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OS PIRATAS

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OS PIRATAS

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"OS PIRATAS"

"OS PIRATAS" estreou a 12 de maio de 1923 pelo Grêmio Dramático Familiar, em sua sede, com músicas de Silva. Novo e Athaide Cavalcante e com o seguinte elenco:

CEL. MARCOLINO . . . . . . . . . . . . . . . . . Augusto Guabiraba

GARIBALDI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Joaquim Santos

BENEDITO CAETETÉU . . . . . . . . . . . . Eurico Pinto

MiSTER JOHN . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pierre Freire

ALBERTINA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Alzira Peixoto

XANDOCA Zeny Vale

CATARINA .................... ..... Francisca Dolores

GONÇALO RAPOSO . . . . . . . . . . . . . . . . Edgard Torres

NICOLAU .......................... Inácio Ratts

POLíBIO .. ......... ................ J. Simões

MIRABEAU ........................ F. Guabiraba

AGRIPINO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . F. G.

Cenários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Gérson Faria

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OS PIRATAS

. . . A peça encenada, de todas as exibidas por Carlos Câmara, não é a melhor. O "Zé Fidelís" e a "Alvorada" lhe são superiores pelo concatenado do enredo e pela força da movimentação das personagens. Apesar, porém, disso, "Os Piratas" tem seu valor tea­tral de peça de· costumes pela resenha feliz que fez o autor, que demonstrou possuir fortíssimo poder de observação, a propósito dos fatos e ditos de Fortaleza, nestes últimos tempos ( . . . ) Eurico Pinto deu-nos um impagável soldado de polícia, pernóstico, reve­lando-se um artista de verdade, a interpretar sempre bem os seus diversos papéis ; Augusto Guabiraba mostro-se enexedível no papel do velho ranzinza, que tão bem sabe interpretar : J. Santos apresentou-nos, ainda uma vez, os seus dotes de perfeito galã : o talentoso pequeno Inácio Ratts foi muitíssimo aplaudido pela sua simplicidade e naturalidade de enf.ant terrible; Pierre Freire foi uma perfeição; as senhoritas Francisca Dolores e Alzira Peixoto sobressaíram-se no desempenho dos papéis. Os cenários lindamen­te pintados pelo hábil artista Gerson Faria mostraram uma en­cantadora vista parcial das nossas praias, vendo-se ao fundo, a piscar, a luz do farol do Mucuripe.

Correio do Ceará, 16/05/1923.

Toda a ação desenvolve-se no Porto das Jangadas, tendo por objetivo uma crítica suave porém incisiva, contra os piratas, es­pécimes de almofadinha, mais perigosos ainda, que infestam a nos­sa sociedade ( . . . ) O Sr. Carlos Câmara, de uma maneira sutil, esti­matizou dos defeitos do meio social de Fortaleza, fazendo um paralelo entre este e o meio sertanejo. Daí a criação do Cel. Mar­colina, tabelião do Cariri (Augusto Guabiraba) , e de sua filha Catarina (Francisca Dolores) em contraste com a prosódia da melindrosa Albertina (Alzira Peixoto) e de Xandoca (Zeny Va­le) , meninas viciadas no flirt e educadas nas lábias dos piratas. Joaquim Santos (Garibaldi Leão Bravo) é o pirata-mar, o rei dos salões, tremendo galante e . . . bem alusivo . . . Eurico Pinto (Be­nedito Caetitu) é o soldado pernóstico, falando difícil, o tipo fiel de polícia de província. Vem depois Mr. John Robertson Taylor (Pierre Freire) e Nicolau, filho do coronel (Inácio Ratts) . Inácio Ratts é a figura de maior importância no elenco do Grêmio, es­pecialmente n'"Os Piratas". Ele tem vida dramática própria. E o seu papel é tão significativo que é quem fecha o enredo da bur­leta.

Tribuna, 12/05/1923.

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PRIMEIRO ATO

PORTO DAS JANGADAS. UMA CASA A ESQUERDA. A DIREITA UMA BARRACA. AO FUNDO O MAR, VENDO-SE A DIREITA AO

LONGE, O FAROL DO MUCURIPE. (1 )

Cena I

Albertina, Garibaldi, Agripino, Gonçalo, Políbio (Estes cantam)

Da risonha e meiga Albertina A beleza vamos saudar O seu sorriso que fascina, É realmente de encantar É de candura peregrina O refulgir de seu olhar.

ALBERTINA­Muito obrigada

CORO -Não há de quê

ALBERTINA -Estou encantada

CORO -Logo se vê

ALBERTINA­Eu agradeço.

CORO -Mimosa flor

ALBERTINA­Tamanho apreço

CORO -Do nosso amor

ALBERTINA -Estou encantada

CORO -Logo se vê

(1) Porto das Jangadas, atual Praia de Iracema, vendo-se o antigo farol do Mucuripe, no bairro do mesmo nome.

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ALBERTINA­Muito obrigada

CORO-Mimosa flor

ALBERTINA­Eu agradeço.

CORO-Não há de quê

ALBERTINA­Tamanho apreço

CORO-Do nosso amor

TODOS-Ai que alegria! Ai que prazer! Brademos todos, sem temor: Rir e folgar, até morrer Que belo sonho encantador.

GARIBALDI -Viva a pândega! (Todos correspondem)

Cena TI

Os mesmos e John Robertson Taylor

JOHN (Entrando da direita) -Oh, Sinhôrr ... Que barulha! (Sur-presa geral) -Mim nô pode dór-mir .. .

GONÇALO (A parte) - Míster Robertson (Enterra o chapéu na cabeça).

ALBERTINA (Reconhecendo-o) - Ah! é o nosso vizinho ali de­fronte.

AGRIPINO (Surdo, a fazer da mão corneta acústica) - O que diz ele?

ALBERTINA (Alto) - Diz que não pode dór-mir (Riem-se) POLfBIO (Olhando o relógio) - Mas meu caro senhor, são 8

horas ... JOHN (Olhando o relógio) - Oito horas non sinhôrr ... Sete e

quarente e oito. Cronométre garrantida. GARIBALDI-Pois os incomodados são os que se mudam; sabe

o senhor? Viva a pândega! TODOS - Viva! JOHN-Oh, mim non tem pr'onde muda. E isto non póde con-

tinuar ... POLfBIO - Pois sim. JOHN - Mim vai dá parte polícia ... AGRIPINO (à Albertina) - O que diz ele? ALBERTINA (alto) -Diz que vai dar parte à polícia. (Riem-se). AGRIPINO-Não faça tal, mylord. Não queira ser um desman-

cha-prazeres.

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JOHN - Mim veio morá Porto Jangada para estarr socegada. Yes.

ALBER'l'lNA- E nós, pelo contrário, aqui estamos para nos di­vertir. Yes.

POLíBIO - E estamos no nosso direito, míster .. . (Outro tom) Mister o quê?

JOHN - Míster John Robertson Taylon. Yes. GARIBALDI - Mas vejam que nomezinho encrencado ele tem! . . .

Míster John Robertson Taylon Yes. (Riem-se) JOHN - Oh, mim non adémite debócha... Isto nô ser maneirra

tratar estragêrra. AGRIPINO - Não se zangue conosco, meu nego. JOHN - Mim non sêrr sua négro. Mim sêrr branca. GONÇALO - Yes. White. JOHN (reconhecendo-o) - Oh! Míster Gonçala! ... GONÇALO (à parte) - O desgraçado do inglês reconheceu-me.

Estou frito! JOHN - Senhôrr sêrr empregada Norton Griffith. Mim vai pede

senhorr despedida. GONÇALO - (à parte) - Matou-me ! ... (Alto) - Não seja mau

mister, Robertson. Eu nada fiz que merecesse a minha de­missão.

JOHN - Senhôrr sêrr muito maluca! . . . GARIBALDI- Hoje é feriado, e o melhor que o míster faz é cair

na farra. JOHN (admirado) - Faarrra? POLíBIO - Sim. Cair na patuscada. JOHN - Oh, mim nó quérr sabêrr patuscada. GARIBALDI - Vamo até Mucuripe beber água de coco com

uisque. (Outro tom) Eu faço parte da Liga Contra o Alcool, mas hoje é feriado ...

JOHN - Alcool sêrr muito prejudicial à saúde. GONÇALO (à parte) - Olha quem fala ... GARIBALDI - Allrighat football light morning. JOHN - Mister Gonçala! ... GONÇALO - My Lord! JOHN - Mim vai faz prupaganda contra álcool. GARIBALDI - Voto contra. POLíBIO - Apoiado. GARIBALDI - Viva a pândega! TODOS - Viva ! (John tapa os ouvidos com a mão) JOHN - Mim esperra senhôrre deixem mim dor-mir d��.;ançada. ALBERTINA - Pois vá esperando. AGRIPINO - É mais conveniente que o senhor não nos amole

a paciência. POLíBIO - E esqueça-nos com a sua ausência. AGRIPINO - Muito bem. GARIBALDI - E vá rodando. (Empurra-o)

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JOHN - Oh! Nô empurra. Nô empurra . . . GARIBALDI - Então. .. suma-se. AGRIPINO - Recolha-se aos bastidores. JOHN - Oh, mim vai dá parte polícia. GARIBALDI - Vá queixar-se ao diabo que o carregue. (John

sai furioso/esquerda alta) . GONÇALO - Vai furibundo. GARIBALDI - Mas isto está se fazendo tarde. O sol está esquen-

tando. Vamos negrada. TODOS - Vamos. ALBERTINA - Eu os acompanho. GARIBALDI - Bravos ! ALBERTINA (aproximando-se da porta) - Xandoca (Esta apa­

rece) - Diz a mamãe, caso ela pergunte por mim, que fui a Mocuripe.

GARIBALDI - Cumprir uma promessa. (Saem cantando a di­reita)

ALBERTINA - Traz uma sombrinha!

Ai que alegria! Que prazer ! Brademos todos sem temor: Rir e folgar, até morrer, Que belo sonho encantador (Bis)

(Garibaldi volta do fundo)

Cena III

Garibaldi e Xandoca

GARIBALDI - Oh ! minha gatinha borralheira ! Bons olhos a ve­jam!

XANDOCA - Admira ter me enxergado, quando só tem olhos para ver a leviana da Albertina . . .

GARIBALDI - Eu j á não te disse, minha Cendrilon amada, que, se aparento reqüestar a Albertina, é só para ter o ensejo de ver-te, de aproximar-me de ti ! . . .

XANDOCA - Bonita maneira de se gostar de alguém!. . . Quer então fazer de mim carambola? ! . . .

GARIBALDI - Pelo contrário. Ela é que, sem dar por isso, nos vai servindo de carambola. Bem sabes que, se Albertina chega a desconfiar que te arrasto a asa, impedirá, por to­dos os meios, que te veja, e proibirá terminantemente que continue a freqüentar-lhe a casa.

XANDOCA - Aquilo é uma namoradeira. Seis, oito apaixonados não lhe chegam. Eu desconfio que até o homem do pão ela namora.

GARIBALDI - É bem possível. Mas tratemos de nós. Ainda não te resolveste a dar-me um beijo?

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XANDOCA- Meu Deus!. .. que descaramento é este, seu Garibal­di. Algum dia lhe dei tal ousadia? !

GARIBALDI - Oh! minha filha. Um beijo n a face, pede-se e dá-se.

XANDOCA - Pois vá pedir a outra. As Albertinas, por exemplo. Eu cá felizmente não sou disso.

GARIBALDI - Ora, a Albertina . . . Interesso-me tanto por ela, como me interesso pela saúde do gato da viz�nha. Então? Não dás?

XANDOCA - Não, não e não. GARIBALDI - Três vezes não. Pois até breve, meu pirulito ama­

do. Preciso alcançar a negrada. XANDOCA - E por que não aproveita a ausência da Albertina

para palestrarmos mais à vontade? GARIBALDI - Porque não a acompanhando, poderia despertar­

-lhe suspeitas. Confia em mim, Cendrilon adorada, e adeus (Dirige-se à direita alta. Antes de sair, atira-lhe beijos) .

XANDOCA - (só) - Esse Garibaldi é bom de encomenda. Pensa embrulhar-me com as suas lábias . . . Um pirata é o que ele é. (Entram da esquerda alta conversando míster e Bene­dito. Xandoca fica sentada à porta) .

