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EDMUNDWILSON

OSMANUSCRITOSDOMARMORTO1947-1969

TraduçãoHildegardFeist

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SUMÁRIO

OSMANUSCRITOSDOMARMORTO1.OmetropolitaSamuel2.Aordemdosessênios3.Omosteiro4.OMestredaRetidão5.OqueRenanteriadito?6.OgeneralYadin

1955-1967Apresentação1.Polêmicas2.OapócrifodoGênesis3.OsSalmos4.OpesherdeNaum5.JohnAllegro6.Osmanuscritosdecobre7.Ostextos8.OsTestimonia9.AEpístolaaosHebreus10.Massada11.Documentosduvidosos

“NAVÉSPERA”,19671.Tattoo2.Palestinos3.AsduasJerusalém4.OnovoMuseuNacionaldeIsrael5.ConversascomYadineFlusser6.Partida

AguerradejunhoeorolodoTemploReflexõesgeraisApêndiceSobreoautor

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Estevolumecontém,primeiro,umareediçãoligeiramenterevistademeulivroThescrollsfromtheDeadsea [OsmanuscritosdomarMorto],publicadoem1955.Precedia-onaediçãooriginalaseguintenota:

Opresenteensaiofoipublicadopelaprimeiravez,emformareduzida,narevistaNewYorker.Sougrato a esseperiódicopor ter possibilitadominhaviagemàPalestina, e a seus editores e seudepartamento de revisão pelameticulosa atenção que deram ao texto.Devo agradecer também aometropolita,marAthanasiusYeshueSamuel,aopadreRolanddeVaux,daÉcoleBibliquedaVelhaJerusalém, ao dr. JamesMuilenberg, doUnion Theological Seminary, e ao dr.W. F. Albright, daJohnsHopkins,queleramomanuscrito,naíntegraouemparte,fizeramsuascríticasecorreçõesemeprestaramaindaoutrostiposdeajuda.TenhoumadívidaespecialdegratidãoparacomStewartPerowne,deJerusalém,quecuidoudeminhaexpediçãoaomarMorto.

Segue-seumrelatodotrabalhofeitocomospergaminhosapartirde1955edeminhaviagemaoOrienteMédio— tambémfinanciadapelaNewYorker—, efetuadaem1967comoobjetivodeatualizaro textoanterior.Amaiorpartedessematerial foipublicadaoriginalmentenaNew Yorker.Outrosagradecimentosrelativosaissoestãonaapresentação.Nasegundapartenãohesiteiemrepetirinformaçõesqueconstavamdaprimeira,poisoassuntoé tãocomplexoe tãodesconhecidoparaamaioriadosleitoresqueestespodemnãoselembrarmuitobemdosnomesefatosmencionadosnoscapítulosanteriores.

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OSMANUSCRITOSDOMARMORTO1955

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1.OMETROPOLITASAMUEL

Emalgummomentonoiníciodaprimaverade1947,umgarotobeduínochamadoMuhammed,oLobo,pastoreavaumascabraspertodeumrochedonamargemocidentaldomarMorto.Escalandoa rocha para reconduzir ao rebanho uma cabra que se afastara, o menino se deparou com umacavernaquenunca tinhavisto e jogouumapedra em seu interior.Ouviuumbarulho incomumdecoisassequebrando.Assustou-seefugiu.Maistarde,noentanto,voltoucomoutromeninoejuntosexploraramacaverna.Elacontinhadiversosjarrosaltosdeargila,entreoscacosdeoutrosjarros.Quandoretiraramastampas,sentiramumcheiromuitoruimquesedesprendiadosobjetosescuroseoblongosencontradosemtodososjarros.Levaramtaisobjetosparaforadacavernaeentãoviramqueestavamenvoltosemfaixasdelinhoerecobertosdeumasubstânciapretaquepareciapicheoucera.Desembrulharam-nosedescobriramlongosmanuscritos,otextoanotadoemcolunasparalelassobrefolhasfinascosturadasentresi.Emboradesbotadoserotosemalgunslugares,osmanuscritosem geral apresentavam extraordinária nitidez. Os caracteres não eram arábicos. Os garotosadmiradosseapoderaramdospergaminhoseforamembora.

EssespequenosbeduínospertenciamaumgrupodecontrabandistasquelevavamsuascabraseoutrasmercadoriasdaTransjordâniaparaaPalestina.Haviamsedesviado tantoparao sulporquequeriam evitar a ponte sobre o Jordão, guardada por aduaneiros armados, e passaram seucontrabandopelorio.AgorasedirigiamaBelém,ondepretendiamvenderseusprodutosnomercadonegro, e foram até omarMorto a fim de se abastecer de água na fonte deAin Feshkha, a únicaexistente em vários quilômetros daquela região árida, quente e desolada. Ali estavam seguros:tratava-se de uma localidade desprovida de atrativos, à qual ninguém ia. EmBelémvenderam seucontrabandoemostraramosmanuscritosaocomerciantequeocomprara.Ohomemnãosabiaoquevinha a ser aquilo e recusou-se a pagar as vinte libras exigidas; assim, os contrabandistas osofereceramaoutromercador,doqualsemprecompravamsuasprovisões.Sendosírio,essesegundocomercianteachouqueostextospodiamestarescritosemsiríacoantigoeatravésdeumcompatriotaavisouometropolitasírionomosteirodeSãoMarcos,naVelhaJerusalém.

Ometropolita,marAthanasiusYeshueSamuel,demonstrouinegávelinteresse.Sabiaquedesdeos primeiros séculos do cristianismo ninguém havia vivido perto de Ain Feshkha e ficouimpressionado quando lhe contaram que os manuscritos estavam “envoltos como múmias”.Levaram-lheumdosrolos;ometropolitarasgouumpedaço,queimou-oepelocheiroconcluiuqueeradecourooupergaminho.Reconheceuoidiomacomohebraico,porémnãooentendiaobastanteparadescobrirdoquesetratava.Mandoudizerquecomprariaosrolos,masentrementesosbeduínospartiram em outra expedição. Passaram-se várias semanas. Em julho um dos sírios apareceu paradizeraometropolitaqueeleeosbeduínoslhelevariamosmanuscritos.Ometropolitaesperou-osamanhãinteira.Porfimfoialmoçar,eentãoosvisitanteschegaram.Foramdespachadosnaporta,eopadre que se recusou a recebê-los foi dizer aometropolita que uns árabes demá catadura tinhamestadoalicomunsrolosvelhosesujoseque,vendoqueoidiomadostextosnãoerasiríacoesimhebraico,mandara-osaumaescolajudaica.Ometropolitaimediatamenteentrouemcontatocomosírioquelevaraosbeduínosatéomosteiroesoubequeesteshaviammostradoospergaminhosaumcomerciante judeu que encontraram na porta de Jafa. Esse comerciante ofereceu-lhes o queconsideraramumbompreço,masexplicouquedeviamirreceberodinheiroemseuescritório,na

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estradadeJafa,naCidadeNovaepredominantementejudia.Noverãode1947,Jerusalémjáeraumacidadenitidamentedivididaentreárabesejudeus.Em

seuesforçoparaganharasimpatiadosárabesemantê-loslongedaRússia,os inglesesimpediramque refugiados da Europa desembarcassem em portos palestinos, o que crioumuitas dificuldadespara os emigrantes e chegoumesmo a causar grande número demortes. Em represália os judeusorganizaramumgrupo terrorista,quematousoldados ingleses, eos inglesesandaramenforcandoessesterroristas.Osjudeusreagiramcombombaseminas,deixandoumlaçodecordanocenáriodecada assassinato. Os ingleses raptaram então um garoto de dezesseis anos que seria membro doGrupoStern.Osjudeusacharamqueomeninofoitorturadoemorto:nuncaseencontrouseucorpo;eos terroristasexplodiramocárcereondeos ingleses trancafiavamprisioneirospolíticos.Algunsdoshomensquefizeramissoforamcapturadoseenforcados,eosjudeusenforcaramdoissargentosingleses e a umdos corpos ataramuma bomba.Na época emque osmanuscritos forampostos àvenda os setores judaicos de Jerusalém se encontravam sob lei marcial; por conseguinte ocomerciante sírio que negociou os rolos com o mosteiro não teve dificuldade em convencer osbeduínosdequeocomerciantejudeuestavaplanejandoumaarmadilhaparaeles—que,umaveznaestradade Jafa, seriamdespojadosde suapropriedadee aprisionados; emencionoua leipalestinasegundo a qual as antiguidades descobertas deviam ser imediatamente entregues ao governo. Atépersuadiuosbeduínosadeixaremcincomanuscritosemsualojaeporfimoslevaremaomosteiro,onde ometropolita os comprou, juntamente com alguns fragmentos, por um preço que nunca foidivulgado,masque,segundosediz,foidaordemdecinquentalibras.

ÀsvezessecriticaometropolitaSamuelpelaformaardilosacomquelidoucomosmanuscritosdomarMorto;entretanto, seusoudeesperteza,acreditoque foiapenasnocuidadodenãorevelarsuasverdadeirasintenções,comoébastantecomumnoOrienteMédio—umaexigênciarotineiraemínimanumlugarondetodasastransaçõescomerciaissebaseiamnaregradabarganha.Naverdadeeudiria que, longede criar problemapara simesmo sendo esperto demais, ometropolita acabouprejudicadopelainocência.Desconhecendoomundoocidental,demoroumuito,comoveremosmaisadiante,parabeneficiar-seemalgumnívelproporcionalaovalordesuaaquisiçãoextraordinária;emerece um crédito enorme; só se pode admirar— sobretudo levando-se em conta o capítulo deinépciaquesesegue—seubomsensoemreconhecerquemanuscritosatéentãodesconhecidosdaregiãoinabitadadomarMortopoderiamrevelar-seinteressantesesuafidelidadeaessaconvicção,apesardoesmorecimento.Comsuaabundantebarbanegra,seusgrandesolhoscastanhos,suamitradecetimpreto,seusmantosnegrosdemangasimensas,aenormecruzdeouroeoíconedaVirgemquelhependemdascorrentesnopescoço,ometropolita—comumacorpulênciaeumapalidezquenãosãomuitoclericais—éumbelohomem,quelembrariaumbaixo-relevoassíriosetivesseumaexpressão ferozao invésdegentil.Possuiumaspectodigno, simplesecalmo, talvezcomalgodeinfantil.Nãoéum“intelectual”,nãonutrenenhuminteresseculturalespecífico,masdesempenhacomzeloseupapeldesacerdotedaIgreja jacobitasíria,queémuitoanterioràgregaesevangloriadedescenderdiretamentedaSantaSédeAntioquiafundadaporPedroedeterdominadooutroratodaacristandade oriental. É uma das cinco igrejas permanentemente representadas na igreja do SantoSepulcro, e diz-sequeomosteirodeSãoMarcos se ergueno local da casaondeocorreu aSantaCeia.

Aprimeiracoisaquefezaocomprarosmanuscritoshebraicosfoimandarumdeseuspadres,acompanhadodomercador,verificarahistóriadacaverna.Encontraramacavernanolugarindicadopelos beduínos e em seu interior viram os jarros, fragmentos dos invólucros de linho e dosmanuscritos. Passaram a noite ali, sufocando com o calor horrível— era a segunda semana deagosto—e,comotodasassuasprovisõeseramalgunsmelões,resolveramnãoficarmaistemponacaverna.Nemconseguiramlevarumdosgrandesjarrosdeargila,comoaprincípioesperavam.(Os

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beduínos, contudo, apossaram-se de dois, que usavam para carregar água.) O problema agoraconsistia em descobrir o que eram os manuscritos e que idade tinham. O metropolita Samuelconsultouumsírioseuconhecidoque trabalhavanoDepartamentoPalestinodeAntiguidadeseumpadrefrancêsdaÉcoleBibliquedominicana,umcentrodepesquisaarqueológicanaVelhaJerusalém.

Quemestádo ladode foranãopodedeixardese impressionarcoma frequente relutânciadomundoeruditoemreconhecerdescobertasimportantes.Referindo-seaofracassodosestudiososemadmitiraantiguidadedosmanuscritosdomarMorto,oprofessorW.F.Albright,daJohnsHopkins,assinalouque

na época, personalidades ilustres relegaram ao reino da ficção a descoberta de Pompeia eHerculano; que, iniciadas as escavações de Hissarlik [a antiga Troia], alguns arqueólogos emuitos filólogos rejeitaram durante décadas os resultados estratigráficos de Schliemann eDörpfeld; e que só bem depois de terminado o século xix os informados estudiosos daAntiguidadeaceitaramadecifraçãodaescritacuneiforme.

