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OS MEUS DIAS SÃO BOCEJOS PAULO RIBEIRO

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OS MEUS DIAS SÃO BOCEJOS

PAULO RIBEIRO

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Site Oficial: http://paulo-ribeiro.ptFacebook: https://www.facebook.com/pauloribeiro7oficial/

Impressão: Gráfica 99Março 2017

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BEM-HAJA Quando acabou de ler o livro, a minha mulher disse:

“Nãooo! Não pode acabar assim!” E tinha razão. Não podia. Pensei durante 24 horas e inventei um novo final. Se gostarem, agradeçam-lhe.

Obrigado ao Pedro Biscaia e à Fernanda Marques da Silva pela revisão do texto. À Mafalda Lourenço por ter dado a ideia para um dos acontecimentos chave do livro, que eu depois desenvolvi de forma a prestar homenagem a uma das minhas séries preferidas: Misfits. E por ter partilhado um pensamento importante sobre aspiradores (capítulo 27).

Obrigado aos irmãos Trocades, Pedro, João e Luísa, por emprestarem o seu estilo inconfundível à capa do livro. Eles representam pessoas que se estão a aborrecer com a leitura dos meus livros. Não são personagens deste folhetim. A contracapa ilustra uma pessoa extremamente descontente com o facto de existir um novo livro deste vosso escriba. É a Maria João Azevedo. A Rebeca Roxo Couto é quem segura os balões no final da festa que é a leitura deste livro.

Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, factos ou situações da vida real terá sido mera coincidência. Mais ou menos, vá. Nesta novela relato alguns episódios que aconteceram mesmo (comigo), portanto, tem muito de autobiográfico. Tudo o que se escreve tem muito de autobiográfico.

Divirtam-se a ler. Eu diverti-me a escrever.

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Pedi um café e um pastel de nata. Comi primeiro o pastel. Não estava grande coisa. À minha frente, do outro lado do balcão, um tipo e uma tipa. Ele envergava uma t-shirt com a palavra “YEAH” escrita. A tipa estava a falar ao telefone. Perguntava se era urgente. Estava visivelmente irritada. Desligou. Esticou o dedo do meio fazendo um gesto obsceno para o telemóvel. Ofendeu unilateralmente o seu interlocutor sem que este se apercebesse. Desabafou qualquer coisa com o “yeah” e foram-se embora. Eu acabei o café e fui também. Na direcção oposta. Segui pelo corredor que vai dar à Primark. Cruzei-me com uma sujeita alta. Reparei nela. Trazia vestidas umas calças pretas, justas e rasgadas. Era feia. Dirigi-me ao carro, desalentado. Faltavam quatro horas para sair do emprego. Mais quatro vezes sessenta minutos enfiado naquele cubículo, a pensar no que poderia ter sido, mas, claramente, não era.

Poderia ter sido tudo, menos este bocejo. Eu poderia ter sido uma pessoa que faz gestos obscenos para o telemóvel, mas não sou. Nunca fui. Mas também não sou melhor. É um mistério por que razão Deus não arrasa este planeta cheio de imbecis e dementes seres pouco humanos. Seres insatisfeitos que querem ser o que não são. Como eu. Um idiota chapado, com pretensões a artista. Com pretensões a gigante. Quero ser um ousado Golias. Temido e conhecido. O problema é que ninguém me quer conhecer. E os que tiveram esse desprazer puseram-se a milhas à primeira

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oportunidade. É natural. No lugar deles eu faria a mesma coisa.

Disse: “tarde!” Dirigi-me ao meu cubículo. Há muito que suprimira o “bom” ou o “boa” do cumprimento. O meu cubículo não é bem um cubículo. Já lá trabalhámos quatro. Nos tempos áureos. Agora, sou só eu. Asseguro os serviços mínimos. Um computador que não imprime. Outro que não arranca. O PHC que está lento. Vacuidades desse género. Os meus dias são bocejos. Ninguém à minha espera em casa ou em quaisquer outras quatro paredes. Namorada, amante, mulher, filhos, cães ou gatos, amigos… Nada. Tenho cem no Facebook. Amigos. Com “a” minúsculo e aspas maiúsculas. Não publicam uma única coisa digna de nota. As canções de que gostam, notícias de jornais sobre cataclismos, fotos de filhos. Um desconsolo.

Seis da tarde. Saí. Não me apeteceu ir logo para casa. Fui comer ao McDonald’s. Dizem que faz mal, por causa da temperatura a que os óleos queimam… ou talvez esteja a fazer confusão. Não faz mal. Não faz mal fazer mal.

Reparei primeiro no gordo. Tinha uma barriga enorme, calçava umas Crocs (aquelas chanatas de plástico) velhas. Viam-se-lhe os calcanhares gretados. Devia estar de dieta porque levou um hambúrguer muito pequeno e um smoothie. Mais para a direita, estava uma mãe que passou o tempo todo a reclamar com o filho. O pai não disse palavra. Só se queria despachar e ver-se livre daquele castigo. A um metro de mim, uma mulher dos seus quarentas. Pós-balzaquiana,

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portanto. Tinha ar de naftalina e uns sapatos pretos deprimentes. Nunca vos aconteceu repararem numa coisa qualquer, absolutamente banal, e sentirem-se deprimidos? Adiante. Com ar sereno e rosto fechado, aguardando a sua vez sem dar sinais de impaciência, uma miúda asiática que vinha dos treinos de voleibol. T-shirt vermelha da EDP (eles mandam nisto tudo) e calções pretos. Quem não estava com ar sereno era a mãe que vestia uns calções curtos de ganga e exibia as unhas dos pés pintadas de rosa. Estava com ar abatido. Sozinha com a filha. Parecia uma ex-estrela de cinema. Destilava classe e falta de vigor. Os três adolescentes eram os mais animados. Dois rapazes e uma rapariga. Explodiram em gargalhadas quando um deles deixou cair o pacote de batatas fritas. Um dos miúdos tinha o riso mais irritante de sempre… do mundo inteiro. Parecia um pássaro com uma infecção urinária. Seguramente a miúda escolherá o outro. Ou nenhum. O mais provável é que daqui a uns anos já nem se lembre daqueles dois palermas. Nem será preciso tanto. As pessoas só precisam de uns dias para se esquecerem de quase tudo… Ou talvez não. Também se pode dar o caso de nunca se esquecerem...

Mais um dia igual a tantos outros. Todas as histórias que tenho são de outros. A minha vida é um bocejo. Sentei-me no sofá e adormeci. Acordei às quatro da manhã. Fui para a cama. Estava fria. Como sempre. Como seria de esperar.

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Trânsito na 2ª Circular. Os tipos da Rádio Comercial estavam já há um bom par de horas a animar os ouvintes com piadas sem piada nenhuma. Talvez fosse só de mim.

Cheguei ao parque de estacionamento do escritório ao mesmo tempo que a fulana que me tem roubado o lugar. Saiu do carro a berrar com o desgraçado do marido, ao telefone, claro. Grasnava assim: “Contigo é sempre a mesma treta! Depois não queres que eu ande sempre mal disposta…” Coitado, não sabia no que se estava a meter. Senti as dores do sujeito. É ter paciência e fé. Talvez um dia ela fique mais tolerável.

Já no escritório, uma das minhas colegas dissertava com grande desdém da funcionária da secretaria da creche do miúdo. Uma tal Natacha que se veste de forma muito provocante. De tal maneira, que há um engarrafamento de pais (homens) na altura do pagamento da mensalidade.

Na minha hora de almoço dei um salto à Fnac. Uma funcionária recomendava um CD a uma cliente dizendo, literalmente, o seguinte: “Essa música é evolutiva, dá buéda pujança!” Todo o meu ser estremeceu.

Depois voltei para o escritório. Meti música nos ouvidos… na cabeça, na verdade. Nas orelhas enfiei os auriculares.

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Ligaram-me do ginásio. Há três meses que não lhes dava um ar da minha desgraça. Afinal havia alguém, interesseiramente, à minha espera. Só assim. Creio que não estavam preocupados com a minha saúde. Nem receosos que eu estivesse a ficar gordo. Voltaria antes do Verão. Não agora. Agora era época de ceroulas, não de calções de licra. Decidi ir cortar o cabelo. Fui. Perguntaram-me se tinha preferência. Respondi que não. Um tipo como eu não tem preferências por nada, nem por ninguém. Fui atendido por um indivíduo com uma tatuagem na mão. Daquelas que se fazem nas prisões. Apreciei a ideia. Depois de me lavar o cabelo, esfregou-me a cabeça com tamanha intensidade que até fiquei um pouco zonzo. Secou-o com um secador. Passou álcool nas ex-peludas zonas debastadas pela fria lâmina. Ardeu. Gostei da sensação. Claro que não sou masoquista, mas aquele arrepio ardente soube-me bem. Fez-me lembrar as minhas feridas. As da alma. E como, às vezes, transferia a dor da alma para o corpo. Ter de sentir no corpo aquilo que me vai na alma. Uma dor acalma a outra. E isso sabia-me bem. Paguei e fui para casa. Ainda ia a tempo de ver o Benfica. Jogo da Liga dos Campeões. Não tinha nada de especial para comer. Contentar-me-ia com uma latinha de atum. Assim foi. O Benfica perdeu. Adormeci durante a segunda parte. Não perdi nada. Perderam eles.

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Dez da manhã. Acordei. Adormecera! Iria levar na cabeça, do Sr. Tavares. Não é difícil imaginar: “Engenheiro Zé Carlos, esta empresa é o que é derivado a muito zelo, ao cumprimento estrito das normas e ao empenho dos trabalhadores que, durante anos, deixaram aqui sangue, suor e lágrimas, em prejuízo, inclusive, das suas próprias famílias”. Blá, blá… Ai, Sr. Tavares, quem me dera ter uma família para prejudicar! Por outro lado, talvez não. As pessoas aborrecem-me. Não sempre, mas frequentemente. Mas eu tentei. E continuaria a fazê-lo. Nunca me inscrevi em sites de encontros, mas sempre que vejo uma miúda gira no Facebook, com amigos em comum, peço-lhe amizade. Nenhuma aceitou. Talvez tenha de mudar a foto de perfil. Sou feio. Ainda assim, é estranho. Nem uma?

Perdido por cem, perdido por mil. Não teria tempo para tomar banho, mas não iria prescindir da minha Cerelac matinal. Bem grossa. Era uma renda em papa. Ah! Se eu tivesse uma mulher para me acordar. Um despertador humano. Giro e com voz meiga.

Corri para o escritório. A fortuna acordara de bom humor. O Sr. Tavares não estava. O dia passou a correr. Pudera! A minha sonolenta disposição matutina tinha-o decepado. Quando cheguei a casa deitei-me no sofá. Acordei de madrugada, estava a passar uma comédia romântica na televisão. Com o Adam Sandler. Era a história de um sujeito que gostava de uma miúda que sofria de amnésia diária. De alguma forma, todos os

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dias, ele fazia com que ela se apaixonasse por ele… de novo… e de novo... Eu sou como ele, mas ao contrário. Sou o outro lado da moeda. Todos os dias, elas se esquecem de mim. Ficando gratas por semelhante maleita. Todos os dias eu consigo fazer com que me aborreçam, de forma cabal e irrevogável.

Tenho um amor de infância, mas ela despreza com ignomínia os meus sentimentos. Já por três vezes rejeitou os meus pedidos de amizade. Ao que nós chegámos: pedir amizade, imagine-se! Negou-me três vezes. Eu perdoo. A ela, até perdoava 70 vezes 7, apesar da crueldade de semelhante Cruela. Fui para a cama. Já passava das três da manhã.

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Cheguei a horas à firma. Liguei o computador, que se pôs a completar actualizações do Windows como se não houvesse amanhã. Deitei um olho ao meu caderninho para verificar os pendentes. Aproveitei um espacinho em branco e rabisquei um desenho quase infantil. Uma cara redonda, uns olhos com umas pestanas gigantes e cabelo ondulado, não oleoso, comprido. Nesse instante, entrou a recepcionista. Loira. Óculos de massa. Cara fechada. Zangadíssima. De mal com o mundo. Deve ter acordado com o rabo virado para a lua. Entregou-me um post-it com um número de telefone. Despejou o recado como quem esvazia um balde na retrete:

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– Engenheiro Zé Carlos, ligaram deste número. Uma tal Fiona, de uma editora… não fixei o nome. Tem urgência em falar consigo.

– Fiona? Como a princesa do Shrek… – O quê?– Esqueça! Que tipo de editora? – E eu é que sei? – Ok. Obrigado. Eles voltam a ligar, se tiverem

interesse.– Engenheiro, a tal senhora foi muito insistente.

Quase me obrigou a prometer-lhe que eu faria com que o engenheiro ligasse. Eu lá tive de dizer que sim. Não me deixe ficar mal, se faz favor.

– Pronto, pronto… Também, esta porcaria deste computador nunca mais se despacha…

– O engenheiro é que é o informático, ora essa!Saiu, quase ofendida. Olhei para a janela.

Escureceu. Seríamos brindados com chuva dentro de poucos minutos. Editora? Talvez o Círculo de Leitores? Devem andar à caça de novos associados. Mas isso ainda existe? Eles não ligam, vão à casa das pessoas, como as Testemunhas de Jeová. Só não vão é dois a dois. É um contra um. A minha vida é um bocejo, quem me dera que acontecesse alguma coisa. Essa editora não seria mais do que um novo desapontamento. Imagino--me a dizer com enfado: “não, obrigado, não estou interessado”. Colei o papel amarelo na parte inferior do monitor e segui com o meu ramerrame. Não faria qualquer telefonema para Fiona alguma. Muito menos para uma Fiona. Exclamação! Ogre de noite, princesa

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de dia. No entanto, a imagem de um ogre querer falar comigo com urgência foi a coisa mais fascinante dos últimos meses, isso tinha de reconhecer. A princesa ogre. Não liguei. O tédio corriqueiro continuaria em níveis elevados.

Não tinha nada para jantar. Dirigi-me ao chinês (não é meu intuito menosprezar esse estabelecimento comercial que tão bem serve os meus propósitos e satisfaz as minhas necessidades de desenrasque, mas os proprietários são, de facto, chineses, e eu não faço ideia do nome oficial de tão útil espaço) para comprar uvas e presunto. Logo à entrada, um gato de loiça, com a pata levantada, que envergava uma espécie de babete azul e parecia que lhe nasciam rosas nos joelhos. Diospiros a 1.29€. Fruta em caixas de cartão espanholas. A funcionária envergava uma camisola com a cara da Marilyn Monroe ou outra ocidental idêntica. Um contraste interessante. Um misto de culturas num só corpo. Já em casa, comi presunto com pão ressesso e uvas. Depois, peguei num livro. O mesmo que já andava a ler há mais de três meses. Li duas páginas. Larguei-o. Não prestei atenção a nada. Foi como se não tivesse lido uma única palavra. Talvez tivesse chegado o momento de desistir. Já tinha lido duzentas das suas quatrocentas páginas e continuava a não fazer ideia do que tratava. Era um tal Coleman que tinha uma namorada que não sabia ler. Estava escrito de forma tão intrincada que o meu cérebro não segurava nenhuma das ideias, das frases, das personagens, da história, nada. Nicles. Pensei em sair

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para comprar uma coisa mais simples. Estranhamente, apetecia-me ler, mas não o suficiente para me fazer cruzar a porta da rua. Talvez desde a escola secundária que não terminava a leitura de um livro. Desde que a leitura passara a ser facultativa. Eu devia ler. Eu devia gostar de ler. Far-me-ia bem a tudo. Mas, sei lá… era uma tarefa muito exigente. Os livros agora são todos tão grandes. Para onde foi o poder de síntese? Está em vias de extinção? Deixei-me ficar sentado. Levantei-me. Fui à janela. Voltei a sentar-me. Voltei a levantar-me. Estava inquieto. Andava inquieto. Sofria de inquietude. Que estranho! Na televisão, nada de jeito. Uma renda em audiovisual e, entre tantos canais, nenhum transmitia nada que fosse ao encontro das necessidades de um indivíduo com eu. Eu, que nem era particularmente exigente. Eu… eu é que tinha de pensar qual a necessidade que teria de forjar dentro de mim, de acordo com a grelha disponível. Tudo errado. Tudo. Um enorme visor falante que faz companhia aos seres humanos com imagens que eles não querem ver e palavras que eles não querem ouvir. É o que temos. É o país que temos. A vida como ela é. Amanhã haveria de ligar à Fiona. Ou não.

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Acordei a meio da noite, completamente em pânico. Que maçada de pesadelo horripilante! Sonhei que salvava a princesa Fiona do cativeiro do dragão.

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Quando já estávamos a salvo, parámos para descansar um pouco. Adormeci. Adormeci dentro do sonho. O que é uma coisa fantástica. Ainda no sonho, acordei, com uma dor atroz no braço. Quando dou por ela, a Fiona estava transformada num ogre verde, terrífico. Tinha acabado de me arrancar o braço e estava a comê--lo, deliciada. E eu: “Mas o que é isto?” E ela: “O quê? Tinha fome.” E eu: “Isso é o meu braço!” E ela: “Não te preocupes, não te vai fazer falta.” E atira-se-me ao pescoço com uma ferocidade assassina.

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Ainda antes de ligar o computador, disquei o número. Isto é, marquei o número. Eu sou da velha guarda. Noutros tempos discava-se. Rodava-se a roldana esburacada. Atendeu a tal Fiona. Fiona Salgado, da editora não-sei-quê. Não percebi o nome. Pareceu-me nervosa. Tinta Permanente, seria? Enrolou um bocado a língua e eu não percebi bem o nome da entidade. Não interessa. Era uma editora especializada na edição de autores portugueses. Depois das apresentações, e quando eu esperava que ela me tentasse impingir algum tipo de produto bafiento, uma enciclopédia, por exemplo, veio a surpresa:

– Eu estou a contactá-lo em virtude de um manuscrito da sua autoria…

– Manuscrito?– Eu sei que já passou algum tempo…

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– Algum tempo? Peço desculpa, mas eu não estou a perceber o que me está a tentar dizer.

– Eu não estou a falar com o senhor José Carlos Chagas?

– Está.– A nossa editora comprou a editora à qual o José

enviou um original da sua autoria… No meio de alguns arquivos antigos, descobri alguns documentos que nunca tinham sido analisados… e estou a contactá-lo nesse sentido – confessou no meio de várias reticências.

Minha nossa… senhora! Não era possível. Fiz uma pausa e fui a medo, tão ridícula era a situação:

– Eu não sei se é engano ou se estamos a falar do que eu estou a pensar…

– O José é o autor do livro Semeador de Corações?Soltei uma gargalhada. Este país…– Sou… escute, eu enviei esse manuscrito para

uma editora… já nem me lembro do nome… quando andava na faculdade… isso foi há mais de vinte anos! – Fiz sucessivas e incrédulas pausas enquanto soltava risinhos trocistas. – Eu sei que as editoras costumam levar tempo a analisar as propostas de publicação que lhes chegam às mãos, mas vinte anos?

