

Page 76: Os Sentidos Do Lulismo

sas capitalistas. Em decorrencia, 0 investimento global passou de15,9% do PIB em 2005 para 19% em 2008.65

Se 0 compromisso com superavits primaries foi atenuadopelo PAC e pela politica de revalorizacao e ampliacao do servicepublico, curiosamente, a opcao desenvolvimentista, diz Barbosa,"acabou se traduzindo em uma reducao de apenas 0,2 p.p. (pon-tos percentuais) do PIB no resultado primario do governo federal':mesmo com a queda da CPMF, revogada pelo Congresso Nacionalem dezembro de 2007. A explicacao esta em que 0 aumento daatividade economica ajudou a financiar os gastos do Estado, semnecessidade de diminuir mais fortemente 0 superavit primario,Traduzindo: 0 capital financeiro pode ser atendido numa conjun-tura de crescimento mais alto, mesmo com 0 incremento do gastopublico, uma vez que a receita aumentou."

Em suma, acelerou-se 0 ritmo de expansao do PIB no segundomandato - 6,1% em 2007, 5,1% em 2008 e 7,5% em 2010 (em2009, a economia retrocedeu 0,6% em funcao da crise bancariainternacional) _,67 acompanhado da ativacao do emprego e domercado interno. 0 maior poder aquisitivo das familias de baixarenda - com a expansao do credito, a valorizacao do rninimo e 0poder de compra resultante da diminuicao do preco relativo deartigos populares por meio de desoneracoes fiscais - direcionouparte da atividade economica para os pobres. As empresas volta-das para dentro incrementaram 0 investimento paraaproveitar asoportunidades, gerando postos de trabalho, os quais por sua vezrealimentaram 0 consumo, num drculo virtuoso que conseguiu,

65. Nelson Barbosa e Jose Antonio Pereira de Souza, "Ainflexao do governo Lula:politica economica, crescimento e distribuicao de rend a", em E. Sader e M. A.Garcia (orgs.), Brasil entre 0passado e 0 futuro, p. 76.66. Como veremos adiante, com a crise financeira 0 superavit prirnario caira,67. Ver Aloizio Mercadante, Brasi~ a construfIW retomada, p. 90.

1)0

finalmente, tocar na contradicao fundamental: a massa miseravelque 0 capitalismo brasileiro mantinha estagnada comecava a serabsorvida no circuito economico formal."

Embora 0 ex-presidente do BNDES, Carlos Lessa, entenda quefossepreciso aumentar ainda mais a taxa de investimento, para algocomo 22% do PIB,69 para ter condicoes de dar urn pulo na qualidadedo crescimento, 0 fato e que, ate 0 advento da crise financeira, ameta do PAC - sustentar urn ritmo de 5% de expansao do PIB - foiatingida (sendo que, em 2008, 0,5% dele foi gerado pelo aumentodo investimento da Petrobras e da Uniao)." Nao fosse a interrupcaodas atividades decorrente da ruptura bancaria global, que alcancouo Brasil no Ultimo trimestre daqueleano, e provavel que em 2008 0

PIB se expandisse 7%. Se considerarmos que 0 crescimento de 2010(7,5%) deve ser observado em conjunto com 0 do ana anterior,uma vez que houve decrescimo de 0,6% em 2009, 0 Ultimo bieniomostra media de crescimento de 3,5%, contribuindo para manter amedia do segundo mandato em 4,5% de crescimento, 40% superiorao do primeiro e pr6ximo da meta posta pelo PAC.

Mesmo com a autonomia do Banco Central sendo mantida,o setor financeiro foi obrigado a executar politic a moneta ria mais"cautelosa", nas palavras de Barbosa e Souza, isto e, praticar taxasde juros menores, A Selic caiu de 19,75% em agosto de 2005 para11,25% em setembro de 2007.71Com isso, pode-se afirmar que

68.Ver tarnbem Amir Khair, "Entraves ao desenvolvimento', 0 Estado de S.Paulo,4jul. ~01O.69. Ver Carlos Lessa, "Regozijo com a rnediocridade", Valor Economico, 14 jul.2010.70. Nelson Barbosa, "Uma nova politica macroecon6mica e uma nova politicasocial",em E. Pieta (org.), A nova politica econbmica, a sustentabilidade.ambiental,p.33.71.Nelson Barbosa e JoseAntonio Pereira de Souza, "Ainflexao do governo Lula:politica economica, crescimento e distribuicao de renda", em E. Sader e M. A.Garcia (orgs.), Brasil entre" passado e 0 futuro, p. 84.

151

Page 77: Os Sentidos Do Lulismo

•••••••••••••••••••••••••••••••••••

quatro elementos distinguiram a polttica'economica do "segundoperiodo": valorizacao do salario minima, desbloqueio do investi-mento publico, reducao da taxa de juros e queda do desemprego.E certo que nem 0 aumento do investimento nem a reducao dejuros foram explosives," mas 0 ponteiro se mexeu na direcao dodesenvolvimento.

A terceira fase da economia polltica lulista corresponde aomomenta que se abre ap6s a quebra do Lehman Brothers (15 desetembro de 2008), abrangendo 2009 e 2010. Grosso modo, a de-sorganizacao das financas mundiais deixou ao setor publico decada pais 0 encargo de impedir que houvesse ciclo de longa de-pressao econ6mica. No Brasil, Lula optou por ampliar 0 consumopopular mediante aumentos do salario minimo, das transferenciasde renda, das desoneracoes fiscais e do alongamento do crediario,Segundo Amir Khair, 75% do consumo que estimulou 0 cresci-mento adveio das familias, Alern disso, com os bancos estataisfortalecidos, em particular 0 BNDES, capitalizado em 100 bilhoes dereais em janeiro de 2009, 0 governo operou na contramao do BC, 0

qual demorou para reduzir a taxa de juros basica da econornia,que desceu a 8,75% em 2009.

Em funcao do estirnulo ao mercado interno e uso intensivodos bancos publicos, 0 Estado obteve urn comando sobre a econo-mia que lembrava 0 do milagre de 1967 a 1976.73 Desde essa posi-cao, pode induzir a rapida retomada de 2010, ap6s 0 recuo de2009.0 setor privado foi puxado pelas desoneracoes fiscais e fi-nanciamentos estatais como 0 do Programa Minha Casa Minha

72. Leda Paulani afirma "que 0 diferencial de juros interno e externo cresceu emtermos relativos depois da crise de 2008, apesar da queda em termos absolutos daSelic"; cornunicacao oral na arguicao da tese de livre-docencia de Andre Singer,USP, 30 set. 2011.73.Agradeco aArnir Khair por me haver feito notar 0 aumento da capacidade doEstado de dirigir a economia.

152

Vida (MCMV), que poderia ser tornado como simbolo da terceirafase,da mesma maneira que 0 Bolsa Familia foi da prirneira eo au-mento do salario rninimo, da segunda. A importancia do MCMV estaem que 0 subsidio publico e 0 credito concedido a habitacao popu-lar levou a contratacao de trabalhadores na construcao civil, 0 quefoi urn dos carros-chefe da retomada do emprego depois da onda dedemissoes no primeiro trimestre de 2009. Gracas a essa politica, 0desemprego foi contido, tendo sido gerados 1,3milhao de vagas em2009 e 2,5 milhoes em 2010 (recorde). Na media do bienio, 1,9 mi-lhao de postos foram criados, igual a 2007 (antes da crise).

Simultaneamente, 0 MCMV facilitou a setores de baixa renda 0

acesso a moradia pr6pria, urn dos principais itens na transforma-yao das condicoes de vida dos pobres. Celso Furtado indica que 0

acesso amoradia e uma "habilitacao" fundamental para superar apobreza em contexto urbane." Sobre a localizacao das habitacoesdo MCMV, a respeito das quais paira uma serie de duvidas, cabediscussao a parte, que nao podemos realizar no escopo deste tra-balho." Nao obstante, parece haver algum progresso em relacao aabsoluta precariedade das moradias anteriores.

o trabalho com carteira assinada e a porta de entrada pararenda mais estavel- apesar da rotatividade - e, no caso do lulis-mo, para 0 credito em condicoes facilitadas, chegando depois dacrise a compra do autom6vel e da ~asa. Em suma, a rapida recupe-racao da crise se fez sobre novo ciclo de consumo popular, umaespecie de Segundo Real do Lula, desta feita incidindo sobre bensduraveis, sendo elemento decisivo para 0 sucesso da candidaturaDilma Rousseff em 2010 e dando algum contorno material ao so-nho rooseveltiano de vida decente e similar.

74. Celso Furtado, 0 longo amanhecer, p. 33.75.Agradeco a Erminia Maricato e Pedro Arantes por terem me alertado quantaa esse ponto.

153

Page 78: Os Sentidos Do Lulismo

No ana da eleicao presidencial, 0 desemprego recuou paraabaixo do perlodo pre-crise, A conducao das medidas anticiclicasdurante a crise, na qual Lula se destacou pela ousadia de conda-mar a populacao a manter a confianca e comprar, arriscando-se aquebrar junto com oS,endividados, deu-Ihe a popularidade queconsolidou 0 lulismo. Do ponto de vista politico, outorgou ao Es-tado alguns graus de liberdade a mais, mostrando que 0 modelolulista, em seu auge, nao era apenas 0 reflexo da conjuntura inter-nacional, mas tinha voo proprio. Nessa fase, 0 lulismo, por meiodas acoes estatais voltadas para 0 aumento do consumo e do em-prego das camadas populares, parece ter conseguido, como suge-ria Celso Furtado, "conciliar (,)processo de globalizacao com acriacao de emprego, privilegiando 0 mercado interno na orienta-yao dos investimentos'.» Dai a avaliacao otimista de Maria daConceican Tavares que citei na Introduyao.

A medida que a expansao do mercado interno, a partir de2007, trazia urn aumento expressivo do emprego, os indices deaprovacao do governo se elevaram ao patamar de 70%, de ondenao volta ram a cair substantivamente.77 0 sucesso do segundomandato de Lula, que terminou com apoio inedito desde a rede-mocratiza~ao, esta relacionado ao fato de que, apos urn perlodo deprolongada estagnacao ou surtos de crescimento breves (PlanoCruzado, Plano Real), por mais de duas decadas, 0 Brasil tenhaexperimentado urn quadrienio de aceleracao do crescimento (re-pita-se: 4,5% ao ana em media) e reducao da pobreza por meio doaumento expressivo do emprego e da renda. Foi nesse contexto

76. Celso Furtado, 0 Longoamanhecer, p. 39.

77. Ver Andre Singer, "0 fator Lula", Teoria e Debate, n. 83, jul.!ago. 2009. Houveurn recuo na aprovacao do governo nos primeiros meses de 2009, quando asdernissoes recrudesceram. Porem, no segundo trimestre 0 sentimento comecoua mudar, juntamente com a recuperacao da atividade econornica, terminandonuma verdadeira consagra~ao do governo.

154

••

que a impressao de caminharmos para uma "sociedade de dassemedia" tomou conta do imaginario nacional, espalhando-se a di-reita e a esquerda.

tttt•ttttI•t•t•tt411•41It••41••I••••••

COALIZOES DE CLASSE

o exito da candidatura Dilma Rousseff em 31 de outubro de2010 (a qual voltaremos no proximo capitulo) representou a so-brevivencia do lulismo, para alem dos man datos de Lula. Apoiadanos mais pobres, Dilma defendeu a plataforma que interessa abase social subproletaria: ampliacao da transferencia de renda;expansao do credito popular; valorizacao do salario minimo egeracao de emprego, tudo sem radical ismo. Nao por acaso, 0 pri-meiro item dos «13 compromissos para 0 desenvolvimento social"divulgados pela campanha foi "eliminar a pobreza absoluta dopats'." Em outras palavras, seguir com 0 aumento dos postos detrabalho e da capacidade de consumo dos setores populares, massem confronto com 0 capital, 'Segundo 0 figurino montado nosdois man datos anteriores.

A consolidacao do lulismo implica reordenamento das rela-coes de dasse, cujo desenho geral esboco nesta secao, Trata-se,conscientemente, de exercicio algo esquematico, pois visa apre-sentar, como que congeladas, posicoes que, na vida real, estao emmovimento permanente. A mecanica das classes, cuja compreen-sao espero ajudar com a breve exposicao que segue, depende daacao polltica em circunstancias historicas determinadas, queprocurarei aprofundar no Ultimo capitulo. Aqui se trata somente

78. Ver <www.dilma.com.brlsites/archives/1300>.em 27 out. 2010, consultadoem 29 jan. 2011.

155

Page 79: Os Sentidos Do Lulismo

•••••••••I•I•I'II•••••••••••••••••

de indicar urn esquema para as relacoes de classe a partir da erner-gencia do lulisrno.

o ponto central a ser levado em conta eque 0 subproletaria-do ten de a desaparecer conforrne 0 programa que ele apoia seconverte em realidade. Como 0 projeto do subproletariado e su-mir, ele nao possui urn modelo pr6prio de sociedade, desejando(inconscientemente) incorporar-se aquela que e moldada pelosinteresses de outras camadas." Isso 0 coloca em posicao de neu-tralidade e, portanto, favorece a arbitragern" com respeito a ques-toes como a diminuicao da desigualdade (nao confundir com areducao da pobreza) por meio da construcao do Estado de bem--estar e a desindustrializacao do pais. Cum pre insistir que 0 seuprojeto e 0 da diminuicao da pobreza, nao necessariamente dadesigualdade, que sap coisas distintas, embora relacionadas ..

o sucesso da arbitragem, entrementes, depende de que ospolos que ela equilibra nao tenham forca suficiente para imporsolucoes pr6prias. Por isso, os conflitos parecem fluir em planorelativamente oculto, resolvidos por meio de negociacoes intraes-tatais, sem que 0 publico amplo os perceba." Ao nao mobilizar asociedade, as propostas divergentes tern mais chance de serem re-

79, Sigo aqui a inspiracao em Georg Lukacs que levou Weffort a sugerir 0 seguin-te: "Deste modo, talvez se possa dizer que a pequena burguesia ~ a classe para-digmatica para a explicacao do comportamento de rnassa" Weffort se refere aoraciodnio segundo 0 qual "a situacao de classe pequeno-burguesa se configurade modo a que, como afirma Lukacs, 'urn a plena consciencia de sua situacao lhedesvendaria (a pequena burguesia) a ausencia de perspectivas de suas tentativasparticularistas, em face da necessidade da evolucao' (Histoire et conscience do clas-se)" Ver Francisco Weffort, "Ralzes socia is do populismo em Sao Paulo", RevistaCivilizafao Brasileira, n. 2, maio 1965.80. Segundo Grarnsci, a solucao "arbitral" ~ caracteristica dos process os que en-volvem cesarismo. Ver Emir Sader (org.), Gramsci, poder, politico epartido, p. 62.81. A reflexao de Luiz Werneck Vianna, em artigos e entrevistas, tern chamadoa atencao para a internalizacao dos conflitos pelo Estado no governo Lula. Ver,

156

solvidas por arbitragem, isto e, por urn Executivo que paira sobreas classes e funciona como juiz de seus conflitos. Devido a ausen-cia de mobilizacao, a luta de classes, como ja se disse, foi como queempurrada para 0 fundo do palco, onde e pouco visivel. Mas hiurn perrnanente processo de embate entre posicoes divergentes earbitragem por parte do Executivo. Na pratica, a luta de classesprossegue, mas encontra urn porrto de fuga, como tambem ja semencionou, no funcionamento do lulismo. 0 sucesso do lulismoenvolve uma solucao pelo alto, criando simultaneamente umadespolarizacao e uma repolarizacao da politica.

Torne-se 0 caso da diminuicao da desigualdade, que interessaa classe trabalhadora. Embora nao se limite a isso, a reducao dasdiferencas precisa de certo ritmo de crescimento economico, 0

qual depende, em parte, do volume do gasto publico, 0 qual tarn-bern decide 0 grau de investimento social que favorece os quevendem sua forca de trabalho. Quanto a esse ponto, portanto, haurn embate con stante entre os trabalhadores e 0 capital, em parti-cular 0 financeiro. Os prirneiros pressionam por mais investimen-to estatal, 0 segundo por contencao dos gastos publicos e paga-mento de juros. Ao analisar em minucia os processos de decisaodo governo sobre 0 assunto, cujos reflexos na midia sao, por vezes,tenues, aparecem os n6s e as tensoes envolvidos nas disputas. Urnborn exemplo esta na seguinte descricao de Nelson Barbosa:

Devido a crise internacional e seus reflexos no Brasil, a receita do

governo caiu, e se 0 governo cortasse a despesa na mesma propor-

craoem que a receita caiu, ele empurraria a economia para baixo,

como se agia normal mente no passado. Diferentemente de outras

crises, agora n6s temos escolha, podemos reduzir 0 superavit pri-

por exernplo, Luiz Werneck Vianna, "0 Estado Novo do PT", no sitio Gramsci e 0

Brasil, <www.acessa.com/gramsci/.consultadoem 24 fey. 2011.

157

Page 80: Os Sentidos Do Lulismo

rnario para preservar 0 crescimento e 0 bern-estar da populacao.Adecisao de reduzir a meta de superavit primario em 2009 passoutranquila na imprensa, para quem participa da politica economicsdo governo Lulaisso e urn marco."

Em outras palavras, 0 aumento dos gastos governamentaisem 2009, que teve urn sentido anticiclico, foi conquistado numinstante de extrema vulnerabilidade do capitalismo, provocadopela gravissima situacao financeira internacional. Ponto para ostrabalhadores. Mas, ja no momenta seguinte, 0 aumento do gastotornou-se objeto de cobranca por parte do capital. Veja-se a decla-racao do economista John Williamson, criador do decalogo co-nhecido como "Consenso de ~ashington': a respeito do tern a emjaneiro de 2011, quando Dilma estava por decidir 0 tamanho doscortes no orcamento do primeiro ana de seu governo: "Certamen-te 0 nivel atual de gastos do governo e preocupante. 0 governoLula conseguiu aumentar seus gastos enormemente sem levan tarsuspeitas dos mercados. Acho que, de forma geral, houve umacerta indulgencia [da parte dos mercados] em relacao a iSSO':83

Logo depois de assumir a Presidencia, Dilma anunciou urnimponente ajuste fiscal, de 1,2% do PIB, maior ate que 0 de 2003.Ponto para 0 capital. Destarte, buscando equilibrar as pressoes docapital e do trabalho em torno do gasto publico, 0 lulismo trilha 0

caminho intermediario, "Desde 2003, a caracterfstica unificadoradas mudancas empreendidas pelo governo Lula tern sido umapostura pragmatica de administrar os extremos na conducao da

82. Nelson Barbosa, "Urna nova politica macroecon6mica e uma nova politicasocial': em E. Pieta (org.), A nova politica economica, a sustentabilidade ambiental,p.29.

83. Erica Fraga, "Pai de modelo liberal diz que mercado foi tolerante com Lula',Folha de S.Paulo, 23 jan. 2011, p. B8.

158

politica macroeconornica, isto e, nao escolher urn extremo emdetrimento do outro", afirma Barbosa." Na pratica, aceito 0 siste-ma de metas de inflacao, 0 jogo ocorre em torno da fixacao dameta, pois, para cumpri-la, sera necessario maior aperto moneta-rio e fiscal.Vamos dar a palavra, novamente, a Barbosa: "Todo anavoce tern a discussao sobre meta de inflacao. Em 2007 foi umaguerra quando decidimos estabelecer a meta de inflacao em 4,5%para 2009. Muita gente queria 4%, 0 merca~o financeiro e seusporta-vozes na midia pressionavam por 4%, mas para preservar apr6pria estabilidade e garantir uma aceleracao do crescimentooptamos por mante-la em 4,5%':85

Com a meta de inflacao urn pouco mais folgada 0 governoconseguiu fazer a taxa de juros cair""::"de urn pico de 13% reais aoana no governo FHC para 5% reais ao ana no segundo mandato deLula (2009).86 Mesmo assim ela permaneceu entre as mais altasdo mundo - 0 que mostra 0 poder do setor financeiro no Brasil.87Para honrar 0 pagamento dos juros, 0 governo precisou economi-zar nada menos que 3,5% do PIB em 2008, pr6ximo de tudo 0 quegastou com educacao no ana anterior."

Qual 0 objetivo de manter 0 equilibrio entre 0 capital e 0 tra-

ttt•tt•tt•t•••••••••••••••••I•III

84. Nelson Barbosa, "Uma nova polltica macroecon6mica e uma nova politicasocial': em E. Pieta (org.), A nova politica economica, a sustentabilidade ambiental,p.21.85. Idem, ibidem, p. 24.86. Idem, p.ls. _87. Em marco de 2011, a taxa de juros real brasileira era de 5,9% ao ano, enquan-to a segunda maior do mundo, da Australia, era de 2% ao ano. Folha de SiPaulo, 3mar. 2011, p. B1. Em janeiro de 2012, a taxa brasileira caiu a 4% reais.88. Dado do superavit primario em Nelson Barbosa, "Uma nova politica macroe-con6mica e uma nova politica social", em E. Pieta (org.), A nova politica econo-mica, a sustentabilidade ambiental, p. 29. Segundo relat6rio da OCDE, de setembrode 2007, 0 Brasil gastava 3,9% do PIB com educacao, contra 7,4% dos EVA. Ver<http://noticias.uol.com.br>/ educacaolultnotlult 1Osus8s3.jhtm>.

159

Page 81: Os Sentidos Do Lulismo

•ItIt•ItItIt•It•It••••••••••••••••••••••

balho? Trata-se nao somente de preservara ordem, evitando a radi-calizacao politica, mas tambem de garantir ao subproletariado duascondicoes fundamentais: inflacao baixa e aumento do poder deconsumo. A continuidade da reducao da pobreza depende de seconseguir urn crescimento pr6ximo ao patamar de 5%, como pre-via 0 PAC, de modo a manter 0 ritmo de geracao de emprego e renda.Neri chega a falar numa media de 5,3% para se obter a virtual elimi-nacao da miseria na decada de 2011 a 2020.89 Sabe-se que os jurosaltos inibem os investimentos produtivos, pois 0 capital e remune-rado sem precisar "fazer nada'; e transferem recursos publicos, osquais poderiam ser usados para aumentar a criacao de infraestrutu-ra produtiva, para a mao dos rentistas, que os esterilizam ou usamem consumo de luxo, com pouca capilaridade social. Se 0 governocedesse por completo ao caminho rentista, a economia tenderia auma taxa de crescimento baixa, com credito arrochado, pouco em-prego e pouca expansao da renda do trabalho. Insuficiente, assim,para sustentar a incorporacao de milhoes de brasileiros que aindaesperam a sua vez, boa parte deles trabalhando na informalidade.Para evitar isso, a pressao dos trabalhadores e funcional.

Por outro lado, as altas taxas de juros atraem 0 capital estran-geiro especulativo, fazendo 0 d6lar cair e barateando as importa-coes, 0 que controla a inflacao, como interessa ao subproletariado.Torna-se necessario, entao, delimitar, a cada nova conjuntura, 0

ponto de equilibrio que, sem provocar rupturas, permita ao Esta-do induzir, por meio do gasto, urn crescimento medic suficientepara continuar a incorporacao dos mais pobres, ao mesmo tempocontrolando a inflacao e satisfazendo 0 capital financeiro.

Parece claro que, em alguma medida, a durabilidade do mo-delo depende de 0 boom das commodities ter prosseguimento.Carlos Lessa aceita que a exportacao de commodities de conta de

89.Ver Folha de S.Paulo, 17maio 2010.

160

produzir urn crescimento medic (que ele chama de mediocre),desde que 0 consumo chines continue forte, sem que 0 Brasil pre-cise fabricar produtos de alto valor agregados. Mas isso implicariaa lenta desindustrializacao do pais." Por essa razao, 0 projeto di-vide 0 pr6prio capital, deixando, nesse particular, os industriais aolado dos trabalhadores, no que se poderia chamar de "coalizaoprodutivista", cujo melhor simbolo foi 0 ex-vice-presidente JoseAlencar. Essa frente teria como programa controlar a entrada esaida de capital estrangeiro e diminuir os juros, cuja elevacao,como ja vimos, encarece os investimentos produtivos e desvalorizaoreal, barateando as importacoes e arneacando as cadeias produ-tivas internas. Alern disso, interessa a coalizao elevar substancial-mente a taxa de investimento publico em infraestrutura, tornandomais baratas as atividades produtivas. Tal aumento poderia ocor-rer usando recursos publicos poupados por diminuicao significa-tiva dos juros.

Para a classe operaria, a morte da industria nacional repre-senta a sua propria desaparuiio enquanto classee a regressao a urnmodelo colonial que nao comporta segmento industrial extenso esofisticado. Como, ao contrario do subproletariado, a classe traba-lhadora nao quer desaparecer e tem urn projeto hist6rico - 0 au-mento da igualdade -, juros e cambio sao, para ela, temas funda-mentais. 0 avanco industrial representa a possibilidade .de ter urnmaior numero de bons empregos, com uma classe trabalhadorasofisticada e pr6spera, assemelhada a que as economias centraisabrigaram nos anos do Welfare State.

Ja para 0 subproletariado a extincao da industria nao repre-senta perda, desde que os seus membrospossam ser absorvidosem estrutura economica diversa. Mas para ele 0 barateamento dasimportacoes e item crucial.por ser carente dos recursos de organi-

90. Carlos Lessa, "Regozijo com a mediocridade", Valor Economico, 14jul. 2010.

161

Page 82: Os Sentidos Do Lulismo

zacao de modo a fazer frente as perdas que a elevacao dos precoscausa. Desde que a expansao do credito popular continue, 0 sub-proletariado po de conviver com taxas de juros relativamente altas.Mas, se a taxa de juros se eleva muito, 0 subproletariado e prejudica-do, po is 0 ritmo de crescimento cai, assim como 0 investimento so-cial e a geracao de empregos. Por isso, novamente, a politica lulista e ade encontrar a cada conjuntura ospontes de equilibrio entre osJato res.Para controlar a inflacao sem as importacoes, 0 governo precisariaou aumen tar os juros de maneira explosiva ou recriar as camarassetoriais. Nenhuma das alternativas parece plausivel no figurinolulista.

Pelas razoes expostas, 0 cornercio exterior desempenha urnrol relevante na fixacao das zonas de conforto lulistas. 0 peso dasexportacoes no modelo "inventado" pelo governo Lula foi reco-nhecido por seus defensores. 0 valor das vendas brasileiras a ou-tros paises cresceu mais de 100% entre 2002 e 2006, sem que paraisso 0Brasil fizesse "esforco nenhum" "Ataxa de crescimento fisicodas exportacoes e praticamente a mesma, foram os precos mun-diais que subiram", de acordo com Delfim Netto." Aloizio Merca-dante afirma, na mesma direcao, que triplicou 0 valor exportadoentre 2002 e 2008: de 60 bilhoes de dolares para quase 200 bilhoesde dolares. Porem, destaca que 0 destino das mercadorias mudou.Em 2002, os EVA recebiam 24,3% das exportacoes brasileiras, pata-mar reduzido a 14,6% em 2008.92 De maneira silenciosa, sem es-tardalhaco, 0 governo Lula esvaziou a proposta da Area de LivreCornercio das Americas (Alca), que atrelaria 0 pais aos Estados

91. Antonio DeJfim Netto, entrevista a Revista de Economia da PUC-SP, ana 1,n.2 (jul.!dez. 2009), e ana 2, n. 3 (jan./jul. 201O),p. 80.92. Aloizio Mercadante, "Mudancas para urn novo modeJo de desenvolvimento',em E. Pieta (org.), A nova politica econ6mica, a sustentabilidade ambiental, pp.39-40.

162

.•

Unidos, e envidou esforcos em favor do bloco sul-americano, en-quanto, com a outra mao, revigorava os vinculos com potenciasernergentes como a China.

Mas 0 sucesso da estrategia externa teve urn preco, como sepode deduzir do raciocinio de Lessa exposto acima. 0 Brasil setornou vitirna de "uma leve, mas real doenca holandesa'; segundoo ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, por meio da qual osmecanismos de mercado induzem nacoes com extensos recursosnatura is a ter cambio cronicamente superapreciado." 0 resulta-do e que fica mais barato importar artefatos industrializados doque fabrica-los internamente. Para debelar a doenca holandesa,afirma Bresser-Pereira, e indispensavel administrar 0 cambio enao deixa-lo oscilar ao sabor do mercado. Em calculo de meadosde 20lO, ele indicava que 0 real deveria flutuar ao redor de 2,40por dolar, 0 que implicaria uma desvalorizacao, na epoca, em tor-no de 25%.94 Segundo Delfim Netto, "nao existe razao para acre-ditar que 0 nosso modelo agromineral-exportador seja bem-suce-dido no longo prazo"," Ou seja, faz-se indispensavel tomarrnedidas industrializantes.:

A coalizao de interesses rentistas, liderada pelo capital fi-nanceiro nacional e internacional, tern tido sucesso em manter 0

realvalorizado, 0 qual perrnitea classe media tradicional, cujosinvestimentos sao beneficiados por juros elevados, 0 aces so a

•••t••••••t••••••••••••••••••••••

93."Adoenca holandesa e urn problema antigo, essencial para a compreensao dodesenvolvimento e do subdesenvolvimento. Mas ela s6 foi identificada nos anos1960,nos Palses Baixos, onde a descoberta e exportacao de gas natural apreciou ataxa de cambio e arneacou destruir toda a industria manufatureira do pais': LuizCarlos Bresser-Pereira, em Globalizacao e competieao, p. 142.94. Luiz Carlos Bresser-Pereira, "Deficits, cambio e crescimento", 0 Estado de S.Paulo, 7 mar. 2010, p. B9.A porcentagem da desvalorizacao esta calculada a partirdo valor do d6lar em meados de agosto de 2010.95.Antonio DeJfim Netto, "Apergunta", Folha de S.Paulo, 29 jun. 2011, p. A2.

\. ,

163

Page 83: Os Sentidos Do Lulismo

produtos importados e a viagens internacionais baratas, 'berncomo a compras vantajosas no exterior." Tais beneflcios expli-cam, ao menos parcialmente, por que a classe media tradicionalconstitui 0 suporte de massa da coalizao, rentista, que resiste asmudancas preconizadas pela coalizao produtivista, no sentidode baixar juros - implicando uma diminuicao da autonomiado Banco Central- e estabelecer urn controle sobre 0 fluxo decapitais que entra e sai do pais."

A postura da classe media tradicional endossa 0 que 0 soci6-logo Jesse Souza tern chamado de "sociedade altamente conserva-,dora, que aceita conviver com parcel a significativa da populacaovivendo como 'subgente";" A resistencia a queda, mesmo mode-rada, da desigualdade imprime urn selo reacionario ao "antilu-lismo". Em dezembro de 2004, 0 compositor Chico Buarque,com fina sensibilidade para a realidade brasileira, dizia: "Assimcomo ja houve urn esquerdismo de salao, ha hoje urn pensamen-to cada vez mais reacionario. 0 medo da violencia se trans for-mou nao s6 em repudio ao chamado marginal, mas aos pobresem geral, ao inotoboy, ao sujeito que tern carro velho, ao sujeitoque anda malvestido"," A rejeicao da pequena burguesia as poli-tic as de inclusao, que ela julga financiar com os seus impostos, se

96. Interessante reportagem publicada pela Folha de S.Paulo em 30 jan. 2011 daconta da invasao brasileira no mercado norte-americano de im6veis de luxo. VerIanaina Lage, "Carnbio e preco estimulam compra de im6vel nos WA", p. B3.97. Urn terceiro vetor da coalizao rentista pode ser, paradoxalmente, 0 agrone-g6cio, que se tornou poderoso com a valorizacao das commodities. Aos exporta-dores agricolas interessa a desvalorizacao, mas a postura geral do setor mostra-seconservadora. Trata-se de item a ser investigado, como alertou 0 ex-ministroRubens Ricupero em cornunicacao oral, Cedec, Sao Paulo, 9 dez. 2011.98. Ver entrevista de Jesse Souza para a Folha de S.Paulo, 24 maio 2010, p. A9.99. Entrevista de Chico Buarque de. Holanda a Fernando .Barros e Silva, Folhade S.Paulo, 26 dez. 2004, conforme citada por Juarez Guimaraes em A esperancacritica, pp. 56-7.

164

-

intensifica conforme a ascensao dos pobres relativiza a superio-ridade social da classe media.