Éóbvioquehouvefraudeseimposturas:osfalsoslivrosdeTitoLívio,osuplementodePetrônio;eoestudioso tem de ficar atento para não engolir inocentemente esses produtos. Entretanto aqui atuatambém o instinto natural de simplificar os problemas do conhecimento estabelecendo um campofechado.Aspessoasgostamdeacharqueexaminaramtodososdados.Dominaramsuadisciplinaetrabalharam suas teorias; e é um transtorno — sobretudo para quem sofre de limitações daimaginação—serobrigadoalidarcommaterialnovo.Emalgunslugaresaindahádúvidassobreaautenticidade do grande poema medieval russo, A expedição de Igor. O único manuscrito dessepoema foi descoberto no século xviii, e o original, embora tivesse sido copiado, desapareceu noincêndiodeMoscouem1812.Aoposiçãoaessetextobaseia-senoargumentodequenãoexistenadaparecidocomele,eoargumentoafavordesuaautenticidadefoiformuladoporPushkin,aodeclararquenãosesabiadenenhumescritorrussodoséculoxviiiquetivessetalentoeculturasuficientesparacometerumafraudetãobrilhante.Muitomaisfortes,contraeafavor,sãoosargumentosrelativosaos pergaminhos.Muito mais improvável, por um lado, é a descoberta dos manuscritos bíblicosanterioresaosquejáseconheciam.Eaindamaisimprovávelquealguémtivessetentadocometerumafraudetãocomplicada.

ParacompreenderaimportânciadosmanuscritosdomarMortoeaobstinadaincredulidadedosestudiosos deve-se notar que, exceto um ou dois fragmentos, nosso texto mais antigo da Bíbliahebraica— o chamado textomassorético—, embora tivesse sido datado do século ii a.C., não éanterioraoséculoixd.C.;equeantesdissonossasprincipaisversõesdasEscriturassãoadosSetentadeAlexandria,atraduçãoparaogregoquesejulgatercomeçadonoséculoiiia.C.econcluídasóduzentos anos depois, e a Vulgata de são Jerônimo, elaborada no século iv. Todo o nossoconhecimentoliteráriodomundobíblicobaseou-senesseantigotextocristãoenessasduastraduçõesposteriores, bem como num Pentateuco samaritano, em alguns excertos de versões aramaicasprimitivas enas citaçõesgregasde Justino, oMártir, em seudiálogo como rabinoTrífon.Todasessas fontes foram muito discutidas, pois diferem entre si de maneiras que parecem indicar quesurgiram de outras versões hebraicas que não o texto massorético. No entanto é preciso algumacoragemparaencararnovosmateriaishebraicoscujaexistêncianemseimaginava.“Emnenhumdosepisódios semelhantes dos últimos dois séculos [...]”, continua o professor Albright, “houve tãoampla recusa por parte dos estudiosos em aceitarem evidências definitivas.” Os primeirosespecialistasconsultadospelometropolitaSamuelnãooencorajaram.Naépocaosdoisarqueólogosmais competentes naquela parte do globo eram G. Lankester Harding, do Departamento deAntiguidades da Transjordânia, e o padreRoland deVaux, da École Biblique; porém o último se

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encontravaentãoemParis, eaoprimeiroometropolitanão teveacesso.Aspessoasqueprocurounessas instituições disseram-lhe que a coisa era inédita: os manuscritos não podiam ser antigos.Parecequeninguémse esforçoupara lê-los atéqueometropolitaosmostrou aopadre J. vanderPloeg,umeruditoholandêsquevisitavaaÉcoleBibliqueeidentificouumdosroloscomodeIsaías;contudooseruditosdaescolaodissuadiramdeseaprofundarnoassunto.

OmetropolitalevouospergaminhosaopatriarcasíriodeAntioquia,quelhesatribuiunãomaisque três séculos de idade, porém sugeriu ao prelado que consultasse o professor de hebraico daAmericanUniversityemBeirute.OmetropolitafoiaBeirute,masdescobriuqueoprofessorestavadeférias.Decidiuentãoestudaroproblemasozinhoe,devoltaaJerusalém,pediuaseuamigodoDepartamento de Antiguidades que lhe fornecesse alguns livros sobre o alfabeto hebraico. Oarqueólogosíriogarantiu-lhequeeraperdadetempo,queosrolos“nãovaliamumxelim”;todavialevouaomosteiroumjudeudaCidadeNova,ToviaWechsler,especialistaemhebraico.Segundoometropolita,essavisitadeWechslerocorreuemfinsdesetembro.EntretantoWechslerselembradeter ido ao mosteiro em julho, e sua afirmação contradiz o que mais tarde se soube sobre osmanuscritos. Ele também não acreditou que fossem tão antigos quanto o metropolita esperava.Wechslerapontouparaamesaondeestavamospergaminhos—quantoa issoosrelatosdeambosconcordam—edeclarou:“Seessamesafosseumacaixaeosenhoraenchessecomnotasdelibras,mesmoassimnãoalcançariaovalordosmanuscritos,setivessemdefato2milanosdeidade,comoo senhor diz”. Não acreditava que haviam sido encontrados numa caverna junto ao mar Morto.Examinou um deles e notou que as correções escritas nasmargens e os acréscimos no final dascolunas,ondeotextoseapagava,foramfeitoscomumatintaquepelaclarezacontrastavacomatintadocopistaoriginaleapartirdissodeduziuqueorolo“foiusadoporumacomunidademuitopobreduranteumtempoconsideráveleabandonadorecentemente”.Daíconcluiuqueosmanuscritosforamroubadosdeumasinagogapalestinanaépocadostumultosantijudaicosprovocadospelosárabesem1929.Reconheceu um texto de Isaías e constatou que diferia ligeiramente do textomassorético.Osegundodocumentoqueexaminouera,aseuver,umrolodeHaftaroth—asaber,umaseleçãodaslições dos Profetas lidas nas sinagogas. Todavia não se encontrou nenhum Haftaroth entre osmanuscritosconhecidosdomarMorto,eometropolitadizqueoqueWechslerdevetertomadoporumrolodeHaftarotheraummanuscritodaTorá(oPentateuco),quelhemostrounamesmavisitaeque não tinha nada a ver com os pergaminhos do mar Morto. Entre estes, como se descobriuposteriormente,haviatrêslivrosnãobíblicosquenãoseconheciam,eoutrospensamqueWechslerdeve ter tomadoumdelesporumrolodesinagogamoderno.Wechslerrebateessa teoria,dizendoquelhelembraa“históriadohomemquecontoutervistoumcameloedepoisdedescreveroanimalouviu uma pergunta da plateia: ‘Você não teria visto um gato?’”.O incidente permanece obscuro.QuandoaAmericanSchoolofOrientalResearchexaminouoassunto,oúnicomanuscritohebraicoqueospesquisadoresencontraramnabibliotecadomosteirofoiumaTorárelativamentemoderna.

“Desnecessárioédizerquefiqueidesanimado”,escreveometropolita,“masaindaachavaqueestavam errados.” A princípio podemos nos surpreender com o fato de um homem de tamanhaimportância em Jerusalém— o equivalente a um arcebispo ocidental— ter demorado tanto paraprocurar as autoridades competentes, que estavam bem ali àmão; todavia, em Jerusalém, a gentemuitas vezes se surpreende com a falta de conhecimento e de interesse demonstrada pelos váriosgruposemrelaçãoaosassuntosdosoutros.Nadiscussãodosmanuscritosposteriormentepublicada,ometropolitaSamuelàsvezesémencionadocomo“opatriarca”;e,conversandocomeruditosnaCidadeNova,numavisitarecenteaIsrael,fiqueiperplexocomsuavaguezaemrelaçãoaele;algunsacreditavamqueaindaestavanomosteiro,emboraSamuelotivessedeixadoem1948.Veremosqueem seus esforços para lidar com os pergaminhos o metropolita quase sempre recorreu a outrossírios.Parece quenoOrienteMédio a Igreja de cadaumé seumundo social e pouco se sabedas

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outras.MesmonosEstadosUnidososfiéisdasquatrodiferentesIgrejassíriaspoucosemisturam;eao cruzar qualquer fronteira no OrienteMédio às vezes um americano fica perplexo quando lheperguntam sua “nacionalidade”, pois já declarou sua cidadania americana: “nacionalidade”,explicam-lhe, quer dizer “religião”. De qualquer modo, parece que foi por mero acaso que ometropolitaSamuelfinalmenteentrouemcontatocomumainstituiçãoquepodiaajudá-lo,emesmoassimocontatonãosurtiuresultados.Acontecequeummédicojudeufoiatéomosteiroseinformarsobre o aluguel de um edifício que pertencia à propriedade da igreja.Ometropolita aproveitou aoportunidade para lhe falar sobre os manuscritos. O visitante tomou a atitude óbvia: chamou opresidente Magnes da Universidade Hebraica. Poucas semanas depois o dr. Magnes enviou doishomens da biblioteca da universidade. Estes disseram que teriam de consultar uma autoridade noassuntoepediramparafotografaralgumascolunasdeumdosmanuscritos.Ometropolitaconsentiu,porémosbibliotecáriosjamaisvoltaram.Namesmatarde,tambémchamadopelomédico,umjudeunegociantedeantiguidadeschegouaomosteiro.AconselhouremeterospergaminhosadeterminadoscomerciantesdaEuropaedosEstadosUnidos.“Recusei-meafazerisso”,contaSamuel.

Não se sabe ao certo se os homens da biblioteca não voltaram ao mosteiro, conformeprometeram,emfunçãodasituaçãoconturbadaoudaausênciadeE.L.Sukenik,arqueólogochefedauniversidade.DequalquermaneiraoprofessorSukenikretornouemfinsdenovembroeatravésdeum judeu negociante de antiguidades (não o mesmo que estivera no mosteiro) soube que algunsmanuscritosdeumacaverna juntoaomarMortoestavamempoderdeumcomerciantedeBelém.Tratava-sedocompradordocontrabandoque foraoprimeiro aoqualosbeduínosofereceramosrolos.Ele descobriu que tinhamalgumvalor e adquirira os pergaminhos restantes.Esses eramosoutrostrêsrolosqueometropolitaSamuelnãopôdecomprar.

Sukenikregistrouemseudiáriooqueseseguiu:

25 de novembro de 1947: Hoje encontrei X [negociante de antiguidades]. Descobriu-se numjarro um livro hebraico. Ele me mostrou um fragmento escrito em pergaminho.Genizah?![Genizahéumasaladasinagogaondeseguardamvelhosmanuscritosabandonados.Todososmanuscritosdasinagogasãosagradosenãosepodedestruí-los.SukenikachouqueacavernadomarMortoforausadaparaessefim.]27denovembrode1947:Vina lojadeX[onegociante]quatropeçasdecourocomtextoemhebraico.Aescritamepareceantiga,muito semelhanteàda inscriçãodeAzarias.Épossível?Ele diz que também há jarros. Examinei e encontrei um bom hebraico bíblico, um textodesconhecidoparamim.EledizqueumbeduínodatriboTa’âmirehlhelevouospergaminhos.29denovembrode1947:HojedemanhãestivenalojadeX.Torneiaexaminarospergaminhos,queinspiramestranhospensamentos.ÀtardefuicomXaBelém.Viosjarrosetivedificuldadeemmepronunciarquantoasuadata.Levei-oscomigo.Hojeànoitesoubemosqueapropostadepartilhafoiaceitaporumamaioriademaisdedoisterços.Parabéns!

Tratava-se da partilha da Palestina, votada nesse dia pelasNaçõesUnidas.O clima eramuitotenso.Sukenikperguntouaseufilho,umoficialdoHaganah,ogrupoclandestinodedefesajudaica,seasestradaseramsegurasobastanteparairaBelém.“Comomilitar”,dizojovemSukenik(hojegeneralYigaelYadin),“respondiquenãodeviarealizaraviagem;comoarqueólogo,respondiquedeviair;comoseufilho—quetinhadeguardarminhaopiniãoparamim.”OpaifoiaBelémelevounavoltatodoosegundolotederolosàexceçãodeum—descobriu-sedepoisqueconsistiadetrêsmanuscritos(umdelesemtrêspeças)eumpunhadodefragmentos.Nodiaseguinteexplodiramashostilidadesabertaseviolentas.OsárabestentaramisolarosjudeuscortandosuascomunicaçõescomTelAviv:emboscaramônibusdejudeus,queimaram-nosedispararamcontraeles.

