os movimentos de organizacfio dos capoeiras no brasil

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Os movimentos de organizacfio dos capoeiras no Brasil Jos6 Luiz Cirqueira Falcdo* Resumo Abstract Este artigo analisa o movimento de organizacâo dos capoeiras no Brasil, suas diversas estrategias e evidencia as contradicOes e os mecanismos de conformismo e resistencia verificados nesta trajetOria. This article analyses the organization movement of "capoeiras" in Brazil, its diverse strategies and show the contradictions and the mechanisms of acquiescence on principle and resistance verified in this trajectory. * Doutroando em Educacâo pela UFBA, mestre de capoeira do Grupo Beribazu, Professor Assistente da Universidade Federal de Santa Catarina. Autor do Livro: A escolarizacâo da capoeira. Brasilia- DF, Asefe-Royal Court Editora, 1996.

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Os movimentos de organizacfio doscapoeiras no Brasil

Jos6 Luiz Cirqueira Falcdo*

Resumo Abstract

Este artigo analisa omovimento de organizacâo dos

capoeiras no Brasil, suas diversasestrategias e evidencia as

contradicOes e os mecanismos deconformismo e resistenciaverificados nesta trajetOria.

This article analyses theorganization movement of"capoeiras" in Brazil, its diversestrategies and show thecontradictions and themechanisms of acquiescence onprinciple and resistance verified inthis trajectory.

* Doutroando em Educacâo pela UFBA, mestre de capoeira do Grupo Beribazu, Professor Assistenteda Universidade Federal de Santa Catarina. Autor do Livro: A escolarizacâo da capoeira. Brasilia-DF, Asefe-Royal Court Editora, 1996.

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Introducfio

Atualmente, os capoeirasl seorganizam em grupos que podemser encontrados em todo o Brasil,sendo que alguns possuemrepresentacOes (filiais) em variosestados brasileiros e em alguns'Daises do exterior. E visa° correnteno context° da capoeira atual quequanto mais estados e paisesrepresentados, mais prestigio tera ogrupo e, conseqUentemente, osseus integrantes. 0 capoeira quenao faz parte de um grupo éfreqUentemente cobrado pelos seuspares ou pelos seus prOprios alunose termina entrando ou formandoum. Muitos chegam a comprar altcorda de mestre"2 para poderemdesenvolver seus trabalhos cornmais autoridade. 0 preco da referidacorda oscila em tomb de R$1.000,00 (mil reais) e sabe-se quepode ser adquirida em algumascapitais do pais. Muitos dos que seaventuram desenvolver sua arte noexterior sao formados nas"academias aereas" da TAP e daVARIG (ambas, companhias deaviacao). Embarcam alunos e, apcisalgumas horas de vtio, desem-barcam "mestres" com exuberantespropostas de ensino da arte-lutabrasileira. Trata-se de uma novacategoria de mestres, ironicamente,

cognominados de "mestres TAP/VARIG". Essa é uma dinamicaemergente no mundo da capoeiraque faz parte dos novos tempos.

Os grupos de capoeira, em suagrande maioria, estao dotados,atualmente, de urn articuladoaparato que faz corn que todos osintegrantes se mantenham beminformados nos minimos detalhes.Os uniformes estampam cada vezmaior e mais forte o logotipo dogrupo, bem como o nome (ouapelido) dos mestres. Os calen-darios dos eventos sao minucio-samente elaborados para rid° haverchoques e permitir urn transit° deurn maior nUmero de capoeirasentre os diversos nUcleos do grupo.Outros mecanismos contribuempara a "integracao" de seuscomponentes, tais como, infor-mativos e jornais especfficos. Muitosgrupos agregam capoeiras "avulsos"corn sedutoras propostas dereconhecimento e sucesso. Emcertas situacries, grupos menores sefundem para se tornarem maispoderosos. Muitos grupos sac)"fechados", ou seja, nao permitema participacao de outros capoeirasem seus treinamentos e eventos.Geralmente, o prestigio do grupoesta vinculado ao poder de insercaoque o mesmo tem na midia.Qualquer semelhanca com a

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dinamica do mercado nä° e meracoincidencia. Por fim, existemaqueles que se contrap6em a todoesse esquema e sao taxados de"alienados" ou "primitivos" pelosseus pares.

Sabe-se, entretanto, que essaforma de organizacao dos capoeirasnos moldes de grupos institucio-nalizados a recente e decorre dosnovos reordenamentos econ6mi-cos, politicos e sociais da sociedadebrasileira.

Esse processo de organizacaodos capoeiras se corporificou apartir do inicio dos anon 70, quandoa capoeira passou a ser tratadasistematicamente como modali-dade esportiva3.

Os motivos daorganizacfio doscapoeiras

A organizacao dos capoeiras aolongo dos tempos vem se dando apartir de diversas estrategias queatendem a interesses variados. Aoestudar as raizes da formacao das"maltas de capoeiras", na cidade doRio de Janeiro, SOARES (1994)aponta a disputa de espacosgeograficos como o principal motivode organizacao das mesmas. Duas

grandes maltas tornaram-secelebres: a dos Nagoas e a dosGuaiamuns.