A coalizao produtivista, formada por empresarios, que obser-yarn com preocupacao a queda das atividades fabris desde 0 comecodos anos 1990, e pelos empregados industriais que defendem "apli-car politica cambial voltada para a defesa da economia nacional'I'?"viu na criacao de urn Imposto sobre Operacoes Financeiras (IOF) docapital estrangeiro, que gradativamente subiu para 6% entre 2009 e2.010, urn sinal de esperanya de que 0 governo caminharia na dire-yao do controle de capitais, Mas, se a hip6tese da arbitragem estivercorreta,o controle de capitais nao sera adotado, pois 0 projeto lulistanao e 0 de resolver as contradicoes em favor de uma das coalizoes, esim de mante-las em relativo equilibrio, cujo patamar e determina-do pela necessidade de favorecer 0 subproletariado com crescimen-to medio e inflacao baixa.

Deve-se observar que, se 0 problema do cambio provoca fis-sura entre 0 capital financeiro e 0 capital industrial, do lado dacoalizao produtivista ha igualmente contradicoes internas. Comovimos acima, na terceira fase do governo Lula brasileiros de baixarenda puderam ir alem de comprar bens de subsistencia e apare-lhos eletronicos, tipicos das etapas 1 e 2, adquirindo carros e casasfinanciados em longo prazo. Os capitalistas das cadeias automobi-listicas e de construcao civil aumentaram a producao e auferiramlucros maiores; os trabalhadores alcancaram salaries superiores.Todos estao felizes, s6 que 0 aumento do emprego gera incremen-to das reivindicacoes trabalhistas, leia-se: greves, as quais separamempresarios de trabalhadores.

Sob 0 governo Lula, foram criados 10,5 milhoes de vagas

100. Direcao Execu tiva Nacional da cur, Plataforma da CUT para as eleifoes 2010,Sao Paulo, 2010, p. 50.

165

Page 84: Os Sentidos Do Lulismo

com carteira assinada,'?' com acrescimo de 10% na massa de ren-da do trabalho apenas entre 2009 e 2010.102A quase totalidade dosdissidios em 2010 resultou em elevacao salarial acima da inflacao,o que ja vinha ocorrendo antes da crise. Urn novo proletariadoentrou no mercado, em condicoes precarias, porem apto a se inte-grar ao universo sindical, que incorporou as necessidades dos re-cern-chegados ao diagn6stico da situacao p6s-lulismo. "Apesardos 10 rnilhoes de novos empregos gerados, 0 mercado de traba-lho brasileiro se caracteriza por elevadas taxas de rotatividade,desemprego e de informalidade, precariedade dos postos de tra-balho, crescimento indiscriminado da terceirizacao e fragilidadedo sistema de relacoes de trabalho", dizia a plataforma da CUT paraas eleicoes presidenciais de 2010.103

Aqui chegamos a item essencial: 0 subproletariado e 0 prole-tariado tern interesse comum no pleno emprego, pois ele criacondicoes de luta favoraveis a classe trabalhadora. Nao se devedescartar a possibilidade de que bandeiras hist6ricas dos opera-rios, como a reducao da jomada de trabalho para quarenta horase a reforma tributaria progressiva, simbolizada no imposto sobregrandes fortunas, retomem a cena, fortalecidas pela unificacaodos estratos recentes e antigos do proletariado. Em resumo: se aplataforma do subproletariado niio implica necessariamente a redu-~iioda desigualdade, abre aporta para um avan~o igualitatio, caso afra~iio antiga da classe trabalhadora for capaz de politizar a nova.

o reforco na posicao dos trabalhadores, por outro lado, fariamais presentes os confiitos no interior da coalizao produtivista em

101. De acordo com as estimativas de Ioao Sicsu, "Re-visoes do desenvolvimen-to", Inteiigencia, n. 49, em <www.insghtnet.com.br>.consultado em 20 jul. 2010,p.93.102. Folha de S.Paulo, 29 novo2010, p. A2.103. Direcao Executiva Nacional da CUT, Plataforma da CUT para as eleicoes 2010,Sao Paulo, 2010, p. 13.

166

tor~o do escopo do Estado de bem-estar a ser criado no Brasil,conforme previsto pela Constituicao de 1988.104 Reduzir a pobrezapor meio da transferencia de renda para segmentos pauperizados.euma coisa; diminuir rapidamente a desigualdade por meio dauniversalizacao dos direitos a habitacao digna, saneamento, segu-ridade social, saude, educacao, seguran<;:aetc. e outra. Os progra-mas de transferencia de renda as familias, cujo valor subiu de 7%para 9% do PIB no govemo Lula, adquiriram legitimidade com 0

sucesso do segundo mandato lulista e a eleicao de Dilma. Comisso, 0 Bolsa Familia podera se tomar urn direito reconhecido naConstituicao, no bojo de uma Consolidacao das Leis Sociais (CLS)

que Dilma teria a chance de envia.r ao Congresso na legislatura2011-14, deixando de ser uma concessao revogavel, uma "dadiva"governamental, Apesar de constar das diretrizes aprovadas pelo PT

em 2010, ate meados de 2012 0 governo Rousseff nao havia coloca-do a CLS na pauta. 0 govemo informou que atuara em tres frentespara eliminar a miseria: "inclusao produtiva, ampliacao dos servi-<;:ossociais e a continuacao da ampliacao da rede de beneficios"!"

Desde 0 inicio, de acordo com Tania Bacelar, ao ser retiradona Caixa Economica Federal mediante uso de cartao personaliza-do, 0 BF nao pode ser usado para fins clientelistas, pois nao esta nopoder de politicos locais a distribuicao dos recursos mediante 0

compromisso do votO.I06 No entanto, a expansao ~e direitos uni-versais - que reduzissea desigualdade a niveis rooseveltianos-

•••••••••••••••••••••••••••••••••

104. Deve-se lembrar que, do mesmo modo que 0 agroneg6cio e urn possivelcomponente da coalizao que unifica 0 capital financeiro e a classe media tradi-cional, os movimentos socia is, com 0 MST a frente, sao participes potenciais dacoalizao produtivista.105. Simone Iglesias e Breno Costa, "Governo criara 'PAC' para combate da mise-ria",Folha de S.Paulo, 7 jan. 2011, p. All.106. TAnia Bacelar, "Mudancas e desafios no Brasil e no mundo", em E. Pieta(org.), A nova politica econ~.mica, a sustentabilidade ambiental, p. 17.

167

-

Page 85: Os Sentidos Do Lulismo

..•It•It••I•t••••••••••••:••••••••••

implicaria formas de financiamento que dependem de reformatributaria, a qual nao encontra consenso na coalizao produtivista,dividida entre uma posicao a favor do corte de impostos e outrade faze-los mais progressivos. Urn born exemplo da disc6rdia estana campanha liderada pela Fiesp que resultou na queda da CPMF

em dezembro de 2007, impedindo maio res progressos na implan-tacao do sus na segunda e na terceira fase do governo Lula.

A pressao da burguesia e da classe media tradicional em favorda reducao fiscal representa a opcao por pIanos de saude e escolasprivadas e contrapoe-se as visoes negativas a respeito do lucro noatendimento de necessidades fJndamentais como medicina eeducacao, que se originam na postura anticapitalista do movimen-to operario dos anos 1980. Deve-se considerar que essa divisao sepropaga ao campo, com 0 agroneg6cio tendendo a ser privatista, eos movimentos sociais, com 0 MST em destaque, apoiando 0 blocoigualitario.

Em resumo, a reducao da pobreza que 0 lulismo promoveabre espa<;:opara a diminuicao da desigualdade. Mas se ela se daraem velocidade rooseveltiana vai depender de condicoes que anali-saremos no pr6ximo capitulo.

168

4. Sera 0 lulisrno urn reforrnisrnofraco?

Que duracao se pode esperar do lulismo? Que transforma-<roesacarretara na sociedade se tiver perman en cia? Como ospartidos e as ideologias se reordenarao a partir dessas mudancasio tipo de perguntas de que trata este ultimo capitulo envolveconsideravel risco, po is as ciencias socia is costumam errar naprevisao do amanha. Ainda assim, enfrentar 0 desafio de perscru-tar 0 futuro parece a melhor maneira de conduir a analise da si-tuacao presente.

o TESTE ELEITORAL DO LULISMO

A vit6ria de Dilma Rousseff na eleicao de outubro de 2010mostrou a vigen cia do realinhamento e garantiu por pelo menosmais quatro anos a extensao do lulismo. Candidata sem passado nasurnas, indicada por Lula por ser a sua principal auxiliar no Executi-yo, obteve 47% dos votos validos 'no primeiro turno e 56% no se-gundo, ernul ando a votacao de Lula em 2002 (47% e 61%, respecti-

169

Page 86: Os Sentidos Do Lulismo

vamente no primeiro e no segundo turno) e em 2006 (49% noprimeiro turno e 61% no segundo). A hipotese de que tenha se ge-rado maio ria estavel, determinante de ciclo longo na politica brasi-leira, passou pelo primeiro teste de realidade. Nao so por repetir asmesmas proporcoes pela terceira vez em seguida, como em funcaodo comportamento diferenciado dos mais pobres e do Nordeste,que reproduziu 0 esquema social e regionalmente polarizado de2006,0 pleito de 2010 denotou a vitalidade do lulismo.

Se compararmos as intencoes de voto em Lula (2006) e emDilma (2010) de acordo com a renda, verificaremos que amboscontaram com expressivo apoio entre aqueles cujas familias aufe-riam ate dois salaries minimos mensais: Lula, 55% e Dilma, 53%(ver a tabela 1 no capitulo 1 sobre 0 primeiro turno de 2006 e,abaixo, a tabela 5, referente ao primeiro turno de 2010). Entre osde menor ingresso, Lula e Dilma tinham maio ria sobre a soma dosdemais concorrentes: dezenove pontos percentuais de vantagem,no primeiro caso, e quinze pontos percentuais, no segundo. Ouseja, 0 conjunto das intencoes de voto de Geraldo Alckmin, Helot-sa Helena e Cristovam Buarque, em 2006, e as de Jose Serra e Ma-rina Silva, em 2010, ficavam bem atras das que tinham isolada-mente Lula e Dilma na camada mais pobre do eleitorado.

Mas 0 equivalente nao ocorria nas demais faixas de renda.Em 2006, os que tinham ingresso familiar de dois a cinco SM, quecorrespondem, aproximadamente, a parcela inferior da classe C,tendiam a dar nove pontos percentuais de vantagem aos adversa-rios de Lula. Do mesmo modo, em 2010, Dilma, com 43%, ficavasete pontos percentuais abaixo de Serra e Marina somados. Nosdois estratos superiores de renda, a distancia a favor da oposicaotornava-se, entao, gritante: acima de trinta pontos percentuais em2006 e perto de vinte pontos percentuais em 2010. Se dependesseapenas dos eleitores de renda familiar mensal acima de dez sala-

170

..

TABELAS:

INTEN«AO DE VOTO POR RENDA FAMILIAR MENSAL NO

PRIMEIRO TURNO DE 2010

ATE 2 SM + DE2 a5 SM + DE5 a 10 SM + de 10 SM TOTAL

Dilma 53% 43% 37% 31% 47%

Serra 26% 31% 34% 38% 29%

Marina 12% 19% 22% 23% 16%

Outros .. .. .. .. 1%

ss/Nulo/2% 2%. 2% 3% 2%

Nenhum

Nao sabe 6% 3% 2% 2% 4%

TOTAL 100% 100% 100% 100% 100%**

•4141•••••t••t••II••••••••••••••••••

Fonte: Datafolha, em <www.datafolha.com.br>.Pesquisacom amostra nacionalde 20 960 eleitores em 521 n:tunicipios realizada entre 1Q e 2 de outubro de 2010."Informacao nao fornecida pelo Datafolha.**P~quenas variacoes no total correspondem ao arredondamento das porcen-tagens.

rios rninimos, os primeiros colocados nos turnos iniciais de 2006e 2010 teriam sido Geraldo Alckmin e Jose Serra.

Deve-se reiterar que isso nao ocorreu em 2002, quando avantagem de Lula sobre a soma dos outros concorrentes aumenta-va conforme subia a renda, como se pode ver na tabela 10 do Apen-dice. Recorde-se que 0 pleito de 2002 aconteceu no modelo ante-rior ao deslocamento de classe de 2006 (como vimos no capitulo1,entre 1989 e 2002 havia tendencia de a votacao em Lula ser me-nor entre os eleitores de baixissima renda). Por isso, em 2002, osadversaries de Lula reunidos o superavam nas faixas de rendamais baixas, mas nao nas mais altas.-,

171

Page 87: Os Sentidos Do Lulismo

TABELA6: ''\"

INTEN<;:AO DE VOTO POR RENDA FAMILIAR NO

SEGUNDO TURNO DE 2010

ATE 25M + DE2a5 5M + DE5 a io SM + de 10 SM TOTAL

Dilma 56% 49% 45% 39% 51%

Serra 36% 43% 48% 54% 41%

BR/Nulo/3% 5% 5% 6% 4%Nenhum

Nao sabe 5% 3% 2% 1% 4%

TOTAL 100% 100% 100% 100% 100%

Fonte: Datafolha, em <www.datafolha.com.br>.Pesquisacomamostranacionalde 6554 eleitores realizada entre 29 e 30 de outubro de 2010.

o mesmo vale para 0 segundo turno (tabela 6). Observadasas intencoes de sufragio por renda, verifica-se que no segmento deate dois SM Dilma conseguiu vinte pontes percentuais acima deSerra. No outro extremo, os eleitores com renda superior a dez SMfizeram 0 contra rio, dando a vitoria a oposifiio por uma diferenca dequinze pontes percentuais. De urn extrema a outro, a evolucao elinear: quanta menor 0 ingresso do entrevistado, maior a chancede votar na candidata do PT; ao contrario, quanto mais abonado,maior a probabilidade de escolher 0 candidato do PSDB.

o efeito foi que Dilma perdeu nos dois estratos acima decinco SM. Entre os eleitores de melhor situacao (mais de dez SM),

Dilma cresceu oito pontos percentuais, indo de 31% a 39%, en-quanta Serra amealhou dezesseis pontos percentuais a mais, pas-sando de 38% para 54% e abrindo vantagem expressiva sobre aconcorrente. Isso significa que a parcela majoritaria dos simpati-zantes mais ricos de Marina deve ter se voltado para Serra no se-

172

gundo turno, enquanto outra decidiu nao apoiar nenhum dos fi-nalistas, pois a candidata ambientalista reunia 23% das intencoesde voto no primeiro turno (tabela 5).

No segmento de cinco a dez SM, Dilma cresceu oito pontospercentuais entre 0 primeiro e 0 segundo turno, ao passo que Serraacrescentou catorze pontos percentuais ao seu cabedal. Estabeleceu--se, entao, urn empate dentro da margem de erro. 0 mesmo aconte-ceu entre os eleitores de dois a cinco SM (como ja foi dito, generica-mente semelhantes a parte inferior da classe C), grupo em que Serracresceudoze pontes percentuais, aproximando-se da intencao de votoem Dilma. A diferenca de seis pontos a favor de Dilma ficou pertoda margem de erro (dois pontos percentuais para cima e do is parabaixo). Foi, portanto, unicamente no estrato de renda inferior que acandidata lulista teve expressivo exito tambern no segundo turno.

Uma vez que cerca de metade do eleitorado esta no ultimosegmento de renda, isso decidiu 0 pleito a favor de Dilma, ernbo-ra por margem mais estreita (doze pontos percentuaisde vanta-gem) que a de Lula em 2002 e 2006 (22 pontos percentuais devantagem nos dois casos). A explicacao para a diferenca esta,provavelmente, no comportamento dos eleitores de menor ren-da, grupo em que Lula teve uma superioridade de 39 pontes per-centuais com relacao a Alckmin no segundo turno de 2006, sendoa de Dilma com relacao a Serra quase a metade disso no segundoturno de 2010. Nesse ponto 0 corte social cruza-se com 0 regio-nal, pois e possivel que parte dos eleitores mais pobres do Sul/Sudeste tenha alterado a escolha entre 2006 e 2010, ja que os re-sultados alcancados por Dilma no Nordeste foram ultrapositivos,como os de Lula em 2006.

A tabela 11 do Apendice registra a concentracao de votos emDilma no Nordeste. No SuI, no Sudeste e no Centro-Oeste, a somados candidatos adversaries suplantou a governista no primeiroturno, enquanto no Norte houve empate. No Nordeste, contudo, 0

173

Page 88: Os Sentidos Do Lulismo

governo foi capaz de superar os oposicionistas por 6 milhoes devotos. No segundo turno, Dilma ganhou na Amazonia e Jose Serranos pampas, provavelmente porque 0 eleitor de Marina derivoupara 0 PSDB no Sul e para 0 PT no 'Norte (tabela 12 do Apendice). 0Sudeste se dividiu, com 0 lulismo vencendo por estreitos quatropontos percentuais. 0 que realmente decidiu a eleicao foi 0 Jato deDilma ter tido mais de quarenta pontos percentuais de diferenca so-bre Serra no Nordeste! Note-se que, dos 12 rnilhoes de votos quesepararam Dilma de Serra no segundo turno, 11 rnilhoes vieramdo Nordeste, tendo 0 PSDB vencido no Sul e no Centro-Oeste (dife-renca compensada pelos votos lulistas no Norte, que deram aDilma ali supremacia de catorze pontos percentuais). Os tucanosganharam ainda em Sao Paulo, 0maior colegio eleitoral da federa-cao, porem os votos lulistas em Minas Gerais e no Rio de Janeiroequilibraram 0 quadro no Sudeste, Em resumo, pode-se dizer quehouve quase urn empate no resto do pais, com a candidata do PT

vencendo gracas ao dominie absoluto do Nordeste.A discriminacao regional confirma que 0 lulismo fincou rai-

zes nas regioes pobres do Brasil (Norte e Nordeste). Assim, se everdade que 0 resultado em favor de Dilma nao teria sido possivelsem con tar com alguma representatividade em todos os locais, eem particular junto aos pobres de todas as regioes, a forca do lulis-mo no Nordeste mostrou-se esmagadora, denotando, mais umavez, estarmos em face de nossa "questao setentrional", conformeapontei na Introducao. Solidificou-se em 2010 uma polarizacaoque e simultaneamente social e regional. Note-se que, no Sudeste,e em Minas Gerais, cuja parcela setentrional se aproxima social-mente do Nordeste, que Dilma con segue 0 seu melhor resultadono primeiro turno: 47% dos votos, contra 31% de Serra e 21% deMarina. A transferencia de votos de Lula para Dilma entre os maispobres e no Norte/Nordeste implica que 0 projeto politico de re-duzir a pobreza sem contestar a ordem, particularmente nos bol-

174

-sees de atraso regional em que a pobreza se fixou ao longo da his-t6rfa brasileira, conquistou coracoes e mentes, tornando plausivela longa duracao para 0 lulismo que venho supondo desde 0 iniciodesta exposicao,

II •

A DEPEND~NCIA DAS COMMODITIES

Argumenta -se aqui e ali que, na realidade, para alem das urnas,o lulismo seria puro reflexo de situacao internacional favoravel, e quese extinguiria com a sua desaparicao, As vit6rias eleitorais seriamdecorrentes do sucesso da economia e este nao passaria de efeitoconjuntural da expansao capitalista, Everdade que, conforme assi-nalamos no capitulo 3, circunstancias externas especiais cercaram 0

nascimento do lulismo. Cabe agora indagar 0 quanta essas circuns-tancias podem durar e 0 quanta determinam 0 futuro do lulismo.

Depois de urn perlodo de turbulencia, pontuado pela criseasiatica em 1997, a russa em 1998, a brasileira em 1999 e a argenti-na em 2001, a economia mundial voltou ao ritmo de crescimentodos "exuberantes anos 1990" entre 2003 e 2007. A expansao eco-nornica mundial pulou de 2,8% em 2002 para 5,1% em 2006.1

Alem do "vento a favor" representado pelo crescimento mundial,houve 0 boom do prec;:odas 'commodities, que nao a,contecia haviavinte anos. De acordo com Gilberto Libanio, utilizando dados daUnctad de 2007, as commodities tiveram valorizacao media de89% no periodo 2002-06.2

1. Dados elaborados por Arnir Khair. Na serie, apenas 0 crescirnento de 2005mostrou urn pequeno recuo, ficando em 4.5%. urn pouco abaixo dos 4.9% doano an terior.2. Gilberto Libanio, "0 crescirnento da China e 0 seu irnpacto sobre a econorniarnineira". Consultado em<www.cedeplar.ufrng.br>. 18 jan. 2011.-,

175

Page 89: Os Sentidos Do Lulismo

-Os motivos que levaram a elevacao dos precos dascommodi-

ties sao assunto de debate entre especialistas. Daniela MagalhaesPrates sugere que 0 aumento de.precos po de estar ligado a umasobreposicao de fatores como a pr6pria recuperacao econornicaglobal, a desvalorizacao do d6lar, a bolha especulativa fomentadapelas baixas taxas de juros nos paises centrais e 0 crescimento eco-nornico da China.' Seja como for, parece claro que 0 ciclo de ex-pansao de 2003 a 2007 foi marcado por deslocamento de indus-trias para a China e secundariamente para a India, que se somaramas existentes na Coreia do SuI e ern.Taiwan, formando urn robusto,polo fabril no Leste da Asia, 0 qual gera extensa dernanda. porcommodities:' Para 0 Brasil, produtor de leque variado delas(soja, acucar, alcool, minerio de ferro, petr6leo, carne, laranjaetc.), 0 ciclo expansivo acompanhado da valorizacao dos produtosexportados foi "uma grande sorte"," conforme Bresser-Pereira,pois ajudou a puxar a economia para cima, apesar das politicascontracionistas adotadas no primeiro mandato de Lula, sobretu-do ate 2005.

o raciocinio faz sentido. Conforme recorda Aloizio Merca-dante sobre 0 primeiro trienio (2003-05) de Lula, "a taxa de jurosfoi urn dos pivos do debate sabre politica monetaria que produziutensoes dentro do governo. Predominou a visiio mais ortodoxa, fa-

3. Daniela Magalhaes Prates, "A alta recente dos precos das commodities", Rnvistade Economia Politica, vol. 3, n. 27,jul./set. 2007.4. Alguns anos, e uma crise mundial, depois de terem comecado a subir, os pre~osdas commodities ainda estavam em alta no inlcio de 2012, quando este livro eraredigido. A explicacao principal continuava a ser a crescente demanda dos palsesemergentes. Ver Roberto Rodrigues, "Inflacao de alimentos: culpa de quem?",Folha de S.Paulo, 12 fev. 2011. 0 Indice eRB,"indicador das oscilacoes das prin-cipais commodities", subiu 19%, em reais, de julho de 2010 a janeiro de 2011. Vertambern Arnir Khair, "N6s a desatar", 0 Estado de S. Paulo, 13 fev.2011.5. Ver entrevista com Luiz Carlos Bresser-Pereira na Revista de Economia daPUC-SP, ana 1, n. 2 (jul./dez. 2009), e ana 2, n. 3 (jan./jul. 2010), p. 66.

176

voravel a uma desinflacao mais rapida e intensa, em contrapontoas posicoes que defendiam a acomodacao da politica monetaria,de maneira a reduzir os custos fiscais e economicos envolvidos naelevacao excessiva da taxa de juros'" Como as taxas de juros bra-sileir~s - que nunca deixaram de estar entre as mais altas domundo - s6 encontrariam nivel menor no segundo mandato, aforca da expansao mundial associada a valorizacao das commodi-ties e parte da explicacao para 0 B.rasilter aumentado em mais de67% 0 seu ritmo de crescimento ainda no primeiro mandato deLula em relacao ao segundo mandato de FHC (de 2,1% para 3,5%).

Em outras palavras, 0 pais cresceu mesmo com as relevantestransferencias do Estado para os setores rentistas por meio dosaltos superavits primaries realizados parapagar 0 service da divi-da. Embora a proporcao do PIB comprometida com 0 superavitprimario tenha crescido no primeiro mandato de Lula em compa-racao ao segundo de FHC (de uma media de 3,7% para uma mediade 4,2%), 0 ritmo economico se acelerou.' A conjuntura interna-cional e parte da explicacao de que tenha sido possivel acelerar aeconomia - sem 0 que a opcao pelo mercado interno nao teria seviabilizado - e fazer concessoes ao capital financeiro ao mesmotempo, evitando, portanto, 0 confronto politico e mantendo 0

compromisso de realizar gestae de "paz e amor".Em segundo lugar, com 0 boom das commodities a balanca

comercial brasileira tornou-se crescentemente superavitaria de2002 para 2006, multiplicando por mais de tres 0 saldo positivoentre exportacao e importacao, 0 qual saltou de 13,2 bilhoes de

6.Aloizio Mercadante, Brasil, a construiao retomada, p. 94. (Grifos meus.)7.Mariana Ribeiro Jansen Ferreira, "Financeirizacao: impacto nas prioridades degasto do Estado - 1990 a 2007", em R. M. Marques e M. R. J. Ferreira (orgs.), 0Brasil sob a nova ordem, p. 70.

177

Page 90: Os Sentidos Do Lulismo

dolares para 46,4 bilhoes de d6lares no perlodo." 0 crescimentodo valor das exportacoes auxiliou 0 governo a resolver 0 quadrode constrangimento externo que caracterizou a gestae de Cardosoentre 1999 e 2002. Alern disso, "a partir de fins de 2004", houveigualmente forte expansao da liquidez internacional.? Os do ismovimentos conjugados permitiram ao Banco Central do Brasilacumular reservas em dolar - politica destinada a proteger pro-blemas futuros da balanca de pagamentos. As reservas mais quequintuplicaram entre 2002 e 2006, e a relacao divida externa/ns,que chegara a 42% em 2002, foi reduzida para 16% em 2006.100governo Lula pode, entao, fazer 0 gesto simb6lico de quitar com-pleta e antecipadamente 0 debito com 0 FMl, em dezembro de2005. Ironicamente, foi a subida do pre~o das commodities e a en-trada de capital estrangeiro que permitiu "tirar daqui 0 FMl",poranos uma das principais bandeiras da esquerda no Brasil.

No entanto, a conjuntura internacional e apenas metadeda missa. As opcoes pela transferencia de renda e expansao decredito aos mais pobres, feitas desde 0 inicio do governo, aindana vigencia da "politica de apertar os cintos bem forte, com adespesa publica cain do em todas as suas categorias";" perrniti-ram que a oportunidade aberta pela expansao mundial fosseaproveitada de maneira singular. Nao foi a melhora das condi-<roesmacroeconornicas que fez alguma "sobra" chegar aos po-bres, como parece acreditar parte dos observadores. Segundo 0

8. Antonio Correa de Lacerda, "Finahciamento e vulnerabilidade externa daeconomia brasileira", em R. M. Marques e M. R. J. Ferreira (orgs.), 0 Brasil sob anova ordem, p. Ill.9. Aloizio Mercadante, Brasil, a construfao retomada, p. 84.10. Idem, ibidem, p. 89.II. Nelson Barbosa, "Uma nova politica macroecon6mica e uma nova politicasocial'; em E. Pieta (org.), A nova politico economica. a sustentabilidade ambiental,p.30.

178

-levantamento organizado por Nelson Barbosa (ver no quadro 1do Apendice urn extrato dele), houve nitida opcao logo em 2003:enquanto se reduziam os gastos com pessoal e investimentos, atransferencia de renda as [amilias aumentava. Mesmo antes de 0

crescimento ser retomado, houve urn aumento da parcela do PIBdestinada aos mais pobres, de tal forma que, quando a economiase aqueceu, iria encontrar urn mercado interno ativado, consti-tuido pelos beneficiaries do Bolsa Familia e do credito consigna-do, aos quais viria a se agregar a valorizacao do salario minimo apartir de 2005.

. Foi a fortuna da conjuntura.internacional associada a virtu deapostar na reducao da pobreza corn ativacao do mercado internoque produziu 0 suporte material do lulismo. Assim, a expansaomundial acabou por potencializar 0 mercado interno de regioeshistoricamente deprimidas, sobretudo 0 Nordeste, 0 que naoaconteceria caso certas medidas nao tivessem sido tomadas nomomento propicio. No.segundo mandato, com os juros em que-da, 0 governo passou a ter maior largueza de receita, permitindorecomposicao dos gastos em investimentos e com pessoal compri-midos na primeira fase. A medida que 0 PIB crescia, aumentavatambem a quantidade de recursos transferidos para os mais po-bres, como foi 0 caso da valorizacao do salario mlnimo e do pro-prio Bolsa Familia no segundo 'mandato, Entretanto, 0 impulsoinicial fora dado anteriormente.

Quando veio a crise mundial de 2008 - revertendo as boascondicoes internacionais do periodo previo -, foi possivel apre-sentar aos capitalistas a perspectiva de vender carros e casas parauma classe C ampliada no Brasil, pois ela ja existia. Como vimosno capitulo 3, 0 governo na ocasiao usou dos recursos publicos,em particular os bancos estatais, para garantir linhas de financia-mento as empresas, recuperando uma capacidade de inducao daatividade economica p~~dida desde 0 fim do "milagre" econorni-

179

Page 91: Os Sentidos Do Lulismo

-CO.12 Ern outros termos, a duplicacao do preco das commoditiesajudou a multiplicar os efeitosda politica de aumento da dernan-da interna, mas e urn erro reduzir 0 lulismo a urn reflexo da con-juntura internacional.

Embora a situacao da economia mundial tenha funcionadocomo urn fator do sucesso do lulismo, a ativacao do mercado in-terno por meio do aumento do consumo dos mais pobres e a re-constituicao de instrumentos estatais para induzir a atividadeecon6mica foram elementos autonomos, que dependeram de de-cisoes politicas internas. Porta~to, 0 que se deveria esperarern

d - d . . . 1.( Icaso e nova retracao a econorma mternaciona t:: que 0 goyernoprocurasse sustentar 0 ritmo de crescimento tendo por eixo 0

mercado interno, como se deu em 2009. Saber se tent exito ultra-passa os limites deste livro. 0 argumento que desejamos fixar eque a durabilidade do lulisrno nao depende exclusivamente dascondicoes externas. Alem disso, ninguern sabe prever a duracaodo atual ciclo de cresciinento da China e de elevacao dos pre(j:osdas commodities, nao se podendo descartar que ela persista 0 sufi-ciente para que 0 lulismo atinja ao menos parcela de seus objeti-vos. Ern outras palavras, 0 sucesso do lulismo pode vir a dependerdo resultado da disputa entre as coalizoes produtivista e rentistadescrita no capitulo 3, e nao da conjuntura internacional.

o LULISMO COMO "REFORMISMO FRACO"

Uma decorrencia de combater a pobreza e os desequilibriosregionais, alern de ativar 0 mercado interno onde ele estava maisdeprimido, e reduzir a tremenda desigualdade brasileira. A opcaode Lula pelos mais pobres revelaria nao ser correta a avaliacao que

I

12.A tese, enunciada de outra forma, ~do ex-rninistro Delfim Netto.

180

ve urn "carater completamente neoliberal do seu governo"," poisuma das caracteristicas do neoliberalisrno e favorecer 0 aumentoda desigualdade. Procurei mostrar no capitulo precedente que aspoliticas de inclusao nao teriam sancionado as "fraturas socia is",14mas sim favorecido a diminuicao da desigualdade. Entretanto,para melhor compreender 0 lulismo, e necessario qualificar me-lhor 0 igualitarismo ern marcha.

As objecoes ao que seria 0 t.ra(j:oigualitario do lulismo se-guem tres direcoes. A primeira contesta os pr6prios instrumentosde mensuracao. A segunda atribui a meras politicas compensate-rias, de natureza neoliberal, 0 avan(j:oporventura obtido. A tercei-ra reconhece algum progresso, mas reputa-o lento, a ponto de naosignificar mudanca estrutural. Vejamos cad a uma delas.

o indice de Gini no governo Lula caiu de 0,58 (2002) para0,53 ern 2010, enquanto no governo FHC, cujo carater neoliberal eaceito por segmento consideravel dos analistas, ficou praticamen-te estagnado, indo de 0,59 ern 1995 para 0,58 ern 2002, de acordocom a serie construida pelo Centro de Politicas Sociais da FGV-Rj

(ver quadro 2 do Apendice)." De acordo corn Marcelo Neri, con-siderado 0 intervalo de 2001 a 2009, "nao ha na hist6ria brasileira,estatisticamente documentada desde 1960, nada similar a reducaoda desigualdade de renda observada". Segundo os calculos da FGV-

-Rj, nesse periodo "a renda dos 10% mais pobres cresceu 456%mais do que ados 10% mais ricos"," Os numeros, portanto, silonitidos na dernonstracao de que, medida pelo Gini, houve redu-(j:aoda desigualdade no governo Lula. Contudo, seria 0 Gini sufi-

13.Leda Paulani, Brasil delivery, p. 71.14. Idem, ibidem.15.Marcelo Neri, A nova classe media, 0 lado brilhante dos pobres, p. 40. Nao existeo dado para 1994.16.Marcelo Neri, "Bolsa Familia", Folha de S.Paulo, 30 dez. 2010, caderno 0 ba-lance da decada, p. 6.