Cena IV

Xandoca, Benedito e John

JOHN - Minha protesto ser muito justa, míster Pólicia. BENEDITO - Pólicia não, seu inguilez, eu sou é polícia. (Outro

tom) E adonde é o adromicílio dos supracitados cuj os de­nunciados, qui, im confragação cum as lêzes, vévem per­tubando o desassossego e a intranquilidade púbrica?

JOHN (admirado) - Ham? BENEDITO - Rã ou sapo, pouco importa. Ficarão esta noite

adromiciliados no xilindró. JOHN - Xi-lin-dró? BENEDITO - Bo-ni-t-ó-tó. Macaceira. Mocotó. JOHN - Oh, mim nô entende nada desse coisa! . . . BENEDITO - Mais é preciso abrir os inqueretis, na conformi­

dade das lêzes. (Outro tom) - Num sabe, antonce, adonde moram os réozes supracitados cujos?

JOHN - Moram ali (aponta esquerda) . BENEDITO - Ah ! Moram ali? (Voltando-se e vendo Xandoca)

- Oh ! mais qui palminho de cara corcumcisflântico e belo. (Alto) - Arrecebi ua denunça, aqui de míster John Buli . . .

JOHN - Oh ! Nô. John Buli, nô. John Robertmn Taylor. Yes.

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BENEDITO (voltando-se) - A arde dos fator num adulteram o produto. (Para Xandoca) - Mais cumo eu vinha arrela­tando, protesta aqui o suplicante contra o fato de os mora­dare dessa casa não deixarim dór-mir, cur1. cantarolas ar­rebarbativas e berros que . . .

XANDOCA (Levantando-se) - Mas espere . . . O senhor dirige-se a mim?

BENEDITO - E a quem havéra de ser, antonce, ó formosura lns­pantosas das prailhas d'alvas areilhas? !

XANDOCA - Então, queixe-se ali o Míster Pickles . . . JOHN (passando) - Oh ! Míster Pickles, nô. Míster John Robert­

san Taylor. Yes. BENEDITO - Já se dixe: a arde dos fatores num altera o produ­

to. Passe para o quociente que eu sou o máximo divisor comum. Queixa-se de que os moradores desta casa, não o deixam dormir.

XANDOCA - É falso. Ab-so-lu-tamente falso. Ninguém aqui dor­me com os olhos dele.

BENEDITO (para John) - Tá vendo? . . . (Para Xandoca) - E isso aí (Aponta para casa) é uma república?

XANDOCA - República? ! Não senhor. É uma monarquia; uma monarquia absoluta, de qual é rainha D. Albertina.

BENEDITO (à parte) - É lindra como uma marrãzinha. (Alto) E quantas criaturas vévem sob esse tético?

XANDOCA - Sob esse té-tico (Noutro tom) Diabo ! É difícil de pronunciar (continuando) - vivem apenas três pessoas. Três pessoas distintas : a Albertina, a mãe (Benedito faz continência) et moi.

BENEDITO (para John) - O senhor não vê que três madamas distintas não podem fazer semelhante esculhambação? ! (Para Xandoca) E a menina canta?

XANDOCA - Alguma coisa. BENEDITO - Canta de dia ou de noite? XANDOCA - É conforme . . . BENEDITO (interrompendo-a) - ô avéxame. Eu sei. Apois eu

também canto, sabe? Modinhas X.P.T.O. Sei aquela "Qui­sera amar-te mais num posso Olsira! . . . " E aquela outra:

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"A moça que eu namorava, pensava qui m'iludia Gibe van­te! Gibe vante. Ave Maria ! Dó re mi fe si lé sol. Si lé sol fé mi ré dó. Ela mesmo não tem pena de deixar-me assim tão só. Do ré mi fé si lé sol. Si lé sol fé mi ré dó. Ela mesmo não tem pena de deixar-me assim tão só". Ai ! E aquela: "Mulata! Meu pirãozinho de batata! ". Esta é boa. É o suco da uva madura. Deixe está que eu hei de aparecer móde l'insiná.

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XANDOCA (sorrindo) - Muito obrigada. BENEDITO - Não por isso. (Para John que tem estado impa­

ciente) - É um filezinho ou não é? JOHN - Oh yes. Com batatas. BENEDITO - Ai que o inguilez teve graça desta vez. (Ri) Sim

senhor. Com batata, e das grossas. É cada batatão de per­na. . . (Noutro tom) Mais vá s'imbora. Vá s'imbora qui eu vou abrir os inqueritis im segredo de justícia.. . (Volta-se para Xandoca, torce o bigode e pisca-lhe o olho)

XANDOCA - (A parte) Este polícia quererá namorar-me? . . . BENEDITO (aproximando-se) - Gentil donzela! Ah ! Eu sei tam­

bém uma modinha, que começa assim: "Gentil Donzela" (Outro tom) Mas, voltando a vaca fria . . . (Declama) Ao

ver-te fiquei. . . peripactéco de amor! . . . XANDOCA - É uma declaração? BENEDITO - Com todos os R.R.R. e F.F.F. (Declamando) Co­

loca a tua mão . . . sobre o meu coração. (Outro tom) Ou xente ! Rimou. Mão . . . Coração . . . (Continuando) - Coloca a tua mão sobre o meu coração . . . E vedes cumo ele latej a apressado qui nem um motor de 120 cavalo. (Outro tom) Ou xente ! Rimou de novo.

XANDOCA (troçando) - É verdade ! Cavalo . . . Apressado. JOHN (aproximando-se) -· Oh, míster pólicía . . . BENEDITO - Você inda stá aí? Se arretire, home; se arretire.

Apois você num tá vendo que tau abrindo os inqueritis . . . XANDOCA (interrompendo-o) - Im segredo de justiça e na con-

formidade das lêzes ! . . . BENEDITO (com autoridade) - Como é o seu nome? XANDOCA - Xandoca. BENEDITO - Pronto ! Perdi a pose. Xandoca . . . ! Que belo nome ! . . .

Quantas rimas eu num cunheço i m oca! Beijoca ... Loca . . . Pipoca . . . Paçoca . . . Maroca . . . Minhoca! . . .

JOHN - Oh, inqueritis safada! (Passeia impaciente e depois ob­serva perto da barraca, à esquerda fumando) .

BENEDITO - Eu me chamo Benedito. Benedito Caetetu da Sil­va. Posso ter então a honra insígnia de considerá-la, de hoj e em vante, minha apaixonada?

XANDOCA - Não senhor. Eu j á tenho o meu apaixonado. BENEDITO - Já tem o seu apaixonado ! Os desinfortúnio fatal.

Golpe funero que me fere o peito ! (Canta)

Xandoca, gentil mulata, O teu sorriso açucarado

Me arrebata . . . Ai, Xandoca, gentil mulata Por que razão, anjo adorado

És tão ingrata? !

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XANDOCA -Já tenho meu namorado O que pretende, pois, de mim seu Benedito?

BENEDITO -Um beijo de teu lábio macarado Que a dolçura deve ter de um pirulito.

Sinto a alma comovida E o peito arde em desejos Ao fitar-te, flor querida! Pra gozar um de seus beijos Eu daria a própria vida ! . . .

XANDOCA O senhor é das Arábias Não me entoam suas lábias Ponha termo a tal paixão, Que j á dei meu coração,

BENEDITO­Amor!

Eu vou partir, choroso e triste ! ó flor!

Com teus espinhos me feriste! Da dor

Que o coração me dilacera. O teu desprezo é causador Não és mulher, és fera ..

Xandoca gentil mulata O teu desprezo, o teu desdém

É que me mata. Xandoca, gentil mulata Por que razão, meu doce bem,

És tão ingrata? XANDOCA-

Já tenho meu namorado Que pretende, pois, de mim seu Benedito?

BENEDITO -Um beijo de teu lábio macarado Que a douçura deve ter de um pirulito ! . . .

Ai Xandoca! . . . Ai, ten . . . tação ! . . . Consegui, afinal, amolegar�lhe o coração?

XANDOCA - Não. BENEDITO - Tu tens então coração de pedra? XANDOCA - Mais ou menos. Adeuzinho. (Entra em casa) . BENEDITO (só) - É canja! . . . Já está no papo ! . . . Ela se amostra

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assim indeferente, mais há de sê pru força a minha vinté­sima namorada. É pichincha! Vou acatalogá-la na arde cro­nológica dos fatos, cumo lá diz o meu tenente.

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Cena V

Benedito e John

JOHN (aproximando-se) - Oh, míster pólicía! . . . BENEDITO - O que? Você inda stá aí? Você viu, hein? Gostou

de vê? JOHN (tirando a carteira de notas do bolso) - Cuma sua nome

senhôrr? . . . BENEDITO - Benedito Caitetu p'r'o servi. JOHN (tomando nota) - Benedito Caitetu proservi. BENEDITO - ói, Benedita não. Faça tudo mais num me adul-

tere o sésico. (Outro tom) - Mais num me dirá você pra que tomou nota do meu nome no seu vademecum?

JOHN - Mim vai diz Dóctor Chefe Policia maneira sinhôrr faz inqueritis.

BENEDITO (vexado) - Home num faça isto não. Qué me desgra­çá? Qué qui eu seja preso e arranchado?

JOHN - All right. BENEDITO - Mais você num viu que a pequena é, na verdade

ó . . . ótima? JOHN - Oh. Oh. Yes. Artiga superior. Primeira qualidade. BENEDITO (à parte) - Artiga superior. Primeiro qualidade. Só

marca de manteiga ! (Alto) - Olhe : eu dava um ano de vida e de soldo, de bom grado, por um beijo seu.

JOHN (admirado) - Oh ! Beijo minha? ! BENEDITO - Não. Beijo sua não. Deus me livre. Beijo sua, dela. JOHN - Oh ! . . . mim dobra ! . . . Mim dava duas ano de vida. BENEDITO (à parte) - Hum-rum! . . . Esse inguilez é um pirata. JOHN - Senhor gosta cantá modinha? BENEDITO - Ah ! Muito. Quando ouço o repinicado de um vio­

lão choroso. derreto-me todo. Num stá em mim. Dou a vida por uma serenata. E olhe que isto já me tem feito passar bem maus bocados. Ainda esturdia, erum 1 1 horas da noite (outro tom) - home largue o cachimbo e tome interesse . . . (continuando) - estava eu a cantá na porta de minha décima namorada: "O que estará ela fazendo a estas ho­ras?" e, de repente chó-ó-ó, era o pai, um bodegueiro lá do Oiteiro, que me derramava pur cima uma bacia d'água suja. Desgraçou-me o fardamento todo.

JOHN - Oh, banho porca. BENEDITO - Foi um banho desgraçado. (Outro tom) - Olhe

num vá dá parte de mim a seu doutô chefe, viu? Num inco­mode o home. Ele anda muito ocupado agora . . . E conte comigo vio? Eu agora vou rondá esta zona afictivo. Pode dormir descansado. (Sai à direita).

JOHN (só) - Oh pólícia descarada! . . . (Entram da esquerda Mar­colina, Nicolau e Catarina) .

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Cena VI

John, Marcolino, Nicolau e Catarina

MARCOLINO (para John) - O senhor sabe m'informá s'ist'aqui é o Porto das Jangada? (Outro tom) - Anda pra diante, menino. Olha qui tu cai dento do má ! . . . (Para John ) Por­que me disserum acolá qui'ist'aqui era a Praia de Iracema.

JOHN - All right. Porto Jangada. Praia Iracema ser tudo mes­mo coisa.

MARCOLINO (à parte) - Mas home, qui nação de gente será essa?

JOHN - Senhor nô ser daqui? MARCOLINO - Não senhor. Eu nasci e me criei no sertão. JOHN - Oh, ser matuta! . . . MARCOLINO - E o senhor, pelo que vejo, também não é daqui

não. JOHN - Oh, não; mim non ser cearensa. MARCOLINO - Eu logo vi, pelo engrolado, que o senhô era das

Oropas. JOHN - Yes. Mim ser d'Inglaterra. New Castle, Northumber­

land. MARCOLINO - Ah ! Então é das Inguilaterra? JOHN - All right ! (Canta)

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Yes . . . All right Ser como diz Nobre Inglaterra Minha país.

Loira Albion Torrão fecunda Ser a melhor País da munda.

O reino Unida Nô arrefece Nunca vencida Ela foi. Yes.

Oh patrio minha Grande luzeira És a rainha Do mundo inteira.

O Reino Unida Nô arrefece Nunca vencida Ela foi. Yes. Velho Inglaterra

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Forte na paz Na guerra audaz

Yes.