– Compreendo. É um bocado estranho, bem sei. Acha que nos podemos encontrar para falar sobre o tema?

– Qual tema? Esse livro não vale nada. Foi uma brincadeira de uma altura em que eu pensava que podia ser escritor. Já abandonei a ideia há muito. Na verdade, já nem me lembrava desse devaneio. Por mim

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pode deitá-lo ao lixo. – Concluí.Mas ela tinha outra ideia:– Lixo? O seu manuscrito é a melhor coisa que

apareceu no mercado livreiro nas últimas décadas. Uma pedrada no charco. Na verdade, é tão bom, que pode revolucionar toda a literatura portuguesa. Mundial, diria eu.

Passou-se, a senhora! Não tomes os compridos não, Fiona! Isto só pode ser para os apanhados. Questionei com ironia:

– Isto é uma brincadeira, certo? – Não, não! De todo! Um almoço, é tudo o que lhe

peço. Contando que ela não fosse um ogre e eu o almoço,

acedi:– Muito bem. Combinado.Combinámos o local. Nessa manhã não consegui processar mais nada.

Rigorosamente mais nada. Bateu-me uma tristeza inexplicável. Uma melancolia… ui…

Mastigava o crossaint de chocolate como se fosse um selvagem. Sem nenhuma educação. Eu, na outra ponta, bebi o café à pressa e saí dali. Aquilo estava a irritar-me. Fui dar uma volta à Bertrand. Tanto livro! Que necessidade há de escrever um livro? Nenhuma. Já está tudo escrito e mais do que escrito. Ainda assim comprei um. Sem necessidade. Já está tudo lido.

A descer as escadas rolantes, vinha um queque de Cascais. Pólo da Gant. Olhar pomposo. Mulher

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atrelada. Que necessidade há em variar as cores dos pólos? Nenhuma. Trazia ar de quem tem uma amante. Perdoem-me o julgamento sumário. Qual a necessidade de ter uma amante? Nenhuma. As mulheres são todas iguais. O sexo é sempre a mesma coisa. Já todo o mundo fez tudo e outro tanto. Para quê insistir?

O almoço não me soube a nada. À minha volta as pessoas conversavam. Qual a necessidade de conversar? Já foi tudo conversado. Tudo. Conversas sérias, conversas porcas, brincadeiras, risos e choros. Qual a necessidade de ter novos amigos? Os desabafos são semelhantes. Os abraços sabem todos ao mesmo. Sabem a calor. O calor só pode ser seco ou húmido. Que mais? Os copos que se tomam são sempre iguais. A mesma cerveja. Litradas e litradas. As pizzas, os caracóis ou as bejecas. Um enfado recursivo, repetitivo até à náuseaaaaaaaaaaaaaa.

Já na Fnac. Tem cartão Fnac? Claro que tenho cartão Fnac. Tenho, para me saturar de pontos. Mais pontos? Ainda mais pontos? Há necessidade de mais pontos? Não, claro que não. Outra vez a mesma estrada. O mesmo portão. O mesmo cubículo. E a Fiona no pensamento. O Semeador… de Corações. Vinte anos depois. Revolucionar a literatura… ahah! elevado a infinito. A raiz quadrada de infinito vezes infinito. Risos e bocejos.

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Raio do ogre! Estava eu tão sossegado na minha triste sina. “Mar de mágoas sem maré, onde não há sinal de qualquer porto”, assim cantava Amália. Cheguei a casa. Passei duas horas à procura da minha cópia do manuscrito. Nem sei por que ainda guardava aquilo. Algumas folhas estavam amarfanhadas e outras tinham marcas de pegadas acastanhadas. Muito perto do lixo andara aquela minha versão fotocopiada de um futuro clássico da literatura. Fiz uma directa. Reli tudo. Era realmente mau. Encontrei, provavelmente, uma centena de erros. Um ror de vírgulas mal colocadas que desvirtuavam o sentido das frases. Penosa, a leitura. Lixo. Alguém nesta nova editora deveria ser responsabilizado por contratar outrem que levava em consideração semelhante esterco.

Seria esta a minha vingança quase póstuma? A minha retaliação com armas de fogo contra um mundo mau que sempre me desprezara. Que sempre subestimara a minha oculta genialidade. Eu perdia sempre. Era um perdedor nato, mas agora podia revolucionar o mundo literário com um monte de entulho. Passaria de perdedor a predador. Será que o mundo decaiu tanto que em vinte anos passou a ser incrível o que antes era desprezível? Que nova humanidade é esta? Uma em que eu posso ser rei com um olho só, como um monstro? Chegou o meu momento. Embrulhem esta, ex-colegas, pessoas que rejeitaram os meus pedidos de amizade, funcionários

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que estão sempre a reclamar do informático. Embrulhem e metam ao bolso! Ralé inútil e insignificante!

Ao mesmo tempo, bateu-me um desalento. Que incómodo ter de abandonar a resignação. Há um certo estoicismo na vivência do meu inevitável tem-de-ser. Eu não queria perder isso. Não queria perder a minha indiferença. Pelo menos sem verter umas lágrimas.

INDIFERENTE. Assim mesmo. Capitalizado. Gritado.

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Estava à beira de um ataque de nervos. O gadelhas alternativo a fumar com boquilha. O adolescente desengonçado com uns calções que pareciam uma saia. A mulher que não se aguentava nos saltos altos. A fila no quiosque para saber se a raspadinha tinha prémio. Fossem raspar para a Baixa da Banheira! E os livros na Bertrand... os livros na Bertrand... absolutamente irritantes. A Helena Sacadura Cabral armada em Gustavo Santos para tias. A boquinha da Rita Pereira. A Jéssica Athayde em pose de yoga. A fronha do Éder debaixo do título: Vai correr tudo bem. Vai, vai. Tudo demasiado exasperante. Na farmácia, a pergunta: “vai querer número de contribuinte?” Não! Metes tu os comprimidos no IRS, querem lá ver!

Tinha tirado o dia. Não me conseguia concentrar no trabalho. Estava irritado. Mais do que nervoso. Mas quem é que esta fulana julga que é para tirar um sujeito

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da sua vida pacata e prometer-lhe fama e sucesso? Fama e sucesso assentes num monte de areia. Uma casa de praia sem alicerces firmes. Qualquer vento mais forte e seria a sua ruína total. Sentia-me frágil. Mais frágil do que normalmente me sentia. Quase tão frágil quanto o Jorge. Cinco minutos para a uma. Estava na hora.

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Estiquei-lhe a mão. Ela recusou e abraçou-me com veemência, fazendo-me festinhas nas costas. Como se fossemos íntimos, ou pior, como se ela tivesse uma dívida de gratidão para comigo. Eu: o seu salvador pessoal. Isto é vaidade. Eu não queria (não sei se não queria) a fama da salvação. A fama, talvez. Quem sabe a glória. Não queria pessoas. Mas neste negócio as pessoas são escadas que eu teria de subir. Sei lá! Ai, Fiona, Fiona. Sentámo-nos à mesa. Pedimos. Ela começou com força, com vida, com um entusiasmo que me era desconhecido.

– O teu livro… posso tratar-te por tu? Acenei que sim com a cabeça. Continuou:– Como estava a dizer, o teu livro despertou

em mim uma panóplia de sensações adormecidas. Algumas que eu nem sabia que possuía, entranhadas no mais recôndito de mim. A Fiona que está aqui à tua frente é outra…

Outra? Eu fui o gatilho da mudança. O detonador. De princesa para ogre ou de ogre para princesa?

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Teria de parar com esta associação ao filme do Shrek. Eu, quarentão, sem ternura, a pensar em filmes de bonecos…

– Consegues perceber? – perguntou à espera de um redondo sim.

– Pois, sinceramente, hã… mais ou menos…– É de uma força brutal. O restante staff da editora

ficou de queixo caído depois de ler…– Estamos a falar do Semeador de Corações?– Claro! Queremos editar antes do Natal e temos

uma proposta a fazer-te.– Editar? Mas aquilo não está em condições… tem

montanhas de erros e gralhas… – Isso não é preocupação. Eu nem consigo conter

a excitação! Não imaginas!Excitação? Quão patético, Fiona! É incrível como

continua a haver gente tão entusiasmada com pequenas coisas tão enfadonhas como um conjunto de páginas que podem agradar a um conjunto relativamente grande de pessoas. Um conjunto de inutilidades. Conjuntos e mais conjuntos. De nulidades. Palmadinhas nas costas. Fãs. Groupies. Posso tirar uma selfie consigo?

– Ouça! Eu acho que isso não vale sequer o papel em que foi impresso, mas vocês é que são os especialistas. Não me oponho a que seja editado.

Sacou de um contrato que eu assinei sem ler. Só me apetecia sair dali. Sentia-me nauseado. Trocámos contactos e eu afastei-me dando longas passadas. Faltava-me o ar. Cheguei à rua, abri a boca e engoli uma colossal golfada de ar. Sentei-me num vão de

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escadas e passei os olhos pelo contrato. Haveria uma edição em livro e outra em ebook. Receberia 25% sobre a edição digital e 10% sobre a edição física. Aos três mil exemplares vendidos a obra seria traduzida para espanhol e inglês. Etc. Não me apetecia ler mais. E se fosse um sucesso? E se não fosse? E a sessão de apresentação? Oh, não! Sempre detestei plateias. Senti-me a corar de vergonha. Subiram-me calores até às faces. Um tomate. Não me arrependi de ter assinado. Não havia alternativa. O apelo era irresistível: ter um livro à venda nas livrarias. Na Fnac, por onde eu passeava durante a hora de almoço, qual jardim de rosas em botão.

Meteu-se-me uma dor de cabeça das antigas. Fui para casa e deitei-me no sofá. A minha missão estava cumprida. Deixaria de ser um zé-ninguém. Ainda que vendesse um só exemplar, o meu valor estaria reconhecido. Não mais seria um borra-botas. Um totó engavetado num cubículo. Passaria a ser um escritor. Olhai para mim! Sou um artista! Os meus dias são diferentes e cheios de actividades incríveis e estimulantes. Os meus dias não são bocejos. Os meus dias nunca mais serão bocejos. Serei um português influente. Fazedor de opinião. Influenciador de vidas. Instigador de mudanças. Um grande pensador que se debate com as grandes questões que assolam a existência humana. Um dos grandes, eu, Zé Carlos. José Carlos Chagas, o enorme. Adormeci no sofá e acordei com dores no pescoço.

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Cheguei à firma entusiasmado. A recepcionista deu-me um recado qualquer. Mas quem é que esta julga que é para se dirigir ao grande escritor, José C. Chagas desta forma displicente? C. Chagas. Gostei. Ocorreu- -me a ideia de que há vinte anos que não escrevia nada. Que raio de escritor era eu? Uma fraude. Desanimei. Eu até dou erros, bolas! Volta e meia, alguém faz o reparo: “não é fizes-te, é fizeste, tudo pegado”. E eu lá corrijo. Tenho que aprender essa regra depressa. Não, não. Tenho de aprender essa regra depressa. Com “de” e não com “que”. Eu não sei usar a não sei quantas pessoa do pretérito perfeito do indicativo do verbo fazer.

Passou-se isto dentro do meu habitual mosteiro empresarial. Fui ao almoço. Como de costume. Sozinho. Chegaria o dia em que fariam fila para almoçar comigo. Ai chegaria, chegaria! Escolhi o restaurante e meti-me na fila. À minha frente, uma famosa. Apresentadora do Fama Show ou coisa parecida, tipo, Sic-Caras- -Qualquer-Coisa. Foi, de longe, mais bem tratada do que eu pela funcionária que nos atendeu. “Ai... tem o nosso sistema de pontos?” “Ah, faltam-lhe não sei quantos pontos para ganhar uma refeição” e blá, blá, ai, ai, ui, ui... Quando chegou a minha vez quase que tive de implorar em bicos de pés: “olhe, eu também tenho sistema de pontos...”, “diga lá, vá!” Mas esse provinciano desprezo iria mudar. Quando eu fosse um escritor de sucesso… Sucesso? Que coisa é essa?

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O sucesso é só um altar que se constrói com as almas daqueles que nos idolatram e que nós, os bem- -sucedidos, desprezamos. Um pano encharcado que esfregamos nas ventas dos detractores. É uma forma de endeusamento solitário. Sentia-me a ser sugado para outro universo, à velocidade da luz, e não tinha a certeza se seria inferior ou superior.

Abri o Facebook. Fui ao perfil dela e fiz: “Adicionar amigo”. Era a quarta vez. Como se diz: à quarta é de vez. Três vezes me negou o pedido de amizade. Não faz mal. Eu perdoo.

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Quinze dias se passaram e o pedido de amizade continuava por aceitar. Rejeitado não fora. Esperança viva. Uma chama que arde… e tal…

Abri o e-mail. Tinha um da Fiona. Finalmente! Era grande. Explicava uma série de procedimentos editoriais. Em anexo trazia uma primeira revisão do texto original para que eu me pronunciasse. Pronunciar--me-ia mais tarde. Faria nova directa. Não me estava a imaginar com condições literárias para discordar de um revisor oficial. Além de que o livro era tão mau… enfim, não havia hipótese de ficar pior. Discordar de quê? Faria a minha parte, de qualquer das formas.

Peguei nas quase duzentas folhas que imprimira no escritório e sentei-me no sofá para começar a empreitada. Ao fim de duas páginas, atingi o meu

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limite. Que maçada! Que tédio sem fim. Mudar o mundo, uma ova! Adormecer o mundo, talvez. Larguei aquilo. Diria à Fiona que estava óptimo e que aceitava todas as sugestões. Era avançar.

Fui até ao computador. Entrei no Facebook. Tinha de criar uma página. Não que eu quisesse, mas tinha de ser. Era, praticamente, uma obrigação da editora. Deveria colocar pequenos excertos do livro e outros textos da minha autoria. Para já, não deveria revelar muito. A editora anunciaria o livro, em primeira mão, brevemente. Escolhi o nome: José Carlos Chagas. Já existia. Bolas! Escolhi outro: J.C. Chagas. Já existia. Bolas vezes dois! Mas ficou. J.C. Chagas. Era um nome religioso. Muito sofredor. Coadunava-se lindamente com um escritor que iria mudar a face do mundo literário e não só. Antes de J.C. Chagas / Depois de J.C. Chagas. Acrescentei a palavra “oficial” ao nome. Deu. Boa! Escolhi uma foto. Só tinha uma, diga-se. Quem me tiraria fotos? Com que mórbido interesse em estragar película? Uma que me tiraram na última festa de natal da empresa. Desfocada. A foto era má, mas tinha tudo para ser vista como uma foto artística digna de um mudador de mundos, como eu, J.C. Chagas. Convidei todos os meus cem amigos a gostarem da página. Quinze dias depois teria dois “gostos”. Vida triste.

Hum! E agora? Escrever o quê? “Benvindos à minha página!” O corrector indicava erro. Benvindo não se escreveria assim? Seria separado? Mudei para: “Espero que gostem desta minha página. Chamo-me J.C. Chagas e sou escritor.” Excelente. No dia seguinte,

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poria um excerto do livro. Deitei-me. Não conseguia dormir. Liguei o

computador. Fui à página. Continuavam apenas os dois “gostos”, sossegadinhos. Nem mais um. Voltei para a cama. Contei carneiros. Contei escritores. Um escritor, dois escritores, três escritores…

Adormeci.

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Durante quinze dias passou-se rigorosamente nada. Não se passou, diriam uns. Passou-se, sim. Nada. Trabalhei. Comi. Dormi. E actualizei a página com pequenos excertos do Semeador de Corações. Andei de carro. Sempre as mesmas estradas cinzentas. Cinzentas claras, cinzentas escuras. Durante uma quinzena comi no japonês, nos hambúrgueres, nas pizzas, sei lá, em todo o lado. Encontrei colegas antigos em espaços comerciais, que me evitaram. Os colegas, não os espaços. Comi bolos. Estive sentado na minha secretária. Troquei cabos de rede. Fiz paletes e paletes de nada. Bebi icebergs de Ice Tea. Esperei que as horas passassem enquanto esperava que acontecesse coisa nenhuma. Mais um dia, mais uma semana, mais, mais, mais. Dormi. Conduzi. Derreti sozinho. Ampulheta humana é o que eu sou. Areia. Pó. Pó que dá cambalhotas. Pó que volta ao pó. Areia a esvaziar- -se. Areia a encher-se. Imperturbável à passagem voraz do tempo. Nada mais. Nada na cabeça. Um invólucro

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de vidro. Da Marinha Grande. Ah, assinei uma acta de uma reunião do condomínio a que faltei. Esqueci-me. Que interessa? Troquei dois dedos de conversa com uma vizinha que encontrei no elevador: “Mais um dia”, “Lá terá de ser”.

A minha primeira publicação na minha página oficial foi a seguinte:

“Excerto do meu primeiro livro.Ela era como uma irmã mais velha que cuidava dele

desde a morte dos pais. Não que não fossem possíveis sentimentos de outra natureza, mas noutra vida, como se costuma dizer. Não nesta. Noutras circunstâncias. Noutro lugar. Noutro tempo. Mas o tempo era este e o lugar também. E, neste tempo e neste lugar, o Tozé agradecia a Deus pela mão suave da irmã Lili que o segurava nesta travessia. O seu coração aquietava-se um bocadinho. Como seria bom se a tivesse conhecido noutras circunstâncias.”

Hum… Tozé não era nome de personagem principal. Bastante pobre, a narrativa. Irmã Lili? Constrangedor. Que sabia eu? Nada. Nada de nada, aparentemente.

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Finda a bonança veio a tempestade. Quase todos os dias recebi telefonemas da Fiona. Quase todos. O

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que deu lugar a maravilhosas excepções. Jantámos algumas vezes. Excepções. Eu nunca jantara com uma mulher antes. Sozinho, claro. Eu e ela. Macho e fêmea. Depois da queda. Era confuso. Ela era uma mulher. Realço esta ideia: M-U-L-H-E-R. Um extraterrestre. Um ser de outro planeta. Um planeta habitado por criaturas, infinitamente, mais avançadas. Queria agradar-lhe. Na verdade, tinha medo. Medo. Eu, uma formiga diante dela. Gostava de estar com ela, sentir o vendaval do seu quente respirar. Acho eu. E ela comigo. Acho eu. Ou não. Talvez por eu ser muito reservado (reservado, mas não como as mesas de restaurante… a mim ninguém me quer… reservar… dessa forma) ela se sentisse à vontade para desabafar. Ela precisava de alguém aqui como o Zé Carlos. Uma espécie de saco de pancada auditivo. Falava, falava, falava. Contou as suas aventuras desamorosas. Lamentou-se no meu muro. Por outro lado, talvez quisesse a honra de desabafar com o escritor mais interessante do mundo. Palavras dela, não minhas. Restava-me ouvir. Entre a espada da voz dela e a parede da sua encantadora presença feminina. Encantado, por uma mulher estar a falar comigo. Olhos nos olhos, sem reparar nas minhas faces rosadas. No passado teve um caso com um escritor famoso, mas o tipo era um artista português… um estafermo. Sinceramente, eu não sabia o que lhe havia de responder. Lá ia dizendo uns “pois”, “que vergonha, isso não se faz”. Eu, entre o enfado e o encanto, deixava-me ir… nessa vertigem auditiva. Ela respondia elogiando a minha sensibilidade e bom

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senso. Coitada. Era mentira. Era? Eu só queria chegar a casa e ficar sossegado, abstraído. A absorver esta nova era. Que estranhos, estes novos tempos! Negócios, Zé, negócios! Era disso que se tratava. Rigorosamente mais nada. Mas eu, eu… sabia lá o que pensar. Eu lá sabia pensar!