181

Page 92: Os Sentidos Do Lulismo

ciente para mensurar a desigualdade? 0 Gini nao refletiria so-mente a distribuicao da renda do trabalho, deixando de lado areparticao da riqueza entre capital e trabalho, a chamada distri-buicao funcional, que teria continuado a se deslocar na direcao docapital durante 0 governo Lula, aumentando a desigualdade? Taissao as questoes postas pelos criticos.

Ocorre que os dados processados pelo Ipea" e referidos porIoao Sicsu e Marcio Pochmann indicam uma diminuicao tambernda desigualdadefuncional da renda (ver quadro 3 do Apendice).Isto e, a participacao do trabalho na renda nacional aumentoudurante 0 governo Lula. Em consequencia, pode-se dizer que ossinais captados pelo que seria uma medida alternativa ou comple-mentar ao Gini apontam igualmente reducao da desigualdade.P

Estabelecida, segundo Sicsu e Pochman, a convergencia dosIndices, convem notar, contudo, que tais medicoes padecem deproblemas semelhantes aos da mensuracao da pobreza. 0 sociolo-go Goran Therborn assinala que "e dificil obter bons dados sobrea distribuicao da renda, particularmente na base e, sobretudo, notopo da escala"," E sabido que os muito ricos tendem a omitirparte da renda nas pesquisas. Therborn registra, ainda, que empoucos paises do mundo os impostos sao usados como fonte dedados, tendo os estudiosos, no mais das vezes, que se fiar em en-

17. Ver Ipea, "Distribuicao funcional da renda pre e p6s crise internacional doBrasil", Comunicados do lpea, n. 47, maio 2010. Ver tarnbern as referencias aostrabalhos de Sicsu e Pochmann no capitulo 3.18. Na arguicao da tese que deu origem a este livro, Leda Paulani afirmou que,nas "ultimas series das Contas Nacionais completas publicadas pelo IBGE, a dis-tribuicao funcional da renda se altera no sentido contrario", isto e, a favor docapital, "quando incluimos dentro do grupo das rernuneracoes do trabalho osrendimentos autonomos"; comunicacao oral, FFLCH/usp,30 set. 2011. Em bene-ficio da duvida e de futuras investigacoes, deixo aqui 0 registro da observacao.19. Goran Therbom (ed.), Inequalities of the world, p. 29.

:&

-quetes domiciliares, as quais sofrem os tradicionais empecilhos derecusa, dificuldade de acesso representativo aos diversos estratos efalhas no preenchimento dos questionarios, No en tanto, tomandoo cuidado de saber que se lida com estatisticas imprecisas, Ther-born acha possivel conhecer, com graus variados de definicao, asituacao de desigualdade em diversos palses e, para tanto, usa ex-tensivamente 0 coeficiente de Gini. A boa noticia e que 0 sociologosueco considera os dados brasileiros particularmente confiaveis,

Para complementar 0 Gini, Therborn apresenta a parceia darenda nacional apropriada pelos 10% mais ricos comparada aque-Ia obtida pelos 10% mais pobres em oito paises. Em torno do ana

, . .

2000, a Cepal registrava, no Brasil, que os 10% mais ricos ficavamcom 47% da renda, enquanto os 10% mais pobres, com 0,5%,uma diferenca na epoca maior que a da Africa do SuI, por exem-pIo, e so menor que a da Namibia. Na Suecia, 0 pais menos desi-gual do grupo, a relacao era de 22% para 4% (ver quadro 4 doApendice), Em resumo, a situacao brasileira era, nesse aspecto, dasmais graves no final do seculo xx.

Ocorre que, de acordo com 0 CPS/FGV, entre 2001 e 2009 arenda per capita dos 10% mais pobres aumentou 6,8% ao ano,enquanto ados 10% mais ricos cresceu apenas 1,5% ao ano." Emvirtude disso, para 2009 0 Ipeadata informava que os 10% mais

\rices haviam ficado com 43% dariqueza nacional segundo a ren-da domiciliar per capita, enquanto a proporcao dos 10% mais po-bres subira para 1%,2l Se olharmos agorao quadro 5 do Apendice,com os dad os atualizados depois do governo Lula, e 0 comparar-mos com 0 quadro 4 do Apendice, veremos que a posicao brasilei-ra mudou, colocando-nos em melhor condicao da que tinha pertodoano 2000 a Africa do Sul, embora ainda seja pior que a do Me-

.

20. Marcelo Neri, A nova classemedia: 0 lado brilhante dos pobres, p. 10.21.Ver <www.ipeadata.gov.be.consultadoem 15 fev. 2011.

183

Page 93: Os Sentidos Do Lulismo

xico na mesma epoca. Em outras palavras, os dados revelam que,em materia de desigualdade, houveprogresso no Brasil durante 0

governo Lula, mas 0 quadro continua muito ruim.A segunda corrente de argumentosque contestam 0 carater

igualitario do governo Lula afirma que, mesmo aceitando-se al-gum progresso, os avances teriam sido obtidos gracas a politicascompensat6rias de vies neoliberal, apreciacao que mereceria umadiscussao de fundo da qual nao podernos, por ora, nos ocupar.Entretanto, cumpre indicar que as transferencias foram a fracaomenor do movimento de reducao da desigualdade promovido

"

pelo lulismo. Se e verdade que 0 Bolsa Familia teve papel destaca-do no combate a pobreza extrema, segundo Neri a queda do indicede Gini se deve, sobretudo, aos "rendimentos do trabalho", res-ponsaveis por 66% da reducao da desigualdade. 0 aumento dosbeneficios previdenciarios explica 16% da reducao e os programassociais, 17%.12Isso quer dizer que 0 fator fundamental na reducaoda desigualdade durante 0governo Lula foi 0 expressive aumento doemprego e da renda, na qual a valorizacao do salario minimo teverol crucial, e nao as politicas compensat6rias, fossem elas de corteneoliberal ou nao,

o terceiro argumento que busca relativizar a queda da desi-gualdade no governo Lula pode ser diretamente vinculado aosnumeros dos quadros 4, 5 e 6 do Apendice. Em resumo, nessavertente reconhece-se que houve queda da desigualdade no Brasil,mas afirma-se que ela e residual, deixando 0 grosso da iniquidadeinalterada. Essa objecao encontra respaldo no pr6prio coeficientede Gini. Se olharmos para 0 Gini brasileiro de 2010 (quadro 6 doApendice), e facil verificar que continua alto, indicando potentedesigualdade de renda, a qual e corroborada pela relacao assime-trica entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres, usada como

22. Marcelo Neri, A nova dasse media, 0 lado brilhante dos pobres; p. 44.

184

fonte complementar (quadros 4 e 5 do Apendice). Ainda que te-nha diminuido a desproporcao, 0 decil superior acumula quarentavezesmais riqueza que 0 de baixo. Como se ve, 0 Gini brasileiro ebem mais alto que 0 de paises como a Alemanha e a Espanha, fi-cando pr6ximo de nacoes da America Latina e da Africa, emborase avizinhando do caso norte-americano, uma vez que la as assi-metrias tern crescido desde a decada de 1980.

Desde esse ponto de vista, e correto afirmar que, mesmo ten-do havido reducao da desigualdade no governo Lula, ela foi insu-ficiente para tirar 0 pais do quadrante em que estao as nacoes maisdesiguais do mundo. 0 argumento, no entanto, se aplica menos aoque aconteceu no governo Lula e mais ao que veio antes de Lula. 0Brasil permaneceu parado num escalao elevadissimo de desigual-dade, por momentos 0mais alto do mundo, durante cerca de duasdecadas, desde 0 fim dos anos 1970 ate 0 come~o dos anos 2000. Aheranca da brutal desigualdade legada pelo seculo xx foi desembo-car no governo Lula, com os 10% mais ricos se apropriando dequase 50% da riqueza e deixando aos 40% mais pobres apenas 8%PA desigualdade "atravessou impassivel 0 regime militar, governosdemocraticamente eleitos e incontaveis laborat6rios de politicaeconomics, alem de diversas crises politicas, economicas e interna-cionais", lembram Ricardo Paes de Barros e colaboradores."

No governo Lula a desigualdade renitente comeca a cair e,tornado como parametro hist6rico 0 ritmo de reducao dos paisescentrais, a velocidade da queda niio foi baixa. Comparando seriesestatisticas disponiveis para o Reino Unido e os Estados Unidos, 0

23. Ver Elisa P.Reis, "Inequality in Brazil: facts and perceptions", em G. Therborn(ed.), Inequalities of the world, p. 198.24. Ricardo Paes de Barros et aI., "Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato deuma estabilidade inaceitavel", Revista Brasileira de Ciencias Socia is,vol. 15, n. 42,fev.2000.

185

Page 94: Os Sentidos Do Lulismo

economista Sergei Dillon Soares mostra que nos melhores rno-mentos, de 1938 a 1954, no Reino Unido, e de 1929 a 1944, nosEVA, as quedas da desigualdade ficaram abaixo das obtidas noBrasil durante 0 governo Lula: 0,7 ponto por ana no Brasil, contra0,5 no Reino Unido e 0,6 nos Estados Unidos." Pode-se afirmar,por conseguinte, que nao foi pifio 0 acontecido no Brasil duranteo governo Lula. 0 problema e que ospontos de partida foram dife-rentes: 0 coeficiente de Gini ja estava perto de 0,40 no Reino Uni-do, em 1938, e abaixo de 0,50 nos EVA, em 1929, contra 0,58 noBrasil em 2002. As condicoes brasileiras noinicio do seculo XXI

eram parecidas com as da Inglaterra de cern anos antes, num bornexemplo empirico de atraso hist6rico.

Devido ao retardo secular do Brasil, havia a expectativa deque urn presidente eleito por partido de orientacao socialista to-masse medidas para provocar rapida contracao do fosso social,mesmo que ao pre~o de haver confronto politico. Tratar-se-ia daadocao do que poderiamos chamar de "reforrnismo forte":" "in-tensa redistribuicao de renda num pais obscenamente desigual",nas palavras de Francisco de Oliveira."

Reconheca-se que a plataforma "reforrnista forte" era a pers-pectiva original do PT, conforme detalhado no capitulo 2. Desdeesse ponto de vista, e secundario estabelecer aqui as distincoesentre vertentes petistas oriundas da inspiracao revolucionaria le-ninista ou trotskista e aquelas originarias das tradicoes cat6licasou socialistas democratic as. Salvo engano, todas convergiram, porrazoes taticas ou estrategicas, para urn programa "reforrnista fOT-

25.Sergei S.Dillon Soares, "0 ritmo na queda da desigualdade no Brasil e aceita-vel?",Revista de Economia Politica; vol. 30, n. 3, jul.-set. 2010, pp. 369-70.26. Agradeco a Roberto Schwarz pela expressao.27. Francisco de Oliveira, "0 avesso do avesso", em F. de Oliveira, R. Braga e C.~ «K~.).~ a~QC~:.Ql, p. 3iJ1.

-te" nos anos 1990.Nas propostas do partido ate 2001 podern-se en-contrar diversas indicacoes do que seria feito caso a alma do Siontivesse prevalecido no governo Lula. Desde a garantia do trabalhoagricola por meio da distribuicao de terras ate a tributacao do patri-monic das grandes empresas e fortunas para criar urn Fundo Na-cional de Solidariedade que financiasse projetos apresentados pororganizacoes comunitarias, ha urn conjunto de. itens, que passampela diminuicao da jornada de trabalho para quarenta horas semcorte de salaries, criacao de Programa de Garantia de Renda Mini-ma, revisao das privatizacoes, conv?ca.yao dos f6runs das cadeiasprodutivas etc., que desenham a perspectiva de mudancas fottes."

Era clara a referencia hist6rica desse programa. No texto de• ,1'" __ '"

1994, a tributacao emergencial sobre 0 patrimonio era comparadaao que "foi feito na maio ria dos paises da Europa no segundoapos-guerra'P'O fato de uma proposta como essa ressurgir meioseculo depois na plataforma de urn partido da periferia capitalistamostra 0 tipo de mud~n.ya que se tinha em mente. "Os anos deguerra proporcionaram uma etica de coletivismo que ressooudurante outros tres decenios", diz Geoff Eley." Aquele foi 0 mo-mento em que, a despeito das diferencas locais, a reducao da desi-gualdade evoluiu por meio da implantacao do Estado de bern-es-tar social na Europa e no Reino Unido." Na forrnulacao original

411

411

411

t41411•411

41••••••I•••••••••••••••••

" .

28. Ha enorme quantidade de documentos do PT com esse esplrito, Aqui forampincadas propostas das diretrizes para a campanha presidencial de 1994. Partidodos Trabalhadores, Base do programa de govemo, Lula presidente, uma revolufaodemocrdtica no Brasil, 1994, pp. 123-4 e ss.29. Idem, p. 123.30. Geoff Eley, Un mundo que ganar, p. 319. Traducao minha.31. Seguindo a analise de Esping-Andersen, Donald Sassoon descreve tres mo-delos de Estado de bem-estar: 0 "burgues-liberal", que prevaleceu nos EVA, ondepredominaram as transferencias de renda voltadas apenas para os de baixa renda;o "corporativisra'[ tfpico da Alemanha, em que 0 Estado entra em a-rao quandoas iinUlias nio..l ••"\.lDiq,~ sustmt:ac $CU$mcmbros; e 0 .~: que

-,

;t;-

Page 95: Os Sentidos Do Lulismo

If

do PT, 0 partido estava destinado a produzir analogas transform a-coes estruturais no Brasil.

A politica de ampliacao de direitos universais com vistas aveloz diminuicao da desigualdade deveria ser impulsionada, namesma visao, por meio de intensa mobilizacao popular. A organi-zacao de base - marca distintiva da primeira alma do PT - teriaque substituir a comocao igualitaria causada pela guerra na Euro-pa como impulsionadora da ruptura brasileira, A conviccao sobreo caminho a trilhar soava tao firme que, apesar do surgimento dasegunda alma, a qual abandonara a ideia de organizacao, mobili-,zacao e confronto, houve quem se preparasse para, desde 0 gover-no, construir 0 que seriam os esteios do "poder popular". FreiBetto, por exemplo, relata que, em 2003, 0 Fome Zero havia im-plantado "comites gestores" em quase 2400 municipios." Essescomites, compostos de representantes da sociedade civil organiza-da local, poderiam ter sido a fonte de mobilizacao por baixo paraalterar a correlacao de forcas e abrir 0 caminho a urn processoacelerado de reducao da desigualdade. Com 0 lancamento do Bol-sa Familia, em setembro de 2003, em que 0 cartao de beneficiopassava por convenio entre Q..governo federal e as prefeituras, oscomites gestores comecaram, entretanto, a perder funcao. A pro-posta de auto-organizacao para a luta politica de classes, que esta-va no amago dos grupos que formaram 0 PT na decada democrati-ca (1978-88), nao foi assumida pelo governo Lula.

As condicoes para 0 programa de combate a pobreza viriamda neutralizacao do capital por meio de concess6es, nao do con-

promove a igualdade nos seus padroes mais altos. Exemplos do ultimo modeloforam 0 sistema nacional de saude britanico (NHS) e 0 program a habitacionalsueco (Polkhernmet), implantados ap6s a Segunda Guerra Mundial. Ver DonaldSassoon, One hundred years of socialism, p. 141 (traducao minha).32. Frei Betto, Calendario do poder, p. 363.

188

fronto. A manutencao da triade juros altos, superavits primarios ecambio flutuante faria 0 papel de acalmar 0 capital. De outro lade,a simpatia passiva dos trabalhadores, para quem a ativacao domercado interno e a recuperacao do mercado de trabalho repre-sentavam beneficios reais, garantiu a paz necessaria para nao ha-ver radicalizacao. Ap6s 0 "mensalao" e a ernergencia do lulismo,sobretudo no segundo mandato, com sustentacao social pr6priaformada pelos votos do subproletariado, Lula pede implantar af6rmula "ordem e mudanca" com maior liberdade e resultadosmelhores, como virnos no capitulo anterior. ' ,

o projeto de combate a pobreza acabou por se firmar sobrequatro pilares: transferencia de renda para os mais pobres, am-pliacao do credito, valorizacao do salario minima, tudo isso resul-tan do em aumento do emprego formal. Se discernirmos comisencao, perceberemos que sao, de forma atenuada, as mesmaspropostas do "reformismo forte", porem em versao homeopatica,diluidas em alta dose de excipiente, para nao causar confronto.

o Bolsa Familia nada mais e que 0 primeiro passo do Progra-ma de Garantia de Renda Minima. 0 texto de 1994 do PT, alias,previa que 0 programa da renda minima "podera ser introduzidogradualmente, de forma compativel com as financas publicas, dasregioes mais pobres para as mais ricas, iniciando-se pelos cidadaosque detern patrio poder sobre os menores em idade escolar"." Assernelhancas com 0Bolsa Familia sac 6bvias. Se for verdade que aspropostas de transferencia de renda tern vies neoliberal, 0 que meparece duvidoso, deve-se convir que esse vies esta incorporado aoprograma do PT desde pelo menos os anos 1990.

Na area finance ira, tambern ha sernelhancas. A expansao docredito imobiliario e do credito rural; 0 aprimoramento dos ban-

33. Partido dos Trabalhadores, Base do programa de governo. Lula presidente, umarevol~fiiO democrdtica no Brasil; 1994, pp. 124 e 5S.

189

Page 96: Os Sentidos Do Lulismo

cos publicos para que se constituissem em "instrumentos efetivosde financiamento a producao e ao financiamento"; 0 fortaleci-mento das instituicoes de credito para apoiar as micro, pequenas emedias empresas; e mesmo a instituicao de fun do que financiasseprojetos sociais foram, de algum modo, propostas constantes doprojeto original (1994) e contempladas na importante expansaodo credito que ocorreu sob Lula, de 381 milhoes de reais em 2003para 1,4 trilhao de reais no comeco de 2010, segundo dados dogoverno."

o que nao aconteceu foi a tributacao de fortunas ou reformatributaria que tornasse 0 imposto mais direto e progressivo ou 0

condicionamento dos ernprestimos as empresas a manutencao eaumento do nivel de emprego, como estava previsto no documentode 1994. Por outro lado, ninguern imaginava urn mecanismo detanto sucesso quanto 0 do credito consign ado, que em alguns anoschegou a representar 60% de todo 0 financiamento pessoal no Bra-sil,passando de 11bilhoes de reais em 2004 para 119bilhoes de reaisno primeiro semestre de 2010.35 Se quisermos uma imagem, pode-riarnos dizer que 0 imposto sobre fortunas do reformismo forte foisubsrituido pelo credito consign ado do reformismo fraco.

Quanto a valorizacao do salario minirno, trata-se de bandei-ra hist6rica do reformismo forte no Brasil, aparecendo na redacaode 1994 como proposta de "elevacao gradual e permanente", paraalcancar a meta de "dobrar 0 seu valor atual no menor prazo pos-sivel' e, no periodo subsequente, atingir 0 nivel apontado peloDieese.360 governo Lula, a partir de 2005, promoveu a gradual

34. Paulo Araujo, "Lula afirma que fez 0 'obvio' para a retomada da econornia',Folha de S.Paulo, 3 mar. 2010, p. B5.

35. Eduardo Cucolo, "Bancos publicos e privados batalham por consignado",Folha de S.Paulo, 7 jun. 2010, p. Bl.

36. Partido dos Trabalhadores, Base do programa de governo. Lula presidente, umarevoluiiio democratica no Brasil, 1994, p. 123.

190

11

elevacao do salario minimo, chegarido a urn valor real 50% maiorem 2010 comparado a 2002. Mais que isso, em fevereiro de 2011 0

Congresso aprovou projeto do Executivo fixando uma politicapublica de valorizacao do rninimo: 0 aumento real do SM entre2012 e 2015 se dara com referenda a variacao do PIB dos dois anosanteriores. Em outras palavras, foram garantidos aumentos reais,desde que a economia cresca, ate pelo menos metade da decada.Mas, a seguir no ritmo anterior, 0 valor do SM devera alcancar 0

dobro do que era em 2002 apenas no fim dos anos 2010. E mesmoassim estara longe do indicado pelo Dieese: 2227,53 reais em de-zembro de 2010 (quando 0 SM em vigor era de 510 reais, cerca de23% do que deveria ser segundo 0Dieese)."

o destino do salario mlnimo nolulismo pode ser tornadocomo outro paradigma do reformismo fraco. Note-se que 0 refor-mismo forte de Salvador Allende no Chile fez no primeiro ana degoverno 0 que 0 reformismo fraco demorou dez anos para fazerno Brasil: aumentar 0 s~em quase 70%-,38A decalagem entre 0

reformismo forte e 0 reformismo fraco, a saber, 0 grau de concen-tracao no tempo de mudancas essenciais, fica visivel nesse exem-plo. Para atingir 0 valor do Dieese, meta do Sion, 0 reformismofraco adotado no Brasil levara ao menos duas decadas,

De maneira semelhante, "0 direito ao trabalho para todos","item. fundamental, foi contemplado, porem deixando de lado osaspectos radicais. As diretrizes de 1994 propunham uma "amplamobilizacao nacional" em torno da questao, Para chegar a meta,

•4141tttt41t••t••I••••••••••••••••••

37. Ver <http://www.dieese.org.br/rel/rac/salminMenu09-05>. consultado em10mar. 2010.38. Ver Paul Singer, A crise do "milagre", p. 142. Allende elevou 0 salario minimoem 67% no primeiro ana de governo (1971); em 2012, 0 aumento real do SM noBrasil chegou perto de 60%, considerando-se a serie desde 2003.39. Partido dos Trabalhadores, Base do programa de governo. Lula presidente, umarevolufao democratica no Brasil; 1994, p. 122.

,191

Page 97: Os Sentidos Do Lulismo

••

sugeria-se a criacao de postos pela ampliacao de services socia iscomo saude e educacao, investimento publico na area de infraes-trutura economica e social, reducao da jornada de trabalho, con-dicionamento do financiamento a manutencao e aumento do ni-vel de emprego e apoio a cooperativas e microempresas.

o PAC aumentou 0 emprego na construcao civil por meio deobras de infraestrutura "economics e social" (sobretudo depois decriado 0 Programa Miriha Casa Minha Vida), como previa odo-cumento de 1994.A reducao do desemprego a 5,3%, em dezembrode 2010, foi, em certa medida, 0 resultado dessas politicas, pois,como mostramos, a construcao ~ivil constituiu elemento essencialna geracao de empregos ap6s a crise de 2008. 0 primeiro ana dogoverno Dilma deu continuidade a essa orientacao, com a geracaode 1,9milhao de vagas, terminando com urn desemprego de '4,7%em dezembro de 2011.40 A pesquisa Seade/Dieese, contudo, apon-tava quase 0 dobro de desemprego (9,1%) na mesma data, emparte por inc1uir como desempregados os que estao em trabalhosprecarios e os que, sem emprego, nao procuraram colocacao noultimo mes." Epossivel que uma reducao da jornada de trabalho,acompanhada da proibicao de as empresas diminuirern a folha depagamentos, resultasse em absorcao rapida da parcela ainda naoformalizada da populacao economicamente ativa, contribuindoao mesmo tempo para a desprecarizacao de setores do pr6priotrabalho formal, como ocorre na construcao civil. Mas isso estafora do figurino do reformismo fraco.

Em resumo, ao tomar das propostas originais do PT aquiloque nao implicava enfrentar 0 capital como seria 0 caso da tribu-tacao das fortunas, revisao das privatizacoes, reducao da jornadade trabalho, desapropriacao de latifundios ou negociacao de pre-

40. Ver <oglobo.globo.com> de 26 jan. 2012, consultado em 8 jan. 2012.41. Ver <www.dieese.org.br>. consultado em 9 mar. 2012.

192

cos por meio dos f6runs das cadeias produtivas, 0 lulismo mante-ve 0 rumo geral das reformas previstas, nao obstante aplicando-asde forma muito lenta. E a sua lentidao que permite interpreta-locomo tendo urn sentido conservador. Por outro lado, quando nonoticiario a autonomia do Banco Central, 0 ajuste fiscal e a refor-ma da Previdencia ficam mais fortes do que 0 Bolsa Familia, 0

credito consignado, 0 aumento do salario minimo e a geracao deempregos, perde-se 0 outro sentido do lulismo: aquele que ao au-men tar 0 salario minimo potencializa 0 efeito do Bolsa Familia eda elevacao dos beneficios previdenciarios no interior do Nordes-te; que com 0 Programa de Aceleracao do Crescimento recolocaem cena 0 Estado indutor, gerando obras de infraestrutura e em-prego na construcao civil; que por meio do Estado orienta as ativi-dades das empresas para 0 mercado interno, depois de cortado 0

credito internacional e interrompido temporariamente 0 fluxodas commodities pela crise financeira internacional em 2008. En-fim, penso que e preciso chegar a urn entendimento em'que ossentidos contradit6rios do lulismo fiquem mais nitidos. -

Na ocasiao da crise, viu-se que 0 reformismo lulista atua, aseu modo, em favor do trabalho. Voltando ao exemplo elucidativodo Minha Casa Minha Vida. Critica-se 0modelo privatista de ha-bitacao adotado, 0 que e correto, mas esquece-se que as empresasda construcao foram estimuladas a contratar num ana de crise, eo fizeram, reduzindo significativamente 0 desemprego. Trata-se, ameu ver, de ressaltar as duas coisas.

Sera 0 reformismo fraco suficiente para dar conta dos impas-ses legados pela formacao do pais? Do ponto de vista da reducaoda pobreza monetaria absoluta, houve urn incremento de 2% doPIB no valor das transferencias de renda as familias, com resultadospalpaveis, Dados do Ipea mostram diminuicao consistente donumero de brasileiros abaixo da linha de pobreza (monetaria),grosso modo aqueles que precisam viver com menos de meio sala-

193

Page 98: Os Sentidos Do Lulismo

rio rninimo mensal, como se viu no capitulo anterior, de 36% para

23% entre 2003 e 2008, projetando uma virtual erradicacao da

pobreza (rnonetaria) ate 0 final da decada de 2010. Trata-se, po-

rem, de mais que unicamente acesso a recursos financeiros. Pes-

quisas, como as de Walquiria Domingues Leao Rego, conduzidascom as mulheres que recebem 0 Bolsa Familia indicam a autono-mia propiciada pela transferencia de renda a setores desde sempre

abandonados a pr6pria sorte. Desencadeia-se urn movimento

subterraneo na sociedade, nao visivel a olho nu, caracterizado nas

palavras de Rose Marie Muraro: "Hojeern dia, em todas as comu-

nidades populares as mulheres tendem a fazer microcredito, feiras

de troca e diminuirern a pobreza extrema. [... ] E urn movimento

geral, mas silencioso - 97% dos movimentos de transforrnacao

da pobreza estao na mao da mulher: 0 Bolsa Familia, Minha CasaMinha Vida'~42

Por meio de mecanismos diversos, dos quais 0 Bolsa Familia

e integrante, junto com a seguranca alimentar, a expansao do ere-dito, a valorizacao do salario minimo e 0 aumento do investimen-

to publico, sobretudo na construcao civil, e a geracao de empregos,

em particular no Nordeste, foram libertadas energias sociais. A

multiplicacao de iniciativas "moleculares" para a superacao da

pobreza aponta para mudancas estruturais. Por outro lado, se

olharmos a pobreza do angulo de Amartya Sen e Jose Eli da Veiga,

como "privacao de capacidades basicas" identificaremos outra vez

a lentidao do lulismo. Considerado, por exemplo, 0 acesso a rede

de esgoto como Indice de pobreza, 0 reformismo fraco adiara por

mais uma geracao (cerca de 25 anos) 0 momenta em que todos os

brasileiros possam usufruir desse service basico e, portanto, dei-xar para tras a pobreza, ja que 0 numero de domicilios conectados

42. Eleonora de Lucena, "Quero 'ernpoderar' as mulheres de baixa renda", Folhade S.Paulo, 8 mar. 2010, p. C9 .:

194

a rede passou de 34% para 46% entre 2000 e 2008, projetando

longo caminho a frente ate a universalizacao de tal direito."omesmo vale para a diminuicao da desigualdade. 0 reforrnis-

mo fraco foi capaz de combater a iniquidade no Brasil num ritmo

comparavel ao da implantacao do Estado de bem-estar na Inglater-

ra e nos EVA. Porem, 0 ponto de partida brasileiro era tao mais baixo

que 0 dos referidos paises, que seria necessario sustentar as politicasreformistas por mais de duas decadas ate alcancarmos urn padrao

de vida "similar" entre n6s, como na imagem rooseveltiana de Paul

Krugman. De acordo com Sergei Dillon Soares:

•••••••••••••••••••••••••••••••••

I,

Se continuarmos reduzindo nosso coeficiente de Gini a 0,7 ponto

ao ana pelos pr6ximos24 anos, nao sera posslvel ter gran des favelascoexistindo com condomlnios de luxo, individuos a beira da fome

no sertao do Cariri vivendo no mesrno pais cujos ceus sac cruzados

por executivos viajando na segunda maior frota de avioes particu-

lares do mundo, nem urn exercito de empregados particulares

passando as roupas, encerando os pisos e lavando os banheiros daclasse media." I" r..

\~ ,H';. r1

o que estamos venda, portanto, e urn ciclo reforrnista de re-

ducao da pobreza e da desigualdade, porem urn cicIo lento, levan-do-se em consideracao que a pobreza e a desigualdade erarn e conti-nuarn sendo irnensas no Brasil. Isso explica 0 aspecto ideol6gico do

imaginario do New Deal que se instalou no pais, pois nao esta no

horizonte real do reformismo fraco produzir, num "curto espaco

de alguns anos", urn padrao de vida geral "decente" e "similar".~\".n',

43.Verena Fornetti, "Metade das casas nao tern rede de esgoto', Folha de S.Paulo,21 ago. 2010, Cotidiano 2, p. 7.44. Sergei S.Dillon Soares, "0 ritmo na queda da desigualdade no Brasil e aceita-vel?",Revista de Economia Politico; vol. 30, n. 3, jul./set. 2010, pp. 369-70.

'-" .

195

Page 99: Os Sentidos Do Lulismo

It•••It•It•ItIt••IttIt•It•t•t••••••••••••

Para isso, seria necessario urn reformismo forte, ou ter tido, comonos EVA, outro ponto de partida. ,'!'

Conclui-se que 0 reformismo forte fracas sou no Brasil, masfoi urn fracasso relativo, pois, de urn lado, influenciou a Constitui-~ao de 1988 e, de outro, legou propostas, quadros e organizacoespara 0 reformismo fraco, que nao e o avesso do reformismo forte,e sim a sua diluicao, A onda democra.tica dos anos 1980 - epocaem que 0 reformismo forte se constituiu enquanto perspectiva daclasse trabalhadora organizada no pais - esbarrou no obstaculodo qual este livro fala desde 0 inicio: a vasta fracao subproletaria, ametade mais pobre da populacao brasileira, que desejava (e dese-ja) integrar-se a ordem capitalista e nela prosperar, e nao transfor-ma-la de baixo para cima, ate porque isso nao esta ao seu alcance.

