os novos rumos do direito contratual - univalisiaibib01.univali.br/pdf/giuliano santos.pdf · 7...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
OS NOVOS RUMOS DO DIREITO CONTRATUAL
Os princípios contratuais modernos e a função social dos contratos
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, sob orientação da Professora. Dra. Claudia Rosane Roesler.
ACADÊMICO: GIULIANO MARTINS SANTOS
São José (SC), novembro de 2004
2
UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
OS NOVOS RUMOS DO DIREITO CONTRATUAL: Os princípios
contratuais modernos e a função social dos contratos
GIULIANO MARTINS SANTOS
A presente monografia foi aprovada como requisito para a obtenção do grau de bacharel em Direito no curso de Direito na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.
São José, 08 de novembro de 2004.
Banca Examinadora:
_______________________________________________________ Professora. Dra. Claudia Rosane Roesler
_______________________________________________________ Prof. Márcio Harger - Membro
_______________________________________________________ Prof. Jean Carlo Castelãn - Membro
3
Dedico este texto:
Aos meus pais, José e Otilia, pelos seus incansáveis préstimos para a
efetiva consecução da minha formação moral e acadêmica.
Aos meus irmãos Fernando e Fabiana, por seus incentivos e suas
incondicionais manifestações de amor.
A minha namorada (Elisabeth), pelas infindáveis horas de estudo
roubadas de seu convívio.
4
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, Claudia Roesler, por sua dedicação e determinação no
auxílio da produção deste trabalho acadêmico.
A minha amiga e chefe, Doutora Maria Fernanda, por estar me mostrando a
beleza da advocacia, através do seu modo de litigar.
Finalmente a todos aqueles que, de uma maneira direta ou indireta,
contribuíram para a realização desta pesquisa.
5
“Os juristas devem viver com sua época, se não querem que esta viva
sem eles.”
Louis Josserand
6
SUMÁRIO
RESUMO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... ........8
1 DO CONTRATO..................................................................................................................8
1.1 BREVE HISTÓRICO.........................................................................................................9
1.1.1 O Contrato no Direito Romano....................................................................................9
1.1.2 O contrato sob óptica da ideologia individualista.....................................................13
1.1.3 O contrato sob a óptica social.....................................................................................17
1.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO.........................................19
2 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS..............................................................................22
2.1 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS CLÁSSICOS........................................................22
2.1.1 Princípio da autonomia da vontade...........................................................................24
2.1.2 Princípio da obrigatoriedade de contratar................................................................26
2.1.3 Princípio do consensualismo.......................................................................................27
2.1.4 Princípio da relatividade dos efeitos da relação contratual.....................................28
2.2 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS MODERNOS.......................................................29
2.2.1 Princípio da autonomia privada.................................................................................31
2.2.2 Princípio da boa-fé......................................................................................................33
3 AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO E SUA APLICAÇÃO NA FUNÇÃO
SOCIAL DO CONTRATO..................................................................................................35
3.1 CLÁUSULAS GERAIS...................................................................................................35
3.1.1 Sistema de direito fechado..........................................................................................35
3.1.2 Sistema de direito aberto............................................................................................37
3.2 FUNÇÃO SOCIAL..........................................................................................................40
3.2.1 Função social do contrato...........................................................................................43
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................46
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................49
7
RESUMO
O objetivo deste trabalho é demonstrar a evolução dos contratos e de seus princípios
reguladores, dando ênfase à função social do contrato. No primeiro capítulo, faz-se um breve
histórico das relações contratuais, utilizando-se como referente inicial o Direito Romano,
discorrendo-se sobre as peculiaridades de seus contratos; em seguida, passa-se aos contratos
no Estado liberal, onde aborda-se toda a repercussão da liberdade excessiva aos contratantes,
ou seja, a massificação das relações contratuais, a desigualdade social e a inevitável
repercussão no Direito contratual da época. Para finalizar este histórico analisa-se a evolução
do Direito do Estado liberal para o social, demonstra-se toda a reformulação ocorrida no
Direito contratual para eliminar as injustiças do desequilíbrio contratual geradas pela
concepção liberal. Já no segundo ponto do primeiro capítulo, trata-se da constitucionalização
do Direito privado, em especial da constitucionalização do Direito contratual, que facilitou a
mudança da concepção liberal para concepção social. No segundo capítulo, analisa-se as
repercussões das mutações sociais evidenciadas no primeiro capítulo nos princípios
norteadores do Direito contratual. Inicia-se pelos princípios clássicos e sua relação com a
concepção adotada pelo Estado liberal; adota-se como princípios clássicos para a consecução
deste trabalho a autonomia da vontade, a obrigatoriedade contratual, o consensualismo e a
relatividade dos efeitos contratuais. No segundo ponto, enfatiza-se os princípios modernos e
sua concepção social, elege-se para o estudo como princípios modernos a autonomia privada e
a boa-fé objetiva. No terceiro capítulo, evidencia-se o estudo do tema principal do trabalho: a
cláusula geral da função social do contrato.
Palavras Chave: Função Social do Contrato. Princípios Contratuais. Relação Contratual.
8
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem sua motivação na conclusão do Curso de Graduação de
Direito, da Universidade do Vale do Itajaí. O objeto da presente monografia é traçar um
estudo preliminar acerca da moderna principiologia dos contratos, bem como a incidência da
função social do contrato em nosso direito.
Para tanto, no primeiro capítulo serão analisados os antecedentes históricos do
contrato, efetuando-se um breve estudo sobre a evolução cronológica das relações sociais e
contratuais.
No segundo capítulo, será analisada a repercussão da evolução Histórica evidenciada
no primeiro capítulo, nos princípios contratuais. Sintetizando a prinpiologia clássica com
destaque para o principio da autonomia da vontade em confronto com a moderna
principiologia contratual, caracterizada pela maior participação estatal.
No terceiro e último capítulo, será elaborado um sucinto estudo dos sistemas de
Direito aberto e fechado e seus respectivos momentos Históricos e um breve estudo acerca da
incidência das cláusulas gerais e da função social nos contratos modernos, demonstrando sua
importância para a eficácia das relações contratuais no direito contemporâneo.
Como referências básicas, será utilizada a obra de Fernando de Noronha (O Direito
dos contratos: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual) e a obra de Eduardo Sens dos
Santos (A função social do contrato), que servirão de norte para a estruturação do presente
estudo. Será adotado o método dedutivo, partindo-se da idéia geral dos contratos para se
buscar uma sintética noção da sua função social.
Ressalta-se que a abordagem que aqui será efetuada não tem a pretensão de esgotar
as vias de debate, mas apenas demonstrar a importância dos modernos princípios contratuais e
de sua função social no direito brasileiro.
9
1 DO CONTRATO
1.1 BREVE HISTÓRICO
1.1.1 O Contrato no Direito Romano
O Contrato sempre marcou as relações humanas no decorrer da História, pois sendo
o homem um animal gregário por natureza, teve que se relacionar com os seus semelhantes
para efetuar trocas, inicialmente como maneira de facilitar a tarefa árdua de sobrevivência.1
Historicamente os contratos só começam a ter relevância jurídica com o Direito
Romano, pois anteriormente eram tácitos e informais, ou seja, somente uma forma de os
contratantes permutarem mercadorias para sua própria subsistência, não seguindo nenhuma
forma ou padrão que garantisse seu cumprimento.2
Já no sistema jurídico romano, a mais importante fonte histórica do Direito
Brasileiro, os contratos pela primeira vez apresentam formas pré-definidas e passam a ser
disciplinados e protegidos juridicamente, garantindo a sua eficácia entre os contratantes.3
A razão deste formalismo tinha caráter religioso e prático. Os contratos só seriam abençoados pelos Deuses se seguissem os rituais adequados. Na prática, porém, a razão se deviam à pouca e difícil utilização da escrita, o que levava aos extremados rituais orais.4
O direito romano não se apresenta, ou seja, não nasce como um todo unificado e
concluído, ele foi evoluindo junto com o império romano, sendo que o Direito contratual
romano também teve várias mudanças durante todo aquele período. Começou sem muitas
formalidades e, por conseqüência, sem garantia de seu cumprimento e evoluiu a uma forma de
contratar que se calcava no consentimento das partes e que poderia ser exigida por ação
judicial própria.5 “O contrato dos primeiros tempos se apresenta com fisionomia bem diversa
da que o caracteriza, por exemplo, nos períodos clássicos e justinianeu.6”
O termo contrato no Direito Romano é o conhecido como Contrahere, onde o credor
submetia o devedor a seu poder pela obrigação não cumprida; nesta época o devedor passava
1 Cf. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo Código Civil. São Paulo, 2002. p. 19. 2 Cf. FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 295. 3 Cf. FIUZA, César. Direito Civil, p. 295. 4 FIUZA, César. Direito Civil, p. 296. 5 Cf. FIUZA, César. Direito Civil, p. 295.
10
a ser de propriedade do credor pela inadimplência da dívida contraída. Era o ato de contrair no
sentido restringir, apertar o devedor inadimplente.7
Uma grande diferença entre o contrato romano e o moderno é que naquele a obrigação era personalíssima, ou seja, a ligação se estabelecia entre as pessoas dos contratantes, prendendo-os (nexum) e sujeitando os seus próprios corpos, enquanto no moderno a execução recaía sobre os seus bens.8
Os contratos romanos eram chamados de Conventio; nesta época os contratos
levavam em consideração o consentimento das partes, o Conventio se dividia em duas
espécies: o pactum, que era a convenção de obrigações naturais e o contractus, que não se
restringia somente ao consentimento, mas se preocupava com a obrigação civil.9
O pactum era celebrado sem qualquer obediência à forma, bastando o acordo de
vontades; era calcado no Direito natural, ou seja, era um acordo de vontades insuficiente para
gerar obrigações civis.10
Os pactos começaram a ser utilizados com freqüência pelos romanos, e, como não
produziam efeitos para cobrança de suas obrigações, os pretores, sob premência dos interesses
em conflito, começaram a admitir algumas exceções para proteção do pactuado.
Ainda antes do período clássico, constituíram como exceções ao pactum os contratos
de compra e venda, locação, sociedade e mandato, em que, mesmo não atendendo a nenhuma
formalidade, foi atribuído o direito de ação, onde os contraentes poderiam obrigar o
cumprimento do contrato através de actio civilis, ou seja, as ações civis. A única exigência é
que o contrato fosse realizado sob o consenso de ambos os contratantes; desta forma ficou
conhecido como solo consensu.11
Entendia-se que o princípio de que a vontade das partes é o elemento fundamental das convenções era de direito natural. Para que esse elemento subjetivo produzisse obrigações civis,exigia-se que fosse aliado a alguma causa civilis.12
Os contratos solo consensu ou consensuais eram também chamados por pacta
legítima por estarem amparados por ação para cumprir sua obrigação.
Foram criados pactos para modificação e extinção de obrigações já existentes; como
os pactos não autorizavam o uso de ação, houve a necessidade de lhe conferirem alguma
eficácia, por isso foi admitido o direito de exceção, ou seja, para os romanos exceptio.13
6 CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 245. 7 Cf. FIUZA, César. Direito Civil, p. 296. 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10 ed. Rio de Janeiro, 1995. p. 04. 9 Cf. CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. 6 ed. Rio de Janeiro: Rio, 1977. p. 338. 10 Cf. CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano, p. 338. 11 Cf. CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano, p. 338. 12 BESSONE, Darci. Do contrato: teoria geral. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 07.
11
Estes pactos que modificavam e extinguiam obrigações eram chamados de pacta
adiecta, recebiam dos pretores o direito de exceções; a principal exceção era a da não
repetição de prestações recebidas.
As exceções constituíram o primeiro passo da rica contribuição pretoriana. Logo foram conferidas ações a alguns pactos, sobrevindo, em conseqüência, a distinção entre os pacta legitima e os nuda pacta, conforme fossem providos ou desprovidos de ações.14
Sendo assim, os pactos poderiam ser classificados em pactos vestidos (pacta vestita)
ou os chamados pactos nus (nuda pacta). Os pactos vestidos eram os que geravam obrigações
civis, e ainda se dividiam em pactos adjetos (pacta adiecta), os que modificavam ou
extinguiam obrigações e produziam repercussão civil através das exceções, pactos legítimos
(pacta legitima) os pactos reconhecidos por Constituição Imperial e os pactos pretorianos
(pacta praetoria) os que recebiam força do pretor. Os pactos nus eram todos os restantes, ou
seja, os que produziam somente obrigações naturais.15
Já o contractus era a espécie contratual que obedecia a algum tipo de formalidade ou
exigência para produzir efeitos civis; se dividia em litteris, que exigia inscrição do contrato no
livro do credor; re, que utilizava a tradição definitiva da coisa contratada; e verbis, que se
caracterizava por ritual oral para a efetivação do contrato.16
Contratos reais são aqueles que se formam com a entrega de uma coisa, re: o mútuo, o comodato, o depósito e o penhor.Contratos verbais são os que se formam com o pronunciamento de algumas palavras, verbis: no direito clássico, stipulatio, a dotis dictio e a promissio iurata liberti. Contratos literais, os que se perfazem com a redação de certos escritos litteris: o nomen transscripticium, os chirographa e os syngrapha. Contratos consensuais, os que se fecham com o simples acordo de vontades, consensu: a compra e venda, a locação e o mandato.17
Os contratos no regime contractus, quando não cumpridos por uma das partes,
podiam também ser exigidos através de uma ação, actio, sendo a única forma de se exigir o
cumprimento da obrigação anteriormente avençada pelas partes.