Seria uma questão de tempo até que ela se desinteressasse de mim. Da minha companhia. Eu tinha pena. E consciência disso. Eu sou meio bipolar. Por um lado queria amizade, atenção, por outro, não. Queria calor. Queria frio. Às vezes, queria os dois ao mesmo tempo. Nunca tive pássaros na mão para que os preferisse aos que voam. Eu não sou pessoa de reter em minha posse as coisas que querem bater asas e voar. Não me parece justo. E todos querem voar para longe de mim… Mais cedo ou mais tarde. Eu sufoco. Torno tudo amargo. Lá voltei às considerações sentimentais deslocadas… piedade!

O livro já estava na gráfica. Os materiais promocionais estavam quase prontos. Num dos jantares, disse-me, com grande entusiasmo, que os mupis estavam quase prontos. E eu: “hã?” Explicou: “Um mupi é um expositor geralmente protegido por um vidro, por vezes dotado de iluminação interior e com um motor que permite a rotação de anúncios, que é colocado em pontos bem visíveis, destinando- -se a publicidade, mapas e outras informações úteis.” Ok. Teríamos cartazes espalhados pela cidade. Giro. Senti-me a corar com a possibilidade de ver a minha fronha espalhada por aí. A apresentação seria na Fnac

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do Colombo e contaria com a presença de um escritor famoso… além de mim. Enquanto ela me revelava outras informações, supostamente importantes, pus- -me a pensar se o tal escritor seria o mesmo com quem ela andara enrolada. Talvez não.

O livro seria colocado à venda duas semanas antes da apresentação. E apresentado na página de Facebook da editora, duas semanas antes de ser colocado à venda. Eu que me preparasse. A coisa ia rebentar. Já estavam agendadas presenças em feiras de livros, programas de televisão, conferências, etc. Ai! Onde é que eu me fui meter? S.O.S., please! Teria de tirar uns dias de férias. Ai, o Sr. Tavares! A editora tinha trezentos mil seguidores no Facebook. Que multidão! Seria trucidado. Pobre de mim.

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No dia em que foi anunciado o livro na página da editora, tivemos um problema dos antigos lá na firma. A rede foi toda abaixo. Foi um stress inolvidável. Passei o dia numa correria. Não tive por onde me coçar. O Sr. Tavares gritava que se matava. À hora de almoço estava rouco de tanto forçar as cordas vocais com impropérios, disparados em todas as direcções. Vieram os homens das telecomunicações, os tipos dos servidores, até os bombeiros andavam pelas redondezas. A meio da tarde, o Sr. Tavares teve uma quebra de tensão e tivemos de chamar uma ambulância. Saí do escritório

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faltavam dois minutos para a meia-noite, como na canção dos Iron Maiden.

Cheguei a casa. Abri uma lata de Coca-Cola e sentei-me no sofá. Estava de rastos. Depois de acabar de a beber, atirei a lata para o chão e deitei-me. Nunca mais me lembrei do livro. Adormeci e tive um sonho que alguns apelidariam de pesadelo, mas não eu. Sonhei com o meu amor de sempre. Já não sonhava com ela há uns largos meses, para descanso do meu atormentado coração. Estava a dirigir-se a mim muito devagar, magnífica, deslumbrante, molhada. Chovia. Chegou-se perto o suficiente. Eu ia dizer qualquer coisa, que estragaria o momento, do género: “então, por aqui?”, mas ela não o permitiu e meteu-me o indicador nos lábios. Acto contínuo (número 2), meteu a mão na mala e tirou de lá um exemplar do meu livro. Sem desviar os seus olhos dos meus, deixou cair o livro numa enorme poça de água. Pisou-o, rodando o pé com firmeza. Ficou trucidado. Terminado o ritual, afastou- -se lentamente. Eu fiquei a olhar para o livro destruído. Levantei os olhos para ela, que se afastava caminhando por cima das águas. Mágica. Não senti mágoa ou irritação. Aquela mulher tinha liberdade para fazer o que bem lhe apetecesse. Podia até ter pisado as minhas flácidas carnes com os seus mocassins de salto alto. Estamos cá para isso.

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Dia de finados. Feriado. Acordei. Peguei no carro e fui ao Vasco da Gama, o centro comercial, comprar café. Passei pelo cemitério dos Olivais. Estava à pinha. O parque de estacionamento estava sobrelotado. Do outro lado da estrada, um velho, encostado ao muro, urinava tranquilamente. Estacionei no menos dois. Entrei na loja do café em cápsulas. Dei o meu cartão. O sistema estava com um problema informático e não estava a conseguir carregar a ficha de cliente.

– Pode indicar-me o seu número de telefone, por favor? – Pediu a funcionária.

Indiquei. Não deu.– Não deve ser esse que está em sistema. Por acaso

tem outro número?– Talvez o meu número antigo. Nove, três, um,

seis, hum…, não, não é isso. Espere. Deixe-me ver aqui no telemóvel.

Meti a mão ao bolso. Nenhum telemóvel. Olá! Querem lá ver… Pensando bem, já não punha a vista em cima do telemóvel há uns dias. O dia anterior fora o dia S, dia do Stress. Nem tempo tive de olhar para ele. Não me recordo de ter recebido qualquer chamada. O que é estranho tendo em conta a proximidade do lançamento do livro. Caramba! Deve estar perdido! Voltei para casa. Levantei as almofadas do sofá. Nada. Peguei no telefone fixo e marquei o número. Nenhum som nas minhas redondezas. Chamava. Atenderam. Uma voz feminina. Coisa (entre aspas) para vinte e

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poucos anos. – Estou? Quem fala?– É a Jéssica.– Creio que esse telemóvel é meu…– Qual? – perguntou ela.– Esse que você tem na mão.– Está em alta voz. Não tenho nenhum telemóvel

na mão.– Bom, não interessa… – Então você é que é o dono do aparelho? – Sim.– Pois, olhe, eu encontrei-o na rua. Achado não é

roubado. Se me provar que é seu devolvo-lho. Só me faltava mais esta. – Você tem recebido uma série de mensagens de

uma mulher que tem nome de princesa de filme infantil. Qual? – Inquiriu a voz, ainda sem rosto associado.

– Você está a brincar comigo, certo?– Escute: quer o telemóvel de volta ou não?– Pronto…ok... Fiona. – Parecia um interrogatório.– Meu Deus! É mesmo você! José Carlos Chagas? –

Mudou o tom. De expectante desconfiança para brutal entusiasmo, como dizem os jovens.

– Hum… sim… – Tipo: o que é que tem de especial? Mas ela estava em êxtase. Completamente

desvairada.– Já li o seu livro todo. É incrível. Você é brilhante.

Acho que estou apaixonada por si.Fiquei em silêncio. Tentei balbuciar algum tipo de

conjunção adversativa.

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– Mas, mas…– Essa tal Fiona acabou de mandar mensagem.

Tiveram mais de trezentas pré-reservas no site, só no primeiro dia. Uma infinidade de “likes” e partilhas no Facebook. Deixe-me dizer-lhe que não é para menos. Diz a publicidade que desde Os Maias que não se observava semelhante proeza na narração das relações entre seres humanos. Nada será igual daqui para frente. A sua genialidade é transcendente. É convergente. Inebriante. Arrebatadora. Mística. Estremeço só de o saber desse lado, em ligação directa comigo.

– Ok… mas eu só quero o meu telemóvel de volta, se não se importa.

– Venha ter comigo. Eu dou-lhe a morada. Estarei à sua espera. Ansiosamente…

Desliguei. Mas que grande maluca. Resisti ao pensamento: só a mim. O mundo está cheio de gente doida, portanto, só a muita gente é que acontecem coisas bizarras. Não só a mim. Eu não tenho nada de especial. Nunca tive. Nunca terei. Ainda que haja um manicómio inteiro a afirmar o contrário. A verdade não muda. A mediocridade também não. Lá fui eu, ao encontro da minha primeira fã. Não era longe. Contava estar em casa antes da hora de almoço. Mas como é que ela leu o livro? Ah, eu tinha para lá um documento com isso. O raio da miúda andou-me a vasculhar o telemóvel. Cedi (em voz alta):

– Só a mim! Bati. Abriu-se. Entrei. Não tenho vontade de

descrever a casa. Cheirava a incenso. A casa. Persianas

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descidas. Velas acesas. Tive medo. Receio, vá. Quase todos os cortinados eram vermelhos. Entrava uma luz um pouco incendiária. Sentei-me no sofá. Como eu gostava de sofás… Ela passou-me o telemóvel para a mão.

– Ora vê o teu Facebook – disse ela.– Tu andaste a ver o meu Facebook? – Ela era

nova. Decidi tratá-la por tu também.– Ya!É tudo nosso. A casa da mãe Joana. Entrei no

Facebook. Tinha duzentos e tal pedidos de amizade. Mensagens, mais de trinta. A página ia em mil e poucos “gostos”. Fiquei siderado. Aquilo não me parecia real.

– Fala-me de ti – pediu ela.– Eu sou um tipo normal. Não há nada para falar.– Tens namorada?– Não. Agora, se me dás licença…– Não vás. Fica aqui comigo. Eu adoro-te!– Tu não me conheces. Olha, eu agradeço-te por

me devolveres o telemóvel, mas agora tenho de ir…– Tens de ir ter com as tuas inúmeras fãs, é isso?

Deixar-lhes a cabeça em água com as tuas negas encantadoras.

– Fazemos assim – disse eu, depois de um suspiro – quando o livro sair eu mando-te um exemplar autografado, ok?

– Eu quero o criador, não a criatura. O autor da obra. Esse… deus… quase grego…

Encolhi-me. Disse-lhe adeus. A porta estava trancada. “Tens de puxar esse pinchavelho para cima”,

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disse ela. Puxei. Abriu-se. Fiz um sorriso comprometido e amarelo e saí. Desfiz o sorriso assim que a porta se fechou. Ouvi-a gritar do interior em direcção à porta mal isolada. Chegou o som pela fresta inferior: “Se eu quisesse mesmo, não me resistirias!” Corri para a rua. Precisava de ar.

Peguei no telefone e liguei à Fiona. Alguém normal, se faz favor!

– Mas onde é que tu andaste? – Perdi o telemóvel. Só o encontrei agora. – Oh, Zé, isto está a ser um sucesso incrível. – Calma! Ainda só passou um dia… e comparar

isto ao Eça é um bocadinho de mais, não? – Nada disso! – Pronto. O seu a seu dono. Continuo convicto de

que o livro não é lá grande espingarda. Convidou-me para jantar, mas eu rejeitei. Para

um dia, chegava e sobrava. Já em casa, sentei-me com calma à frente do

computador. Abri as mensagens e vi os pedidos de amizade. Aceitei-os todos. Entre eles, estava um que me deixou a transpirar. Da tal. Da dita. E uma mensagem: “Não te fazia escritor. Ansiosa por ler. Bjs”. Devem estar a brincar comigo! Ai agora? Por aparecer numa página de uma editora e estar prestes a ter meia dúzia de folhas à venda numa papelaria? Oh, por favor! Li mais duas ou três mensagens e vi os perfis todos dos meus mil e tal novos seguidores. No dia seguinte responderia a todos. Não sou de não responder. As boas maneiras são muito bonitas e nunca fizeram mal a ninguém. Amanhã

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é sempre longe de mais, como canta já não sei quem. A ela, à Tal (tratemo-la por “a Tal” daqui para a frente), responderia já. Assim foi: “Olá! Tudo bem contigo? Se quiseres posso enviar-te o original em PDF… Bjs”. Resposta quase imediata: “Fazias isso?” “Claro! Por ti, claro que sim…”, respondi no mesmo segundo. Mega Smile. Enviei. Ela respondeu novamente, desta vez com uma daquelas caras amarelas, grandes, com corações nos olhos. Subi ao céu! Ao sétimo céu.

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Uns quantos dias depois, no escritório, deu-se a explosão. Dei o salto para o patamar seguinte. Trepara já, sem o saber, uns quantos degraus na escada humana do sucesso.

– Com que então temos um aqui um artista? Sorri.– Aqui na firma ninguém fala noutra coisa. Até já

apareceu um reclame na televisão com a sua cara. No intervalo da novela da noite, veja bem. Depois quero um exemplar… com autógrafo, Zé. Combinado?

– Sim, dona Fernanda.Entrou o Sr. Tavares.– Bons dias! Veja lá se aproveita para fazer

publicidade à firma. O negócio não está famoso. Sempre era uma publicidadezita de borla.

– Bom dia, Sr. Tavares! – respondi.– Então sobre que versam os seus escritos? Poucas

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vergonhas, com certeza…– Ah, não, não. De todo. – Atão, mas dizem que é como aquela pouca

vergonha dos irmãos lá no calhamaço do outro…Tão espirituoso e analfabeto o comentário do Sr.

Tavares.– É exagero, Sr. Tavares, é exagero.– Pois que seja… vamos mas é ao trabalho.

Chega de conversas. Toca mas é a escrever no livro de contabilidade. O resto é muito bonito, sim senhor, mas não mete comida na mesa.

Pois não.Os dias que se seguiram foram idênticos. Foram

um desfilar de perguntas, interjeições e espantamentos. Nunca se vira um famoso na firma. Só quando o presidente da junta lá esteve, por altura da inauguração, mas semelhante acontecimento já tinha umas décadas.

Desde que o livro fora posto à venda que o meu passatempo do final de cada dia e dos intervalos da hora de almoço era ir para espaços comerciais ver quem é que pegava nele. A Bertrand tinha cartazes gigantes a forrar aqueles detectores que estão à entrada, e uma filada deles na secção de destaques. Na Fnac, a mesma coisa. Certa vez, uma funcionária veio em meu auxílio:

– Posso ajudar?– Estou só a ver, obrigado – respondi. – Se precisar de alguma coisa é só chamar. – Já agora… – lembrei-me de uma abordagem

interessante. – Ando à procura de alguma coisa para oferecer. O que me recomenda?

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– Este. – Apontou para o Semeador de Corações. – Porquê? – questionei.– Porque é genial. Já o li duas vezes. Perco-me

na sua narrativa. Sou transformada pelas suas densas ideias revolucionárias.

– Bom, sendo assim, acho que vou levar. Obrigado!– Desculpe… a sua cara não me é estranha… – Acredito. Eu tenho uma cara muito comum. Dei uma volta e devolvi o livro à prateleira.

Inchei. Esta multidão não podia estar toda equivocada. Eu era mesmo um génio. Um artista. Mas agora tinha de voltar para firma. Tanto talento desperdiçado… Um génio… eu…

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O espaço onde eu costumava passear os meus bocejos era agora meu. Meu! Eu era o rei daquilo tudo. Não um incógnito consumidor deprimido. Nada disso. Das 18 às 19 horas era seu dono e senhor. O centro do mundo. O centro da Fnac do Colombo. Finalmente, chegara o dia do lançamento oficial. Eu, no meio. Um escritor famoso à minha direita. Fiona à esquerda. Três copos de água à nossa frente. Do Luso. Fora a minha primeira exigência. Um dia, quando se fizessem reportagens sobre as exigências extravagantes dos artistas, de mim, J.C. Chagas, dir-se-ia apenas que pedia água do Luso… fresca. Sala apinhada. Lá estava o Sr. Tavares e meia dúzia de colegas da contabilidade

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e aprovisionamento. Um montão de cromos com ar de intelectuais. O equivalente aos caixa-de-óculos nos tempos da escola. E ela. A Tal. No canto esquerdo. Tremi. Já não a via há mais de vinte anos. Mas lembro--me que uma das razões pelas quais escrevi o Semeador de Corações foi ela. Queria brilhar directamente aos seus olhos. Consegui. Com atraso, mas consegui. Olhei para ela e sorri. Ela retribuiu orgulhosa, como que a dizer: “eu sabia que tu chegavas lá”. Mas era mentira. Não sabia nada. Oportunista! Ignorou-me toda a santa vida.

“Esta obra evidencia de forma milenarmente anti-rudimentar os mecanismos febris de exposição mediática entre os vértices existir e estar, no influxo incipiente das relações análogas e antropomórficas. A presunção de existência a um nível profundamente supra sensorial. O conúbio das almas…”

Deixei de ouvir. O escritor famoso começou a sua dissertação sobre o livro. Algumas pessoas concordavam extáticas. Não eu. Eu cá não percebia nada do que o homem estava para ali a dizer. Eu não escrevera sobre aquilo. Por momentos tive aquela sensação de estar a ver o filme errado. Haveria duas apresentações à mesma hora? Ou eu me enganara, ou o escritor famoso. Nem uma nem outra. Pelo que vim a perceber mais tarde, às vezes é preciso falar assim. De forma incompreensível. Tem muitas vantagens. Passar a ideia de que há uma profundidade qualquer só ao alcance de alguns. Talvez os próprios se enleiem na sua retórica e nem eles percebam o que estão a tentar

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dizer. A compreensão está muito sobrevalorizada de qualquer forma. Há ocasiões e círculos em que as pessoas se estimulam com o pedantismo, com o parecer, com a ilusão de que estão diante de entidades superiores que tentam compreender. Mesmo que não o consigam, abanam a cabeça como quem diz: “eu estou dentro, sou um dos vossos”. Não são coisa nenhuma. É cada uma para o seu lado. Ninguém está dentro. É tudo ilusão. É tudo uma fogueira de vaidades. Um circo. Eu, o palhaço pobre.

Chegou a minha vez. Agradeci as palavras simpáticas do famoso escritor. Fiz mais dois ou três agradecimentos e abriu-se espaço a perguntas do público. A primeira foi sobre em que medida o livro era autobiográfico. “Muito”, respondi. Só isso. Quase não me lembrava dele. Não o tinha voltado a ler. A segunda foi se eu considerava um fulano qualquer uma grande influência na minha obra. Escusado será dizer que eu nem sabia quem era esse fulano. Nunca gostei muito de ler. Conhecia meia dúzia de escritores. Acho que o último livro que li até ao fim foi ainda na escola, Viagens na minha terra, salvo erro. Lia muitos meios--livros. Até meio. Era um meio leitor. Um leitorzeco. Ler era um bocejo. Ler coisas de má qualidade, como a que eu estava a apresentar, era um bocejo masoquista. Mas, pelos vistos, havia muitos masoquistas. Se eu me dava ao trabalho de estar ali num fim de dia a ouvir aquela conversa fiada!? Era o davas. Conversa de chacha sobre paroxismos, influxos e conúbios. Só de dicionário aberto. Abri a boca. Tanto sono. Ainda

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teríamos a sessão de autógrafos. Se calhar, sempre era como se dizia: o futuro nunca é o que imaginámos. Pasme-se!