Vive Inglaterra Predominante Eis a homenagem ardente De afeição constante De tua filho ausente.

Sobre os mares se descerra Sua bela pavilhão Mim amor por Inglaterra Traz aqui no coração.

Vive Inglaterra Predominante Eis a homenagem ardente De afeição constante De tua filho ausente

Yes. Ali right. Ser como diz Nobre Inglaterra Minha país.

Loira Albion Torrão fecunda Ser a melhor País do munda.

MARCOLINO - Sim senhô. JOHN - Senhôrr morra perto Orrôs? MAR.COLINO - Haim? Orrôs? .JOHN - Açude Orrôs. MARCOLINO - Ah. Orós. Não senhor. O Orós fica na freguesia

do Icó. E eu moro é no Cariri. (2) Eu sou lá tabelião e es­crivão do geral. Aquele ali é meu filho Nicolau. Vai pegá no pau furado.

JOHN - Pau furada? MARCOLINO - Sim. Vai ser soldado. (Outro tom) Anda, Nicolau.

Fala com o home. JOHN (apertando-lhe a mão) - como passa senhôrr Nicolá-au? NICOLAU (que tem estado sempre a coçar-se) - Eu vou mais

amiorado das curuba.

(2) Orós, antigo distrito de Icó e hoje município do mesmo nome. criado em 1956, Situa-se na Microrregião de Iguatu.

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JOHN - Curuba?

MARCOLINO - É uma coceira desgraçada. A gente fica que só macaco quando quer chumbo, todo se coçando. (Noutro tom) Est'aqui é minha filha Catarina. Fala com o home Catarina.

JOHN (apertando-lhe a mão) - Mim tem honra cumprimenta senhôrra.

CATARINA - Brigada.

JOHN - Oh, vida sertão ser muita seováge ! . . .

MARCOLINO - Seovage, não senhor. É melhó de que está da cidade.

JOHN - Oh, nô, nô ser póssible.

MAROOLINO (canta) - Pois está muito enganado.

O senhor creia Sim senhor; não é desar Lá nos matos se morar, Onde a vida é sem igual

Pois lá n'aldeia Tem as flores mais perfume São mais puros os costumes Do que aqui na capital,

Há mais pureza Mais fraqueza e lealdade Muito mais tranqüilidade No viver lá do sertão.

Há mais firmeza Mais nobreza e correção Mais amor no coração Da modesta sertaneja.

CORO -

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Outro não há Oh, não

Como o sertão do Ceará (Bis)

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CATARINA­Quanta alegria O coração da gente encerra Quando vem raiando o dia No sertão de minha terra!

E a passarada A gorgeiar pela campina Vai saudando a madrugada Que no céu se descortina.

Há mais pureza Mais franqueza e lealdade Muito mais tranqüilidade

No viver lá do sertão

Na mais firmeza Mais nobreza e correção Mais amor no coração Da modesta sertanej a.

CORO -Outro não há Oh, não! Como o sertão

do Ceará lBis)

NICOLAU -Quantas beijoca Eu num dei na Mariquinha Quando rapa as mandioca Lá na casa de farinha !

Ou que saudade Traga aqui no coração Eu não troco esta cidade Pela vida do sertão.

Há mais pureza Mais franqueza e lealdade Muito mais tranqüilidade No viver lá do sertão !

Há mais firmeza Mais nobreza e correção Mais amor no coração Da modesta sertaneja.

CORO -

Outro não há Oh, não,

Como o sertão do Ceará (Bis)

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MARCOLINO - Pois é isto, seu inguilez, a vida lá no sertão, não é tão feia como se pinta.

JOHN - Senhôrr veio passear Fortaleza? MARCOLINO - Vim visitar uma cunhada que há muitos anos

não vejo. Viúva de meu mano Ciriáco. Ela mora aqui no Porto da Jangada. O senhor niio conhece ela não? (Gesto negativo de John) Desidéria das Dores Jacarandá.

JOHN - Nô. Mim non conhece esse pessoa. (Xandoca aparece à porta) Aquele menina lá pode informá senhôrr. (Sai) -Good bye.

Cena VII

Os mesmos e Xandoca

MARCOLINO - Menina ! Chega cá. (Xandoca aproxima-se) Você sabe dizê onde mora minha cunhada?

XANDOCA - Sua cunhada? Não senhor. MARCOLINO - Desidéria das Dores Jacarandá. XANDOCA (admirada) - O que? É minha madrinha ! ? Mora

ali (Aponta esquerda) . MARCOLINO - Você é a menina qui a Desidéria cria? XANDOCA - Sou. E o senhor é o coronel Marcolino? MARCOLINO - Inteirinho. Olha, Catarina, essa é a Xandoca. XANDOCA (estendendo-lhe a mão) - Como se foi de viagem? CATARINA - Bem. Obrigada. XANDOCA - E este, quem é? CATARINA - É meu mano, Nicolau. XANDOCA - Ah ! É o Nicolau. Como tem passado? (Aperta-lhe

a mão) . NICOLAU - Assim. Assim cumo a carne das apá. MARCOLINO - A Desidéria está em casa? XANDOCA - Está. Ela se acha há dois meses doente. MARCOLINO - E a Albertina? XANDOCA - A Albertina? Está na pândega. Foi a Mocuripe com

uma corj a de piratas. MARCOLINO - Corj a de piratas? XANDOCA - Sim. Ua manada de coiós, uma súcia de namora-

dos. MARCOLINO - Vigem Maria ! Catarina ! CATARINA - Inhô. MARCOLINO - Tapa os uvido, minha filha. NICOLAU (tapas os ouvidos) - Eu já tapei os meus. CATARINA - Inhô sim, papai. (Tapa os ouvidos) . MARCOLINO (mãos na cabeça) - Qui iducação, meu Deus ! Va-

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mo lá vê a Desidéria. Entra, Catarina. Entra Nicolau. (Es­tes entram) . (Ouvem-se gritos e gargalhadas)

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XANDOCA - Olhe ! A Albertina aí vem com os piratas. Dê-me li­cença. Vou entrar, porque não gosto de vê essas coisas . . . (Entra) .

MARCOLINO - Faz bem, menina. Obra como se tivesse juízo. (Entra Albertina, Garibaldi, Gonçalo, Agripino e Políbio, às gargalhadas e aos vivas) .

Cena VIII

Albertina, Garibaldi, Gonçalo, Agripino, Políbio e Marcolino

AGRIPINO (ao fundo despede-se de Albertina) - Adeus, beleza. (Sai esquerda) .

GONÇALO - Até breve, meu anjo. (Sai esquerda) . POLíBIO - Adeus coração. (Sai esquerda) . GARIBALDI (à Albertina) - Preciso falar-te a sós. Volto já. (Sai

esquerda) . ALBERTINA (vendo Marcelino perto à casa) - Quem será aquele

figurão exótico? ! (Aproximando-se) É alguma conta? Volte depois.

MARCOLINO - Alguma conta? Pois tu não me reconheceste não, Albertina?

ALBERTINA (admirada) - Meu tio ! . . . É o senhor? Queira per-doar-me. Mas que agradável surpresa ! Sua benção.

MARCOLINO - Deu te faça feliz. ALBERTINA - Vem sem nos avisar . . . MARCOLINO - Pois eu passei um telegrama em Iguatu. (3) ALBERTINA - Não recebemos . . . Minha prima também veio? MARCOLINO - Veio. A Catarina e o Nicolau. (Noutro tom) .

Mas Albertina antes qui m'isqueça : pois tu tens corage de andá na cumpanhia daqueles tipinhos?

ALBERTINA - E o que tem isto, meu tio? MARCOLINO - O qui tem é qui não é decente. Ora tu, de carola

no meio daquela cansoada ! . . . Aquele magote de vadios ! . . . ALBERTINA - Vadios não, meu tio. São todos rapazes muito

distintos. MARCOLINO - Olha qui esse negócio de tu andares acima e

abaixo com aquela cambada de coiós . . . ALBERTINA (interrompendo-o) - Eu até saio pouco meu tio.

Só mesmo pela manhã e à noite. O resto do dia, passo a ler.

MARCOLINO - Ora vejam qui iducação tua mãe te deu ! . . . Então é somente de manhã e à noite? !

ALBERTINA - Apenasmente. Pela manhã, um passeiozinho à beira-mar; à noite o cinema.

(3) Iguatu, município cearense.

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MARCOLINO - E namoros, muitos, não? ALBERTINA - Não senhor. Poucos. MARCOLINO - Bonito ! . .. Sim senhor ! É u'a vida mesmo ino­

cente esta que levas! De manhã, um passeiozinho nas praias; no decorrer do dia, um romancizim pr'intretê ; de noite, um cinematograzim. E, então, antes, durante, depois e nos interval, um namorozim também pr'intretê. Fica sa­bendo minha sobrinha, qui a Musa populá, na sua alta sa­bedoria diz o seguinte: "A mulhé e a galinha Não se deixa passiá. A galinha o bicho come E a mulhé . . . dá qui falá."

ALBERTINA - Isto são velharias, meu tio. Já viu a mamãe? MARCOLINO - Inda não. ALBERTINA - Tem estado tão doente, coitadinha ! . . . MARCOLINO - É . . . Ela na cama, e tu na folia . . . ALBERTINA - A alegria é a higiene d'alma, e tristezas não pa-

gam dívidas. (Garibaldi aparece ao fundo e faz-lhe sinais) . Entre meu tio. Mamãe vai ficar contentíssima. Entre. Eu já vou lá ter. (Marcolino entra) . Leve a sombrinha.

Cena IX

Albertina e Garibaldi

(Albertina espreita à esquerda e Garibaldi à direita. Depois vão ao meio da cena e cantam) . GARIBALDI -

Sós, enfim, amor Meu queribim taful Olha a Natureza,

ó flor, A nossos pés o mar, Por docel o firmamento azul!

ALBERTINA -

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É mesmo de encantar Bendita solidão Doce é gozar a vida,

então, Ouvindo o mar, assim A embalar o nosso coração.

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GARIBALDI -Vê, ó flor gentil Como o mar se arqueia Num rugir febril. Assim, terna sereia De amor ardente Meu peito anseia ! . . .

ALBERTINA -Tuas juras falazes Não são capazes De me convencer Estas juras que fazes São muito fáceis De se esquecer

GARIBALDI -Sós, enfim, amor Meu queribim taful Olha a natureza,

ó flor, A nossos pés, o mar. Por doce! o firmamento azul.

ALBERTINA -É mesmo de encantar Bendita solidão. Doce é gozar a vida,

então, Ouvindo o mar assim A embalar o nosso coração.

GARIBALDI -Ouves

Um soturno rumor O meu peito agitar? É o coração A palpitar De infindo amor Flor! . . .

AMBOS -Assim, à beira-mar Como é doce gozar Este aconchego

Encantador! . . . GARIBALDI - Quando me vejo a sós contigo, Albertina, meu

coração tem ímpetos de chutar um gol, mas a tua frieza deixa-me off-side, e eu faço um corner.

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ALBERTINA - É que eu sei, meu futebolista das dúzias, que és inconstante como um colibri, a borboletar de flor em flor . . .

GARIBALDI - E tu podes falar de mim? Tu Albertina! Que és semelhante à rosa dos ventos, a revolutear, doidamente, em todas as direções, à mercê da viração? !

ALBERTINA - Simplesmente porque ainda não encontrei o ideal dos meus sonhos.

GARIBALDI - Ideal de sonhos quiméricos ! Irrealizável, de certo. ALBERTINA - Irrealizável, não. O meu ideal corporifica-se num

homem de compleição robusta, destemeroso, arroj ado . . . GARIBALDI (interrompendo-a) - Lisboa? ALBERTINA - Não me interrompas . . . (Continuando) Num ho­

mem enfim capaz dos mais arriscados feitos, das mais inau­ditas temeridades . . .

GARIBALDI - Deixas-te levar nas asas diafanas da fantasia! . . . Vives com a imaginação repleta dos lances inconcebíveis, que lês nos romances de aventuras, ou a que assistes nos filmes americanos.

ALBERTINA - Ah ! . .. Como eu adoro os homens ousados, de âni­mo intrépido, como Pinto Martins. ( 4)

GARIBALDI (interrompendo-a) - Gago Coutinho e Sacadura Cabral.

ALBERTINA - Terias porventura, a coragem inaudita de arre­batar-me num avião, para as planuras infinitas do espaço? (Imita o bater de asas) .