As actio estavam presentes nos contratos iuris civilis, ou seja, eram contratos que
além do acordo de vontades, tinham repercussão no mundo jurídico, podendo ser cobrada sua
execução através da tutela judicial do Estado; os contratos iuris civilis só eram praticados
entre romanos.
13 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 8. 14 BESSONE, Darci. Do contrato, p. 8. 15 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 8. 16 Cf. FIUZA, César. Direito Civil, p. 296. 17 CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. 6 ed. Rio de Janeiro: Rio, 1977. p. 339.
12
Os contratos romanos, além de se classificarem quanto as suas formalidades em
reais, verbais e literais ainda podem ser classificados, segundo o professor Ebert Chamoun,18
quanto a seus efeitos:
a) sinalagmáticos ou bilaterais, os que produzem obrigações para ambas as
partes, obrigações recíprocas, por exemplo a compra e venda;
b) unilaterais, são os que produzem obrigações para apenas uma das partes, por
exemplo o mútuo;
c) bilaterais imperfeitos, são os contratos que geralmente produziam obrigações
a apenas um dos contratantes podendo, em certos casos, obrigar ambos. Por
exemplo, o depósito, que geralmente só obriga o depositário, mas no caso de
gastos com a coisa, obrigará o depositante com o ressarcimento.
Os contratos romanos ainda podem ser classificados quanto a seu objeto; em
onerosos e gratuitos, quanto a sua forma; em formalistas e não-formalistas devido ao uso ou
não de solenidades na celebração dos contratos.19
Depois desta classificação, é possível demonstrar toda a importância do Direito
Romano para o ordenamento jurídico brasileiro; sendo assim, não poderia deixar de estar
presente neste trabalho acadêmico.
Os contratos romanos sofreram várias mudanças durante o Império Romano, mas a
influência mais importante para o Direito foi quando os contratos começam a ter amparado o
direito de cobrar as obrigações avençadas pelas partes através da actio, ou seja, a ação judicial
que obrigava o cumprimento do estabelecido nos contratos.20
O doutrinador Caio Mário demonstra sucintamente a evolução dos contratos
romanos;
Atualmente o contrato abrange todo ato jurídico criado pelo concurso de vontades coincidentes,mas nas sociedades antigas, como em Roma, só era efetivado através de formalidades próprias conforme a categoria a que pertencia: verbis, (formalizado por palavras sacramentais) re (pela entrega efetiva do o objeto) ou litteris (pela inscrição no codex). Mais tarde surgiu a categoria solo consensu, ou seja, pelo acordo de vontades, referentes a venda, locação, mandato e sociedade e que dispensavam o formalismo, valendo a materialidade da declaração e, após celebrado, gerava obrigações entre as partes, mesmo que não houvesse conformidade com as vontades dos contraentes.21
18 Cf. CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano, p. 340. 19 Cf. CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano, p. 340. 20 Cf. FIUZA, César. Direito Civil, p. 295. 21 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
13
Sendo assim, os contratos romanos eram convenções que só criavam obrigações. A
extinção e a modificação das obrigações já existentes eram efetuadas através de pactos. Como
os pactos não autorizavam o uso de ação, houve a necessidade de lhe conferirem alguma
eficácia; por isso, foi admitido o Direito de exceção22, ou seja, para os romanos exceptio,
produzindo assim efeitos nas obrigações civis e podendo ser protegido juridicamente.23
Sintetizando, os contratos eram convenções que, desde a época clássica (149-126 a.C. a 305 d.C.), geravam obrigações civis por si mesmos, por força do ius civile. Os pactos, por não fazerem parte da lista de contratos, geravam obrigações naturais, a não ser que fossem acessórios de um contrato ou recebessem força do Direito Pretoriano ou de alguma Constituição Imperial, quanto a estas, já no período pós-clássico (305 a 565).24
Diante de todo o exposto, ficou evidente a relação do Direito contratual romano e o
Direito contratual contemporâneo, em que ficaram demonstradas inúmeras similaridades entre
os dois institutos; como o direito de ação para ver cumprida a obrigação contratual
anteriormente estipulada, dentre outras similaridades.
Como similaridades do Direito contratual romano e o nosso Direito contratual, pode-
se eleger a obrigatoriedade do cumprimento das cláusulas avençadas, a utilização de contratos
pactuados a partir do cumprimento de alguns formalismos, a exemplo do que acontece com o
casamento no Direito contemporâneo, entre outros aspectos.
1.1.2 O contrato sob a óptica da ideologia individualista
Com o advento da Revolução Industrial25 e da Revolução Francesa, veio a
necessidade capitalista de se expandir, produzindo efeitos, como o acúmulo de pessoas em
centros urbanos, a concentração de riquezas por poucos e principalmente a massificação da
sociedade e das relações econômicas e sociais.26
Corrente de pensamento que se consolidou a partir das revoluções burguesas do século XVIII, o liberalismo caracteriza-se por defender as maiores cotas possíveis de liberdade individual frente ao Estado, que deve procurar ser neutro. Postula tanto uma filosofia tolerante da vida como modelo social que conseguiu substituir o
22 Entre as resposta do réu, inclui o Código as exceções (art. 297). Em sentido amplo, exceção abrange toda e qualquer defesa que tenda a excluir da apreciação judicial o pedido do autor, seja no material. Assim, fala-se em exceções processuais.(Humberto Theodoro Júnior, Curso de Direito Processual Civil) 23 Cf. FIUZA, César. Direito Civil, p.298. 24 FIUZA, César. Direito Civil, p. 297. 25 Revolução Industrial: conjunto das transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1760, na Inglaterra
(e mais tarde nos outros países), e caracterizado. Pela substituição da mão-de-obra manual pela tecnologia (tear mecânico e maquina a vapor, a princípio), seguido pela formação de grandes conglomerados industriais. (Dicionário Houaiss da língua portuguesa, editora Objetiva)
26 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil: São Paulo. Saraiva, 2002. p. 25.
14
Antigo Regime e cujos conteúdos se constituíram em fundamento jurídico e político das constituições democráticas. 27
Desta forma, sob a tutela de um Estado liberal fundado na ideologia individualista, os
contratos de forma geral eram utilizados sob total autonomia das partes, ou seja, as partes
definiam, com quem, o que e como contratar, sem limitação por parte do Estado.
A moderna concepção do contrato como acordo de vontades por meio do qual as pessoas formam um vínculo jurídico a que se prendem se esclarece à luz da ideologia individualista dominante na época de sua cristalização e do processo econômico de consolidação do regime capitalista de produção.28
Por este motivo, os contratos começaram a ser utilizados com habitualidade, sendo
considerados um instrumento de grande valia para o desenvolvimento econômico, já que para
o estabelecimento do capitalismo o aumento nas relações econômicas era de grande
importância.29
Nessa época, o liberalismo econômico alcançava o seu apogeu, com o advento da
Revolução Francesa, em 1789, que veio dar o suporte político e filosófico à necessidade
capitalista de se expandir, necessidade esta exposta de forma mais evidenciada com a
Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra alguns anos antes.30
O liberalismo econômico, a idéia basilar de que todos são iguais perante a lei e devem ser igualmente tratados, e a concepção de que o mercado de capitais e o mercado de trabalho devem funcionar livremente em condições, todavia,que favorecem a dominação de uma classe sobre a economia considerada em seu conjunto permitiram fazer-se do contrato o instrumento jurídico por excelência da vida econômica.31
A filosofia do Liberalismo Individual estava pautada na mínima intervenção do
Estado nas relações privadas, para contrapor qualquer resquício herdado do recém-derrubado
Regime Feudal.32 “Cada homem poderia fazer de sua vida privada o que bem entende-se ou
pudesse. Inclusive admitindo e estimulando a alienação, por contrato de trabalho, por parte de
sua liberdade, em troca de recompensa pecuniária.33”
27 CRUZ, Paulo Márcio.Política, Poder, Ideologia e Estado Contemporâneo. 3 ed. Curitiba: Juruá, 2002. p.
89. 28 GOMES. Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.6. 29 Cf. SANTOS, Eduardo Sens dos. O novo Código Civil e as cláusulas gerais: exame da função social do
contrato. Revista de Direito Privado, nº 1, RT, São Paulo: abril-junho de 2002. p. 09. 30 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 25. 31GOMES. Orlando. Contratos, p. 6. 32 Cf. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo Código Civil. São Paulo, 2002. p. 32. 33 CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia e Estado Contemporâneo, p. 93.
15
Para a burguesia, classe recém-denominada como dominante na época, era
absolutamente necessário um arcabouço jurídico que lhe assegurasse plena autonomia para a
expansão de seus negócios, em contraposição ao que havia sido vivenciado até então, quando
na Europa feudal, o soberano tinha amplos poderes de ingerência em todas as esferas da
sociedade.34
Por isto, os contratos dessa época se fundavam na vontade das partes, sendo
necessário para contratar apenas o consentimento dos contratantes referente às cláusulas
avençadas e que seu objeto fosse lícito, quer dizer, não vedado por lei.
As partes tinham total autonomia para contratar, pois o Estado liberal não
intervinhas, considerando que as partes sempre estariam em condições de igualdade e
equilíbrio, sendo respeitado assim somente o consentimento, ou seja, a vontade livre e
consciente dos contratantes, manifestada sem influências externas.35
O contrato surge como uma categoria que serve a todos os tipos de relação entre sujeitos de direito e a qualquer pessoa independentemente de sua posição ou condição social. [...] Não se levava em conta a condição ou posição social dos sujeitos, [...] mas somente o parâmetro da troca, a equivalência das mercadorias, não se distinguia se o objeto de contrato era um bem de consumo ou um bem essencial, um meio de produção ou um bem voluptuário.36
Estes contratos, após celebrados pelas partes, eram considerados de cumprimento
obrigatório, ou seja, as partes contratantes ficavam obrigadas a cumprir o avençado, como se
em lei o contrato se tornasse.
O Estado liberal só interviria na relação contratual se uma das partes deixasse de
cumprir cláusula anteriormente avençada, e, ainda assim, o Estado só interviria mediante a
provocação da parte lesada, ou no caso de estar sendo contratado algo ilegal, ou seja,
contrário às disposições legais.
Esta liberdade utilizada de forma indiscriminada teve resultados muito negativos,
pois as partes economicamente mais fracas nas relações contratuais ficavam não raramente à
mercê de cláusulas abusivas, já que tinham a necessidade de adquirir produtos que estavam
nas mãos de poucos, economicamente mais fortes.
Para o exame dos novos preceitos que regem as atuais figuras contratuais é necessário entender, em primeiro lugar, essa mudança da sociedade. É preciso ter em mente as transformações sociais, econômicas e políticas resultantes da
34 SANTOS, Eduardo Sens dos Santos. A Função social do contrato. Florianópolis: OAB/SC editora, 2004. p.
29. 35 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 26. 36 GOMES. Orlando. Contratos, p. 6.
16
Revolução Industrial, da Revolução Francesa, da colocação em prática do socialismo marxista e das guerras mundiais.37
Os contratantes economicamente mais fortes logo começaram a determinar de que
maneira os contratos ocorreriam, dispondo todas as cláusulas individualmente, sendo apenas
facultado à outra parte a adesão ou não ao contrato. Esta faculdade do aderente contratual é
considerada relativa, já que a parte economicamente mais fraca nem sempre tem a opção de
não contratar, pois necessita do produto deste contrato.
A liberdade de contratar idealizada pelo Estado liberal ficou tolhida pela necessidade
de contratar, devido às desigualdades de condições entre as partes contratantes, ou seja, esta
liberdade passou a ser somente de uma das partes, sendo que a outra parte apenas aderia ao
contrato pré-estabelecido.