Autografei para cima de cem exemplares da obra. Recebi abraços e beijos repenicados. Olhares emocionados. Mais: lágrimas a sério. Elogios de toda a ordem: “Não imagina o quanto o seu livro me tocou”, “Eu tenho dormido com o livro na cama”, “É o melhor livro de sempre”, “O José é verdadeiramente genial”, “Adoro-te”, “Posso deixar o meu contacto?”, “Podemos ser amigos”, “Quer tomar café, um dia destes?” Um dos últimos era um senhor muito gordo que trazia debaixo do braço três volumes grandes, grossos e pesados do Código Civil. O meu livro era um décimo daquela coisa. A acompanhar o senhor muito gordo estava uma miúda de saia rodada, meias azuis e sapatilhas. Amantes? Sócios? Tinha um olhar desconfiado. Não gostava de artistas. Ele pediu-me para assinar, esticou-me a mão, agradeceu e desapareceu. Veio um funcionário da Fnac perguntar se eu queria beber alguma coisa. Respondi que não. Faltavam três pessoas. Rabisquei nas primeiras páginas em piloto automático. Era tão giro fazerem fila só para assistirem ao vivo e a cores ao meu aborrecimento crónico. Eu era como um noivo no dia do casamento, sorrindo para intermináveis fotografias. Mas no fim… chegou ela. A Tal.

– Podes assinar, por favor?– Claro – respondi, sem levantar os olhos da

primeira página em branco. – Como te chamas?

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Ergui os meus olhos ao alto quando ela disse o nome. Empalideci. Não fui capaz de verbalizar uma palavra. Fiquei mudo durante uns segundos, incrédulo, como Zacarias, diante da minha absurdamente gigantesca deusa.

– Aceitas um café depois de terminares a sessão?– Pode ser – gaguejei.– Sabes, o teu livro é a coisa mais genial que

eu li até hoje. Caiu-me o véu. Aquilo que eu sempre procurei, afinal esteve durante anos e anos diante dos meus olhos. Mas só agora me atingiu. Como uma bola de demolição. Fiquei siderada. Apaixonada. Deslumbrada. Hipnotizada. Tudo o que quiseres.

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Fomos até à área da restauração. Por fim, consegui abrir a boca. Ela foi buscar uma salada. Eu, uma água com gás. Por momentos fixei o olhar nos lábios dela. Perfeitos. Parecia uma criatura angelical. A comida reluzia dentro do seu quente forno. Não podia olhá- -la directamente nos olhos. O olhar dela fulminava-me. Sentia-me a diminuir. A encolher. E ela a agigantar-se. A mulher gigante. O planeta não lhe chegava. Eu não lhe chegava aos calcanhares. Eu estava do tamanho do seu mindinho. Dizem que as mulheres são de Vênus e os homens de Marte. Ali estava eu a tentar “amar- -te”, dentro dos limites da pureza impostos pelas leis da liberdade de sentimentos intergalácticos. Encontros

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imediatos perfeitos de sei-lá-que grau. E agora?– E agora?– Agora? – Agora o quê, minha deusa?– Achas que ainda cheguei a tempo? Tens alguém?– O tempo... Há segundos que fazem esquecer

décadas. Mas não se apaga a decepção num segundo. Foi preciso coragem para meter travão. Eu nunca

fora corajoso. Fomos interrompidos duas vezes. Uma, por um fulano que queria adaptar o livro ao cinema. Ficámos de falar. E outra, enfim… uma mulher que me entregou um papel cor-de-rosa com o número de telemóvel dela. Todo este big bang de atenção era encantador, eu quase não cabia no peito, mas ao mesmo tempo… não sei. Sentia-me agastado. Que xarope, esta melancolia! Ela deu-me um beijo bem perto dos lábios e foi-se embora. Ainda bem. Eu queria ir para casa. Queria deitar-me. Estas coisas simplesmente não acontecem. Imaginava-as melhores. Mais conto de fadas… Imaginava-me um príncipe, mas sentia-me um ogre, com vontade de me fechar numa caverna qualquer. De me esconder do sol, das pessoas, dos livros, dos palavras, de tudo. Com vontade de tomar banhos de lama.

O mundo adorava-me. Ontem era uma besta anónima, hoje uma besta idolatrada. Eu era a besta com dez chifres e sete cabeças. Enganei a muitos, que se vergaram aos meus caprichos não confessados. Que bestialidade! Só me faltava a conversa mole desta indivídua, mas claro que eu não a iria deixar escapar. A minha conversa também era mole. Far-me-ia

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ligeiramente difícil. A vedeta inalcançável, mas depois cair-lhe-ia nos braços. Aliás, nos braços dela já estava eu deitado. Mais do que isso: preso com a coleira com que ela me subjugara durante toda a minha ingénua existência. De quatro, com a língua de fora. A suplicar por um osso salivado. Odeio implorar, mas já estou por tudo. Pequenos latidos arquejantes e a espera anelante por um afago no lombo. Eu transporto-te às cavalitas, desde que prometas que enfias o barrete. Perdão, o capacete… comigo, os acidentes são inevitáveis.

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Despedi-me do emprego. O ritmo era insusten-tável. Os meses que se seguiram ao lançamento foram loucos. Claro que o Sr. Tavares não ficou satisfeito, mas o que é que se podia fazer? Agora, eu era famoso, ele não se aventuraria a colocar dificuldades à minha saída. Não se arriscaria a ver o seu nome no jornal: “Escritor famoso obrigado a faltar a compromissos literários, porque patrão o obrigou a dar dois meses à casa”.

Primeira edição esgotada. Feiras de livros. Programas de televisão.

Conferências. O diabo a sete. Entrevistas. Salas de maquilhagem. Fãs. Outros escritores. Outros famosos. Convites para eventos. Galas. Globos de Ouro (só para ver). Festas VIP. Uma entrevista no segundo canal. Fundo preto. Perguntas que ninguém percebe. Mas eu tinha-me preparado. Percebi como é que esta

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tropa funcionava. Fixei duas ou três referências com quem usualmente me comparavam. Comprei livros dessa gente e decorei meia dúzia de passagens que despejava aleatoriamente em entrevistas, às vezes, nas alturas mais inusitadas. Safei-me sempre. Fazia sempre sentido. E ao mesmo tempo nunca fazia. Era igual. O que interessava era a aparência das coisas. Ninguém ligava a nada. As pessoas não acreditam na verdade, ainda que lhes seja enfiada pelos ouvidos adentro. As pessoas não querem a verdade. A verdade é como a água que entra nos ouvidos. Não descansamos enquanto não sai. Fazemos de tudo. Fungamos. Abanamos a cabeça. Enfiamos os dedos lá dentro. Puxamos a ponta da orelha. Um desespero. Até que por fim sentimos a sensação da água quente a escorrer por ali fora, rumo ao pescoço. Que alívio! Assim é a verdade.

As Feiras do Livro, uma desgraça. Sentam os escritores em cadeiras pouco confortáveis, atrás de uma mesinha redonda com o livro em cima. Na torreira do calor chega a ser desumano, mesmo no Inverno. A grande maioria deles está às moscas. Ninguém quer falar com eles. Ninguém quer um autógrafo. Nada. Um suplício. Água? Da torneira! Eu fui um bocadinho mais afortunado. Entrei logo na mó de cima. Todos queriam um pedaço de mim. Bichas e bichas de gente. Muito autógrafo, muita conversa, muita conversa despropositada, muita treta. Feiras. Pilhas de livros não regateados. Era horrível. Era como ter os criadores das falsificações das calças Levis em exposição na feira do relógio… Ultrajante.

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Os dias foram passando assim, na torrencialidade, um bocadinho bocejante, do sucesso. Cheguei ao limite dos amigos no Facebook. A página continuava ao rubro. Pediam-me autógrafos na rua. Mandavam presentes para a editora. Recebia cerca de cem mensagens por dia, mas praticamente já não respondia. Arranjei três ou quatro amigos. Saí duas ou três vezes com fãs. Dates. Nada de especial. Fui-lhe ganhando o jeito. Elas desistiam depressa. Eu também. Talvez pensassem que eu era mais interessante e culto do que realmente era. Foi o que alguém lhes vendeu. Vieram ao engano. Mas eu citei os mesmos nomes de escritores famosos. Acho que com miúdas, ao vivo, isso não resultava da mesma forma. Ou talvez fosse porque eu só pensava na Tal e, provavelmente, isso transparecia. Com ela estive várias vezes. Troquei inúmeras mensagens. Mostrava- -se sempre muito interessada na minha técnica literária, que era inexistente, mas isso ela não precisava de saber. Perguntava-me pelas minhas influências. Influências? Nada. Tudo. Não tinha grandes ideias sobre a vida, a não ser que era um bocejo e isto da fama era muito giro, mas não resolvia nada. O que poderia resolver? Bajular nunca fora solução definitiva. O homem não foi feito para ser adorado. A sua constituição mental não o permite. É um gatilho para a autodestruição. Morte lenta. Gosto. Adoro. Venero. Reverencio. Amo. Cultuo. Idolatro. Estremeço. Cansei-me de adjectivos. Que bocejo. Bocejo, bocejo, bocejo. A minha palavra preferida de sempre e sempre e sempre. Desejei que alguém, em algum momento, me dissesse: “tu não vales

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nada”, “o teu livro é lixo!” Mas não. Nunca aconteceu. Eu tinha entrado neste purgatório da vaidade. Estava a cair num poço sem fim. O poço dos adjectivos elogiosos que eu já não suportava. Acho que se ouvisse mais um elogio, vomitava. Aliás, quando pensava em elogios, começava com sintomas de ataque de pânico. Alguém me atirasse tomates, um ovo podre, alguém, bolas! De repente, até a Tal deixou de me parecer a Tal, de tão alcançável que passou a estar, e senti-me sem chão. Fiquei como um espectador que descobre o truque num espectáculo de magia. De ilusão a desilusão.

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Sentia-me enganado, de alguma forma. Sentia-me um caminho marítimo ou um continente que algum navegador tinha descoberto. A terra prometida. Fiona, devias ser condecorada pelo Presidente. Sei lá. Eu não me sentia a terra prometida. Sentia-me a terra de todos os pesadelos e desilusões. Tudo o que me diziam era apenas uma gigantesca mentira em que todos pareciam acreditar. Eu não tinha nada para oferecer. Era uma ilha rodeada de detritos tóxicos, mas ainda assim as pessoas procuravam em mim algum tipo de conforto, de empatia, algum alívio para o seu isolamento, como se eu fosse um deus ou um terapeuta da escrita…

Passei os primeiros dez minutos do jantar a ouvir elogios. Argh! Jantava com a Tal, pelo menos, uma vez por semana. “Tu és incrível!” “Como é que eu não vi

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isso antes?” “Tocas o meu ser como mais ninguém.” Fiada, a conversa. Comigo resultaria… sempre fui crédulo a conceder crédito.

– Tu és o Tozé?– Qual Tozé? – É que não estava mesmo a ver.– Zé, o Tozé, a personagem do teu romance…– Ah…– É autobiográfico? – Em certa medida tudo é autobiográfico…– Podias ser o Tozé e eu a Lili…Sorri. Eu passava a vida a sorrir… e a acenar. Ela

continuou:– Receio que agora tenhas tanta gente à tua

volta, melhor, atrás de ti, que eu tenha perdido todo o significado que outrora sei que tive.

Acabou de dizer isso e aproximou-se de nós uma moça, dos seus dezoito anos, a pedir um autógrafo. Pois…

– Lá está… – suspirou. – A história é tão arrebatadora, para lá de Romeu e Julieta… Nos meus melhores sonhos anseio por algo minimamente equivalente…

– É um conto de fadas, apenas. Mas a vida são fados…

– Quem não gostaria de ser princesa? – Sabes, acho que as pessoas querem o Tozé, não

a mim… Eu sou o tipo que meteu a história dele em papel, ainda que sem grande brilhantismo. “Ainda”, não. Sem grande brilhantismo! Porque é que as pessoas não vão ter com ele? O mensageiro não é nada. Há

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milhares de pessoas que poderão corresponder àquela descrição. Não eu.

– Ele não existe. Ele és tu!– Não, não, não. Não assim. Não por estes motivos.

É um engano. – Se calhar vale a pena correr o risco.– Correr o risco? Para perceber se eu estou à

altura da personagem que criei? Se seria um Tozé minimamente aceitável? Colocar a fasquia numa personagem de ficção? Não, não obrigado!

– O criador não é pior do que a criação. É um risco calculado.

– Percebo o que queres dizer.– Mas?– Isto é um truque de magia. Eu não sou um

escritor. Sou um ilusionista. Mas tornei-me ilusionista por mero acaso. Porque na cabeça de alguém surgiu uma ilusão, uma fantasia. Eu sou um bocejo. Jamais estaria à altura, tão pouco, das tuas piores fantasias. Ou de outra pessoa… Como é que se compete com uma fantasia?

Ela olhava para mim absorta. Mas eu estava a ser sincero. Há muitos meses que não era tão sincero. Era tudo uma treta colossal. Não tinha outra palavra que não treta. É própria de linguagem informal, bem sei, mas era a única que fazia sentido. Não sei por quem se deixara ela enfeitiçar. Tozé ou Zé. Super-Homem ou Clark Kent. Mas em versão folhetim miserabilista. Eu podia tê-la nos meus braços daí a cinco minutos. Mas também isso era ilusão. Se eu continuasse a ser o mero

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informático triste, enfiado numa sala bafienta, oito horas por dia, não me seria dada qualquer hipótese, não teria uma migalha de oportunidade. Continuaria no fim da cadeia alimentar. Até na morte. Não sei se sentia isso como injustiça. Nunca me parecera injusto. Mas agora que me tinha sido dada um migalha, parecia. Parecia patético. Tudo é vaidade.

– Não achas que merecemos a oportunidade de ver realizada em nós a história do Tozé e da Lili?

– Tu sabes que foi o que eu sempre desejei… – Então?– Não assim. Eu continuo a ser o mesmo totó

que tu sempre rejeitaste. Não me tornei genial. Não sou nada do que dizem. Não me tornei digno de tanta admiração. Sou o mesmo. Não mudei um milímetro. Um! Percebes? Se há justiça neste mundo tu só podes fazer uma coisa: continuar a rejeitar-me!

Respirei fundo. Custou-me, aquele discurso. Senti que ela ficou tocada. Ali estava eu a desejá-la e ao mesmo tempo a tentar provar-lhe sem margem de dúvida as razões pelas quais eu não aceitaria outra coisa que não a rejeição. Bizarro. Que totó! Nada tinha mudado. Eu sempre fora um idiota. E se nada tinha mudado para o meu lado, por que razão teria mudado para o lado dela? Pois. Para mim, ela viera atrás do variável e do aparente.

– Podemos continuar a ser amigos? – perguntou.– Continuar? – Pois… Tenho esperança que um dia me perdoes.Não consegui responder. Ela tinha razão. Eu estava

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profundamente magoado, mas não a considerava culpada. Ela não fizera de propósito. Foi uma entrada casual. Não a pés juntos. Danos colaterais com anos e anos. Coitada. Que culpa tinha a Tal? Nenhuma… só o pecado original.

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Fui a uma das minhas desgastadas estantes de madeira, mogno, salvo erro, e peguei num pequeno poeirento caderno de linhas. Já que tenho a fama, que tal o proveito? O que faz um escritor? Escreve, dizem. Eu lá sabia escrever! Mais dia, menos dia, alguém me questionaria sobre o meu incrível novo livro, que eu não tinha qualquer intenção de escrever, e depois teríamos um berbicacho em mãos. Abanei a caneta. Bafejei-lhe ar quente. Comecei. Parei. Não comecei nada, como está bem de ver. Raios da Fiona. A culpa era dela. Todinha. Concentrei-me.

FIONA

Eu estava perdido no supermercadoAntediluviano diante de tanto produto embaladoEla chegouabeirou-sedeu-se a conhecerFiona, seu nome de baptismoretirou a lata de cogumelos laminados do

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obscurantismoDespedimo-nos com o ósculo mais santo de que há memóriaAdicionámo-nos nas redes sociaisDa alvorada ao crepúsculoqual oráculoela deixava-se desvendarmas depois do ocaso… oh, depois do ocaso raiar…morria de novonum castelo numa torre escurade uma verdura sem canduramágicatrágicaNyx encantadapor mim exaltada

Levou-me umas duas horas a escrever esta espécie de poema estranho. Só rimava ocasionalmente. Gostei. Senti-me bem a juntar palavras. Enalteci a Fiona. Por um lado ela merecia, por outro… era um monstro verde que me desgraçara a vida, levando-me a simplicidade verdadeira da minha condição de ser mediano não ambicioso. Isso, eu tinha dificuldade em engolir. Mágica e trágica. Senti um pequeno ímpeto de continuar a escrever, mas resisti. Arranquei a folha do caderno e afixei-a na porta do frigorífico com um íman que tinha para lá semiperdido, uma coisa manhosa que uma ex-colega da minha ex-firma me tinha oferecido, depois de ter chegado de umas férias na República Dominicana. Era feio, mas servia.

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Fui ver os e-mails. Mais de quinhentos por ler. Abri dois ou três. Fiz pim-pam-pum. A sério. Um deles era uma opinião elogiosa acerca do livro. Pareceu-me elogiosa, mas não garanto que no meio daquela verborreia não estivesse escondida alguma ofensa. “Expoentes do realismo psicológico, abraça um cepticismo tão profundo que chega a assumir proporções religiosas”. Digam-me vocês: é um elogio? Franzi-me. Tinha um da Fiona. Queria almoçar. Tinha coisas para me entregar. Eu não queria mais coisas. Estava farto de coisas. De e-mails, de mensagens, de massagens, de massagens ao ego, entenda-se.

Levantei-me tarde. Vida de lorde. Quem diria? Sentei-me a tomar o pequeno-almoço. Não tinha nada minimamente saudável. Aqueci um pedaço de papo seco no micro-ondas. Untei-o com margarina. Acompanhei com um resto de Coca-Cola já sem gás. Soube-me a pouco e soube-me a pouco consolo. Afinal, a comida não se destina exclusivamente a matar a fome. Mata várias fomes. Aparei a barba, lavei os dentes com uma escova nova, fiquei a sangrar, tomei banho, esfreguei os sovacos com desodorizante, cortei as unhas… caramba! Dei-me conta de que estava a ter mais trabalho do que o normal. Senti-me excessivamente preocupado em causar um impacto anormalmente positivo em alguém. Oh, meu monstro verde!