Os capoeiras sempre seutilizaram da luta para conquistarseus espacos. A luta do capoeira eraurn fator nao so de organizacao, masde libertacao. A capoeira enquantoluta, como sabemos, remonta assuas origens. Mas, SOARES (1994)aponta, tambem, a participacao doscapoeiras nas festas militares,religiosas e profanas. Alias, nosprimOrdios, urn dos fortes motivosde organizacao dos capoeiras era afesta. 0 vinculo desta manifestacaocorn a festa remonta o seusurgimento. "A capoeira sempreteue ambiente festeiro" (TAVARES,1964, p. 25). Afinal, os negros deAngola — os primeiros a seremtrazidos para o Brasil na epoca daescravidao — eram propensos aosfolguedos e diversOes. QUERINO(1922, p. 61), destaca: que o "Angolaera, em geral, permistico,excessivamente loquaz, de gestosamaneirados, typo completo eacabado do capadOcio" (sic!). Brazdo Amaral, citado por REGO (1968),endossa esta constatacao ao afirmarque os negros de Angola — os maisnumerosos dentre os escravostrazidos para o Brasil — eraminsolentes, loquazes e imaginosos.Nao tinham persistencia para o

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trabalho, porem eram ferteis emrecursos e manhas. Tinham maniapor festa, pelo reluzente e peloornamental.

Mesmo na epoca da escravidao,diante das desumanas condicOesem que viviam, os africanosreivindicavam o exercicio do ICidico,enquanto componente de suaidentidade cultural. No final doseculo XVIII escravos fugidos deuma fazenda baiana reivindicavam,alem de terras e melhores condicOesde trabalho, o direito de poderem"brincar, folgar; e cantar em todosos tempos que quisermos sem quenos empega e nem seja precisolicenga" (trecho do Tratadoproposto a Manuel da Silva Ferreirapelos seus escravos durante otempo em que se conservaramlevantados, em 1789, na Bahia,citado por REIS e SILVA, 1989, p.124).

REGO (op. cit., p. 359)compartilha da ideia de que luta ebrincadeira säo componentes dacapoeira: "primitivamente acapoeira era o folguedo que osnegros inventaram, para osinstantes de folga e divertirem a sie aos demais nas festas de largo,sem contudo deixar de utiliza-lacomo luta, no momento precisopara sua defesa".

RUGENDAS (1979, p. 241) aodiscorrer sobre os usos e costumesdos negros no Brasil, menciona acapoeira como urn "folguedoguerreiro" em que um lutador evitao ataque do outro corn "saltos delado e paradas habeis"4.

A partir dessas consideracOes épossivel afirmar que o elementohadico se faz historicamentepresente no jogo da capoeira desdeo seu surgimento. Vista sob esseponto de vista, o capoeira conseguiaatender a necessidade de fantasia,utopia, justica, estetica e ainda ogosto pelo imprevisivel.

Ve-se, portanto, que o processode organizacâo dos capoeiras foi econtinua sendo controvertido. Aideia da organizacao da capoeira,tendo como referencia a cor da pele,nâo tern consistencia e apresenta-se limitada. Para SOARES (1994) acapoeira "significou muito mais quea 'arma do escravo' no ambienteurbano, ou o recurso de resistenciado pobre frente a violencia doEstado. (...)Muito alem de uma lutanegra, a capoeira foi urn ponto departida na histOria das relagOesraciais na cidade do Rio" (p. 311).Para o referido autor, a capoeira naofoi uma expressdo negra da culturacarioca, mas serviu de instrumentopara a organizacao de grupos

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heterogeneos formados de negros,brancos, estrangeiros, nacionais,livres e escravos. 0 estudo deSoares rompe corn uma visa. ° quedefine a capoeira do passado comouma construcao essencialmentenegra e questiona as oposicOesbinarias para explicacao de suatrajetOria histOrica.

Voltando ao processo deorganizacao dos capoeiras, convemdestacar que ele nao foi, de formaalguma, pacific°. Os ajuntamentosde capoeiras sofreram ostensivarepressao por parte dos governoscolonial e imperial do Brasil 5 . Noentanto, todos os procedimentosadotados para coibir a coesao dosindividuos a margem da sociedade,foram ineficazes para descortinarestas formas de identidade coletiva,muitas delas decorrentes de fatoresde ordem religiosa, de consolidacaoterritorial, de infortimio e deascencao social. Muitos autoresque estudaram a estruturaorganizacional das maltas decapoeiras, retratam-na como urncorpo autOnomo e hierarquizado,formado de chefias e sub-chefias,tendo os seus membros, deveres efuncOes perfeitamente codificados,cujos principios que regiam suasrelacOes internas estavam galgadosna solidariedade, na lealdade, naprudencia, na bravura, na valentia,

na coragem e no respeito as normase aos niveis hierarquicos (ARAWO,1997).

Esta meticulosa organizacao doscapoeiras era motivo depreocupacao do Estado. 0 relatOriodo Ministro e Secretario dosNegOcios da Justica, referente aoano de 1878, trata as maltas daseguinte forma:

Uma das mais estranhasenfermidades morais desta grandee civilizada cidade e a associacdode capoeiras. Associacao regular-mente organizada, corn seuschefes, sua subdivisão em maltas,que denominam badernas, cornsinais e &las prOprias. Grupos deturbulentos, avidos de assuadas, delutas e de sangue, concorrem avoz de seus chefes nas grandesreuniOes populares e festividadespirblicas, para o fim de decidirempor meios violentos as suascontendas e rivalidades. (Filho eLima, citado por ARAUJO, 1997,p. 175)

Convern destacar que apesar dasretaliacOes por parte do poderconstituido, os capoeiras do final doseculo XIX foram estrategicamenteorganizados. Nä° a por acaso, queMOURA (1980) chama a atencaopara o fato de que o negro semprefoi urn organizador. Para esse autor,desde o regime escravista ele se

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manteve organizado, embora deforma fragil e urn tantodesarticulada. Várias foram asformas que os negros utilizarampara se organizar: quilombos,confrarias religiosas, irmandades,candombles, terreiros de xangO,umbandas, movimentos reivindi-catOrios, etc. Essa tendencia donegro de se organizar ndo surge poracaso. Em geral, os grupos que seidentificam na sociedade de classespor urn estigma que esta lhes impOspodem, "ao inves de procuraremfugir a essa marca, transforma-laem heranga positiva e organizar-se através de urn ethos criado apartir da tomada de consciencia dadiferenga que as camadasprivilegiadas em uma sociedadeetnicamente diferenciada estabe-leceram" (MOURA, op. cit., p. 143).Esta revalorizacäo da prOpria etniado grupo procura se respaldar apartir de urn passado cultural ou dereivindicacOes mais atualizadas emarcam sua identidade a partir doantagonismo. As organizacOesnegras podem ser vistas comomecanismos de auto defesa contraa sociedade discriminat6ria. Sdogrupos especificos de resistenciasocial. Ex: cooperativas, Orgaosculturais, movimentos negros,blocos carnavalescos. Situam-segeralmente nas cidades e a impressa

negra tern papel importante nesseprocesso.