Chamam-se contratos por adesão (expressão mais correta do que contratos de adesão) aqueles que não resultam do livre debate entre as partes, mas provém do fato de uma delas aceitar tacitamente cláusulas e condições previamente estabelecidas pela outra.38 Normalmente, ocorre este contrato nos casos de estado de oferta permanente, por parte de grandes empresas concessionárias de serviços públicos, ou outras que estendam seus serviços a um público numeroso, quando já têm pronto, e oferecido a quem deles se utiliza, seu contrato-padrão, previamente elaborado e, às vezes aprovado pela administração. Quando o usuário do serviço se prevalece dele, ou quando o homem do povo entra em relações com a empresa, não discute condições nem debate cláusulas. A sua participação no ato limita-se a dar sua adesão ao paradigma contratual já estabelecido, presumindo-se sua aceitação da conduta que adota.39
Essas desigualdades entre os contratantes surgiram do conjunto de inúmeras
circunstâncias, como a formação de cidades em volta das indústrias, a produção em série, a
massificação das relações contratuais e até mesmo a pós Segunda Guerra mundial, que
importou na ruína econômica de muitos.
Com isto, os contratos paritários que eram acordos de vontades livres, em que se
discutiam as cláusulas e, por fim, acertavam-se os interesses, praticamente se extinguiram,
sendo substituídos na sua grande maioria por contratos padronizados e de adesão, em que à
vontade de apenas uma das partes é livre, restando à outra parte a faculdade de aderir, sem
qualquer discussão de cláusulas, em virtude da necessidade de contratar.40
37 SANTOS, Eduardo Sens dos. O novo Código Civil e as cláusulas gerais: exame da função social do
contrato, p. 9. 38 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 50. 39 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, p. 51. 40 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 25.
17
Esta liberdade individual foi o espírito das codificações do século XIX, cujo
protótipo foi o Código Napoleônico, que também influenciou o Código Civil Brasileiro de
1916, priorizando acima de tudo a liberdade de contratar sem a interferência do Estado em
tais relações de Direito privado.41
1.1.3 O contrato sob a óptica social
Devido a estas mudanças ocorridas nas relações contratuais, em virtude do
capitalismo desenfreado e da massificação dos contratos, o Estado teve que adotar uma
postura mais participativa, impedindo assim a imposição de cláusulas abusivas por parte dos
sujeitos economicamente mais fortes.
Com a evolução do capitalismo industrial, a concentração, a massificação, os horrores da 2º guerra mundial, com o desenvolvimento da tecnologia, principalmente da biotecnologia etc..., a perspectiva muda. O paradigma do estado liberal é submetido ao do estado social intervencionista, protetor do mais fraco. Os direitos da personalidade passam a integrar a esfera privada, protegendo o indivíduo, sua dignidade, contra a ganância e o poderio dos mais fortes. Ao lado deste prisma privatístico, continua a subsistir o público, em socorro do indivíduo contra o estado. Tendo em vista essas duas esferas, privada e pública, os direitos da personalidade pertencem a ambas.
Essa dita liberdade teria maior eficácia se os contratantes estivessem em igualdade de
condições, fato este que raramente acontecia, resultando, na maioria das vezes, que uma das
partes determinasse as circunstâncias do contrato para que a parte economicamente inferior o
cumprisse.42
Desta forma, o Estado é obrigado a adotar uma postura intervencionista para garantir
o equilíbrio econômico e social das partes nas relações contratuais, objetivando assim a
efetivação da vontade das partes através da efetivação da obrigação contratada.
[...] a liberdade e a igualdade ideais do modelo humano abstrato que os fundamentavam ocultavam a dependência e a desigualdade material dos indivíduos e dos grupos sociais. Os desequilíbrios contratuais decorriam do excesso de individualismo e do voluntarismo. Perdendo seu estatuto de valor em si, a vontade deveria de agora em diante servir a justiça e a utilidade social sob o olhar vigilante do direito objetivo. A noção de ordem pública, limite tradicional da liberdade contratual, foi aprofundada. À ordem pública de direção – código moral e social de interesse geral – se acrescentou a ordem pública de proteção – leis de equilíbrio dos interesses particulares em luta contra as injustiças sistêmicas.43
41 Cf. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos contratos no novo Código Civil, p. 33. 42 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 25 43 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos Contratos no novo Código Civil. São Paulo, 2002. p. 39.
18
A intervenção do Estado nas relações econômicas limitou a liberdade das partes em
contratar, os contratos passam a ser dirigidos pelo Estado, sendo que este determina as formas
de contratar.44
A intervenção do Estado é resultado de uma doutrina que representou a reação contra o liberalismo ortodoxo e admite a participação direta e efetiva dos órgãos estatais para a efetivação de políticas econômicas e sociais destinadas a garantir iguais oportunidades a todos os cidadãos, tendo sofrido muitas variações durante s três últimos quartos do século XX.45
O Estado passa a intervir nas relações privadas para garantir o equilíbrio entre as
partes, nascendo daí inúmeros novos institutos, como é o caso das cláusulas abusivas, dos
contratos de adesão que recebiam por parte do Estado uma proteção aos contraentes mais
fracos, como por exemplo os locatários, e os consumidores dentre outros.46
Segundo Orlando Gomes;
A interferência do Estado na vida econômica implicou, por sua vez, a limitação legal da liberdade de contratar e o encolhimento da esfera de autonomia privada, passando a sofrer crescentes cortes, sobre todas, a liberdade de determinar o conteúdo da relação contratual.47
O doutrinador Orlando Gomes prossegue e conclui o seu raciocínio sobre a
intervenção do Estado nas relações contratuais:
Determinado a dirigir a economia, o Estado ditou normas impondo o conteúdo de certos contratos, proibindo a introdução de certas cláusulas, e exigindo, para se formar, sua autorização, atribuindo a obrigação de contratar a uma das partes potenciais e mandando inserir na relação inteiramente disposições legais ou regulamentares.48
Desta forma, o Estado liberal sob o prisma individualista dá lugar a um Estado
intervencionista que adota uma postura coletivista, onde os valores coletivos têm preferência
ao individual, nasce daí a concepção coletivista.49
No concernente à predominância do interesse de ordem pública, a subordinar a vontade do indivíduo ao interesse da coletividade, deve ser acentuado que, a par da interferência de fatores morais ou relativos aos bons costumes, por motivos de ordem econômica, nota-se crescente intervenção do Estado na regulação interna do contrato.50
44 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 35. 45 CRUZ, Paulo Márcio. Política, Poder, Ideologia e Estado Contemporâneo, p. 204. 46 Cf. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade. São Paulo,
1997. p. 19. 47 GOMES, Orlando. Contratos, p.7. 48 GOMES, Orlando. Contratos, p.7. 49 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 36.
19
Essa nova postura do Estado frente às relações contratuais, intervindo de forma a
alcançar o bem comum e a ordem pública, ficou evidenciada na reforma do Código Civil e já
vinha explicitada na redação da Constituição Federal.
Segundo a ordem Pública, preleciona João Baptista Machado,
A ordem pública não só pode ser induzida de um conjunto de normas ou quadros normativos que imperativamente organizam as instituições jurídicas e de certos valores fundamentais com assento constitucional [...], como pode ser a expressão da lógica intrínseca de uma instituição, ou ainda da idéia de ‘razoabilidade’, no sentido do que os americanos chamam o negative Clearing-test: no sentido de que o direito se recusa a dar cobertura ao exercício de uma discricionariedade manifestamente irrazoável (proibição do excesso).51
Os contratantes não mais possuem total autonomia, precisam respeitar limites
impostos pelo Estado. E, além disso, o Estado através do juiz pode modificar relações
contratuais quando entender que estas, se tornaram muito onerosas para uma das partes; ou
seja, se houver mudanças entre a celebração e o cumprimento do contrato que tornem a
obrigação insuportável por uma das partes, esta relação se extinguirá, este instituto é chamado
de cláusula rebus sic stantibus.52
Este novo regime nasce com o intuito de proteger os interesses contratuais de ambos
os contratantes e, acima de tudo, o interesse social.
Sendo assim, o contrato no decorrer dos tempos foi sofrendo inúmeras mutações,
que por fim o tornaram um contrato que, além de atingir as partes atinge toda a sociedade,
devendo desta forma ser celebrado respeitando a vontade das partes e o interesse social.
1.2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO
Todas estas modificações de um Estado Liberal e seu liberalismo econômico para o
Estado Contemporâneo, intervencionista, resultaram na chamada Constitucionalização do
Direito privado e, conseqüentemente, do Direito contratual.
50 OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro. A Evolução do Direito Privado e os Princípios Contratuais: Mundo
jurídico. Disponível em http://www.munfojuridico-.adv.br/html/artigos/documentos/texto392. Acesso em 24/09/03.
51 MACHADO, João Baptista. Do Princípio da Liberdade Contratual. Obra dispersa. Braga: Scientia Iuridica, 1991, v. I, p. 642.
52 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código Civil: p. 77.
20
Esta constitucionalização surgiu como resposta às graves crises sociais instaladas sob
a égide do Estado liberal, sendo conseqüência deste fato o intervencionismo do Estado nas
relações privadas.53
A falsa liberdade pregada pelo individualismo estava calcada na suposta igualdade de
todos perante a lei; devido a esta liberdade exacerbada e a tamanha desigualdade resultante, o
Estado teve que adotar uma postura intervencionista nas relações privadas, uma concepção
antes só tratada pela Constituição.54
Esta constitucionalização não é resultado do novo Código Civil; a doutrina e a
jurisprudência já entendiam pela intervenção do Estado nas relações contratuais e,
conseqüentemente, da socialização do Direito privado. Além disso, o legislador, através de
leis especiais e extravagantes com intuito de reestruturar o quadro social já estava a aplicar as
legislações que corroboravam o papel social da Constituição.55
O atual Código Civil só veio solidificar uma situação que já estava pacificada pela
melhor doutrina e, conseqüentemente, pela jurisprudência; nada mais salutar, pois em razão
da hierarquia das leis o ordenamento jurídico como um todo deve adequar-se aos valores e
princípios dispostos na lei maior.
Para melhor compreensão desta constitucionalização do Direito civil e, por
conseqüência, do Direito contratual é necessária a superação da divisão idealizada entre o
Direito público e o Direito privado.56
Historicamente o Direito público e o Direito privado sempre foram tratados como
entes distintos e inrelacionáveis, sendo considerado o Direito público quando o Estado
integrava a relação e, conseqüentemente, Direito privado quando as relações se baseavam
entre indivíduos.
A divisão dicotômica entre o direito público e direito privado, de remotas origens romanas, desfigura-se ante a trepidação do século, em que o interesse individual, social e o estatal se entrelaçam de tal forma que nem sempre é fácil estabelecer suas fronteiras e as suas prioridades.57
No entender do ilustre doutrinador Caio Mário:
Direito Público é o que corresponde às coisas do Estado: Direito Privado, o que pertence à utilidade das pessoas.58
53 Cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro. Renovar, 1999. p. 5. 54 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 36. 55 Cf. TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro. Renovar, 1999. p. 4. 56 Cf. WIEACKER, Franz. História do Direito Privado 57 MEIRA, Silvio. O Instituto dos Advogados brasileiros e a cultura jurídica nacional. O direito vivo.
Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1984. p.285. 58 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Civil. v. I. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.
11.
21
Esta distinção não encontra mais sustentação no Direito contemporâneo, em virtude
de que as relações individuais, sociais e estatais atualmente se entrelaçam e até mesmo se
confundem; exemplo disto são os contratos ditos privados, que sofrem a fiscalização e até
mesmo a intervenção do Estado para proteger o equilíbrio das partes.
[...] a separação do direito em público e privado, nos termos em que era posta pela doutrina tradicional, há de ser abandonada. A partição, que sobrevive desde os romanos, não mais traduz a realidade econômica - social, nem corresponde à lógica do sistema, tendo chegado o momento de empreender a sua reavaliação.59
No Estado contemporâneo, ao contrário deste tradicional fracionamento do Direito
existe uma unidade do ordenamento jurídico onde o Direito público e o Direito privado se
completam.
Com todas estas mudanças nas relações contratuais adveio a constitucionalização dos
contratos, ou seja, os contratos particulares, além de respeitarem a vontade das partes
precisam respeitar os valores e princípios constitucionais; são os chamados contratos
constitucionalizados ou contratos sociais.60
Esta Constitucionalização do Direito civil transforma de certa forma o foco do
Direito civil da propriedade, do patrimônio, para privilegiar valores constitucionais como a
dignidade da pessoa humana e os direitos sociais de um modo geral.
