os mitos e os heróis nunca estão...

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morte é, definitivamente, um elemento purificador. Releva a maldade dos maus e transforma os bons em me- lhores ainda. Dependendo das cir- cunstâncias em que a fatalidade ocorre, a mutação tende a ser ainda mais drástica. Um mito humano costuma nascer no momento de sua morte. Pode se fortalecer ainda mais com ela. Muitas vezes, a perda intensifica ainda mais a adoração. Se o personagem já era um ídolo quase sobre-humano em vida, após a morte ele passa a ser visto como um semideus, objeto de culto per- manente. José Carlos Rodrigues, professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio e autor do livro Quando a morte é festa explica a razão pela qual a morte tem efeitos diferenciados em função da projeção pública das pessoas em vida: – As pessoas comuns, quando morrem, são lembradas pelos seus próximos e com isso aquele núcleo de relações humanas a que perten- cia continua a existir. Quando você projeta isso em uma socie- dade, então você tem figuras que, quando vivos, eram “super pes- soas”, boas ou más e que, quando d e s a p a recem, ameaçam deixar uma grande lacuna. A sociedade passa a re v e renciar a memória dessas personalidades para pre- encher esses espaços – enfatiza. Numa escala nacional, poderíamos pensar em Ayrton Senna, Ulisses Guimarães ou Getúlio Vargas. A figura de Vargas ronda, nas últimas cinco décadas, o debate político no Brasil. Analisar sua história e avaliar sua importância é, portan- to, pensar em sua contribuição positiva e seus erros. No meio cultural, em particular na música, existem casos recor- rentes nos quais a morte subita- mente eleva um personagem ao patamar de mito. A tragédia, a precocidade e a quebra de uma trajetória ascendente também influenciam nesse caso. – Eu disse a ele pra não se juntar àquele clube burro. A frase dita por Wendy Cobain, mãe do líder DANIELA RYFER, JOSÉ AUGUSTO SANTANA, JOÃO PAULO SÁE PATRÍCIA EKSTERMAN Os mitos e os heróis nunca estão vivos A indesejada das gentes 11 A relação entre morte e mitificação, objeto de estudo do professor José Carlos Rodrigues, pode ser constatada na política, no esporte e na cultura “A sociedade existe contra a morte, e é preciso que as lacunas produzidas por ela sejam preenchidas” José Carlos Rodrigues “Não se junte a esse clube burro”, aconselhou a mãe de Kurt Cobain

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  • morte é, definitivamente, um elementop u r i f i c a d o r. Releva a maldade dos

    maus e transforma os bons em me-lhores ainda. Dependendo das cir-cunstâncias em que a fatalidade

    ocorre, a mutação tende a ser ainda mais drástica.Um mito humano costuma nascer no momento desua morte. Pode se fortalecer ainda mais com ela.

    Muitas vezes, a perda intensifica ainda mais aadoração. Se o personagem já era um ídolo quasesobre-humano em vida, após a morte ele passa aser visto como um semideus, objeto de culto per-manente. José Carlos Rodrigues, professor doDepartamento de Comunicação Social da PUC-Rioe autor do livro Quando a morte é festa explica arazão pela qual a morte tem efeitos diferenciadosem função da projeção pública das pessoas emvida:

    – As pessoas comuns, quandomorrem, são lembradas pelos seuspróximos e com isso aquele núcleode relações humanas a que perten-cia continua a existir. Quandovocê projeta isso em uma socie-dade, então você tem figuras que,quando vivos, eram “super pes-soas”, boas ou más e que, quandod e s a p a recem, ameaçam deixaruma grande lacuna. A sociedadepassa a re v e renciar a memóriadessas personalidades para pre-encher esses espaços – enfatiza.

    Numa escala nacional, poderíamos pensar em

    Ay rton Senna, Ulisses Guimarães ou GetúlioVargas. A figura de Vargas ronda, nas últimas cinco

    décadas, o debate político noBrasil. Analisar sua história eavaliar sua importância é, portan-to, pensar em sua contribuiçãopositiva e seus erros.