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OdiáriodeSukenikprossegue:

1odedezembrode1947:Xdizquenãodevemosnosvernofuturopróximoporcausadoataquedosárabes,anunciadoparaostrêsdiasseguintes.

Liumpoucomaisdos“pergaminhos”.Receioirlongedemaisaorefletirsobreeles.EstapodeserumadasmaioresdescobertasjáfeitasnaPalestina,aqualnuncaesperávamos.

5dedezembrode1947:Maismatança.Hojeoataqueterminou,porémaviolêncianão.Adescobertanãomedásossego.Estouansiosoparasaberoqueresultarádissotudo.Podeserqueavizinhançapossuamuitascoisasdessetipo.Quemsabequesurpresasaindanosaguardam!

6dedezembrode1947:Énoite.Estouaquisentado,pensandonosmanuscritos.Quandovouveroutros?Paciência,paciência.

21dedezembrode1947:Diasdemedo.Entrei emcontato comX.Vamosnos encontraramanhãaomeio-diapertodoportão[daZonadeSegurança].

Fuilá.Compreioutroroloempéssimascondições.13dejaneirode1948:Fuiaocorreiocentral(pertodafronteira).Xapareceu.Prometeu-me

contatarBelém.Aopartir,rezeiabênçãodeHagomel[umaoraçãoquesedizaoescapardeumperigomortal].

31 de dezembro de 1948: Um ano histórico para nosso povo chegou ao fim. Um anodoloroso — Matti morreu, que Deus o tenha! [o filho caçula do autor, piloto de combatedesaparecidoemação].Nãofosseagenizah,oanoteriasidoinsuportávelparamim.Adescobertadosmanuscritosempolgou-oatalpontoquequaseofezesqueceraguerra.Numa

épocaemquetodasastardes,entreastrêseascincohoras,aLegiãoÁrabebombardeavaaAgênciaJudaicanomeiodaNovaJerusalém,elenãohesitouemconvocarumaentrevistacoletivanesselocale nesse horário perigoso para transmitir à imprensa uma notícia importante. Comparecer a talentrevistaexigianervosdeaço.Umcorrespondenteamericanodesmaiounaruaaodirigir-separaláetevedesercarregadopeloscolegas.OsrepórteresficaramestupefatosquandoSukenik,quepareciaimperturbável ante as explosões, anunciou a descoberta dos pergaminhos do mar Morto: osprimeiros manuscritos hebraicos antigos conhecidos, à exceção de alguns poucos fragmentosencontradosnopassado.Achavaquedatavamdoséculoiouiia.C.OuviramonomedeIsaíasealgosobre umaobra até então inédita queSukenik intitulou de “AGuerra dosFilhos daLuz contra osFilhosdasTrevas”.Nomomentoemquediziaissoumabombaexplodiu.Aprincípioosrepórteresseirritaram por terem sido chamados a arriscar a própria pele por uns manuscritos velhos, masacabaramficandoimpressionadoscomoentusiasmocontagiantedoprofessor.

Entretanto só em fevereiro de 1948 o metropolita Samuel conseguiu entrar em contato comalguémquepudesse lhe falar sobre osmanuscritos.Umde seusmonges, o irmãoButrosSowmy,lembrouquedezanosantes,quandotiveraaoportunidadedevisitaraAmericanSchoolofOrientalResearch, forabemrecebidoesugeriuprocuraropessoaldaescola.Foioquese fez,eem18defevereiroo irmãoButrosSowmymostrouos rolosaoentãodiretor interinodr.JohnC.Trever.Odiretortitular,dr.MillarBurrows,daYaleDivinitySchool,encontrava--senoIraque.Maisjovememenosexperiente,odr.Trevernãoconseguiucalculardeimediatoaidadedosmanuscritos,comooprofessorSukenikavaliara;todavia,quandocomeçouadesconfiardoquesetratava,tambémficouempolgado.EscreveunaBiblicalArchaeologist:

Lembrando-me da caixa de diapositivos emminha escrivaninha, sobreWhat lies back of ourEnglishBible?[OqueexisteportrásdenossaBíbliainglesa?],percorri-osàprocuradaseçãoreferente a manuscritos hebraicos primitivos. Um olhar para a imagem do British Museum

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Codexdoséculo ixassegurou-mequeaquelespergaminhoserammuitomaisantigos.Oslideseguinte era do Papiro de Nash, um pequeno fragmento que se encontra na biblioteca dauniversidadeemCambridgeecontémoShemaeosDezMandamentos.

OchamadoPapirodeNash,queuminglêscomproudeumnegocianteegípciohácercadecinquentaanos, contémumaescritura arcaicaquenaquela épocapraticamentenão se conhecia e era tidoemgeralcomoomaisantigomanuscritohebraicoexistente.Váriasautoridadessituaramseusurgimentoentreoiníciodoséculoiia.C.eofinaldoséculoid.C.Assim,eranaturalqueodr.Trevertambémficasse empolgado ao constatar que “a semelhança entre a escritura do papiro e a dos rolos eraextraordinária”.Entretanto,acrescenta,“aimagemerapequenademaisparaserdemaiorserventia”.Nãotinhaumamáquinafotográficaàmãoe,assim,copiouumtrechodeumdosmanuscritosenofim o identificou como uma passagem de Isaías. Mais tarde convenceu o metropolita a deixá-lofotografar todos os pergaminhos, argumentando que seu valor poderia aumentarmuito se fossempublicadoseseseestimulasseointeresseporeles.Essadecisão,comoveremosadiante,foifelizsobalgunsaspectoseinfelizsoboutros.

Masdeimediatonadasepodiafazer.DuranteabatalhapelaconquistadeJerusalémcortara-seaeletricidade, e não se sabia se seria possível ter luz suficiente para fotografar os manuscritos.Enquantoesperavam,odr.Trevereseucolega,odr.WilliamH.Bronwlee,olharamcontralampiõesdequerosenetudoqueencontraramnabibliotecaquepudesse lançaralgumaluzsobreoPapirodeNash. À meia-noite concluíram com bastante segurança que o novo manuscrito de Isaías era tãoantigo quanto o Papiro, se não anterior. “O sono chegou com maior dificuldade”, escreve o dr.Trever. “O novo dado não me saía da cabeça. Tudo isso parecia incrível. Como podíamos estarcertos?”Namanhãseguinteaenergiaelétricavoltou;mashavia54colunassódeIsaías,eaomeio-diaelesestavamlongede terminaro trabalho,de formaqueossíriosdomosteiro ficaramparaoalmoço.“Pormuitotempolembraremoscomcarinhoahoradecamaradagemaoredordamesa”,dizTrever, “pois nos fez sentir a cristandade ecumênica e nos uniu mais em nossa amizade ecompreensão dos sírios.” Naturalmente o metropolita exultou ao ver justificada sua crença naantiguidadedospergaminhos.Nãoquerendorevelaraninguémolocaldadescoberta,primeirodisseaopessoaldaescolaqueosroloserammanuscritosnãocatalogadosqueapareceramnabibliotecadomosteiro;depois,quando lheganharamaconfiança, contouahistória toda.Entãoodr.Trever lheexplicouquepelasleisdaPalestinatodadescobertadessetipodeviaserimediatamentenoticiada,eometropolita assegurou-lhes que no futuro cooperaria com o Departamento de Antiguidades e aescola.Após o almoço retomaram sua tarefa.Algumas partes dos rolos estavam empedaços, quetiveramdemontar.Fixaram-noscomfitaadesiva,quelogoacabou.Conseguiramconsertarsódoispergaminhosquando,àtarde,ossíriostiveramdevoltarparaomosteiro,porémometropolitalhesdeixoumaisdoisrolos,queserevelaramduaspartesdeummesmodocumento.Orolomenoreratãoapertadoqueviramaliumproblemaaserestudadocuidadosamente,eometropolitaolevouconsigo.

Odr.TreverimediatamenteenvioucópiasdomanuscritodeIsaíasparaodr.W.F.Albright,daJohnsHopkins,umdosmaiscompetentesarqueólogosdaBíbliavivosnaépocaeumaautoridadenotocante ao Papiro de Nash, o qual estudou durante anos. Em 15 demarço chegou a resposta. Nomesmodiaemquereceberaacartaodr.Albrightescreveu:

Minhas mais entusiásticas congratulações pela maior descoberta de manuscrito da épocamoderna! Não tenho dúvida de que a escritura é mais arcaica que a do Papiro de Nash [...]Situariaadataemtornodoano100a.C. [...]Queachado inacreditável!Efelizmentenãopodehaveramenordúvidasobreaautenticidadedomanuscrito.

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Entrementes,massódepoisdecomprarostrêsmanuscritos,oprofessorSukenikfoiinformadoporumdosbibliotecáriosdauniversidadequeestiveramnomosteirodaexistênciadosoutroscincorolos.Noentanto,aosaberdointeressedeSukenik,outrocomerciantesírioparecequeseofereceupara vendê-los ao professor, sem o conhecimento do metropolita. Em fins de fevereiro foi aomonastérioepediupermissãoparamostrarosmanuscritosaSukenik.Ometropolitaentregou-lheasfotos,porémo intermediário reclamouqueerampequenasdemais.Numaépocaemquea lutaeraferoz e a eletricidade novamente fora cortada, Sukenik encontrou o comerciante sírio à noite noterritórioneutrodaacmeexaminouosmanuscritosà luzdeuma lanterna.Convenceuohomemadeixá-lolevarosroloseficoucomelesdoisdias,duranteosquaiscopiouváriascolunasdeIsaías,quepublicou,para irritaçãodoproprietário. (EntreosdocumentosqueSukenikadquiriuhaviaumsegundomanuscritode Isaías,porémnumestadomuito fragmentário.)Oprofessorestavaansiosoparacompraresseoutrolotedepergaminhos,masometropolitaSamueljáhaviafirmadoumacordocom os americanos da escola, comprometendo-se a deixá-los publicar os textos que haviamfotografado desde que o fizessem no prazo de três anos. Em troca receberia 50% dos lucros dapublicação.

Osamericanosdaescolaqueriammuitovisitaracaverna,oqueera impossívelemfunçãodaguerra.Omandato internacional expiraria àmeia-noite de 14 demaio, quando judeus e árabes seengalfinhariamsozinhos;paraosestudiososoproblemamaisurgenteerasairdopaísatempo.Antesque issoocorresse,umdiaometropolita, semavisarnada,mandouumtáxiescoltadoporguarda-costas ir buscar o dr. Trever e conduzi-lo ao mosteiro. O americano ficou apreensivo, mastranquilizou--se tão logo chegou a São Marcos e viu seu anfitrião no alto da escada,cumprimentando-ocomumsorriso.

Elemelevouaseugabineteeentregou-meumafolhadepapeldobrada.Dentroestavaumdosmanuscritos!Reconheci-odeimediatocomoumapartedorolodeHabacuc,poisacordocouroemqueestavaanotado,aescritura,otamanhoeaformacoincidiam.Asbordasestavamcomidaspelosvermes,bemcomooiníciodotexto,eodocumentopareciaigualàpartequefaltavadaprimeiracoluna,àdireita, cujaausência tantodecepcionaraodr.Brownleequandooestudou.Aliestavaametadedeumacolunaanterior,provandoqueoriginalmenteomanuscritoseabriacomnomínimomais uma coluna. [...]Desnecessário é dizer que não perdi tempo e tratei defotografartambémessenovofragmento.

Odr.Treverficouaindamaisfelizquando“ometropolitameinformouqueoirmãoButrospartiranaquelamanhãcomtodososmanuscritosafimdeguardá-losemlugarseguro,foradaPalestina”.Foraissoqueosamericanoshaviamrecomendado.Poucosdiasdepoiselestambémdeixaramopaís.