Com a evolução dos contratos, traçada desde o período romano, passando pelo
Estado moderno ou liberal e chegando ao Estado social contemporâneo, e demonstrado o
declínio da dicotomia entre o Direito público e privado e a constitucionalização do Direito
contratual, faz-se necessário exibir a repercussão desta evolução nos princípios informadores
do Direito contratual.
A análise destes princípios contratuais e sua evolução no decorrer do processo
histórico contratual serão matéria do capítulo seguinte.
59 MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista de direito Civil,
São Paulo, v. 65, jul./set. 1993, p. 25. 60 Cf. BEVILAQUA, Clóvis. A Constituição e o Código Civil. Rio de Janeiro: Destaque, 1995. p. 76.
22
2 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS
Neste segundo capítulo, pretende-se demonstrar a repercussão do desenvolvimento
das relações contratuais nos princípios norteadores do Direito contratual traçando um paralelo
entre os princípios clássicos e os princípios modernos do contrato.
Os contratos, como outras matérias, possuem uma série de princípios reguladores que
projetam normas gerais que devem ser seguidas para a aplicação do instituto, sob pena de
estarem ferindo a vontade da lei.61
Os princípios devem ser utilizados para a criação de novas legislações sobre o
assunto pelo interpretador da lei, e até mesmo pelo aplicador da lei para que seja reconhecido
e alcançado o intuito da matéria.62
No entender da doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio jurídico é:
[...] mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe da sentido harmônico.63
Os princípios contratuais sempre refletiram a realidade social em que estavam
inseridos, de forma que, com as mudanças sociais ocorridas, estes tiveram modificações, sob
pena de tornarem-se ineficazes.
2.1 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS CLÁSSICOS.
Os princípios clássicos tiveram como principal influência o liberalismo econômico
do século XIX, onde a liberdade das relações individuais estava no seu ponto máximo, o
capitalismo se estabelecia de forma desenfreada e não se admitia a mínima intervenção do
Estado nas relações contratuais.64
61 Cf. FIUZA, Cesar. Novo direito civil: curso completo, p. 306. 62 Cf. FIUZA, Cesar. Novo direito civil: curso completo, p. 306. 63 MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5 ed. São Paulo. Malheiros. 1994. p.
450. 64 Cf. BIERWAGEN. Mônica Yoshizato. Pricípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p.25.
23
Os princípios clássicos nascem desta ideologia liberal e individualista, que entende
que os indivíduos estão em grau de igualdade e que não há necessidade da intervenção do
Estado nas relações contratuais. O reflexo disto é a total liberdade para os contratantes, a
mínima intervenção estatal e a obrigatoriedade do cumprimento de contratos anteriormente
estabelecidos pelas partes.65
A doutrina não é pacífica na estipulação dos princípios clássicos do contrato, sendo
que cada autor tem a sua própria divisão.
Apenas como exemplo, o Professor Fernando Noronha explica que:
Se olharmos o que se diz nos mais recentes compêndios acadêmicos dados à estampa no País, verificaremos que, realmente, se continua considerando o contrato dominado pelos dois princípios tradicionalmente tidos por fundamentais: a liberdade contratual (embora se a diga limitada pela ordem pública) e a vinculação das partes ao estabelecido. Assim, o Prof. Limongi França, nas suas Instituições, dadas à estampa em 1988, ensina, aliás, reproduzindo lição que já constava do seu Manual de direito civil, que ‘a Doutrina,de modo genérico, tem repetido o velho e sábio ensinamento segundo o qual os princípios fundamentais que dominam a obrigação contratual são três: a autonomia da vontade, que ‘é o princípio por força do qual as partes têm ampla liberdade para contratar’, o princípio da supremacia da ordem pública, por força do qual “a liberdade de contratar não deve colidir com os interesses da ordem pública”, e o princípio da obrigatoriedade da convenção, ‘segundo o qual as obrigações assumidas devem ser fielmente cumpridas’.66
Mais adiante, o mesmo autor relaciona os princípios expostos por Maria Helena
Diniz:
A Profª Maria Helena Diniz, em compêndio editado em 1984, relaciona, pela ordem, os princípios da autonomia da vontade(‘no qual se funda a liberdade contratual dos contratantes’), do consensualismo (“segundo o qual o simples acordo de duas ou mais vontades basta para gerar o contrato válido’), da obrigatoriedade da convenção (‘pelo qual as estipulações feitas no contrato devem ser fielmente cumpridas... porque o contrato,uma vez concluído, incorpora-se ao ordenamento jurídico,constituindo uma verdadeira norma de direito’), da relatividade dos efeitos do contrato (‘porque este não aproveita nem prejudica terceiros,vinculando exclusivamente as partes que nele intervieram’) e, por último, o princípio da boa-fé (‘as partes deverão agir com lealdade e confiança recíprocas’).67
Desta feita, adota-se como princípios clássicos para a melhor consecução deste
trabalho o princípio da autonomia da vontade, da obrigatoriedade contratual, do
consensualismo e, por último, da relatividade dos efeitos da relação contratual.
65 Cf. BIERWAGEN. Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p.26. 66 NORONHA, F. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça
contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 44. 67 NORONHA, F. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça
contratual. p. 45.
24
É importante ainda salientar que este trabalho não visa a esgotar os princípios mas,
sim, a demonstrar a sua inter-relação com a realidade social e sua importância para o
entendimento da matéria contratual e seus objetivos.
2.1.1 Princípio da Autonomia da Vontade.
O princípio da autonomia da vontade estabelecia sob a influência do liberalismo
econômico a liberdade dos indivíduos para que contratassem, o que quisessem, com quem
quisessem e quando quisessem.
É o mais importante princípio. É ele que faculta às partes total liberdade para concluir seus contratos.Funda-se na vontade livre, na liberdade de contratar. O contrato é visto como fenômeno da vontade e não como fenômeno econômico-social.Exerce-se a autonomia da vontade em quatro planos. a) Contratar ou não contratar.Ninguém pode ser obrigado a contratar, apesar de ser
impossível uma pessoa viver sem celebrar contratos. b) Com quem e o que contratar.As pessoas devem ser livres para escolher seu parceiro contratual e o objeto do contrato. c) Estabelecer as cláusulas contratuais, respeitados os limites da Lei. d) Mobilizar ou não o Poder Judiciário para fazer respeitar o contrato, que, uma vez celebrado, torna-se fonte formal de Direito.68
Verifica-se que o princípio da autonomia da vontade vem ao encontro de toda a
ideologia liberal da segunda metade do Século XIX, época que marcou o desenvolvimento do
capitalismo industrial e o advento da Revolução Francesa, que, baseada principalmente no
asseguramento do amplo Direito de propriedade, estendeu esse direito aos contratos.69
A autonomia da vontade é o mais importante princípio clássico, é dele que decorrem
os outros princípios, isto porque a autonomia da vontade representa a ideologia da realidade
social em que estava inserido, ou seja, o liberalismo econômico que consistia na liberdade
individual e na mínima intervenção possível do Estado nas relações privadas.70
A doutrina da autonomia da vontade considera que a obrigação contratual tem por única fonte a vontade das partes. A vontade humana é assim o elemento nuclear, a fonte e a legitimação da relação jurídica contratual e não a autoridade da lei. Sendo assim, é da vontade que se origina a força obrigatória dos contratos, cabendo à lei simplesmente colocar à disposição das partes instrumentos para assegurar o cumprimento das promessas e limitar-se a uma posição supletiva.71
68 FIUZA, César. Novo direito civil: curso completo, p. 307. 69 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 8. 70 Cf. BIERWAGEN. Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 26. 71 LIMA. Claudia Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. ver., atual. e ampl., São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002. p. 48.
25
Este princípio foi de fundamental importância no seu momento histórico, pois
acelerou e ampliou as relações de troca em um período em que o capitalismo se desenvolvia
e precisava acima de tudo da transferência de riquezas.72
Silvio Rodrigues entende que o princípio da autonomia da vontade se compõe de
dois outros princípios73 auto-explicativos:
a) princípio da liberdade de contratar ou não; segundo este princípio todo o contrato
é firmado porque as partes assim o querem, sem sofrer nenhum tipo de coação para efetivação
deste, obedecendo única e exclusivamente a vontade própria.
b) princípio da liberdade de contratar aquilo que entender; já este princípio depende
que as cláusulas contratuais também são manifestação da livre vontade das partes.
Sobre o mesmo assunto, entende César Fiúza74 que o princípio da autonomia da
vontade divide-se em quatro planos:
a) Contratar ou não contratar. Ninguém pode ser obrigado a contratar, apesar de ser impossível uma pessoa viver sem celebrar contratos. b) Com quem e o que contratar. As pessoas devem ser livres para escolher o seu parceiro contratual e o objeto do contrato. c) Estabelecer as cláusulas contratuais, respeitando os limites da lei. d) Mobilizar ou não o poder judiciário para fazer respeitar o contrato, que, uma vez celebrado,torna-se fonte formal de Direito.
A autonomia da vontade foi um princípio eficaz por muito tempo, quando os
contratantes em igualdade de condições detinham liberdade de contratar ou não, de
estabelecer as cláusulas pertinentes ao contrato e adimpli-lo ou modificá-lo conforme melhor
aprouvesse às partes.75
Ocorre que a massificação dos contratos gerou uma certa desigualdade econômica
entre as partes, que não mais discutiam a forma de contratar, somente aderiam a contratos
previamente estabelecidos; desta forma, tornou-se o princípio da autonomia da vontade
ineficaz para a justa liberdade em contratar.76
Enquanto os contratantes tornaram-se economicamente desiguais, a lei ainda não os
diferenciava, tratando-os como iguais; desta forma, os contratos transformaram-se em
ferramentas de exploração dos economicamente mais fracos. Em razão disto, esse princípio
teve que ser reformulado para retomar sua eficácia perante os contratos contemporâneos.
72 Cf. SANTOS, Eduardo Sens dos. O novo Código Civil e as cláusulas gerais: exame da função social do
contrato, p. 9. 73 Cf. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. v.3. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 15. 74 FIUZA, César. Novo direito civil: curso completo, p. 307. 75 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 33. 76 Cf. BIERWAGEN. Mônica Yoshizato. Pricípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p.35.
26
Pode-se afirmar que tal princípio ainda vigora quanto aos contratos, porém, sua
incidência encontra limitações cada vez mais evidentes, diante das transformações ocorridas
no instituto dos contratos, que serão detalhadas mais adiante.
2.1.2 Princípio da obrigatoriedade de contratar
Quanto ao princípio da obrigatoriedade contratual, também conhecido pelo pacta
sunt servanda este estabelece que os pactos avençados devem ser cumpridos, conforme
preleciona a célebre frase “o contrato faz lei entre as partes”.
Segundo a matéria, entende Silvio Rodrigues que o contrato estabelecido segundo os
ditames legais deve ser cumprido como se fizesse uma espécie de “lei privada 77” entre as
partes.
Este princípio também se justifica na concepção do Direito contratual clássico, em
que os contratos eram firmados através da igualdade de condições dos contratantes e na livre
autonomia de contratar; desta forma, nada mais salutar que a obrigatoriedade do
cumprimento destas disposições contratuais estabelecidas respeitando os demais princípios
clássicos.
Desde o início, mesmo sob o prisma liberal, evidentemente que o princípio da
obrigatoriedade contratual encontrou seus limites, principalmente no que diz respeito aos
pressupostos e requisitos necessários à validade do contrato.78
Como evidenciado no primeiro capítulo, mesmo no sistema liberal os contratos eram
submetidos a limites. Limites estes que eram apenas a legalidade do objeto do contrato e o
respeito à suposta vontade real das partes. No entanto, uma vez que ocorrem os
cumprimentos destes requisitos e pressupostos, o princípio da obrigatoriedade contratual
prevê que as cláusulas estipuladas são imodificáveis e devem ser cumpridas.
Nesse sentido:
O princípio da força obrigatória consubstancia-se na regra de que o contrato é lei entre as partes. Celebrado que seja, com observância de todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, deve ser executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos. O contrato obriga os contratantes, sejam quais forem às circunstâncias em que tenha de ser cumprido. Estipulado validamente seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para os contratantes, força obrigatória Diz-se que é intangível para significar a irretratabilidade do acordo de vontades.79
77 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. v.3. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 17. 78 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 33 79 GOMES, Orlando. Contratos, p. 36.
27
Pode-se perceber que tal princípio retrata fielmente a época em que houve a criação
do Estado liberal, em que o predomínio da vontade individual era evidente e o que era
combinado entre as partes era o justo.
