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Os meus factos, que são a nossa Depois do Adeus, da RTP, é a primeira série de ficção a retratar a chegada a Portugal dos nacionais que nos anos 1970 vieram das antigas colónias ultramarinas. A partir do primeiro episódio, a jornalista Vanessa Rato recorda a chegada da sua família, vinda de Angola na ponte aérea de 1975. 0 segundo episódio da série passa esta noite, às 21h. Esta é uma carta de amor a todos os que tiveram de recomeçar Na primeira pessoa ma das primeiras coisas que os meus pais me ensinaram sobre a vida na me- trópole foi "não tem sentido cha- marem-te retorna- da porque tu nunca antes tinhas estado em Portugal. É uma estupidez. Não permitas. Explica- lhes". Lembro-me de a minha mãe me dizer isto uma vez - terá sido a úni- ca? -, numa manhã antes de eu sair para a escola. Não chega a ser um fragmento de filme, um momento suspen- so no ar. Estávamos no hall, junto à porta. A minha mãe, alta, ma- gra, de cabelo curto, muito escuro. Parece-me muito séria, inclinada sobre mim a apertar-me o casaco. Eu estou a olhar para cima, para ela. Teria sete, oito anos. Quer dizer que avançávamos pela década de 1980 e o preconceito grassava. À distância, diria que não percebi do que ela estava a falar. Mas não cola. Eu sabia. A memória faz isto: escolhe, re- cusa, monta, recompõe... É um ca- minho secreto, cheio de alçapões e armadilhas. E dentro de um deles está este recorte de uma narrativa maior, um despojo descontextuali- zado pelo tempo e envolto numa po- eira de emoções que provavelmente não lhe pertencem. É quase nada, mas irradia uma energia incrível, muitas vezes maior do que a sua massa. Talvez por isso nunca tenha pensado na sua poten- cial banalidade, com a mesma frase, à época, a ser dita por centenas e

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Os meus factos,que são a nossa

Depois do Adeus, da RTP, é a primeira série de ficção a retratar a chegada a Portugaldos nacionais que nos anos 1970 vieram das antigas colónias ultramarinas. A partirdo primeiro episódio, a jornalista Vanessa Rato recorda a chegada da sua família,vinda de Angola na ponte aérea de 1975. 0 segundo episódio da série passa estanoite, às 21h. Esta é uma carta de amor a todos os que tiveram de recomeçar

Na primeira pessoama das primeirascoisas que os meuspais me ensinaramsobre a vida na me-trópole foi "nãotem sentido cha-marem-te retorna-da porque tu nuncaantes tinhas estadoem Portugal. É uma

estupidez. Não permitas. Explica-lhes".

Lembro-me de a minha mãe medizer isto uma vez - terá sido a úni-ca? -, numa manhã antes de eu

sair para a escola.Não chega a ser um fragmento

de filme, só um momento suspen-so no ar. Estávamos no hall, juntoà porta. A minha mãe, alta, ma-gra, de cabelo curto, muito escuro.Parece-me muito séria, inclinadasobre mim a apertar-me o casaco.Eu estou a olhar para cima, paraela. Teria sete, oito anos. Quer dizer

que avançávamos pela década de1980 e o preconceito grassava.

À distância, diria que não percebido que ela estava a falar. Mas nãocola. Eu sabia.

A memória faz isto: escolhe, re-cusa, monta, recompõe... É um ca-minho secreto, cheio de alçapões earmadilhas. E dentro de um delesestá este recorte de uma narrativamaior, um despojo descontextuali-zado pelo tempo e envolto numa po-eira de emoções que provavelmentenão lhe pertencem.

É quase nada, mas irradia umaenergia incrível, muitas vezes maiordo que a sua massa. Talvez por isso

nunca tenha pensado na sua poten-cial banalidade, com a mesma frase,à época, a ser dita por centenas e

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centenas de pais a centenas e cente-nas de crianças em centenas e cen-tenas de casas país fora, de Norte aSul. Só percebi isso há uma semana,quando ouvi as mesmas palavras re-petidas na televisão.

Não assisti à estreia de Depois doAdeus no sábado. Não me lembrei.Vi no domingo, no site da RTP. Vi du-as vezes nesse dia e à noite falei comos meus pais. A minha mãe tambémviu. O meu pai não. "Uma vez foisuficiente", disse-me ele.