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Começou por pedir desculpa pelo atraso. Desculpada por todas as razões e mais uma: trazia uma caixa descomunal cheia de tralha que foi chegando à editora ao longo dos últimos meses e que me era dirigida. Livros, manuscritos, poemas, cartas, cartas perfumadas, prendas, declarações de amor, um convite de casamento, um convite para ser padrinho de casamento. Este último trazia uma pequena nota a explicar que se tinham conhecido na apresentação do meu livro e, nesse sentido, tinha toda a lógica que eu, a causa da sua bela união, fosse o padrinho. Ainda havia um relógio daqueles marados para medir as calorias e um frasquinho cheio de lágrimas. Uau, as lágrimas que alguém chorou, tocado/tocada (não me lembro) pelas minhas palavras. Lágrimas libertadoras ou lá o que era…

Quando acabei de vasculhar a tralha, e depois de fazermos uns quantos comentários jocosos, ela perguntou:

– Que tal, ser idolatrado?– Idolatrado? Que exagero…– Pronto… ser famoso…– Diferente do que eu esperava…– Pior?– Muito. – Pois, é uma vida tramada.– Olha, tenho uma coisa para ti. – Tirei do bolso

do casaco o texto que lhe tinha escrito na noite anterior

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e dei-lho, meio envergonhado. Tímido. Leu e comoveu-se:– Oh! Para mim? Adoro! Mas… – Fez uma pausa.

– Eu adoro-te. Mesmo. És a minha pessoa preferida deste mundo inteiro, o meu escritor preferido…

Baixei a cabeça e sussurrei:– Eu não sou nenhum escritor…– Achas que não, mas és. – Sou uma experiência televisiva universal. Sou

a personagem principal deste programa humorístico, produto do sentido de humor divino que olhou para mim e me considerou a cobaia ideal. Acho que aprendi a lição, ainda que não saiba ao certo qual é. Desculpa, estou a divagar…

– Eu percebo. É muita coisa para processar em pouco tempo.

– Muita coisa? É uma torrencialidade bárbara de coisas que me aterrou em cima. Está a esmagar-me, percebes? É que nem se trata de processar… trata-se tão somente de sobreviver, bolas! Acho que estou a flipar.

– Isso tudo é pelo peso dos acontecimentos em si serem indescritivelmente bons e tu não te reconheceres mérito no facto de te serem imputados, ou, no fundo, dispensavas este folclore todo?

– Eu sei lá. Talvez as duas, mas não sei. A minha cabeça sempre foi uma enorme e disforme massa cinzenta onde o preto e o branco não têm lugar. Provavelmente somos todos assim. Não sei. Acho que “não sei”, neste momento, é o meu nome do meio. Já

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não sei nada. E não me ocorre verbalizar uma frase em que a expressão “não sei” não esteja presente. Desculpa o desabafo, mas eu era um pobre pajem sem eira nem beira, como canta o Cid, enfiado no meu cubículo, sem qualquer interesse para ninguém, excepto para o Sr. Tavares, e, de repente, este mundo bipolar pendeu para o meu pólo. Eu tornei-me um sol que alumia milhares de girassóis. Uma parte do mundo ficou esquizofrénica, como se tivesse sido encantada, hipnotizada, ou pior, demoniacamente possuída. Até a mulher que eu sempre… enfim… amei, desculpa a lamechice, entrou nessa fantochada global. Percebes? A Tal, adora-me. Palavras dela... E porquê? Por nada. Por um surto de gripe suína altamente contagiosa. Por outro lado, talvez as pessoas devam ser amadas precisamente por esse motivo: nenhum. Nada…

– Continua… – disse ela. Notava-se-lhe um certo embevecimento. – Ficava o dia todo a ouvir-te…

– Ah! Pára com isso!– Então e tu, nada?– Nada o quê?– Com ela.– Não, nada. Nada era tudo o que existia. Não

assim. Ela gosta do sucesso, não de mim. Eu dispenso isso. Na verdade não sei se dispenso. Não me consigo perceber. Não consigo perceber ninguém. Acho que não fui talhado para ser protagonista neste teatro. Os actores assustam-me. Parecem-me todos vilões.

– Zé, tu és fantástico, mas tens uma visão muito superficial das pessoas.

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– As pessoas não são isto? Chatas, pegajosas, bajuladoras, interesseiras, falsas?

– Não só. – Há mais? – Muito mais. Há uma densidade que desconheces.

Talvez essa densidade te afastasse delas ainda mais. Talvez esse conhecimento te repugnasse. Ou não. Talvez despertasse a tua compaixão. É imprevisível.

– Sinceramente não sei se há. Não sei se essa densidade de que falas não é só uma invenção nossa para desculpar as pessoas da sua estupidez animalesca. Mas tens razão, talvez eu seja muito ingénuo. Talvez tenha ficado tempo a mais fechado numa cave.

Fui para casa a pé, cruzei-me com um ror de gente. Atravessaram-se-me frases soltas nos caminhos que levam aos tímpanos. Não são simples caminhos: são labirintos. Particularidades que estou cansado de descrever. Não há densidade nenhuma. Estou farto de gente. Não tenho forma mais clara de o verbalizar. Não me apetece procurar sinónimos. Farto, fartinho. Já não aguento mais a raça humana. Pergunto- -me como é que Deus aguenta ser adorado por esta gente que adora de forma tão falha. Sofreu (e sofre) desprezo e humilhação, mas também é idolatrado por este povaréu iníquo, perverso e peçonhento, incapaz de um louvor imaculado. Só um amor perfeito para aceitar semelhante imperfeição. Eu, o ser humano, não fui criado para ser adorado. Engulho-me todo com os laudos asquerosos de que sou vítima. Eu não quero ser Deus. Não aguento mais!

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Cheguei a casa e deitei-me. Basta a cada dia o seu mal.

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Basta a cada dia o seu mal. Ou o seu mal disfarçado de bem. O que se pode querer mais depois de ter tudo? Em todas as coisas eu vejo o lado mau. Talvez não veja as coisas como elas são. Talvez eu seja um traidor da realidade. Vejo à minha maneira. Problema das coisas, do meu coração ou dos meus olhos? Se os meus olhos forem maus, todo o meu corpo será tenebroso. Todo o meu corpo será entedioso. Não existe, mas eu sou um escritor, posso inventar palavras.

Eu sou um bezerro de ouro. Ídolo com pés de barro. Ainda que as circunstâncias que me cercavam fossem, aparentemente, desejáveis, para mim não eram mais do que caóticas, desordenadas e ameaçadoras. Tudo em que eu tocava virava ira. As circunstâncias estavam fora de controlo. Eram um gangue que me perseguia ininterruptamente. Com tacos de basebol e demais armas brancas. Assustador. Tudo estava incompleto. Por acabar. Deixado ao deus-dará. Coisas, pessoas, sucesso, amor, paixão, sei lá, tudo. Beco sem saída. Esta história podia parar aqui. Diálogos interrompidos a meio. Histórias de amor que não passam do preâmbulo. Nem Fionas, nem Tais, nem a Tal, nem fãs, nem livros, nem nada. Uma vida interrompida faria sentido no contexto global das vidas fora dos livros e dos filmes.

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São todas, sem excepção, interrompidas. Acabam a qualquer momento. Fica tudo a meio. Mas ninguém quer ler histórias com finais abruptos. Histórias em que os finais ocorrem no meio. Mas era mesmo isso que devia acontecer. Este deveria ser o último ponto final.

Mas não. Não sou capaz. Sinto-me assim, mas vou continuar. Pelo menos enquanto houver estrada para andar. Sem lugar onde reclinar a cabeça. Onde descansar os ossos. Sem desejo de prosseguir em nenhum dos caminhos que me foram dados conhecer. Fim de linha. Vontade de fazer um reset. Uma limpeza daquelas que as mães fazem às casas nas férias de verão. Caminhar para onde? Acabar onde? Quando? Como um conto de fadas? O herói é bom, equilibrado e sereno? Um conto de fadas que nunca será esquecido. Será lembrado daqui a muitos anos num qualquer canal Memória. E eu? Eu, um dos cem melhores portugueses do século não-sei-quantos. É isso saudável? Desejável? Responde aos anseios da minha alma?

Quero dormir e acordar deste pesadelo. Começar do zero. Ou do um. Voltar à empresa do Sr. Tavares. Ser o Zé. A porcaria do computador não liga! Sei lá. Não sei. Qualquer coisa mais ou menos igual ou diferente. Satisfatória. Basta a cada dia o seu mal.

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Na mesa à direita da minha, uma jovem levantou o olhar e disse: “bom dia, doutora!” Um “bom dia” muito subserviente. A jovem, talvez enfermeira, encolheu a olhos vistos por entre o sorriso bajulador. Pouco depois apareceu um tipo de pólo verde. Trazia um tabuleiro com um pão-de-deus misto e um queque de chocolate. Levantei-me e saí para me dirigir ao lugar onde tinha de me dirigir, que, na verdade, era a lado nenhum. Andava sem direcção. Na saída principal do shopping dois jovens seguravam um velhinho que tinha tropeçado e caído. Aguardavam pelo INEM, que chegou pouco depois. “Como se chama?”, perguntou a menina. O velhinho respondeu. Ela continuou: “Então, Sr. Orlando, o que aconteceu?” Frases incompreensíveis. “E só lhe dói a perna ou também a cabeça?” Não, não lhe doía a cabeça. Ainda bem. Será que vou acabar assim? Sentado nas escadas, a aguardar uma ambulância na companhia de dois estranhos? Talvez acabe de forma ainda pior. Como o tipo novo que passou a seguir, completamente bêbado, agarrado à infeliz da namorada. Ou como o tipo gordo, que passou a seguir ao bêbado, com cartões debaixo do braço. Andava para cá e para lá.

Fui tomar café. Atendeu-me uma moça simpática que escondia a cara estragada debaixo de uma película de base e demais cremes. Há demasiados para que eu possa descrevê-los com exactidão. No fundo, o que ela trazia colado à pele era uma máscara, pouco milagrosa.

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Café com aroma de alperce. Não era mau. De seguida, cruzei-me com um indivíduo que

me interpelou, disparando sem meias medidas: “Você é aquele escritor?” “Mais ou menos”, respondi-lhe. “Não sou o Eça”, disse-lhe num acesso de ironia. Ele explicou-me que era fotógrafo amador e perguntou-me se podia tirar-me uma fotografia. Depois mandava-ma por e-mail. Fotografava coisas diferentes, segundo ele. Estranho! Eu era igual. Igual a todos. Sem tirar nem pôr. Nunca entraria numa publicidade da Benetton. Todos iguais, todos iguais. Mas ele lá viu alguma faísca luminosa no meu olhar. Levou-me para uma rua atrás do shopping, uma zona de descarga dos camiões que abastecem as várias lojas do centro comercial. Bom cenário, de facto. O tipo tinha olho. Tirou-me uma única foto, comigo a fazer figura de urso entre paletes de madeira. Pediu-me o e-mail, piscou o olho e foi-se embora. Nem um passou-bem, nada. Ele há cada um...

É esta a famosa densidade? O que esconde esta gente dentro de si? O que terei visto até ao momento? Pontas de icebergs? Flashes de fotógrafos, uma pequena luz brilhante. O que a terá originado? Um sistema complexo de lentes e roldanas e chips… uma caixa negra indecifrável para um simplório como eu. Iria eu, um pacóvio, analisar a caixa negra dos aviões acidentados que são os seres humanos? Eu não chego a tanto. E mais: o resto do iceberg é só mais iceberg. É mais do mesmo. O lado invisível é apenas mais do mesmo. Talvez em estado menos lapidado, mas é só gelo. Mais gelo.

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Começou a chover. Encostei-me à parede. O fotógrafo já tinha ido à sua vida e eu também precisava de ir à minha. Naquele dia ainda tinha muitos nadas para fazer. Ler e-mails, responder a algumas entrevistas, por escrito. Sei lá! Escrever outro poema à Fiona. Poema entre aspas. Aquilo lá era poesia?! Nem rimava. Ir ao banco. À segurança social. À sociedade portuguesa de autores. O diabo a sete.

Porque é que eu não podia ser um tipo normal? Aproveitar a fama e as vantagens da fama? Tinham- -me enfiado numa auto-estrada e eu circulava a 80km/hora. Que parvo! Podia andar no limite. Fazer o que eu quisesse. Ter as mulheres que me apetecesse (bem, mais coisa, menos coisa). Elas pelam-se por qualquer borra--botas famoso. Podia até ter a Tal. Mas não. Nem me passava pela ideia meter-me em semelhantes alhadas. Culpa dos AC/DC, talvez, que sabem bem que as auto--estradas conduzem ao inferno. Estava a ter o pior dos dois mundos. Ou andava para a frente a toda a mecha ou saía na saída seguinte, pagava a portagem e metia--me numa estrada estreita, por caminhos de cabras, sem áreas de serviço, sem casas-de-banho, só montes e mato, e folhas a servir de papel higiénico.

Mas estes tempos estranhos ainda se tornariam mais estranhos. E, nesta auto-estrada, estava prestes a levar uma flashada de um radar… por excesso de velocidade. Imagine-se! Uma zona em obras… velocidade limite: 50km/hora. E eu a 80. Parvo! Parvo! Parvo!

A chuva deu lugar a mais chuva, que deu lugar a

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chuva mais intensa, que por sua vez deu lugar a uma carga de água. Subi três escadas que davam para uma porta de ferro e fiquei ali abrigado numa reentrância da área de serviço da zona de restauração do centro comercial. Podia ter dado uma corrida até ao interior do mesmo, mas por alguma razão senti-me bem ali, a ver a chuva cair em cima de paletes de madeira e restos de couve que teriam caído ao chão ao serem descarregadas.

Ouvi um estrondo medonho, vi uma luz branca e apaguei.

Quando voltei a mim, estava todo encharcado, as mangas do casaco a deitar fumo e os ouvidos a latejar. Estava um sujeito com um colete azul a dar--me pontapés com alguma descontração enquanto berrava: “Xô, fora daqui, vagabundo!” A dor de cabeça matava-me, tinha as pontas dos dedos dormentes e o coração acelerado. Ele não se compadeceu: “Vá, toca a andar, antes que eu chame a polícia”. Levantei-me com dificuldade. As pernas bamboleavam. Fui aos tombos até ao interior do shopping. Chiavam-me os tímpanos. Como se tivesse pássaros histéricos dentro da cabeça. O segurança aproximou-se e mandou-me sair. Aquilo não era sítio para pedintes. Obedeci. O tipo era corpulento. Consegui chamar um táxi, tombando aos trambolhões para cima do capô. Expliquei ao taxista que não me sentia bem e pedi-lhe para me levar a casa. Sentei-me atrás. Fui descaindo como a torre de Pisa até aterrar no banco traseiro, desmaiado. Ou adormecido. Não sei.

Acordei umas horas depois. O taxímetro marcava

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58.45€. Cinquenta! Bolas! – Você não leve a mal, mas eu deixei-o dormir.

Quis-me cá parecer que você estava mesmo a precisar de repor baterias.

– Mas… mas… 58 euros?! – uivei. – Olhe, faça de contas que foi uma noite bem

passada num hotel. Estas coisas às vezes não escolhem o local nem a altura. Fazemos assim, fica cinquenta euros e não se fala mais nisso. Sabe, a minha mulher gosta muito dos seus livros... pelo menos enquanto o lê não me atormenta os miolos. – Riu-se. – Veja mas é se escreve mais.

– É só um. – Só um quê? – Um livro. – Ah sim? Olhe que então ela já o leu umas

poucas de vezes. – Está bem… – suspirei. Não tinha comigo semelhante quantia. Dirigi-

-me ao multibanco. Errei o código duas vezes. Levantei a nota à terceira e entreguei-lha. Não quis recibo.

Entrei em casa e deitei-me. Cheirava-me a pneu queimado. Não me lembrava de grande coisa e a sala parecia-me torta. Doía-me tudo.

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Quando acordei ainda me doía tudo. Senti-me um sobrevivente de um atropelamento e fuga. Foi

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quando me bateu. Caramba! Eu tinha sido atingido por um relâmpago. Raios me partam! Literalmente. O estrondo, a luz. Eu, um sobrevivente! Eu, o famoso J.C. Chato, perdão, Chagas, vi a luz. Admirável mundo novo. O mundo conspirava para aniquilar os meus bocejos. Conspirava para tornar a minha existência num carrossel vertiginoso de tomadas e largadas.

Passei o dia a navegar na internet, de informação em informação. Descobri tudo o que havia para descobrir sobre pessoas atingidas por raios. Raios! Este não me partira. Talvez o mais sensato tivesse sido deslocar-me ao hospital para ser observado, mas, sinceramente, não me apeteceu. O tempo estava terrível e eu melhorava rapidamente. A toda a mecha. No final da tarde sentia-me fantástico. Como que revigorado física e mentalmente.

Depois de recolher todas as informações necessárias sobre electricidade que cai do céu, voltei à minha incrível vida de escritor famoso. Eu, J.C. Chagas, o mestre dos relâmpagos. Abri o e-mail. O que quereriam agora os comuns mortais? Trazei-me os vossos louvores, pequenas criaturas. Entre centenas, lá estava a fotografia que o tal fotógrafo me tinha tirado nas traseiras sujas do centro comercial. Era uma bela foto, sim senhor. Não há como fugir de semelhante constatação. Talvez não ganhasse nenhum prémio, mas caramba, aquele olhar… é que nem parecia eu. Olhar penetrante, até a mim me deixava nervoso. Não me lembro de ter olhado assim para a lente da maquineta dele. Na verdade, era um maquinão. Era

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muita intensidade. Especialmente para um tipo tão pouco intenso como eu. Tanto melhor. Há gente que faz milagres. Há gente que vê o que mais ninguém vê. Ainda bem para o mundo.

Gravei a foto para uma pasta qualquer e defini-a como foto de perfil da minha página no Facebook. Contemplai, míseros plebeus, o grande!

Abrandou a chuva e caiu a noite. Fui passear o meu revigorado esqueleto para o meio da rua.

Estava fresco. Entrei no shopping. Raios! Passava a vida no shopping. Triste. Como eu.

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O que se passou a seguir está para lá do razoável. Fora do domínio da compreensão humana. Nem sei como escrever sobre o assunto sem que me apelidem de maluco. Eu não sou maluco. Mas durante um mês inteiro julguei que para lá caminhava. Um mês foi o tempo de que necessitei para perceber exactamente o que estava a acontecer comigo. Depois de ter tomado calmantes, depois de recorrer a médicos, fazer uma bateria de exames, TACs e ressonâncias. “Você está perfeitamente saudável”, diziam-me. “Vou encaminhá--lo para um psiquiatra muito competente”. “Mas doutor…”, respondia eu. “Não é possível”. E não era. Mas como o sobrenatural está fora do âmbito médico, como tudo tem de ter uma explicação científica, que remédio… teria de ser visto por um psiquiatra. Eu

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não estava doido, caramba! Ou estava? Talvez eu precisasse de um exorcismo. Do poder expurgador de uma entidade conectada com o divino. Não conseguia pensar, dormir, comer, nada. Decidi, por fim, consultar um psiquiatra. Foi remédio santo. Fiquei curado.