No entanto, ao arquivar a postura que articulara 0 PT, a CUT emovimentos sociais como 0 MST"0 lulis":lo tern urn segundo des-dobrarnento, alem de fazer progredir a integracao do subproleta-riado ao proletariado. Ele tira centralidade da batalha em torno dadesregulamentacao neoliberal do trabalho. Nao faz avancar adesregulamentacao, mas tarnbem nao a faz regredir. Produz urnefeito de congelamento da si~ua~ao encontrada - tal como I?an-teve os altos ganhos do setor financeiro e nao revisou as privatiza-coes tucanas -, empurrando os conflitos capital/trabalho para 0

fundo da cena, como tenho procurado mostrar.A tendencia a precarizacao do trabalho talvez seja 0 ponto

nuclear do complexo fenorneno denominado neoliberalismo, 0

qual, como afirmou Oliveira, "e urn ciclo anti-Polanyi",? Oliveiraesta se referindo ao "moinho satanico" que tritura os trabalhado-res ao entrega-los (sem possibilidade de resistir) aomercado." Por

:..~45. Francisco de Oliveira, "0 avesso do avesso", em F. de Oliveira, R. Braga e C.Rizek (orgs.), Hegemonia as avessas, p. 375. •46. Karl Polanyi, A grande transforma~o, p. 51.

196

isso, a indagacao de fun do de nossa epoca e a de saber se a socieda-de protegera 0 trabalho da tirania do mercado. 0 Estado de bem--estar social, ao fortalecer 0 trabalhador, limita a liberdade do ca-pital para acionar 0moinho em que 0 trabalho e sugado e, depois,a mao de obra jogada na lata do lixo. 0 reformismo forte funcionacomo pedra pesada nas pas do moinho diabolico. 0 fraco, comopedras leves.

Cumpre recordar que, a partir dos anos 1980,0 reformismoforte corneca a perder terreno no seu berco, a Europa, num Ion gotournant hist6rico que, todavia, nao concluiu. A supremacia neo-liberal, plasmada na independencia dos bancos centrais, foi de talordem, que se comecou a pensar no fim da politica dernocratica,uma vez que as questoes cruciais nao passavam mais por ela."Enquanto isso, 0 moinho satanico era acionado outra vez, emparticular nos paises pobres do Leste Asiatico. "A duplicacao daclasse trabalhadora mundial para 3 bilhoes no espa~o de algunsanos, em condicoes frequentemente tao duras quanto no comecodo seculo XIX, e a maior mudanca estrutural do periodo", escreveuPerry Anderson."

No Brasil, todavia, como vim os no capitulo 2, em passo retar-datario e na direcao oposta 0 projeto reformista forte se firmoucomo opcao da classe trabalhadora na decada de 1980, indo pararna Constituicao cidada de 1988. Nos anos 1990, os governosCollor e Fernando Henrique tiveram exito parcial em "restaurar"o que 0 capital perdera no periodo anterior. 0 desemprego emmassa foi 0 abre-alas da terceirizacao, da flexibilizacao dos contra-

47. Ver Francisco de Oliveira, "Privatizacao do publico, destituicao da fala eanulacao da politica: 0 totalitarismo neoliberal", em F. de Oliveira e M. C. Paoli(orgs.), Os sentidos da democracia.48. Perry Anderson, "Jottings on the conjuncture", New Left Review, n. 48, nov./dez. 2007 (traducao minha). A contribuicao da China e da India para a duplica-~ao da mao de obra e notavel.

197

Page 100: Os Sentidos Do Lulismo

tos de trabalho, da instituicao dos bancos de horas, da pejotizacaode areas inteiras do setor de servicos." Meu argumento e que, aochegar ao poder nos anos 2000, 0 "reforrnismo fraco" conteve aexpansao do mercado, caracteristica do periodo neoliberal, sobre-tudo por meio da forrnalizacao do emprego. A carteira assinadano Brasil equivale a ter a protecao das leis trabalhistas, que limi-tam a liberdade do capital no que se refere a jornada, a demissao,as condicoes de trabalho, a remuneracao etc., sendo 0 desempregoem massa 0 maior aliado da desregularnentacao,

Os 10,5 milhoes de postos de trabalho formais criados nogoverno Lula representaram uma diminuicao na velocidade domoinho satanico, mas sao urn freio relativamente fraco, pois osempregos criados, embora protegidos por lei, tern condicao pre-caria, sobretudo em virtude da sua alta rotatividade. Ao estimularsetores do capitalismo orientados pela logica da superexploracao,como e 0 caso do telemarketing ou da construcao civil, 0 lulismoconvive com a precariedade. Cancel an do as propostas fortes queconfrontavam 0 capital, como, por exemplo, as "medidas de con-trole da rotatividade de mao de obra e do abuso de horas extras?"que constavam no programa de 1994,0 lulismo aceita certa "fle-xibilizacao", na pratica, das condicoes de trabalho. Ao mesmotempo, ao promover politicas de pleno ernprego, aumenta ascondicoes de luta dos pr6prios empregados, como se pode verifi-car nas greves em gran des obras de construcao civil que ocorre-ram a partir do segundo mandato de Lula e seguiram no primeiroana do governo Dilma ou na eclosao de greves no setor de tele-

49. A substituicao em massa de contratados pela CLT para a f6rmula da prestacaode services por pessoas juridicas (dal a expressao "pejotizacao") inicia-se nosanos 1990 e segue em vigor.50. Partido dos Trabalhadores, Base do programa de governo. Lula presidente, umarevolufaO democratica no Brasil; 1994;p. 123.

198

marketing a partir de 2005.51 Em suma, 0 reformismo fraco fo-menta ciclo de acumulacao no interior de urn capitalismo ja rela-tivamente desregulamentado, sem reverter a precarizacao, masaumentando 0 mimero de trabalhadores coberto pelos direitostrabalhistas ainda existentes e permitindo que estes se auto-orga-nizem para amplia-los.

Se 0 reformismo fraco e lento quando observado desde 0

angulo da totalidade, talvez pareca rapido quando visto do angulodo subproletariado, sobretudo do nordestino. Veja-se 0 que aeon-teceu com 0 Nordeste, regiao que concentra boa parte da pobrezaabsoluta no Brasil. La 0 PIB per capita cresceu 86% entre 2002 e2008. No carro-chefe de toda a zona, 0 estado de Pernambuco, 0

investimento federal subiu 150% entre 2006 e 2010. 0 PIB pernam-bucano aumentou 16% em 2010, 0 dobro da media nacional, numprocesso de industrializacao acelerada que lembra a epoca do mi-lagre economico, "perrnitindo a volta dos retirantes que urn dia, .

cairarn no mundo atras de uma vida melhor"," Compreende-seque quase toda a diferenca em favor de Dilma na eleicao de 2010tenha saido do Nordeste. Para quem esta se Iibertando do infernodo desemprego, a precariedade com carteira assinada e urn pata-

I '

mar superior, ainda que prenhe de novas contradicoes, como asrevoltas nas grandes hidreletricas em construcao --'- Iirau, Santo,Antonio e Belo Monte ~ explicitam."

Em suma, 0 reformismo fraco, por ser fraco, implica ritmotao lento que, por vezes, parece apenas eternizar a desigualdade.

•~

444t

•44tt

••t••4t4Itt•41••t••t•••

51. Segundo Ruy Braga, em cornunicacao oral em debate no Cenedic/usr, 30 mar.2012, a contar de 2005 registram-se repetidas greves no ambito do telemarketing.52.Agnaldo Brito, "Pernambuco vive sua revolucao industrial", Folha de S.Paulo,6 mar. 2011, p. Bl.

53. Segundo a Federacao Nacional dos Trabalhadores nas Industrias da Cons-trucao Pesada, 138 mil operarios do setor paralisaram as atividades nos primei-ros tres meses de 2012. \ <,

199

Page 101: Os Sentidos Do Lulismo

.,"'Em 2011,0 Brasil ainda estava quase no final da lista de 187 paises

em materia de desigualdade. Piores apenas a Colombia, a Bolivia,Honduras, Africa do Sul,Angola, Haiti e 0 pequeno Comores. Maso fato de ser reformismo provoca mudancas expressivas onde 0

atraso deixava a pobreza intocada. Por isso, nao deve ser confun-dido nem com 0 reformismo forte, que ele arquivou por quemsabe quanto tempo, nem com 0 ne?liberalismo, que ele brecou,abrindo processo de transformacao no outro sentido.

. ",'J- f'

NOTA FINAL: SAEM BURGUESES E PROLETA.RIOS;

ENTRAM RICOS E POBRES, 'ir~.s-.~ ~. c- ;.. ";\' 'f '

Embora a classe trabalhadora interesse a reducao da sobre-populacao trabalhadora superempobrecida perrnanente, cujaexistencia deprime as condicoes de luta, b lulismo tern urn perten-cimento de classe especifico, cuja prioridade, conforme vimos, e adiminuicao da pobreza, e nao da desigualdade. Por isso, 0 refor-mismo fraco e 0 projeto adotado pelo bloco no poder. Expansaodo mercado interno com integracao do subproletariado ao prole-tariado via emprego (rnesmo que precario), consumo e credito,sem reform as anticapitalistas, e com lenta queda da desigualdadecomo subproduto, e 0 que se deve esperar.

Os governos Lula e Dilma, sustentados pelo subproletariado,buscam equilibrar as classes fundamentais - proletariado e capi-talistas -, pois 0 seu sucesso depende de que nenhuma delas te-nha forca para impor os pr6prios designios: 0 reformismo forte,que ambiciona 0 aumento rapido da igualdade, impondo travasao moinho satanico, ou 0 heoliberalismo, que tende a aumentar adesigualdade, impondo perdas aos trabalhadores. A estatizacaodos conflitos, como sugere Werneck Vianna, desmobilizando asclasses, corresponde ao prop6sito de evitar a radicalizacao. Como

200

fracao de classe que nao po de se auto-organizar, 0 subproletariadodeposita no Estado, nao na sociedade organizada, a esperanca desair da pobreza sem passar por turbulencies que poriam em risco

o processo de integracao.o sucesso de solucoes intermediarias, arbitrais, depende, em

alguma medida, da figura providencial do lider que da a cad a urno seu quinhao. 0 reforco da autoridade do presidente, que aparececomo "benfeitor patriarcal de todas as classes';" e parte constitu-tiva do esquema, eo exito da arbitragem tira a centralidade da lutade classes. Ha, portanto, algum componente bonapartista ou cesa-rista nesse tipo de configuracao. Considerando-se as peculiarida-des da experiencia dos Bonaparte (1 e III) na Franca e dos diversosoutros epis6dios de cesarismo citados por Gramsci (a Italia depoisdo Magnifico - Lourenco de Medici -, Bismarck, na Alemanha,MacDonald, na lnglaterra)," 0 lulismo nao deixa de ser urn casode "grande personalidade" a presidir governo de coalizao,

Gramsci sugere que os diferentes tipos de cesarismo sempreexpressam algum genero de solucao "arbitral", em que 0 arbitrio econferido a uma "grande personalidade"." Mas solucao arbitralnao quer dizer estagnacao do quadro. Representa progresso ouretrocesso, a depender do lado para 0 qual penda a arbitragem.Pode significar avances, como acontece quando se passa de umafase hist6rica a outra, ou recuos qualitativos, ou ate dar prossegui-mento ao curso "normal" dos acontecimentos. Inspirado no Pre-facio a "Contribuicao a critica da economia politica", de Marx,"Gramsci lembra que na Franca de 1848, embora a divisao das

54. Karl Marx, "0 18Brumario de Luis Bonaparte", em K.Marx, A revolufilo antesda revo[ufilo, p. 334.55. Emir Sader (org.), Gramsci, poder, politico e partido, pp. 62-3.56. Idem, ibidem, p. 62.57.Ver Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (vol, 1).

201

Page 102: Os Sentidos Do Lulismo

classes dominantes tenha aberto espaco para a "grande personali-dade" (Napoleao III) arbitrar 0 conflito, como "a forma socialexistente ainda nao havia esgotado as suas possibilidades de de-senvolvimenm" 0 cesarismo representou a "evolucao" do "mesrnotipo de Estado';"

o sentido da solucao arbitral depende das condicoes mate-riais, pois, como tarnbem assinala Marx, nada se pode dar a umaclasse "sem tirar de outra';" ou seja, nao existe criacao magica deriqueza. Mas durante 0 ciclo expansivo do capitalismo, a arbitra-gem torna-se mais facil, ja que as perdas podem ser compensadaspelos ganhos a distribuir. No lulismo, pagam-se altos juros aosdonos do dinheiro e ao mesmo tempo aumenta-se a transferenciade renda para os mais pobres. Rernunera-se 0 capital especulativointernacional e se subsidiam as empresas industriais prejudicadaspelo cambio sobrevalorizado. Aumenta-se 0 salario rninimo e secontem 0 aumento de precos com produtos importados. Finan-cia-se, simultaneamente, 0 agroneg6cio e a agricultura familiar.

Enquanto os meios de pagamento crescarn, cada fracao declasse pode cultivar 0 seu lulismo de estimacao. Responsavel, ape-sar de algo populista, para os bancos. Nacionalista, ma non troppo,para os industriais. Promotor do emprego, embora precario, parao proletariado. Apoiador do credito para a agricultura familiar,ainda que relutante quanto a enfrentar 0 latifiindio, para os traba-lhadores rurais. Por isso, 0 presidente pode pronunciar, para cadauma delas, urn discurso aceitavel, usando conteudos diferentes emlugares distintos e, sobretudo, tomando cuidado para que os con-flitos nao impliquem radicalizacao e mobilizacao. Porem, 0 entu-siasmo, capaz de sustenta-lo nos momentos dificeis, como foi 0

58, Emir Sader (org.), Gramsci, politica epartido, p. 65,59, Karl Marx, "0 18Brumario de LuisBonaparte", em K.Marx, A revolucao antesda revoluiiio, p. 334.

202

w

"mensalao" 0 lulismo s6 vai encontrar em meio ao subproletaria-do,o que esta relacionado ao fato de que, como toda solucao arbi-tral, tern como prioridade atender a pr6pria base, a que garante asua continuidade. Dai que, de todas as politicas adotadas, a inte-gracao do subproletariado seja a decisiva.

Para encontrar fervor lulista, e preciso andar pelo interior doNordeste e la conversar com as pessoas comuns, como fez a revistaEpoca em setembro de 2010. Dois relatos da rep6rter sao ilustrativos:

[A] Uma pequena amostra da mitificacao da imagem de Lula pode

ser encontrada na sala recern-mobiliada de Luzimaria Silva Nasci-

mento, de 32 anos, rnoradora deCaetes, 0 municipio-sede da re-

giao rural on de 0 presidente nasceu e viveu ate os sete anos de ida-

de. Ela e decorada com dois sofas novos, uma luminaria ainda no

. plastico, urn conjunto de mesa de centro, mesa de canto, urn arrna-

rio e urn rack que serve de supor~e para a TV e 0 som. Tudo compra-

do em muitas parcelas ao longo dos ultimos anos.A sala foi pintada

de tres cores: amarelo, lilas e azul. Atras da TV, em urn dos quadros

pendurados na parede lilas, ~.e-se uma fotomontagem com Luzi-

maria, seu marido, Jose Ioao do Nascimento, e uma imagem de

Lula ao centro. "Para mim, elf e urn pai', diz Luzimaria, ao se referir

ao presidente. Em 2002; ela prometeu, caso Lula ganhasse a eleicao,

que subiria de joelhos uma pedra de seiscentos metros. Prometeu e

cumpriu. No topo, acendeu urn maco de velas. Seu marido, Jose

Ioao, diz que Lula foi emoldurado junto na foto com 0 casal porque

o presidente tarnbern teria cumprido sua parte da promessa de

melhorar a vida da familia. Na casa onde moram com mais cinco

pessoas, ainda ha comodos em que as paredes estao descascando e

os lencois sao usados como portas. A sala pede ser equipada porque

o preco da comida caiu, a aposentadoria de Nascimento subiu e-,203

Page 103: Os Sentidos Do Lulismo

••

Luzimaria passou a ganhar 0 beneficio"d&programaBoisaFamilia- R$80 - para a filhade tres anos."

[BJ Nao e apenas a ret6rica que aproxima os eleitoresde Lula.Tam-bem ha uma identificacao com base no gestual e na linguagemcorporal do presidente. "Ele tern urn cochichado born",diz MariaLuna, de 92 anos, moradora de Caruaru, Elavibra quando v~,.pelaTV, Lulafalando nO,ouvidodas pessoasdurante os eventos.

"Elecochicha e da risada.~ assunto particular, segredodele como povo."Os olhos brilham quando ela fala do presidente, que elaclassifica como "0 maior estadista do rnundo" e, em mornentosrnais entusiasrnados, "pai celestial".Maria tern urna foto grande deLulacolada na porta de seu quarto. Sobre 0 orat6rio, ficaa foto doex-governadorArraes e de sua filha,adeputada federalAnaArraes(PSB). "Rezopor LulaeArraes todo dia",diz."

Se a cara do lulismo e a unidade subproletaria ao redor dopresidente, a coroa e a sua completa rejeicao por parte da pequenaburguesia, 0 estrato que por faixa de renda pertence a chamadaclasse media tradicional, aquela que jei conquistou "urn patamarconfortavel de renda" desde a geracao anterior," Sensivel a argu-mentacao empresarial de que, a carga tributaria no Brasil e exces-siva, a pequena burguesia tende a constituir 0 esteio de massa dosmovimentos por reducao de impostos. Em 2009, 0 Brasil estavacom uma carga tributaria de 34% do PIB, dois pontos percentuaisacima do que era arrecadado no inicio do governo Lula em 2003.63

Nesse patamar, 0 Brasil tinha uma tributacao superior a de palses

60. Ana Aranha, "0 presidente e 0 mito", Epoca, n. 646, 4 out. 2010, p, 58.61. Idem, ibidem, pp. 60-1.62, Amaury de Souza e Bolivar Lamounier, A classe media brasileira, p. 21.63. Ver Folha de S,Paulo, 23 maio 2010, p. B13.

204

ricos como 0 Canada (33%) e a Australia (31%), embora menorque a da Dinamarca (50%) e a da Pranca (45%).64A elevacao dacarga tributaria corresponde ao aumento de transferencia de ren-da para as familias pobres, conforme revelou Nelson Barbosa (vero item "Receita bruta" no quadro 1 do Apendice).

Acreditando que 0 sucesso de Lula foi conquistado com 0

dinheiro que the e tirado pelos impostos, a pequena burguesiareage ao discurso lulista, que the soa falso e aproveitador. Afinal,elebancaria 0 "born pai" com recursos alheios.Alem disso, 0 estilode vida pequeno-burgues e ameacado pela ascensao do subprole-tariado. A presenca de consumidores populares em locais antesexclusivos, como aeroportos, diminui 0 status relativo de quemantes tinha neles exclusividade. No espaco publico, a classe mediatradicional brasileira comeca a ser tratada como "igual", e nao

gosta da experiencia.o passado escravocrata do Brasil deu a classe dorninante, e a

classe media tradicional que nelase espelha, uma profunda ambi-valencia em relacao ao trabalhador. De urn lado, ha 0 reconheci-mento capitalista da necessidade do trabalho para a existencia daacumulacao; de outro, a percepcao dos trabalhadores como "ins-trumentos de trabalho", e nao como seres humanos. No Brasil, 0espirito do capitalismo veio acompanhado de estranha "etica

escravagista"."A diminuicao de oferta de mao de obra domestics, em parte

porque aumentou 0 numero de postos de trabalho nao domesti-cos e tambern porque 0 Boisa Familia cria urn piso de remunera-cao, tern obrigado as familias da classe media tradicional a perderhabitos oriundos da dualidade tipica desse capitalismo escravagis-

64. Idem.65. A expressao foi usada por Fabio Comparato em cornunicacao pessoal (Sao

Paulo, 20 jan. 201l).

205

Page 104: Os Sentidos Do Lulismo

ta. Jesse Souza introduziu no debate brasileiro a nocao de que 0

trabalho domestico, executado por mernbros, em geral feminines,do que ele denomina "rale", poupa a classe media tempo "quepode ser reinvestido em trabalho produtivo e reconhecido fora decasa".66Como se esta falando de 7,2 milhoes de trabalhadores,geralmente mulheres, que realizam as funcoes de diaristas, copei-ras, empregadas etc.," nao se trata de fen6meno marginal. Seconsiderarmos que, no computo de Neri, as classes A e B, soma-das, correspondiam a 11% da populacao brasileira em 2009 (algoperto de 20 milhoes de pessoas, por volta de 5 milhoes de residen-cias), ha mais de urn trabalhador domestico para cada casa daclasse media tradicional.

o rendimento dos trabalhadores dornesticos subiu 35%, du-rante 0 governo Lula, nas seis maiores regioes metropolitanas.68Tornou-se mais dificil encontrar empregadas dispostas a tolerar asituacao de ausencia de horario de trabalho, falta de descanso se-rnanal, inexistencia de registro ~m carteira (so 28% tinham a si-tuacao regularizada em 2009). Enfim, a exclusao da condicaoproletaria "normal'." A reducao da desigualdade observada pormeio das estatisticas encontra aqui a sua contra partida pratica,com reflexos politicos. A classe media tradicional reage ao refor-mismo fraco, suscitando a polarizacao entre ricos e pobres quesubstitui a antiga polarizacao direita/esquerda, que era compativelcom a luta de classes no centro do drama politico entre 1980 e2002, mas que agora fica deslocada.

E notavel que, nesse contexto, os "grandes" burgueses estejamtranquilos. Para os donos do capital, a situacao e confortavel. Os

66. Jesse Souza, A rale brasileira, p. 24.67. Ver Folha de S.Paulo, 6 fey. 2011, p. C3.68. Idem.69. Idem, p. ci.

206

,.balances das empresas registram lucratividade elevada. Ou seja,para os super-ricos 0 lulismo nao e urn inc6modo. A experienciainternacional indica, segundo Therborn, que a "renda e a riquezatendem a estar concentradas na ponta do topo. Por exemplo, cercade metade da renda do decil mais prospero dos norte-americanosfoi capturada pelo 1% mais rico'~70No Brasil, esse 1% mais rico re-cebe sozinho 0 equivalente ao apropriado pelos 50% mais pobres!"

Para eles, as mudancasocorridas no periodo Lula nao repre-sentaram perdas rnateriais, ao contrario, Pode-se aproveitar 0 d6larbarato para adquirir produtos irnportados e viagens ao exterior. Aproliferacao de lojas "exclusivas" templos modernos da estratifica-lYao,evita a perda de status. Essa, t~~ez, a explicacao de por que aolongo do governo Lula, e em particular durante 0 "mensalao', a baseoposicionista era mais radical que a cupula. Alem disso, para a bur-guesia, 0 reformismo fraco representa um caminho possivel, emboranao 0 de sua predilecao, para 0 desenvolvimento do capitalismo nopais, sem que a sua posirao esteja ameacada.

Curiosamente, para 0 "velho" proletariado, os avances dogoverno Lula no combate a pobreza tambern representam urnpoderoso atrativo, pois vao ao cerne do problema hist6rico daclasse trabalhadora no Brasil. Ao analisar a obra de Caio PradoJr., 0 historiador Lincoln Secco aponta para a singularidade determos sido desde sempre capitalistas, mas de urn tipo de capita-lismo que deixou "a massa que formara a populacao do territ6-rio" desintegrada da atividade econ6mica principal, "mantendo--se a margem do setor de exportacao e vivendo de atividadesacessorias interrnitentes"," mesmo que elas sejam funcionaispara 0 singular capitalismo brasilico, como mostrou Oliveira na

70. Goran Therborn (ed.), Inequalities of the world, p. 28.71. Amir Khair, "Entraves ao desenvolvimento", 0Estado de S.Paulo, 4 ju!. 2010.72. Lincoln Secco, Gaio Prado Jr.0 sentido da revolu¢o, p. 233.

'"207

Page 105: Os Sentidos Do Lulismo

w

t••t••••••••t•It••••••••••••••••••

critica a razao dualista. A existencia des sa massa "formada, fun-damentalmente, por africanos trazidos para ca como escravos'?'foi determinante para a existencia de uma especie de superexerci-to industrial de reserva permanente. Marx indica 0 carater estra-tegico do exercito industrial de reserva para 0 capital: "Se umasuperpopulacao operaria e 0 produto necessario da acurnulacaoe do desenvolvimento da riqueza sobre uma base capitalista, estasuperpopulacao se converte, por sua vez, em alavanca da acumu-lacao capitalista e inclusive em condiciio de existencia do modocapitalista de produfQo':74 i

E 0 tamanho do exercito industrial que garante ao capital apossibilidade de rebaixar os salaries e aumentar a jornada de tr~ba-lho. 0 tamanho da sobrepopulacao trabalhadora superempobreci-da permanente no Brasil deixa a fracao do proletariado que esta in-tegrada aos setores dinam~cos da economia amerce do capital. Detal sorte que 0 desafio do proletariado brasileiro sempre foi 0 de es-tabelecer uma alianca coIl?-0 subproletariado, formando urn movi-mento de maioria nacional sob a sua Iideranca, 0 lulismo nao reali-zou esse sonho, uma vez que optou pelo .reformismo fraco, mas,como esta levando 0 subproletariadopara dentro do proletariado,diminuindo 0 escopo do exercito industrial de reserva, produzirauma modificacao estrutural, se tiver duracao suficiente para isso,que ao fim e ao cabo legara uma massa trabalhadora compactada enao mais dividida em duas alas separadas. Sinal de que essa rnudan-ca esta em curso e 0 fato de 89% das negociacoes salariais conduzi-das em 2010 terem produzido reajustes acima da inflacao, trazendo

73. Caio Prado Ir., "!preciso deixar 0 povo falar", conforme citado em L. Secco,Caio Prado Jr. 0 sentido da revoludio, p. 231. .74. Karl Marx, El capital, Livro 1, cap. 23, p. 786. Original em espanhol, traducaominha.

208

ganhos reais para os trabalhadores, que, na industria, foram de4,3% em media."

Mas sera mesmo compacta a massa trabalhadora do futuro?Uma das previsoes relevantes sobre 0 futuro e a de saber qual in-sercao produtiva equal conduta politica tera 0 "novo proletaria-do".Na literatura ate agora produzida a respeito, podem-se divisarduas apostas, e nenhuma delas preve a retomada dos padroes tipi-cos do antigo proletariado. Uma c?rrente pensa na integracao aospad roes da classe media tradicional. A partir do crescimento daclasse C, Marcelo Neri chega a sugerir que a metafora adequadapara descrever 0 Brasil deixou de ser a Belindia, de Edmar Bacha, epassa a ser a Belperdia. Para ele, surgiu urn pais interrnediario, dotamanho do Peru, entre a pequena Belgica da classe media tradi-cional (cerca de 20 milhoes de habitantes)e a declinante India dasclasses DeE (hoje em torno de 70 milhoes de habitantes)." Con-

. '-forme se discutiu no capitulo precedente e de acordo com as pes-~;"

quisas conduzidas por Neri a frente do CPS/FGV, a classe C, formadapor individuos com renda domiciliar (de todas as fontes) entre1126 e 4854 reais (a precos de 2009 na Grande Sao Paulo), puloude 38% da populacao, em 2003, para 50% em 2009.77 E 0 enormecontingente da classe C, com quase 100 milhoes de habitantes, queconstituiria 0 "terceiro pais" da realidade brasileira.

Como se compo~ta a camada emergente? Como segmentoque vem, por ascensao, das classes DeE, ou seja, dos pobres, chegaansiosa por consumir. Celulares, viagens, computadores, casas ecarros: ha uma febre de compras a credito. 0 estudo feito por Sou-

75. Ver editorial "Emprego em alta", Folha de S.Paulo, 23 mar. 2011, p. A2.76. Ver Marcelo Neri, "Desigualdade, estabilidade e bem-estar social", em Ricar-do Paes de Barros et al., Desigualdade de renda no Brasil: uma analise da quedarecente, vol. 1.77. Marcelo Neri, A nova classe media: 0 lado brilhante dos pobres, p. 31.

209

Page 106: Os Sentidos Do Lulismo

za e Lamounier da enfase ao Ultimo ponto: "Endividando-se alerndo que lhes permitem os recursos de que dispoern, as familias si-tuadas nesse patamar defrontam-se com urn risco de inadimplen-cia que passa ao largo das familias de classe media estabelecida'."

Souza e Lamounier detectaram acentuada preocupacao dosentrevistados com a sustentabilidade da condicao alcancada, te-mor de perda do emprego ou liquidacao do neg6cio pr6prio. 0investimento em pequenos empreendimentos parece ser praticadisserninada no grupo, embora Souza e Lamounier ten ham capta-do uma serie de obstaculos ao empreendedorismo no pais, comoa ausencia de credito e de conhecimento tecnico, carga tributariaelevada e a mentalidade estatista brasileira, formando urn am-biente negativo para 0 desabrochar da iniciativa privada.

A segunda visao e a de Jesse Souza. Ele busca problematizar a. .

denominacao "nova classe media" para designar 0 segmento quevem ascendendo nos ultimos anos. A partir de estudos de caso,Jesse Souza chega a conclusao de queamelhor nomenclatura parao grupo e "nova classe trabalhadora". 0 que as hist6rias de vidacoletadas no seu levantamento demonstram e que esses brasileirostrabalham incansavelmente. 0 trabalho duro, por ate catorze ho-ras diarias, que caracteriza os entrevistados, 0 leva a pensar em"novos trabalhadores" - que apelida de "batalhadores"

Curiosamente, apesar das profundas divergencias entre asduas maneiras de enxergar 0 fenomeno, ha algo em comum entreelas. Embora na primeira a centralidade esteja no consumo, e nasegunda, recaia sobre 0 trabalho, em nenhum dos casos se vislum-bra integracao ao processo de Iura coletiva, tipica do periodo indus-trial. Jesse argumenta que 0 atual capitalismo financeiro nece.ssitade urn trabalhador diferente daquele criado pelo fordista, "que sepunha dentro de uma fabrica e se vigiava 0 tempo todo". A busca

78. Amaury de Souza e Bolivar Lamounier, A classe media brasileira, p. 158.

210

11

pelo aumento da renda do capital teria levado ao corte de custoscom vigilancia, criando-se a ilusao de que cada urn seria ernpresariode si mesmo." Os "batalhadores" seriam vitimas dessa fantasia,"superexplorando-se" por conta pr6pria, em jornadas tao ou maisextenuantes do que se estivessem sob 0 olhar de urn gerente.

Embora Jesse pense que a classe trabalhadora antiga, fordis-ta, nao va desaparecer, entende que a "nova" classe trabalhadoraficara fragmentada "em inumeras unidades produtivas sob a for-ma de oficinas, indiistrias de fundo de quintal, trabalho autono-mo.pequena propriedade familiar e redes de producao coletiva","Significa que tanto Souza e Lamounier quanta Jesse Souza vis-lumbram os emergentes mais vinculados ao empreendedorismo

t~••••4141t4141•4•4••t•••••••••••••••

do que ao sindicalismo." .

o que esta em jogo aqui e 0 desenho do capitalismo brasilei-ro sob 0 lulismo. 0 tern a da desindustrializacao, abordado no ca-pitulo 3, por exemplo, definira em parte 0 carater do proletariadobrasileiro deste seculo, sem esquecer que 0 futuro do trabalho, na-quilo que Robert Castel chama de "capitalismo pes-industrial';"constitui assunto atual de pesquisa ao redor do planeta. Para os quedesejam entender 0 rol que cabera a luta de classes, trata-se deagenda imprescindlvel, pois ela devera esclarecer quais SaD as clas-ses em luta e quais os seus interesses.

79. Jesse Souza, Os batalhadores brasileiros, pp. 323-4.80. Idem, ibidem, p. 325.81. Quando a redacao deste livro jci estava por ser concluida, surgiram dois novoslivros sobre 0 assunto, sem que pudessem ser incorporados Iiargumentacao, Urndo pr6prio Marcelo Neri, A nova classe media: 0 lado brilhante da base da pira-mide (Sao Paulo: Saraiva, 2012). 0 segundo de Marcio Pochmann, Nova classemedia? 0 trabalho na base da piramide social brasileira (Sao Paulo: Boitempo,2012).

82. Ver Robert Castel, El ascenso de las incertidumbres. Trabajo, protecciones, esta-tuto del individuo.

211

Page 107: Os Sentidos Do Lulismo

-._,

Em todo caso, estariamos diante do nascimento de uma fra-c;:aode classe, quem sabe urn novo proletariado,como quer que eleseja caracterizado nas condicoes do capitalismo globalizado, 0 querevela a potencia do reformismo em curso, ainda que, paradoxal-mente, fraco. Ou seja, embora "fraco", esse.reformismo apontapara transforrnacoes estruturais, desde que se prolongue 0 sufi-ciente no tempo. Devido .ao deslocamento da luta de classes, que 0

carater passivo do reformismo fraco impoe.esse proletariado lu-lista emerge num ambiente ideol6gico em que direita e esquerdaforam reduzidas a vozes de fundo, "Direita" e "esquerda" sao a ex-pressao dernocratica da luta de classes, nao do confronto entre ri-cos e pobres, dai a mudanca dos termos do debate publico.