GARIBALDI - Lá isso não ! Confesso. Esse negócio lá pelas altv·· ras, é sempre perigoso. Mas olha que num fordezinho a vinte mil réis a hora . . .

ALBERTINA - Covarde ! GARIBALDI - Covarde, não. O teu Pinto Martins tinha medo de

andar de automóvel! ALBERTINA - Pura invenção dos jornais ... E tu és um poltrão.

Até custa crer, que um herói como Pinto Martins haja nascido nesta terra, onde a pusilanimidade campeia . . .

GARIBALDI - Safa! Esta é forte. Olha, minha filha, toma tento em ti, senão, o nervosismo levar-te-á, fatalmente, à chacara, de que o Dr. Odorico de Moraes é diretor, na Porangaba.

ALBERTINA - No hospício, tu é que devias estar. Tu e todos os poltrões do teu estôfo.

GARIBALDI - Ouve-me com calma, espiritual confreira. Tu és um caso mórbido, dígno de estudo. Vives à feição das per­sonagens que figuram nos romances idiotas que lês e que te fazem vibrar a emotividade. Ora, isto é uma neurose,

(4) Pinto Martins, famoso aviador cearense, primeiro brasileiro a fazer, sem escalas, o Vôo Nova York-Rio de Janeiro. em 1924.

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bem caracterizada. Ao sabor de tua imaginação, facilmen­te impressionável, se, às vezes te julgas a heroína interne­rata de aventuras fantásticas, inverossímeis; vezes há em que te crês a fada adormecida no bosque, à espera do prín­cipe, que a desencante, ou a chapeuzinho vermelho, à ca­ta do lobo, que a devore.

ALBERTINA - O teu espírito, afeito a rastejar como o cara­col, não pode ter a percepção precisa para compreender as inspirações do que é levado e belo. As tuas zombarias não me alcançam, Garibaldi. Estou muito acima de ti, mas muito acima.

GARIBALDI - De fato muito acima. O meu espírito, este nunca me abandona; jamais se libra nos páramos etéreos. Ao pas­so que o teu viaj a de aeroplano, a pairar, indolentemente, (imitando-a) pelas planuras infinitas do espaço . . .

ALBERTINA - Causam-me tédio as tuas graçolas néscias. És in-to-le-rá-vel.

GARIBALDI - Tem paciência e ouve-me. Antigamente, o teu ideal consubstanciou-se num espadachim terrível e faça­nhudo. Foi isto quando leste o "Buridan". Leste, depois "O Caçador dos Arkans", e o teu ideal transmudou-se em um cow-boy, escanchado sobre o dorso de um animal bravio, a percorrer, à desfilada, as planícies do farwest. Hoje, o cow boy cedeu lugar ao aeronauta. Muito bem. Melhoraste de sorte; não há dúvida. Agora, tu vais subindo . . . subindo, e praza aos céus, que o teu hidroavião, ou cousa que valha, não se despenque das alturas, ou que, transpondo as nu­vens, não te leve, beatificamente, às regiões ceruleas, ou melhor, não te conduza, vitalinamente, ao caritó.

ALBERTINA - A paciência tem limites. Estais no propósito de me exasperar?

GARIBALDI - Absolutamente.

ALBERTINA- Queres que rompa contigo de uma vez, definitiva­mente?

GARIBALDI - Ainda menos. Quero, apenas . . . clinicar-te, procu­rando, a todo transe. retirar de tua mente doentia (gesto de protesto de Albertina) - (Deixa passar a expressão) (Con­tinuando) . . . estas idéias estapafúrdias, que te dão volta ao miôlo. (Pausa, voltando-se) Olha: menos prejudicial que a tua, é a mania de tua mãe, que . . .

ALBERTINA (bruscamente interrompendo-o) - Não admito que metas minha mãe em discussão.

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.j

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GARIBALDI - Calma.. . Eu não a estou metendo em discussão. Estou dizendo, apenas, que menos prejudicial que a tua, é a mania característica de tua mãe, que, mesmo doente, vive, dia e noite agarrada ao Almanaque das Senhoras: (arremedando-a) A mulher. . . do vigário. . . é uma ave -Duas e duas. A mulher - Sara; do vigário-Cura. Concei­to: Ave. Sacadura ou - Saracura! (Ri) .

Cena X

Albertina, Garibaldi, Marcolino, Catarina, depois John e Benedito

MARCOLINO (dentro) - Ou Albertina! Albertina ! (Albertina e Garibaldi assustam-se e fazem sinal de silêncio com o dedo sobre os lábios) - Onde tu estais, mulher? (Entram Marcolino e Catarina)

ALBERTINA - Estou aqui, meu tio. (Apresentando-o) - Senhor Garibaldi, apresento-lhe meu tio . . .

MARCOLINO (interrompendo-a) - Marcolino Gavião Jacarandá, tabelião e escrivão do geral no Cariri.

GARIBALDI - Tabelião e escrivão do geral? ! . .. Toque. (Aperta­-lhe a mão) - Satisfação em conhecê-lo. Garibaldi Leão Bravo, maior de vinte e um anos, vacinado, reservista do Exército - classe de 92, - futebolista de profissão, empre­gado público nas horas vagas, e espiritual confrade.

MARCO LI NO (à parte) - Aos costumes disse nada. ALBERTINA (apresentando) - Minha prima Catarina. GARIBALDI - Sua prima? ! Toque. (Apertando-lhe a mão)

Muita honra. Estou realmente encantado. (Solta-lhe a mão) .

CATARINA - Brigada. GARffiALDI - Brigado? ! . .. Toque de novo. (Apertando-lhe a

mão) - Beaucoup serré. CATARINA (sacudindo a mão) - Credo! . . . GARIBALDI - Coronel, o senhor devia inscrever aqui a senho-

rita no primeiro concurso que houvesse. MARCOLINO - Concurso? ! E pra que? GARIBALDI - Para qualquer cargo. MARCOLINO - Qualqué cargo? E como pode sê isso, homem? GARIBALDI - Hoje em dia, a mulher pode aspirar a qualquer

função pública. ALBERTINA - Já passou, felizmente, o tempo em que nós, mu­

lheres, nos limitávamos a desempenhar, na sociedade, o papel a que nos reduzia o egoísmo dos homens.

MARCOLINO - Vitos os autos, as mulheres já podem sê empre­gadas públicas?

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ALBERTINA - Já. MARCOLINO - Até tabelionas? GARIBALDI - Até desembargadoras. Estamos assistindo, todos

os dias, à invasão das profissões masculinas pelas mulhe­res.

MARCOLINO - Homem, pois havia de sê engraçado u'a tabeliona no seu estado interessante !

GARIBALDI - Estado interessante, lá dela. MARCOLINO (continuando) - Assim no oitavo mês de incuba­

ção. . . (Garibaldi ri) . CATARINA - Pa-pai ! . . . lY.IARCOLINO - Pa-pai O que foi? Eu terei dito alguma coisa

descabelada? GARIBALDI - Pelo contrário, coronel. MARCOLINO - Pois homem, pur esse teor e forma, daqui há

pouco os empregos não chegam mais pra gente de calça. E eu acho que nós acabamos é na cozinha, ou então feit'a­ma seca; qui de leite também não é possíve . . .

CATARINA - Papai! GARIBALDI (sorrindo) - O que se há de fazer, coronel? É a

marcha natural das cousas. Dentro em breve deixará de haver lugar para nós homens. As repartições públicas fe­char-nos-ão as portas.

MARCOLINO - Mais a minha Catarina é muito curta d'inteli­gência. Mal sabe ler, e, então, escrever, é aquela meleca.

CATARINA - Pa-pai ! . . . MARCOLINO (arremedando-a) - Pa-pai ! . . . (Noutro tom) - O

que foi? E não é isato o que estou dizendo? GARIBALDI - Isto é o menos, coronel. O senhor está em condi­

ções de pagar professores para instruí-la. Pelos modernos métodos pedagógicos, tudo se aprende, hoje em poucos dias. E, demais, qual o examinador desalmado que teria a petu­lância de reprovar uma senhorita tão gentil? ! (Marcolino distrai-se a pensar e Garibaldi pega no queixo de Catarina que o repele) .

ALBERTINA (beliscando-o) - Descarado! GARIBALDI (forte) -Aiii ! . . . MARCOLINO (voltando-se) - O que foi? GARIBALDI (coçando o lugar beliscado) - Foi. . . (noutro tom)

-nada. (Declamando) - A mulher formosa - disse o Conselheiro Acácio - é como a bandeira nacional em uma parada: todos os homens lhe tiram o chapéu (descobre-se) .

MARCOLINO - Homem, se eu conseguisse fazer da Catarina escrevente juramentada do meu cartório, era um achado, era um pão com dois pedaços.

ALBERTINA - Pode, meu tio.

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GARIBALDI - É. No Rio já foi nomeada uma. MARCOLINO - Catarina, tu qué sê escrevente juramentada? CARATINA - Quero, inhô sim. GARIBALDI - Ela está por tudo. Escrevente juramentada, guar­

da da alfândega, fiscal do selo adesivo, fiscal do consumo. MARCOLINO (interrompendo-o) - Não. Lá isso não. Minha fi­

lha fiscal do selo adesivo e fiscal do consumo, não. Esse ne­gócio de andá verificando se as inscrita estão em dia . . .

ALBERTINA - Resolva-se, meu tio. Olhe: vou, hoje mesmo, man­dar anúncio para os jornais, chamando professores. É mais conveniente que o ensino seja ministrado em casa.

MARCOLINO - Pois homem, declaro im público e raso, que es­tou resolvido.

GARIBALDI - Está resolvido? Realmente? (Gesto afirmativo de Marcolino) - Toque ! (Aperta-lhe a mão) .

MARCOLINO (à parte) - Ou homemzim tocadô! . . . É só toque e mais toque ! . . . (Alto, noutro tom) - Pois é isto. Vou metê a Catarina in concurso, e arranj á um lugarzim d'ama seca pro Nicolau. (Chamando) - Nicolau ! Ou Nicolau!

NICOLAU (dentro) - ôi? MARCOLINO - Anda cá. (Nicolau aparece) . GARIBALDI (vendo-o) - Quem é esse Nicolau? ALBERTINA - É meu primo. GARIBALDI - É seu primo? ! (Para Nicolau) - Toque! (Aper­

tando-lhe a mão) - Muito prazer ! . . . MARCOLINO (à parte) - Ou homemzim danado pra tocá. Não

descança a munheca. (Alto, para Nicolau) - Ou Nicolau. tu qué sê ama de leite.

CATARINA - Pa-pai ! MARCOLINO - Ou, quero dizer - ama seca? NICOLAU - Ama seca? E qui dianga é isso? MARCOLINO - Ou homão besta! Ama seca pra cuidá de menino,

mudá os cueiros, dá a mamadeira . . . NICOLAU (espantado) - Quero inhor não. Eu nun sou muié. MARCOLINO - Isso nem pra ama seca serve. GARIBALDI - É das escrituras : bem-aventurados os pobres de

espírito ! MARCOLINO (para Nicolau) - Pois fica sabendo, meu idiota,

que os homens é qui vão fazê agora, os trabalhos das mu­lheres. NICOLAU - Voute !

MARCOLINO - E as mulheres vão fazê os trabalhos dos homens. NICOLAU - Há de se défíci (Ri) .

(Míster John aparece da D.) GARIBALDI - Míster Robertson, já conhece aqui o coronel Mar­

colina Gavião Jacarandá? (Xandoca aparece à porta e ao F. Benedito)

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JOHN - Oh yes. Mim já teve esse honra. GARIBALDI - É um admirável espécimem da antropofagia sob

o ponto de vista arqueológico. MARCOLINO - São favores . . . Eu não mereço . . . GARIBALDI - Estive explicando aqui ao coronel, que a mulher,

com a transformação radical, que se tem operado no mun­do, está liberta de velhos preconceitos sociais, podendo, ho­j e, alentar n'alma as mais amplas aspirações, e competir conosco em todas as esferas da atividade humana.

ALBERTINA - Bravos ! GARIBALDI (continuando) - Porque a mulher . . . BENEDITO (interrompendo-o) - Foi a coisa melhor qui Deus

já pôs no mundo! JOHN - All right. GARIBALDI - Viva a mulher! TODOS - Viva! (Cantam) VOZES MASCULINAS -

Na transformação universal A mulher - suprema perfeição -

Numa apoteose Bela e triunfal

Teve a sua Redenção. TODOS -

Na transformação universal A mulher - suprema perfeição -

Numa apoteose triunfal

Teve, enfim, a sua Redenção. VOZES MASCULINAS -

A mulher é um ente adorado Que nos faz esquecer os pesares É um anjo abençoado A perfumar os nossos lares.