Acontece que, às vezes, a reali-dade é menos real do que a ficção.E inversamente. Porque, às vezes,para quem esteve de fora, a ficção é

mais real do que a realidade.Orhan Pamuk escreveu um dia

que os factos tendem a obscurecera verdade. Concordo. Até hoje, as

histórias de família, os nossos ál-buns de fotografias, slides e a vidaa preto-e-branco dos arquivos histó-ricos tinham conseguido transmitir-me os factos mas não as emoçõesdesta parte da minha história. Queé a origem, o princípio de tudo. E no

princípio está uma guerra.O meu pai foi em tempos o pai

desta série. Foi aquele que não disse

mas pensou "somos brancos, mastambém somos angolanos, vai cor-rer tudo bem". Não correu. Viemosna ponte aérea de '75, em Agosto. O

meu pai, a minha mãe e eu, os trêscom duas malas de roupa.

Só nesses meses do grande êxo-do aterraram em Lisboa mais de200 mil portugueses em cerca de900 voos de emergência. Em todoo processo de descolonização, te-remos sido meio milhão a chegar aPortugal. Mas nesse Verão Quenteda ponte aérea, enquanto milharesse acotovelavam já em Angola paraembarcar, a minha mãe dava entra-da na Maternidade de Luanda parame ter.

Nasci em Julho, o mais violentomês do processo de descolonização.Foi na altura do comunicado da 5. a

Divisão do Estado-Maior-Generaldas Forças Armadas que dizia: "As

populações estão tremendamentetraumatizadas, pelo que se afiguraextremamente difícil manterem-seaqui." A minha cédula de nasci-mento, que trouxemos, diz: "Data:

3-7-1975. Hora: 19h. Sexo: feminino.Raça: branca. Peso: 4,000. Cama:Isolamento 7.°." Depois vem o nomeda minha mãe e a explicação: "Par-to: normal; l. a gestação." No fim es-tá uma alínea em branco. Era parao peso da minha mãe. "Não houve

tempo, havia tiros por todo o lado",contou-me ela.

Ainda o mês não tinha acabadoquando desapareceu a médica por-tuguesa Fernanda Sá Pereira, quetrabalhava na maternidade. Forambuscá-la a casa, uma noite, dias de-

pois de ter feito uma denúncia numcaso de desaparecimento de órgãosdo teatro anatómico da maternida-de. O filho mais velho, na altura com13 anos, acordou e viu-a ser levada

por três homens. Foi em robe e ca-misa de noite. Terá sido transpor-tada para a Praça de Touros e sidomorta dois ou três dias depois. Nãose sabe - o corpo nunca apareceu.

A acreditar num único ficheiro doMinistério dos Negócios Estrangei-ros, durante o processo de desco-

lonização desapareceram em An-gola 261 civis portugueses. Mais 30estavam raptados e presos e assimcontinuaram - foram deixados paratrás. Depois de Novembro de 1975

e em 1976 outras centenas desapa-receram e foram raptados, presose mortos.

Consultei a lista de nomes que a

jornalista Leonor Figueiredo publi-cou há quatro anos como anexo dos

seus Ficheiros Secretos da Descoloni-

zação (cd. Alêtheia). Decidi contá-los um a um. Foi assim que percebique uma entrada corresponde, porvezes, a famílias inteiras:

• Esmeralda Joana de Freitas eseis filhos - Novembro de 1975. EmCateymero-Pereira d'Eça.

• Conceição Esperança Frederi-co Mendes (e filha de dois anos) -22/9/1975. Local desconhecido.

• Salete Gomes Correia, TeresaGomes Correia, João Carlos GomesCorreia, Rosa Maria Gomes Correia,José Rodrigues Correia, Idalina Go-mes Correia e Alcindo Correia - Da-ta e local desconhecidos.

À medida que eles desapareciam,os meus pais esperavam o primeirofilho - eu.

Na altura, os homens não assis-

tiam aos partos, mas o meu pai re-conheceu-me mal me viu. Uma en-fermeira enorme passou por ele nocorredor a bambolear-se com dois

bebés, um em cada braço. Mostrou-lhe o bebé errado e disse: "É a suafilha." Ele apontou para mim e dis-

se: "Não. É esta."Confirmaram. E então começou

a nossa vida em guerra.Ao sair da maternidade partilhá-

mos elevador com um soldado demetralhadora em punho e granadaspenduradas à cintura. No mês ante-rior, sem conseguirem passagens aé-

reas nem marítimas para Lisboa, jáhavia portugueses dispostos a fazer

por terra o caminho até à Europa,oito mil quilómetros de África emcarros, jipes, carrinhas e camiões.Desistiram. Mas, no mês seguinte,cerca de 200 pessoas de cidades co-mo Moçâmedes e Porto Alexandre

tentaram o caminho para Sul.Para sair de Angola nessa direc-

ção era preciso o impensável: atra-vessar a Costa dos Esqueletos pelaareia das praias e transpor o caudaldo Cunene. Levaram bidões, cha-

pas metálicas e tábuas para fazerjangadas. Pararam do lado de lá dafronteira, no deserto do Namibe.Foi um acampamento de três diascom jovens adultos mas também os

seus velhos, adolescentes e crian-ças. Foram resgatados pelo Exércitosul-africano quando já não tinhamágua nem comida. Nós saímos damaternidade e fomos para casa, naAvenida dos Combatentes.