– Doutor, eu não quero ser internado. Eu não estou maluco.

– Tenha calma. O que sente?– Eu consigo ouvir o pensamento das pessoas.– Perdão?– Sim. Consigo ouvir as pessoas a pensarem.– Uma espécie de intuição, é isso?– Não, não. Ouço mesmo as vozes. Como se

verbalizassem os seus pensamentos directamente aos meus tímpanos. Uma espécie de telepatia, não sei…

– Hum…– Pois…– Desde quando começou com esses sintomas?– Sintomas?– Reformulo. Desde quando começou a ouvir

vozes…– Desde que fui atingido por um raio?– Perdão?– Sim. Nas traseiras de um centro comercial.– Foi atingido por um raio?– Isso. – Mas já foi ao hospital? Já fez exames?– Sim, sim. Tudo e mais alguma coisa.O médico ficou em silêncio por uns segundos.

Parecia não saber para onde encaminhar a conversa.

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Facilitei-lhe a vida.– Doutor, eu não estou doido.– Nem eu o afirmei.– Mas acabou de o pensar… que eu bem ouvi.Empalideceu. Ele sabia que era verdade. Pensara-o

nitidamente. Acrescentei:– Não se preocupe. A consulta já não dura muito…

já vai poder ir ter com a sua secretária… – afirmei aquilo com alguma irritação. O raio do médico só se queria ver livre de mim… e só pensava na secretária… rico serviço.

– Olhe – ameaçou –, não sei onde é que foi buscar essas informações nem o que é que pretende de mim, mas eu não aceito chantagens. Faça o favor de se retirar antes que eu chame a segurança.

Saí sem olhar para trás. Não paguei. Era só o que faltava. Passei pela dita secretária e ela não se ficou:

– Olhe desculpe, o senhor!– Sim?– Creio que ainda não fez o pagamento.– Nem vou fazer. Passe bem.Ficou imóvel. Sem reacção. Olhou para o chão e

ouvi-a pensar: “Esta carpete para limpar… raios! Ah, se eu pudesse aspirar todos os que já me magoaram… vê-los a serem sugados pelo tubo da máquina infernal. A embaralharem-se--me inertes e despersonalizados no depósito de pó”.

Foi a minha vez de ficar sem reacção. A moça não pensou que eu era doido por sair sem pagar, antes, formulou um lamento abstracto que me surpreendeu. Porque é que alguém iria desejar que as pessoas que

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magoam outras fossem sugadas pelo tubo de um aspirador? Eu era um desses? Estaria a referir-se ao médico que acabara de me expulsar do consultório? Aproximei-me do balcão. Tirei as notas do bolso e paguei. Estava certo.

– Adeus, menina. – Despedi-me, baixei o olhar e saí.

Ela ficou a olhar para mim. Não lhe ouvi mais nada. Talvez tenha ficado vazia. Pensamentos sugados para o depósito de pó.

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“Serei eu assim tão insonsa que tenho o poder de transformar em estátua de sal os que me rodeiam? Tomo banho nas águas quentes e salgadas da promiscuidade incestuosa de um círculo de onde nunca consigo sair. Engelho. Deixo de ser corpo… só crateras. Uma viagem no tempo saltando milhares e milhares de dias não nos aproximaria. O meu planeta é outro. Inabitado. O comboio mais rápido do mundo não te traria até mim. O tempo e o espaço estão certos. É o meu coração e o teu coração que estão errados. Entre os dois existe esta distância infinita.”

“A dor não grita, é escura e assustadora, e não escoa naturalmente através das palavras e das lágrimas. Caminho de costas e no meio de escombros. Limpa o teu sangue. Eu fico por aqui, seco, a sangrar sozinho. Afasta esse cálice de mim. Bebe tu o sangue que eu não consigo.”

Então é isto? É isto o resto do iceberg? É esta a

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tal densidade humana que me faltava, a mim, J.C. Chagas? Eram estas as dores, os lamentos, as chagas? “Quero que tudo vá para o inferno!”, gritou alguém de si para si. Virei-me para ver se percebia quem tinha sido… em vão.

Imaginei-me a escutar este tipo de reflexões eternamente e senti-me a desesperar. Quanto tempo aguentaria eu esta torrencialidade de verdades interiores inconfessadas? Teria, à falta de uma solução, de me encerrar num cubículo, fora do radar de todo e qualquer ser humano. Eu não conheço as pessoas. Pois não.

Segui um tipo com não muito bom aspecto. Camisa por fora das calças de ganga, velhas. Casaco de cabedal rafado. “Pensam que brincam comigo, mas não sabem com quem se metem… da próxima vez espeto- -lhes uns bananos nas trombas que é para não se armarem em parvos… cambada de anormais. Julgam que eu sou o quê? Um saco de pancada. O diabo! Não sabem com quem se meteram. Pensam que brincam comigo, os otários… era o que faltava. Cambada de anormais. Pensam que brincam comigo… mas…” Também seria assim, eu? A repetir as mesmas ideias de violência sem um fio condutor? Provavelmente.

“Ai, Zé… mexes comigo… olhas para as minhas entranhas… vês-me por dentro… apaixono-me pelas tuas palavras…”, era o que estava no pensamento de uma rapariga que me interpelou no meio da rua para pedir um autógrafo. Quase não olhei para ela, mas de alguma forma sentiu as entranhas observadas pela força da

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minha pena. Talvez eu não fosse humano. Talvez fosse um semideus que veio ao mundo para iluminar estes pequenos seres sombrios. Ou talvez não.

Ninguém conseguia penetrar na mente das pessoas? Teria eu entrado numa dimensão paralela? Morrera e estaria agora no purgatório? No inferno? Seria esquizofrénico? A Matrix seria real? Ficheiros Secretos?

Não interessa. Um raio, Zé Carlos, um raio. Talvez um portal para outras dimensões. Dimensões subaquáticas. Dimensões ulteriores. Eu sou só um escritor. Não um deus. Eu não vos posso salvar das vossas mágoas e das vossas vidas tristes, ainda que, nos momentos de euforia, pense que sim. Mas eu não quero pensar. Eu não quero mais nada com pensamentos. Não me bastava a fama? Não bastava ser objecto de desejo. Ser alvo da cobiça. Ser objecto de estudo. Não bastava que desejassem conhecer-me, tinha eu de ter sido castigado desta forma? Com esta violência? Não chegavam os meus próprios pensamentos que me aparecem sem pedir licença? Que vêm até mim e mal me descuido já estão a mandar nisto tudo cá dentro? E, ainda por cima, são uns chatos. Quantas vezes os pensamentos só se preocupam com coisas muito preocupantes? De vez em quando, lá aparecem uns pensamentos mais imaginativos e interessantes, pela calada da noite... mas depois volta tudo ao mesmo. Desinteressantes e enfadonhos. Os pensamentos. Tinha eu de ser forçado a conhecer também o mais íntimo de cada ser de quem me aproximava. Que mal fizera

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para merecer isto? O meu tédio? O meu desdém? A minha ingratidão? Justificavam semelhante tormento? Semelhante punição? Ardo! Misericórdia, imploro!

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Quase me esquecera do livro. Continuava a vender bem. Com tantos pensamentos de terceiros quase não tinha tempo para os meus próprios pensamentos. Tentei recolher-me em casa o mais possível e afastar- -me da porta da rua para não ouvir os pensamentos da vizinha da frente quando ela saía do elevador, ofendida com a totalidade do planeta.

Se tivesse de escolher uma metáfora para a minha situação, diria que me sentia um cachorro quente, amarfanhado entre o fascínio deste superpoder e o peso do conhecimento unilateral de cada ser humano. Um horror! Para o que havias de estar guardado, J.C.?! Cachorro quente.

Tocaram à campainha. Era o carteiro. Abri. Passou-me um pacote para a mão e disse:

– Pode assinar aqui, por favor?– Sim. Tem uma caneta? – perguntei.– Sim. Faz favor. Aborrece-te a minha auto-

comiseração? Comisera tu a minha miséria. Vá! A ver se eu derramo uma única lágrima de tristeza. Eu não lacrimejo, bebé! Não vou carpir nunca a minha zé-ninguice.

Ele disse estas coisas enquanto eu assinava. Espantei-me.

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– Perdão? – Perguntei franzindo o sobrolho.– Sim, diga.– Não me aborrece nada a sua autocomiseração.

Nem sequer sei do que é que o senhor está a falar.– Desculpe? – Hã… peço desculpa… percebi mal.Caramba! Meti os pés pelas mãos. O homem

não estava a falar. Estava a pensar. Mas quem é o carteiro que, enquanto entrega cartas, pensa em autocomiseração com tamanha eloquência?

Despedimo-nos. Ele lançou um olhar de desconfiança. Fiquei a fazer cerimónia enquanto ele esperava que o elevador ascendesse, para depois o descender. Saiu de cena o carteiro, entrou o técnico da televisão por cabo. Vinha para a vizinha. Disse “bom dia!” e tocou-lhe à porta. Em que pensas tu, pobre escravo do dever? Não tardei a obter resposta. “Dói--me a cabeça. Emaranham-se-me os pensamentos quais fios de cabelo encaracolados. Queria que tudo e todos me saíssem da cabeça. Apetece-me vomitá-los de dentro de mim. Quero que me deixem o vazio pleno e que se silenciem todas as vozes para que possa apenas escutar o bombear do meu sangue na cabeça latejante.” Hum… dor-de-cabeça… toma um ben-u-ron e deixa-te de tretas!

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“Tenho saudades tuas. Quando nos vemos?” Não, não era um pensamento. Era uma mensagem da Tal. Mas o que estaria ela a pensar? Não me interessava

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muito, essa era a triste verdade. Como mudaste, Zé Carlos! Não lhe respondi. Vemo-nos um dia destes, talvez quando eu voltar a ser um pé rapado. Nessa altura vais continuar a querer alguma coisa comigo? Pois… já calculava.

Mas ela insistiu. Passou-me depressa a falta de interesse. Estava de folga e propôs que fôssemos almoçar e pegar um cineminha depois. Talvez estivesse a pensar no escurinho do cinema. O problema é que eu não gosto de anis. E se no parágrafo acima resistira e enaltecera a minha mudança de postura, neste cedo e confirmo a minha postura de sempre. Acedi ao convite com excitação, reconheço. Queria mesmo estar com ela. Queria muito ouvi-la pensar. Essa era a verdade. Uma nova oportunidade para saber exactamente as motivações de sua excelência. Qual pai preocupado com as intenções do namorado da filha, assim estava eu. Pai de mim mesmo.

Cumprimentámo-nos com um beijo apenas. Fiz uma força desgraçada para me tentar abstrair dos seus pensamentos. Escolhemos o restaurante e sentámo- -nos.

– Como tens passado? – perguntou. – Bem. Acho eu. Isto foi tudo um bocado

inesperado…– Quem havia de dizer… – Pois.– Qualquer pessoa haveria de dizer, na realidade,

mas nós somos todos preconceituosos e não damos às pessoas o real valor que elas têm. Às vezes apercebemo-

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-nos tarde de mais. É a nossa triste sina.Pois. Quem haveria de dizer? Levei um pedaço de

pão à boca. Ela olhou para mim e pensou: “Se eu pudesse descrever a beleza dos teus olhos e enumerar teus atributos em épocas vindouras... diriam: o poeta mente! A Terra jamais foi acariciada por tal toque divino”. Uau! O que seria aquilo. Peguei no telemóvel, pedi licença, fingi que respondia a um e-mail urgente e pesquisei o pensamento dela. Era Shakespeare. Duplo uau. Tão culta, esta minha ninfa. Abri a página citador.pt e procurei frases do Shakes. Soltei uma:

– Os homens deviam ser o que parecem ou, pelo menos, não parecerem o que não são.

– Shakespeare… tu és o que pareces?– Não. Eu sou o mesmo que tu ignoravas.– Talvez. Mas ignorava eu o Zé certo? O real? Ou

a imagem que eu tinha dele?– E qual querias? O que cita Shakespeare? A resposta dela definiria muito do nosso futuro. “Gente que é, de longe, de muito longe, mil vezes inferior

àqueles que os desprezam e que cospem no chão pisado por esta outra gente, cujo único poder que tem é deixar os outros mal dispostos até à náusea. Esse tipo de vaidade porca enoja--me. Desesperam por atenção e recebem a almejada meia dúzia de lambidelas das línguas que já lamberam tudo e mais alguma coisa nos outros igualmente engraçados e casos raros de criatividade. Mantêm-se longe da podridão dos, segundo eles, estúpidos ignorantes. Quero lá saber do bife do Shakespeare.”

– Não. – E não disse mais nada.

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Siderou-me mentalmente. Fiquei desfeito com aquele pensamento que não entendi na totalidade, mas pareceu-me uma crítica severa a outros… famosos, outros escritores, outros grupos de pessoas… não a mim.

Estávamos os dois meio perdidos neste mundo estranho, quando senti alguém a tapar-me os olhos. Já não me acontecia semelhante tolice há umas décadas. Mas quem é que no seu perfeito juízo ainda fazia essa brincadeira parva. Eu sabia lá quem era?! Tinha as mãos quentes, o que já não era mau, num dia frio... Macias. Confortáveis. Ouvi a Tal cogitar umas ofensas bem agrestes. Fariam corar o coitado e romântico Shakespeare.

Passados uns segundos diz a tapadora de olhos:– Então, não adivinhas?E eu:– Hãaa… não…Largou as mãos, virou-se para mim e beijou-me a

cara com aqueles lábios carregados de batom pegajoso. – Sou eu, Zé, a Jéssica! Engoli em seco e disse:– Esta é a Jéssica, uma amiga. Jéssica, esta é a minha

namorada. – Aquilo saiu-me. A minha namorada, de nome, a Tal, corou.

– Grande sucesso, pá! Eu não te disse?! Tu és o maior! – Virou-se para a Tal e disse-lhe: – Olha filha, quando não o quiseres avisa, que eu fico com ele. Tens muita sorte. Este teu homem é um génio. Ai! Quem me dera! Vou andando que tenho ali ao fundo o meu

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homem à espera… Beijinhos.E foi.– O homem? Deve ser o chulo, só pode… – rosnou

a Tal.– Calma! Coitada…– É uma ex-namorada?– Não. É apenas uma tipa doida. – Hum. Ok. Sou?– És o quê? Doida?– Não! O que lhe disseste…– Já disse tanta coisa…– Tu sabes.– Ah… de seres a minha namorada?– Sim.– Queres ser?– Já ninguém pede ninguém em namoro.– Os tipos que citam Shakespeare pedem…Sorriu.– Quero! – Aceitou. Levantámo-nos. A Jéssica soprou um beijo do

fundo do restaurante e da superfície do seu ser. Acenei uma espécie de aceno militar, tipo continência. Ela levantou-se e veio a correr para se despedir de mim. Atirou-se-me ao pescoço levantando os pés do chão. “Não almejo mais do que um chuvisco. Há gentes com o ser a arder”, foi o que a ouvi pensar. Enfim…

Lá fomos ao cinema. Assistimos ao filme todo de mão dada. Ela assistiu a um filme, eu assisti a vários. Ao meu, ao dela e aos daqueles que estavam mais perto de mim. Uma mescla de pensamentos que se misturavam

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com as vozes dos actores. Que loucura! Tão depressa não voltaria ao cinema. Ai, como eu desejei desligar aquela porcaria por um par de horas. Eu não me chamasse José Carlos se na próxima tempestade não faria os possíveis e impossíveis para apanhar com outro raio no lombo, na esperança de reverter os efeitos do primeiro. Fiona, estavas enganada, eu não penso melhor das pessoas agora. Detesto a sua profundidade, os seus pensamentos ocultos. Não quero saber. Só quero namorar em paz, pode ser?

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“Não chegaste a sentir a pólvora seca, nem as balas de borracha. Recebi a recompensa pelos sofrimentos que me causaste, em silêncio, na mais profunda das solidões. Não sentiste nada.”

“Engolia-te viva, só para ficares a caçar borboletas dentro do meu estômago. Não! Não é isso que eu quero. Estou-me nas tintas para as borboletas. Que morram desfeitas em suco gástrico. Eu quero que tu me entres na corrente sanguínea. E depressa. Já, de preferência! Quero sentir-te a percorrer todas as minhas veias, como o contraste que se dá antes de uma ressonância magnética, mesmo sabendo que a seguir entrarei em coma hiperglicémico.”

“Bem-aventurados os que choram, porque eles não terão uma goteira interior que pinga (e pinga e pinga e pinga) lágrimas de ácido sulfúrico em cima do coração até que este se dissolva totalmente.”

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– Ah, calem-se! – gritei.– Cale-se você! – berrou-me uma velha, de volta.– Este deve ter a mania – disse um tipo com umas

calças largas na zona do rabo.– Era o que faltava, uma pessoa andar às compras

em silêncio… Larguei as compras e saí do supermercado a

correr. Tive um pequeno amoque. Acontece. Talvez não aguentasse isto muito mais tempo.

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A Tal, a minha namorada, era uma mulher incrível. Impressionante a todos os níveis. Roliça, mas elegante. Transpirava candura. Bondade. Estava sentado na escrivaninha com o computador à frente. Tinha de começar a escrever o meu segundo livro, mas só conseguia pensar nela. Eu sei que os adultos já não namoram, usam outros termos para definir as suas formas estranhas de se relacionarem, mas eu sou um tipo humilde, antigo, antediluviano… a Tal era a minha namorada e eu tinha gosto no termo: na- -mo-ra-da. Bonito. Tinha vontade de me casar e fugir com ela. Fugir desta fantochada de chacha. Fugir para algum recanto longe do tédio. Longe destes bocejos. Longe de bajulações. Longe de poderes. Longe do conhecimento. Perto da minha kryptonite. Tinha vontade de renascer com ela noutra qualquer parte do universo, de preferência noutro planeta. Noutra

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galáxia. Longe da Via Láctea, mas perto da minha Cerelac. Esta via que acolheu a infeliz raça humana. A minha ansiedade estava toda numa nova pátria, sem pontos de comparação com este lugar mal frequentado que nós frequentávamos, mal, também, claro. Desejo renascer. Bom. Transformado. Incorruptível.

Era uma vez. Tentei começar assim o novo livro. Era uma vez? Sim. Porque não? Era uma vez um escritor sem ideias e sem vontade de escrever que decidiu largar tudo e fugir com a sua namorada para… hum… digamos… Fugir para onde? Que bocejo que tu és, Zé Carlos! Queres fugir, mas não tens para onde ir. Não há esconderijo que te sonegue ou estrebaria que te albergue. Não há palhas onde te possas deitar. Estás preso nesta realidade. Por que razão alguém quereria ler um segundo livro teu, especialmente quando não tens nada a dizer? Não tens nada dentro de ti. Não tens nada para pôr cá fora.