Nenhuma consideração de equidade justificaria a revogação unilateral do contrato ou a alteração de suas cláusulas,que somente se permitem mediante novo concurso de vontades. O contrato importa restrição voluntária da liberdade; cria vínculo do qual nenhuma das partes pode desligar-se sob o fundamento de que a execução a arruinará ou de que o não teria estabelecido se houvesse previsto a alteração radical das circunstâncias.80
Mas, a obrigatoriedade de contratar como os demais princípios clássicos, precisou
ser modificada, pois a igualdade de condições entre as partes não mais persiste, sendo injusta
a obrigatoriedade contratual de cláusulas em que uma das partes se submete às estipulações
da outra. Nos contratos contemporâneos não mais persiste a igualdade de condições entre as
partes, fazendo com que uma das partes estipule as regras contratuais e a outra somente
venha a aderir a essas condições, sem nem mesmo discutir.
Em razão disto é que o princípio da obrigatoriedade contratual ou do pacta sunt
servanda não pode ser cumprido de forma eficaz, ou seja, a partir do momento em as partes
estão em condições heterogêneas e a liberdade contratual é tangida pela necessidade em
contratar, o contrato torna-se injusto e, por conseqüência, o princípio da obrigatoriedade
contratual também.
O princípio da obrigatoriedade contratual, como os demais princípios clássicos, está
adstritos a requisitos para sua perfeita validade, requisitos estes que não mais fazem parte da
realidade econômica social, ou seja, para a eficácia plena da obrigatoriedade contratual é
necessário a igualdade entre as partes contratantes e vontade livre em contratar o que quiser,
com quem quiser, do modo que quiser e quando quiser.81
2.1.3 Princípio do consensualismo
Segundo este princípio, para a formação dos contratos era necessário o consenso das
partes sobre seu conteúdo e, por óbvio, que não fosse defeso em lei.82
Este princípio vem sedimentar como característica basilar dos princípios clássicos a
livre vontade das partes e a desnecessidade de formalidades na confecção dos contratos em
sua grande maioria.
80 GOMES, Orlando. Contratos, p. 36. 81 Cf. BESSONE, Darci. Do contrato, p. 19.
28
O princípio do consensualismo dita consideraram-se os contratos celebrados, obrigando, pois, as partes, no momento em que estas chegam a consenso, na forma da lei, sendo dispensada qualquer formalidade adicional.83
O consensualismo ficava claramente evidenciado nos contratos clássicos, em que
era negociada individualmente cada uma das cláusulas, acertando anteriormente toda a
matéria do contrato para depois firmá-lo.84
No direito moderno, o ‘consensualismo’constitui o princípio das relações de direito privado, e os atos jurídicos são largamente liberados de formas rígidas, pois os modos absentes de formalismo mais eficazes de expressão da vontade são aqueles de natureza a engendrar um ato jurídico válido quo ad substantiam.85
Historicamente, já no Direito romano o consensualismo era requisito dos contratos,
mas, além do consensualismo era necessário o cumprimento de certas solenidades, como
ainda hoje acontece com o casamento.
Em nossos dias o formalismo aparece como exceção, se não como aberração. São poucas as hipóteses, englobando, sobretudo os atos unilaterais, em que o legislador se reteve sobre as regras do consensualismo, para exigir, o respeito a certas formas e solenidades, sob pena de nulidade do ato.86
Este, como todos os princípios clássicos contratuais, se baseiam na liberdade
volitiva individual de contratar; essa liberdade não produziu somente efeitos negativos, mas
também foi uma das molas propulsoras para a aceleração do capitalismo e da revolução
industrial, como já se discutiu anteriormente.
O princípio do consensualismo contratual era outra característica forte dos contratos
clássicos de um modo geral; os contratos desta época eram avençados após intensa discussão
das cláusulas que seriam estabelecidas por este contrato.
2.1.4 Princípio da relatividade dos efeitos da relação contratual
Este princípio também é uma grande marca do liberalismo econômico, em que
entender-se-ia que os contratos estipulados só produziam efeitos entre as partes, não
aproveitando nem prejudicando terceiros.87
82 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 79. 83 FIUZA, Cesar. Novo direito civil: curso completo, p. 309. 84 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 78. 85 STRENGER, I. Da autonomia da vontade, p. 18. 86 STRENGER, I. Da autonomia da vontade, p. 17. 87 Cf. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. v.3. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 17.
29
A relatividade dos efeitos demonstrava o caráter individualista da época, quando os
contratos eram estabelecidos para satisfazer única e exclusivamente as necessidades e
vontades das partes que o integravam.88
Sua importância era evidente, já que havia total liberdade de contratar, respeitando-
se única e exclusivamente a vontade das partes; em virtude disto, era necessário que os
efeitos destes contratos só atingissem as partes, pois foram as únicas que manifestaram a
vontade para contratação.89
2.2 DOS PRINCÍPIOS CONTRATUAIS MODERNOS
Devido às mudanças ocorridas nas relações econômicas e sociais, e por
conseguinte, às desigualdades das relações contratuais, os princípios clássicos tiveram que
sofrer uma profunda reformulação, sob pena de tornarem-se contratos injustos, em que uma
das partes economicamente superior explora e dita as cláusulas dos contratos em face dos
economicamente mais fracos.90
Os princípios clássicos fundavam-se, como já analisado, basicamente na igualdade
das partes e na livre expressão da vontade; ocorre que no decorrer da História os contratos
em igualdade de condições somente persistiam na teoria, pois no plano empírico os
contratantes estavam a cada dia mais desiguais e obviamente com menor expressão de
vontade livre nas avenças.
Em virtude destas mudanças sociais, os princípios clássicos tiveram que ser
reformulados dando lugar a novos princípios, em que o Estado adota uma postura mais
participativa nas relações contratuais de forma específica, conforme demonstrado no capítulo
anterior.
A crise social gerada pela conjugação do individualismo jurídico e o liberalismo econômico do século XIX e início do XX ensejou uma reformulação dos seus princípios basilares tendentes a maior “socialização” e publicização do direito das obrigações: o princípio da autonomia da vontade, cedendo parte de seu espaço para o dirigismo contratual, buscava resgatar a igualdade das partes perdida com o fenômeno da massificação das relações contratuais; o princípio da obrigatoriedade
88 Cf. BIERWAGEN. Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 32. 89 Cf. BIERWAGEN. Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 33. 90 Cf. FIUZA, César. Novo direito civil: curso completo. p. 310.
30
foi amenizado para admitir a inexecução dos contratos pelo desequilíbrio contratual decorrente de acontecimento imprevisível e extraordinário; o princípio da relatividade dos efeitos foi remodelado por força de reconhecimento de uma função social dos contratos; e o princípio da intangibilidade foi relativisado para admitir a intervenção do Estado em certos casos premente de interesse social.91
Esta nova principiologia está apoiada em novo Estado de concepção social, gerando
princípios que valorizam o interesse social acima do individual, coibindo as desigualdades
instaladas nas relações contratuais através de uma participação mais ativa nestas relações e,
desta forma, libertando a vontade individual das partes.92
Esta intervenção do Estado através dos princípios contratuais para evitar a
desigualdade e seus efeitos é praticada através da estipulação de medidas que igualam o
contratante economicamente mais fraco ao economicamente superior; neste sentido, Sílvio
Rodrigues cita como exemplos desta intervenção do Estado: a lei da usura, as leis do
inquilinato e a lei de luvas.
No caso da lei do inquilinato fica evidenciado que, no contrato de locação de imóvel
para comércio ou indústria, o inquilino encontra-se em posição inferior na estipulação do
contrato, pois após se instalar no imóvel, constituir um ponto comercial e clientela, este
necessita continuar no ponto, sendo facilmente explorado pelo dono do imóvel.
Em virtude desta realidade, o legislador, preocupado em atenuar este desequilíbrio
contratual, interveio nestas relações estipulando limitações ao poder de propriedade do
locatário e sua liberdade de contratar. 93
Art. 51. Nas locações de imóveis destinados ao comércio, o locatário terá direito à renovação do contrato, por igual prazo, desde que, cumulativamente: I - o contrato a renovar tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado; II - o prazo mínimo do contrato a renovar ou a soma dos prazos ininterruptos dos contratos escritos seja de cinco anos; III - o locatário esteja explorando seu comércio, no mesmo ramo, pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos. § 1º O direito assegurado neste artigo poderá ser exercido pelos cessionários ou sucessores da locação; no caso de sublocação total do imóvel, o direito à renovação somente poderá ser exercido pelo sublocatário. § 2º Quando o contrato autorizar que o locatário utilize o imóvel para as atividades de sociedade de que faça parte e que a esta passe a pertencer o fundo do comércio, o direito à renovação poderá ser exercido pelo locatário ou pela sociedade. § 3º Dissolvida a sociedade comercial por morte de um dos sócios, o sócio sobrevivente fica sub-rogado no direito à renovação, desde que continue no mesmo ramo.
91 BIERWAGEN. Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 47. 92 Cf. FIUZA, César. Novo direito civil: curso completo. p. 311. 93 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, p.19.
31
§ 4º O direito à renovação do contrato estende-se às locações celebradas por indústrias e sociedades civis com fim lucrativo, regularmente constituídas, desde que ocorrentes os pressupostos previstos neste artigo. § 5º Do direito à renovação decai aquele que não propuser a ação no interregno de um ano, no máximo, até seis meses, no mínimo, anteriores à data da finalização do prazo do contrato em vigor.94
E ainda,
Art. 52. O locador não estará obrigado a renovar o contrato se: I - por determinação do Poder Público, tiver que realizar no imóvel obras que importarem na sua radical transformação; ou para fazer modificação de tal natureza que aumente o valor do negócio ou da propriedade; II - o imóvel vier a ser utilizado por ele próprio ou para transferência de fundo de comércio existente há mais de um ano, sendo detentor da maioria do capital o locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente. § 1º Na hipótese do inciso II, o imóvel não poderá ser destinado ao uso do mesmo ramo do locatário, salvo se a locação também envolvia o fundo de comércio, com as instalações e pertences. § 2º Nas locações de espaço em shopping centers, o locador não poderá recusar a renovação do contrato com fundamento no inciso II deste artigo. § 3º O locatário terá direito à indenização para ressarcimento dos prejuízos e dos lucros cessantes que tiver que arcar com a mudança, perda do lugar e desvalorização do fundo de comércio, se a renovação não ocorrer em razão de proposta de terceiro, em melhores condições, ou se o locador, no prazo de três meses da entrega do imóvel, não der o destino alegado ou não iniciar as obras determinadas pelo Poder Público ou que declarou pretender realizar.95
A lei supracitada demonstra a característica intervencionista do Estado
contemporâneo que está inserida na nova principiologia contratual, pois a mesma possui
ferramentas para que o Estado intervenha nas relações contratuais, possibilitando desta forma
a justiça contratual.
Quanto à nova principiologia contratual, a doutrina não é pacifica em enumerá-los,
mas como objeto deste estudo serão analisados os princípios a seguir:
2.2.1 Princípio da autonomia privada
O princípio da autonomia privada, diferentemente do princípio clássico da
autonomia da vontade, não está adstrito somente ao caráter volitivo, embora seja seu
principal aspecto; a autonomia privada obedece mais uma série de aspectos externos que
condicionam o conteúdo do contrato a ser estabelecido.96
94 BRASIL. Lei do Inquilinato. Lei n. 8245, de 18 de outubro de 1991. Disponível em: www.planalto.gov.br.
Acesso em 03/10/2004. 95 BRASIL. Lei do Inquilinato. Lei n. 8245, de 18 de outubro de 1991. Disponível em: www.planalto.gov.br.
Acesso em 03/10/2004. 96 Cf. FIUZA, César. Novo direito civil: curso completo. p. 312.
32
Primeiramente, porque a vontade dos contratantes não é livre desembaraçada do
meio externo; ela está recebendo influência de necessidades e outros aspectos que podem
manipular a vontade dos contratantes, ou seja, no dizer de César Fiúza; “a vontade não gera
nada” ela é resultado do marketing, d a necessidade e de outros aspectos externos.97
Outra característica que separa a autonomia privada de estar condicionada somente à
vontade das partes é que no decorrer histórico das relações econômicas os contratos
tornaram-se injustos em razão da desigualdade de condições entre os contratantes,
eliminando a liberdade volitiva nos contratos, conforme já discutido anteriormente.
Concernente a toda esta desigualdade gerada no decorrer da História, os contratos
passaram a ser disciplinados de forma mais ativa pelo Estado, para proteção dos interesses
individuais dos contratantes e acima de tudo do interesse social.