A direita;o deslocamento dos eleitores do interior do Nor-deste em direcao ao lulismo e ao PT esvaziou 0 Democratas, antigoPFL, herdeiro do conservadorismo que apoiou 0 golpe de 1964 esustentou a ditadura. A~ tirar-lhesustentacao, 0 lulismo tornouirrelevante urn dos esteios do projeto neoliberal para 0 Brasil. Aproposta de expansao do mercado, com a desregulamentacao deareas crescentes da ~id~ s~~ial, ficou· restrita, num primeiro mo-mento, ao PSDB, cujo suporte nas classes medias urbanas nao foierodido pelo lulismo, ao contrario, vi~-se reforcado por ele. AoPSDB, que a partir do governo Fernando Henrique se fez o deposi-tario das esperancas da burguesia, com 0 capital financeiro a fren-te, de engatar 0 pais na corrente do capitalismo globalizado, cabe-ria empunhar sozinho a bandeira da liberalizacao.

No entanto, 0 realinhamento obriga 0 PSDB a aproximar-seeleitoralmente do lulismo para continuar a ser opcao majoritaria,Alem do mais, conforme mostraram Fernando Limongi e RafaelCortez," 0 sistema brasileiro tende a se bipartidarizar e, nesse

83. Fernando Limongi e Rafael Cortez, "As eleicoes de 2010 e 0 quadro partida-rio", Novos Estudos, n. 88, dez, 2010.

212

contexto, OS partidos convergem para 0 centro, como a cienciapolitica comprovou ha tempos." No caso em pauta, cabe ao PSDB

praticar urn "transformismo popular". Uma rapida visao da dis-puta presidencial de 2010 ilustra 0 ponto.

No inicio da sua campanha, Jose Serra propos politica so-cial mais audaciosa que a de Lula: duplicacao do Bolsa Familia,que passaria a atender 25 milhoes de familias em lugar de 12,5milhoes, e aumento real de 10o/?no salario minimo em 2011,em vez de adia-lo para 2012 como estava previsto pela politicaestabelecida nos anos anteriores. Ao fazer esse giro, Serra preci-sou submergir a plataforma liberal que 0 partido construira noperiodo FHC, deixando sem representacao a pequena burguesiainconformada com a ascensao do subproletariado, assim comoa burguesia neoliberal.

Houve, contudo, urn dado surpreendente. A candidatura deMarina Silva, apresentada pelo pequeno Partido Verde, com pou-quissimo espac;:ona TV, empolgou fatia da seara tucana, em parti-cular os jovens de classe media, e ate franjas do eleitorado popular,menos lulista, que existe fora do Norte/Nordeste. Marina ocupou,de repente, 0 terreno ao centro que Serra pretendia agregar as suashostes. Em decorrencia, Serra foi empurrado de volta para a direi-ta e assumiu tern as que estavam ausentes no inlcio da campanha,como 0 do corte de impostos e 0 da corrupcao, que funcionamcomo senhas da critica ao fortalecimento do Estado no lulismo. 0carater erratico da campanha do PSDB impediu que Serra oficiali-zasse programa no primeiro turno, terminando 0 escrutinio ini-cial com menos votos do que Alckmin em 2006: 33% dos votosvalidos para Serra em 2010 contra 42% para Alckmin em 2006.

No segundo turno, livre da sombra de Marina, Serra tentourecuperar 0 tom (e os votos) com algum exito, 0 seu program a de

84. Ver, a respeito, Giovanni Sartori, Partidos e sistemas partidarios.

213

Page 108: Os Sentidos Do Lulismo

governo, finalmente lancado nos ultimos dias de campanha, criti-ca 0 governo Lula por manter os juros "desnecessariamente eleva-dos e 0 cambio excepcionalmente apreciado, para alegria dos es-peculadores e sofrimento da industria e da agricultura nacionais".Isto e, retoma a tentativa de contornar 0 lulismo pela esquerda. Aomesmo tempo, 0 programa afirma que Jose Serra "foi urn dosmentores do tripe de responsabilidade fiscal, sistema de metas ecambio flutuante'; 0 qual deveria ser mantido em nome de garan-tir a estabilidade da economia brasileira. COmo se sabe que os ju-ros elevados e 0 cambio apreciado sao 0 resultado desse tripe, asolucao proposta para a contradicao e a me sma do lulismo: "regu-lar a dosagem entre as politicas moneta ria, cambial e fiscal"," Emoutras palavras, encontrar os equilibrios possiveis entre os in.te-resses opostos na forma da arbitragem praticada pelo reformismofraco. Portanto, outra vez, a plataforma da dire ita, de desregula-mentacao e aceleracao do moinho satanico, perdeu 0 porta-vozque lhe restava na arena partidaria, a saber, 0 PSDB, que voltou a seaproximar do lulismo.

o resultado do segundo turno mostrou que, na vigen cia dorealinhamento de 2002-06, esse e urn caminho mais rentavel parao PSDB. Serra teve no segundo pleito em 2010 urn desempenhomaior que 0 de Alckmin em 2006, passando de 39% (Alckmin)para 44% (Serra) dos votos validos, De modo a permanecer urnpartido eleitoralmente competitivo, 0 PSDB tera que disputar ossetores em ascensao, assim como as correntes do subproletariadomenos fascinadas pelo lulismo, Embora continue a ser, rnesmoque por exclusao, 0 partido da burguesia e da pequena burguesia,o PSDB nao podera vocalizar plenamente 0 seu nucleo enquanto

85. Programa de governo Jose Serra. Uma agenda para 0 desenvolvimento sustenta-vel do Brasil, em <http://serra45.podbr.com/down!oads/Programa-de-Governo--Iose-Serra.pdf>, consultado em 13 mar. 2011.

214

durar 0 realinhamento lulista. Tent que se apresentar como 0

continuador etico do reformismo fraco. Nao e ocioso registrarque, do ponto de vista ideo16gico, 0 PSDB explica a sua adesao aoneoliberalismo como tipica opcao social-democrata, aquela ali-nhada com a terceira via de Tony Blair e Bill Clinton. 0 que, defato, corresponde a conversao ocorrida com alguns velhos parti-dos progressistas na decada de 1990, como 0 Labour ingles. En-contra nessa associacao urn alibi para aproximar-se do reformis-mo fraco.

E interessante, a respeito, a percepcao de Jesse Souza, paraquem a analise que ve 0 surgimento de uma "nova classe media"esta a service de construcao ideologicaque visa integrar os seto-res ascendentes, gracas ao lulismo, a esfera de influencia do par-tido que encarna a "velha classe media", 0 PSDB.86 "Se possivel,

.. , . . .tenta-se tambern passar a ideia de que essa 'nova classe media' eproduto apenas da politica moneta ria e de privatizacoes do go-verno FHC."87 Claro que, para unificar a sua base, 0 PSDB precisaraconvencer a "antiga classe media" de que 0movimento de ascen-sac da "nova classe media" ~ born, diminuindo, por razoes eleito-rais, a polarizacao social existente. Em suma, tera que oearrer urnduplo movimento: 0 novo proletariado precisara orientar-separa solucoes de mercado e 0 partido da velha classe media pre-cisara abrir-se para 0 "popular" .

I .' l',!

Ate 0 PMDB, cujo pragmatismo lhe permitiu apoiar tanto 0

neoliberalismo de FHC qu~.!.l,to~o·refor~ismo fraco de Lula, acor-dou para as transforrnacoes em curso e protocolou, em 2010, urnprograma partidario em tom popular para a recente fase do pais.a texto, corredigido pelo inspirador da pesquisa conduzida porJesse Souza, 0 filosofo Roberto Mangabeira Unger, dedica uma

86. Ver Jesse Souza, Os batalhadores brasileiros, pp. 45-6.87. Idem, ibidem, p. 46. -,

215

Page 109: Os Sentidos Do Lulismo

"'-

parte importante do seu espaco a defender'medidas que possamauxiliar os "batalhadores brasileiros", apoiando 0 esforco indivi-dual destes em se inserir e veneer no mercado.

o documento propoe a desoneracao sobre a folha de salaries,de modo a baratear 0 custo de maode obra para 0 capital e assimaumentar 0 nurnero de postosde trabalho; a construcao de umasegunda CLT, para regular 0 setor informal da economia, sem ali-mentar a expectativa de que ele venha a se integrar ao universo dedireitos do antigo proletariado; a extensao do ProUni "aos niveisfundamentais e medios de ensino", a fim de dar aos alunos de ex-tracao social mais baixa chance de ter acesso as escolas de excelen-cia, hoje privadas; para a escola publica, entende que "a unica so-lucao e implantar sistemas baseados na meritocracia'l"

Essas proposituras, que visam aplainar a caminhada dos "ba-talhadores" dentro do mercado, integram-se ao ethos capitalista doprograma do PMDB. Porrnuladotambem pelo ex-presidente doBanco Central Henrique Meirel1es (que posteriormente deixou 0

PMDB pelo PSD, em outubro de 2011) e pelo ex-ministro DelfimNetto, 0 texto assume, em varias passagens, 0 papel de porta-v<?zdocapital, que em tese caberia aOPSDB, t,Dasdo qual este precisa se dis-tanciar pelas razoes eleitorais que mencionei. 0' PMDB comprome-te-se explicitamente a "dar plena apoio a autonomia real para 0

Banco Central", embora "sem formalizacao em lei, tal como ocorre, 'I', '

hoje"," Defende ainda regra pa~a contencao dos gastos publicos,. .

criando "urn limite para crescimento do gasto publico de no maxi-mo dois pontos percentuais abaixo do crescimento do PIB".90 Por~.

88. PMDB, Urn prograrna para 0 Brasil. Tern rnuito Brasil pela [rente, em <http://,PMD B.org. brl downloadslbibliotecas/proposta_pmdb. pdf>, consultado em 13

mar. 2011.89. Idem, p. 4.90. Idem, p. 35.

216

fim, a partir da constatacao de "que 0 sistema previdenciario brasi-leiro e muito caro", afirma que "a discussao sobre a reforma daPrevidencia e urgente","

Ao fazer-se portador das preocupacoes do capital, 0 PMDB

bloqueou, dentro da coligacao que acabou vitoriosa em 2010, 0avanco das correntes que procuravam intensificar 0 reformismolulista.O PT, ainda habitado por uma ala minoritaria, mas ex-pressiva, que pensa nos termos do reformismo forte, conformecreio ter demonstrado no capitulo 2, aprovou nas diretrizes parao governo Dilma 0 "compromisso com a defesa da jornada detrabalho de quarenta horas semanais, sem reducao de salaries" euma "reforma tributaria que [...] de continuidade aos avancesobtidos na progressividade, valorizando a tributacao direta, es-pecialmente sobre as grandes fortunas". Tocava, dessa maneira,em do is pontos-chave a favor do trabalho: a limitacao do tempoem que este fica a disposicao do capital e a tributacao dos capita-list as com vistas a financiar 0 Estado de bem-estar social. A in-compatibilidade entre os programas apresentados pelo PMDB epelo PT parece ter tornado impossivel a sintese, levan do a coliga-crao que apoiou Dilma a tambem evitar a divulgacao de progra-ma oficial da candidata no primeiro turno, rompendo tradicaoque remontava a primeira campanha de Lula em 1989. Como 0

lulismo precisa equilibrar os interesses do capital e do trabalho acada volta da conjuntura, sem poder transformar a experienciapratica em modele doutrinario, e funcional ter dentro do governoo confronto entre capital e trabalho, prestando-se 0 PMDB ao pa-pel de defender os interesses do capital. 0 PMDB lidera urn blocode partidos de dire ita que buscam, no interior do lulismo, anulara influencia de correntes a esquerda ainda existentes no PT.

A cinco dias do segundo turno (quase como Serra), a candi-

91. Idem, pp. 35-6.

217

Page 110: Os Sentidos Do Lulismo

datura Dilma apresentou "13 compromissos programaticos", fru-to de consenso entre as legend as que a apoiavam." Desse consensoficaram previsivelmente fora propostas mais caras tanto a classetrabalhadora, como reducao da jornada de trabalho e tributacaodas fortunas, quanto ao capital, como 0 apoio a autonomia doBanco Central e a reforma trabalhista. 0 consenso se deu em tor-no de manter 0 crescimento economico com estabilidade e erradi-car a pobreza absoluta (que na pratica devera ser a pobreza extre-ma). Destaque-se a observacao de que "os programas sociais sac 0

reconhecimento de direitos da cidadania e nao medidas 'assisten-ciais' como querem nossos adversaries";" Com 0 programa deconsenso, para efeito do debate publico, assim como deixou deexistir uma direita relevante, igualmente deixou de haver uma es-querda relevante. Com isso, a voz anticapitalista, nas eleicoes, fi-cou reduzida a candidatura de Plinio deArruda Sampaio, do PSOL,

que terminou com 1% dos votos validos,Embora 0 PT, na Resolucao Politica do Congresso Nacional

Extraordinario (etapa da reforma estatutaria), em setembro de2011, tenha retomado a linguagem e as propostas de esquerda,afirmando que "a questao dos juros e do cambio precis a ser en-frentada com medidas mais ousadas" e voltasse a propor a reducaoda jornada para quarenta horas e 0 aumento "da taxacao sobre asfortunas, sobre as herancas e sobre os lucros", essas posicoes tive-ram escassa repercussao publica." Na pratica, 0 partido e mais

92. <G l.globo.com/especial/ eleicoes- 201 0/noticia/20 1OIDilma-lanca -docu-mento-com-13-diretrizes-de-governo.html>, consultado em 10 abr. 2012 ..93. Ver compromisso 5 dos 13 compromissos programaticos de DilmaRousseff para debate na sociedade brasileira em <mais.uol.com.br/viewln8doj4q9 31kel os-13-com promissos-programa ticos-de- d ilma - ro ussef--0402983260C4A193C6?types=A>, consultado em 10 abr. 2012.94. <www.pt.org.br/dowloads/ categorialresolucoes_do _4_congresso >, consul-tado em 10 abr. 2012.

~

identificado pela defesada expansao do mercado interno e daampliacao do mercado de trabalho; da transferencia de renda,co~ a apresentacao ao Congresso Nacional do projeto de lei daConsolidacao das Leis Sociais, que pode avancar no sentido darenda minima (ainda que ate a conclusao deste livro ele nao tenhasido enviado ao Parlamento pelo governo Dilma); do aumentoreal do salario minima, que da cobertura previdenciaria a quase19 milhoes de brasileiros e deterrnina a remuneracao de quase SOmilhoes de trabalhadores;" da expansao do credito popular, fa-zendo fluir 0 financiamento para setores antes desprovidos dele;da destinacao do dinheiro do pre-sal para urn fundo soberanocom finalidade social. Enfim, a plataforma do subproletariado queos governos Lula e Dilma ternlevado adiante.

A conversao da segunda alI?~ dorr ao lulismo e seu corres-pondente ideol6gico, 0 desenvolvimento de urn capitalismo po-pular, deixou vazio 0 lugar do anticapitalismo, hoje disputado porpequenas siglas como 0 PSOL e 0 PSTU, ja que a esquerda do PT ternimp acto dentro do partido, mas pouco fora dele. Essa situacaocarrega urn paradoxo: 0 de que a esquerda no Brasil ganhou e per-deu, ao mesmo tempo, com a ascensao do lulismo. No momentaem que urn projeto reformista, m~smo fraco, avanca na reducaoda sobrepopulacao trabalhadora superempobrecida permanente,aumentando 0 contingente proletario, a luta ideol6gica parece. .

recuar para urn estagio anterior ao conflito capitalltrabalho.Certa hegemonia capitalista que 0 lulismo consolida no pais

se combina com 0 panorama geral vivido pela esquerda neste ini-cio do seculo XXI. A mudanca eleitoral mundial, que comeca noReino Unido em 1979 e depois se espalhara pelas democraciasavancadas, em ritmos e combinacoes diferentes, determinou 0

recuo continuo da esquerda ate deixa-la reduzida a pequenos gru-

95. Dados do governo federal, segundo a Folha de S.Paulo, 17 fey. 2011, p. A4.

'.219

Page 111: Os Sentidos Do Lulismo

••••t••It••Itt•a·••••it•••••••e·••••••••

pos, com baixa capacidade decis6ria. Nesse perfodo, que ja duracerca de trinta anos, surfando sobre a mare montante de maioriaseleitora:is, 0 capital impos as condicoes da luta de classes e con-quistou uma liberdade que resultou na desregulamentacao dosfluxos financeiros e na transferencia de enormes porcoes da ativi-dade econornica para lugares do planeta onde a mao de obra podeser superexplorada. 0 consenso neoliberal foi simbolizado pelaautonomia dos bancos ceritrais, que funcionam como urn gover-no paralelo sob orientacao do mercado e fora do controle demo-cratico da sociedade. .,

No Brasil, como na India, na China e na Africa do Sul, forma--se urn novo proletariado, enquanto na Europa e nos EVA ele sedesintegra. Embora 0 capitalismo possa ser p6s-industrial nocentro, na periferia ainda giraao redor da industria. Os conflitos"fordistas" que comecam a aparecer em paises emergentes como aChina sao reflexo disso. Aplicando-se em outre contexto, a obser-vacao de Tocqueville segundo a qual as revolucoes tendem a ocor-rer quando as coisas "estao melhores", e nao quando "vao muitomal"," deve-se imaginar que 0 novo proletariado brasileiro, bene-ficiado pela ascensao lulista, passe a fazer reivindicacoes.

Mas quais serao as forrnase 0 conteudo dessas demandas?Com a esquerda em retrocesso e as religioes evangelicas em avan-co, ha muito para pesquisar a respeito. Algumas indicacoes daoconta de que os grupos ascendentes chegam a patamar social su-perior imbuidos de religiosidade distinta da que envolvia 0 "anti-go proletariado". Enquanto este era majoritariamente cat6lico,com uma interessante presen~a das Comunidades Eclesiais deBase,o atual e influenciado por diversas denominacoes evangeli-

96. Ver Raymond Aron, Main currents in sociological thought (vol. 1), p. 270.Agradeco ao professor Gabriel Cohn ter lembrado a observacao de Tocquevilleem debate no JlWUSP, mar. 2010.

220

cas pentecostais e neopentecostais. Para descreve-los, Ruda Riccirecorre a nocao de Richard Sennett sobre a ideologia da intimida-de para falar de grupos que tendem a restringir "sua participacaoem eventos da pr6pria organizacao confessional';" IgualmenteJesse Souza afirma que Mangabeira Unger foi dos primeiros aperceber "a importancia das novas formas de religiosidade popu-lar na conformacao" da classe ernergente."

As caracteristicas ambiguas do proletariado recem-surgidoabrem terreno de disputa partidaria interessante, pois em cima dadespolarizacao entre direita e esquerda aparece outra polarizacao.Ancorado na classe media, 0 PSDB procurara mostrar-se como 0

partido que tern os melhores quadros para estimular 0mercado aatender aos desejos de consumo do proletariado emergente. En-raizada entre os pobres, a segunda alma do PT levara 0 partido a seapresentar como aquele que poe 0 Estado ao lado do "batalhadorbrasileiro". Se, em face do que foi 0 combate entre esquerda e direi-ta nos anos 1980 e 1990, 0 embate soa como uma polaridade debile porque sao tempos de reformismo fraco. Mas, ainda que tenue,ele podera colocar, se tiver a durabilidade prevista neste livro, ascontradicoes brasileiras em degrau superior aquele que conteve ahist6ria do pais ate 0 inicio do seculo XXI.

97. Ruda Ricci, Lulismo, p. SO.9S. Jesse Souza, Os batalhadores brasileiros, p. 32S.

221

Page 112: Os Sentidos Do Lulismo

Apendice

t

•••4t41•tt~•••t••,•••••t'.•••'.••••

TABELA 1:

TAXA DE ABSTEN<;:XO NAS ELEI<;:OES 2002-10

ELEI<;:AO ABSTEN<;:AO

1989/1° Turno 12%

1989/2° Turno 14%

1994/10 Turno 18%

1998/1° Turno 22%

2002/10 Turno

I18%

2002/20 Turno 21%

2006/10 Turno 17%

2006/2°Turno 19%

2010/10 Turno 18%

2010/20 Turno I 22%

Fontes: Para 1989 e 1994, TSE, via Andre Singer, Esquerda e direita no eleitoradobrasileiro. Sao Paulo: Edusp, 2000, pp. 63, 66 e 99. Para 1998, TSE, via David Fleis-cher et aI. "Eleicoes 98 no Brasil e na Alemanha". Papers, n. 35, Sao Paulo, Funda-"ao Konrad-Adenauer, 1998. Para 2002 e 2006, TSE. Para 2010, Folha de S.Paulo, 6out. 2010, p. Especial 7 (primeiro turno de 2010), e Folha de S.Paulo, 1 novo 2010,p. Especial 15 (segundo turno de 2010).

"

223

Page 113: Os Sentidos Do Lulismo

TABELA2: <,

INTENyAO DE VOTO POR RENDA FAMILIAR MENSAL NO

SEGUNDO TURNO DE 1989

ATE2 SM + DE 2 a 5 SM + DE 5 a 10 SM + DE 10 SM

Collor 51% 43% 40% 40%

LuIa 41% 49% 51% 52%

Nenhum/sn/Nulo/Nao sabe/Nao opinou

8% 8% 9%

100%100% 100% 100%TOTAL

Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 3650 eIeitores realizada entre 13e 16 de dezembro de 1989, via Andre Singer, "Coller na periferia: a volta por cimado popuIismo?", em B. Lamounier (org.), De Geisel a Col/or, a balance da transi-Fia. Sao Paulo: Suman" 1990, p. 137.

TABELA3:

CONCORDANCINDISCORDANCIA COM 0 USO DE TROPAS CONTRA

GREVES POR RENDA FAMILIAR MENSAL, 1990

ATE2 SM + DB 2 a 5 SM + DB 5 a 10 SM + DB 10 SM + 20 SM TOTAL

Concorda 41,6% 24.3% 15,7% 15,7% 8,6% 25,7%

Discorda 49,2% 70,1% 73,6% 62,5%63,9% 72,1%

Depende 4.4% 9,7% 13,4%8,1% 13,4% 8,4%

Nao sabe 4,8% 3,iYo 2,5% o,iYo 4,3% 3,5%

TOTAL 100% 100% 100% 100% 100% 100%*

Fonte: Cultura Politica (Cons6rcio uss/Cedec/Datafolba), pesquisa realizadacom amostra nacional de 2480 eleitores em marco de 1990, con forme AndreSinger, "Ideologia e voto no segundo turno da eleicao presidencial de 1989'~Dis-sertacao de mestrado, Departamento de Ciencia Polltica/usr, 1993, p. 71.* Pequenas variacoes no total correspondem ao arredondamento das porcentagens.

224

8%

o,<o-~........l<Uo....loE-<~!:Z:oIl.

<~ozoUI-'"

~(/)

'<~•• !:Z:'<t _< >-....l !:Z:I-'" I-'"(:Q E-<

~ 2::I-'">-I-'"QoZ!:Z:I-'">-oooI-'"~C/I-'"QoE-<ZI-'"~UI-'"::cZoUI-'"!:Z:

....,0'\0'\,....

~Gl!:Z:s.-eQ!:Z:I-'"~C/(/)

I-'"<....l<U(/)

I-'"-eZ

...gf-<

IiQ

0\

00

r-,

-o

'"

v

'"

r<

oVlUl

os~8I:::

8

#.vr-::'"#...•~'"#.vr-::-o

~o~'"#.:?'"~o0\

o'"

~or<Nv

~~

#.o<i,'"

#.0\

~'"

#.r-,<i,'"

~..•~

#.-e

~

#.-e..0

#.-c~

#.;?

#.r<..0..•

#.'"..0

#."l.~

#.0\.;:..

~~

#.00~

#.'"or<

~o-o~

#.oor<

#.0\..0

$r<~

$'-e-~

#.00::.'

$\()

~

#.o:8 ~

00

2

N

os~8

• Vl

:3 i5

~'"

#.'"~

~r-::..•

~o0\<i,

#.oi#.00..0..•

#.0\

~

#.0\

o'"

~~

#.'"~

#.'"~

$00.;:..r<

$

*$o8

#.o8

o"0

~a5os"0

.~0;1:!~.g~o .(1\00(1\ 00-.j<";N 0..

~§os NI::: "·8 ~os ;:3I::: ;2e! 0 .t; :; co os 0a 0.. be(U 0 19e .os I:::

V) 0o . ~u :: 0~ .;;; 0..os :-;:: (QO'~"Oa3l; 90.. () I:::"~ 0~ ~ a.J:: () os

"'0 .-= -0"; ~ §•.• () "0o ;: ~~ .§ ~~ .~ tU

U ~ e__ " 0

e;-§"8~ t 8..