Omandato internacional terminou.Os ingleses simplesmente foram embora. Recusaram-se aadmitir a transferência de seu controle para qualquer outro organismo ou a legalização de umamilícia local. Deixavam judeus e árabes se matando e esperavam que os sete Estados árabespreparadosparainvestircontraapequenacolôniajudaicaadestruíssemoubanissem.SobocomandodobrigadeiroGlubb,quepertenceraaoExércitobritânicoeagorafaziapartedaLegiãoÁrabe,osárabes imediatamente sepuseramabombardearoantigobairro judeu, isoladonaCidadeVelha.Omosteiro se situava nas proximidades e foi atingido pelos dois lados. O irmão Butros Sowmymorreu,eomonastériosofreudanosqueometropolitacalculouem30millibras.EntretantoSamuelsópartiudeJerusalémnooutono,quandooconflitoaindanãoseencerrara.Depoisdepassaralgumtempo na Transjordânia e na Síria, embarcou com destino à América, aonde chegou no final dejaneirode1949,levandoosmanuscritos.Odr.Burrows,quehaviavoltadoaYale,convencera-oairpara os Estados Unidos. A American School providenciara a publicação dos manuscritos, e o

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metropolita esperava que isso o ajudasse a vender os originais.Mas aqui devemos deixar de ladosuasaventurascomospergaminhos,poisumnovocapítuloseinicia.

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2.AORDEMDOSESSÊNIOS

Quandoaguerraacaboueaépocadoanosetornoufavorável—fevereirode1949—,opadreRoland deVaux, daÉcoleBiblique, eG.LankesterHarding, doDepartamento deAntiguidades daatual Jordânia, não Transjordânia, trataram de ir logo visitar a caverna onde se encontraram ospergaminhos. Trabalharam ali quase ummês e reunirammuitos fragmentosmenores, bem comoumaboaquantidadedecacosdecerâmica.Acharamqueamaiorpartedesteseramhelenísticos,mashavia tambémpedaços de uma lâmpada e de umapanela romanas, os quais posteriormente deramorigemaumateoria—paraaqualnãoexistemprovasreais—dequeforamdeixadosnacavernaporOrígenes,umdosprimeirospadresdaIgrejaeeditordostextosbíblicos,quenaprimeirametadedoséculoiiifugiuparaaPalestinaedizquepertodeJericóencontroumanuscritosbíblicoscontidosnumjarro.Acerâmicapredominantementegregapareciamostrarqueosmanuscritosnãopodiamserposterioresaoséculoid.C.Peloscacosdejarroscalcularamqueacavernadeviaterabrigadoumacoleçãodenomínimoduzentosrolos.

Aosaberqueosmanuscritosdascavernaseramvaliosos,osbeduínospuseram-seavasculharoutras cavernas e no final de 1951 apareceram na École Biblique com punhados de papiros epergaminhosdespedaçadosqueobviamente eramos remanescentesde rolos semelhantes.DeVauximediatamentechamouHardingelhedissequedeviamseencarregardabusca.DesceramparaomarMorto(em21dejaneirode1952),comochefedepolíciadeBelémedoissoldadosdaLegiãoÁrabe,e, guiados pelos beduínos, dirigiram-se a um grupo de quatro cavernas, situadas cerca de 24quilômetros ao sul da primeira caverna, bem no alto dos íngremes rochedos. Com sua chegada,outrosbeduínossaíramaosbandosdessesburacos.Asautoridadesmandaramalgunspoucosparaacadeia, com sentenças brandas, e o Departamento de Antiguidades empregou os demais paraajudaremnabusca.AgoraHardingeDeVauxestavamoficialmenteencarregadosdeexplorar todaessaregião.Haviaquatrocavernas—enormes,comuns45metrosdecomprimentoeuns4,5metrosde altura e largura. Foram habitadas em vários períodos. Os vestígios mais antigos da presençahumanaremontavamaoquartomilênioanterioràeracristã.HaviaobjetosdaIdadedoBronzeedaIdade do Ferro; e muitas relíquias do período romano, todo o equipamento necessário a umamoradia: lâmpadas,picaretas,dardos,pregos, agulhas,pentes,botões, colheres, tigelas epratosdemadeira,umcinzel,umafoiceeumacolherdepedreiro.Haviaaindavintemoedasromanas,datadasdeNeroaAdriano.Novedelaspertenciamàépoca—132-135d.C.—dasegundarevoltadosjudeuscontraadominação romana.Haviamuitos fragmentosdemanuscritos e cacosdecerâmicausadosparaescrever:emgrego,latim,hebraicoearamaico.Haviadiversascartasemhebraico—umadelassurpreendente:umanotaescritaevidentementenomeiodaguerrapelo líder judeuBar-Kochba,naqual repreendeumdeseuscapitães.Falados“galileus”,semdeixarclaroaquemserefereouquepapel desempenhavam. (Se esses galileus são cristãos, sabemos que se recusaram a apoiar Bar-Kochbaporsemanter leaisaJesus,quehaviadito“Meureinonãoédestemundo”.)ApartirdissotudoopadreDeVauxconcluiuqueacavernafoiumbaluartedaresistênciajudaicaeacabousendoatacada pelos romanos. Em suas ruínas encontraram-se fragmentos de rolos da Torá que dão aimpressãodequeoinimigoosrasgou.

Dentre os fragmentos de manuscritos dessas e de outras cavernas do sul pelo menos umdocumento importante já veio à luz. Sabemos que os judeus do século ii — época em que a

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cristandadeconquistou seuprimeirogrande sucesso— irritaram-semuito comoscristãosporqueexploravamaVersãodosSetentaparamostrar,atravésdecitaçõesdessetexto,queoadventodeJesuscomooMessias fora predito pelosProfetas e que eles, os judeus, tinhamumaversão criada parainvalidar essa interpretação, aproximando mais o texto grego, como diziam, do significado dohebraicooficial.EsseproblemaélongamentediscutidonumtextodeJustino,oMártir,oconvertidoeapologistacristãodoséculoiid.C.—umdiálogoqueteriaocorridoentreoMártireorabinoTrífon.Justinocitaváriaspassagensdessatraduçãojudaicaedeclaraque,comparadasàVersãodosSetenta,sãobanaise inadequadas.Atéhojenãoseconheceessa traduçãojudaica;entretanto,parasortedosestudiosos,algunstrechosdaspassagensdosProfetasqueJustinocitouparaTrífonfiguravamentreas que foram encontradas nas cavernas. Tal descoberta se deve ao padreD.Barthélemy, da ÉcoleBibliquedeJerusalém,queinvestigoutambémoutrascitaçõesdeumatraduçãogregaquenãocondizcomaVersãodosSetentaequeevidentementefoiobradeumhebreu.

Contudo, tais documentos, apesar demuito interessantes, não têm relação com nosso assuntoprincipalnem,aparentemente,comasdescobertasdeQumran(éassimqueosárabeschamamouádiou ravina emcujasproximidades se encontraramosprimeiros rolos).Estes receberiamagoraumacréscimosensacional.Opadrefrancêseofuncionárioinglêsnãohaviamterminadodevasculharascavernasquandolheslevaramnovosfragmentosdemanuscritosdescobertosnumacavernapróximaà primeira que fora explorada. Puseram-se então a examinar sistematicamente todas as cavernasexistentes nos arredores de Qumran. Entraram em 267 e em 37 encontraram cerâmica e outrosvestígiosdeocupaçãohumana.Em25acerâmicaeraidênticaaosjarrosdacavernaoriginal.Muitasdelas continham rolos que, sem a proteção dos jarros, haviam se desintegrado, com frequênciaestando enterrados sob várias camadas de pó. Os pesquisadores reuniram dezenas demilhares defragmentos.Cadavezmaisseevidenciavaquealiseesconderaoutroraumabiblioteca,aqualparecequeincluíraquasetodososlivrosdaBíblia,certonúmerodeobrasapócrifasealiteraturadeumaprimitivaseitareligiosa.Tãologoforamlidososprimeirosrolos,pensou-senaseitadosessênios—pormotivosquepassareiaexplicar.Antesdeencontraressesnovosmanuscritos,HardingeopadreDeVauxjáhaviamtidoaideiadeinvestigarumavelharuínaabandonadapertodaprimeiracavernaeemnovembroedezembrode1951começaramaescavá-la.Tal ruína se achavaenterradanapraiaentreospenhascoseomar,umpoucoaosuldacaverna,esóapontadeumapedraseprojetavadosolo.OsárabesachamavamdeQirbetQumran(Qirbetsignificaruína).Em1851umviajantefrancêsachou que ali estava um remanescente das ruínas da Gomorra bíblica. Arqueólogos posterioresjulgaramquese tratavadeumpequeno forte romano.Atéessaépocaa ruínanuncaatraiugrandesatenções; agora foi quase inteiramente escavada por Harding e pelo padre De Vaux. O que elesdesenterraraméespantoso:umantiquíssimoedifíciodepedra,contendodevinteatrintaaposentos,trezecisternasegrandepartedeseuequipamentointacta.Aumlado,entreoedifícioeomar,existeumcemitériocommaisdemiltúmulos.Aconstruçãotemoaspectodeummosteiro,eumasériedeelementosnãoapenassugerecomoprovademaneirapraticamenteinquestionávelquesetratadeumadasmoradas—senãoasede—doquenopassadoeraconhecidocomoaseitadosessênios.Antesdeprosseguirmos,entretanto,cabe-nosexplicarquemeramosessênios.

Graçasatrêsescritoresdoséculoi—Plínio,oVelho;FlávioJosefoeFílon,oJudeu—jásesabiamuitacoisasobreessaseita.AdescriçãodePlínioésucintamasimportantíssima,poislocalizaacomunidadedosessêniosexatamenteondeseencontraramoedifícioeabiblioteca.

NamargemocidentaldomarMortoosessêniosseafastaramosuficienteparaevitarseusefeitosnocivos — homens solitários e os mais extraordinários do mundo inteiro, que vivem sem

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mulhereserenunciaramatodocomérciocomVênusetambémsemdinheiro,tendoaspalmeirascomo única companhia. Renovam-se constantemente com a incessante torrente de refugiadosque os procuram em grande número, homens que, cansados da vida, foram levados pelasvicissitudesdasorteaadotarsuamaneiradeviver.Assim,aolongodemilharesdeséculos,porincrívelquepareça,umpovoseperpetuousemqueemseumeioninguémnascesse.Utilíssimopara aumentar seu número é o desgosto de outros homens pela vida.Abaixo deles erguia-seoutroraacidadedeEngadda[Engadi],queempalmeiraisefertilidadesóperdiaparaJerusalém,porémhojenãopassadeummontedecinzascomoela.MaisalémestáMassada,umafortalezanumarochaapequenadistânciadomarMorto.AJudeiaseestendeatéesseponto.a

Parece que isso identifica o mosteiro, porém é tudo que Plínio nos diz. Ele é concisamenteromano; tem um ponto de vista estrangeiro e irônico. Contudo Fílon e Josefo, ambos judeus,interessam-se muito mais por essa ordem judaica. Os milhares de séculos que Plínio lhe atribuireferem-se ao futuro ou simplesmente se devem à vagueza do autor. A partir do texto de Josefopareceprovávelqueosessêniostenhamsurgidoemmeadosdoséculoanterior.ParaFílon,oeruditoalexandrinoquepossuíaalgodotemperamentomonástico,osessêniosforneceramumexemploparailustraratesedeseuTratadoparaprovarquetodohomembométambémlivre.Nessaobraeemoutrapassagem, citada pelo historiador Eusébio, ele nos fala das maneiras dos essênios, adequadas aopropósitodohistoriadorecondizentescomsuapersonalidade.Entretanto,comoosrelatosdeFílonserepetemempartenotextomaiscompletodeJosefo,émaisfácilbasearnesteaprópriadescrição,notandoasdivergênciasdeFílonesuasamplificaçõesdostópicosdeJosefo.Historiadorehomemde negócios, Josefo retrata os essênios com um poucomais de realismo que Fílon; e, como foimembro da ordem, seu depoimento é abalizado. Em sua época, Josefo nos informa, as três seitasprincipaisdosjudeuseramosfariseus,ossaduceuseosessênios.Aodezenoveanos,dizele,passarapelastrêsseitaseaindaviveratrêsanosnodeserto,mortificandoacarne,comumsantoeremitadenomeBannus, quevestia apenasoque crescianas árvores, comia apenas alimentos silvestres e sedisciplinava na castidade por meio de constantes banhos frios. Josefo saiu fariseu dessas váriasexperiênciasreligiosas.Maistardeparticipouativamentedasguerrasdosjudeuscontraosromanos;todaviaalutapelaindependênciajudaicajásetornavadesesperada,eatendênciaaoascetismo,àfugadomundo tevegrande influência sobreele. Josefo seocupamuitomaisdosessêniosquedeoutraseita.