É o intervencionismo estatal que, embora não tenha aniquilado o conceito tradicional da autonomia da vontade, passou a limitá-lo. A liberdade dos contraentes sofreu considerável redução, no sentido de que se subordinam, hoje, à prevalência e preponderância do interesse social sobre o particular. O que se pode apontar como a nota predominante nesta quadra da evolução do contrato é o reforçamento de alguns conceitos, como o da regulamentação legal do contrato, a fim de coibir abusos advindos da desigualdade econômica.98
A liberdade de contratar ainda persiste nas relações contratuais através da autonomia
privada, e é de fundamental importância para o Direito contratual, embora de forma um
pouco mais tolhida em razão do intervencionismo estatal nas relações contratuais.
Importante limitação à liberdade de determinação do conteúdo do contrato resulta de outro ato de autonomia privada chamada negócio ou contrato normativo. Trata-se de um acordo de vontades pelo qual dois grupos traçam regras para o conteúdo de uma série de contratos a se concluírem pelos indivíduos a eles pertencentes. O contrato normativo típico é o contrato coletivo de trabalho.99
Este intervencionismo do Estado no poder da autonomia privada está evidenciado
pelo Código Civil, quando disserta que a liberdade contratual será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato, com fulcro no art. 422 do atual Código Civil.100
97 FIUZA, César. Novo direito civil: curso completo. p. 313. 98 MOREIRA, Marcelo Silva. O papel do Estado juiz em face do princípio da autonomia da vontade nos contratos. Revista Âmbito jurídico. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/aj/dcivil0040.htm Acesso em 29/08/2004. p. 1. 99 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 28. 100 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.
33
2.2.2 Princípio da boa-fé
Quanto ao princípio da boa-fé, é necessário preliminarmente que seja feita uma
distinção entre a chamada boa-fé objetiva e a subjetiva, ambas constantes nas disposições do
Código Civil Brasileiro.
A chamada boa-fé subjetiva consiste em aspectos internos do sujeito, situação de
desconhecimento, de agir sem consciência dos fatos reais; está disciplinada no código civil
por inúmeras vezes como, por exemplo, na posse de boa-fé em que o possuidor a detém
desconhecendo a integridade do título de propriedade (art. 1201 do CCB).101
O princípio da boa-fé possui várias aplicações no nosso direito. A boa-fé subjetiva, entendida como um estado de espírito, estado de consciência, como o conhecimento ou desconhecimento de uma situação, fundamentalmente psicológica, encontra-se prevista no nosso Código Civil de 1916, em inúmeros artigos.102
Já a boa-fé objetiva, trata-se de um padrão de comportamento, um modo de agir
honesto e de boa índole, demonstrando uma atitude de honradez e correção; este é o enfoque
querido pelo princípio contratual da boa-fé e o comportamento exigido pelo artigo 422 do
Código Civil.
A boa-fé objetiva possui dois sentidos diferentes: um sentido negativo e um positivo. O primeiro diz respeito a obrigação de lealdade, isto é, de impedir a ocorrência de comportamentos desleais; o segundo, diz respeito à obrigação de cooperação entre os contratantes, para que seja cumprido o objeto do contrato de forma adequada com todas as informações necessárias ao seu bom desempenho e conhecimento (como se exige principalmente nas relações de consumo.103
O princípio da boa-fé, como os princípios modernos, se caracteriza pela intervenção
do Estado nas relações privadas para estabelecer igualdade e a vontade livre das partes nas
relações contratuais.
É salutar demonstrar que a boa-fé objetiva não nasceu com o novo Código Civil,
embora não constasse de forma explícita no Código Civil de 1916, a boa-fé já está
disciplinada por vários diplomas legais como a Lei de Introdução ao Código Civil e até a
Constituição Federal.104
A Constituição de 1988, em seu art, 3º, quando diz Constituem objetivos fundamentais da \República Federativa do Brasil: I –construir uma sociedade livre, justa e solidária [...] ,traça as coordenadas para extração do princípio da boa-fé:
101 Art. 1201. É de boa-fé, a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa. 102 BALBINO, Renata Domingues Barbosa. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil . Artigo
disponível em www.gontijo-familia.adv.br/ escritório/outros181.html em 19/09/03. p. 2. 103 BALBINO, Renata Domingues Barbosa. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil. p. 3. 104 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras da interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 51.
34
solidariedade, colaboração entre os contratantes, função social, dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).105
Quanto ao princípio da probidade, também regulamentado pelo artigo 422 do Código
Civil, a maior parte da doutrina entende seja um dos requisitos da boa-fé objetiva, ou seja, o
legislador teve a intenção de reforçar o princípio da boa-fé objetiva e introduziu uma das
características da boa-fé objetiva, para garantir que o princípio da boa-fé do artigo 422 fosse
interpretado de forma objetiva.106
Desta forma, o princípio da probidade está inserido no princípio da boa-fé objetiva,
visto que esta se caracteriza como um modo de agir probo, honesto, leal.
105 BALBINO, Renata Domingues Barbosa. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código Civil. p. 1. 106 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras da interpretação dos contratos no novo Código
Civil, p. 49.
35
3 AS CLÁUSULAS GERAIS NO DIREITO E SUA APLICAÇÃO NA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
3.1 CLÁUSULAS GERAIS.
Para entender no que consistem as cláusulas gerais e qual a sua utilidade para a
atualização do Direito nas constantes mutações ocorridas na sociedade no decorrer da História
é necessário que se destaque a diferenciação do sistema fechado e aberto.
Importante também é o momento histórico que utilizou de forma mais asseverada
cada um dos sistemas, refletindo a vontade e o intuito da sociedade.
3.1.1 Sistema de Direito fechado
Com a revolução francesa e a burguesia tomando o poder, houve um
enfraquecimento da justiça em virtude do receio da burguesia em relação ao recém deposto
domínio da nobreza e do clero nas decisões judiciárias.107
Dois motivos levaram à adoção de um sistema fechado de direito positivista:o receio da insegurança causada até então pela interferência da nobreza e do clero nas decisões judiciais e a possibilidade de dominação da sociedade por leis que não admitiam interferências que não advindas do próprio legislativo.108
Conseqüentemente, com a chegada da burguesia no legislativo, esta adotou uma
concepção muito mais exegética, ou seja, determinando uma legislação que diminuísse a
capacidade do magistrado de interpretar a lei.109
Fica portanto claro que, segundo a escola exegese, a lei não deve ser interpretada segundo a razão e os critérios valorativos daquele que deve aplicá-la, mas, ao contrário, esta deve submeter-se completamente à razão expressa na própria lei110.
Esta técnica legislativa não permitia ao magistrado amplitude na valoração do caso
fático, tornando o juiz, como no dizer de Montesquieu, em simples “ boca da lei”, sem o
mínimo de autonomia em sua decisão.111
107 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 116. 108 SANTOS, Eduardo Sens dos. O novo código civil e as cláusulas gerais, p. 117. 109 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 116. 110 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo. Ícone, 1995. p. 87. 111 SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 116.
36
Este sistema entende que a lei deve ser clara e precisa de modo a limitar o
julgamento das lides, na interpretação gramatical da letra da lei; ocorre que, além disso, a
legislação tem que atingir todas as relações e lides ocorridas no plano empírico, não sendo
concebível que determinadas relações sociais, econômicas e políticas estejam à margem do
ordenamento jurídico.112
O dógma da onipotência do legislador, de fato, implica que o juiz deve sempre encontrar a resposta para todos os problemas jurídicos no interior da própria lei, visto que nela estão previstos aqueles princípios que, através da interpretação, permitem individualizar uma disciplina jurídica para cada caso113.
Com a determinação de que todas as relações da vida real deveriam estar
disciplinadas em legislação clara e especifica, de modo a impedir a discricionariedade nos
julgamentos, houve uma inflação de legislações que vinham a regulamentar relação ainda não
disposta em leis, já que as codificações deveriam abranger todas as relações que ocorressem
na sociedade.114
Obviamente que este sistema impedia que a nobreza e o clero influenciassem as
decisões judiciais e conseqüentemente retomassem o poder, mas também engessava ou
deixava o Direito incapaz de acompanhar as modificações da sociedade.115
Norberto Bobbio elenca cinco causas para adoção da escola exegese pelo estado
liberal.
a) A primeira causa é representada pelo próprio fato da codificação. Esta serve, com efeito, como uma espécie de prontuário para resolver, se não todas, ao menos as principais controvérsias. b) Uma segunda razão é representada pela mentalidade dos juristas dominada pelo princípio de autoridade. O argumento fundamental que guia os operadores do direito no seu raciocínio jurídico é o princípio da autoridade, isto é, a vontade do legislador que pôs a norma jurídica; pois bem, com a codificação, a vontade do legislador é expressa de modo seguro e completo e aos operadores do direito basta ater-se ao pela autoridade soberana. c) Uma terceira causa, que pode ser considerada como a justificação jurídico-filosófico da fidelidade ao Código, é representada pela doutrina da separação dos poderes, que constitui constitui o fundamento ideológico da estrutura do Estado moderno (fundada na distribuição das competência, portanto na atribuição das três funções fundamentais do Estado – a legislativa, a executiva e a judiciária – a três órgãos constitucionais distintos). Com base nesta teoria, o juiz não podia criar o direito, caso contrário invadiria a esfera de competência do poder legislativo. d) Um outro fator de natureza também ideológica é representado pelo princípio da certeza do direito, segundo o qual os associados podem ter do direito um critério seguro de conduta somente conhecendo antecipadamente, com exatidão, as conseqüências de seu comportamento. Ora, a certeza só é garantida quando existe um corpo estável de leis, e aqueles devem resolver as controvérsias se fundam nas normas nele contidas e não em outros critérios.
112 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 117. 113 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 74. 114 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p.117. 115 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p.118.
37
e) Um último – embora não menos importante – motivo é de natureza política. É representado pelas pressões exercidas pelo regime napoleônico sobre os estabelecimento reorganizados de ensino superior do direito (as velhas Faculdades de Direito da Universidade haviam sido subsitituidas pelas escolas centrais por obra da República, transformadas posteriormente sob o Império em escolas de direito e colocada sob o controle direto das autoridades políticas), a fim de que fosse ensinado apenas o direito positivo e se deixasse de lado as teorias gerais do direito e as concepções jusnaturalistas (todas coisas inúteis, ou perigosas, aos olhos do governo napoleônico que, não esqueçamos, era nitidamente autoritário)116.
Com a sociedade em constante mutação, há a necessidade de um Direito que
acompanhe estas modificações para oferecer segurança jurídica ás partes, ocorre que neste
sistema, por se tratar de legislações específicas para cada caso, o Direito não conseguia
acompanhar e disciplinar toda as evoluções ocorridas na sociedade.117
A ineficiência do sistema fechado não era identificada somente no engessamento do
Direito mas em muitos outros critérios, como a impossibilidade de efetivação do seu fim, ou
seja a regulamentação de todas as relações da vida real.118
Desta forma, ficou constatada a impossibilidade do Direito de atender, através de
normas especificas, todo o anseio e necessidade jurídica da sociedade, resultando de forma
imediata em uma proliferação de legislações esparsas.119
Além disso, o Direito deixa de ser reconhecido como algo estático para ser encarado
a partir de um prisma social. Como as relações sociais são dinâmicas, conseqüentemente o
Direito também deve ser interpretado dinamicamente para regulamentá-las de modo eficaz.120
Sendo assim, após inúmeras criticas ao sistema fechado e sua interpretação exegética
nasce o sistema aberto, calcado em uma maior amplitude de interpretação aos juizes e
operadores jurídicos e a chamada interpretação teleológica.121
3.1.1 Sistema de Direito aberto
Em decorrência da ineficácia do sistema fechado e da inflação de legislações que
este sistema causou, houve a necessidade de se adotar um novo sistema.