VOZES FEMININAS -O amor da mulher é capaz De fazer esquecer os pesares O amor.

VOZES MASCULINAS -O amor.

VOZES FEMININAS -Da mulher

VOZES MASCULINAS ­Da mulher

TODOS -Esquecer os prazeres nos faz.

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SEGUNDO ATO

O MESMO CENARIO. NO DIA SEGUINTE AO EM QUE SE PASSA A AÇAO DO PRIMEIRO

Cena I

Albertina e Garibaldi

(Ao subir o pano, Albertina lê sentada à porta. Garibaldi entra do fundo, pé ante pé e cobre-lhe os olhos com as mãos) .

ALBERTINA - (sobressaltada) - Ui ! . . . ( Noutro tom) - Ah, és tu, Garibaldi?

GARIBALDI (soltando-a) - Reconheceste-me? ALBERTINA - Que susto me pregaste ! Avalia que esta v a agora

mesmo assistindo ao desenrolar de uma cena apavorante. Uma quadrilha de salteadores apodera-se de uma pobre moça, numa estrada deserta. Amordaçam-na, e vão condu­zí-la à sua caverna, quando de repente . . .

GARIBALDI (interrompendo-a) - Surge um salvador desteme­roso. Pei ! Pei ! Pei ! Mata ou destroça todos os bandidos, arrancando-lhes das garras a pobrezinha, que lhe jura, in­continenti, e eterno amor . . .

ALBERTINA - É isto mesmo. Já leste ! este livro? GARIBALDI - Eu não. Mas estas peripécias de romances termi­

nam sempre assim. ALBERTINA - O que andas fazendo por aqui a estas horas? GARIBALDI - Vim ver-te, e ao mesmo tempo propor-me para

professor de tua prima. ALBERTINA - Professor? Tu? Estais brincando . . . GARIBALDI - Nunca falei tão sério, na minha vida. ALBERTINA - E tu sabes alguma coisa para ensinar? GARIBALDI - Naturalmente. Que juízo fazes então de mim? ALBERTINA - Já lecionaste alguma Matéria? GARIBALDI - Não (com pose) - Agora é que me vou iniciar no

magistério. ALBERTINA - Ora que lembrança! E o que pretendes ensinar?

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GARIBALDI - Tudo. Português, Aritmética, Francês (noutro tom) . . . eu tenho, lá em casa, uma gramática velha de Hal­bout. (Mudando de entonação) - O futebol deixa-me tem­po suficiente e preciso ganhar estes cobres. Além disso, que magnífico pretexto para estar ao pé de ti, todos os dias . . . Porque eu faço questão que assistas às lições.

ALBERTINA - Ah! Agrada-te isto? GARIBALDI - Estupendamente. E é até estranhável que o per­

guntes, quando perfeitamente sabes a paixão fenomenal, que me inspiraste . . .

ALBERTINA - Ih ! . . . Fe-no-menal! Caramba! Mas eu é que nunca me deixei iludir por tuas lábias madrigalescas. E fica desde já prevenido : vou ser pedida hoje em casamento.

GARIBALDO (surpreso) - Pedida em casamento? Tu? ALBERTINA - Oleré ! GARIBALDI - Hoje? ALBERTINA - Hoje. E é para casar dentro de um mês. GARIBALDI - Estais a te di:vertir comigo . . . ALBERTINA - Não acreditas? Pergunta a meu tio. Mamãe já

o autorizou a resolver o caso, a meu contento. GARIBALDI - Mas isto é inacreditável, é assombroso, é fantás-

tico ! . . . (Noutro tom) - E quem é o gajo? ALBERTINA - Gajo, não. Alto lá GARIBALDI - Seu nome? É algum aeronauta? ALBERTINA - Vou dizer-te. E olha que é uma grande prova de

confiança que te vou dar. Nem a meu tio, nem mesmo a ma­mãe, eu o quis dizer. Disse-lhe apenas, que era um senhor distintíssimo, sem revelar, porém, o nome. Quis preparar­-lhe uma surpresa.

GARIBALDI - Mas vamos lá. Dize. ALBERTINA - É míster John Robertson Taylor. Yes. GARIBALDI - Oh! Míster John Robertson ! ! O inglês ! . . . ALBERTINA - Fez-me ontem um bilhetinho. (Tirando-o de en-

tre as páginas do livro) - Ei-lo aqui. GARIBALDI - Deixa ver. (Toma-o e lê) "Menina. Mim viu me­

nina hôoje, e fica Ioga apaixonada . . . ALBERTINA (interrompendo-o) - Ficou logo apaixonado, viu? GARIBALDI (continuando) "Mim ser solteira. Si menina quérr

cása Míster John, manda dizêrr portadôrr . . . ALBERTINA (interrompendo-o) - Mandei dizer imediatamente,

que viesse entender-se com meu tio. GARIBALDI (continuando) - "Im poucas dias . . . negócio concluí­

da" (Amarrota o bilhete) . ALBERTINA - Oh! Adoro a excentricidade inglesa! . . . GARIBALDI (à parte) - Fui vencido pelo escore de lxO.

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ALBERTINA - Avalia o pasmo de meu tio, quando Míster John solenemente apresentar-se para solicitar a minha mão.

GARIBALDI - E tu casas com ele por amor? ALBERTINA - Por amor, por amizade, por admiração, por en­

tusiasmo, etc. etc. GARIBALDI - É falso. Tu te casas, apenas, pelo etc. etc., que

é com o que se compram os melões. Soubeste, naturalmen­te, que o inglês é baludo e . . .

ALBERTINA (interrompendo-o) - Não admito que profanes os meus sentimentos íntimos.

GARIBALDI - Mas tu devias pertencer-me, por direito de anti­güidade . . . Trocares-me por um homem encanecido . . .

ALBERTINA - Não é tão velho como dizes. Que idade lhe dás, então?

GARIBALDI - Não te posso dizer ao certo, porque ainda não lhe P.xaminei os dentes . . .

ALBERTINA - Que diferença julgas haver entre tu e ele? GARIBALDI - A mesma que existe entre o bonde de burros e o

elétrico. ALBERTINA - O despeito obscureceu-te as idéias. GARIBALDI - Estou despeitado sim. Para que negar? E o des-

peito é capaz de tudo, sabes? ALBERTINA (rindo) - Rio-me de tuas ameaças . . . GARIBALDI - Não devias abandonar o meu afeto ! . . . ALBERTINA - Pois sim! (Canta)

Casar-me vou, dentro de um mês. Fica sabendo, ó meu rapaz.

GARIBALDI -Meu desalento é sem igual. Que belo sonho se desfaz! . . .

ALBERTINA -Ficar não quero vitalina Nada me peças, que é debalde

GARIBALDI -Ai, Albertina . . . tina . . . tina! . . .

ALBERTINA (Arremedando-o) -Ai, Garibaldi. . . baldi. . . baldi. . .

GARIBALDI -A v aliar não podes tu Teu desamor que mal me faz

ALBERTINA -

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Casar me vou dentro de um mês. Já resolvi; não volto atrás.

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GARIBALDI -Ficar solteiro é minha sina Não tentarei ; pois é debalde! . . . Ai, Albertina. . . tina... tina! . . .

ALBERTINA -Ai, Garibaldi. . . baldi. . . baldi ! . . . (Nicolau entra antes de findar o canto)

Cena II

Albertina. Garibaldi e Nicolau

NICOLAU (rindo alvarmente) - Eh ! Eh ! Eh ! ALBERTINA (que se tem sobressaltado) - Ah ! É o Nicolau. (Para

Garibaldi) Vou chamar meu tio para te entenderes com ele, relativamente ao teu . . . professorado. (Entra em casa) .

NICOLAU (depois que Albertina sai) - Tava bom aquilo, hein? (Cantarolando) - Ai, Albertina . . . tina . . . tina . . . Ai, Garibal­di.. . baldi... baldi . . .

GARIBALDI (sério) - Tu és um imbecil. NICOLAU - Um imbecil? ! Eu nem sei.. . Eu acho que sou. t_Nou-

tro tom) mas tava bonzão . . . Era só . . . tina para cá e balde pra lá. (Cantarolando) Ai, Albertina . . . tina . . . tina . . . Ai. Ga-ribaldi. . . baldi. . . baldi . . .

GARIBALDI - Contigo já não poderia ela cantar, meu palerma. NICOLAU - E pruque rezão? Você será mió do que eu? GARIBALDI - Avalia tu: Ai, Albertina ... tina . . . tina ... Ai, Nico-

lau.. . au. . . au.. . au ... NICOLAU - Eh ! Eh! Eh! au .. . au ... au . . . GARIBALDI - Ficaria o canto muito acachorrado. (Marcolino

aparece)

Cena III

Os mesmos e Marcolino

MARCOLINO - Olá, seu Garibaldi. Deseja falá cumigo? (Noutro tom, para Nicolau) - Vai lã pra dentro, Nicolau.

GARIBALDI - Desejo, coronel. NICOLAU (dirige-se à casa cantando) - Ai, Albertina . . . tina . . .

tina . . . Ai, Garibaldi.. . baldi.. . baldi.. . (entra) . GARIBALDI - Coronel, venho propor-me para professor de sua

filha. MARCOLINO - O sinhô? ! Mas eu queria era· um professô jâ ve­

lho, qui num viesse me namorá a menina . . .

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GARIBALDI - Não tem, então, confiança em mim, coronel? MARCOLINO - Homem, eu nem sei o que le diga . . . GARIBALDI - Eu sou um moço amadurecido pelos revezes da

vida, coronel. Amo a todas as mulheres bonitas, confesso. mas platonicamente. Amo a todas em geral e a nenhuma em particular. Dividir meu coração, por todas aquelas que adoro, eu só conseguiria, com o auxílio do cálculo infini­tesimal. O que eu aprecio em extremo é o flirt. Ah ! . .. O flirt!

MARCOLINO - E o que diabo vem a sê isso? I<; negócio de comê? . . . GARIBALDI - Não, coronel. Pelo contrário. O flirt, admitido hoje,

em todas as sociedades civilizadas, é um entretenimento, sem maiores conseqüências. É ter-se com alguém atenções, sem intenções, compreende? Pode-se amar platonicamente, duas ou mais mulheres, ao mesmo tempo.

MARCOLINO - Homem, iss'assim é namorá pur partidas dobra­das!

GARIBALDI - É isto mesmo, coronel, porém de um modo todo particular, todo espiritual e casto. O meu feitio é este : -espiritualmente casto. Hei de morrer solteiro, reservando o meu último flirt para a morte, - o eterno bem, o esque­cimento.

MARCOLINO - Então não pretende casá? GARIBALDI - Jamais. O casamento para mim é um ato essen­

cialmente trágico. Quero ficar vitalina. MARCOLINO - O que? Qué mudá de sexo? Vitalina? GARIBALDI - Sim, coronel. solteirão. A pintar os cabelos para

encobrir as cans, e a caiar o rosto para disfarçar as rugas. (Pose) As vitalinas, no seu estiolamento, são como as flo­res do deserto, que fenecem, emurchecidas, sem que tenham sido respiradas. (Noutro tim) - Assim falou Zaratustra.

MARCOLINO - Quem? GARIBALDI - Zaratustra, o meu grande mestre na vida. - Es­

tou só no mundo e assim quero viver até a morte. A última parenta que me restava deu um passo em falso e . . . tresma­lhou-se.

MARCOLINO - Hum . . . Rum! GARIBALDI - Pertenço a uma família tradicionalmente celiba­

tária. Meu pai, meu avô, todos os meus ascendentes, enfim, foram enterrados de palma e capela.

MARCOLINO - As informações qui me dá são boas. Agora . . . agora vamos vê, na prática, se é assim mesmo . . .

GARIBALDI - Aceita, então, os meus oferecimentos? Posso co­meçar as aulas?

MARCOLINO - Pode. GARIBALDI - Ah, Coronel. . . Toque! (Apertando-lhe a mão) -- O

senhor é um homem burlescamente homérico ! . . . (Mudan-

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do de entonação) Ah, ia me esquecendo, então a Albertina vai ser pedida hoje em casamento.