Voltei às compras. Precisava mesmo de certos produtos. Um génio como eu não pode privar o seu cérebro da oxigenação e essas coisas que os alimentos fornecem.

Na fila do Pingo Doce, as pessoas estavam exaltadas. As filas eram grandes e as caixas não estavam todas abertas. Os rostos dos que esperavam estavam fechados. Algures entre a raiva e a desolação. “Isto não se admite”, dizia a senhora magra, toda vestida de preto, que estava atrás de mim. “Estão para ali a contar o dinheiro em vez de abrirem mais caixas.” O marido respondeu-lhe: “Olha, tivesses vindo mais cedo”.

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Mas ela não se ficou. “Tivesses vindo mais cedo, não. Tivesses vindo mais cedo, não.” E ficou-se por ali em termos de oratória e argumentação. Na caixa ao lado, supostamente prioritária, alguns berravam com uma suposta grávida. Diziam, os deixados para trás, que era mentira, ela não estava grávida coisa nenhuma, era apenas gorda. Um escândalo e tal. Pousei as compras em cima do tapete rolante. O senhor à minha frente, já com uma certa idade, estava em pânico com a proximidade entre o último produto dele e o meu primeiro. Não havia separadores. Disse umas três vezes à menina que era só até ali. E puxava com o braço esquerdo as compras para a frente. A operadora sorriu-me. Fizemos aquele olhar cúmplice: “ele há cada maluco”.

“Mas este tipo é parvo. O que é que ele julga, que eu vou pagar as compras dele? Essa é que era boa. E não se digna a separar o diabo das compras… tsss… precisava era de um pano encharcado nas ventas até ele ficar enxuto.” Na fila prioritária os pensamentos eram bem piores. “Eu mato-a! Ela não está grávida coisa nenhuma. Vejam bem o cachalote a passar-me à frente!” E demais ofensas e obscenidades que me recuso a transcrever.

Cheguei a casa. Almocei e sentei-me a escrever um poema. Veio-me uma inspiração repentina.

a gravidade exaure-me as forçassuga-me puxa-me para debaixo da terratenho nojo de fluidoscom os quais me besunto

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untam a garganta do abismoescorro melhorcomo se fosse sangriapodes comer a minha carnemas pelo menos tem a decência de ires cuspindo

os ossinhosno fim, embrulha-os num guardanapodá-os aos cães esfaimados que por aí vagueiam

baptizei os meus sonhos por aspersãoassim não morreram afogadosreduzi-os a cinzastenho uma caçadeira apontada à futura fénix dos meus anseiosressuscitarei despido de opressões

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Quem me dera flutuar, o peso é tão grande. Afundo-me neste oceano de lágrimas. “Não paro de tossir, qual gato engasgado com bolas de pelo. Parece que me querem sair as entranhas pela boca. E bem podiam! Para quê toda esta confusão orgânica cá dentro a ocupar espaço? Seria tão mais magra sem entranhas”, ouvi uma mulher magra dizer (sem verbalizar, claro), na paragem do autocarro.

Tentava evitar esse tipo de conglomerados, mas nesse dia precisei de um transporte público. Tinha o carro na revisão. O mecânico já tinha sido bastante desagradável. “Comprei uma vivenda no vale da sombra da

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morte para aprender a não temer mal algum. Sou cuspidor de fogo, mas não domino bem a técnica e às vezes engulo lume. Fico cheio de azia. Chucho um Kompensan. É como deitar gelo na lareira.” Pode ser isto? Sou cuspidor de fogo? Por favor, Sr. Tomás, poupe-me a esses desvarios. Até você?

Não estava muito cheio. Sentei-me ao pé de uma moça, na casa dos vinte. Foi o caminho todo com a cabeça encostada ao vidro húmido e tremelicante do autocarro. Escutei a sua mente e compadeci-me dela. “Sou uma eterna lagarta. Nunca a linda borboleta que nos poisa no dedo mindinho e nos deixa a sonhar com a beleza estonteante da vida. Nunca! Talvez uma grande traça sedenta, com coração de melga, a esvoaçar loucamente, indiscriminadamente, em círculos, à volta de luminares carregados de sangue. À espera da pancada de um jornal antigo enrolado.”

Abordei-a, uns segundos antes de sair na minha paragem:

– É mentira. A menina é uma linda borboleta que nos poisa no dedo mindinho e nos deixa a sonhar com a beleza estonteante da vida.

Deixou descair o maxilar inferior e ficou uns segundos com a boca semiaberta. Os olhos molharam--se-lhe… o autocarro parou e eu saí, juntamente com outros passageiros. Ela ficou a ver-me da janela, sem desviar o olhar. À minha volta, as gentes tinham coisas pouco relevantes dentro das suas cabeças. Perdidos nos seus considerandos que dispensava ter de considerar. Ângulos e perspectivas.

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Fiona. Escrito no visor do telemóvel que vibrava na nádega direita. Atendi. Cada vez gostava mais de telefones. Não conseguia captar pensamentos, nada, excepto o que realmente era verbalizado. Sem sinal. Eu era uma antena que captava sinais emitidos pelos cérebros dos meus próximos. Como podia eu, nestas condições, amar o meu próximo como a mim mesmo?

– Diz.– Querem fazer uma entrevista contigo… no Sem

Espinhas. – Porque é que não me ligaram directamente?– Zé, disseram-me que ligaram. Ninguém

consegue falar contigo. Está tudo bem?– Pois, também é verdade. Tenho andado

entretido… hã… com outros afazeres. Isto tem sido uma loucura.

– Ai tem? Isto o quê, pode saber-se?– Tu nem queiras saber. Um dia destes jantamos e

eu conto-te tudo.– Cheira-me a fêmea…– Fêmea? Opá, que expressão…Riu-se.– Tenho ou não razão?– Também, sim – confirmei, vaidoso. – Mas pronto,

o Sem Espinhas… o tipo é doido.– É doido, mas é o nosso jornalista mais respeitado.– Tá bem, mas é muito bruto. Eu sou um gajo

sensível, Fiona. – Deixa-te de coisas. Se correr bem, é o melhor que

te pode acontecer. O tipo, de escritores, só entrevistou

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o Saramago e o Antunes. Já viste o que é? Passas lá para cima.

– E se correr mal estou bem tramado… diz-se que ele detesta escritores. O que é estranho, uma vez que também escreve.

– Não penses nisso. Vai correr bem.– Vai, vai, vou é voltar à empresa do Sr. Tavares a

toda a mecha.– Que exagero! Até parece que é ele que decide

quem pode ou não comprar os teus livros.– Não sei. Eu é que não sou, de certeza.Lembrei-me de uma coisa:– Olha, talvez o meu segundo livro pudesse ser

um livro de poemas…– Poemas, Zé? Hum…– Tipo aquele que te dei… ora escuta este em que

tenho estado a trabalhar: Ai, acudam-me que morro! Admirável mundo novo... Morro de fragilidade... Sinto-me... Esta noite… Noite, negra noite. Sol que já não brilha. O cupido unta as setas com ansiolítico… O mundo é dos dementes. Fim. Que tal?

– A palavra “fim” também faz parte?– Não, claro que não. – Ah…– E então?– Bom, quem sabe um dia; para já trabalha mas é

num segundo romance… ok?– Pronto… quando é que é o tal programa?– Amanhã.– Amanhã? Já?

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– Pois… se tu atendesses o telemóvel…– Ora bolas! Nem tenho tempo para me preparar.– Tens de estar lá às oito em ponto. É para entrar

no ar às nove, ok?– Pois, que remédio.

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Chegou o amanhã. “Boa sorte, bjs”, desejou- -me a Tal por SMS. Segui para a estação televisiva. A Fiona estava lá. Não era a minha primeira entrevista televisiva, mas era a entrevista, potencialmente, com mais audiência. Em horário nobre. Tinha de correr tudo bem. “Olá, Zé!”, disse ela… e abraçou-me. “Já tinha saudades tuas.” Eu respondi-lhe: “Eu também, Fiona!” Estava a ser sincera. Li-lhe os pensamentos. Eu também estava. Nutria um carinho grande por ela.

Pentearam-me e maquilharam-me ligeiramente. Vesti um casaco emprestado. Entrei, sentei-me e fiquei à espera. Estava nervoso. Fora do alcance das câmeras, a Fiona piscou-me o olho e fez um aceno afirmativo com a cabeça, como se dissesse: “vai correr tudo bem”. E disse. Já sabem… li-lhe o pensamento.

O entrevistador era o jornalista português mais famoso. Um tipo baixo, gordo, com um farto bigode. Uma piada típica para brasileiros. Era um sujeito rude, conhecido pelas suas perguntas incómodas e directas. Consideravam-no um indivíduo às direitas, corajoso, que não cede a pressões, nem se deixa amedrontar por

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nenhum tipo de lobby. Coerente e com espinha dorsal. Tinha editado vários livros sobre jornalismo e um romance histórico que lhe valeu os melhores elogios da crítica especializada e de algum público. Não todo, claro. Era dotado de grande complexidade e erudição. Claramente só ao alcance de algumas minorias. Desconfio que se se candidatasse a primeiro-ministro ganharia com extrema facilidade, tal a popularidade de que gozava. Reconheço que me inspirava algum temor, mas se a entrevista corresse bem, nada poderia abalar a minha reputação daí em diante. Tratava-se, portanto, de um momento não vital, mas revestido de alguma importância. Não era para levar de ânimo leve, J.C. Chagas, não era.

Notei-lhe logo algum antagonismo. Não me dirigiu palavra até à entrada em directo. Achei estranho. Não lhe consegui ouvir nenhum pensamento. Cabeça vazia. Incrível, pensei. Segundos antes de começarmos, à entrada do genérico, ouvi-lhe o seguinte: “Ignóbil criatura, provarás o sabor da minha farta neurastenia”. Alto lá! Isto não me soa nada bem.

Começou, dirigindo-se à câmera que tinha a luz vermelha ligada:

– Hoje, connosco, no Sem Espinhas, José Carlos Chagas ou J.C. Chagas, mimetizando J.K. Rowlings, entre outros. O autor que temos hoje entre nós é considerado o salvador de uma nova literatura portuguesa. Mas será mesmo assim? A sua ascensão meteórica de trabalhador informático de uma pequena empresa para as luzes da ribalta não tem deixado

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ninguém indiferente. Até que ponto o mérito anda lado a lado com a fama, ou até que ponto é um produto fabricado pela indústria livresca? Estas e outras questões dentro de segundos.

Passou uma publicidade, trinta segundos, salvo erro. Começámos. Foi difícil separar as perguntas reais, dos comentários interiores cheios de ódio que ele ia fazendo de si para si. E juntar ainda os comentários relativamente longínquos dos operadores de câmera e demais staff, cujas ondas cerebrais me atingiam por vagas.

– “Vamos lá, vil mostrengo”, José Carlos, bem-vindo! Como tem lidado com esta fama repentina? “Trucidado deverias ter sido. Machadada a tua improcedente ascensão.”

– Obrigado! Agradeço o convite. É um privilégio para mim ser entrevistado por tão nobre figura. Não tem sido difícil. O mais natural seria eu ter sido trucidado pela crítica, mas aparentemente o povo, que é quem mais ordena, tem outra ideia. Outra sensibilidade. Têm-me tratado de forma fantástica. Levado em ombros nesta minha meteórica ascensão – “Patéticos aios…”, ouvi-o pensar, “como tu, mitológico pseudo-escrevinhador”.

Correu bem a primeira pergunta, apesar de tudo. Tinha um inimigo à frente. Meteram-me numa guerra que não escolhi lutar. Nem na escola tinha andado à pancada… o que me havia de calhar! O que é que eu tinha feito para merecer isto? Mas não te ficarias a rir, bandido!

– Pelo que sabemos, a publicação deste livro foi

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um golpe de sorte. É assim que olha para si também? Um produto do acaso?

– É. Gostava de dizer que foi fruto de trabalho árduo, mas é mentira. Não foi. Deve-se essencialmente ao trabalho da Fiona Salgado, a pessoa dentro da editora que acreditou no meu texto desde o primeiro momento.

O seu pensamento estava repleto de ódio e rancor: “Outra retardada”.

– Muito bem. Obrigado pela sua honestidade. Acha que tem talento para singrar nesta sublime forma de arte ou, por outro lado, acha que este tipo de acaso não acontece duas vezes? Como se costuma dizer: um raio não cai duas vezes no mesmo sítio.

Raios! Disso percebia eu. – Tenho dificuldades em comparar o meu livro

a um raio. Com pena minha, algumas pessoas bem mereciam ser fulminadas. – Envolve esta com papel de embrulho, pensei eu de forma erudita. Também tenho direito a pensar usando palavras dispendiosas ou não?

– Há autores que marcaram a sua escrita? Quem são as suas principais influências? Schopenhauer, Kant, Spengler, Bukowski, Hemingway, Faulkner? “Aposto que te são completamente alheios. Revela ao mundo a tua insipidez cognitiva.”

Espera aí que eu já te tramo. – Não, ninguém. Talvez as autoras dos livros Uma

Aventura. Foram os únicos que li. – Era mentira, mas era uma mentira ofensiva. – Esses que citou, na altura em que o livro foi escrito, nem os conhecia. Agora

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conheço e uso-os como armas de arremesso quando sou entrevistado por gente arrogante e pedante.

– Hum… “Sua marmota fedorenta!”A entrevista decorreu durante mais algum

tempo sem incidentes de maior. Só com incidentes de menor monta. Iguais. Sua excelência, resumidamente, considerava que eu não tinha qualquer mérito, que era um produto. Fast Food para canhão. Sentia inveja e ao mesmo tempo superioridade. Ele tinha um outro nível, uma outra erudição e elevação, que o povinho nunca poderia atingir. Era uma espécie de mágoa por não ser entendido da forma que entendia que deveria ser entendido e mais, e pior, adorado. Tinha inveja da adoração que me votavam. Mal sabia ele que não havia nada a invejar.

Na recta final, algumas perguntas de âmbito pessoal. Sobre crenças religiosas, vida familiar, origens e amor. Foi aí que o caldo entornou… e de que maneira.

– Foi noticiado por uma dessas abjectas revistas cor-de-rosa que o José vive uma relação com uma fã. Confirma-se?

Eu já tinha saído numa revista cor-de-rosa? Cruzes!

– Ai foi? Não ouvi nada. Eu vivo uma relação com uma mulher, não com uma fã.

– Pois, mas conheceram-se devido à sua fama…– Não, não. Nada disso. – Bom, de qualquer das formas, desejo-vos as

maiores felicidades. “Aquilo é um bilhete de primeira classe para o pecado. Areia a mais para a tua camioneta, José

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Carlos… o eunuco…”No instante em que semelhante piropo/acusação

soou no interior da minha cabeça, bem, não há outra forma de o dizer: passei-me! Chamou-me eunuco e quebrou o décimo mandamento. Inadmissível! Especialmente, porque cobiçou o que era meu. Levantei--me, pus-me de pé em cima daquela espécie de balcão e atirei-me em voo para cima do gordo (dele). Bateu com a cabeça no chão e ficou meio abananado. Aproveitei para lhe dar murros na cara e no estômago. Alguém veio por trás, agarrou-me os braços e puxou-me, afastando-me da cena. Ainda tive tempo de lhe disferir uns dois pontapés violentos nas pernas. Havia muito sangue no chão. Foi tudo tão rápido que as câmeras não conseguiram escapar às cenas chocantes. Nem colocar bolinha no canto superior direito. Uma história de violência, básica, não realizada pelo Cronenberg, em directo no horário nobre. Interromperam quando já estávamos separados e o jornaleco de meia tijela deitado no chão, sangrando inconsciente. Interromperam a emissão e passaram publicidade. Qualquer coisa sobre um iogurte que deixava os corpos mais delgadinhos ou adelgaçados. Uma coisa desse tipo. Levaram-me compulsivamente. No chão havia sangue, dentes, olhos revirados e uma fractura exposta. Bem, a fractura não estava no chão… estava na perna que estava no chão. Pelo menos três. Dentes. Dois caninos e um incisivo. Pareceu-me, no meio da fúria que me cegava.

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Pedi um Brufen. Não me atenderam o pedido. Que dor de cabeça violenta. Pudera! Depois de ter levado com uma lista telefónica no toutiço… não seria de esperar outra coisa. Fiquei todo o fim-de-semana na cela. Fiz uma chamada. Na verdade até me deixaram fazer duas. Um dos guardas não gostava nada do jornalista, já os outros, não gostavam nada de mim.

Todo o processo me pareceu estranho e exagerado. O indivíduo tinha um advogado de topo e amizades poderosas. Poucas questões me colocou o inspector e depois o juiz. O interrogatório foi só uma formalidade. Não havia nada a negar, nem nenhuma explicação possível. Confirmei tudo, sem mencionar o facto de que conseguia ler pensamentos. Entre a ala psiquiatra ou a prisão do Linhó a diferença não seria muita, ainda assim.

O jornalista estava internado com traumatismo craniano, perna partida, e baço deslocado. Estava desdentado e teria de ser operado para colocar o maxilar no lugar. Iria cair-me em cima com toda a força da sua influência e poder. Eu estava bem tramado.

Deixaram-me ir com termo de identidade e residência. Lá fui para a residência, com a identidade sem termo. Quem era eu? Estou aqui, senhores agentes da autoridade. Mas quem sou eu? Quem sou agora? Para o mundo? Para a Fiona? Para a Tal? Um bárbaro. Conan. Um louco. Um artista. Um proscrito. Uma pequena palha levada pelo vento. Um tipo a viver o

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16º minuto dos seus quinze de fama.

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Umas semanas depois não teria amigos, namorada, nada. Como no início. Ninguém à minha espera em parte alguma. E mais: estava prestes a ir bater com os costados lá dentro. Numa das audiências, perguntou ele, o juiz:

– Tem alguma coisa a alegar em sua defesa?E eu:– Senhor doutor juiz – lembrei-me dos Malucos do

Riso ao dizer isto –, quem não se sente não é filho de boa gente. Esse senhor hostilizou-me ostensivamente à frente de um país inteiro. Não só pela forma como conduziu toda a entrevista, bem como pela agressividade notória na verbalização dos seus pensamentos…

– Pensamentos? O senhor lê pensamentos, agora?Senti-me tentado a dizer que sim. Para o provar

poderia revelar a toda a sala o que o juiz acabara de pensar. Mas fiquei calado. Ele continuou:

– Saiba o senhor José Carlos Chagas que a sua conduta, para além de toda a violência que sanciona, é também um péssimo exemplo para todo um país que o tem em altíssima conta. Mais, não se vislumbram em si quaisquer tipos de sinais de arrependimento…

Continuou a discursar e eu a pensar: estou bem tramado! A sentença seria lida daí a uns dias. Os

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pensamentos do juiz eram do mais banal com que eu me cruzara até ao momento. Até fiquei com dó dele. Sem a riqueza dos nossos pensamentos o que seria de nós? Bendito jornalista que me entrevistara. Uma complexidade vocabular só ao nível da minha riqueza de golpes físicos. Ganchos de direita, murros e rotativos às rótulas. Não haveria um justo juiz que estivesse ao nosso nível físico-intelectual? Teria de ser julgado por este burgesso sem nada dentro de si? Sem recheio. Sem miolo. Só côdea.