••.• ;:s ~

~~~I::: .: U8 ~3~.s 0t'\t V) 0.~ ~ c

~] .~e! e ·2;:3 •••• ~'3 .Q ~U § I:::•. U QJ~,..;-g.c:: (1\ 0,9 (1\ 0..- •....*

#.o8

#.o8

#.o8

#.o8

~oo8

$o8

#.o8

~

#.o8

...~~

225

Page 114: Os Sentidos Do Lulismo

TABELA5:

VOTO NO PRIMEIRO TURNO POR LOCALIZA<;:AO NO

ESPECTROIDEOLOGICO,2002

ESQUEROA CENTRO OIREITA TOTAL

Lula 66% 52% 50% 53%Serra 10% 17% 19% 16%Garotinho 9% 12% 13% 12%Ciro 5% 11% 7% 8%Outros/sa/Nulo/

9% 8% 9% 11%Nao lembra/Nao votou

TOTAL 100% 100% 100% 100%*Fonte: Criterium Avaliacao de Pollticas Publicas, Pesquisa pos-eleitoral comamostra nacional de 2291 eleitores rcalizada em novembro de 2002. Obs.: Asposicoes na escala de 1 a 7 foram assim agrupadas: esquerda = 1 e 2; centro = 3,4e 5; direita = 6 e 7. Dados cedidos por Gustavo Venturi.* Pequenas variacoes no total correspondem ao arredondamento das porcentagens.

TABELA 6:

VOTO NO PRIMEIRO TURNO DE 2006 POR LOCALIZA<;:AO NO

ESPECTROIDEOLOGICO

ESQUEROA CENTRO OIREITA TOTAL

Lula 62% 49% 63% 55%Alckmin 19% 28% 20% 24%Heloisa Helena 5% 5% 3% 4%Cristovam 1% 3% 1% 2%Outros/sa/Nulo/Nao lembral

14% 16% 12% 15%Nao votou/Nao respondeu

TOTAL 100% 100% 100% 100%Fonte: Criterium Avaliacao de Politicas Publicas, Pesquisa p6s-eleitoral comamostra nacional de 2400 eleitores realizada em novembro de 2006. Obs.: Asposicoes na escala de 1 a 7 foram assim agrupadas: esquerda = 1 e 2; centro = 3,4e 5; direita = 6 e 7. Dados cedidos por Gustavo Venturi.

226

TABELA 7:PREFERENCIA PARTIDA.RIA (RESPOSTA ESPONTANEA E (lNICA),

1989-2010

,

,

,

1989 1994 1996 1998 2002 2005 2006 2007 2010

PT 12% 13% 13% 12% 21% 16% 19% 21% 24%

PMOB 19% 18% 13% 12% 8% 5% 7% 10% 6%

PSOB 1% 3% 4% 4% 4% 8% 5% 5% 6%

PHlOEM 6% 4% 4% 5% 4% 4% 3% 2% 1%

Forites: Datafolha. Abril de 1989, fevereiro de 1994, junho de 1996, setembro de1998 e outubro de 2002, via Y. S. Carreirao e M. D. Kinzo, "Partidos politicos,preferencia partida ria e decisao eleitoral (1989/2002)", Dados, vol. 47, n. I,2004, pp. 144-5; dezembro de 2005, via G. Venturi, "PT 30 an os: crescimento ernudancas na preferencia partidaria, impacto nas eleicoes de 201 O'~Perseu, n. 5,segundo semestre de 2010; janeiro de 2006, marco de 2007, dados cedidos peloCesop (Unicarnp): marco de 2010, via <www.datafolha.com.br>. consultadoem 29 jun. 2010.

227

Page 115: Os Sentidos Do Lulismo

TABELA 8:

PREFERtNCIA PELO PT POR ESCOLARIDADE, 1989-2010

1°GRAUl ENSINO ENSINO TOTAL

FUNDAMENTAL MEDIO SUPERIOR

1998 8% 17% 20% 12%

2000 12% 21% 24% 15%

2002 17% 28% 29% 22%

2006 18% 20% 22% 19%

2007 19% 23% 18% 21%

2010 20% 27% 24% 24%

Fonte: Datafolha. Setembro de 1998, junho de 2000, via Y.S. Carreirao e M. D.Kinzo, "Partidos politicos, preferencia partidaria e decisao eleitoral (1989/2002)",Dados, vol. 47, n. 1,2004, pp. 148-9. Setembro de 2002, janeiro de 2006 e marcode 2007, via Cesop (Unicamp); marco de 2010, via <www.datafolha.com.br>,consultado em 24 abr. 2010.

228

TABELA9:

NUMERO DE DEPUTADOS FED~RAIS ELEITOS PELO PT POR

REGIAO DO PAis, 1982-2010

SUL SUDESTE NORDESTE NORTE CENTRO- TOTAL

-OESTE

1982 8 8

1986 2 14 - 16

1990 8 19 2 4 2 35

1994 12 24 7 2 4 49

1998 13 26 9 5 5 58

2002 19 37 17 10 8 91

2006 14 30 23 10 6 83

2010 17 30 24 10 7 88

Fontes: 1982-2002, Iairo Nicolau, Dados eleitorais do Brasil; via V.A. de Angelo eM.A.Villa (orgs.), 0 Partido dos Trabalhadores e a poUtica brasileira (1980-2006).Sao Carlos: EdUFSCar, 2009, p. 118. Para 2006, Iairo Nicolau, "Dados eleitorais doBrasil (1982-2006)", via <jaironicolau.iesp.uerj.br/jairo2006/port/cap2/cadeiraslcap2_2006html>, consultado em 5 abr. 20rz. Para 2010, <http://eleicoes.uol.com.br/20 10/raio-xfdeputados-federais-eleitos/>, consultado em 3 abr. 2012.

TABELA 10:

INTEN«AO DE VOTO POR RENDA FAMILIAR

MENSAL NO PRIMEIRO TURNO DE 2002

ATE 2 SM + DE 2 a 5 SM + DE 5a 10 SM + DE 10 SM TOtAL

Lula 43% 46% 50% 50% 46%

Serra 19% 20% 17% 22% 19%

Garotinho liYo 16% 14% 8% 15%

Ciro 11% 11% 12% 14% 11%

Fonte: Datafolha. Pesquisa com amostra nacional realizada em 27 de setembrode 2002.

229

Page 116: Os Sentidos Do Lulismo

TABELA 11:

VOTO POR REGIAO NO PRIMEIRO TURNO DE 2010 (EM MILHOES)

CENTRO-SUL SUDESTE NORDESTE NORTE -OESTE BRASIL

Dilma 6,7 18,3 15,9 3,7 2,9 47,6Serra 6,9 15,4 5,6 2,4 2,8 33,1Marina 2,2 10,3 4,2 1,3 1,5 19,6

Fonte: TSE, via Polha de S.Paulo, 5 out. 2011, Especial Eleicoes 20 J 0, p. 9.

TABELA 12:

VOTOS VALlDOS POR REGIAO NO SEGUNDO TURNO DE 2010 (EM %)

SUL SUDESTE NORDESTE NORTE CENTRO--OESTE

Dilma 46% 52% 71% 57% 49%Serra 54% 48% 29% 43% 51%TOTAL 100% 100% 100% 100% 100%

Fonte: TSE,via Folha de S.Paulo, 1 novo 2011, Especial Eleir6es 2010, p. 12.

QUADR01:

PERFIL DO GASTO P(JBLlCO NO GOVERNO LULA (EM % DO PIB)

QUADR02:

fNDICE DE GINI DO BRASIL, 1995-2010

1995 2002 2009 2010

0,5994 0,5886 0,53040,5448

Fontes: Para 1995,2002 e 2009, CPS/FGV,a partir de microdados da PnadIIBGE, via

Marcelo Neri, A nova classe media: a lado brilhante dos pobres. Rio de Janeiro: cps/

FGV,2010, p. 40, consultado em <cps.tgv.org>. Para 2010, FGV/R),a partir da Pes-

quisa Mensal de Emprego do IBGEpara 2010, via "Desigualdade no Brasil atinge 0menor nivel em 2010, diz FGV",em <http://wwwl.folha.uol.com.br/poder/

91 0726-desigualdade-no-brasil-atinge-o-menor-nivel-em-20 10-diz-fgv.shtrnl>, consultado em 4 jan. 2012.

QUADR03:

PROPORC:;:AO DE SALARIOS NO PIB, BRASIL, 1995-2009

1995 2002 2004 2007 2009

35,2% 31,4% 30,8% 32,7% 35,1%

Fonte: Calculo de Ioao Sicsu sobre Contas Nacionais do IBGE(2009: estimativa deSicsu), via Teoria e Debate, n. 88, maio/jun. 2010, p. 14.

QUADR04:

RENDA DOS MAIS RICOS E MAIS POBRES PERTO DO ANO 2000

2002 2003 2004 2005 2010 I 10% MAIS RICOS 10% MAIS POBRES

Namibia 65% 0,5%Receita bruta 21,7% 21% 21,6% 22,7% 23,8%Brasil 47% 0,5%,

Pessoal e en cargos 4,8% 4,5% 4,3% 4>3% 4,iYo 1

Africa do Sui 47% o,iYoTransferencia de renda as

6,8% 7,2% Russia 36% 1,8%famiJias 7,7% 8,1% 9%

Mexico 33% 1%Investimentos 0,8% 0,3% 0,5% 0,5% 1,2%.Suecia 22% 4%

Fonte: Valor Economico, 27 dez. 2010; elaboracao: Nelson Barbosa. Editado porFonte: Dados da Cepal, Pnud e outros, elaborados pOT Goran Therborn, via G.Andre Singer.Therborn (ed.), Inequalities of the world. Londres: Verso, 2006, p. 34.

230 231

••••ttttt41••••••••••••••'.•••••••••

Page 117: Os Sentidos Do Lulismo

-

..~

QUADROS:

RENDA DOS MAIS RICOS E MAIS POBRES EM 2010

10% MAIS RICOS 10% MAIS PODRES

Brasil 45% 1%

Fonte: Indicadores Sociais Municipais do Censo Demografico 2010 do IBGE,via<www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1007141-metade-mais-pobre-da-popula-cao- fica-com -177 -da- renda -mostra- IBGE.shtrnI>, consultado em 6 abr. 2012.

QUADR06:

fNDICE DE GINI EM VARIOS PAfsES

Dinamarca/zoos 0,24

Alernanha/zoos 0,26

Espanha/zoos 0,32

EUA/l005 0,46

Brasil/zoic 0,53

Africa do Sul/zooo 0,58

'-Colornbia/zooj 0,59

Fontes: Para Alemanha, Espanha e EUA:Ipea, Comunicado da Presidencia, n. 38,jan. 2010, p. 8. Para 0 Brasil: FGv/RJ, a partir da Pesquisa Mensal de Emprego doIBGE,via "Desigualdade no Brasil atinge 0 menor nfvel em 2010, diz FGV",em<http://www1.folha.uol.com.br/poder/91 0726-desigualdade- no- brasil-atinge--0-menor-nivel-em-2010-diz-fgv.shtrnI>, consultado em 4 jan. 2012. Para Africado SuI e Colombia: "Brasil reduz desigualdade e sobe no ranking" em <www.pnud.org.br/pobreza -desigualdade/reportagens/index. php?idO1=2390&lay=pde>, con-sultado em 6 abr. 2012.

232

Posfacio

No meio do caminho tinha uma pedra'

o relato que segue busca delinear a trajet6ria intelectual quevai de minha formacao universitaria, sob a segunda metade daditadura militar, ao trabalho de interpretacao do lulismo, realiza-do trinta anos depois. Nao julgo relevante conhecer 0 percurso doautor para avaliar os argumentos apresentados nas paginas prece-dentes. Mas penso que, apesar da evidente modestia dos fatosnarrados, talvez possam interessar a urn ou outro leitor curioso agenese das ideias que acabaram de ser expostas.

Tomei a decisao de dedicar-me ao tern a do lulismo conscien-te dos problemas de analisar fatos recentes, cujo senti do ainda naose revelou e, para maior perigo, nos quais estive pessoalmente en-volvido. Corri 0 risco porque ele me permitia ten tar entender arealidade que encontrei entre os sonhos de juventude e a idade darazao, Espero com as linhas abaixo esclarecer em algo a naturezada pedra que havia no meio do caminho.

1.Versao bastante modificada do memorial apresentado ao concurso de livre--docencia em ciencia politica na Universidade de Sao Paulo em setembro de 2011.

233

Page 118: Os Sentidos Do Lulismo

TEMPOS DE ESPERAN«A 2

Ingressei no curso de Ciencias Sociais em 1976. Apesar deestarmos quase ainda nos anos de chumbo, 0 ambiente intelectualna Universidade de Sao Paulo apresentava-se, para minha surpre-sa juvenil, inteiramente livre. Desde entao tenho a sensacao demorar na aldeia gaulesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Cieri-cias Humanas da uSP.Sempre que saio, volto, como se minha casafosse. La fora, a transicao para a democracia dava passos iniciaisinseguros. Havia assassinatos de opositores, como ocorreu com adirecao do Partido Comunista do Brasil (PCdOB)logo ap6s as elei-coes municipais de 1976. A tortura aos presos politicos nao estavabanida. Tanto e que, em maio de 1977, militantes que chamavampara manifestacao no Dia do Trabalhador no ABCforam presos eseviciados, 0 que provocou 0 retorno dos estudantes ao centro deSao Paulo pela primeira vez desde 1968. Logo depois de contido 0

"apito da panela de pressao', pela violenta invasao da ruc-sr em se-tembro de 1977, rumores de golpe encheram 0 ar, quando 0 minis-tro do Exercito foi defenestrado pelo general Geisel. Lembro-me deque na noite do acontecimento houve caloroso debate sobre a con-juntura em sala repleta da escola, que funcionava no predio impro-visado da Cidade Universitaria conhecido por "barracao', desde aexpulsao da, para n6s, legendaria rua Maria Antonia.

Apesar da nitida presenc;:ada ditadura, textos de Marx, Grams-ci e Benjamin ocupavam lugar de honra na bibliografia das disci-plinas e as discussoes em sala de aula se davam sem censura. Comoa epoca era de dara influencia do pensamento de esquerda, acornpreensao das relacoes de dasse, da evolucao dos modos de

2. Norberto Bobbio, 0 tempo da memoria. Inspirado pelo titulo em portuguesde volume de Bobbio, organizei este relato em tres tempos: de esperanca, deexperiencia e de reflexao,

234

producao, da construcao da hegemonia e da industria culturaleram os focos principais. Ao mesmo tempo, fazia-se uma leituracompenetrada de autores da vertente liberal, como Locke, Mon-tesquieu e Tocqueville. A peculiar abertura simultanea para 0

pensamento socialista e politico liberal que encontrei na usr fica-ria comigo em definitivo. Professores como Celia Galvao Quirino,Francisco Weffort, Gabriel Cohn, Juarez Brandao Lopes, MariaTereza Sadek e Ruth Cardoso, entre outros, tinham a rara capaci-dade de transitar nas duas tradicoes. Ali adquiri a conviccao deque a esquerda, para ser democratica, precisa conhecer 0 liberalis-mo politico.

No campo editorial publicavam-se livros "perigosos', mos-trando que se voltava a viver liberdade cultural desconectada darepressao politica, como se dera entre 1964 e 1969.3 Em 1975, aPaz e Terra editava Pormaciies economicas pre-capitaltstas, de Marx,urn excerto dos Grundrisse, que utilizamos numa das disciplinas.Em 1974, a Abril Cultural havia publicado outro texto dos Grun-drisse, a Introducao a critica de economia politico, que tambern usa-mos em sala de aula. Continuava, assim, 0 trabalho de atualizacaodo pensamento critico que ocorrera antes de 1968, interrompidocom 0 AI-5.Em 1977, comecava a circular a revista Temas de Cien-cias Humanas, com escritos de Gramsci, Lukacs, Marx e Engels. 0numero 1 trazia artigo inedito em portugues de Gramsci, que estu-damos na epoca e de cujo titulo, "Alguns temas da questao meridio-nal': faco despretensiosa referenda na Introducao deste livro.

A verdade e que, apesar da ditadura militar vigente, dispu-nhamos do necessario para iniciar a viagem pelas humanidades:bons curriculos, otimosprofessores, ambiente acadernico livre.Observado a distancia, creio que 0 fato de estarmos num momen-

..

3.Ver Roberto Schwarz, "Cultura e politica, 1964-69", em 0 pai defamilia e outrosestudos.

235

Page 119: Os Sentidos Do Lulismo

,

..!

to em que a moda intelectual era gauche nos brindou com instru-mentos de interesse ainda atual para a compreensao da politica eda sociedade.

Foi nessa atmosfera que entrei em contato com os textos aque gosto de voltar e aos quais poderia chamar de os "meus classi-cos": 0 principe, de Maquiavel, 0 18Brumario, de Marx, A politicacomo vocafao, de Weber, e Alguns temas da questao meridional, deGramsci. Uma das marcas da usp era,justamente, propor 0 conta-to direto dos iniciantes com autores fundamentais. Cito, a respei-to, 0 depoimento esc1arecedor de Decio de Almeida Prado, que,falando do grupo que fez a revista Clima, conta:

Haviamos herdado, da Faculdade de Filosofia, menos urn saber

acabado - e este nunca 0 e - do que uma tecnica de pensar e

produzir, baseada na pesquisa de fontes prim arias, na leitura dos

autores seminais, nao em cornentarios de terceiros, no raciodn~o

cerrado, que nao permitia excesso de fantasias ou de interpretacoes

pessoais.O progresso mental nos viera nao do numero de leituras,

mas da natureza delas, muitas vezes abstrata, de dificil apreensao,

requerendo urn esforco redob:ado da atencao e da inteligencia.'

Acreditava-se que a exposicao dos alunos ao contato, semintermediaries, com obras fundadoras como 0 espirito das leisouA democracia na America seria a melhor maneira de estimula-losa raciocinar por conta pr6pria. Tempos depois me disseram queera modele oriundo de tradicao filos6fica francesa, segundo aqual a compreensao minuciosa das escrituras relevantes consti-tuia metodo de trabalho. Conta Roberto Schwarz a prop6sito doseminario do Capital: "A inovacao mais marcante foi [... J tam-

4. Decio de Almeida Prado, "0 Clima de uma epoco",em F.Aguiar (org.),AntonioCandido, pensamento e militancia; p. 29.

236

bem devida a Giannotti, que na sua estada na Pranca havia apren-dido que os grandes textos se devem explicar com paciencia, pa-lavra por palavra, argumento por argumento, em vista de lhesentender a arquitetura'"

Sem saber, fui moldado por tal estilo de ensinar e pensar. La-mento nao ter me dedicado com mais afinco, entao, ao estudo,po is, para Iidar com a infinidade de variaveis sociais, nao vejo ou-tro caminho que nao seja a apreensao da teoria, entendida comoreflexao critica sobre as condicoes de producao da totalidade so-cial." Acontece que, atraido pela atividade militante, entrei nomovimento estudantil que renascia.' Imaginava que, ao conjugarteoria e pratica, viria a ser melhor cientista social. S6 mais tardedescobri que, ao menos no meu caso, a necessaria concentracaorequeria esforco maior para ser alcancada, Consola-me lembrardas sess6es de estudo que organizavarnos dentro da tendencia es-tudantil que ajudei a criar. Pelas caracteristicas do grupo queconstituiamos, tais encontros eram series e ate hoje me beneficiode ensinamentos ali obtidos.

Nao existe trabalho de conclusao nas Ciencias Sociais da usr.No en tanto, para uso pessoal considero 0 pequeno ensaio quepubliquei aos 23 anos na Folha de S.Paulo com 0 titulo "Liberdadee igualdade'" como sendo 0 resume da minha passagem pelasaulas da Faculdade de Filosofia. Embora imatura, a reflexao alicontida foi 0 inicio da trajet6ria que me trouxe, volvidas tres deca-

5. Roberto Schwarz, "Urn serninario de Marx", em R. Schwarz, Sequincias brasi-leiras, p. 9l.6. Ver Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, La sociedad. Lecciones de sociolo-gia.7. Uma rapida analise do movimento estudantil de 1977 pode ser encontrada emAndre Singer, "A conjuntura politica em 1977", em F.Maues e Z. Abramo (orgs.),Pela democracia, contra °arbitrio.8. Andre Singer, "Liberdade e igualdade", Folha de S.Paulo, Folhetim, 16 ago. 1981.

237

Page 120: Os Sentidos Do Lulismo

das, a tentativa de entender se 0 lulismo, talvez 0 fenorneno maismarcante da democracia brasileira reiniciada em 1989, nos levapara perto ou longe da utopia igualitaria. Cumpre registrar queassumi, no periodo formativo da faculdade, profundo e duradou-ro compromisso com a democracia. Acredito no socialismo, po-rem nao fora da democracia, do estado de direito, das garantiasconstitucionais, da plena liberdade de expressao e organizacao, darotatividade no poder e do respeito sagrado as minorias, queaprendi a ver como conquistas da humanidade. Dai a perenidade,como tema, das relacoes entre liberdade e igualdade.

No texto de 1981, afirmo que liberalismo e socialismo se en-contravam sem resposta para a crescente alienacao do ser huma-no, pois nem 0 mercado nem 0 Estado apresentavam solucoespara certas caracteristicas da segunda metade do seculo xx: au-mento constante do tamanho das organizacoes, expansao do nu-mero de aparatos estatais com poder descendente, crescentecomplexidade tecnica da vida e massificacao cultural. A solucaosugerida era, na ausencia de respostas globais, valorizar as iniciati-vas de participacao em todas as esferas da vida coletiva: nas empre-sas, nos partidos, no Estado, nas Igrejas, nas familias. Enfim, umaexpansao da democracia para todas as areas da vida.

Em essencia, me mantive fiel a esse modo de pensar e, comose vera, na decada de 1990 retornei aos classicos da teoria politi-ca em busca de respostas aos problemas da participacao e, depassagem, para preencher algumas das lacunas que a militanciaestudantil tinha deixado na formacao do aluno irregular que fui.No entanto, e chocante perceber agora como em 1981 0 que es-tava cornecando a acontecer na Gra-Bretanha e nos EstadosUnidos ainda nao entrara nas cogitacoes da geracao brasileira de77. Entre as esperanc;:as ut6picas dos anos 1970 no socialismodernocratico e a tenue reforma do capitalismo realizada pelo lu-lismo nos anos 2000, haveria a inesperada pedra neoliberal no

238

meio do caminho, colocando-nos na defensiva e rebaixando 0

horizonte das aspiracoes.Em maio de 1979 a conservadora Margaret Thatcher tomava

posse como primeira-ministra do Reino Unido, e em janeiro de1981 Ronald Reagan assumia a Presidencia dos EVA, com 0 que aplataforma regressiva passava a comandar a maior potencia daTerra. Enquanto Thatcher e Reagan preparavam 0 desmantela-mento do Welfare State, 0 meu texto preocupava-se com 0 excessode Estado. "De todos os processos ocorridos neste ultimo seculourn e visivel a olho nu. Trata-se do crescimento do poder de Estado"(grifo posterior), dizia eu, ingenuamente."

Contudo, reconheco na frase 0 espirito do momento. No anaanterior (1980), 0 sindicato Solidarnosc, da Polonia, tinha postoem marcha importante pressao pela democratizacao do socialis-mo real. A organizacao dos operarios poloneses foi acolhida noBrasil como 0 simile europeu das greves desencadeadas no ABC

paulista em 1978. Nessa visao, la e ca se combatia 0 Estado opres-SOl' em nome de urn socialismo com liberdade. Havia otimismoquanta a possibilidade de alcancar-se, tanto no Brasil quanta naPolonia, democracia participativa com justica social. Aqui acredi-tavamos que a redernocratizacao, sob 0 imp acto de urn movimen-to social autentico e de base como 0 dos metalurgicos, permitiriaa refundacao da Republica, dessa vez sem bestializados e compro-metida com a igualdade social.

Nao passava pela minha cabeca que, ao contrario, ocorreriaa vit6ria, urbi et orbi, de urn capitalismo selvagem e destegula-mentado. Nao lembro de ninguern, por sinal, ter previsto quepassariamos os trinta an os seguintes discutindo nao 0 excesso deEstado, mas 0 excesso de mercado. Espanta-rne a incapacidade deperceber 0 que viria pela frente. Estavamos tao ocupados em

,

9. Idem, ibidem.

239

Page 121: Os Sentidos Do Lulismo

••

projetar a radical democratizacao via participacao, que nao nosdemos conta do tsunami regressivo que se armava no centro docapitalismo: conquistas advindas da trava que 0 Estado colocano moinho satanico do mercado (Karl Polanyi) iam ser retira-das, com graves consequencias em termos de aumento da desi- .gualdade e da infelicidade.

E verdade que 0 vigor do movimento social no Brasil adioupor uma decada a chegada do neoliberalismo e resultou na Cons-tituicao de 1988, que gar ante, entre outros, os direitos universaisao trabalho, a saude, a educacao e a cultura, alem de mecanismosdernocraticos participativos. Isto e, de urn angulo estritamentenacional, as esperancras da geracao 77 nao eram de todo infunda-das. Parece-me util fixar, pois a mem6ria e mais curta do que sesupoe, que a decada 1978-88 foi, talvez, a de maior participacaopolitica na hist6ria do pais - uma verdadeira onda democratica,Por isso, tornar efetiva a Carta Constitucional que resultou delacontinua a ser programa razoavel, que ainda empolga parte doshoje grisalhos jovens de entao,

Mas, como 0 Brasil nao vive fora do contexto capitalistamundial, era inevitavel 0 tipo de contradicao com 0 qual teriamosque lidar a partir dos anos 1990. Uma das vantagens de sobrevivere ter mais chance de experimentar diretamente as reviravoltas dahist6ria. Por mais que a leitura esteja na essencia do trabalho inte-lectual, e diferente 0 que se conhece apenas nas bibliotecas. Flores-tan Fernandes afirmava que "0 sociologo, como ser humano,sempre interage e recebe 0 imp acto do que estiver investigando'."Como se diz na metodologia crista, a cabeca pensa de acordo como chao que os pes pisam. 0 oflcio do cientista social e, em variessentidos, distinto do trabalho do bi6logo, do fisico e do quimico,ja que 0 seu laborat6rio e a rua. De certo ponto de vista, ele nunca

10. Florestan Fernandes, A condifiio de soci61ogo,p. 96.

240

sai do laborat6rio, pois a sociedade sempre esta presente. Isso da aexperiencia valor heuristico. Ter passado pela intensa valorizacaoe expansao das areas mercantis em detrimento dos espacos de re-lacao publica agucou a minha sensibilidade: considero a ascensaodo neoliberalismo urn dos mais fascinantes enigmas da epoca.Como isso foi possivel, depois dos avances sociais obtidos nostrinta anos gloriosos (1945-75)? Nao sei responder, mas foi neces-saria a replica da realidade aos sonhos de juventude, a "veritaeffettuale della cosa", como sugeria Maquiavel, para, ao menos,discernir as perguntas fundamentais, algumas das quais tenteiresponder no presente livro.

TEMPOS DE EXPERI~NCIA

Na minha vida pessoal a importancia do mercado tambernapareceu de chofre e com feicoes imperiosas. Terminado 0 cursode Ciencias Sociais, defrontei-me com a necessidade premente deconseguir insercao pro fissional. Trabalhara desde 0 primeiro anade faculdade como estagiario em instituicao publica, mas, com 0

11mdo curso, 0 contrato caducara. Procurei, sem sucesso, coloca-craoem centros de pesquisa e de ensino superior. Acabei por rece-ber, por interrnedio de Jose Augusto Guilhon Albuquerque e ini-ciativa de Otavio Frias Filho, convite da Folha de S.Paulo. Nuncahavia pensado em ser jornalista, pois pretendia seguir carreiraacadernica. A possibilidade, contudo, de ganho financeiro, asso-ciada ao momenta efervescente pelo qual passava 0 jornal, tornavapreciosa a chance oferecida.

Quando fui para a Folha, comecava a etapa da experiencia emque os sonhos de juventude se veriam confrontados com a asperarealidade. Por sorte, carreguei para dentro dessa fase 0 que medera a faculdade em materia de valores, cultura e estilo de pensa-

241

Page 122: Os Sentidos Do Lulismo

mento. Como disse Antonio Candido, "a universidade nao eape-nas urn grupo de cultura; e tarnbem urn conjunto de estimulospara viver adequadamente fora, dela" 11 Sem isso, nunca poderiater voltado. .

De inicio, a funcao para a qual fora convidado na Folha tinhacaracteristicas parajornalisticas, a serem combinadas com a conti-nuacao dos meus estudos, po is havia comecado a pos-graduacao,Com 0 tempo, no entanto, vi-me atraido pelo dia a dia do jornal, eem 1982 prestei vestibular para jornalismo. Cursando a Escola deComunicacoes eArtes da use, concluida em 1986, acabei por ingres-sar na redacao em funcoes propriamente jornalisticas. Alern do di-ploma, no cotidiano aprendi urn oficio completo: entrevistar, escre-ver, diagramar e editar. Exerci por bem mais de duas decadas 0

jornalismo, com momentos de intenso prazer. Ademais de inesti-mavel experiencia de vida, 0 jornalismo me garantiu, do ponto devista material, meios de sobrevivencia exclusivos ate que conseguichegar ao posto de docente da usr que hoje ocupo. Em que pese adedicacao cobrada pelo jornalismo, estou convencido de ter acerta-do ao abracar essa segunda profissao, porque ela me fez amadurecer.

Como jornalista, foi-me destinada a cobertura politica. Pormeio dela, estabeleci relacao com os politicos profissionais. Leveiinumeros choques, uma vez que a universidade no Brasil, e talveza usr em particular, esta muito distante da politica real.No caso dausr, a distancia vem de longe," diferente, talvez, dos Estados Uni-dos, onde os governos habitualmente recrutam nas universidadese os think tanks fazem pontes entre urn e outro mundo. Nao sei seisso e born ou ruim. S6 posso afirmar que, para 0 jovem cientista

11. Antonio Candido, "Discurso de agradecimento", em F.Aguiar, Antonio Can-dido, pensamento e militancia; p. 99.12. "A usr era uma ilha, nao queria ter contarninacao com a vida", diz FernandoHenrique Cardoso. Ver F.Moura e P.Montero (orgs.), Retrato de grupo, p. 27.

242

••

social que fui, 0 contraste entre 0 ambiente universitario e 0 poli-tico era chocante.

Comecei como rep6rter durante a campanha das Diretas.Tive a oportunidade de acompanhar as manobras de bastidoresque, desde 0 Palacio dos Bandeirantes, resultaram na candidaturaTancredo Neves, apresentada ao Colegio Eleitoral no inicio de1985. Jornalista "foca", tinha a sensacao, ao entrevistar Ianio Qua-dros, Franco Montoro, Ulysses Guimaraes, Golbery do Couto eSilva, Leonel Brizola e Jose Sarney, de que os personagens saltavamda bibliografia para tomar assento diante do gravador. Gostava derecordar as palavras de Weber em A politica como voca~ao:como-Yo-me "diante da atitude de urn homem maduro - seja velho oujovem - que se sente responsavel pelas consequencias dos seusatos"," Quantos deles se sentiriam assim?

A atividade politica profissional, como qualquer ramo de es-pecializacao, tern regras internas. Maquiavel e Weber estavamcertos ao assinalar que 0 exercicio do poder nunca e absolutamen-te transparente. Por definicao, 0 dirigente politico nao e autentico,pois representa algo geral. 0 seu papel e condensar os pontos devista da unidade politica que lidera, desde uma faccao partidaria,urn partido inteiro, uma regiao, ate urn pais. Em qualquer hip6te-se, nao cumprira bem a funcao para a qual foi destinado se decidirsimplesmente dizer 0 que "verdadeiramente" pensa sobre cad aassunto. Creio ate que aquilo que ele "verdadeiramente pensa"pode nao ser importante, a menos que venha a influenciar deci-soes, 0 que por vezes ocorre, mas nao e comum. Dai deriva umaquestao delicada: como satisfazer a exigencia de transparencia queacompanha a democracia com a verificacao empirica de que apolitica real e sempre uma arte de "representacao"!

E necessario separar dois tipos de transparencia: a que diz

1'3.Max Weber, Ciencia epolitica, duas vocafoes, p. 122.

243

Page 123: Os Sentidos Do Lulismo

respeito as informacoes que 0 publico tern 0 direito de conhecer eos politicos nao tern 0 direito de esconder e a que se refere aquelasinformacoes que fazem parte da privacidade dos representantes enao interessam a ninguern a nao ser a eles mesmos. Dai a minharepulsa a exploracao de aspectos da intimidade dos homens publi-cos. Alem de ser desonesta, parece-me irrelevante.

Avaliando em retrospectiva, acredito que a formacao emciencias sociais me ajudou a procurar nos politicos aquilo quehavia de "perspectiva de a~ao'~no sentido de Weber: "A politica eurn esforco tenaz e energico para atravessar grossas vigas de..madeira"," Isto e, em que direcao eles propoem a sociedade cami-nhar? Quais problemas veem pela frente? Poi 0 que busquei fazerneste livro: descobrir urn sentido para as decisoes de Lula, comquem trabalhei como jornalista entre 2002 e 2007. Se tive exito naempreitada, cabera ao leitor julgar, mas 0 intuito foi 0 de encon-trar 0 fio que unia epis6dios aparentemente acidentais.

o fato de a politica brasileira ser excessivamente personalistaobscurece 0 sentido coletivo da acao dos politicos. ~ necessarioprocurar nexos invisiveis por tras do que parecem meras jogadasindividuais de poder. 0 que muitas vezes faz esse exercicio parecerinutil e 0 fato de os grandes politicos brasileiros dialogarem poucoantes de tomar decisoes. Penso que isso acontece porque ha urndeficit de participacao no Brasil. Sergio Buarque de Holanda assi-nalava que "uma das consequencias da escravidao e da hipertrofiada lavoura latifundiaria na estrutura de nossa economia colonial,foi a ausencia, praticamente; de qualquer esforco serio de coope-racao" 15 Mas deve-se observar tambern que a polltica dernocraticano mundo todo esta se "abrasileirando" (0 termo que se usa emciencia politica e "americanizando" mas trata-se, no fundamental,

14. Idem, ibidem, p. 123.15.Sergio Buarque de Holanda, Raizes do Brasil; p. 26.

244

-

da mesma coisa). Tal como outras esferas da vida social, a politicavem ficando menos coletiva, ajustando-se 0 politico ao padrao doempreendedor capitalista, em que 0 calculo individual prevalecesobre 0 interesse publico. Em tais circunstancias, 0 esforco paraencontrar as conexoes sociais por tras das decisoes precisa sermaior e, por vezes, soara vao. Continuo a crer que vale a pen a,embora deva ser feito sem ingenuidade.