Em toda a trajetOria dosmovimentos negros sempre houvefriccOes por parte das instituicOesdominantes no sentido de quererasfixiar socialmente os gruposespecificos negros. Desde arepressäo violenta dos quilombos,ate as simples reclamacOes porperturbacäo da ordem, o atrito forapermanente.

Certamente, quando a capoeiraera organizada para atender motivosde disputa geografica, ou paraatender aos interesses de politicos,ela assumia caracteristicas bemdiferentes das que presenciamoshoje. No entanto, na atualidade, elaincorporou as mesmas caracte-risticas de qualquer outra práticacorporal inserida no mercado deconsumo. Mesmo assim, algunselementos consolidados em suatrajetOria histOrica sao requisitados eservem como estrategias por meiodos quais os capoeiras se organizam.Assim, a luta, enquanto arte de defesapessoal, e o componentecomo fator de catarse e festa, sáohoje estrategias legitimas queinfluenciam o processo deorganizacáo de expressivo segment°dos capoeiras.

Convern assinalar que essesaspectos se entrecruzam e que 0

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componente ludico contribui parauma dissimulacao do componenteluta, na medida em que nao seefetiva um confronto direto, masuma constante simulacao deataques e defesas, mediada pelaginga numa ambigUidade onde abrincadeira e a luta se interpe-netram. Assim, a danca, expressaomor da festa, e a luta, expressaomor da resisténcia, se imbricam eos capoeiras, no embalo do toquedo berimbau, descrevem circulos noespaco da roda fazendo com que o"corpo lute dangando e dancelutando", remetendo a capoeira "auma zona imaginaria e ambiguasituada entre o ladico e ocombativo", conforme nos apontaa historiadora Leticia Reis (REIS,1997, p. 215).

A exacerbacao do componenteluta na pratica da capoeira tern sidovista corn reservas por parte demuitos lideres preocupados corn aviolencia. Politicamente, hoje a lutana capoeira deve e tern que ser vistaa partir de uma dimensao ampliada.A principal luta do capoeira, nosdias de hoje, nab deve ser contraurn determinado feitor, individual-mente, como acontecia antiga-mente, nem tampouco, contraoutros praticantes de capoeira. Aluta da capoeira, nos dias de hoje,deve ser contra todo e qualquer tipo

de opressao, discrirninacao e pelaconstrucao de uma sociedade maisjusta, livre e democratica. A luta dacapoeira deve ser contra uma seriede injusticas sociais que alija maisda metade da populacao doconsumo de bens primarios,indispensaveis ao bem estar socialde todos.

0 feitor de hoje se transfiguroue tern muito mais poder. Na maioriadas vezes, ele esta vinculado asestruturas poderosas responsaveispela consolidacao de urn sistemaperverso e tambern muito poderosoque vem provocando muitasbarbaries. Urn sistema que faz doBrasil o pais corn a pior distribuicaode renda do planeta. Urn pais cornmais de 30 milhOes de miseraveis.Urn pais em que os 10% mais ricosapropriam-se de 53,2% da rendanacional, enquanto os 10% maispobres detem apenas 0,6% da rendanacional, segundo dados do BancoMundial.

E possivel entrever que aorganizacao dos capoeiras estevesempre vinculada a fatores maispoliticos e ideolOgicos do que pelasimples necessidade humana depertencimento a urn determinadogrupo. Esses processos organiza-cionais contribuiram sobremaneirapara mudancas significativas noscodigos da capoeira. A escravidao

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no Brasil e os regimes autoritariosde Getialio Vargas e dos militaresforam fatores motivadores dosmesmos. A Capoeira Regional deMestre Bimba, por exemplo, umarecodificacao da capoeira tradi-cional, foi criada nos anos 30,durante a vigencia da ditadura deGetillio Vargas, que procuravaestabelecer uma forte vinculacao decarater paternalista e afetivo com asclasses populares. Naquela epocapreponderava na Educacao Fisicabrasileira a "tenclencia militarista",de conotacao extremamenteautoritaria (GUIRALDELLI JUNIOR,1988). A regulamentacao dacapoeira como desporto do ramopugilistic°, no inicio da decada de70, lhe delegou uma conotacaopredomi-nantemente esportivizada.Nesse period°, o Brasil estavasufocado pela ditadura militar epreponderava no ambito daEducacao Fisica brasileira umamentalidade competitivista,centrada no alto rendimento, sendoque esta ideologia fez-se presentetambem na capoeira.

Atualmente, percebe-se umgrande movimento dos capoeirasem diversos setores de atuacaosocial principalmente aquelesvinculados ao mercado deprestacao de servicos. Hoje játemos, inclusive, capoeiras tra-

balhando como "personal training"- um ilia° do mercado das praticascorporais que se caracteriza por urnatendimento individualizado, cornutilizacao de modernos equipa-mentos destinados a avaliacao daaptidao fisica.