    No meio cultural, em particularna música, existem casos recor-rentes nos quais a morte subita-mente eleva um personagem aopatamar de mito. A tragédia, aprecocidade e a quebra de umatrajetória ascendente tambéminfluenciam nesse caso.

    – Eu disse a ele pra não se juntar àquele clubeburro. A frase dita por Wendy Cobain, mãe do líder

    DANIELA RYFER, JOSÉ AUGUSTO SANTANA, JOÃO PAULO SÁ E PATRÍCIA EKSTERMAN

    Os mitos e os heróisnunca estão vivos

    A indesejada das gentes 11

    A relação entre morte e mitificação, objeto de estudo do professor José Carlos Rodrigues, pode ser constatada

    na política, no esporte e na cultura

    “A sociedade existecontra a morte, e é

    preciso que as lacunas produzidas

    por ela sejampreenchidas”

    José Carlos Rodrigues

    “Não se junte a esse clube burro”, aconselhou a mãe deKurt Cobain

  • da banda Nirvana, Kurt Cobain, quando soube queseu filho perdera a batalha contra a depressão e adependência da heroína, e se suicidara com um tirocontra a cabeça, há mais de 10 anos.

    C e rtamente, Wendy se referia a um grupo do qualtambém passaram a fazer parte, no início dos anos1970, ídolos como Brian Jones, Jimmy Hendrix, JanisJoplin e Jim Morrison. Jones, guitarrista que disputou

    a liderança durante os primeiros anos dos RollingStones com Mick Jagger, foi encontrado boiando napiscina da sua casa após muitas crises depressivas deconhecimento público. Hendrix, eleito por nove emcada 10 guitarristas como o maior de todos os tem-pos, morreu afogado em seu próprio vômito apósuma overdose de barbitúricos. Já Joplin e Morr i s o ndeixaram a condição de artistas bem sucedidos parase torn a rem mitos, através do abuso de heroína, amesma droga usada por Cobain.

    As histórias dos integrantes do clube mencionadopela mãe de Cobain compartilham de um finalparecido. Todos pereceram tragicamente no augede suas carreiras e aos 27 anos de idade. Em Por-tugal foi criado o “Clube dos 27”, um blog que cul-tua os personagens dessa coincidência.

    Esta adoração pelo ídolo morto de forma trágicaencontra paralelos na história das civilizações, enão há nada de novo nessa situação, a não ser asformas de morrer. Em muitos aspectos a morte deídolos contemporâneos assemelha-se à do heróihomérico, na Grécia Antiga:

    – Invariavelmente os heróis têm uma vida trá-gica, especialmente o final dela. O alçamentodessas pessoas numa dimensão superior a doshomens comuns requer na narrativa da vida delesacontecimentos extraordinários. Em um caso éloucura, em outro é suicídio, em outra doença, emo u t ro um acidente, como Ay rton Senna. O suicídioé também um destes componentes possíveis, comoo c o rreu com Getúlio Va rgas – exemplifica JoséC a r l o s .

    Julho/Dezembro 200412

    Até que ponto a morte de CheGuevara o distanciou de umaavaliação política objetiva e im-parcial? Pertencentes ao mesmogrupo que liderou a derrubadada ditadura de Fulgêncio Batistana ilha de Cuba em 1959, CheGuevara e Fidel Castro têm, atu-almente, uma projeção interna-cional muito distinta. O pri-meiro teve sua vida sacramenta-da pela morte, foi mitificado ao

    ponto de seu ícone ser absorvidopelo que há de mais contrário àsua ideologia praticada em vida.Camisetas, bonés, broches, cha-v e i ros, qualquer tranqueira écomercializada com a “marca”Che Guevara, como acontececom ídolos p o p criados pelaindústria cultural. Fidel, por suavez, tem sido mostrado maiscomo uma caricatura do que ummito propriamente dito. Sua

    imagem atual na mídia é a deum ditador obsoleto e aguerr i d o ,p reso às “ultrapassadas” doutri-nas do comunismo. Isso até que asua morte prove o contrário.

    A overdose de heroína fez Janis Joplin integrar o “Clubedos 27”

    Chê virou pop?

    Fidel: sua morte é debatida publi-c a m e n t e