Conta-nosqueosessêniossãobemmaisunidosqueessasoutrasseitas:naverdadeconstituemumaconfrariaquetemalgoemcomumcomospitagóricos.Renunciaramaoprazer,identificando-ocomovício,eexercitam-senatemperançaenoautocontrole.

Desprezam o casamento, porém adotam os filhos de outros homens, enquanto ainda sãomaleáveis e dóceis, aceitando--os como seus parentes e moldando-os de acordo com seusprincípios. [Fílondiscorda: diz que entre os essênios nãohá jovensnemcrianças, sóhomensmadurossãoadmitidos.]Narealidadenãocondenamomatrimônio,apropagaçãodaraça,masdesejamproteger-seda lascíviadasmulheres,convencidosdequenenhumadelasmantémsuapalavraempenhadacomumhomem.

Fíloncomplementa,afirmandoqueosessêniosrepudiamocasamento

porque o veem com clareza como o único ou principal perigo para a manutenção da vidacomunitáriaetambémporquepraticamacontinência.Poisnenhumessêniotomaesposaporqueumaesposaéumacriaturaegoísta,ciumentaemexcessoeperitaemburlarosprincípiosmorais

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domarido e em seduzi-lo com suas continuadas imposturas. Pois com o falar bajulador quepraticaeosoutrosmeioscomquedesempenhaseupapelcomoumaatriznopalcoelaprimeirocaptura a vista e o ouvido e depois, quando essas vítimas foram ludibriadas, conquista comlisonjasamentesoberana.Esevêmosfilhos,cheiosdoespíritodaarrogânciaedaousadianofalar,elaexpressacommaioratrevimentocoisasqueantesinsinuavaveladamenteesobdisfarcee, abandonando toda a vergonha, impele o marido a realizar ações hostis à vida decompanheirismo.Pois ele,queestáoupresonas seduçõesamorosasdaesposaou sofrendoapressãodanatureza,fazdosfilhosseuprimeirocuidado,deixadeseromesmocomosoutroseinconscientementesetornouumhomemdiferenteepassoudaliberdadeàescravidão.

Os essênios também renunciaram à riqueza: comem apenas o alimento mais simples e usam asroupaseoscalçadosatésereduziremafarraposparaentãoprovidenciarvestesesapatosnovos.

Fílondizqueexistemmaisde4milessênios;Josefo,quesãocercade4mil(umnúmerograndeparaaPalestinadaépoca).“Nãoocupamumaúnicacidade,porémseinstalam,numerosos,emtodasas cidades”, informa-nos Josefo. Fílon também diz que moram em muitas partes da Judeia, masacrescentaqueevitamascidadesgrandesepreferem“vivernasaldeias”.Oqueosdoisenfatizaméqueosessêniosorganizaramcomunidadesagrupadasemtornodeumcentro,ondesereúnemparatomarsuasrefeiçõesepelasquaissãosempreresponsáveis.Seuspertencessãocomunsatodos.Osnovosmembrosdevementregarseusbensàordem,e todosprecisamcontribuircomseusganhos.Emtrocarecebemtudodequenecessitam.Ummordomoouadministradorfaz todasascomprasemanuseiatodoodinheiro.Ficarcomalgumacoisaéumatoseveramentepunido.Atéasroupassãopropriedadecomum.Elesdispõemdegrossascapasparaoinvernoemantoslevesparaoverão.Emseumeionãohácompranemvenda,equalquerumpodetomarqualquercoisado“irmão”semdarnadaemtroca;entretantonãopodempresentearseusparentes,amenosquetenhamapermissãodeseussuperiores.Quandoviajamnadalevam,excetoarmasparasedefenderemdosbandidos,poisumessênio será recebido cordialmente emqualquer comunidadede essênios.De fato, emcada cidadeondeosessêniosestabeleceramumacomunidadeummembrodaseitaédesignadoparadarasboas-vindasaosrecém-chegadosdeoutroslugareseprovidenciarparaquenadalhesfalte.Osdoentessãosustentados, se não podem trabalhar; os velhos recebem cuidados, diz Fílon, como se tivessemmuitosfilhos,aindaquenãotenhamnenhum.Muitosdeles,informaJosefo,vivemmaisdecemanos.

Cultivam a terra ou dedicam-se a artes pacíficas (Fílon). São lavradores, pastores, vaqueiros,apicultores,artesãos,artistas.Nãofabricarãoinstrumentosdeguerra.Nãoseocuparãodocomércio;nadasabemdenavegação.Entreelesnãoháescravosnemamos.Mantêmuma igualdade fraternal,acreditando que a irmandade humana é a relação natural dos homens, que só foi destruída nasociedadepelacompetiçãodoscobiçosos.Leemmuitoosantigos,dizJosefo(portanto,semdúvida,osmuitosmanuscritosdascavernas);semembargo(Fílon)nãocultivamoladológicodafilosofia,não dispensam “cuidados supérfluos ao exame de termos gregos”,mas ocupam-se apenas com oaspectomoral.Estudam raízesmedicinais e aspropriedadesdaspedras (estasprovavelmenteeramamuletos);sãoinspiradosnaprediçãodofuturo(háváriosexemplos).Dãoextremaatençãoaoasseioevivemsebanhando.SeushábitosdedefecaçãoeramextraordinariamentehigiênicosparaoOrienteMédio daquela época.Achavam que se sujariam untando-se de óleo— o que deve tê-los expostodolorosamente à inclemência do solmediterrâneo.Mantinham a pele seca e sempre se vestiamdebranco. “Nos trajes e nos modos parecem crianças submetidas a rigorosa disciplina”, conta-nosJosefo.

Seudiainteiroésujeitoaessadisciplina.Nãoconversamantesdonascerdosol;apenasrecitamsuas orações tradicionais, nas quais suplicam ao sol que semostre.Depois trabalham até a quintahora(cercadasonze).Nãoseimportamcomoclima,dizFílon,enuncaousamcomodesculpapara

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nãotrabalhar;voltamdotrabalhoexultantescomoseviessemdeumadisputadeatletismo.Entãosebanhamcomágua fria,vestemseu trajede linhoe sedirigemao refeitóriocomose fossemaumsantuário. Sentam-se em silêncio, e o padeiro lhes serve pães e o cozinheiro lhes serve um pratoúnico. O sacerdote que preside a mesa dá graças e reza novamente no final da refeição; depoisdespemsuasroupasdelinho,tratando-ascomovestessagradas,eretomamseutrabalhonoscamposounasoficinas.Ànoitejantamcomqualquerhóspedequeacasoestejacomeles.Semtagarelicenemalgazarra:falamcadaumporvez.“Aquemestádeforaosilênciodosquedentroseencontramdáaimpressãodeterrívelmistério”,dizJosefo.Paraosessêniososilêncioémuitoimportante.Quandodezdelesestãoreunidos(umquorum judeu),umseabsterádefalarseosoutrosnovedesejaremosilêncio. São mais rigorosos na observância do shabat que qualquer uma das outras seitas; aocontrário delas, porém, não oferecem sacrifícios de animais: não acreditam em tal prática,asseverandoquepossuemlustraçõesmaispuras.bPorconseguintesãoexcluídosdopátiodoTemplode Jerusalém e aparentemente nunca se aproximam desse centro de devoção judaica. Enquanto ossaduceusnãoacreditamnaimortalidadeeachamqueaalmamorrecomocorpo,osessêniosveemocorpocomoperecívelesustentamqueaalmaéimortal.Emanandodomelhoréter,porémcarregadopara baixo por um encantamento natural, o espírito se torna prisioneiro do corpo; libertado pelamorte, rejubila-se e volta para o alto. Como os gregos, os essênios acreditam que as almasmaisvirtuosastêmumlocalreservadoparaelasemalgumapartealémdomar,umretirofinal,ondenãohánevenemchuvanemcaloresempresopraumabrisasuave;jáasalmasmaisvisserãoconfinadasnumcalabouçoescuroeturbulento,ondesofrerãootormentoeterno.

Tanto Josefo quanto Fílon enfatizam o respeito geral que se tem pelos essênios. O primeirodeclara que eles superamemvirtudeos gregos e os bárbaros e durantemuitos anos conseguirammanterseualtoníveldedisciplina.Osdoisautoresnosmostramohorrordomundoqueosessêniosabandonaram,mas quemoralmente foram capazes de enfrentar.Os judeus tiveramo rei selêucidaAntíoco iv, Epífano (herdeiro da parte do império de Alexandre correspondente ao OrientePróximo),queergueuumaestátuadeZeus,“aabominaçãodadesolação”,paraqueaadorassememseuTemplo.SobaliderançadosMacabeuselesconseguiramserebelarcontraotiranoselêucida—mas logoviamseusprópriosgovernantes, entreosquaisosHerodes, tornarem-se tãocorruptosecruéis comoos estrangeiros que depuseram emais tarde, no ano 70 d.C., foramderrotados pelosexércitosdoromanoTito,que,comoosdeNabucodonosor,destruíramseuTemplo.DizFílon:

Emboraemdiferentesépocas,grandenúmerodepotentadosdetodotipodedisposiçãoecaráterocupou seu país; alguns se esforçaram para superar em crueldade até as ferozes bestasselvagens, não deixandode praticar nenhuma espécie de desumanidade, e jamais cessaramdematar seus súditos em multidões inteiras e os despedaçaram vivos, como os cozinheiros acortarem-lhes membro a membro— até que, surpreendidos pela vingança da justiça divina,experimentaram por sua vez os mesmos sofrimentos; outros, tendo convertido seu bárbarofrenesi em outro tipo de maldade, praticando um grau inefável de selvageria, falandosuavemente com as pessoas, porém, através da hipocrisia de uma voz mais gentil, traindo aferocidade de sua verdadeira disposição, adulando suas vítimas como cães traiçoeiros ecausando-lhestormentosirremediáveis,deixaramemtodasassuascidadesmonumentosdesuaimpiedadeedeseuódiopelahumanidade inteira,nossofrimentos inesquecíveis impostosaosque oprimiram; e entretanto nenhum deles, nem os tiranos de imoderada crueldade, nem osopressoresmaistraiçoeirosehipócritas,conseguiufazerumaacusaçãorealcontraamultidãodoschamadosessêniosousantos.Mas todos,vencidospelavirtudedesseshomens,viram-noscomo criaturas livres por natureza e não sujeitas à desaprovação de qualquer ser humano ecelebraram sua maneira de comer juntos e seu companheirismo — não há palavras para

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descrever sua boa fé recíproca — que constitui prova suficiente de uma vida perfeita esupremamentefeliz.

Josefotambémfaladessafortitudeedaadmiraçãoquesuscita:

Fazemluzdoperigoetriunfamsobreadorgraçasasuavontadefirme;amorte,sesobrevémcomhonra,consideram-namelhorqueaimortalidade.Aguerracomosromanosfezsuasalmaspassaremportodaespéciedeprova.Supliciadosetorcidos,quebradosequeimados,submetidosatodoinstrumentodetorturaparaqueblasfemassemcontraseuLegisladoroucomessemalgumalimentoproibido, recusaram-se a transigir comqualquer exigência, e nemumaúnicavez securvaramanteseusperseguidoresouderramaramumalágrima.Sorrindoemseussofrimentosesuavemente zombando de seus algozes, entregaram a alma com alegria, confiantes de que areceberiamdevolta.

Excetuando-seoqueJosefochamadeos“juramentosterríveis”arrancadosdoiniciadoqueingressanaordem,recusavam-seajurar;diziamque“quemnãorecebecréditosemapelarparaDeusjáestácondenado”;e“qualquerpalavrasua temmais forçaqueumjuramento”,dizJosefo.ElenoscontaqueHerodes,oGrande,isentouosmembrosdaseitadejuraremlealdade;masesclarecequeissosedeveuàlembrançadequeumessênio,tendo-ovistonaruanumaépocaemquesuaposiçãopolíticaera dúbia, “bateu-lhe nas costas” e predisse que um dia seria rei. Esse mesmo essênio predissetambémquemaistardeHerodessetornariamau;contudo,duranteseureinado,onãojudeuHerodes,que era odiado pelos judeus, podia se dar o luxo de esquecer a parte desagradável da profecia emostrar-semagnânimo,favorecendoosessênios.