E, portanto, a partir da demandado setor de prestacao de servicosque a maioria dos grupos decapoeira esta se organizando.Muitos deles estao, cada vez mais,se preocupando corn a formacao ecapacitacao de seus quadros, paraatender as necessidades de umaclientela cada vez mais exigente.Constata-se, nessa dinamica,grupos altamente especializados,corn capoeiras tecnicamentepreparados para ampliar ainda maiso raio de atuacao do seu grupo.

Alern dessa demanda cada vezmais crescente, existe uma outratambem em franca expansao, avinculada ao context° escolar. Nummovimento crescente, os grupos decapoeira vem adentrando as escolaspiiblicas e privadas de todo o pais edespertando grande curiosidade porparte de pesquisadores atentos aessa dinamica. Em agosto de 1999,por exemplo, teve inicio o primeirocurso superior de capoeira, naUniversidade Gama Filho (UGF), noRio de Janeiro. Trata-se de iniciativaque resultou da parceria de urn

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conhecido grupo de capoeira cornaquela universidade. Ademais, acapoeira ja encontra-se presente emmais de dez universidadesbrasileiras, na maioria dos casos,como projeto de extensao vinculadoa algum grupo de capoeira.6

Por outro lado, constata-se aindasignificativas iniciativas deorganizacao dos capoeiras emtomodos denominados movimentossociais. Trabalhos corn criancas eadolescentes em situacao de riscosao os que mais chamam a atencaoe, nao raros, sao divulgados namidia como responsaveis pelarecuperacao de menores infratores.Existem tambem trabalhos decapoeira corn portadores denecessidades especiais, como ocoordenado pelo mestre Ponciano,do Grupo Cordao de Ouro, deGuaratingueta- SP

Muitos grupos organizados ternse preocupado corn a realizacao detrabalhos sociais, geralmentevinculados as comunidadescarentes7 , entretanto, essestrabalhos esbarram em dificuldadesfinanceiras ou de ordem politicaque, na maioria das vezes,inviabilizam suas propostas.

A capoeira e osreordenamentospolitico-econinicos

0 reordenamento politico-econOrnico por que passa asociedade brasileira nos illtimosanos vem provocando mudancasaceleradas e pulverizando todas asformas de organizacao decategorias especificas. No caso doscapoeiras, que nao contam cornqualquer tipo de organizacao quedefenda os seus interesses e garantasuas conquistas (como no caso dossindicatos), o que vem acontecendoe uma agregacao a lOgica domercado formal e informal queexige dos mesmos novas compe-tencias tecnicas que atendam asexigencias do ptiblico consumidor.A lOgica do mercado tern ditado,como ja dissemos, as regras deintervencao e organizacao dosneocapoeiras.

Convem reforcar, portanto, queo que vem acontecendo nostaltimos anos corn os capoeirasdifere-se bastante do que aconteciacorn os capoeiras do passado. Alias,

notOrio o fato que denota asprecarias condicOes de vida pelasquais passaram os maiores iconesda capoeira brasileira8 . Nos laltimosanos, muitos capoeiras, preocu-

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pados corn a situacao de penGria,sob a qual muitos ilustresabnegados viveram, vem buscandoalternativas, as mais diversas, emprol de melhores condicOes de vidapara a categoria.

As possibilidades de trabalhodos capoeiras situam-se, grossomodo, nas estruturas do MercadoFormal (MF) e do Mercado NaoFormal (MNF) da economia, assimcomo nas instituicOes vinculadas aopoder pUblico, principalmente nasescolas9. No MF podemos verificaros trabalhadores em capoeiravinculados a clubes, academias einstituicaes comunitarias (asso-ciacao de bairros, entidadesassistenciais, etc.).No MNF, ostrabalhadores em capoeira estaovinculados a "capoeira de ma" ouaos chamados "shows folclOricos"realizados nos palcos de hoteis erestaurantes de luxo. A partir dessageografia social, os mesmosacabam situados no bojo de urnprocesso de "integracao duvidosacorn a vida oficial" (GOTO 1988),acrescentando novas configuracOes

indiastria do turismo, doespetaculo e do lazer.

Entre os capoeiras evidencia-seuma realidade que se diferencia dotrabalho convencional. Eles sac)capazes de metamorfosear o tempoe o ambiente a partir de recons-

true Oes cotidianas que se ciao emsituagOes mais diversas, assumindoformas surpreendentes que, de certaforma, contestam o convencional eo institucionalmente cristalizado.Tais reconstrucOes estao relacio-nadas corn a onda de desempregoque assola o mundo inteiro nessefinal de milenio. No Brasil a taxa dedesemprego oscila em tomb de 8%.Nos paises desenvolvidos os indicessacs preocupantes.

Corn o advento da tecnologia,a produtividade esta em alta, masprovoca, por outro lado, adiminuicao de ofertas, corn umacompeted° super acirrada. Ha dezanos havia 1 milhao de bancariosno Brasil, hoje sao 470.000. Em1992, a indtastria textil empregava2,1 milhOes de trabalhadores; em1998 eram apenas 1,3 milhOes(SIMONETTI, E. e GRINBAUM,1998, pp. 68-73). Conceitos comocarreira, estabilidade, promocao portempo de servico estaodesaparecendo no mundocapitalista. Vinculada a esseprocesso, percebe-se a existencia deuma economia fomentada pelacapoeira, a partir da producao ecomercializacao de instrumentos eindumentarias especificos para suapratica como uniformes, berimbaus,atabaques, pandeiros, etc. e outrosprodutos que incrementam o acervo

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profissional dos capoeiras, comolivros, revistas, videos, compactdisc, etc?'

Da mesma forma que as opcOesconvencionais de emprego vao selimitando, surgem alternativas quevisam amenizar esse quadro. Epossivel afirmar que, atualmente, aindOstria do entretenimentoconstitui uma delas.