Era um apartamento de transição,comprado quando a minha mãesoube que estava grávida e os meuspais, que eram jovens e boémios,decidiram sair do hotel onde viviamaté então. A ideia era ir depois paraa casa que íamos construir no nossoterreno da estrada de Catete.

O meu tio Alexandre ajudou omeu pai a plantar quatro árvores,uma em cada ponta desse terreno.Nunca chegou a haver casa ao cen-tro. A nossa vida em África acabouna Avenida dos Combatentes.

Era uma avenida nova, de prédiosaltos. Numa ponta estava a sede da

UNITA, na outra, o quartel do MPLA,cuja primeira delegação entrara emLuanda em Novembro anterior, se-

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guida, três meses depois, pela che-

gada de Agostinho Neto. Aí os doismovimentos ficaram cara-a-cara,na mesma rua. O que eram os ecosde medo vindos das distantes pro-víncias interiores chegaram então à

capital. E começaram os disparos.Connosco no meio, lá em cima, numdécimo andar.

Andava-se de gatas por causa dosmorteiros e balas perdidas. À noitenão se acendia a luz. Os meus paisescondiam-me na banheira e nos ar-mários. Depois as conservas aca-baram. Nessa altura, fez-se pãosem fermento, duro como pedra,intragável.

Antes da guerra comprava-sepão logo ali, no Largo dos Comba-tentes. Depois os padeiros fugiram.Passou a ser preciso ir à fábrica,que ficava num musseque na 5. a

Avenida. A dada altura, a vizinhado lado ofereceu-se para ir sempreà rua procurar comida por nós. Eraviúva, os filhos eram adultos, viviasozinha. Aos meus pais disse quejá tinha vivido muito e podia mor-rer, eles não, tinham-me a mim. Se

calhar salvou-nos.ntretanto, um dia, omeu pai saiu com ela à

rua. Foi buscar o carroe estacionou à portado prédio. A minhamãe desceu comigoao colo, enfiou-se aolado dele, baixaram as

cabeças e só voltámosa parar no aeroporto.

Estacionámos debaixo de uma ár-

vore junto à pista. Ao lado ficou umMercedes com a chave na ignição.Os donos deixaram um papelinhocom um recado: "Estimem-no co-mo nós o estimámos."

Não sei o que aconteceu à nos-sa vizinha. Os meus pais tambémnão. Mal a conheciam e não volta-ram a vê-la. Pelo menos, é o queme dizem, mas os adultos prote-gem sempre as crianças das pioreshistórias e, para os nossos pais, se-

remos sempre crianças, não é?

Seja como for, nós conseguimosvoo nesse próprio dia, no meio detodas as outras pessoas desespera-

das. E depois aterrámos em Lisboa.O meu pai cresceu em Lisboa e

fora de Lisboa que embarcara pa-ra o Ultramar. Na altura, vivia emCampo de Ourique. Embarcou naGare Marítima da Rocha do Con-de de Óbidos. Na Madeira, única

paragem do percurso, foi sair comoutros soldados. Depois distraiu-see quase perdeu o barco. Chegou acorrer e teve que ser içado a bor-do. "Se imaginasse, tinha ficadoem terra." Mas quase nenhum de-les imaginava. A maior parte, aliás,não sabia ler nem escrever, quantomais perceber o que era e ondeficava África.

"Angola foi o Vietname, massem meios nem inteligência", dizo meu pai.

A minha mãe vivia lá com a fa-mília. Foi esperá-lo ao porto. Co-nheciam-se há anos e correspon-diam-se. Estavam apaixonados.Casaram-se em Benguela quando o

meu pai acabou o serviço militar e

voltou do colonato da Cela. Depoisforam viver para Novo Redondo.

Ele tinha chegado seis anos an-tes à fábrica de corpos que era o

campus militar do Grafanil comum lema pessoal já escolhido:"Não matar, não morrer." No-»•* Grafanil, que era à saída de Lu-anda, foi vacinado, vestido, cal-

çado e armado com centenas deoutros. No fim, ele e o seu bata-lhão foram colocados no Norte, naDamba, na província do Uíge.