Aoleressestextoscontemporâneosdosessêniosimpressionam-nosdoistiposdesemelhanças.Por um lado o viajante moderno se lembra com frequência das fazendas coletivas sionistas eisraelenses conhecidas como kvutzot e kibbutzim. Aqui a propriedade é comum, tal qual a dosessênios; um administrador ou uma administração se encarrega das compras.Em alguns casos osmembros dessas comunidades partilham omesmo guarda-roupa, vestindo o que lhes cabe, comofaziamosessênioscomseusmantosdeinvernoedeverão.Comoosessênios,criamfilhosadotivos— no caso das comunidades israelenses, órfãos e refugiados. Tiveram de enfrentar tiranos tãoterríveisquantoaquelesdosquaisosessêniosfugiramecomissodesenvolveramomesmotipodeimpulsonaturalparaafraternidadequeinspirouosmosteirosdosessênios.

Contudo, o que nos impressiona de imediato é a semelhança dos essênios com os cristãos.Temosadoutrinadairmandadehumana;temosapráticadalavagemritual,daqualobatismoeraumaspectopreeminente;temosocomunismo,queosprimitivoscristãospraticavamentresi(Atos2:44-45:“Todososquecriamestavamunidosetinhamtudoemcomum.Vendiamsuaspropriedadeseseusbensedistribuíamopreçoportodos,segundoanecessidadequecadaumtinha”).Temosfrasesderessonâncias cristãs. Deparamo-nos com Fílon, por exemplo, dizendo que os essênios não“armazenam tesouros de prata e ouro”, nem “adquirem vastas porções de terra pelo desejo degrandes rendas” e lembramo-nos de Mateus 6: “Não acumuleis para vós tesouros na terra” etc.Quando Josefo nos diz que os essênios consideravam o corpo corruptível,mas a alma imortal eimperecível, pensamos em i Coríntios 15:53: “Porque é necessário que este corpo corruptível serevistadaincorruptibilidade,equeestecorpomortalserevistadaimortalidade”.Temosacoragemde enfrentar os romanos, o “fazer luz do perigo” e o “triunfo sobre a dor”. E— o que émuitoimportante— temoso fato, esclarecido tanto porFílon comopor Josefo, de que, embora fossem

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judeus de nascimento, os essênios não se reuniram com base na raça, “pois não se fala de raçaquandosetratadeatosvoluntários”.Oquereuniuosessêniosfoiseu“zelopelavirtudeeapaixãodeseu amor pela humanidade” (Fílon). Parece óbvio que a tradiçãomonástica dos cristãos deve terderivado em última análise dos essênios e sempre houve uma teoria de que na origem Jesus eraessênio.Deixaremosesseproblemaparadepois,aodiscutirmosasinesperadasrevelaçõesligadasàsorigensdacristandadee resultantesdosmanuscritosdomarMorto.NestepontocabenotarqueháelementosdoessenismoqueparecemprovirdaPérsiaoudaBabilônia:oritonãojudaicodobatismoeapráticadaadoraçãodosolnasprimeirashorasdamanhã.

O manuscrito reconstituído por Trever a partir de dois rolos do metropolita revelou-se oManualdeDisciplinadeumaordemmonásticamuitoantiga,eocotejodessenovodocumentocomasdescriçõesdosessênioscitadasacimadeixoupouquíssimadúvidasobreaidentidadedetalordem.SeapassagemdePlínio identificaomosteiro,o textominuciosodeJosefo identificaoManualdeDisciplina,quefoiencontradonacavernapróximaaomosteiro.Josefodeveterestudadoessemanualou algum outro muito parecido. Seu resumo da conduta dos essênios corresponde quase queexatamente ao Manual. Lendo esses dois documentos aprendemos, por exemplo, que os essêniosconjugavam o princípio da fraternidade humana com uma rigorosa hierarquia. O candidato amembro,informa-nosJosefo,nãoéadmitidonoprimeiroano.Recebesuavestebranca,suatangaeuma pequena enxada para cavar suas latrinas. “Entra em contatomaior com o regulamento e tempermissãoparapartilhardotipomaispurodeáguabenta;contudoaindanãoérecebidonasreuniõesda comunidade.”Depois disso deve ser testado pormais dois anos e, sendo aprovado ao términodesseperíodo,passaapartilhardoalimentocomum,porémantesprecisaprestar

juramentosterríveis—primeiro,queveneraráaDivindade;emseguida,queobservaráajustiçaemrelaçãoaoshomens:nãoprejudicaráninguém,sejadeseumotopróprio,sejaporordemdeoutrem;quesempreodiaráosinjustosecombateráaoladodosjustos;queserálealcomtodosos homens, sobretudo com os governantes, pois nenhum deles galga seu posto senão pelavontadedeDeus;que,sechegaraopoder,nuncaabusarádesuaautoridadenemeclipsaráseussúditos pelas vestes ou por qualquer outro sinal externo de sua posição; que amará sempre averdadeedenunciaráosmentirosos;quenuncadeixarásuasmãosfurtarememanterásuaalmaisentadeganhoimpio;quenadaesconderádosmembrosdaseitaenãorevelaráseussegredosaninguém, nem mesmo se for torturado até a morte. Ademais, jura transmitir as normasexatamentecomoasrecebeu;abster-sedoroubo;epreservarcomtodoocuidadooslivrosdaseita e os nomes dos anjos. Esses são os juramentos através dos quais conseguem seusprosélitos.

Ahumildade imposta ao essênio, o compromisso de não “abusar de sua autoridade” nemmostrar“sinais externos de sua posição” podem nos lembrarMateus 23:10: “Não façais que vos chamemmestres, porque um só é vosso Mestre, o Cristo”. Contudo os essênios observavam uma rígidahierarquia.“Osmembrosnovossãodetalmodoinferioresaosantigosqueseumdestesétocadoporumdaquelesprecisabanhar-secomosetivessetidocontatocomumestrangeiro”,informaJosefo.

AordemdeserlealcomosgovernantespodenoslembrarMateus22:21:“Dai,pois,aCésaroqueédeCésareaDeusoqueédeDeus”.Assim,pareceverdadequeadefinitivaderrotapolítica,adesilusão das esperanças de ordem prática originaram um desenvolvimento intenso do tipo maisdesinteressadodereligião.UmexemploóbvioerecenteéoflorescimentodomisticismonaRússiaapósofracassodaRevoluçãode1905.Passamosporalgosemelhantehoje,quandoadesilusãocomo socialismo, seguindo-se à perda de confiança no tradicional sistema competitivo, tem levado osdesnorteados idealistas a buscar conforto nas várias Igrejas. Na época dos essênios os judeus

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conseguiramrestaurarsuanaçãosoba liderançadosmacabeus,porémdepoisseviramderrotadospelos romanos,maisorganizadose“modernos”.Apesardepossuíremcertasdoutrinaseseguiremcertas práticas próprias, os essênios eram basicamente judeus e, como os profetas do VelhoTestamento,tiveramdeatribuirseusinfortúniosàvontadedeDeus.OJesusdosEvangelhoscristãosparece pertencer a um estágio posterior, quandoDeus já fora dissociado deCésar;mas, uma vezefetuadaessaruptura,aposiçãodocristãoésobváriosaspectosmaisfortequeadossacerdotesqueformularamojuramentodosessênios.Estessãosofredoressoturnos—encontramossuaatitudeemrelação a seus inimigos expressa em termos nada cristãos no Manual e em outros textos; osEvangelhospossuemumtomencorajadordeaudáciaeliberdadeespiritual.cNoentanto,comoagoraseevidencia,ossectáriosqueformularamessejuramentoestavampreparandocomseuspreceitosesuadisciplina—“nãorevelarseussegredosaninguém,nemmesmosefortorturadoatéamorte”—oretumbantetriunfomoraldaCrucifixão.

Aessa altura, semembargo,nossoprincipal interesse está emcotejaroManualdeDisciplinacomostextosdeJosefoeFílon.Encontramosaquiapropriedadecomumconfiadaaum“guardiãodepropriedade”(aexpressãoédoManual);adevoçãoaoLegislador(possivelmenteMoisés)mitigadapor“uma fragranteoferendadeprobidadeeperfeição”que substituios tradicionais sacrifíciosnoTemplo; as lustrações com água benta; a insistência no autocontrole: extravasar a raiva acarretapunição; a subordinação, dentro da ordem, do “menor” ao “maior no tocante a bens e posses”; amesacomumeossagrados repastos;a regrade falarem turnos;asprerrogativasdamaioria,quepodemesmoimpediralguémdefalarseaissoécontrária;aproibição—tambémmencionadaporJosefo—de“cuspirnomeiodaassembleia”.Temosoperíodoprobatório—deumano,dizJosefo;oManual não especifica—, em cujo término o neófito recebe permissão para “aproximar-se” daordem; depois mais dois anos de noviciado, durante os quais pode partilhar da “purificação”(Manual)e“dotipomaispurodeáguabenta”(Josefo),poréméadmitidonasreuniões;secompletacomsucessoessenoviciado,oneófitofazos“juramentosterríveis”epassaaparticipardasrefeiçõescomuns.EncontramosaindanoManualdeDisciplinamuitosoutrosdetalhesquenãoestãoemJosefonememFílon.HátodoocódigodecensuraepuniçãoqueimpunhaadisciplinadaseitaequeFílonomitedeseuidílicoretrato.Talsistemaébastanterigorosoedrástico,porémJosefoexplicaqueosessênios eram “justos e escrupulosos em seus julgamentos, nunca proferindo uma sentença numtribunalcommenosdecemmembros”.Umaveztomadaadecisão,entretanto,éirrevogável.Osquesãoexpulsosdaordemseveemnumasituaçãodifícil,poisosjuramentosquefizeramosproíbemdetomarqualqueralimentoquenãotenhasidopreparadopelaordemeelespodemtentarviverderelvae“consumir-se”.Todaviaaordemàsvezessecompadecia,acreditandoquejáforamsuficientementepunidos,erecebiamuitosdevolta.PrescreveoManual:

Nãosefalaráaumirmãocomraivaouemtomdequeixa;nemoodiará[naincircuncisão]decoração—semembargooreprovaránomesmodia,paranãoincorreremculpaporcausadele.Naverdadeumhomemnãoacusaránapresençadamaioriaseucompanheiroqueaindanãofoisubmetidoareprovaçãoperantetestemunhas.

EmumanotadesuatraduçãodoManual,oprofessorBrownleeassinalaqueMateus18:15-17“nosfornece a chave para interpretar a passagem. Jesus especifica três estágios para lidar-se com umirmãopecador:(1)repreensãopessoal;(2)repreensãodiantedetestemunhas;(3)repreensãoperanteaIgreja”.