A revista Veja, em reportagem,destaca que, segundo aSuperintendencia de Estudos SOcio-EconOrnicos do Estado da Bahia,10% da populacao economicamenteativa da cidade de Salvador tira oseu sustento da indiistria doentretenimento, que engloba entreoutras coisas, blocos carnavalescose trios eletricos, que fazem festaspelo Brasil inteiro. Iniciativasaudaciosas se transformam emprojetos corn orcamentos consi-deraveis. 0 orcamento da escola depercussao Pracatum, de CarlinhosBrown, no bairro Candeal, e de 2milhOes de &Stares. So a bandaOlodum tern 400 percussionistascadastrados, 280 deles na ativa. Taisprojetos, geralmente vinculados aspopulacOes "carentes", procuramadotar politicas sociais a partir deawes que se materializam emescolas gratuitas de alfabetizacao eformacao profissional, alem de

implementarem melhores condi-cOes de moradia e saneamentobasic° nos bairros onde saodesenvolvidos (LIMA, 1998, pp.120-121).

E nessa metamorfoseantedinamica do mundo capitalista quesurgem os trabalhadores emcapoeira, diferentemente dostrabalhadores que a praticavamdurante o seculo XIX" . Antiga-mente, eram os trapicheiros,carroceiros, estivadores, carrega-dores, vendedores ambulantes, quea praticavam. Hoje, o que se ye sac)ex-bancarios, ex-metaliirgicos, ex-representantes de vendas, etc.,demitidos de suas empresas, seutilizando da capoeira comotrabalho, como uma opcao pro-fissional, como urn modo desobreviver. Somado a esse contin-gente, encontra-se urn expressivosegmento de jovens que vislumbramna capoeira urn filao de trabalhonem sempre possivel nas insti-tuicOes e empresas convencionais.

Para suprir esta necessidadesurgem os grupos estruturados nalOgica de escola-empresa investindona formacao dos futuros professoresque atenderao uma demandasempre crescente de interessadospor esta manifestacào. 0 que severifica, portanto, e a transformacao

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dos grandes grupos em empresas,no estilo de franquias para atenderas "exigencias" do mercado eterminam transformando-se emgrandes corporacOes, constituidasenquanto instituicOes juridicas, queaglutinam expressivo niarnero deintegrantes (alguns chegam a termais de dez mil filiados). Alern disso,comecam a se expandir asentidades corporativas, como é ocaso das federacties e ligas, quetratam a capoeira a partir da lOgicado esporte, tendo a ConfederacaoBrasileira de Capoeira (CBC) e aAssociacao Brasileira de Professoresde Capoeira (ABPC) como principalsrepresentantes desse esquemaorganizativo.

A CBC foi fundada em 23 deoutubro de 1992, corn sua sedefixada em Guarulhos-SP e terncomo objetivo a padronizacao,normatizacao e unificacao deprocedimentos desta manifestacao,no sentido de se evitar, segundo seuprimeiro, Unico e atual presidente,que curiosos e auentureiros a

tornem uma grande confusdointernacional e uenha a desa-parecer por completo" (CONFE-DERACAO, 1997, p.4).

Atualmente ja sao mais de vintefederaci5es estaduais vinculadas aCBC. Apesar de algumas resis-

tencias12, a entidade vem conse-guindo certa representatividadejunto a outros Orgaos dirigentes dodesporto nacional'3.

A Associacao Brasileira deProfessores de Capoeira (ABPC) foifundada em Salvador-BA, em 13 deAgosto de 1980; aglutina grandeparte das principais liderancas dacapoeira do Brasil e do exterior etern como objetivo preservar osaspectos culturais, cientificos esociais que envolvem a capoeira,seus professores, mestres epraticantes.

Como foi dito anteriormente, astentativas de se organizar enormatizar a capoeira vemocorrendo de diversas formas,principalmente dentro da lOgicaesportival 4 . Essas tentativasesbarram, muitas vezes, em diversosimpasses e conflitos de liderancasavidas em verem seus projetospessoais serem contemplados pelaspoliticas pilblicas de fomento aoesporte.

No interior desse processo deorganizacao da capoeira, identifica-se a proeminencia de doisfenOmenos inerentes a sociedadecapitalista já verificados em outrasmanifestacOes da cultura demovimentos como, por exemplo, aginastica, a danca e algumas lutas

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orientais; quais sejam: amercadorizacao e a esportivizacao,que, por sua vez, apresentam comocaracteristicas intrinsecas aracionalizacao, a cientifizacao e acompeticao.

A insercao vertiginosa dacapoeira nos estratos sociaisprivilegiados, nos Ultimos tempos,representa urn fato novo. Alias, elatern sido alvo inclusive do poderpiiblico, na medida em que seobserva uma serie de medidasoficiais' 5 que procuram apresentaruma especie de "pedido dedesculpas", pelas questionaveisingerencias durante longo period°de sua histOria.16