Ficava a 700 quilómetros de Lu-anda e a 600 metros de altitude,depois do Kuanza, já junto à fron-teira com o Congo. Foi receber os

papéis e seguir viagem. Semprecom o mesmo lema: "Não matar,não morrer."

Foi assim que o meu pai atraves-

sou a guerra. Nunca matou nin-guém e saiu vivo pela outra pontado túnel. Mas houve momentos em

que podia ter sido engolido por es-

sa noite escura.Da primeira vez que houve um

problema, metade dos soldadosda companhia dele atiraram-se aochão com as mãos nos ouvidos, ou-

tra metade ficou em pé, aos gri-tos, em histeria, a tentar dispararsem destravar a arma. Só três ou

quatro homens ficaram de joelhosflectidos e em silêncio a varrer o

perímetro com os olhos e a metra-lhadora, como (não) lhes tinhamensinado.

E não tinha sido nada.Pouco tempo depois, aquela

coluna de homens voltou a pas-sar pelo mesmo sítio em passeio.De repente, alguns dos soldadosdecidiram começar a disparar con-tra uma família de macacos empo-leirados numa árvore. O meu paidiz que quando conseguiu acabarcom aquilo viu um dos macacos a

passar a mão por uma ferida e amostrar-lhes o sangue, perplexo.

Pode ter sido assim ou não. Dequalquer forma, o meu pai arran-jou maneira de impedir que voltas-

se a acontecer. Também proibiuos homens de irem armados paraas aldeias, a não ser em missão. A

população civil, em pânico, não re-cusava nada a soldados armados.0 que era uma injustiça. E o meupai era um homem justo.

(Até porque os nossos pais são

quase sempre homens justos e ra-ramente têm seja o que for a es-conder.)

Precisamente por não ter nada a

esconder, já cá, quando os funcio-nários do Registo Civil insistiramque se declarasse que eu nasceraem Portugal ele recusou. Era maisfácil e, de futuro, seria melhor paramim, diziam-lhe. Foram semanas.Com ele a insistir: "A minha filhanão vai viver uma mentira."

Os mesmos funcionários que-riam também escrever Vanessacom "ç": Vaneça. Mais tarde - eaté bastante tarde -, eu teria queexplicar aos mais variados profes-sores que não era "Vánessa" nem"Vanéssa", só Vanessa.

Aos nossos olhos, Portugal eraum país provinciano, inculto, frioe cinzento. E era verdade.

Estima-se que até 60% de todosos portugueses das colónias te-

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Os meus pais a 8 de Janeiro de1972, o dia em que se casaramna Sé Catedral de Benguela, noSul de Angola

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nham vindo de Angola. E em Ango-la usavam-se Levi's, microvestidose minissaias, bebia-se whisky e rumcom coca-cola e gelo, todos os diashavia festas onde estavam brancos,negros e mestiços, e todos os fins-de-semana se faziam quilómetrosaté às casas de praia ou de caça on-de, de vez em quando, o petróleojorrava dos pátios e sujava as roupasdeixadas a secar ao sol.

Em Luanda, antes da guerra, ha-via desfiles de moda, concursos de"misses" e corridas de motocross,viam-se filmes no cine-esplanadaMiramar e dançava-se nos jardins,passava-se sem pensar pelo Padrão-Monumento aos Combatentes da IGrande Guerra, faziam-se comprasno Mercado de S. Paulo e no Quina-xixe, lanchava-se lagosta e camarãoe passeava-se pela calçada da Margi-nal, junto ã baía. A mesma calçadaque, durante o forjar da indepen-dência, terá sido levantada e levada

para Havana pelos aliados cubanos,juntamente com lajes de cemitérios,carros, autocarros e tantas outrascoisas.

Foi mais tarde. Antes disso amaior parte da população brancaurbana era jovem, livre e feliz. E, aocontrário do que cá e lá se fez depoiscrer, muitos eram progressistas,integracionistas cheios de sonhostransformadores das velhas lógicascoloniais.

Alguns juntaram-se ao MPLA, oMovimento Popular de Libertaçãode Angola, de Agostinho Neto. Outrosfizeram parte do Movimento do Galo

Negro, da UNITA, a União Nacional

para a Independência Total de An-gola, de Jonas Savimbi. Outros ain-da integraram a Frente Nacional de

Libertação de Angola, que durantea guerra civil combateria o MPLA aolado da UNITA. E esses portuguesessabiam distinguir os ovimbundo dos

ambundo, bakongo e kimbundo. Pa-

ra eles, "os pretos", como se dizia emPortugal, não eram todos iguais nemnecessariamente seus criados.