116 BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. p. 78-81. 117 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p.118. 118 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p.119. 119 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p.119. 120 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p.120. 121 O meio teleológico, chamado comumente de interpretação lógica, expressão imprópria, visto que se trata de
um meio interpretativo baseado na ratio legis, isto é, no motivo ou finalidade para os quais a norma foi posta. Partindo do duplo pressuposto de que o legislador, como ser razoável, se coloque fins e estabeleça meio idôneo a serem atingidos, uma vez individualizado o fim do legislador, este pode dar aqui esclarecimentos sobre as modalidades da sua consecução, isto é, sobre o conteúdo da lei.(Cf. BOBBIO, op. cit. p. 214)
38
Da antiga idéia jusracionalista de sistema fechado, completo, em que todas as hipóteses seriam englobadas pela lei, passa-se ao paradigma do sistema aberto. Abandona-se, dessa forma, aquele modelo calcado na suposta “segurança”, que só tratava a evolução do direito, e abre-se espaço para conceitos mais dinâmicos, distantes do dogma positivadade. O sistema aberto vai além dos postulados lógicos formais, buscando a valoratividade. É dizer, importa mais, no caso concreto, o valor dado ao preceito que o preceito em si. As cláusulas gerais permitem maior grau de atuação, e, por que não dizer, de criação normativa pelo juiz, à medida que não se baseie em axiomas, em “verdades verdadeiras”, em máximas universais. 122
Este novo sistema visa a uma maior discricionariedade no julgamento dos juízes, em
virtude de ser impossível a regulação de forma específica de todas as relações no plano
empírico.123
O sistema aberto consiste em normas de uma vagueza semântica proposital, para
abranger as relações da vida real e suas constantes mutações, permitindo ao julgador adequá-
las ao caso concreto.
Ao contrário daquele modelo de sistema fechado, propugnado pelos iluministas, o direito requer agora um paradigma legislativo aberto, em que as hipóteses legais sejam formuladas em termos intencionalmente imprecisos e indeterminados, permitindo maior discricionariedade do juiz em cada caso. Mas não apenas maior discricionariedade; é preciso também a possibilidade de buscar a precisão e a determinação requeridas em conceitos extrajurídicos, fornecidos pela Economia, pela Ecologia, pela Sociologia, pelas Ciências Biológicas, pelos costumes, pela Engenharia, enfim, por todas aquelas ciências ou áreas de estudo que possam colaborar para uma decisão mais justa do caso concreto.124
Segundo esta nova concepção, a sociedade e suas relações devem deixar de ser
encaradas como algo estático para serem vistas de forma dinâmica e em constante atualização,
objetivando desta forma uma legislação relativamente vaga e de uma maior amplitude para
que persistam a estas mutações.125
A imprecisão intencional das cláusulas gerais é a ferramenta do legislador para que a
norma persista no tempo e adquira larga amplitude, atingindo uma série de relações por um
lapso temporal maior.126
É imprescindível para a eficácia do Direito esta forma de legislar, ou seja, as
constantes mudanças ocorridas nas relações sociais necessitam estar regulamentadas para a
122 SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 112. 123 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 121. 124 Cf. WIEACKER, F. História do direito privado moderno. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gubelkian,
1967. p. 628. Apud: SANTOS, E. S. O novo Código Civil e as cláusulas gerais: exame da função social do contrato, p. 13.
125 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 121. 126 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 123.
39
eventual defesa dos interesses opostos; desta forma, o único meio é através de legislações que
oferecem uma larga amplitude, para que esta regulamente o novo assunto.127
Ademais, diga-se que a vagueza semântica da expressão cláusula geral, diante da imprecisão e indeterminação de seu conteúdo, é de crucial importância no processo de abertura do sistema jurídico, pois abre caminho a mutabilidade necessária ao direito, inserido este num momento histórico de radical e grave mudança, numa escala de valores globalizados e mundializados.128
É óbvio que a legislação brasileira não se reduz apenas a cláusulas gerais; atualmente
encontramos duas formas de legislar no entender de Eduardo Sens dos Santos, o método das
cláusulas gerais anteriormente comentado e o método casuístico:
Este comporta uma configuração analítica dos fatos e casos comuns, fazendo-os incidir em uma hipótese legal – é designado também como regulamentação por fattispécie129.
Assim, as cláusulas gerais permitem ao julgador maior amplitude nas decisões a
serem prolatadas, sem a necessidade da edição exacerbada de leis esparsas que regulamentem
as lacunas dos Códigos. Além disso, por serem conceitualmente vagas, as cláusulas gerais
permitem que sua aplicação sobreviva de forma eficaz no decorrer dos tempos, com a
necessária mobilidade à aplicação do Direito.
Inserida numa sociedade em diuturna mutação, cada vez mais massificada, plural,
despersonalizada, produtora voraz de contratos em massa, inclusive de contratos eletrônicos
(via internet), da biogenética, da clonagem, entre outros fenômenos da sociedade pós-
moderna, a cláusula geral tem sido um instrumental hermenêutico poderoso, indispensável e
imprescindível, à disposição do magistrado, na proteção do contratante vulnerável (aderente)
e, por via reflexa, na consecução do ideal de justiça social.130
As cláusulas gerais têm origem histórica no Direito germânico; eram conhecidas
como general Klausel, que significava o método legislativo de grande generalidade e
abrangência.
127 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 127. 128 HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002, in Revista de Direito Privado. n.14, abril-jun. 2003. Editora RT. 43. 129 SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 121. 130 HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002, in Revista de Direito Privado. n.14, abril-jun. 2003. Editora RT. .
40
Dentro das cláusulas gerais podemos elencar, além do princípio da boa-fé objetiva, a
função social, que se iniciou em nossa legislação com a função social da propriedade
regulamentada na Constituição Federal.131
3.2 FUNÇÃO SOCIAL
A expressão “f unção social” trata de uma cláusula geral, ou seja, uma expressão
encarada sobre o prisma do Direito como sistema aberto e, por conseqüência, de difícil
conceituação, devido à sua vagueza semântica proposital.
Assim, a expressão “função social”, como cláus ula geral que é, e com a vagueza semântica que lhe é ínsita, não pode ser precisada e enunciada a menos que se cuide de caso concreto e específico.132
Esta vagueza semântica, característica das cláusulas gerais, deve ser definida e
conceituada em razão do caso concreto, ou seja, somente os operadores do Direito e os juízes
definiram a amplitude da função social em virtude de cada fato, cada caso concreto,
possibilitando um enquadramento específico a cada fato da vida real.133
Esta característica das cláusulas gerais e, por conseqüência, da função social do
contrato é que garante a eficácia destas cláusulas durante as mutações ocorridas na sociedade,
já que a função social hoje é encarada de uma forma diferente do que era, durante o
liberalismo e, conseqüentemente, será encarada diferentemente no futuro.
Embora o conceito da função social seja vago, autores como César Luiz Pasold,
Eduardo Sens dos Santos e Miguel Reale entendem que esta cláusula geral objetiva que as
relações atinjam o bem comum, ou seja, a justiça social.
À Função Social compete servir como grande estímulo ao progresso material, mas sobretudo à valorização crescente do ser humano,num quadro em que o Homem exercita a sua criatividade para crescer como indivíduo e com a Sociedade.134
Pasold entende por justiça social:
A JUSTIÇA SOCIAL somente apresentará condições de realização eficiente e eficaz se a Sociedade, no seu conjunto, estiver disposta ao preciso e precioso mister de contribuir para que cada pessoa receba o que lhe é devido pela sua condição humana.135
131 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 122. 132 SANTOS. Eduardo Sens dos. A função Social do Contrato, p. 128. 133 Cf. SANTOS. Eduardo Sens dos. A Função Social do Contrato, p. 129. 134 PASOLD, César Luis. Função Social do Estado Contemporâneo, p. 71. 135 PASOLD, César Luis., Função Social do Estado Contemporâneo, p. 74.
41
Já Eduardo Sens dos Santos, ao discorrer sobre a função social do contrato entende
tratar a cláusula da busca do bem comum e do interesse geral, expressões que o autor
identifica em sua obra como sinônimos.
O bem comum é uma eterna busca, um eterno aperfeiçoar das relações entre os homens, de modo que um indivíduo não anule o outro e, ao mesmo tempo, que a proteção da sociedade não asfixie o indivíduo. Para o bem comum é necessário que todos os homens, e cada um, tenham condições de se realizar como pessoas. É necessário que o bem do todo se harmonize com o bem do individuo.136
Miguel Reale, ao descrever sobre o assunto utiliza a expressão “bem social”:
O bem social ideal consistirá em servir ao todo coletivo respeitando-se a personalidade de cada um, visto como evidentemente ao todo não se serviria com perfeição se qualquer de seus componentes não fosse servido.137
Desta forma, a função social é entendida pelos doutrinadores como cláusula geral,
instrumento de intervenção estatal que visa a cessar a desigualdade nas relações e, por
conseqüência, o fim da exploração dos economicamente mais fracos. Aplica-se na proteção
das relações privadas a justiça social, o bem comum e o equilíbrio nas relações entre os
indivíduos, para que uma das partes não seja favorecida em detrimento da outra.
A função social do contrato vem proteger as relações entre os indivíduos e acima de
tudo o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Em razão de um liberalismo
desenfreado que visava acima de tudo ao lucro, o Estado teve que intervir para proteger o bem
comum coibindo a exploração dos economicamente mais fracos nas relações privadas.
O princípio da função social determina que os interesses individuais das partes do contrato sejam exercidos em conformidade com os interesses sociais, sempre que estes se apresentem. Não pode haver conflito entre eles pois os interesses sociais são prevalecentes. Qualquer contrato repercute no ambiente social, ao promover peculiar e determinado ordenamento de conduta e ao ampliar o tráfico jurídico.138
A função social nasce após a ineficácia do liberalismo econômico, em virtude da
doutrina liberalista individual apegar-se à máxima liberdade da suposta vontade real das
partes nas relações privadas. Entendia-se que as partes estariam em igualdade de condições
para estabelecer-se nas relações privadas, não admitindo a mínima intervenção do Estado nas
relações desta natureza.
136 SANTOS, Eduardo Sens dos. Função Social do Contrato, p. 133. 137 REALE, Miguel. Filosofia do direito. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 1983. 138 LÔBO, Paulo Luiz Neto. Princípios sociais dos contratos no CDC e no Novo Código Civil. Revista de
Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 42: 187-195, abr/jun 2002. Disponível em http://www.mundojuridico-.adv.br. Acesso em 24/09/03.
42
Esta não intervenção do Estado e o intuito pelo lucro nas relações privadas logo
resultou na exploração das propriedades de forma irrestrita, permitindo que o capital fosse
distribuído de forma injusta, ou seja, sendo absorvido por poucos que possuíam maior
patrimônio.
Com a propriedade concentrada no poder de poucos, produzia-se entre os cidadãos
uma desigualdade imensa de condições nas avenças de relações privadas, pois os possuidores
utilizavam a propriedade como forma de exploração.139
Desta forma, o Estado teve que intervir no Direito de propriedade, limitando seu
poder de usar, dispor e gozar de sua propriedade, em razão da função social que esta deve
exercer, ou seja, a propriedade deixa de ser um bem meramente especulativo e passa a ser um
bem de produção que deve visar ao bem-estar comum e à justiça social.140
A propriedade comportaria, portanto, não só o direito individual de possuir tudo o que o homem necessita para sua satisfação pessoal, mas também o direito social, pelo qual o excesso deve reverter-se em favor da sociedade.141
Toda esta injustiça social ocorrida no Direito de propriedade repercutiu em outras
áreas de Direito privado, como é o caso do Direito contratual objeto deste estudo.
Em virtude do Direito de propriedade e, conseqüentemente, do poder econômico
estarem sob o domínio de poucos, os contratos objetivados pelo liberalismo, em que as partes
estariam em igualdade de condições para estabelecerem suas avenças, tornaram-se ineficazes
e injustos para as partes de menor domínio econômico.
Embora a Constituição Federal somente exponha explicitamente a função social da
propriedade, a jurisprudência e a doutrina já utilizavam a expressão para disciplinar os
contratos, em virtude de que o contrato é o grande instrumento de circulação da propriedade.
Desta forma, fica demonstrado que a função social do contrato decorre da função
social da propriedade, visto que a propriedade era adquirida por intermédio de contratos e,
além disso, para a transferência da propriedade também era necessária a utilização do
contrato, sendo assim, seria ineficaz limitar a propriedade através da função social e não
intervir na liberdade contratual.
Assim, o Estado é obrigado a intervir nas relações contratuais, impondo limites à
liberdade contratual das partes, como ficou evidenciado nos capítulos anteriores.
139 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato, Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 37. 140 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato, Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 38
43
3.2.1 Função social do contrato
Primeiramente, é necessário demonstrar que nos contratos destacam-se três tipos de
funções primordiais, sendo a mais recente a função social, que foi precedida pelas funções
econômica e regulatória.142
A partir de função econômica, o contrato passa a ser entendido como objeto de
circulação de riqueza e conseqüentemente de desenvolvimento econômico; já a função
regulatória trata do caráter contratual de fazer lei entre as partes a partir de suas cláusulas
avençadas e pôr fim à função social em que o contrato deve possuir como finalidade precípua
o bem comum e a justiças social.143
No modelo clássico contratual só eram consideradas como função contratual a
econômica e a regulatória, já que, conforme o princípio clássico da relatividade dos efeitos, os
contratos não poderiam produzir efeitos para terceiros, estranhos ao contrato, impedindo
assim a possibilidade de o contrato visar ao bem estar-social.144
Já no fim do liberalismo, ficou evidente a relatividade dos efeitos dos contratos
estabelecidos em razão de terceiros; ocorre que os efeitos do liberalismo para com terceiros
foram nefastos e cruéis, devido à liberdade exacerbada e à desigualdade econômica gerada.