MARCOLINO - É verdade. A mãe já me autorizou a receber o candidato, cujo nome, aliás, minha sobrinha se recusou, obstinadamente, a revelar; dizendo qui'era u'a surpresa. De­ve sê algum pintalegrete almofadinha . . .

GARIBALDI - Naturalmente. O senhor já deve ter notado que Albertina (' um espírito leviano, frívolo, superficial, roma­nescamente fútil. É um cérebro de criança, num crânio de mulher. (Aparecem Albertina e Catarina) .

Cena IV Garibaldi, Albertina, Marcolino e Catarina

GARIBALDI (vendo Albertina) - Albertina, estava, agora mes­mo, a elogiar-te, enumerando os predicados morais que te exornam.

ALBERTINA - Obrig&díssima. MARCOLINO - Catarina, este vai sê o teu professô. (Para Ga­

ribaldi) E agora, me dê licença, seu Garibaldi, qui eu vou acabá de redigi a iscritura de venda dessa casa. (Aponta esquerda) .

GARIBALDI - Vai ser vendida? ALBERTINA - Vai. Já até anunciamos nos jornais. Estou me

aborrecendo disto aqui. E mesmo vou casar-me . . . GARIBALDI - E ainda não apareceram pretendentes? MARCOLINO - Ainda não. GARIBALDI - Admira. MARCOLINO - Mas eu vou logo ageitando a iscritura prá diantá

serviço. (Entra em casa) . GARIBALDI (depois que o velho sai) - Vou ter a suprema ven­

tura de ser o professor da criaturinha mais linda que o céu cobre. (Catarina baixa os olhos, acanhadamente) .

ALBERTINA (repreensiva) - O que é isto, Garibaldi ! . . . GARIBALDI - Deixa-me (declamando) Os seus olhos (noutro

tom) levante os olhos por favor. (Catarina olha-o) Belo ! (continuando) Os seus olhos assemelham-se à duas estre­las, escamoteadas do firmamento azul. Brilham, lumino­samente, como dois holofotes de navios de guerra.

ALBERTINA (interrompendo-o) - Garibaldi ! . . . GARIBALDI - Deixa-me ! (Continuando) - A sua cútis é tão ve­

ludosa e macia como a consciência de uma criancinha, ador­mecida em braços maternais . . .

ALBERTINA - Que disparates são estes, Garibaldi? GARIBALDI - Deixa-me em paz. (A parte) - Está despeitada! ALBERTINA - Queres que vá chamar meu tio para assistir à li-

ção?

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GARIBALDI - Não. Manda antes chamar o inglês, e vai te di­vertindo aí com ele. (Continuando) - Quero ouvir o tim­bre argentino de tua voz, - ó sedutora patativa das selvas - que há de ciciar-me aos ouvidos como a aura perfumada o manacá sertanejo. (Canta) . Os teus olhos - faróis que iluminam Com intenso e suave clarão, Têm feitiço, de pronto fascinam Inspirando a mais louca paixão.

CATARINA -Ai seu moço, num sou feiticeira O sinhô tá, de certo, a troçá Sou, apenas, modesta roceira Nunca tive feitiço no olhá.

GARIBALDI -Tem, tem, tem,

Tem feitiço no olhar Quando tu me o lanças

Fico assim A palpitar. Amor !

Tem, tem, tem, Tem feitiço o teu olhar

Tu estás decerto A me enfeitiçar! . . .

Matutinha grácil e formosa, Flor silvestre de raro primor. Acredita que a mais linda rosa Tem ciúmes de ti, meu amor! . . .

CATARINA -Inlogio tão grande, seu moço, Eu tou certa de num merecê, Chega sinto um profundo alvoroço Qui me põe todo o corpo a tremê.

GARIBALDI -

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Tem, tem, tem, Tem feitiço o teu olh�r Quando tu me o lanças

Fico assim A palpitar! . . .

Amor! . . .

Tem, tem, tem Tem feitiço o teu olhar

Tu estás decerto a me enfeitiçar.

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Cena V

Os mesmos e Nicolau

NICOLAU (cantarolando) - Catarina, meu pai mandou te cha­má.

CATARINA - Cum licença. (Dirige-se à casa e entra) . NICOLAU (aconchegando-a) - Aí tá na bananeira, tá no bananá

(Entra em casa cantarolando) - Catarina, meu pai man­dou te chamá. Tá na bananeira, tá no bananá . . .

ALBERTINA (para Garibaldi) - O senhor é um cretino. GARIBALDI - E a senhora uma pérola. (Albertina entra em

casa enfurecida) . GARIBALDI (só, descendo a direita) - Estás despeitada, heim,

minha cabecinha de tico-tico? ! Hei de estalar-te a casta­nha na boca. (Benedito entra do F. espreitando à E.)

Cena VI

Garibaldi e Benedito

GARIBALDI ( à parte) - O que andará fazendo por aqui aquela ave de mau agoiro? (Alto) - Veio propor-se para profes­sor?

BENEDITO - Hein? Professô? ! GARIBALDI - Sim. Aí nessa casa, estão precisando de profes­

sores. BENEDITO - Eu lá sei coisa nenhuma pr'insiná? ! Só se fô algu'a

modinha. GARIBALDI - Ora deve saber. Esgrima, ginástica sueca, nata­

ção ... BENEDITO - Ah, dísso tudo eu sei u'a coisinha. GARIBALDI - Pois é justamente o que eu não sei. Apresente-se.

Ofereça os seus serviços. (Sai) .

Cena VII

Benedito e depois Marcolino

BENEDITO (só) - Home, eu vou tomá o conselho desse sujeito. Ao menos, vejo a Xandoca. (Suspirando) Ai, Xandoca. (Ba­te à porta e a parece Marcolino) .

MARCOLINO - Quê que deseja? ... BENEDITO (continência) - As orden de V. Sa. Me disserum aqui

aqui estavum precisando de professores e antonce eu vim me apresentá.

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MARCOLINO - O sinhô? . . . Ora faça idéa . . . E que qui você sabe pr'insiná?

BENEDITO - Seio muita coisa. V. Sa. vá tomando nota. Seio isgrima, gin . . .

MARCOLINO (interrompendo-o) - Isgrima? BENEDITO - Sim sinhô. O manejo das arma. (Executa alguns

movimentos de esgrima) . MARCOLINO - Você é idiota! Eu lá quero a Catarina manej ando

as arma. BENEDITO - Seio também ginasca suética . . . MARCOLINO - O que, home? BENEDITO - Ginasca suética. MARCOLINO - Home, vá embora. Você cuidou qui eu criei a mi­

nha filha pra trabaia im circo de cavalim? ! BENEDITO - Não senhor. Mas V. Sa. devia sabê qui a ginasca

suética faz hoje parte integrante da inducação civi e mi­litá. É insinada im todos os quartéis e im todas as iscola, tanto de menino macho, cumo de menina feme. Desenvolve, estupidamente, os músculos e faz prolongá a vida, qui é um dispotismo ! . . .

MARCOLINO - Ora meu pai morreu cum 86 anos e nunca andou fazendo ginasca.

BENEDITO - Apois taí. Taí a prova. Se o pai de V. Sa. tivesse aprendido ginasca, ainda hoje era vivo. Agora o meu, anda beirando os noventa, e é isperto que admira. (Imitando-o) Espigadinho, faceiro, ainda arriscando um olho. (Pisca) Por que? Porque aprendeu a ginasca no quartel. Ele é sar­gento.

MARCOLINO - Sargento? Cum novent'ano ! . .. E ainda dá ser­viço? É ativo?

BENEDITO - Não senhor. É passivo; quero dizê, reformado com o soldo pur inteiro. Sabendo ginasca a gente véve . . . infa­damento. A gente veve inté morrê. Olhe as posição cumo são bonita. (Voz de comando) Prêmêra Séria! (Apita e exe­cuta) Segunda séria! (Idem) Tercêra séria !

MARCOLINO (interrompendo-o) - Eu lá quero a Catarina apren­dendo essas marmota! . . .

BENEDITO - Bem. Eu num posso obrigá, num é? 'Stou apenas mostrando as vantagens da ginasca suética. E natação?

MARCOLINO - Natação? BENEDITO - Sim. Se V. Sa. quisé eu posso insiná sua excelentís­

sima filha a nadá no má. MARCOLINO - Home, era o qui faltava . . . Eu deixá minha filha

í cum você nadá no má . . .

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BENEDITO - É um exelciço muito bom. Pra disinvorvê os mús­culos. Olha: nado natarau. (Executa) Nada de cachorro. (Executa) Eu tanto nado n'água cumo no seco. (Noutro tom) Nado de sapo . . .

MARCOLINO (interrompendo-o) - Homem vá imbora. Vá im-bora qui é milhó. Quem mora é gente sério, via?

BENEDITO - Então, (fazendo a continência) às suas arde. MARCOLINO - Deus guarde a V. Sa. BENEDITO (com gesto de escrever) - Saúde e fraternidade.

(Marcelino entra em casa. Xandoca entra da direita) .

Cena VIII

Benedito e Xandoca

BENEDITO - Ou matuto bruto . . . (Voltando-se e vendo Xandoca) - Xandoca! Ai meus pecado ! Ai tentação ! (Avança de braços abertos) .

XANDOCA - Deixe de léria, seu Benedito. Nunca lhe dei cabi­mento a essas liberdades.

BENEDITO - Ai, Xandoca! . . . Ai, Xandoquinha! . . . XANDOCA (arremedando-o) Ai, Xandoca! . . . Xandoquinha! . . .

(Noutro tom) Parece mesmo um paspalhão. BENEDITO - Tem compaixão desta carcaça humana. XANDOCA - Perdão, irmão. Se é carcaça atire-se aos urubus. BENEDITO - Tu não tens alma de muié. Tu. cum certeza, foste

home, na encarnação passada! . . . XANDOCA - E o senhor, certamente foi mulher. BENEDITO - Taí u'a coisa qui eu num duvido. Sou de u'a den­

guice . . . (suspirando) - Ai, Xandoca! . . . XANDOCA - Isto já está paulificante. Quer que chame o Pampei-

ro para expulsá-lo daqui? BENEDITO - O Pampeiro? XANDOCA - Sim. O cachorro de Albertina.

BENEDITO - Não faças isto, coração. Porque se ele me agredir, eu o mato. (Mostra o sabre) E por culpa tua serei acusado de um cachorricídio. Então não tens pena de mim?

XANDOCA - Não e não. BENEDITO (canta) -

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Amor por ti eu vivo E és tão inclemente. Na verdade, o motivo Eu não sei explicar.

Mas Agua mole em pedra dura Tanto bate até que fura

Ai mulata gentil ! . . . XANDOCA -

Que deseja o senhor? BENEDITO -

Quer tu queiras quer não XANDOCA -

Faz favor me dizer . . . BENEDITO -

Desse teu coração. XANDOCA -

Santo Deus ! Que calor! BENEDITO -

Inda o dono hei de ser Fica certa meu bem, Hás de me pertencer

XANDOCA -É debalde insistir, Não me deixo iludir . . .

BENEDITO - (5) Oh, meu anjo adorado De mim tem compaixão Desprezas o meu amor Não sei por que razão.

Mas Agua mole em pedra dura Tanto bate até que fura (Bis) Ai amor! Tentação!

XANDOCA -Deixe disso, senhor!

BENEDITO -Não me posso conter . . .

XANDOCA -Vá s'imbora. É melhor.

BENEDITO -Dei-te a minha afeição.

XANDOCA -É favor me esquecer.

'5) Até o final de cena eliminado e/o manuscrito.

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BENEDITO -Ai, formosa visão Quem me dera meu bem, Nos teus braços morrer.

XANDOCA -Fique certo o senhor Jamais sua hei de ser

(Aparecem Garibaldi da E. e John da D.)

Cena IX

Xandoca, Benedito, Garibaldi e John

XANDOCA - Passar bem. (Vai a sair) BENEDITO (pegando-lhe na mão) - Venha cá, Xandoca. XANDOCA - Me solte. BENEDITO - Não sejas ingrata. XANDOCA - Me solte. GARIBALDI (intervindo) - Mas o que é isto?