Ra por tudo isso que,cá, os "retornados"se distinguiam entre amultidão. Eles e as suas

roupas incrivelmentecoloridas, as suas mu-lheres a fumar nos ca-fés, as suas crianças aperder os sapatos noregresso da escola,

acreditando ir ainda correr sobreos relvados. E todos a tratarem to-da a gente por tu, a dizerem "bué","baza", "machibombo". E muitosa não perceberem grande coisa dapolítica nacional, entre o Cunhal, "o

Bochechas", "o Sapo", o Sá Carneiroe os outros.

Não tinham lugar numa sociedade

rasgada pelo preconceito de uma

esquerda que os via como reaccio-nários desejosos de manter a velhaordem das coisas e de uma direitacatólica que os achava gente disso-

luta, de maus hábitos.Em conversa, alguém me dizia

esta semana que, no fundo, tantoo povo como as elites continentaistinham medo dos "retornados", queeram muito mais modernos, cos-

mopolitas, informados e estavammuito mais preparados para a vidacontemporânea do que os portugue-ses da metrópole. Provavelmente é

verdade. Portugal era minúsculo e omedo explica muitas coisas. Mas os"retornados" deviam estar demasia-dos confusos e perdidos para perce-ber. Eu era demasiado pequena.

Mesmo tão mais tarde, quandochegou a minha vez, nas escolas eliceus ainda não se estudava His-tória Contemporânea. Ficávamospendurados no Império, quando o25 de Abril não acontecera e a des-

colonização e os "retornados" nãoexistiam. Aliás, nessa altura, nosbancos de imagem da RTP pareciahaver uma única imagem da Luandapós-colonial: uma vista área da baía

com a torre do Banco Comercial de

Angola (BCA) a subir entre a malhados outros prédios.

Eram segundos, o tempo de umhelicóptero fazer um semicírcu-lo com uma câmara a bordo. Nosanos 1980, era quase sempre isso

que passava no Telejornal quando

falavam da guerra lá. E, a cada vez,o meu pai apontava para a torre doBCA e dizia: "Era ali que o papátrabalhava."

Algum tempo depois da nossachegada a Portugal, um recensea-mento aos ex-residentes ultramari-nos constatou a existência de maisde mais de 110 mil desempregadose 71,5 mil funcionários públicos.Em Angola, os funcionários pú-blicos iam ao ministério a quepertenciam, pediam o regressoe recebiam a garantia de ter emPortugal os mesmos postos detrabalho. A minha mãe era fun-cionária pública, o meu pai não.Mas não tivemos que depender dassenhas do lARN, o célebre Institutode Apoio ao Retorno de Nacionais

que nos deu o nome. Também nãotivemos que viver em centros deacolhimento, pensões nem hotéis.Tivemos sorte.

Não trouxemos móveis, carro,nem ouro nem diamantes nem di-nheiro nem nada. Não mandámoscontentores. Não houve tempo. O

meu pai pediu a um amigo que lhetrouxesse um caixote. Tinha a ideiade a maior parte das pessoas emPortugal não terem frigorífico. Foio que veio, um frigorífico. Entre-tanto, passámos sem parar pelosque dormiam no chão do aeropor-to da Portela: à chegada, a madri-nha da minha mãe emprestou-nosuma casa.

Era na província, na Beira Baixa,numa rua que o meu bisavô tinhacomprado no século XIX, quandoos filhos chegaram à idade esco-lar e a família se mudou da quintapara a cidade. Quando viemos de

Angola, já só viviam nessa rua osmeus tios-avós. O meu tio Fran-cisco, a minha tia Ana, o meu tioAlexandre e a minha tia Maria, quefoi a minha verdadeira avó e umadas minhas três mães (a outra és

tu, querida Blhã).Foi com eles que cresci.Orhan Pamuk escreveu: "Todas

as verdades significativas são ver-dades privadas. À medida que se

tornam públicas, deixam de serverdades; tornam-se factos."

Podemos entender nisso a de-

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vassa da comunicação total. Oupodemos pensar que, para existir,a história de um povo tem de sercontada, tornada facto.

Estes são os meus factos. É aminha carta de amor e agradeci-mento aos meus pais e a todos os

que tiveram que começar do prin-cípio, como eles. É também o meupedido de desculpa por, no fundo,só ter percebido agora o que isso

quis dizer.

O meu pai a bordo do paqueteInfante D. Henrique, durantea sua primeira viagem dePortugal para Angola, emAgosto de 1967

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