Sem lhe dar nenhuma ênfase especial, Josefo indica um aspecto importantíssimo dosensinamentosda seita ao resumir o juramento: onovomembrodeve jurar “que sempreodiaráosinjustos e combaterá ao lado dos justos”. NoManual encontramos esse tema desenvolvido numa

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seção que descreve a divisão de toda a humanidade em dois grupos opostos, dominadosrespectivamente por um Espírito das Trevas e um Espírito da Luz. Os Filhos das Trevas sãodenunciados iradamente. Era errado odiar um irmão de fé ou mesmo perder a calma, porémconstituíaumdeverdetestaremaldizeraquelagenteestranhaemalvadaqueoEspíritodasTrevasdominava.Maisadiante,aotratarmosdosoutrosmanuscritos,retomaremosesseaspectodaliteraturadaseita.PorenquantobastadizerqueosFilhosdasTrevassãoprovavelmenteosromanos,emcujasmãososjudeustantosofreram.aNaRevueBibliquedejulhode1967oeruditofrancêscharlesBurchard,deGöttingen,chamouaatençãoparaoutradescriçãodosessênioscontidanaCollectanearerummemorabilium[coletâneadecoisasmemoráveis], dec.Juliussolinus,queviveuprovavelmentenoséculoiiid.c.aprincípioessadescriçãoparecetersidoemprestadadePlínio,comoboapartedaobradesolinus,porémhádivergênciasinteressantesquesugeremqueambaspodemterderivadodamesmafontegregaemversõesnitidamentedistintas.Háemsolinusumacuriosapassagemqueexplica—umacaracterísticadacomuni-dadedosessêniosqueosoutrosautoresnãomencionam—quesóoscastoseinocentes podem ser admitidos na ordem, pois qualquer outro, "por mais que tente com todas as forças para obter o ingresso, é divinamente rejeitado, divinitussubmovetur".éimpossíveldizerosignificadoexatodedivinitus(divinamente).Burchardconcluiqueessapassagemrepeteumalendalocalsegundoaqualosessênios,atravésdealgummeiomisterioso,repudiamoscandidatosinadequados.numtextosobreThearchaeologyandidentityofthesect[aarqueo-logiaeidentidadedaseita],emThescrollsandchristianity [osmanuscritoseocristianismo],da society for thePropagationofchristianKnowledge,odr.w.F.albrightconsidera"absurda"umatraduçãodePlíniolançadapelaloeblibraryebaseada,comoaqueciteiacima,nahipótesedeque"aboccidentelitoraEssenifugiuntusquequanocent"significaqueseafastaramomáximopossíveldapraiaparafugiraosefeitosnocivosdaságuasdomarmorto.achaqueotextoéfalho,comodefatoparece,epropõecorrigi-loassim:"AboccidentalilitoreEssenifugiuntusqueadhuceaquaenocent.namargemocidentalosessêniosatéagoraseafastaramdaquelascoisasquesãoperniciosas"—ouseja,osmalesda sociedade. diz que "nomarmortonada existe que seja prejudicial a quemvive em suasmargens. ao contrário, antesde1948 amargemnoroeste abrigavadiversosbalneáriosdeinverno".1969.bNoentantoencontraram-sejarroscomossosdeanimaisenterradosnoespaçodacomunidade,oquepareceindicarquecomeramessesanimaisembanquetessacros.Frankmoorecross,Jr., sugereque,emboranãosacrificassemnotemplo,osessêniospodiamterumcultosacrificialparticular.orolodaGuerratambémfaladeoferendasqueimadas.noentantooprofessorYandinassinalaquetodoessemanuscritoserefereaoqueiráacontecer"notempoVindouro".1969.cVer,porém,aopiniãodeYigaelYadinsobreissonaspp.223-4.1969.

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3.OMOSTEIRO

ApaisagemdomarMortoémonótona,opressivaemedonha.Completamenteimpessoal.Umapaisagemsemfisionomia:asformasdascolinasnãosugeremrostosdedeusesoudehomens,nemcorpos de animais deitados. “Só o monoteísmo podia resultar disso”, falou um amigo meu, queconhecia a Palestina. “Em lugar nenhum há uma brecha para uma ninfa.” A relva da primaveracomeçavaamurchar—minhavisitaocorreuno iníciodeabril—epareciaumboloresverdeadosobrepãesimensos.Deummarromamareladoefrio,umacorescurasemariquezadasombra,essesmontes tambémseassemelhavam—foiaúnica imagemvivaquemeocorreu—àscorcovasdoscamelosquealipastavam,amarelos,sembrilho,desajeitados,tendoaseuladoacriadeumbrancosujo.Um rebanhode cabraspretas salpicavaumaencosta.Cá e lá, sozinhanovazio, umabeduínaacocorada e imóvel, que parece tão atenta quanto uma pedra, vigia um camelo ou uma cabra; epassamos por alguns poucos abrigos dos beduínos, negros e rasgados, que bem poderiam ser asvelhas tendas deAbraão.Uma torre de vigia, hoje deserta, ainda se ergue no local onde antes daguerra uma fábrica administrada por judeus produzia potassa, e há as ruínas de uma pequenaestalagem destruída numa luta entre judeus e árabes e saqueada pelos beduínos.Quando a estradacomeça a descer abaixo do nível do mar — quase quatrocentos metros —, sente-se a pressãoaumentarnosouvidos,comonumaviãoaterrissando.

Àbeiradomarencontramosdoisoutrêsedifíciossimples,ondeumoficialbritânicodaLegiãoÁrabecomandaa“FrotadoMarMorto”.Estacompõe-sedeunspequenosbarcosamotorquetêmporfunçãopatrulharafronteira,poisoterritóriodeIsraelcomeçalogoaosul,nãomuitolongedeondePlíniodissequeaJudeiaterminava.Ooficialtemdoiscachorrosvira--latasenosconvidaparaumchá.OmarMortoédeumazulpálidoquelembraoGreatSaltlake,eascolinasquerodeiamasuperfíciedaáguasãodeunsamarelosepúrpuraseazuisemarronstãodesbotadosquesuascoresnemmerecemtaisnomes,fortesdemaisparadesigná-las.UmadessaselevaçõeséomonteNebo,deondeMoisésavistouaTerraPrometida,depoisdelibertarseupovodoEgitoevagarduranteanosnodeserto.

Sacolejamos em nosso jipe por sobre pedrasmassacrantes, onde os vestígios de uma antigaestrada recentemente se tornaram apenas visíveis.O solo praticamente desprovido de vegetação épercorridoporfileirasdeumaplantaavermelhadaecáelásalpicadodeestatice,umaervapequeninaebranca,dotipodasempre-viva.AspalmeirasquePlíniomencionoucomoasúnicascompanheirasdosessêniosdevemterdesaparecidoháséculos.Asúnicasformasdevidavertebradaqueavistamosem nosso caminho rumo ao mosteiro são um gavião e um corvo brigando por causa de umanimalzinhoqueocorvopegoueogaviãoobrigou-oalargar.Ocorvorelutaemdeixarsuapresa,maséobrigadoavigiaratentamenteogavião,quevoaemcírculos,decididoevagaroso.Aquiháescorpiõesevíboras,muitasdasquaisosescavadorestiveramdematar.Lembramaquele“grandeeterríveldeserto”dequeMoisésfalaemDeuteronômio8:15,comsuas“serpentesdesoproardente,eescorpiões,eáspides,eumafaltacompletadeágua”.Nãohápeixesnomar,apenasanimálculos.ApaisagemtemalgodaGrécia,talvez,masnãoapresentaomaravilhosoespectrodevioleta,malvaeazulproduzidopelafluidaluzgrega.Aquinãose temconsciêncianemdaluznemdaescuridão.Écomo estar mergulhado abaixo delas; viver neste lugar parece uma forma de enterrar-se.Confrontadocomovaziodestaregião,ovisitantesaídodomundomodernosevêobrigadoafazer

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um esforço de imaginação para convencer-se de que alguma coisa interessante poderá acontecer.Todaviaencontramo-nosaquino“deserto”deiSamuel,ondeDavi,fugindodeSaul,abrigou-seemEngadi,nos“rochedosmaisescarpados,somenteacessíveisàscabras”,eondeSaul,parasatisfazeruma necessidade natural, entrou numa caverna na qual Davi e seus homens estavam escondidos,porémDavipoupou-lheavida;ondebemdepoisapalavradeDeuschegouaJoãoBatista;eonde,maisaonorte,nopontoemqueoJordãodeságuanomarMorto,JesusfoibatizadoporJoão.Essaáridadepressãona terra é tambémodesertoonde Jesus jejuoudurantequarentadias.Nocaminhopassamos pela montanha na qual, segundo a tradição, Jesus foi tentado por Satanás, que dali lhemostrouosreinosdomundo.MaisaosulestáamesadeMassada,ondeHerodes,oGrande,construiuumpalácioparaproteger-sedoperigoeondemiljudeusserefugiaram,escapandodosromanos,e,quando os engenheiros romanos construíram uma rampa até o topo da elevação, os fugitivospreferiram cortar a própria garganta a cair nas mãos de seus perseguidores; na margem oposta,igualmentedesolada,estãoasruínasdeoutropalácioherodiano,oMacherus,afortalezadescritaporJosefo,ondeJoãoBatistafoiencarceradoedegoladoporHerodesAntipas.Essafortalezaerguia-senumarochaaltíssima,cercadaderavinasprofundasemtodososladoseporumagrandemuralhaquetinhanoscantostorresdetrintametros.Nasproximidadeshaviamuitasfontes,umasamargas,outrasdoces,deváriastemperaturas,inclusiveduasquejorravamdeduaspedrassemelhantesaseios,umafriaeaoutraquente;edizia-sequedentrodomagníficopaláciocresciaumaplantaenormequededia tinhaacordachamaeaocrepúsculobrilhava—umaplantaqueseesquivavadaspessoasquetentavamagarrá-laeenvenenavaasqueconseguiampegá-la,esósepodiaparalisá-laregando-acomaurinaouofluxomenstrualdeumamulher.Talplantatinhaapreciosapropriedadedeexpulsarosdemôniosdospossessos;contudoparaapoderar-sedelacomsegurançaeraprecisoantesarrancá-lapelaraiz.Paratantocavava-seaterraeamarrava-seumcachorroàsraízes;entãoodonodoanimalseafastava;o cãocorria atrásdele e assimarrancavaaplanta.Emconsequênciadissoocachorroimediatamentecaíamorto,mastornava-sepossívelpegaraplanta.QuandoaJudeiacaiuempoderdeTito, Macherus foi praticamente a última fortaleza capturada: os romanos prenderam um joveminsubmisso chamado Eleazar e o flagelaram diante da cidadela; depois ergueram uma cruz eameaçaram crucificá-lo. Com isso os judeus se renderam, e a guarnição partiu em liberdade,conformeoprometido;masosromanosfizeramquestãodemataraopédorochedoos1700homensda cidade e escravizaramsuasmulheres e filhos.Enaoutramargemdo lago,no lugarparaondeagora o jipe nos levava, os essênios se reuniram para adorar a Deus e salvar suas almas dessasinfâmias;parasairdoCaminhodasTrevasetrilharoCaminhodaLuz.

Seumosteiro,grosseiramenteconstruídocomblocosdepedracinzenta,aindaestádepé,acertadistância da praia, comoPlínio o descreveu.O rochedo se ergue íngreme a suas costas, e cá e láveem-se as fendas escuras de cavernas naturais como aquela em que foram encontrados osmanuscritos.EntreomarMortoeomosteiroestende-seocemitériocommil tumbas.OpadreDeVauxabriudezenovesepulturas,e todassãomaisoumenosiguais.Osesqueletosestãodeitadosdecostas,acabeçavoltadaparaosul,asmãoscruzadassobreapélvisouabertasjuntoaosflancos.Oqueessestúmulostêmdesingularéofatodenãoabrigarpraticamentenadaalémdeossos.Apenasumdosqueforamabertoscontinhaumcaixão.Nãoécomumencontrarsepulturasantigasquenãoguardemalgumaespéciedeobjetosfunerários:ornatosouarmasoureceptáculosdealimento,sinaisdeposiçãooudistinçãoouequipamentoparaaviagemaooutromundo.Aausênciade taisobjetosnessas tumbas condiz perfeitamente com a decantada austeridade dos essênios, porém torna suaescavaçãobempoucointeressante.Todaviaencontraram-senelas,entreosfragmentosdejarrosqueparecem ter ido parar ali acidentalmente, alguns que pertencem a um tipo do qual até então só seconheciaumúnicoexemplar.Datou-setalexemplar,descobertonacidadeladeJerusalém,doséculoia.C.,deumaépocaanterioràsedificaçõesdeHerodes,oGrande.OpadreDeVauxparoudeexplorar

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assepulturas,porémestabeleceumuitobemumpontoimportante.Osossossãofragílimosemuitosestãoquebrados;entretantoumexameatentomostraqueumdosesqueletoscertamenteédemulhereoutrosdoisoutrêstambémpodemser.Comovimos,aligaçãodemulherescomaordemcontrariavaapráticadosessênios;semembargonoposfáciodeseutextoprincipalJosefoexplicaqueumramodaseitaautorizavaocasamentodosadeptos:

Eles consideramqueos que renunciamaomatrimônio eliminam suaprincipal funçãovital, apropagação da raça, e, o que émais, que, se todos adotassem amesma posição, logo a raçainteiramorreria.Nãoobstantesubmetemsuasesposasatrêsanosdeprovas.