(Benedito solta-a) JOHN (à parte) - Oh ! Policia safada! XANDOCA - É este soldado que vive a importunar-me, todos os

dias, com as suas lamúrias e . . . BENEDITO (interrompendo-a) - Xandoquinha! . . . XANDOCA (arremedando-o) - Xandoquinha! (Entra em casa) GARIBALDI - Então o senhor vive aqui a importunar a pequena,

hein? JOHN (à parte) - Policia descarada! . . . BENEDITO - É o amor. GARIBALDI - É o amor, não? BENEDITO - É. Amor brutal, força de 150 cavalos . . . (Declama)

Eu a amo como o corneteiro ama a sua corneta. GARIBALDI - Bonito! BENEDITO - Como o selvage ama a sua flexa. GARIBALDI - Piramidal! BENEDITO - Como o flautista adora a sua flauta. JOHN - Oh! Suculenta! BENEDITO - Como o oficial estima a sua espada. GARIBALDI - Bravos! BENEDITO - Como o tatu adora a sua toca. JOHN - Oh, seu toca, dele. GARIBALDI - Toque. (Aperta-lhe a mão) - A comparação é, JOHN - Senhor pólicía parece ter o cursa dos três armas.

realmente, fantástica. Mas coude d'outro ofício, via? Que a Xandoca não lhe dá ouvidos.

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BENEDITO (para John) - Muito obrigado. (Para Garibaldi) - O senhor sabe ela faz aquilo pur pirraça, mais acaba cedendo. Querem ouvir a minha história, curta e certa.

GARIBALDI - Vamos lá. BENEDITO (canta) -

Essa mulata dengosa É por mim idolatrada, Mas somente de teimosa Traz-me a vida atormentada .. .

Já não sei mais o que faça Pra ver se as voltas lhe dou Tudo aquilo é pirraça Certo disso estou.

Ah, diabinho Pisa, pisa meu coração

Tu nem sabes O meu peito é um vulcão

Ah, diabinho Pisa, pisa meu coração, Que está sempre a ferver, A ferver de paixão .. .

Apesar da resistência Meu amor não se embaraça Hei de vencer a pendência Quem porfia mata caça

Vendo a minha persistência Há de ter pena de mim Isto não é existência É um penar sem fim.

TRIO -Ah Diabinho

Pisa, Pisa meu coração Tu nem sabes

O meu peito é um vulcão,

Ah diabinho Pisa, Pisa meu coração, Que está sempre a ferver, A ferver de paixão (6)

(6) Até 0 final de cena eliminado do manuscrito.

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GARIBALDI - Homem você está apaixonado a valer, mas eu julgo que nada arranj ará. A Xandoca tem mais altas aspi­rações.

BENEDITO - Qual ! Nenhuma, até hoje me tem resistido. Adeus. Eu voltarei depois, à carga. (Sai)

GARIBALDI - Pois sim ! . . .

Cena X

Garibaldi, John e depois Marcolino

GARIBALDI - Então Míster vai casar, heim? JOHN - Ali right. Senhôrr sabe? GARIBALDI - Sei. Estou a par de tudo. Mas o senhor resolveu o

caso de galope, heim? JOHN - Oh, mim encára amôr como uma problema algébrica. GARIBALDI - Perfeitamente. Os estados da alma são teoremas,

os casamentos - corolarios e os arrufos - coeficientes. JOHN - Ali right. GARIBALDI - Pede hoje a mão da pequena? JOHN - Agora mesma. GARIBALDI - Então coloque-se aqui (D B) e tome posição. Vou

chamar o Coronel, que está incumbido de resolver a catás­trofe. (A parte) Eu vou é fazer uma embrulhada de mil demônios. (Chama à porta) Coronel Marcolino ! (Este apa­rece) (Baixo) - Ali o Míster Robertson é pretendente . . .

MARCOLINO (baixo admirado) - A mão de Albertina? GARIBALDI - Não. É pretendente a compra da casa. MARCOLINO - Ah ! . . . GARIBALDI (indo à John) - Agora avance Míster. E sej a feliz.

(A parte) - Vou assistir de palanque. (Finge sair e ocul­ta-se na barraca) .

JOHN - Como pássa senhôrr? (Aperta-lhe a mão) MARCOLINO - Bem, obrigado. Eu já sei a que vem. JOHN - Senhôrr sabe? Milhôrr. Mim espera sêrr bem sucedida. MARCOLINO - Penso que haveremos de nos intendê. O senhô

ficará bem servido. JOHN - Oh. Yes. Mim estárr certa disso. MARCOLINO - Já redigi a iscritura de venda. JOHN (espantado) - Oh ! . . . Escritura de venda? ! MARCOLINO - Naturalmente. O senhor pretendia era alugá-la?

Nós queremos é vendê-la. JOHN (à parte) - Oh, esse velha desgraçada quérr vendêrr mi-

nina? ! MARCOLINO - Que qui o senhô diz? JOHN - Oh, mim nô diz nada . . . GARIBALDI (à parte) - A encrenca está formada!

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MARCOLINO - Olhe : ela passou pur uma reforma geral, há pouco tempo.

JOHN - Oh! Reforma geral? MARCOLINO - Sim. Foi rebocada de novo e está pintadinha de

fresco. JOHN (à parte) - Oh! Esse velha sêr doida! . . . GARIBALDI (à parte) - Está bom ! .. . MARCOLINO - É muito arejada. Só é quente . . . JOHN (espantado) - Quente! . . . MARCOLINO - Sim. Só é quente ao meio-dia, quando o sol está

a pino. Mas, mesmo assim, recebe uma aragezinha cons­tante. Além disso, cacimba de alvenaria e fogão de ferro.

JOHN (à parte) - Oh, velha maluca! MARCOLINO - Qué entrá prá verificar? JOHN - Non sinhorr. Obrigada. MARCOLINO - Olhe : o senhor dá oito contos por ela . . . GARIBALDI (à parte) - É barato. MARCOLINO (continuando) . . . e eu vou providenciar pra que lhe

seja entregue o mais breve possível. JOHN - Senhôr tem coragem propôrr esse negocia? MARCOLINO - Por que não? Acha ela cara por 8 contos? GARIBALDI (à parte) - Esta divertido isto ! . . . JOHN - Senhôr faz favor dizêrr: menina sabe esse pruposta? MARCOLINO - Tanto ela, como a mãe, estão pelo que eu resolvê. JOHN - Mas senhôrr sêrr doida? MARCOLINO - Eu? Doido? Por que me faz esta pergunta? JOHN - Porque, de dois uma: ou senhôrr ser doida varrida, e

déve sêrr metida camisa de fôrça, ou ser um tipa abjeta, um tipa sem dignidade.

GARIBALDI (à parte) - Cpa! . . . MARCOLINO - O que? Que qui está dizendo? Eu mato este doido

(Abreca-o) GARIBALDI (à parte) - A cena está se tornando trágica ! MARCOLINO - Doida é você, viu? Tipa sem dignidade é você,

tá uvindo? GARIBALDI (à parte) ·- Agüenta . . . JOHN (à parte) - Oh! Estarr doida furiosa! (Alto) - Senhôrr

faz favôrr soltar? MARCOLINO - Soltar? . . . Você vai já, mais é ingulir o insulto. GARIBALDI (à parte) - E é em seco. MARCOLINO (enérgico) - ln gula. JOHN (à parte) - Sêr melhórr nô contrariar esse doida. (Alto)

Oh, mim já enguliu. Agora faz favôrr soltarr? MARCOLINO (soltando-o) - Cumigo é assim, sabe? Eu sou muito

manso . . . JOHN (à parte, interrompendo-o) - Oh, mansa nô, sêrr furiosa.

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MARCOLINO - Mais quando a mostarda me chega ao nariz, per­co as estribeiras.

JOHN - E quando dá isso senhôrr, dura muita? MARCOLINO (avançando) - Que qui você qué dizê cum isso,

hein? GARIBALDI (à parte) - Fogo ! Vamos de novo! JOHN - Oh, mim nô quérr dizer coisa alguma. Mim estarr brin­

cando . . . MARCOLINO - Eu não admito brincadeiras, viu? JOHN - Ali right. (A parte) - Mim estarr doida vêrr longe

daqui.. . MARCOLINO - Propuz o negócio, o Sr. não aceita. Ora isso não

é motivo para se sair cum desaforo. GARIBALDI (à parte) - Perfeitamente. JOHN - Mim péde desculpa senhôr. Acha contrata muito extra­

vagante. MARCOLINO - Extravagante não senhor. Se achou muito, pe­

disse um abatimento. JOHN - Oh ! Abatimenta ! . .. Mim vai resolve negócia. Good bay.

(Sai as pressas; ao fundo grita, voltando-se) - Máluca! (Marcolino corre em sua perseguição e John desaparece) .

GARIBALDI (rindo) - Que foi, Coronel? MARCOLINO - Aquele inguilez, qui é doido, a me chamá de

maluca. GARIBALDI - Não chegaram a um acordo? MARCOLINO - Qual acordo. Sem motivo nenhum saiu-se cum

tanto desaforo, qui eu só tive vontade mesmo foi de esga­ná-lo. Aquele diabo lá qué comprá casa! . . . (Entra em casa e Garibaldi fica a rir)

Cena XI

Garibaldi, Gonçalo e depois Marcolino

GONÇALO (entrando E.A.) - Ah ! Batuta! GARIBALDI - Oh, Gonçalo que andas fazendo? GONÇALO - Li nos jornais o anúncio da venda dessa casa e

venho comprá-la. GARIBALDI - Estás muito bem ! GONÇALO - Vou casar-me rapaz. GARIBALDI - Vais casar? GONÇALO - Vou. Com a filha do velho Belchior, a Matilde. Há

dez anos que nos namorávamos. Eu sempre indiciso. A vida, cada dia encarecendo mais. Além disso, eu tinha um cavalo, sabe? Ora, com 350$000 mensais quem é que pode, nesta terra, sustentar uma mulher e um cavalo? !

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GARIBALDI - E estivestes dez longos anos, a oscilar entre a mulher e o cavalo ! . . .

GONÇALO - É verdade. As vezes, resolvia desfazer-me do cavalo e casar-me. Logo depois, me arrependia. A minha cochei-ra . . .

GARIBALDI (interrompendo-o) - E tu tens cocheira? GONÇALO - Do cavalo, homem. GARIBALDI - Ham ! GONÇALO - A cocheira tão asseiada, tão disposta, toda soalhada.

E o cavalo tão bom. GARIBALDI - Muitas vezes os brutos são melhores que nós. GONÇALO - Um belo dia - um belo dia, não, um feio dia, -

o cavalo morreu. GARIBALDI - O que somos nós, pobres mortais, hein Gonçalo? GONÇALO - Decidi, definitivamente, casar-me. Mas o impecílio

maior é a falta de habitação. Por cúmulo de felicidade a Matilde teve a sua caderneta da Predial premiada com cin­co contos e seiscentos, e autorizou-me a fazer aquisição de uma casinha que nos sirva de ninho.

GARIBALDI - Toque, rapaz. Tu és um felizardo. Vens, então, comprar a casa da mãe da Albertina?

GONÇALO - É exato. Li o anúncio e apressei-me em vir antes que outros apareçam.

GARIBALDI - O Coronel Marcolino, tio de Albertina está incum­bido da venda. (Marcolino aparece) - Ah, ei-lo.

GONÇALO - Apresente-me. (Fica a ajeitar-se) . GARIBALDI (aproximando-se e falando baixo) - Coronel, aque­

le é o candidato à mão de Albertina. MARCOLINO (baixo) - É aquele? GARIBALDI - É. (A parte) - Se eu conseguisse que eles fa­

lassem mais alto ! . .. Inrl'agorinha perdi muita coisa! (Alto) Olhe, Coronel, ele é surdo como uma porta.

MARCOLINO - Surdo? Ora a Albertina escolheu logo um surdo . . . GARIBALDI - É muito cômodo Coronel, um marido surdo. E

melhor será se ela arranj ar também um criado. (Rindo a Gonçalo) - Fala alto que o velho é mouco prá burro. (Gri­tando) Coronel apresento-lhe o senhor Gonçalo Raposo, empregado da Norton-Grifth.

MARCOLINO (gritando) - Tenho satisfação em conhecê-lo. GONÇALO (gritando) - Da mesma forma. GARIBALDI (gritando) - E agora me dêem licença. Vou para

o observatório. MARCOLINO - Observatório? GARIBALDI (gritando) - Sim. Observatório meteorológico. Vou

apreciar os fenômenos atmosféricos. (Sai disfarçadamente e oculta-se na barraca) .

GONÇALO (gritando) - {::el. pretendo casar-me. E vim . . .