A analise desses movimentos deorganizacao da capoeira no Brasilrequer, necessariamente, umainsercao nas discussOes teOricassobre as instituicoes e seus papeis,enquanto instrumentos de apoioque fornecem ao comportamentourn carater de durabilidade epermanencia e se destinam asatisfacao de determinadasnecessidades, como a depertencimento a urn coletivo, porexemplo. Alias, 6 possivel afirmarque todo processo de formacaosocio-cultural repousa sobreinstituicoes. Estas, segundoBARTHOLO Jr. (1986, p. 27),

preenchem trés funcOes relativas aestrutura de pulsOes do homem: "1)satisfazer urn minim° de neces-sidades vitals biologicamentedeterminadas; 2) satisfazer urnconjunto de necessidades deri-vadas originadas de sua prOpriaexistencia; 3) satisfazer umexcedente estrutural de pulsOesinstintivas, fixando-as e esta-bilizando-as mediante a auto-nomizacao de uma estrutura dehabitos". As instituicoes repre-sentam, portanto, urn instrumentogerador de "necessidades deriva-das" que, via de regra, remetem aadaptacao e a reificacao em funcaode normas coercitivas, bem como,de mecanismos sedutores quepropagam uma ideia de cresci-mento e perpetuacao. A institucio-nalizacao nao 6, contudo, urnprocesso irreversivel. SegundoBERGER e LUCKMANN (1998)"pode haver desinstitucionalizacaoem certas areas da vida social. Porexemplo, a esfera privada quesurgiu na moderna sociedadeindustrial 6 consideravelmentedesinstitucionalizada, se compa-rada com a esfera pUblica" (p. 113).

Embora nao seja facil odesvencilhamento de instituicoesmais formais da sociedade,possivel implementar formascriativas e originais de resistencias

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a elas. Em seu estudo sobre a"dinamica HELOiSABRUHNS (1994, p. 108) prop6e que:

Periodicamente, deverfamosaprender a zombar de nossas maisaltas instituicOes, de suasformalidades e austeridades, desuas prâticas sagradas, polfticas eeconOmicas. Deverfamos criarcondicOes para imaginar urnmundo diferente, no qual ospalhacos se tornassem reais.

A complexidade que envolvetodo o processo de organizacaosocial da capoeira nab permite umavisao simplista de sua lOgica. Se, porurn lado, ha uma preocupacao nosentido de organiza-la, por outro, a"desorganizacao" parece estarsintonizada corn os mecanismos deresistencia, historicamentevinculados a sua trajetOria.

0 processo de organizacao doscapoeiras nos mostra que ademocratizacao da sociedade passanecessariamente pelo enfrenta-mento de interesses que, ao seremcolocados em tensao, explicitamsuas contradicOes. A rigor, voluntariaou involuntariamente, os gruposdominados buscam urn mesmofim: a liberdade. Uma gamasignificativa de documentoshistOricos revelam as intamerastentativas de sublevacao da ordem

social brasileira pelos grupamentosexcluidos da sociedade brasileira edemonstram a insatisfacao pelacondicao a que sac) submetidos.

No caso da capoeira, pode-seobservar que eta ora resiste, ora seconforma corn os mecanismos deajustamento e organizacao social.Este misto de conformismo eresistencia verificado no universo dacapoeira endossa as conclusOes deCHAUI (1989) a respeito da culturapopular'"? no Brasil, quando etaexpOe que as culturas populares nopais, apesar de conter lOgicaprOpria, se articulam corn oscOdigos das culturas dominantes,recusando-os, aceitando-os ouconformando-se a eles. No caso dacapoeira, esta aparente oposicaoentre a acomodacao e a resistenciaé que determina sua ambigOidade,e isto pode ser concretamentevisualizado no jogo, quando nodisfarce da danca, o capoeira luta,conformando-se ou resistindo asestrategias de poder geradasnaquele momento. Neste sentido,no jogo de capoeira, o mesmo corpoque, em dado momento, seconforma, inopinadamente seinsurge e ataca, geralmente deforma improvisada, invertendo asregras do jogo. Este é urn aspectopolitico fundamental a serconsiderado para urn melhor

I

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entendimento de sua dinamicainterna.

Finalizando

Num esforco de sintese, aindaque provisOria, procuraremosapontar, a luz do que foiapresentado, alguns elementos queexplicitam a trajetOria de organizacaodos capoeiras e seus vinculos corna conjuntura politica de cada epoca.

Torna-se necessario, nessemomento, retomar o sentido politicooriginal da capoeira, ou seja, osmotivos subjacentes e ascircunstancias em que ela foi criada.A producao cultural dos negros a6poca da escravidao, serviu comoestrategia corporal de libertacao epautou-se pela contestacao asregras de dominacâo social.

Embora a mensagem dacapoeira embutida em seus gestos,rituals e canticos sugira indeter-minacao, ruptura e ambigilidade,onde a arte e a mandinga, aorefletirem uma interioridade, umavisa() prOpria de mundo, incom-patibilizam a padronizacao e oregramento e possibilitam oexercicio da libertacao, ela tern sidoapropriada, em larga escala, pelalOgica do esporte, e conseqUen-temente, do mercado, cuja

mensagem principal esta centradanos principios basicos da sobre-pujanca e das comparacOes obje-tivas, que tern como conseqUenciaimediata o selecionamento, aespecializacao e a instrumen-talizacao (KUNZ, 1991).

Para BRACHT (1997, p. 70) oesporte e:

uma atividade corn urn conjuntode regras de facil compreensao, aocontrario por exemplo, das regrasdo jogo politico que sao complexase muitas vezes nao transparentes.0 resultado de uma competicaoanunciado imediatamente apOs oseu encerramento e ma° deixacliwidas (...). A simplicidade de sualinguagem, faz possivel que urnjogo de futebol seja entendido eapreciado tanto aqui no Brasil,quanto na China, por exemplo.