Seja como for, por funcionar como representante, mesmo queisso fique implicito, 0 lider politico tern que usar varias mascaras,em camadas diferentes, e ha uma para a conversa com 0 jornalista .No bate-papo informal com 0 profissional da imprensa, surge urnrosto diferente do apresentado na exposicao para 0 publico em ge-ral. Mas engana-se quem acredita que esse e 0 politico em sua "ver-dade intima". Trata-se de outra representacao, adequada para 0

momento do contato com alguern que se destaca do publico emgeral ao cumprir 0 papel de transmitir uma determinada versao dosacontecimentos. Minha experiencia confirma que a politica e guer-ra pesada, luta sem quartel e sem misericordia. Entao, comunicaradequadamente os conteudos a serem transmitidos pelo jornalista eimportante, sob 0 risco de prejuizo grave se isso nao acontecer. Averdade intima do politico s6 surge em familia e com amigos muitoproximos, isso quando vem a tona. Em.muitos casos, nao se expres-sa nunca, e essa e, do meu ponto de vista, uma das perdas mais sofri-das que a atividade politica pro fissional impoe.

o jornalismo acabou por me levar ao olho do furacao, Em2002, convidado a ser porta-voz da campanha presidencial do PT,

mudei de lado do balcao, como se diz na giria dos rep6rteres. Pas-sei de buscador de noticia a fonte de inforrnacao. De estilingue avidraca, 0 que me provocou contradicoes intern as dolorosas. Emcornpensacao, vi por dentro as engrenagens da campanha presi-dencial a que, em parte, tinha assistido no segundo turno de 1989,quando militei no setor de imprensa da campanha de Lula, pleito

245

Page 124: Os Sentidos Do Lulismo

sobre 0 qual acabei organizando urn livre." Mas desta feita seriadiferente, pois estava pr6ximo do comando e 0 peso da responsa-bilidade cairia como chumbo sobre mim.

Por ter a funcao de apresentar diariamente aos jornalistas asinforrnacoes do cornite e responder as indagacoes dos colegas, vivia experiencia de ser crivado pelas mais dificeis perguntas e pudecompletar 0 retrato que tinha comecado a fazer da atividade poli-tica pratica, Para os que desejam servir ao interesse publico - enao servir-se dele -, e trabalho extremamente arduo e poucocompreendido. As crises constantes levam a ter que matar mais deurn leao por dia, e 0 arsenal insuspeito envolvido na disputa pelopoder exige nervos de aco e carapaca de rinoceronte. As compen-sacoes existem se os projetos se realizam, no entanto a taxa defracasso tende a sobrepor-se, deixando, com frequencia, saboramargo na boca.

Quando 0 ex-presidente Lula venceu a eleicao de 2002, deu--me a oportunidade de manter a mesma posicao no governo fede-ral. Tive a chance de ver, entao, desde a Presidencia, como funcio-na 0 Executivo brasileiro. Terminei 0 ciclo governamental comsensacao ambigua. De urn lado, 0 aspecto diplomatico, protocolar,simb6lico, cerimonial, que e 0 c6digo pelo qual sao sinalizadas asaliancas, as hierarquias, as forcas dispostas em cada conjuntura,constitui cansativa danca de salao. De outro, verifiquei que deci-soes fundamentais sao tomadas em meio a mais alta pressao dascircunstancias, fazendo girar para urn lado ou outro as rodas dahist6ria, 0 que da urn sentido a vida. Sem ser urn relato factualdaqueles tempos, que ainda pretendo escrever, 0 livro que 0 leitortern em maos nao deixa de ser uma busca de resgatar aspectos re- .levantes do periodo em que estive no Palacio do Planalto.

Hoje, afastado do contato com os politicos profissionais,

16.Andre Singer (org.), Sem medo de ser feliz.

246

penso que cabe ao intelectual participar da vida publica de modopeculiar. Justamente por nao ser representante, a nao ser de simesmo, ele tern a liberdade de falar 0 que os profissionais naopodem dizer. Deve fazer uso dessa franquia para, com a bagagemdo conhecimento acumulado, intervir na agenda publica, usando,sem medo, 0 senso de perspectiva hist6rica que 0 treino intelec-tual propicia. A sociedade necessita de balizas fundamentadas nomar de eventos encapelados que os jornais, revistas, televisoes e.paginas da internet oferecern dia a dia.

A pr6pria imprensa tornou-se pe~a importante na decisaopolitica,o que justifica a analise academic a do papel dos meios decomunicacao no jogo democratico. Ao longo dos anos, em virtudeda minha experiencia, fui chamado em algumas ocasioes para fa-lar e escreverem torno do assunto. Mas considero limitadas asminhas tentativas de responder aos convites, e nos textos publica-dos identifico, hoje, multiplas falhas. Penso, no entanto, que cons-tituem urn pequeno roteiro de problemas, que vao da substituicaopela imprensa do rol antes desempenhado pelos partidos politicosa constituicao de urn sistema de mldia dotado de independenciasuficiente para fiscalizar 0 poder no Brasil." Contraditoriamente,tal capacidade de fiscalizacao, que e essencial a democracia, des-gasta a dimensao politica e pode estar a service de obstaculizarmudancas sociais progressistas. Lidar com essas contradicoes etarefa para os estudiosos.

Peco licenca ao leitor para fazer aqui urn pequeno desvio econtar urn detalhe alheioao tema deste livro. Talvez porque a faina

••••••••411•••I•••411••••••••••••t•••

17. Idem, "A rnidia in flu indo no sistema politico" Revista Brasileira de Comu-nicafiio, ano 7, n. 51, nov./dez. 1984; idem, "Nota sobre 0 papel da imprensa natransicao brasileira", em C. H. Filgueira e D. Nohlen (orgs.), Prensa y transici6ndemocratica; idem, "Midia e democracia no Brasil': Revista USP, n. 48, dez./jan./fev. 2000-1; Andre Singer, Mario Helie Gomes, Carlos Villanova e Jorge Duarte(~rgs.), No Planalto, com a imprensa.

247

•••

Page 125: Os Sentidos Do Lulismo

tenha sido excessivamente desgastante, mantive urn vinculo como que se poderia chamar de "evasao programada" dos tempos dejuventude. Ao encerrar a graduacao em ciencias sociais, encontra-va-rne interessado pela relacao entre politica e industria cultural.Decidi entao, simultaneamente, ingressar no cursode Letras dausr e propor tema inusitado para mestrado em ciencia politica:uma interpretacao da obra dosBeatles, aceito gracas a generosida-de do professor Jose Alvaro Moises, Nos semestres que cursei Le-tras (cerca de quatro), ampliei meu contato com a literatura, numconvlvio proveitoso que recomendaria.a qualquer estudante. So-bre 0 rock reuni abundante material analitico, e cheguei a publicarartigo a respeito da evolucao politica do genero em Lua Noval"embora a dissertacao sobre 0 quarteto de Liverpool nunca tenhasidoescrita. Muitos anos depois, parte da reflexao acerca dos Bea-ties tornou-se ensaio na revista piaui'? Algumas outras ideias daepoca comparecem em pequeno texto que escrevi sobre RobertoCarlos" para coletanea organizada por Arthur Nestrovski em2002. Enfim, seguindo a orientacao de Chico Buarque, cheirei Arye fumei Vinicius nos recessos da politica nacional.

Voltemos ao principal. Quando decidi entregar meu posto naequipe do governo Lula, ap6s a eleicao presidencial de 2006, tinhatido a fortuna de fazer urn roteiro integral no jornalismo, come-cando como rep6rter, passando a editor e depois secretario deRedacao da Folha, editor de revista na Abril, e finalmente porta--voz e secretario de Imprensa da Presidencia da Republica. Entremortos e feridos, a experiencia se completara.

18. Andre Singer, "Mudou 0 rock ou mudaram os roqueiros?", Lua Nova, voL 2,n. 1, abr. jun. 1985.19. Idem, "Critica e autocrltica em Sergeant Pepper's':piau{, n. 9,junho 2007.20. Idem, "Roberto Carlos", em Arthur Nestrovski (org.), Musica popular brasi-leira hoje.

248

-

TEMPOS DE REFLEXAO

No corneco de 1990, tive a alegria de encontrar concursoaberto no recem-forrnalizado Departamento de Ciencia Politic a(ocr) da usr. Para voltar a alma mater, preparei-rne revisitando abibliografia conhecida desde a graduacao e, ao chegar as provas,havia dado os primeiros passos do que faria nos anos seguintes:recompor a formacao acadernica interrompida. Aprovado no cer-tame, retornei a sala de aula, agora como docente. Durante muitotempo fui professor do primeiro ano. Tive gosto em prepararcursos para alunos que acabavam de chegar ao campo. Com exce-yao de urn ou outro semestre, concentrei-me em do is tipos de as-sunto. Urn nucleo sobre democracia, envolvendo t6picos comocidadania, ideologias conternporaneas e comportamento politico.Outro sobre autores classicos como Maquiavel, Hobbes, Locke,Montesquieu, Rousseau, Madison e Tocqueville.

De inicio tenso e desajeitado, creio ter ido, aos poucos, en-contrando a maneira de falar aos alunos. Apreciava dar aulas parao primeiro ana porque sabia que, se nao me comunicasse bern, 0fracasso seria inevitavel, uma vez que os estudantes nessa fase naopossuem os recursos que vao adquirir ao longo dos semestres paralidar com aulas complicadas. Nao me considero born professor,mas sim esforcado, e sempre fico com a impressao de que aprendimais com os alunos do que eles comigo.

Reencontrei entao, como colegas, alguns dos meus professo-res de graduacao que se dedicavam a teoria politica. Havia bastan-te atividade no setor, com intercambio de experiencias e discus-soes de interesse. Lernbro-me, em particular, de uma serie deconferencias pronunciadas no DCP no comeco dos anos 1990 porMichelangelo Bovero, sucessor de Norberto Bobbio em Turim. Eleresumiu para n6s a obra de sistematizacao da filosofia politica queBobbio, uma especie de decano do pensamento democratico, con-

249

Page 126: Os Sentidos Do Lulismo

cluia por aquele tempo. A questao do liberalismo, com a qual tinhame envolvido nos an os 1970, retornava naqueles debates do inicioda decada de 1990. Por isso, ao mesmo tempo que entrava na pes-quisa empirica, me aproximei do grupoque, dentro do departa-mento, desenvolvia reflexao te6rica.

Se 0 leitor ainda tiver paciencia, faco urn ultimo desvio dotema central. Inspirado pelos debates e aulas de teoria politica que'ministrei por cerca de dez anos, publiquei textos que retomam edesenvolvem aspectos apontados em "Liberdade e igualdade", de1981. 0 primeiro, de 2000, trata da relacao entre Maquiavel e aparticipacao politica. Nele, pretendi apontar que 0 raciocinio deMaquiavel," muitas vezes interpretado pelos liberais apenascomo urn realista, envolve forte acento participativo, como meiode garantir 0 desenvolvimento de virtudes civicas republicanas. 0segundo, tambem de 2000, tenta estabelecer pontes entre duas li-nhagens de pensamento consideradas afastadas e mesmo opostas:a de Rousseau e a de Madison, Hamilton e Jay, os autores de 0 fe-deralista." Outra vez, a participacao ocupa a cena, agora procu-rando ve-la no interior da tradicao norte-americana, em geral tidacomo temerosa do "perigo popular". A tese predominante e a deque nas raizes da teoria dernocratica ha 0 pressuposto da partici-pacao, de tal forma que 0 deficit participativo que se observa nasdemocracias contemporaneas atinge 0 amago do regime. 0 tercei-ro, de 2002, mobiliza Montesquieu, formulador do principio deque nenhum poder. se limit a a si mesmo, para discutir a relacaoentre a esquerda e a democracia." Minha crenca e que esse princi-

21. Idem, "Maquiavelo y el Iiberalismo: la necesidad de la republica': em Atilio A.Boron (org.), La filosofia politica moderna. De Hobbes a Marx.22. Idem, "Rousseau e 0 federalista: pontos de aproximacao', Lua Nova, n. 51,2000.23. Idem, "Para recordar algo de la relacion entre izquierda y democracia', emAtilio A. Boron (org.), Filosofta politica contemporanea.

250

pio obriga 0 pensamento socialista a aceitar que a pr6pria maioriaprecisa ser limitada e 0 pensamento liberal a assumir que a luta declasses e util a dem~c.racia. A medida que a ideologia neoliberalganha hegemonia quase absoluta, com a politica deixando de ex-pressar a luta de classes, a democracia sofre urn esvaziamento.Uma vez que nao enxergo nenhum caminho fora da democracia,resta mostrar que ela necessita ser revigorada por meio de movi-mentos moleculares de reapropriacao, por parte da sociedade edas classes, se quisermos voltar a ter esperanca no futuro. Vistosem conjunto, os artigos constituem buscas, na leitura de pensado-res classicos, de visoes que possam iluminar os problemas do pre-sente. 0 que a leitura de Maquiavel, de Montesquieu, de Rousseaue de Madison pode nos dizer sobre as dificuldades da democraciaconternporaneai Essas excursoes por paginas inspiradoras, com 0

olhar voltado para colher nelas ensinamentos por vezes menos6bvios, sao urn modo de conversar com os antigos. Como escreveuMaquiavel ao amigo Vettori: "Chegando a noite [... J penetro naconvivencia dos grandes homens do passado"," Como julgo que e,tambem,o melhor jeito de ensina-los, gosto de pensar que os arti-gos sao como notas de leitura para ajudar 0 professor. Mesmo emsua dimensao limitada, eles apontam para as inumeras possibilida-des de leitura dos classicos, que justamente por isso sao classicos. Edivertido pensar urn Maquiavel participacionista, urn Montesquieuamigo da luta de classes e urn Madison simpatico a democracia de-liberativa (desde que balanceada pela represen tacao ).

Mas agora cabe retomar 0 fio principal e voltar ao conviviocom os homens do presente. De 2007 em diante, ao retornar deBrasilia, concentrei-me em ensinar comportamento eleitoral. 0assunto, que fora escolhido para 0mestrado, me manteve na orbi-ta da politica brasileira contemporanea, A eleicao de 1989, com

24. Nicolau Maquiavel, 0 principel Escritos politicos, p. 119.

251

.-

Page 127: Os Sentidos Do Lulismo

,urn candidato de esquerda chegando perto da vit6ria no segundoturno e sendo derrotado pelo adversario conservador com 0 votodos mais pobres, funcionou como estimulo para entrar no campodas eleicoes. 0 carater fundante daquele pleito, retratado em livrojornalistico que organizei em 1990, pode ser observado na entre-vista com Lula, a qual antecipava movimentos que viriam a aeon-tecer somente em 2002.25

Acima de quaisquer diferencas politicas, e mister reconhecerque devo a dois intelectuais particularmente inteligentes, rigoro-sos e criativos - Bolivar Lamounier e lose Augusto Guilhon Al-buquerque -, com os quais trabalhei sobre 0 comportamentoeleitoral, ter aprendido a pesquisar. Comecei por integrar, em1990, 0 centro entao coordenado por Lamounier. Originalmenteno Cebrap e depois no Idesp, Bolivar tinha liderado uma serie depesquisas eleitorais entre 1974 e 1989, e era urn dos mais destaca-dos pesquisadores do setor no Brasil. Entre 1990 e 1992, retomeicom ele 0 estudo das escolas de analise do comportamento eleito-ral, cujos rudimentos haviam aparecido no curso que Maria doCarmo Campello de Souza ministrara na minha primeira p6s--graduacao (inconclusa). 0 instrumental te6rico preferido porBolivar ia da escola sociol6gica a escola psicol6gica, com umaqueda pela segunda. Os conceitos da escolha racional, que entaocornecavam a entrar com forca no Brasil, nao 0 seduziam.

Vale assinalar que, no inicio da decada de 1990, a atmosferaintelectual havia mudado na usr. A influencia marxista que euencontrara efervescente quando cheguei a graduacao nos anos1970 fora substituida por correntes oriundas de universidadesnorte-americanas. A escolha racional, ponto de vista com 0 qualeu nunca tinha entrado em contato, apesar de 0 livro inauguralde Anthony Downs ser de 1957, comecava a se tornar linguagem

25. Andre Singer (org.), Sem medo de serfeliz.

252

-

corrente. Confesso que nao me adaptei a nova grarnatica. Estu-dei tardiamente a escola downsiana, de modo a compreender 0

que diziam cole gas, mas 0 estilo de trabalho, os pressupostosmetodo16gicos, as hip6teses principais, a forrnalizacao materna-tica nao me atrairam. Para consulta eventual, guardo urn textode critica aos pontos de vista da escolha racional que escreviusando argumentos de Alessandro Pizzorno, com 0 que encerrei,depois de alguns anos, minha viagem por esse quadrante daciencia social.

Retive e utilizo ate hoje, entretanto, algumas nocoes a respei-to da importancia que a economia exerce nas eleicoes, Nao e ne-cessario, a meu ver, gostar da teoria dos jogos para aceitar que in-flacao e emprego sao elementos decisivos na definicao do voto. Anocao de que os individuos agem no "mercado" politico como 0

fazem no economico talvez tenha tornado os pesquisadores daescolha racional mais sensiveis ao "bolso" do eleitor, de onde deri-va certa literatura util. Acho igualmente aproveitavel 0 uso criativofeito por Adam Przeworski da nocao de escolha estrategica paraexplicar a evolucao da social-democracia europeia assim como arelacao entre incerteza e democracia.

o contato com a equipe do Idesp - Maria Tereza Sadek, quehavia sido minha iniciadora em Maquiavel na graduacao, MariaD'Alva Kinzo, Elizabeth Balbachevsky, Judith Muszinsky, RogerioArantes -, no comeco dos anos 1980, foi importante para avan-car na compreensao do comportamento eleitoral brasileiro e paraentender como associar dados empiricos a hip6teses de pesquisa,numa quimica dificil de realizar e mais dificil ainda de explicar.Como result ado do estagio no instituto, publiquei urn artigo inti-tulado "Collor na periferia: a volta por cima do populismo!'." Ali

26. Idem. "Collor na periferia: a volta por cima do populismo", em B. Lamounier(org.), De Geisel a Collor: 0 balanfo da transiplo.

253

Page 128: Os Sentidos Do Lulismo

se iniciava a minha pesquisa sobre 0 Brasil, retomada na volta deBrasilia e que resultou nas paginas deste livro.

Visto desde hoje, considero indispensavel 0 contato com aanalise de dados para 0 cientista social. Buscar as evidencias ernpiri-cas ajuda a reformular as hip6teses construidas ate que elas ten hamconsistencia suficiente para estar a altura do objeto. No entanto, a"comprovacao" nao pode se tornar urn fetiche. Muita coisa, talvezquase tudo, em ciencias sociais e imposslvel de comprovar, comocerta vez me disse Bolivar. 0 que existe e reuniao de evidencias quefazem determinada direcao plausivel. Com os do is pratos, 0 dosdados e 0 da boa articulacao te6rica, equilibra-se a balanca,

Ao deixar 0 Idesp, em 1992, tinha urn tema, mas me faltavaurn objeto de pesquisa. Foi gracas a orientacao de Jose AugustoGuilhon Albuquerque, 0 qual me acompanhou como orientadorate 1998, que consegui en tender a dificuldade, e a necessidade, derecortar 0 campo ate encontrar urn problema especifico, GuilhonAlbuquerque, com formacao em filosofia, operava 0 raciociniocom logica impecavel, 0 que ajudou a encontrar urn caminho nosdados que ele e Jose Alvaro Moises gentilmente disponibilizararn(Pesquisa usr/Datafolha/Cedec sobre Cultura Politica realizadaentre 1989 e 1993). Dessa forma, 0 conhecimento e 0 rigor concei-tual de Guilhon Albuquerque foram fundamentais em meu mes-trado" (1993) e doutorado" (1998), com os quais creio ter metornado pesquisador. Uma coisa e ter perspectiva te6rica, 0 queenvolve alguns requisitos ja mencionados; outra e saber pesquisar;e a terceira, juntar as duas pontas.

Terminei por fixar como problema do estudo que desenvolvi

27. Idem, "Ideologia e voto no segundo turno da eleicao presidencial de 1989",Departamento de Ciencia Politica da FFLCH/usp,1993.28. Idem, "Identificacao ideol6gica e voto no Brasil. 0 caso das eleicces presi-denciais de 1989 e 1994", Departamento de Ciencia Politic a da FFLCH/usp,1998.

254

de 1992 a 1998 a influencia da identificacao ideo16gica sobre 0

voto nas eleicoes presidenciais de 1989 e 1994. $urpreso pelos da-dos a respeito de 1989, que mostravam existir coerencia entre aautolocalizacao ideologica do eleitor no espectro esquerda/direitae 0 candidato escolhido, procurei indicar, ja no mestrado, que aideologia havia sido uma variavel equivocadamente deixada delado no Brasil pelos estudos dos anos 1970. Estava claro que oseleitores que se posicionavam a esquerda votavam em Lula, en-quanta os que se posicionavam a direita escolhiam Collor. A se-gunda novidade foi que os eleitores pobres, alem de optarem porCollor, colocavam-se a direita no espectro. Urn terceiro aspectosurgiria: havia uma tendencia autoritaria associada ao posiciona-mento a direita, a baixa rendae ao voto em Collor. Ou seja, 0 votoem Collor nao era mero fruto da propaganda, mas tinha conota-<roesideol6gicas inesperadas. Hoje percebo que 0 confronto entreesquerda e direita vigorou num periodo em que 0 PT, enquantopartido nitidamente de esquerda; polarizava 0 sistema politiconacional,o que perdurou ate 2002, com os pobres votando contraOPT, e setores das camadas medias aproximando-se dele. EmboraOPT continue a polarizar a disputa, 0 conteudo ideol6gico mudou.

Ao testar a hip6tese da identificacao ideol6gica para 0 casodo pleito de 1994, em que Fernando Henrique Cardoso foi leva-do ao Palacio do Planalto, fui obrigado a incorporar a literaturaa respeito da influencia da economia sobre 0 voto. 0 evidentepeso do Plano Real na escolha de FHC introduzia uma variavelausente no segundo turno de 1989, uma vez que os dois candida-tos eram de oposicao e estavam, por isso, em igualdade de condi-

. <roescom relacao a economia. Em 1994, 0 postulante governistatinha a seu favor 0 controle da inflacao, e Lula, 0 onus da criticaao plano exitoso. Porern, ao investigar mais os resultados de pes-quisa, vislumbrei que a identificacao ideol6gica continuavaoperando. Perante a estabilizacao monetaria, depois de quase

•411•••••41••I•••••411•••411••t••~•t••••

"

255

-

Page 129: Os Sentidos Do Lulismo

quinze anos de inflacao galopante, a influencia da ideologia des-lizou para 0 pano de fundo. Embora predominasse a associacaodo voto com a avaliacao do Real, notava-se que avaliacao doplano estava influenciada pela posicao do eleitor no espectroideol6gico. Quem se posicionava a direita tendia aver 0 Realcom melhores olhos e a dar mais importancia ao controle da in-flacao do que os que se colocavam a esquerda.

Passados catorze anos da defesa do doutorado, e da polerni-ca que se seguiu a publicacao do livro, acredito que as principaisconclusoes estavam corretas." Tanto a hipotese de que uma par-te maior do que se supunha do eleitorado possui uma intuicaoideol6gica, isto e, sabe localizar os politicos, os partidos e a sipr6prio no espectro, quanta a hip6tese de que 0 voto era relati-vamente coerente com esse posicionamento se sustentaram aolongo do tempo. Contudo, 0 mais interessante e mirar em pers-pectiva ever que 0 periodo 1980-2002 foi marcado por umaruptura na politica brasileira: 0 surgimento do Partido dos Tra-balhadores. 0 PT constituiu uma novidade por colocar a luta declasses no centro da luta institucional. 0 antecessor do PT, 0 PCB,

nao 0 fizera em parte porque ficou na ilegalidade por seis deca-das, com excecao de do is anos, entre 1945 e 1947. Foi impedido,assim, de concorrer a eleicoes e apresentar 0 ponto de vista dostrabalhadores na disputa das urnas. Mas deve-se considerartambern que 0 PCB, desde 1945, compos-se com forcas tanto docentro (Vargas), da direita (Adhemar de Barros), quanta dacentro-esquerda (Goulart), numa oscilacao que prejudicava anitidez ideol6gica. 0 PT, ao contrario, recusou qualquer compo-sicao: niio apoiou Tancredo Neves no Colegio Eleitoral, niio vo-tou a favor da Constituicao de 1988, nao aceitou 0 apoio do PMDB

no segundo turno de 1989.

29. Idem, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro.

256

~

Nao se deve subestimar 0 efeito do PT sobre a politica brasileiranos anos 1980, urna vez que estava sustentado nao apenas pelas~n<Hisesdos setores intelectuais que fizeram a critica do PCB e dopopulismo, mas por urn poderoso movimento social, que produziuurn numero inedito de greves no Brasil, de norte a sul e de leste aoeste. Quando principios radicais encontram suporte social, comoo que se deu nos anos 1980, acontecem rupturas. Os eventos funes-tos de Volta Redonda, com invasao de soldados do Exercito e dapolicia em 1988, resultando na morte de tres operarios na usinaocupada e, posteriormente, na vit6ria de Luiza Erundina em SaoPaulo," davam 0 tom do que viria a ser 0 annus mirabilis de 1989.Quando, para incredulidade geral, Lula passou ao segundo turno equase ganhou a eleicao, logo ap6s a queda do Muro de Berlim, aburguesia brasileira desesperou-se a ponto de apostar todas as fi-chas numa especie de aventureiro que ela mesma seria obrigada aretirar da cadeira presidencial tres anos depois, por meio do impe-dimento. Valia tudo para evitar que 0 movimento social radicaliza-do, cujo nucleo era 0 ABC paulista, chegasse ao poder.

Nao surpreende que, nesse clima, se tivessem encontrado naspesquisas evidencias de polarizacao ideologica, Quando Collor foia televisao para mostrar que, caso Lula vencesse, a bandeira bras i-leira seria substituida pela foice e 0 martelo, era sinal de que 0

eleitorado de massa estava percebendo, direta ou indiretamente,que havia uma disputa entre esquerda e direita. Para cerca de 25%dos eleitores, os que niio sabiam se colocar no espectro, a variavelideol6gica nada significava, e poder-se-ia advertir que, num pleitodecidido por poucos pontos percentuais, 25% era mais que sufi-ciente para resolver a eleicao sem nenhuma influencia ideologica,o argumento e correto, embora boa parte desses eleitores (em

30.Ver analise a respeito em Lucio Kovarick eAndre Singer, "Aexperiencia do Par-tido dos Trabalhadores na prefeitura de Sao Paulo': Novas Estudos; n. 35, mar. 1993.

257

Page 130: Os Sentidos Do Lulismo

torno de 20% do total do eleitorado) se aliene do processo, naforma de abstencao, votos nulos e brancos. Com efeito, as pesqui-sas norte-americanas da escola psicol6gica do voto tinham mos-trado que na base da piramide eleitoral havia urn estrato dos vo-tantes completamente distanciados da politica, dispostos a naosufragar ou faze-lo de modo tao arbitrario que a sua opcao setornava imprevisivel. A novidade no Brasil era que, para urn seg-mento significativo dos eleitores, a intuicao ideol6gica funcionavae ajudava a definir 0 voto. Pesquisas realizadas sob a conducao doDatafolha e de Gustavo Venturi ao longo das decadas de 1990 e2000 confirmaram a estabilidade da Iocalizacao dos eleitores noespectro esquerda/direita, como evidenciam os dados expostos nocapitulo 1deste livro.

No Ultimo capitulo de Esquerda e direita no eleitorado brasi-leiro anotei que havia uma questao merecedora de pesquisas pos-teriores. Referia-me a associacao entre quatro fatores: baixa renda,hostilidade aos movimentos reivindicativos, posicionamento adire ita e apoio a intervencao do Estado em favor da igualdade.Confesso que nao esperava ver esses elementos funcionarem a fa-vor de Lula poucos anos depois da publicacao do livro. A meu ver,os dados indicavam que 0 PT, se quisesse veneer a eleicao presiden-cial, teria que fazer urn trabalho de convencimento de eleitores decentro, puxando-os para a esquerda. Mas, quando as voltas dahist6ria apresentaram quadro inesperado, com os pobres reele-gendo Lula em 2006, sem deixarem de estar a direita, dei-me contade que a "verita effettuale" era outra.

o estalo sobre os sentidos do lulismo aflorou no regresso aSao Paulo. Depois de viver com paixao 0 primeiro mandato deLula na Presidencia da Republica, retornei a uss ansioso por en-tender 0 que havia acontecido. Tinha a intuicao de haver presen-ciado transformacoes importantes sem que a voragem da ativida-de governamental me permitisse refletir sobre elas. Foi uma

258

releitura de 0 18 Brumario que me levou a pensar no lulismocomo expressao de mudanca da base de classe. Mais tarde, os ele-mentos ernpiricos confirmaram a ideia, que veio de uma "conver-sa" com Marx, na linhagem das "visitas" aos grandes homens dopassado que gostava de fazer Maquiavel ao entardecer.

No doutorado, evitei entrar na discussao das classes. Em par-te porque 0 campo dos estudos eleitorais prefere as teorias demedio alcance e, em parte, porque a enfase do trabalho era empi-rica: tratava-se de uma compreensao, colada as tabelas, das elei-coes de 1989 e 1994. Continuo a achar util 0 conhecimento acu-mulado sobre comportamento eleitoral, mas desta feita quisdeseer alguns degraus e ir aonde se processam as relacoes de classe,de modo a verificar se elas ajudavam a explicar a quadra lulista dapolitic a brasileira. Retorno, assim, 0 tipo de reflexao aprendido nomeu curso de graduacao nos anos 1970.

E por essa razao que este livro dialoga com a geracao dosmeus professores, especialmente nas figuras de do is Franciscos.De urn lado, Francisco (Chico) de Oliveira e, de outro, FranciscoWeffort, de quem copiei parte do titulo do capitulo 1. Em 1965,o jovem Weffort publicara "Raizes sociais do populismo em SaoPaulo", na Revista Civilizacao Brasileira. Foi buscando maneirasde entender 0 lulismo que revisitei esse artigo, que considero,junto com 0 seu "Politica de massas"," particularmente interes-sante. Weffort procurava, para apreendet 0 populismo, seguir 0

metodo proposto por Marx: partir do concreto, bus car as deter-minacoes mais profundas (raizes) nas relacoes de classe e, entao,reconstruir 0 real, explicando as suas rmiltiplas deterrninacoes.Foi 0 que, dentro dos limites de minhas possibilidades, tentei nadecifracao do lulismo.

••••••••••I••••••••••••••••••••••31. Trata-se do primeiro capitulo de Francisco Weffort, 0 populismo na polfticabrasileira.

259

••

Page 131: Os Sentidos Do Lulismo

••••••••••••••••••••••••••••••••t