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MARCOLINO (gritando) - Já sei do que se trata. Penso que che­garemos a um acordo.

GONÇALO (gritando) - É o que desejo. MARCOLINO (A parte) - Por que é que todo mouco só fala gri-

tando? GONÇALO (gritando) - O quê? MARCOLINO (gritando) - Nada. GARIBALDI (à parte) - Agora sim. Não perco nada. GONÇALO (gritando) - Antes de entrarmos no ajuste, desejava

algumas informações. MARCOLINO (gritando) - É justo. (à parte) - Eu também

vou tirá u'a devassa da vida desse desgraçado como é de praxe.

GONÇALO (gritando) -- Ela dispõe das condiçeõs higiénicas, exi� gidas pela profilaxia?

MARCOLINO (espantado, gritando) - O quê? GONÇALO (à parte) - Ou velho mouco ! (Alto) - Pergunto : se

ela tem as condições de asseio necessárias. GARIEALDI (à parte) - Explêndido. MARCOLINO (gritando) - Ist'é lá coisa que se pergunte ! . . . GONÇALO - Por que não? ! É preciso que seja asseiada para

poder ser sadia. GARIEALDI (à parte) - Naturalmente. MARCOLINO - Quanto a ser sadia, eu afianço. GARIBALDI (à parte) - E eu também. MARCOLINO - Todos aqui gosam de excelente saúde. A Desidé­

ria é qui tem andado adoentada, mas aquilo é mesmo da idade.

GONÇALO (gritando) - E está caiadinha? MARCOLINO (gritando) - Caiadinha? . . . E ela será algúa vita�

lina pr'andá caiada? (A parte) Si Albertina ouvisse isso num se danava!

GONÇALO (à parte) - Este velho está me parecendo qui não gira lá muito bem. (Gritando) E é ventilada?

GARIBALDI - Magnífico . . . MARCOLINO ( gritando) - Ventilada? (A parte) - Ai, qui esse

desgraçado, além de mouco é doido ! . . . (Gritando) O se­nhor quer debochar-me?

GONÇALO - Deus me livre. Mas são condições sem as quais não me serve, apesar da necessidade urgente em que me vejo. Tenciono casar-me no mês que entra.

MARCOLINO ( gritando) - Tão depressa? GONÇALO (gritando) - E já não é sem tempo. Por isso, se che­

gar-mos a um acordo, desejava que ela me fosse entregue o mais breve possível, pois é preciso o habite-se da higiene.

MARCOLINO (à parte) - Mas que história é essa? É doido, não há dúvida.

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GONÇALO (gritando) - O senhor permite que eu vá examiná­-la de perto? (Dirigindo-se à casa) .

MARCOLINO (impedindo-o) - Ixaminá-la de perto? Não senhor. Era só o que faltava ! . . .

GARIBALDI (à parte) - Soberbo. MARCOLINO (gritando) - Vá ixaminá o diabo que o carregue !

A parte) - Ora faça idéa! Pra qui havia de dá a maluquice dele !

GONÇALO (gritando) - Então dá de permitir qui eu continue . . . MARCOLINO (gritando-lhe ao pé do ouvido) - O interrogató­

rio? Pode continuá (Baixo) - Seu idiota. GONÇALO (gritando) - Não é preciso gritar-me, desta forma,

que eu não sou surdo como o senhor. MARCOLINO (admirado, gritando) - O que? ! Não é surdo? GONÇALO - Não senhor. Estou agora arriscado a ensurdecer,

se o senhor continua a berrar-me ao pé do ouvido desta forma.

GARIBALDI (à parte) - Lá descobriram a melgueira. MARCOLINO (ainda gritando) - Então, decididamente, não é

surdo? GONÇALO (gritando) - Não senhor. MARCOLINO (mudando o tom) - E nem eu. Mas me tinham

dito que o senhor era mouco como uma porta. E eu já estou é rouco de gritá.

GONÇALO - E a mim disseram a mesma coisa, com relação ao senhor. Mas continuemos a nossa conversação. A constru­ção é sólida?

MARCOLINO (admirado) - A construção? GONÇALO - Sim. É resistente? MARCOLINO - Ah,Ah, demais. A resistência chegou ali e parou.

Nunca vi outra igual. GARIBALDI (à parte) - Nem eu. GONÇALO - E precisará de algum reparo? GARIBALDI (à parte) - Danou-se! MARCOLINO - O que? O senhor é doido? Só me pergunta toli­

ces . . . GONÇALO - Doido é o senhor que só me responde disparates. MARCOLINO - O senhor lá qué casá. O senhor qué é engabelá

a filha alheia. GARIBALDI (à parte) - Bonito. GONÇALO - O senhor não tem o direito de se meter com a minha

vida. Eu sou bem conhecido: Gonçalo Raposo. MARCOLINO - Pois sé é raposa vá atrás de outro poleiro, viu?

Eu estou aqui para desmascara-lo. GONÇALO - Desmascarár-me ! .. . (A parte) - É idiota, não há

dúvida!

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MARCOLINO - Desmascará-lo sim. Porque ela é minha sobri-nha.

GONÇALO - Ela quem? MARCOLINO - A sua ex-quase futura noiva. GONÇALO - Minha noiva: sua sobrinha? Ora essa ! (Noutro

tom) Olhe : eu respeito muito as leis do atavismo, e a idio­tice é quase sempre hereditária. Se minha noiva tivesse um tio idiota, como o senhor, eu não me casaria com ela.

MARCOLINO - Idiota? Quem é idiota? (Abreca-o) . GARIBALDI (à parte) - Agüenta! GONÇALO (à parte) - Ah, não é idiota, não. É doido furioso.

(AI to) Me largue! MARCOLINO - Eu devia era amassar-lhe as fuças. GARIBALDI ( à parte) - Amasse, homem! MARCOLINO (continuando) - Não o faço, porque não quero

sujar as mãos (solta-o) - Raspe-se. GONÇALO (sai às pressas ao fundo) - Maluco ! (Marcolino

corre atrás) . GARIB.ALDI - Mas o que é isto, coronel? Deixe o rapaz, ele é

mesmo desequilibrado. MARCOLINO - E por que o senhor não me avisou? GARIBALDI - Porque julgava o seu desequilíbrio inofensivo. MARCOLINO - O senhor não disse que ele era surdo? GARIBALDI - E não é? Julgava que o fosse. MARCOLINO - Parece que todos os doidos desta terra se combi­

naram hoje para me aperreá. (Albertina aparece) .

Cena XII

Os mesmos e Albertina. Depois Nicolau

ALBERTINA (entrando) - Então meu tio, o pedido foi feito? Posso considerar-me noiva?

GARIBALDI (à parte) - Pois sim! MARCOLINO - Não senhora. A tal casório, eu oponho embargos

na forma de lei. ALBERTINA (admirada) - Opõe embargos? MARCOLINO - Sim senhora. Nunca, estás ouvindo, nunca per-

mitirei que te cases com um maluco daquelas espécies! ALBERTINA (com espanto) - Maluco? MARCOLINO - Maluco, sim senhora (Nicolau aparece) . GARIBALDI - Um idiota perfeito. (A parte) Falei em idiota e

surgiu o Nicolau. MARCOLINO - Vi-me obrigado a abrecá-lo, aqui pelas bitáculas

e dar-lhe uma lição em regra. Daquele estais tu livre.

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ALBERTINA (desapontada) - Pra que o senhor fez isto, meu tio? Um casamento tão vantajoso para mim ! . . . Se eu per­der o meu noivo, meu Deus, o que me resta fazer? !

MARCOLINO - O que te resta fazê? NICOLAU (cantarolando) - Mandá buscá outro, ou maninha,

lá no Piauí. (7) (Garibaldi ri) MARCOLINO - Está aí. Tome o conselho do Nicolau, ou então

vá ao asilo e escolha outro menos doido do que aquele, viu? ALBERTINA (mãos na cabeça) - Oh, mas isto é de enloquecer

uma pessoa ! . . . NICOLAU - Ou papai! MARCOLINO - Que foi? NICOLAU - Eu queria c'o sinhô me arrumasse p'eu entrá nessa

vaga! Se Albertina querêsse. ALBERTINA (para Nicolau. Aborrecida) - Ora vai chupar piru­

lito. NICOLAU - Qui corage da prima. MARCOLINO (com energia) - Nicolau! Tu deixa de andá te in­

fluindo . . . GARIBALDI (para Nicolau) - Olha que te arriscas por cousa de

uma prima, a apanhar de bordão. ALBERTINA (para Nicolau) - Tu és um palerma ! . . . NICOLAU - Bertinha . . . Minha nêga ! . . . (Garibaldi ri) ALBERTINA (para Garibaldi) - Tu és um patife. GARIBALDI - Homem, essa! Que culpa tenho eu de que não

cases? Sim por que, ouve o que te digo : tu ficarás vitali­nizada. (Canta)

GARIBALDI -Não casas, menina.

ALBERTINA -Por que não, seu coió?

GARIBALDI -Não casas, menina

ALBERTINA -Por que não, seu coió?

GARIBALDI -Hás de ficar vitalina

gemendo no caritó. MARCOLINO E NICOLAU ­

Hás de ficar vitalina gemendo no caritó.

GARIBALDI -Ai, ai ! Que sina!

MARCOLINO E NICOLAU -Ai, ai ! Que sina!

(7) Versos do autor popular Bumba-meu-bo!.

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ALBERTINA (para Garibaldi) -Tu não me venhas importunar Pois isto é mesmo de arreliar !

MARCOLINO E NICOLAU -'t'u não venhas importunar Pois isto é mesmo de arreliar !

GARIBALDI -Pintando as faces com alvaiade !

MARCOLINO E NICOLAU ­Ai, meu Deus !

GARIBALDI -Vivendo apenas para a saudade.

ALBERTINA -Não fico solteira.

GARIBALDI -Por que não, meu amor?

ALBERTINA -Não fico solteira.

GARIBALDI -Por que não, meu amor?

ALBERTINA -Hei de encontrar quem me queira Com o mais intenso fervor !

MARCOLINO E NICOLAU -Há de encontrar quem lhe queira Com o mais intenso fervor!

GARIBALDI -Ai, ai ! Que asneira !

MARCOLINO E NICOLAU ­Ai, ai ! Que asneira !

GARIBALDI -Pois vitalina tens de ficar Nunca se viu tão medonho azar !

MARCOLINO E NICOLAU -Pois vitalina tens de ficar Nunca se viu tão medonho azar!

GARIBALDI -Pintando as faces com alvaiade.

MARCOLINO E NICOLAlT -Ai, meu Deus !

GARIBALDI -Vivendo apenas para a saudade (Bis) . (8) (Dançam. Albertina entra em casa. Antes de findar a dança Benedito entra e cai no Maxixe) .

(8) Até o final de cena eliminado do manuscrito

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BENEDITO - Homem tá bom inst'aqui... GARIBALDI - Está explêndido. BENEDITO - Penera! Agüenta negrada. MARCOLINO - Quem foi que lhe chamou aqui, heim? BENEDITO - Foi ninguém não senhor. Mas eu lá posso ver e�sas

coisas sem me desconjuntar. MARCOLINO - Então : meia volta, volvê. BENEDITO - Meia volta, volvê o que! Descançá (Noutro tom)

Eu sou aqui u'a garantia da ordem, sabe? MARCOLINO - Você é u'a garantia da desorde, sabe? GARIBALDI - Então Caetetú, você não pode ouvir um maxixe

que não se desconjunte todo, hein? BENEDITO - É verdade rapaz. Chega parece até que eu sou de

mola. A minha família é toda assim maxixeira, sabe? GARIBALDI - Ah ! É de raça! BENEDITO - É de raça sim. Eu sou nesta terra o batuta-mar

do maxixe. Conhecido, como tal, do Arraial Moura Brasil às Cambirimbas ! ( 9) .

GARIBALDI - Toque ! . . . MARCOLINO (à parte) - Vejam que duas boas biscas ! . . . BENEDITO (dança e depois canta)

Maxixeiro sou assim O primeiro num chemfrim Benedito Caetetú Das meninas o Caju.

CORO -Ai que caboclo danado Num deixa o samba esfriar Sacode as pernas safado . . .

Fim do segundo ato

(9) Arraial Moura Brasil e Cambirimbas, bairros pobres de Fortaleza, ci­tados como pontos extremos. O último é atualmente a região entre José Bonifácio e Av. dos Expedicionários.

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