Diante deste quadro de injustiça social e de contratos imbuídos de interesses
privados, de apenas uma das partes, o Estado teve que intervir visando à proteção de contratos
justos e que cumprissem sua função social.
Esta intervenção do Estado visava a limitar o princípio-base dos contratos no Direito
clássico, ou seja, era inadmissível que o princípio da autonomia privada fosse utilizado de
forma irrestrita em uma sociedade com profunda desigualdade econômica e, por conseguinte,
em contratos impostos pelas partes com maior poder econômico.145
É salutar demonstrar que, embora seja o Código Civil de 2002 a única legislação a
tratar literalmente e especificamente da função social no direito contratual, este instituto já era
141 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato, Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 38 142 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato, Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 39. 143 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato, Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 39. 144 Cf. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato, Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 39. 145 Cf. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo Código Civil. São Paulo, 2002. p. 51.
44
debatido pelos doutrinadores e na jurisprudência, amparado pelas disposições constitucionais
sobre a matéria.
O atual Código Civil no seu art. 421 dispõe: “A liberdade de contrat ar será exercida
em razão e nos limites da função social do contrato”; este artigo demonstra o conflito de dois
princípios antagônicos, a liberdade de contratar (princípio da autonomia da vontade) e a
função social do contrato.
Embora estes princípios sejam antagônicos em sua concepção, eles não são
incompatíveis, já que são exercidos em perfeita harmonia, ou seja, a função social somente
limita a liberdade de contratar com a finalidade de que o contrato seja expressão da justiça
social.
A função social, da mesma forma que os princípios, não perde a validade em caso de
conflitar com outro princípio; o que ocorre é a escolha de um ou de outro, dependendo de sua
valoração.146
A Constituição de 1967 já regulamentava o assunto, que foi repetido na Constituição
de 1988, embora seu enfoque nas constituições citadas se desse em razão da propriedade.
Com a limitação do Direito à propriedade regulamentada pela Constituição Federal, e
em virtude da transferência e mobilidade das propriedades serem efetuadas através de
contratos, logo foi necessária a limitação contratual em razão da função social.147
O Projeto de Código Civil ainda não é lei, mas a função social do contrato não vai ser certamente instituída por ele; se chegar a ser convertido em lei, ninguém certamente sustentará que os contratos anteriores à data da sua entrada em vigor não tinham função social. 148
O próprio artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: “na aplicação da lei,
o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”,
demonstrando que o atual Código Civil só veio ratificar uma matéria que já estava consagrada
pela Constituição Federal, pela Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), pela doutrina e
jurisprudência.
Portanto, para que o contrato possa atingir sua função social ele deve estar
condizente com seus princípios informadores e visar precisamente à justiça social e ao bem
comum.
146 Cf. SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato, p. 158. 147 Cf. SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato, p. 144. 148 NORONHA, F. O direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais: autonomia privada, boa-fé,
justiça contratual, p. 83.
45
[...] a função social do contrato só há de ter-se por cumprida quando sua finalidade – distribuição de riquezas – for atingida de forma justa, vale dizer, quando o contrato representar uma fonte de equilíbrio social.149
Sendo assim, a função social do contrato configura-se como uma quebra da
dicotomia entre o Direito público e o Direito privado, pois trata-se de intervenção do Estado
nas relações caracteristicamente privadas.150
149 BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no novo Código
Civil. p. 40. 150 HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Direito Civil: Estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 111.
46
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os contratos sempre marcaram as relações humanas no decorrer da história, mas para
o objeto deste trabalho é importante começar como ponto de partida o Direito Romano, onde
os contratos já possuíam o mínimo de regulamentação para sua consecução segura.
Os contratos no Direito Romano não se encontravam em forma estática e acabada,
pelo contrário, estes contratos estavam em constante evolução durante todo o lapso temporal
em que resistiu o Império Romano.
Toda a reformulação nos regimentos contratuais aconteceu em virtude das
modificações ocorridas nas relações sociais. Para demonstrar estas mutações sociais é salutar
começarmos evidenciando o século XVIII, em que a burguesia recém dominava, após um
longo período de regime feudal.
Instalou- se desta forma o liberalismo econômico, ferramenta que utilizava-se da
total liberdade individual nas relações econômicas, não permitindo a mínima intervenção do
Estado, para que com isto houvesse o esmagamento dos privilégios que recebiam o clero e a
nobreza durante o regime passado.
Este liberalismo econômico alcançava o seu apogeu; com o advento da Revolução
Industrial veio a necessidade capitalista de se expandir, o que se refletiu na urbanização,
concentração de riquezas e principalmente na massificação da sociedade e das relações
sociais.
Com este liberalismo levado ao seu ponto máximo, os contratos paritários que eram
acordos de vontades livres em que se discutiam as cláusulas e, por fim, acertavam-se os
interesses, praticamente se extinguiram. Foram substituídos na sua grande maioria por
contratos padronizados e de adesão, em que a vontade de apenas uma das partes era livre,
restando ao aderente, sem qualquer discussão de cláusulas, a simples iniciativa de contratar.
Com essas mudanças nas relações sociais, os princípios clássicos que regulavam as
relações contratuais até então tornaram–se ineficazes e até mesmo injustos para toda a
sociedade.
Ocorre que os princípios clássicos se baseavam principalmente na doutrina do
liberalismo econômico, pautando-se em ditames como a liberdade de contratar, a mínima
intervenção do Estado nas relações privadas e a obrigatoriedade do cumprimento das
cláusulas contratadas.
47
Enquanto os princípios clássicos pregavam a total liberdade das relações privadas
em virtude de uma suposta igualdade de condições entre as partes, a sociedade passava por
uma situação inversa, ou seja, a desigualdade econômica estava evidenciada e repercutia em
relações contratuais injustas e desequilibradas, em que uma das partes estatuía as cláusulas e a
outra somente adimplia ao estabelecido.
Por esta razão, a concepção liberal e os princípios clássicos tornaram-se ineficazes e
injustos, dando lugar a uma nova concepção e, como conseqüência, uma nova principiologia,
em que a liberdade passa a ser limitada por intermédio da intervenção do Estado, e através de
seus novos princípios.
De acordo com esta ineficácia dos princípios clássicos, foram reformulados os
princípios que regem o instituto. Ou seja, se antes os princípios da autonomia da vontade e da
obrigatoriedade contratual eram o norte do Direito, hoje princípios ditos modernos pela
doutrina, como o da boa-fé e da autonomia privada preponderam.
Por tanto, nota-se que o princípio da autonomia da vontade, marco do liberalismo
político e econômico, foi superado pelo princípio da autonomia privada, que procurou aliar a
idéia de liberdade ao contratar, sem a qual não seria possível a existência de uma sociedade
capitalista, mas restringindo o alcance desta liberdade que permeava a teoria da autonomia da
vontade.
A autonomia da vontade dava aos contratantes plenos poderes para contratar e
estabelecer o conteúdo destes contratos. A única limitação a essa liberdade ocorria se alguma
cláusula estipulada entre as partes viesse a ofender os bons costumes ou alguma disposição
contrária à norma cogente.
O mesmo não ocorre com o princípio da autonomia privada, pois é notória a sua
limitação no tocante à possibilidade de discussão das cláusulas contratuais e, como já
explicado, também deve respeitar os limites atinentes à função social do contrato.
Outro princípio moderno que também é resultado da crise social gerada pelo
liberalismo econômico é o da boa-fé objetiva. Este princípio já era recepcionado pela nossa
legislação, mas só ficou explícito na matéria de contratos no art. 422 do Código Civil de 2002,
em que ele, como todos os outros princípios modernos, vem resgatar a igualdade e a eticidade
perdida com o fenômeno da massificação das relações contratuais.
Após conceituar os novos princípios norteadores do Direito contratual e definir a
função precípua de cada um deles, que é o restabelecimento do equilíbrio contratual entre as
partes, esta monografia demonstrará que, além do equilíbrio entre as partes, o legislador se
preocupou com a função social que cada contrato exerce.
48
A função social do contrato é considerada uma cláusula geral, como o princípio da
boa-fé, pois sua vagueza semântica proposital confere ao Estado-juiz uma discricionariedade
em seus julgamentos, onde o magistrado poderá variar a amplitude desta função social de
acordo com a necessidade de cada caso, possibilitando uma aplicação mais eficaz para toda a
sociedade.
Então, quer dizer que a função do contrato só atingirá seu objetivo quando a
finalidade dos contratos, ou seja, a distribuição de riquezas, ocorrer de forma mais justa e
equilibrada para as partes e toda a sociedade.
Portanto, é absolutamente necessária a incidência da função social do contrato como
meio de distribuir justiça e, principalmente, desenvolver de forma mais equânime a sociedade,
impedindo a exploração do mais rico em relação ao mais pobre.
49
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALBINO, Renata Domingues Barbosa. O princípio da boa-fé objetiva no novo Código
Civil . Artigo disponível em www.gontijo-familia.adv.br/ escritório/outros181.html em
19/09/03.
BESSONE, Darci. Do contrato: teoria geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. BIERWAGEN, Mônica Yoshizato. Princípios e regras de interpretação dos contratos no
novo Código Civil: São Paulo. Saraiva, 2002.
BEVILAQUA, Clóvis. A Constituição e o Código Civil. Rio de Janeiro: Destaque, 1995. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo.
Ícone, 1995.
BRASIL. Lei do Inquilinato. Lei n. 8245, de 18 de outubro de 1991. Disponível em:
www.planalto.gov.br. Acesso em 03/10/2004.
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. 14º. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1991.
CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. 6º ed. Rio de Janeiro: Rio, 1977. CRUZ, Paulo Márcio.Política, Poder, Ideologia e Estado Contemporâneo. 3º ed. Curitiba:
Juruá, 2002.
FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 7º ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
GOMES. Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
HIRONAKA, Giselda Maria F. Novaes. Direito Civil: Estudos. Belo Horizonte: Del Rey,
2000.
HORA NETO, João. O princípio da função social do contrato no Código Civil de 2002, in
Revista de Direito Privado. n.14, abril-jun. 2003. Editora RT.
50
LIMA, Claudia. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. ver., atual. e ampl.,
São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002.
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Princípios sociais dos contratos no CDC e no Novo Código Civil.
Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 42: 187-195, abr/jun
2002. Disponível em http://www.mundojuridico-.adv.br. Acesso em 24/09/03.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria geral dos contratos no novo Código Civil. São Paulo,
2002.
MACHADO, João Baptista. Do Princípio da Liberdade Contratual. Obra dispersa. Braga:
Scientia Iuridica, 1991, v. I,
MEIRA, Silvio. O Instituto dos Advogados brasileiros e a cultura jurídica nacional. O
direito vivo. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1984.
MELLO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 5.ed. São Paulo.
Malheiros. 1994. p. 450.
MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um Direito Civil Constitucional. Revista de
direito Civil, São Paulo, v. 65, jul./set. 1993,
MOREIRA, Marcelo Silva. O papel do Estado juiz em face do princípio da autonomia da
vontade nos contratos. Revista Âmbito jurídico. Disponível em http://www.ambito-
juridico.com.br/aj/dcivil0040.htm Acesso em 29/08/2004.
NORONHA, F. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994.
OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro. A Evolução do Direito Privado e os Princípios
Contratuais: Mundo jurídico. Disponível em http://www.munfojuridico-
.adv.br/html/artigos/documentos/texto392. Acesso em 24/09/03.
PASOLD, César Luis. Função Social do Estado Contemporâneo. 2. ed. Florianópolis:
Estudantil, 1988.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10º ed. Rio de Janeiro, 1995.
51
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 10º ed. São Paulo: Saraiva, 1983. RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da
Vontade. São Paulo, 1997.
SANTOS, Eduardo Sens dos. O novo Código Civil e as cláusulas gerais: exame da função
social do contrato. Revista de Direito Privado, n.1, RT, São Paulo: abril-junho de 2002.
SANTOS, Eduardo Sens dos Santos. A Função social do contrato. Florianópolis: OAB/SC
editora, 2004.
STRENGER, Irineu. Da autonomia da vontade: direito interno e internacional. 2. ed. São
Paulo : LTr, 2000.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro. Renovar, 1999.