A Tal acabou tudo por SMS, tentei explicar-lhe, mas ela nem quis ouvir. Decisão irrevogável. Tinha um passado que incluía violência doméstica que nunca chegara a explicitar. Tudo o que não queria era um tipo violento. Um que lhe lembrasse o pai ou o namorado, não sei… Ainda agora tinha encontrado o amor eterno, já ele se desvanecia, se esfumava no meio de um momento de cólera, aparentemente sem perdão. Para a Tal, aquele seria o pecado imperdoável. Padre nenhum o absolveria aos olhos da nova virgem santíssima:santa--Tal-fazem-me-uma-já-não-me-fazem-outra. E acabou, num piscar de olhos, do diabo, claro, o que parecia interminável e inquebrável. Lindo. Eu, o grande J.C. Chagas, abandonado.

Perdi milhares de amigos e seguidores nas redes sociais. Dispensei, na medida do possível, a leitura de pensamentos, porque a verbalização dos mesmos era efusivamente propagada na vida real. Tudo a nu. Fui ofendido, achincalhado, ameaçado, ao ponto de ter de fechar a página do Facebook. Algumas livrarias

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retiraram o livro, causando prejuízo à editora. Caramba! Foi apenas um pequeno episódio de violência. Seria caso para tudo isto? Passei de medíocre a bestial e de bestial a besta.

No meio deste processo, a única mensagem de incentivo foi do Sr. Tavares: “Gostei! Aviou-lhe bem! O gajo estava a pedi-las! Se se vir enrascado, o seu lugar continua à disposição. Abraço, Tavares”.

Entusiasmei-me e enviei um SMS à Tal: “Eu consigo ler pensamentos. Só lhe bati porque ele pensou coisas indevidas a teu e a meu respeito. Sei que é estranho, mas podes acreditar em mim. Dá-me uma oportunidade para te explicar tudo. Bjs”. Ela respondeu: “Tu és doido. Precisas de ajuda. Não me procures mais, sff”. E ficámos assim.

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No dia anterior à leitura da sentença tive uma oportunidade única de defender o meu caso diante da opinião pública. Era o convidado especial de um dos programas da manhã da TV. Um deles. São todos iguais. A apresentadora fez-me a primeira pergunta e eu não fui de modas e ataquei logo. Dizem que é a melhor defesa.

– Sabe, Catarina – era o nome dela, Catarina Oliveira –, isto é muito simples: é uma guerra de poderes. A pessoa em causa tem muito poder. Se fosse um zé-ninguém, ninguém queria saber. É uma das

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características dos zés-ninguém. São ninguém para todos. Ninguém quer saber de ninguém. Apesar de tudo, eu sou um pobre diabo. Apareci de repente, os meus méritos são questionáveis e posso ser descartado a qualquer momento. O país pede sangue e só pode ser o meu. Percebe?

– Mas ele disse-lhe, anteriormente ou em off, alguma coisa que o levasse àquela atitude? – perguntou o outro entrevistador, do fato às bolinhas.

– Essa questão não é relevante. O que é relevante é que as pessoas deste país deviam tomar consciência de que a forma como constroem ídolos de barro, e passado pouco tempo os derrubam, é verdadeiramente criminosa. As pessoas não são carne para canhão.

– Foi carne para canhão, José? É assim que se sente?

– Fui, claro. O sistema é assim. Precisa de se auto-alimentar. Aquele jornalista é só uma peça da engrenagem. Uma peça do sistema que eleva e que abate, para gáudio do povo. Isto é como Roma Antiga. Nós, eu neste caso, somos peões para abate. O povo precisa disto para se manter animado… Entretido. Para não pensar na sua vida miserável. Isto é tudo uma fantochada. Até isto. Este programa, esta minha defesa.

Fez-se silêncio. A plateia estava tranquila. Aquelas velhas da manhã que riam com as alarvidades estúpidas, o playback musical e as intervenções bizarras de psicólogos não sabiam como reagir àquele momento. Uma nuvem de considerandos pairava no ar. Aquela gente não me conhecia, mas eu conhecia

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aquela gente. Conhecia bem aquela gente. Conhecia até os pensamentos mais leves, mais subtis. Mas que valor tem esse conhecimento para mim? Que faço eu com essa loja dos trezentos de pensamentos avulso? Nada. Sendo assim prossegui:

– Se me permitem, ainda direi o seguinte: Daqui a uns meses, quando tudo isto tiver passado, quando o distanciamento for maior, haverá gente interessada em aproveitar-se deste episódio para lucrar com ele. Agora, sou um bestial alvo a abater, um concorrente expulso de um reality show, mas daqui a pouco tempo serei uma curiosidade que voltará a vender livros e a ser convidada para entrevistas. Serei uma piada. Olha, o livro novo daquele tipo que partiu os dentes ao outro. Deixa lá comprar, para satisfazer os meus fetiches de violência. Será que ele passou mal na cadeia?

– Acha que vai ser condenado a uma pena de prisão efectiva?

Respondi de forma curta e grossa.– Acho.

E fui. Poupo-vos aos pormenores, mas fui. Pena efectiva e multa avultada. Pena agravada posterior-mente porque me recusei terminantemente a pagar a multa. Fossem buscá-lo ao Totta! O dinheiro. Numa manhã da TV, passei o meu último dia de liberdade. Ainda ouvi alguns insultos e ainda dei alguns autógrafos. Tudo normal. Apenas mais um dia. Enquanto esperava por já não sei o quê, dois seguranças da estação televisiva conversavam tranquilamente

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sobre futebol. Parece que não há jogos iguais, diziam eles. É bem verdade. Não há. O que é uma pena (não de prisão), especialmente se fossem iguais a jogos em que o Benfica tenha cilindrado os seus adversários. Estavam os dois a recordar uma final da liga dos campeões entre o Bayern e o United, em que estes deram a volta nos últimos minutos com um golo de um norueguês cujo nome um dos seguranças, o mais baixo e gordo, tinha dificuldade em pronunciar.

Levei para a instituição prisional um pequeno envelope. Com uma fotografia. Uma fotografia da Tal. Uma fotografia que ela me tinha oferecido quando éramos miúdos. A fotografia pela qual me apaixonara. Por uma imagem. Uma miragem. Uma ilusão. Ajudar-me-ia a ultrapassar a espuma daqueles meses longe do mar.

Não mencionarei os meus dias de recluso. São ainda mais chatos que os meus anteriores dias de recluso nessa prisão alargada que é o planeta Terra. Mas são melhores do que a encomenda. Melhores do que se imagina. Pelo menos, do que eu imaginava.

Oh, o que a fortuna me havia destinado! Que fardo o meu! Que pesar! O destino teve um dia ruim quando me obrigou a espancar um ser humano. Eu, J.C., que nunca fiz mal a uma mosca!

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Certa vez, creio que estava encarcerado há cerca

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de seis meses, recebi a primeira visita. Era a Fiona. Hum, o que é que esta queria agora? Notava-se que estava comprometida. Não me admirava. Pelos vistos eu não era a pessoa que ela mais adorava no mundo inteiro, como me chegou a dizer. Meio ano? Adorou- -me quando eu era adorável. Quando satisfazia os seus desejos de sucesso e realização profissional. Quando fui a galinha dos ovos de ouro. Aí adorava-me, claro. Era uma empatia como não havia...

– Desculpa, Zé, sei que já devia ter vindo há mais tempo…

Não desculpei:– Não faz mal.– Mas isto tem sido uma loucura. Fizemos uma

nova edição do teu livro, com uma capa alternativa… esgotou em três dias. Depois de uma fase inicial de recusas e ofensas, voltaste a ser um objecto apreciado… especialmente depois das notícias sobre o… enfim… o jornalista que te meteu aqui…

– Pois, tudo passa. O que fez ele?– Está acusado de violação… e várias mulheres,

entretanto, vieram a público acusá-lo de assédio sexual…

– Não me surpreende…– Pois. Desculpa… eu queria ter vindo antes…

sinto-me culpada… em parte…Desculpei. Estava a ser sincera. Veio-lhe o nome

do chefe ao pensamento. Deve ter proibido o contacto aqui com a grande besta que passou a ser o Zé Carlos. Nada de J.C., seguramente.

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– Não faz mal. – Como estás a passar aqui? Mal, imagino…– Ah, não. De todo. Os meus dias são bocejos…

sempre foram… mas aqui, ah, aqui, sinto-me em casa. Não preciso de encontrar actividades ou ocupações para negar ou apaziguar os bocejos. Não preciso mais de lutar. Aqui, estou, pacificamente, rendido. Só tenho de sobreviver, o que tem sido, incrivelmente, fácil.

Como calculam, um recluso que consegue ler o pensamento dos outros reclusos e dos próprios guardas, tem uma vantagem incalculável. Calculam que é incalculável…

– Às vezes fico com a sensação de que criei um monstro…

Ri-me. – E criaste mesmo… – Oh…– Conseguiste que eu passasse de bestial a besta…

– Tentei animá-la. – …– Estou a brincar – expliquei. – Foste a única

pessoa que me tratou como gente, neste mundo de cães e raposas.

– Deixa-me dar-te um abraço.Deu.– Desculpa isto tudo. – Chorou. – Tens escrito

alguma coisa?– Uns textos soltos, nada de especial.– Queres editar?– Não. Acho que não quero mais nada com essa

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vida…– E vais fazer o quê quando saíres daqui? Voltar

ao teu antigo emprego?– Talvez…– Com o teu talento? – Talento tens tu. Convenceste meio mundo de que

eu tenho talento. É um dom admirável… Mas acho que esse circo não é para mim. Já esgotei os malabarismos… já me chamusquei a passar por esses arcos em fogo… já levei chicotadas suficientes. Dói-me o lombo. Agora quero descansar.

– … – sem palavras, ela ficou.– Vê se vens visitar-me… – pedi-lhe.Claro que ela viria. Era a única pessoa que eu

tinha no mundo. Minha princesa, admirável. Já no meu cubículo, isto é, na minha cela, alinhavei

um pequeno texto:

Dói-me o corpoDeito-me em posição fetalcom as mãos entre as pernasAnseio pelo regresso a um ventre qualquerUm ventre sobrenaturalmente descomunalonde eu me possa deliciar a empalar demónios não paridos…Já ouço a crepitação da madeira incendiadae os urros dos pirómanos Fumega a sepultura dos meus anseios…

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Não ardo por tiO meu fogo, por todos é visível Amor não é

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Que se amanhassem todos no seu admirável mundo. Não que a prisão não fizesse parte do sistema circense, fazia, claro. Mas, há um “mas” qualquer nesta reclusão, que não consigo explicar. Uma rebeldia da não participação. Lessem o que quisessem, pensassem o que quisessem, delirassem com o que quisessem, enganassem-se com o que quisessem, disparassem dos canhões a carne que quisessem. Para esse peditório eu não daria mais nada. Que fossem esmifrar outro. Metessem outro a virar frangos. Esqueçam a minha pobre existência! Esqueçam todas as minhas existências, aliás. Deixem-me aqui confinado a este purgatório. Não preciso dos vossos indultos. Não quero comprar as vossas indulgências. Não quero ficar reabilitado, apto a reentrar no mundo. Não quero voltar à sociedade. Não quero. Passar bem, boa tarde!

Puré para o jantar. Com carne seca e feijão-verde frio. Sentámo-nos. Uns estavam visivelmente alegres, partilhavam as insignificâncias do dia vazio, outros, absortos nos seus pensamentos, no mundo exterior, nos seus crimes, nas suas culpas. Eu estava a brincar com o puré, espetando-lhe o garfo repetidas vezes. Era mau. Sabia mal. Íamos olhando uns para os outros. Trocando ódios, indiferenças e raros companheirismos. Não

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havia telemóveis. Ninguém tinha os olhos postos em ecrãs minúsculos. Ninguém se dedicava à existência de pessoas que não existiam para além da luminosidade de visores espalmados.

Pensei na figueira seca que havia no pátio exterior, que com dificuldade dava alguma sombra. Um dos reclusos falava muito comigo, todas as tardes, debaixo dessa figueira inútil. Era praticamente o único. Tinha um fetiche por famosos. Coleccionava memórias de pequenos encontros com “vipes”, como ele lhes chamava. Explicava-me ao detalhe os curtos diálogos que mantivera com eles e os traços que apanhara das suas personalidades. Perguntava-me sempre se eu os conhecia. Não. Não cheguei a conhecer nenhum dos que ele conheceu. Não tínhamos, portanto, cromos repetidos. Hoje, ainda não o tinha visto. Estaria doente?

Levantei o tabuleiro e bocejei.

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Saí por bom comportamento. Ora pois! Outra coisa não seria de esperar. A prisão não me transformara num animal. Tão pouco num barão da droga. Fui um belo prisioneiro. Ora pois, novamente! A prisões estava eu perfeitamente adaptado. Pedi para contactarem a Fiona. Ela viria buscar-me. Não tinha mais ninguém. Pedi-lhe também para ficar uns tempos em casa dela, só enquanto o Sr. Tavares não me pagava o primeiro ordenado. Voltaria para a firma. O homem estava delirante. O Estado comparticiparia

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uma parte do meu salário, no âmbito de um programa de reintegração social. Teria o seu José Carlos Pau- -para-toda-a-obra-virtual-e-não-só de volta com custos, significativamente, mais baixos. Todos os cêntimos contavam para o somítico Tio Patinhas Tavares.

Na prisão fiz belíssimos amigos. Os melhores. Naquele reality show que só os guardas vêem, criam- -se laços para a vida. Com as melhores pessoas deste planeta: aqueles que são, marcadamente, pecadores. Um deles sugeriu que eu tatuasse cinco pontos na mão, o símbolo de quem foi preso por roubo. “Roubo? Eu não roubei ninguém”, disse-lhe eu. A resposta dele convenceu-me: “Ai, roubaste, roubaste! A ti próprio e ao gajo a quem esbordoaste!” Verdade. Tão longe nos levaria essa reflexão, mas não há tempo. Escurecera. Lá fora, Fiona aguardava por mim.

Avancei para a rua, melancólico, mas decidido. Nas costas, uma pequena mochila. Na mão, os meus cinco azul-esverdeados pontos tatuados com tinta-da- -china de péssima qualidade. Como eu gostava daquela tatuagem!

Já conseguia avistar a Fiona, ao longe, iluminada pela luz de um candeeiro de lâmpada amarela, intermitente. Fundir-se-ia em breve. Mas? Mas? Alto! Não estava sozinha. Fraquejei. Não consegui olhar para o guarda que me dava as últimas indicações. A companhia que Fiona Salgado trouxera para me esperar no meu primeiro dia de liberdade nessa prisão mais vasta que é o meu Portugal, obrigava, com a sua presença, o meu pescoço a rodar na sua direcção, com

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uma força tal que quebrava toda a resistência. Não havia no mundo forças suficientes para lutar contra essas areias movediças. Ao pó voltaremos, inapelavelmente. Mas, agora, eu só queria voltar a esse pequeno conjunto de pó que era… enfim… vocês já perceberam… Esse pó era a Tal. Sim, isso mesmo. A Tal voltara. Esperava por mim.

Passei o portão. Entrei no mundo livre. Poucos segundos me separavam dela. Ergui as minhas antenas ao alto. Não queria perder qualquer emissão da sua incrível cabeça.

“Quem te guiou até aqui?”, pensei eu. “O amor, que me disse onde vivias. Com ele me

aconselhei. Sem ser nauta, juro-te que navegaria até à praia mais remota dos mares, para conquistar jóia de tal valia. Se não me cobrisse o manto da noite, o virginal rubor subiria às minhas faces. Amas-me? Sei que me dirás que sim… e eu acreditarei. Perdoa-me e não julgues leviandade esta rendição tão pronta. Foi a solidão da noite que tal fez.”

“Shakespeare, amor meu? Juro-te, amada minha, pelos raios de luar que prateiam as copas destas árvores…”, disse eu para mim. Mas ela ouviu! Surpresa!

“Não jures pela lua, que no seu rápido movimento muda de aspecto em cada mês. Não vás tu imitar a sua inconstância.”

“Por quem jurar, então?”, perguntei sem emitir qualquer som.

“Não faças qualquer juramento. Embora me encha de alegria ver-te, não quero esta noite ouvir tais promessas que

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parecem violentas e demasiado rápidas. São como o raio que se extingue mal aparece. Oxalá, apenas, respire o teu peito em tão doce calma como o meu!”

“Noite, deliciosa noite! Só receio que, por ser noite, tudo isto não passe de um delicioso sonho”, temi.

– Ei! Mas o que se passa convosco? Eu estou aqui, ok? Podem parar de olhar um para o outro e dizer alguma coisa? – A surpresa da Fiona estava ao nível da minha.

– Desculpa – pedi. – Muito obrigado por teres vindo!

Abracei-a. Depois, olhei para a Tal, que chorava, e abraçamo-nos longamente. Demoradamente.

– Oh, não! Eu vou andando para o carro… vão lá ter! – suspirou a princesa Fiona, encolhendo os ombros.

De alguma forma a minha amanda conseguia ler o meu pensamento, não mais precisaríamos de palavras para comunicar. Talvez o raio que me atingiu, a tivesse atingido também a ela posteriormente. Talvez esse raio fosse, afinal, o cupido. Talvez os céus se tivessem compadecido do meu pesado fardo. Não sei. Teríamos todo um final feliz para essas revelações. Para pormenores. Falei-lhe directamente ao pensamento:

“Oh, amor! Se a tua ventura é como a minha e podes exprimi-la com mais arte, alegra com as tuas palavras o ar deste lugar triste, e deixa que a tua voz proclame a felicidade que hoje enche as nossas duas almas.”

Éramos dois ventríloquos telepáticos. E tivemos a

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nossa definitiva declaração de amor, a promessa de um amor verdadeiro, usando as palavras de Shakespeare em Romeu e Julieta, que eu decorara na prisão, e ela, quando andou na faculdade, há muitos, muitos anos. O vento não levaria as suas palavras. Fechei os olhos e ouvi:

“O verdadeiro amor é mais pródigo de obras que de palavras, mais rico em essência que na forma. Só os pobres contam os seus haveres. O meu tesouro é tão grande que não poderia contar sequer metade.”

Entrámos no carro da Fiona. Fomos os dois para o banco de trás. Coitada, encolheu os ombros e arrancou. Reclinei a cabeça no encosto e bocejei. Não, não estava entediado. Tinha sono. Agora podia dormir descansado. Dei a mão à Tal. Adormeci enquanto ela fazia festas nos meus cinco pontos. De furtos percebia ela. Há mais de vinte anos que eu não tinha coração.

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