A capoeira, por sua vez, a umamanifestacao extremamentecomplexa. 0 jogo de capoeirauma especie de negociacaoaparente em que cada capoeiraprocura ampliar cada vez mais o seurepertOrio a partir de improvisacOes,teatralizaceies e ritualizacOes. Nao setrata, portanto, de urn confrontodireto, mas de uma constantesimulacao de ataques e defesas,mediada pela ginga numa

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ambigiiidade em que o lüdico e ocombativo se interpenetram. Pormais que se pretenda minuciosa, adescricao dos expedientes geradosnuma roda de capoeira jamaisrefletira a riqueza dos fatos em si.Num jogo malicioso e mandin-gueiro, os movimentos corporaisparecem ser inteligiveis e decifraveissomente pelos seus executores, que,muitas vezes, conforme afirma Rego(op. cit.), nao se ciao conta doexpediente que improvisaram naroda. Esses comportamentostipicos, exercitados dentro da rodade capoeira, influenciam as atitudesdos capoeiras em outras esferas deatuacao. Verifica-se, via de regra,uma atitude de descaso em relacaoas convencOes e a mecanismos decontrole institucional. Ademais, omundo do capoeira é urn mundoonde as convencOes sao diluidas pordiversas estrategias que reelaborame ate ironizam as instituicOes formaisda sociedade, o que, de fato,constitui-se, a rigor, numa posturapolitica.

Os ensinamentos propagadospela cultura da capoeira terncontribuido para a consolidacao deuma atitude de descredito emrelacâo as instituicOes oficiais, afinal,foram elas as principais respon-saveis pela repressao aos prOprioscapoeiras. Portant°, nab é dificil de

se constatar neste universo focos deresistencia aos mecanismos decontrole impetrados por instituicOescorporativas.

Essas caracteristicas, aliadas aosdesafios e necessidades da sociedadecontemporanea, faz da capoeira umaconstrucao cultural ambigua. Ela"joga" corn todos esses fatores e,paulatinamente, vem se firmandocomo uma dinamica manifestacaoda cultura brasileira contemporanea.E possivel afirmar que a ambigiiidadeparece ser urn componenteintrinseco da capoeira. Numa analisealigeirada, essa ambigUidade podedenotar indeterminacao, incerteza,diavida, mas isso nao é uma falha,defeito ou carencia de urn sentido,como destaca CI-LAO (1989). Trata-se de uma propriedade que conternao mesmo tempo dimensöessimultaneas de atraso e desejo deemancipacao, de ignorancia e saber,de conformismo e resistencia. Dai,parece ser recorrente uma visa.°critica diante das novas demandasda capoeira. As contribuicOes dePaulo Freire, o pedagogo dosoprimidos, podem servir deinspiracao para os capoeiras dacontemporaneidade. Que aorganizacao dos sujeitos éimportante e recomendavel, todossabemos, mas, que seja em prol doesclarecimento e da libertacao. Que

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o capoeira se sinta motivado para seorganizar nos moldes dos "circulosde leitura" (FREIRE, 1987), para quese eduque em comunhao, entendao mundo e, acima de tudo, conquistea liberdade plena, e assim, fuja dasinfinitas amarras de instituicOes maispreocupadas em angariar recursospara se manterem poderosas, do quepara garantir e proteger os direitosdos cidaddos.

As tentativas de organizacâo dacapoeira na lOgica neo-liberal vempromovendo uma recodificacaodesta, que, ao incorporar aperspectiva esportivizante e absorvero jeito europeu e americano de ser,vem desafricanizando-se e sendoalcada ao "status" de neocapoeira,bem ao gosto da pOs-modernidade;descartavel, efernera, tecnocratica,espetacularizada, docilizada,esterilizada, cientificizada edisponivel para o consumo nopr6ximo clube da esquina.

Notas

1 Para designar os agentes dacapoeira (praticantes, professores,militantes, etc.) utilizaremos otermo capoeira em detrimento dotermo capoeirista, por entender-mos que o mesmo tern na culturao seu campo privilegiado de ace°,enquanto que o termo capoeirista

nos sugere uma intervencao maisespecffica, mais especializada.

2 Graduagäo concedida aoscapoeiras que atingem o Ultimoestagio de docente. A forma deconcessao da mesma varia degrupo para grupo.

3 Entre -1 2 de janeiro de 1973 e 23 deoutubro de 1992 a capoeira estevevinculada a Confederageo Brasileirade Pugilismo (CBP), que, atravesdo Departamento de Capoeira,promoveu varios campeonatos decapoeira no Brasil.

4 Rugendas, em 1834, retratou acapoeira em uma gravuraintitulada "Jogar capoeira ouDanca da Guerra". Nela, doisnegros gingam ao som de urnatabaque — tocado por urn negrosentado — diante de umaassistencia composta por novenegros (dentre os quais tresmulheres) (1979, p. 241).

5 0 COdigo Penal da Republica dosEstuados Unidos do Brasil,institufdo pelo Decreto n. 487, deoutubro de 1890, oficializou acriminalizacao da capoeira emtodo o territOrio nacional, aoestabelecer, em seu Capftulo XIII,o seguinte:Art. 402. Fazer nas ruas e pracaspablicas, exercfcio de agilidade edestreza corporal conhecida peladenominacao capoeiragem (...)Pena: de prisao celular por dois aseis meses.

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§ tinico. E considerada circuns-tancia agravante pertencer ocapoeira a alguma banda oumalta.Art. 404. Se nesses exercicios decapoeiragem perpetrar homicidio,praticar alguma lesao corporal,ultrajar o pudor ptiblico e particular,perturbar a ordem, a tranqUilidadeou seguranca pOblica ou forencontrado corn armas incorreracumulativamente nas penascominadas para tais crimes. (Rego,1968, p. 292)Segundo AraCijo (1997), adescriminalizacao oficial dacapoeira deu-se a partir dapromulgacao do Decreto-Lei n.3.688, de 3 de outubro de 1941(Leis das ContravencOes Penais —Parte Especial, Cap. I, "DasContravencOes referentespessoa), na medida que a mesmajá nao figurava explicitamente norol das atividades previstas comocontravencao penal (p. 216).