Penso, com Paul Singer, que "muita coisaimportante naodecorre da luta de classes';" Mas algumas decorrem. Depende daanalise concreta da situacao concreta. Espero que a tentativa deolhar para olulismo sob 0 Angulo de classe tenha aberto urn cami-nho de interpretacao, 0 deslocamento do subproletariado, consti-tuindo-se pela primeira vez em base social para Lula e 0 PT (e aconcomitante adesao da classe media ao PSDB), deveria mexer como arranjo politico do pais, pois se tratava de uma fracao de classenumerosa 0 suficiente para chacoalhar toda a superestrutura, comreflexos, por sua vez, nas decisoes econ6micas. Com a verificacaodos dados - nao s6 os eleitorais, mas tambem os de politica eco-nornica e social-, as pecas comecararn a se encaixar.

Parece-me, por isso, que vale a pena recuperar 0 estilo de in-terpretacao do Brasil gerado na usp no fim dos anos 1950 e iniciodos 1960. Refiro-me a producao do grupo de est~dos que, nuclea-do na Faculdade de Filosofia, decidiu ler 0 capital, sobre 0 qualRoberto Schwarz escreveu 0 ensaio aqui citado. Nao se trata dearqueologia intelectual, mas de verificar ate que ponto "a enfaseno interesse material e nas divisoes da sociedade'?' esclareceramproblemas brasileiros postos naqueles anos e em que medida po-dem contribuir para resolver charadas atuais.

A visao que Weffort constr6i a respeito do populismo e, nes-se sentido, exemplar, pois, partindo de 0 18Brumdrio e de Histo-ria e consciencia de classe (Georg Lukacs), reconstr6i multiplasdeterrninacoes de urn fenomeno complexo. Como toda producaointelectual, esta sujeita a contestacao, correcao e desmentido porevidencias desconhecidas. 0 progresso do conhecimento, em

32. Paul Singer, "0 manifesto contestado", em J.Almeida eV.Cancelli (orgs.), 150anos de Manifesto Comunista, p. 104.33. Roberto Schwarz, "Urn serninario de Marx", em R. Schwarz, Sequencias bra-sileiras, p. 86.

260

••

ciencias sociais, se faz dessas idas e vindas. Mas, nao obstante fa-lhas que possa ter, aquele ponto de partida da relevancia a "vidado espirito", como diria Schwarz. Dai ser 0Weffort dos anos 1960e 1970 uma especie de debatedor oculto deste livro. 0 debatedorexplicito e Chico de Oliveira, que, a partir dos mesmos principioste6ricos, fez a critica do governo Lula, dando-lhe urn seritido re-gressivo. A minha aspiracao foi a de apresentar uma interpretacaoalternativa a de Chico, situando-me no mesmo campo de pensa-mento que 0 dele. Sem 0 brilho de sua prosa cortante, espero queos leitores tenham encontrado aqui uma reflexao que justifique,minimamente, as doces esperancas da juventude e as duras expe-riencias do amadurecimento.

261

Page 132: Os Sentidos Do Lulismo

263

I•I••••4••••t••4141•t•4•41t41I41I4141I•~

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. La sociedad. Lecciones de sociologia.Buenos Aires: Proteo, 1969.

AGUIAR, Flavio (org.). Antonio Candido, pensamento e militancia: Sao Paulo: Hu-manitas/Pundacao PerseuAbramo, 1999.

ALMEIDA, Jorge. Como vota 0 brasileiro. Sao Paulo: Casa Amarela, 1996.___ & CANCELLI, Vit6ria (org.). 150 anos do Manifesto Comunista. Sao Paulo:

Xama,1998.___ .Marketing politico, hegemonia e contra-hegemonia. Sao Paulo: Fundacao

Perseu Abramo, 2002.AMARAL, Oswaldo E. do. A estrela niio e mais vermelha. As mudancas no programa

petista nos anos 90. Sao Paulo: Garconi, 2003.ANDERSON, Perry. "Jottings on the conjuncture': New Left Review, n. 48, nov.!dez.

2007.___ & CAMILLER, Patrick (orgs.). Um mapa da esquerda na Europa Ocidental.

Rio de Janeiro: Contraponto, 1994.'ANGELO, Vitor Amorim de & VILLA, Marco Antonio (orgs.). 0 Partido dos Traba-

Ihadores e a politica brasileira (1980-2006), uma historic revisitada. SaoCarlos: EdUFSCar, 2009.

ANTUNES, Ricardo & BRAGA, Ruy (orgs.). Irfoproletarios, degradaiiio real do traba-Iho virtual. Sao Paulo: Boitempo, 2009.

ARAOIO, Jose Prata. Um retrato do Brasil. Balanic do governo Lula. Sao Paulo: Fun-dacao Perseu Abramo, 2006.

'.

Page 133: Os Sentidos Do Lulismo

ARON, Raymond. Main currents in sociological thought (vol.I). Nova York: Dou-bleday, 1968.

ASCHCRAFT, Richard. "A analise do liberalismo em Weber e Marx". In COHN, G.(org.). Sociologia: para ler os classicos. Rio de Janeiro: Livros Tecnicos eCienttficos, 1977.

BARBOSA, Nelson. "Uma nova polltica macroecon6mica e uma nova politica so-cial". In PIETA, E. (org.). A nova poUtica econ6mica, a sustentabilidade am-bien tal. Sao Paulo: Pundacao Perseu Abramo, 2010.

___ & SOUZA, Jose Antonio Pereira' de. "A inflexao.do governo Lula: politicaeconomics, crescimento e distribuicao de renda". In SADER, E.& GARCIA, M.A. (orgs.). Brasil entre 0 passado e 0 futuro. Sao Paulo: Pundacao PerseuAbramo/Boitempo, 2010.

BARROS, Ricardo Paes de; FOGUEL, Miguel Nathan & ULYSSEA, Gabriel. Desigualdadede renda no Brasil: uma analise da queda recente (vol. 1). Brasilia: Ipea, 2007.

BERG, John C. "The debate over realigning elections: where do we stand now?".Paper apresentado na reuniao anual da North Eastern Political ScienceAssociation, 2003. Consultado em <www.allacademic.com>. 18 ago. 2010.

BETTO, Frei. Calendario do poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.BOBBIO, Norberto. 0 tempo da memoria. De Senectute e outros ensaios autobiogra-

ficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.BORON, Atilio A. (org.). La filosofta poUtica moderna. De Hobbes a Marx. Buenos

Aires: Clacso, 2000.___ . Filosofta poUtica contemporanea. Controversies sobre civilizaci6n, imperio

y ciudadanfa. Buenos Aires: Clacso, 2002.BRANDAO, Gildo Marcal. A esquerda positiva. As duas almas do Partido Comunista,

192011964. Sao Paulo: Hucitec, 1997.BRESSER-PERElRA, Luiz Carlos. Globalizacao e competicao: por que alguns paises

emergentes ttm sucesso e outros nao. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.CANDIDO, Antonio. Varios escritos. Sao Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro

sobre Azul, 2004.CARDOSO, Fernando Henrique. PoUtica e desenvolvimento em sociedades dependen-

tes. Ideologias do empresariado industrial argentino e brasileiro. Rio de Ja-neiro: Zahar, 1978.

CARRElRAO, Yan de Souza. "Identificacao ideol6gica, partidos e voto na eleicaopresidencial de 2006~ Opiniao Publica, vol. 13,n. 2, novo2007.

___ & KINZO, Maria D'Alva. "Partidos politicos, preferencia partidaria e deci-sao eleitoral (l989/2002)~ Dados; vol. 47, n. 1,2004.

CASTEL, Robert. El ascenso de las incertidumbres. Trabajo, protecciones, estatuto delindividuo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econ6mica, 2010.

COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci, um estudo sobre seu pensamento politico. Riode Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2007.

EIJK, Cees van der & FRANKLIN, Mark N. Elections and voters. Nova York: PalgraveMacmillan, 2009.

ELEY, Geoff. Un mundo que ganar; historia de la izquierda en Europa, 1850-2000.Barcelona: Critica, 2003.

EVANS, Geoffrey (ed.). The end of classpolitics? Class voting in comparative context.Oxford: Oxford University Press, 1999.

FARIA, Glauco. 0 governo Lula e 0 novo papel do Estado brasileiro. Sao Paulo: Fun-dacao Perseu Abramo, 2010.

FERNANDES, Florestan. A condifaO de soci6logo. Sao Paulo: Hucitec, 1977.___ . A revolufao burguesa no Brasil. Ensaio de interpretaciio sociol6gica. Sao

Paulo: Globo, 2006.FILGUEIRA, Carlos H. & NOH LEN, Dieter (orgs.). Prensa y transici6n democratica.

Experiencias recientes, en Europa l America Latina. Frankfurt am Main/Madri: Vervuert/lberoamericana, 1994.

FURTADO, Celso. 0 longo amanhecer: reilexse« sobre a [ormacao do Brasil. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1999.

GRAMSCI, Antonio. "Alguns temas da questao meridional". Temas de Ciencias Hu-manas, Sao Paulo, Grijalbo, n.l, 1977.

GUIMARAES, Juarez. A esperanca equilibrism. 0governo Lula em tempos de transifao.Sao Paulo: Fundacao Perseu Abramo, 2004.

___ . A esperanca crftica. Belo Horizonte: Scriptum, 2007.HADDAD, Fernando. Trabalho e linguagem. Para a renovafao do socialismo. Rio de

Janeiro: Azougue, 2004. •HOLANDA, Sergio Buarque de. Raizes do Brasil. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1971.HOLZHACKER, Denilde Oliveira & BALBACHEVSKY, Elizabeth. "Classe, ideologia e po-

litica: uma interpretacao dos resultados das eleicoes de 2002 e 2006". Opi-niao Publica, vol. 13, n. 2, novo2007.

HUNTER, Wendy. "The Partido dos Trabalhadores: still a party of the left?".In KING-

STONE, P. R. & POWER, T. J. (orgs.). Democratic Brazil revisited. Pittsburgh:University of Pittsburgh Press, 2008.

___ & POWER, Timothy. "Rewarding Lula: Executive power, social policy, andthe Brazilian elections of 2006~ Latin American Politics and Society, vol. 49,n.l,2007. .

KECK, Margaret E. PT - A 16gica da diferenfa. 0 Partido dos Trabalhadores naconstrufao da democracia brasileira. Sao Paulo: Atica, 1991.

KEY, Ir.,V.O. "A theory of critical elections" The Journal of Politics, vol. 17,n. 1, fev.1955.

264 265

-

Page 134: Os Sentidos Do Lulismo

___ . The responsible electorate. Nova York:Vintage, 1966.KINGSTONE, Peter R. & POWER, Timothy J. (eds.). Democratic Brazil revisited. Pitts-

burgh: University of Pittsburgh Press, 2008.LAMOUNIER, Bolivar (org.). De Geisel a Collor, 0 balance da transifiio. sao Paulo:

Surnare, 1990.

___ & FIGUEIREDO, Rubens (orgs.). A era FHC: um balance. Sao Paulo: Cultura,2002.

LAVAREDA, Antonio. A democracia nas urnas. 0 processo partidario eleitoral brasilei-ro. Rio de Janeiro: Rio Pundo, 1991.

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: 0 municipio e 0 regime representa-tivo no Brasil. Sao Paulo: Alfa-Omega, 1978.

UCIO, Elaine Cristina; RENNO, Lucio R. & CASTRO, Henrique Carlos de O. de. "BolsaFamilia e voto na eleicao presidencial de 2006: em busca do e10 perdido".Opiniao Publica, vol. 15, n. l,jun. 2009.

UMONGI, Fernando & CORTEZ, Rafael. "As eleicoes de 2010 e oquadro partidario"Novos Estudos, n. 88, dez. 2010.

LOUREIRO, Isabel; LEITE, Jose Correa & CEVASCO, Maria Elisa (orgs). 0 espirito dePorto Alegre. Sao Paulo: Paz e Terra, 2002.

LUKACS, Georg. Historia e consciencia de tlasse - Estudos sobre a dialetica marxis-ta. Porto: Escorpiao, 1974.

MACHADO, Ralph. Lula a.c.-d.c. Politica economica antes e depois da" Carta ao PovoBrasileiro". Sao Paulo: Annablume, 2007.

MAINWARING, Scott; MENEGUELLO, Rachel Be POWER, Timothy. Partidos conservadoresno Brasil. Sao Paulo: Paz e Terra, 2·100.

MAQUIAVEL, Nicolau. 0 principe! Escritos politicos. Sao Paulo: Abril, 1973.MARQUES, Rosa Maria & FERREIRA, Mariana Ribeiro Jansen (orgs.). 0 Brasit sob a

nova ordem - A economia brasileira contemporanea. Sao Paulo: Saraiva,2010.

MARTINS, Jose de Souza. A politica do Brasil, lumpen e mistico. Sao Paulo: Contexte,2011.

MARX, Karl. El capital. Critica de la economia politica. Mexico: Siglo XXI, 1975.___ "018 Brurnario de Luis Bonaparte". In MARX, Karl. A revolucao antes da

revoludio. Sao Paulo: Expressao Popular, 2008.___ & ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Rio de Janeiro: Horizonte,

1945.__ . Obras escolhidas (vol. O. Rio de Janeiro: Vitoria, 1961.MAUtS, Flamarion & ABRAMO, Zilah (orgs.). Pe/a democracia, contra 0 arbitrio. A

oposicao democratica, do golpe de 1964 a campanha das Diretas [a. Sao Pau-lo: Fundacao Perseu Abramo, 2006.

266

MELO, Carlos Ranulfo & sAU, Manuel Alcantara (orgs.). A democracia brasileira:balance e perspectivas para 0 seculo 21. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

MENDES, Antonio Manuel Teixeira & VENTURI, Gustavo. "Eleicao presidencial: 0Plano Real na sucessao de Itamar Pranco" Opiniilo Publica, vol. 2, n. 2, dez.1994.

MENEGUELLO, Rachel. PT, a formafilo de um partido, 1979-1982. Rio de Janeiro: Paz

e Terra, 1989.MERCADANTE, Aloizio. Brasil, primeiro tempo - Analise comparative do governo

Lula. Sao Paulo: Planeta, 2006.___ . Brasil, a consttuiiio retomada. Sao Paulo: Terceiro Nome, 2010.MOURA, Flavio & MONTERO, Paula (orgs.). Retrato de grupo. Sao Paulo: Cosac Naify,

2009.NATANSON, Jose. La nueva izquierda. Triunfos y derrotas de los gobiernos de Argenti-

na, Brasil, Bolivia, Venezuela, Chile, Uruguay y Ecuador. Buenos Aires: Su-

damericana,2008.NERI, Marcelo. "Miseria, desigualdade e pollticas de renda: 0 Real do Lula", 2007.

Consultado em <www3.fgv.br>,30 ago. 2009.___ . A nova c/asse media: 0 lado brilhante dos pobres. Rio de Janeiro: CPS/FGV,

2010. Consultado em <cps.fgv.br>, 26 jun. 2012.NESTROVSKI, Arthur (org.). Musica popular brasileira hoje. Sao Paulo: Publifolha,

2002.NORONHA, Eduardo G. "Cicio de greves, transicao politica e estabilizacao: Brasil,

1987-2007'~ Lua Nova, n. 76,2009.OLIVEIRA, Francisco de. Collar, afalsificafilo da ira. Sao Paulo: Imago, 1992.___ ."Privatizacao do publico, destituicao da fala e anulacao da politica: 0 to-

talitarismo neoliberal" In OLIVEIRA, Francisco de & PAOLI, M. C. (orgs.), Ossentidos da democracia. Politicas do dissenso e hegemonia global. Petr6polis:Vozes,1999.

___ . Crftica a razao dualista/ 0 ornitorrinco. Sao Paulo: Boiternpo, 2003.& RIZEK, Cibele (orgs.). A era da indeterminacao. Sao Paulo: Boiternpo,

2008.~ BRAGA, Ruy & RlZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia as avessas. Economia, poli-

tica e cultura na era da servidilo financeira. Sao Paulo: Boiternpo, 2010.PANEBIANCO, Angelo. Modelos de partido. Organizafiio e poder nos partidos politi-

cos. Sao Paulo: Martins Fontes, 2005.PAULANI, Leda. Brasil delivery. Sao Paulo: Boitempo, 2008.PEREIRA, Merval. 0 lulismo no poder. Rio de Janeiro: Record, 2010.PIETA, El6i (org.). A nova politica economica. A sustentabilidade ambiental. Sao

Paulo: Fundacao PerseuAbramo, 2010.

•••••II41•I••••••••••41••41•••••41•••

~

267

••

Page 135: Os Sentidos Do Lulismo

POCHMANN,Marcio. Desenvolvimento, trabalho e renda ~oBrasil. Sao Paulo: Fun-dacao Perseu Abramo, 2010.

POLANYI,Karl. A grande transformacao. As origens de nossa epoca. Rio de Janeiro:Elsevier, 2000.

POULANTZAS,Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. Rio de Janeiro: lahar,1975.

PRADOJR.,Caio. A revoluciio brasileira. Sao Paulo: Brasiliense, 1966.REIS,Fabio Wanderley. Mercado e utopia: teoria politica e sociedade brasileira. Sao

Paulo: Edusp, 2000.---' "Identidade polltica, desigualdade e partidos brasileiros'' Novos Estudos,

n.87,ju1.2010.

RICCI,Ruda, Lulismo: da era dos movimentos socia is a ascensiio da nova classe me-dia brasileira. Brasilia: Fundacao Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010.

ROCHA,Sonia. Pobreza no Brasil. Afinal, de que se tratai Rio de Janeiro: FGV,2006.SADER,Emir (org.). Gramsci, poder, politico epartido. Sao Paulo: Expressao Popu-

lar, 2005.

--- & GARCIA,Marco Aurelio (orgs.). Brasil entre 0 passado eo futuro. SaoPaulo: Pundacao Perseu Abramo/Boitempo, 2010.

SALLUMJR.,Brasilio. "A crise do governo Lula e 0 deficit de democracia no Brasil':In BRESSER-PEREIRA,L. C. (org.). A economia brasileira na encruzilhada. SaoPaulo: FGV,2006.

---' "El Brasil en la 'pos-transici6n': la institucionalizaci6n de una nuevaforma de Estado'' In BIZBERG,I. (org.). Mexico en el espejo latino-america no:[democracia 0 crisis? Mexico: El Colegio de Mexico-xes, 2010.

--- & KUGELMAS,Eduardo. "Sobre 0 modo Lula de governar" In SALLUMJR.,Brasilio. Brasil eArgentina hoje - PoUtica e economia. Bauru: Edusc, 2004.

SAMUELS,David. "From socialism to social democracy': Comparative PoliticalStudies, vol. 37, n. 9, 2004.

---' "Sources of mass partisanship in Brazil". Latin American Politics and So-ciety, vol. 48, n. 2, verao 2006.

---' "A evolucao do petismo (2002-2008)': Opiniao Publica, vol. 14, n. 2, novo2008.

SARTORI,Giovanni. Partidos e sistemas partidarios. Brasflia: UnB, 1982.SASSOON,Donald. One hundred years of socialism. The West European left in the

twentieth century. Nova York: New Press, 1996.SCHMITT,Rogerio, Partidos politicos no Brasil (1945-2000). Rio de Janeiro: Jorge

lahar, 2000.SCHORSKE,Carl. German social democracy (1905-1917). The development of the

great schism. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1983.

268

.,

SCHWARZ,Roberto. 0 pai de familia e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1978.

___ . Sequencias brasileiras. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1999.SECCO,Lincoln. Caio Prado Jr.0 sentido du revolufiio. Sao Paulo: Boitempo, 2008.SICSO,Ioao, "Dois projetos em disputa". T~oria e Debate, n. 88, maio/jun. 2010.SINGER,Andre. Esquerda e direita no eleitorado brasileiro. A identificafilo ideol6gica

nas disputas presidenciais de 1989 e 1994. Sao Paulo: Edusp, 2000.__ .0 PT. Sao Paulo: Publifolha, 2001.___ (org.). Sem medo de ser feliz: cenas de campanha. Sao Paulo: Scritta, 1990.----.,; GOMES,Mario Helio: VILLANOVA,Carlos &DUARTE,Jorge (orgs.). No Plana/-

to, com a imprensa. Recife: Massangana, 2010.SINGER,Paul. A crise do "milagre", Interpretadio critica da economia brasileira. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1976.___ . Dominafiio e desigualdade. Estrutura de classe e reparticao da renda no

Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.___ . Reparticao da renda - Pobres e ricos sob 0 regime militar. Rio de Janeiro:

lahar, 1985.SOARES,Glaucio Ary Dillon. Sociedade e politico no Brasil. Desenvolvimento, classe

epolitica durante a Segunda Republica. Sao Paulo: Difel, 1973.SOUZA,Amaury de & LAMOUNIER,Bolivar. A classe media brasileira. Ambipjes, valo-

res eprojetos de sociedade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.SOUZA,Jesse. A construfiio social da subcidadania. Para uma sociologia polltica da

modernidade periferica. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: uFMG/Iuperj, 2006.___ .A raMbrasileira. Quem e e como vive. Belo Horizonte: UFMG,2009.___ . Os batalhadores brasileiros. Nova classe media ou nova classe trabalhado-

ra? Belo Horizonte: UFMG,2010.SOUZA,Maria do Carmo Campello de. Estado e partidos politicos no Brasil (1930-

-1964). Sao Paulo: Alfa-Omega, 1976.STIGLITZ,Joseph E. Os exuberantes anos 90. Uma nova interpretacao da decada mais

pr6spera da hist6ria. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2003.TAVARES,Maria da Conceicao, Desenvolvimento e igualdade. Brasllia: Ipea, 2010.THERBORN,Goran (ed.). Inequalities of the world. Londres: Verso, 2006.VEIGA,JOseEli da. Meta mo rfoses da politica agricola dos Estados Unidos. Sao Paulo:

Annablume, 1994 .VFIC;;A,Luciana Fernandes. "Os partidos brasileiros na perspectiva dos eleitores:

mudanc;as e continuidades na identificacao partidaria e na avaliacao dasprincipais legendas ap6s 2002". Opiniao Publica, vol. 13, n. 2, novo2007.

VENTURI,Gustavo. "PT30 anos: crescimento e mudancas na preferencia partida ria,impacto nas eleicoes de 2010': Perseu, n. 5, segundo semestre 2010.

269

Page 136: Os Sentidos Do Lulismo

VIANNA, LuizWerneck. A revolufao passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Riode Janeiro: Revan, 2004.

___ ."0 Estado Novo do PT", no sitio Gramsci e 0 Brasil.Consultado em <www.acessa.com/gramsci/>, 24 fev. 2011.

WEBER, Max. Economia y sociedad. Mexico: Fondo de Cultura Econ6mica, 1944.___ . Ciencia epolitico, duas voCafOes.Sao Paulo: Cultrix, 1992.WEFFORT, Francisco. "Raizes sociais do populismo em Sao Paulo': Revista Civiliza-

filo Brasileira, n. 2, maio 1965.___ .0 populismo na politica brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

1"70

Indice onomastico

Abramo, Z., 237nAbreu, Waldeni Frasao, 134

• Adorno. TheodorW., 237nAguiar, F.,236n, 242nAlbuquerque, Jose Augusto Guilhon,

241,252,254Alckmin, Geraldo, 51n, 52,53-6n, 170,

171, 173n, 213-4n, 226nAlegre, Silvia Elena, 49, 103nAlencar, Jose, 98,161Almeida, Jorge, 62n, 94, 260nAmaral, Oswaldo E. do, 85n, 116-7nAmaral, Roberto, 52n, 56nAnderson, Perry, 25, 26, 90, 91n, 197Angelo, V.A. de, 85-6n, lOOn,229nAntunes, Ricardo, 138nArabe, Carlos Henrique Goulart, 48,

86nAranha, Ana, 204nArantes, Paulo, 37n, 99Arantes, Pedro, 153nArantes, Rogerio, 253

Araujo Ir., Ari Francisco de, 66nAraujo, Jose Prata, 64n, 70n, 74nAraujo, Paulo, 190nAron, Raymond, 220nArraes, Ana, 204Arraes, Miguel, 204Aschcraft, Richard, 24Azevedo, Ricardo de, 48

•••••••••••••••••••••••••••••••••

Bacelar, Tania, 167Bacha, Edmar, 209 .Balbachevsky, Elizabeth, 56, 69n, 72,

253Barbosa, Nelson, 127, 143n, 147n, 149,

150,151,157,158n,159,178n,179,205,230

Barros, Adhemar de, 256Barros, Ricardo Paes de, 185, 209nBava, Silvio Caccia, 130nBenevides, Maria Victoria, 49Benjamin, Walter, 234Berg, John C., 15n

271

••

Page 137: Os Sentidos Do Lulismo

••• ~,Berzoini, Ricardo, 116 Castro, Monica Mata Machado de, 73• Betto, Frei, 188 Cevasco, Maria Elisa, 95n• Bismarck, Otto von, 201 Chauvel, Louis, 27

• Bizberg, I., 29n Chavez, Hugo, 32nBlair, Tony, 120,215 Clift, Ben, 26n• Bobbio, Norberto, 234n, 249 Clinton, Bill, 215

• Bonaparte III, Carlos Luis Napoleao, Cohn, Gabriel, 48, 220n, 23537,82,201,202 Coimbra, Marcos, 63, 65, 70• Bonaparte, Napoleao, 201 Collor, Fernando, 10, 16,35,57,58,59,• Boron, Atilio A., 250n 61,91n,92,93,197,224,253,255,

• Bourdieu, Pierre, 28 257Bovero, Michelangelo, 249 Comparato, Fabio, 205n• Braga, Ruy, 29, 39n, 45n, 47, 52-3n, Conti, Mario Sergio, 47, 126n

• 81-2n, 138n, 186n, 196n, 199n Correa, Rafael, 32nBraga, Saturnino, 144 Cortez, Rafael, 33, 212• Brandao, Gildo, 85 Costa, Ina Camargo, 37n• Bresser-Pereira, Luiz Carlos, 29n, 48, Costa, Otavio, 49

• 49,163,176 Coutinho, Carlos Nelson, 37, 38, 40-1 nBrito,Agnaldo,199n Covas, Mario, 57• Brizola, Leonel, 57, 243 Cucolo, Eduardo, 12n, 190n

• Buarque, Chico ver Holanda, ChicoBuarquede Dame, Otavio Menezes, 66n• Buarque, Cristovam, 53 n, 170,226 Delfim Netto, Antonio, 149, 162, 163,• 180n,216

• Camiller, Patrick, 25n, 91 n Dilma ver Rousseff, DilmaCancelli, V., 260n Downs, Anthony, 252• Candido, Antonio, 88, 242 Duarte, Jorge, 247 n• Canzian, Fernando, 134n, 138n Durso, Vera Saavedra, 12n

• Cardoso, Fernando Henrique, 10, 29, Dutra, Jose Eduardo, 11631,33,36,42,61,62,64,74,75,76, Dyck, Brandon Van, 113n• 92,93,94, 111, 144, 146, 148, 159,

• 177,181,197,212,213,215,255 Eijk, Cees van der, 13nCardoso, Ruth, 235 Eley, Geoff, 187• Cariello, Rafael, 87n Engels, Friedrich, 23n, 96, 201 n, 235• Carraro, Andre, 66n Erundina, Luiza, 257

• Carreirao, Yan de Souza, 64, 65n, 68, Evans, Geoffrey, 2671,72,106,227-8n• Castel, Robert, 211 Falcao, Rui, 116n• Castro, Henrique Carlos de O. de, 64n Faria, Glauco, 149n

• 272•••

Fernandes, Florestan, 19n, 240Ferreira, M. R. J., 177, 178Ferreira, Mariana Ribeiro Jansen, 177 nFHC verCardoso, Fernando HenriqueFigueiredo, R., IOnFilgueira, C. H., 247nFiocca, Demian, 11nFornetti, Verena, 195Fraga, Erica, 158nFranklin, Mark N., 13nFrias Filho, Otavio, 241Frizzo, Diogo, 116nFurtado, Celso, 16, 17,20, 153, 154

Garcia, M. A., 127n, 147n, 149-51 nGarotinho, Anthony, 226, 229Genro, Tarso, 61, 62Giannotti, Jose Arthur, 237Gini, Corrado, 12, 46, 139, 140, 142,

181,182,183,184,185,186,195Goldfajn, Ilan, 139nGomes, Ciro, 226Gomes, Mario Helio, 247nGoulart, Ioao, 88, 256Grarnsci, Antonio, 9, 26, 30n, 37, 38-

-9n, 40, 41, 45, 82, 156n, 157,201,202,234,235,236

Grellet, Fabio, 130nGuirnaraes, Juarez, 34, 86, 117, 137,

164nGuimaraes, Ulysses, 243

Haddad, Fernando, 27Haenisch, Konrad, 84Hamilton, Alexander, 250Helena, Heloisa, 53 n, 55, 170,226Holanda, Chico Buarque de, 69n, 164,

248Holanda, Sergio Buarque de, 244

Holzhacker, Denilde Oliveira, 56, 69n,72

Horkheimer, Max, 237nHunter, Wendy, 62, 66, 67, 73, 86, 104,

105,106,108,112, 114n, 126

Jay, John, 250

Keck,Margaret, 105Key Jr., V.O., 14nKhair, Amir, 48, 139, 151n, 152, 175-

-6n,207nKingstone, P. R., 86nKinzo, Maria D'Alva, 106,227,228,253Kirchner, Nestor e Cristina, 32nKovarick, Lucio, 257 nKrugman,Paul,127,128,142,195Kugelmas, Eduardo, 29n, 97n

Lacerda, Antonio Correa de, 178 nLage, [anaina, 164nLamounier, Bolivar, lOn, 27, 28, 115,

137,204,210,211,252Lavareda,Antonio,14nLavinas, Lena, 138nLeal, Victor Nunes, 41Leite, Jose Correa, 95nLessa, Carlos, 151, 160, 161Libanio, Gilberto, 175Licio, Elaine Cristina, 64Lima, Samantha, 139nLimongi, Fernando, 14n, 33, 48, 49,

115, 116n, 212Locke, John, 235, 249Lopes, Juarez Brandao, 235Loureiro, Isabel, 95nLourenco, ° Magnifico ver Medici,

Lourenco deLucena, Eleonora de, 194 n

273

Page 138: Os Sentidos Do Lulismo

Lukacs, Georg, 156,235,260Lula ver Silva, Luiz Inacio Lula daLuna, Maria, 204

MacDonald, Ramsay, 201Machado, Ralph, 10Machado, Uira, 102n

Madison, James, 249, 250, 251Magalhaes, Luis Eduardo, 42n

Mainwaring, Scott, 41, 98n, 105, 107n,109n

Maluf, Paulo, 57Mantega, Guido, 146, 148Maquiavel, Nicolau, 236, 241, 243,

249,250,251,253,259Maricato, Erminia, 153n

Marques, R. M., 177-8n

Martins, Jose de Souza, 52n

Marx, Karl, 18n, 20n, 23, 24, 25, 27, 37,59,79,81,82,96, 120n, 125,201,202,208,234,235,236,237",259,260"

Manes, E, 237nMedici, Lourenco de, 201Meirelles, Henrique, 216Melchiades Filho, 114Mello, Fernando Collor de ver Coli or,

FernandoMelo, C. R., 62n, 67n, 73n, 105-6n,

114",126n

Menchen, Denise, 130n

Mendes, Antonio Manuel Teixeira, 61Meneguello, Rachel, 41, 105, 107n,

109",116-7n

Mercadante, Aloizio, 150n, 162, 176,

177-8"Mesquita, Lara, 115-6n

Moises, Jose Alvaro, 248, 254Monasterio, Leonardo Monteiro, 66"

274

Montesquieu, Charles de, 235, 249,250,251

Montoro, Franco, 243Morales, Evo, 32"Moura, Flavio, 47Muraro, Rose Marie, 194Musse, Ricardo, 47Muszinsky, Judith, 253

Napoleao III ver Bonaparte Ill, CarlosLuis Napoleao

Nascimento, Jose Ioao do, 203Nascimento, Luzimaria Silva, 203, 204Nassif, Luis, io»Natanson, Jose, 142Neri, Marcelo, 12", 27, 68, 69", 70,

132, 133, 135, 136, 139, 140, 146,160,181,183,184,206,209,211,231

Nestrovski, Arthur, 248Neves, Tancredo, 91, 92, 243, 256Nicolau, Iairo, 64n, 65, 229nNobre, Marcos, 31Nohlen, D., 247"Noronha, Eduardo G., 91, 92, 93"

Oliveira, Francisco de, 11, 19, 29, 38,39,44,45,47,49,52,53,54,70,78,81,82,86n,88",91", 141,186, 196,197n,207n, 259,261

Oliveira, Priscilla, 147nOminami, Carlos, 142

Panebianco, Conforme Angelo, 88Paulani.Leda, 11n,49, 141, 149n, 152n,

181,182Peixoto, Vitor, 64", 65Pereira, Merval, 52n

Pieta, El6i, 48,121, 143-4n, 151n, 158-

-9n, 162n, 167", 178n

Pizzorno, Alessandro, 253Pochmann, Marcio, 140, 141, 182,

211n

Polanyi, Karl, 43, 44, 196,240Pompeu, Renato, 48Poulantzas, Nicos, 26Power, Timothy, 14n, 41, 62, 66, 67n,

73, 86n, 104, lOS, 106, 108, 109n,

112, 114n, 126

Prado Ir., Caio, 16, 17, 18, 89n, 207,

208n

Prado, Declo de Almeida, 236Prates, Daniela Magalhaes, 176Przeworski, Adam, 253PuIs, Mauricio, 102n

Quadros, Ianio, 243Quadros, Waldir, 69Quirino, Celia Galvao, 235

Reagan, Ronald, 239Rego, Walquiria Domingues Leao,

134,135",194Reis, Elisa P., 185nReis, Fabio Wanderley, 32, 71, 73, 87,

115Renno, Lucio R., 64nResende, Tatiana, 136Ribeiro, Pedro Floriano, 86n, 100Ricci, Ruda, 33, 39, 40, 52n, 221

Ricupero, Rubens, 164n

Rizek, C., 29n, 39n, 45n, 52-3n, 78n,

81-2n,86n,88n, 186n, 196n

Roberto Carlos, 248Rocha, Camila, 115n

• Rocha, Sonia, 44Rodrigues, Roberto, 176n

Roosevelt, Franklin Delano, 14, 126,127,128

Rousseau, Iean-Iacques, 249, 250, 251

Rousseff, Dilma, 21, 40, 97, 122, 127,128, 142, 153, 155, 158, 167, 169,170,171,172,173,174, 192, 198,199,200,217,218,219,230

•I••••••••I•••••••••••••••I••••••••

Sadek, Maria Tereza, 235, 253Sader, Emir, 38n, 127", 147", 149-51",

156n,201-2n

Saez, M. A., 62n, 67n, 73n, 105-6",

114n, 126n

Sallum Jr., Brasilio, 29, 30,31, 97n

Sampaio, Pltnio de Arruda, 128, 218Samuels, David, 85-6n, 104, 105, 106,

107,108,112,118Sarney, Jose, 243Sartori, Giovanni, 94n, 213"

Sassoon, Donald, 120n, 187-88"Schmitt, Rogerio, 98n

Schorske, Carl, 84"Schwartzman, Simon, 142n, 148

Schwarz, Roberto, 47, 88, 186n, 235n,

236,237,260,261Scolese, Eduardo, 11nSecco, Lincoln, 207Sen, Amartya, 129,133, 135, 143, 194Sennett, Richard, 221Serra, Jose, 51n,52, 127, 128, 170, 171,

174,213,214,226,230Shikida, Claudio Djissei, 65, 66Sicsu, Ioao, 140, 148, 166", 182, 231nSilva, Antonio Ozai da, 85nSilva, Fernando de Barros e, 127, 128,

164n

Silva, Golbery do Couto e, 243Silva, Luiz Inacio Lula da, 10, 12, 14-

-6,18,21,28-33,35,37,39-40,46,51-9,61-76,78,80-2,85-7,89,92,96-102, 104-6, 108, 111, 113-4,119, 121-3, 125-8, 132-3, 135-7,140-1, 143-56, 158-9, 162, 165,

275

Page 139: Os Sentidos Do Lulismo

•••••••••t•ttttt•••••••••••••••••

167-71,173-4,176-8,180-91,198,200,203-7,213-5,217,219,224,226, 229, 244-6, 248, 252, 255,257-8,260-1; ver tambem Rousseff,Dilma

Silva, Marina, 128, 170, 174,213,230Silva, Micineia, 134Simoes, Renato, 52MSinger, Andre, 22M,35M,57-8M, 60M,80n,

98M,102M,125M,152M,154M,223-5M,230, 237M,246-8M, 252M,257M

Singer, Paul, 18, 19, 20M, 26, 27M, 49,61M, 76, 77, 78M, 191M,260

Soares, Glaucio, 36Soares, Sergei Dillon, 186, 195Souza, Amaury de, 27, 28, 137,204,

210,211Souza, Jesse, 27, 28, 42, 43, 91 M, 164,

206,210,211,215,221Souza, Jose Antonio Pereira de, 127,

147M, 149-50M, 151Souza, Maria do Carmo Campello de,

36,252Stiglitz, Joseph E., 127Suzuki [r., Matinas, 49

Tavares, Maria da Conceicao, 12, 19,154

Thatcher, Margaret, 239

276

-

Therborn, G., 27M, 185MTherborn, Goran, 48, 182, 183,207,

231MTocqueville, Alexis de, 220, 235, 249Toledo Ir., Ioaquim, 47Truman,llarry,127

Unger, Roberto Mangabeira, 215, 221

Vargas, Getulio, 17,81,256Veiga, Jose Eli da, 126M, 129, 130, 132,

135,143,194Veiga; Luciana Fernandes, 86M, 103,

104, 108M, 118MVenturi, Gustavo, 14M,48, 54M, 61, 79,

86M, 108, 110, 111, 112,226,258"Vettori, Francesco, 251Viana, Gilney, 51 MVianna, Luiz Werneck, 30, 31, 38, 39,

40,44,45, 156M, 157,200Villa, M. A., ~5-6M, 100M, 229MVillanova, Carlos, 247MVita, Alvaro de, 48

Weber, Max, 23, 24, 26, 28, 236, 243,"_244

Weffort, Francisco, 33, 42, 89, 156,235,259,260,261

Williamson, John, 158

(!$,j \\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\1\\\\\\1\\\\1\\\"","~ V342674

Os sentidos do lulismo : reforma graduel e pactoconserved or I

32(81) S617s

vtlsOO0216082 - RNOOO777040Biblioteca do IESP

Page 140: Os Sentidos Do Lulismo