6 Dentre elas, pode-se citar: UFRJ,UFRRJ, CIERJ, UFBA, UFSC, USP,UnB, UFS, Universidade GamaFilho, Universidade CatOlica deSalvador.

7 Entre tantos projetos, podemos citaro "Projeto Iniciar Capoeira", fundadoem Brasflia-DF, em 1990, e cornrepresentacOes em varios estadosbrasileiros. Esse projeto foireconhecido oficialmente pelo Fundodas NacOes Unidas para a Infanciae Adolescencia (UNICEF). 0 Centro

Brasileiro para Infancia eAdolescencia (CBIA) o consideroucomo "uma das experiencias demajor resultado na mudanca decomportamento na crianca eadolescente carentes, especial-mente entre meninos e meninas derua". (Jornal Capoeira emEvidencia, n. 04, p. 4, dezembro,1997). Em Florianópolis-SC, oGrupo Ajaguna de Palmaresdesenvolve o Projeto "GingaDesterro", que atende comuni-dadescarentes. Entre 1993 e 1996, esseprojeto recebeu apoio institucionalda Prefeitura Muni-cipal. A partir de1997, corn a mudanca de govemo,o apoio foi suspenso, mas ostrabalhos continuam sendorealizados e mantidos pela prOpriacomuni-dade. (Informativo Caa-Puera, n. 13, 1997).

8 Para citar alguns deles: 1) MestrePastinha (1889-1981) — principalguardiao da Capoeira Angola,fundou em 1941 o Centro Esportivode Capoeira Angola, em Salvador.Faleceu cego e esquecido. 2)Mestre Bimba (1990 — 1974).Fundou a primeira academia decapoeira do Brasil e foi o criadorda Capoeira Regional, urn estilo decapoeira mundialmente conhe-cido. Faleceu pobre, lutando pormelhores condicOes de vida, emGoiania — GO. 3) Mestre Waldemarda Liberdade — conduziu nasdecadas de 40 e 50, aos domingos,a roda de capoeira que se tornouo mais importante ponto de

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encontro dos capoeiras deSalvador. Morreu, em 1990, napobreza, como tantos outroscapoeiras celebres (Vieira, 1995).

9 Nos ravels de ensino fundamentale media, ja existem algunsprogramas implantados, como osdos estados do Rio de Janeiro,Bahia e Distrito Federal, entreoutros, corn niveis diferenciados dedesdobramentos e abrangencias(Fa!cat), 1994).

10 A producao de compact disc decapoeira a urn dos grandes floesutilizados par muitos capoeiras egrupos para, alem de divulgar suaproducao musical, angariar bonsdividendos num curt() espaco detempo. A maioria dos grandesgrupos ja produziram os seus cds.Alguns grupos produzem em serie,urn a cada ano. Criticados pelosdefensores da "manutencao dastradicOes" e pela "qualidadediscutivel", os cds sao, atualmente,a coqueluche da capoeira.

11 Pires (1996) argumenta que acapoeira a parte integrante dacultura da classe trabalhadora, da"cultura operaria", se contrapondoa ideia da capoeira como existindoa margem do mundo do trabalho.Segundo o autor, para as classesdominantes na RepUblica Velha, asociedade estava dividida entre omundo do trabalho e o mundo docrime. Nessa visa() que orientouas medidas de controle social, oscapoeiras estariam ao lad() do

crime, da desordem. No entanto,a partir de suas analises, constatouque os capoeiras tambernestiveram relacionados corn omundo do trabalho e da ordem.

12 Recentemente (junho de 1998) urndos maiores grupos de capoeira dosul do Brasil, apcis harmoniosaadesao e inconteste apoio a CBC,comunicou, via informativo, o seudesligamento da mesma, "par naoaceitar seus posicionamentosfilosOficos, que tents impor urn tipode graduacao que o grupo naoconcorda e nao foi consultado paratal". (Nota de Esclarecimento,1998, p. 11). 0 referido infor-mativo anuncia, em sua Ultimapagina: "vem al a Super LigaBrasileira de Capoeira, aguardem"(ibid., p. 12).

13 0 Comite Olimpico Brasileiroreconhece a CBC como Cinicaentidade representativa da capoeirano Brasil. A CBC atualmentetrabalha cam afinco cam oobjetivo de inserir a capoeira nasOlimpladas de 2008.

14 As instituicOes que administram oesporte em ambito nacional emundial sao, hoje, grandesparceiras dos governos federais eagem como verdadeiras agenciasinternacionais que se utilizam docapital simbOlico (prestigio ereconhecimento) proporcionadopelo esporte para angariar podere dinheiro pCiblico (Bracht, 1997).

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MotriviVincia

15 Em 1995 comecou a tramitar naCamara de Deputados o Projetode Lei ri1 85/95, de autoria doDeputado José Coimbra, queaponta para o reconhecimento dacapoeira coma urn esportegenuinamente brasileiro. ApOs tersido aprovado em todas ascomiss6es da Camara, cornalgumas emendas, o projeto(agora sabre o n. 39/1997)encontra-se na pauta de votacaodo Senado Federal e já recebeuparecer favoravel do relatorSenador Abdias do Nascimento.(Brasil, Senado Federal, 1997)

16 De acordo corn Rego (1968), acapoeira foi tratada durante muitotempo coma caso de policia, "quedormia e acordava no calcanhardos capoeiras" (p. 43). Alguns dosmais consistentes estudos sobre ahist6ria da capoeira foramrealizados a partir da documen-tacao existente nos arquivos dapolicia brasileira. Ver Pires (1996)e Soares (1994).

17 Apesar da dificuldade de deli-mitacao enquanto categoriahomogenea, classes populares éempregado aqui para designar osgrupos sociais que, no processo dedistribuicao de riquezas, encon-tram-se marginalizados e temprecarias condicOes de existencia.

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