Plínio, como lembraremos mais adiante, diz especificamente que essa comunidade não admitiamulheres,porémsuainformaçãopodiaserdesatualizadaouimprecisa.aAntesdemeestendermaissobre omosteiro, devo falar um pouco do padre Roland deVaux, que em nada se aproxima dasconcepções convencionais de um típico sacerdote francês.Hoje emdia talvez o caráter francês serevele em seumelhor aspecto não nos homens de letras, nos políticos e nos antiquados generaissobre os quais tanto ouvimos falar, e sim nas pessoas que foram afortunadas o bastante para nãoparticipardadecadênciadaFrança,quetiveramuminteressepredominantequeasmanteveforadopaís ou as sustentou nos anos da desmoralização. Lendo O mundo silencioso, do mergulhadorCousteau,sentimosqueaquiestá,inesperadamente,algodaverdadeiragrandezadosfranceses:bomsenso combinado com ousadia; a capacidade, em todas as circunstâncias— nesse caso, resistir apressões inumanas, respirar com um tanque no fundo do mar —, de observar com realismo eacurácia,deexercitarumainteligênciafria.Taisfigurasmeparecemmaissatisfatóriasqueamaioriadaspessoassobreasquaislemos,porexemplo,nodiáriodeAndréGideoumesmoqueopróprioGide.TenhodopadreDeVaux,emseucampodistinto,uma impressãomeiosemelhanteàquemecausaseucompatriotaCousteau:deintelecto,perícia,fortitude,tenacidade,ousadiae—oquehojeparece tão raronaFrança—eficiência.Elepossuiolhos castanhos luminosos comodois faróis eampliadospelasgrossaslentesdeseusóculoselongosdentesbrancoseregularesquesempremostraaofalar.Seunarizfinoeadunco,suaeriçadabarbacastanhasugeremoVelhoTestamento.Comseumantobrancodedominicano,cujocapuzlhecaisobreosombrosedecujocintolhependeorosário,eleusaboina,sapatospesadoseoqueparecesubstanciaismeiasazuisdejogargolfe.Contahistóriasmuitíssimobem,fumasempararetemumestilovigoroso.Existenomundoarqueológicoumalendacuriosa, segundo a qual o padre De Vaux foi ator da Comédie Française antes de se tornardominicano.Trata-seobviamentedeumadeduçãogratuita—devidoasuaeloquênciacomooradoreaalgumacoisaquesugereumapresença teatral—dapartedoseruditosdaAmericanSchool,quetalveznãoimaginemquantotempoequantotrabalhosãonecessáriosparatornar-seatordaComédieFrançaise.Dequalquermodo,opróprioDeVaux,surpreso,desmentiuahistóriaeexplicouquesuaeducaçãofoi“inteiramenteclássicaeclerical”.Nãooacheiteatral:pareceu--mebastantedesenvoltoededicadoaseutrabalhocomumentusiasmoquebeiraavoracidade.Fiqueiimpressionadocomseuvigoraovê-loumdiasaindoalargaspassadasdoofíciodasTrevasnaigrejadoSantoSepulcroelogo deixando para trás a multidão; usava, creio, um manto de cerimônia escuro, tinha o rostoqueimadodesol,asnarinaslargaseabarbaapontadasparaseuobjetivoseguinte.Nosítiodesuasescavações,entreasruínaseasrochas,andaligeirocomoumcabrito.Evidentementeadoraoladobrutodeseutrabalho;trocaasvestesclericaisportrajesdeoperário.Passoumuitosdiasacampadonas escavações. Uma vez atiraram numa hiena, conta-nos. Comeram-na: era “deliciosa”, meioparecida com javali. Deixaram-na pendurada bastante tempo, depois a cozinharam, temperando-abem. Imaginei-omovimentando-se intrépidono altodeuma formação estreita e íngreme, emcujapontaescarpadaháumacavernaondeseencontrouumdosmaioresconjuntosdemanuscritos.Essa

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cavernafoidescobertaporumbeduínoquandocaçavaumaperdizqueseescondeuali.Situa-senoalto da rocha, e no começo tiveramde escalá--la com a ajuda de cordas;mas depois abriramumburaco no cume, possibilitando a entrada tambémpor cima.Era uma coisa bastante parecida comandarna cordabamba, porémopadreDeVauxdissequenãodemoroumuitopara se sentir tão àvontadecomoseestivessesubindoedescendoescada.

Eleadorava levaraspessoasaté lá,massódepensarnisso fiquei tonto.Tambémfiquei tontoquandosubimosnotopodomuromaisaltodomosteiro—cercadecincometrosacimadosolo—elánosempoleiramos,agarrando-nosàspedras,enquantoopadreDeVauxnosmostravaoedifício.Ele nos deu uma visão geral.A estrutura principal consiste de umgrande retângulo de 29 por 36metros,feitodegrosseirosblocosdepedraligadoscombarro.Possuijanelas,easparedesinternassão rebocadas. O chão é revestido de seixos. Camadas de cinzas indicam que o telhado,provavelmentefeitodejuncodomarMorto,acabouseincendiando;eomoldevaziodeixadopelotroncodeumapalmeirasugerequefoiusadocomovigaoualgumtipodeescoracentral.Nocantodonoroestehaviaumatorrededoisandares,obviamenteusadaparaadefesa,cujoporãoserviadedepósito.Dentrodomosteiropropriamenteditoháumacozinha,que foi identificadapelo fornoepeloburaconaparedeque faz as vezesde chaminé; e oquedeve ter sidoo refeitóriodos sacrosrepastos,juntoaoqualseencontraramcercademiltigelasejarras,dispostasempilhascuidadosas.Outrocômodo,comquase22metrosdecomprimento,temtodaaaparênciadesaladereuniões,comumaplataformadepedranumadasextremidadesquetalveztivesseservidodepúlpitoondeseleriamoslivrossagrados.Umasalacommesasebancosconstruídosdeargamassaetijoloeraobviamenteum scriptorium, onde se copiavam os manuscritos. Nela se encontraram três tinteiros — um debronze,esverdeado,edoisdeterracota,enegrecidos—,nosquaisháaindaumpoucodetintaseca.Aconfrariaprovavelmentefaziasuaspenascomos juncosquecresciamàbeira-mar.Háumaolaria,comumaespéciedeninhodepedrasquepodetersustentadoarodadooleiro;eummoinhodegrão,cujasduaspartesapareceramemcômodosdiferentes,nãosesabeporquê.Emvárioslugareshaviapregos,fechadurasechaves,enxadas,foicesefacões.Haviaumjarroidênticoaosquecontinhamoprimeirolotedemanuscritos,etodosseparecemcomosfragmentosencontradosem1952nasnovascavernasdescobertas;ehálâmpadassemelhantesàsdascavernas.

Entreoselementosmaisimpressionantesdomosteiroestãoasseisgrandescisternas,providasdeescadasqueconduzemaseuinterioreresponsáveispelaáguaconsumidanolocal.Oshabitantesdomosteiroevidentementecanalizaramparaascisternasaságuasdachuvaquedesciamdascolinasequesemdúvidaeramescassas.OpadreDeVauxdizqueemtodososmesesdos trêsanosque temtrabalhadoaquisóduasvezesviuáguacorrendopelasencostas.Naestaçãorelativamentechuvosaosessênios precisavam armazenar toda a água necessária para o resto do ano. E tinham, também nasuperfície, sete cisternasmenores— ainda se pode ver parte do encanamento— que deviam serutilizadasparaas“lustrações”eosbatismostãocomentadosnaliteraturadaseita(paraosjudeusseteeraumnúmeromístico).Nasalaondesecopiavamosmanuscritoshádoispequenoscôncavosquedevem ter sido usados nessa atividade sacra.Outra cavidade provavelmente é uma cloaca.Cá e láencontram-se inexplicavelmente vestígios de um edifício mais pretensioso: pedras quadradas eseçõesdecolunasqueoutroradevemtersidopartedeumpórticooucolunataeduasbasesdecolunaunidas no solo de modo esquisito, como se fossem o suporte de alguma coisa. Espalhadas peloedifício havia cerca de quatrocentasmoedas.Nas cavernas deQumran não se encontrou nenhumamoeda; e isso condiz perfeitamente com o que Fílon e Josefo nos dizem: que um administradorcuidavadasfinançasdosessênios.DeVauxconcluiuqueosmembrosdacomunidademoravamnascavernasvizinhase tambémemcabanasou tendas—poisacharam-senasgretasousobaspedraspeças de cerâmica e grandes forcados que ali foram escondidos ou guardados por pessoas queviviamforadascavernas.Oedifício teria sidoseucentro,noqualeramadmitidas inteiramente só

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depoisdepassarpelasprovas.Acompanhar as conclusões a queo padreDeVaux chegou a partir dos dados fornecidos por

esselocaledosfatoshistóricosnospermitesentirumpoucodabelezaedaempolgaçãodosmétodosdaarqueologiamoderna,queevoluiumuitodesdeoestágioemqueosescavadoresvasculhavamosítio à cata de objetos de interesse óbvio, deixando no caos as várias camadas — que podiamrepresentarcidades inteiras,períodos inteiros.Osprocedimentosusadoshojeemdiavisamaalgocomoprecisãocientífica,eregistra-secadaestratoantesdeescavaroseguinte.Apartirdacerâmica,dasmoedas e das obras em pedra, bem como de várias outras indicações, o padreDeVaux e oshomensquetrabalhamcomelechegaramàseguintecronologiadahistóriadoedifíciodeQumran.Primeirodetudo,aliforamencontradosremanescentesdeumaantiquíssimaparedeisraelita,queDeVauxdatadecercade700a.C.equeaseuvernãotevenenhumarelaçãocomocrescimentoposteriordo local. A construção seguinte, acredita ele, foi iniciada no final do século ii a.C. A primeirasequênciademoedascomeçacomAntíocoviiem136a.C.epassapeloperíodoasmonianoaté37a.C.—ouseja,cobreaépocadaindependênciajudaicaeseestendeatéaascensãodeHerodes,oGrande.Ogruposeguintecomeçacomoreinadodofilhodeste,HerodesArquelau(4a.C.-6d.C.),echegaa68d.C.Assim,pareceterhavidoumintervalo,emqueoedifíciopermaneceudesocupado.(Pode-seexplicar facilmente duas moedas desse intervalo entre as duas sequências: ainda estavam emcirculaçãoquandosevoltouaocuparoprédio.)Outragrandelacunaocorreentre68e132d.C.,mashá trezemoedasquepertencemaoperíododa revolta finaldeBar-Kochbacontraos romanos,em132-135,etodaselasforamencontradasnomesmoníveldosolo.

Comohámuitasmoedasdaépocadosúltimosreisjudeus,JoãoHircanoeAlexandreJaneu,opadreDeVauxachaprovávelqueomosteiro tenhasidoconstruídoduranteo reinadodoprimeiro(134-104a.C.)eocupadonogovernodosegundo (104-178a.C.).Operíodo totaldaocupaçãodosessênios teria se estendido do fim do século ii a.C. até o ano 68 d.C.Mas como explicar o hiatoexistenteentre37e4a.C.?Háindíciosdequeemalgummomentoumterremotoabalouomosteiro.Uma fenda percorre todos os degraus que conduzem a uma das grandes cisternas e encontra-setambémnorestodoedifício;a torre foi reforçadacompedrasamontoadas juntoàbase;eumdosaposentostemumaparedeescorada,sugerindoquefoifechadoecondenado.Quemestabeleceadatadessedesastreé,maisumavez,oinestimávelJosefo,quenoscontaquenosétimoanodoreinadodeHerodes,oGrande,poucoantesdabatalhadeActium—possivelmentenaprimaverade31a.C.—,aJudeiafoisacudidaporumterremotoquematou30milpessoas.Oedifícioteriasidoreocupado—comoindicamasmoedasdeArquelau—sóemalgummomentopróximoaoiníciodaeracristã.Maspor que a comunidade esperou trinta anos para voltar aomosteiro?DeVaux afirmouque há umaprova documental que pode lançar alguma luz sobre esse problema, e sobre isso falarei quandoabordarodocumentoemquestão.Entrementescabenotarqueosescombrosdeixadosaparentementepeloterremotoforamremovidosdoprédioeamontoadosdoladodefora,ondeaindaseencontramatéhoje.

No fim os romanos pegaram os essênios — ou os mataram, ou os obrigaram a fugir. Nosegundoanodaprimeira revoltados judeus—67-68d.C.,quando terminaasegundasequênciademoedas—oedifíciodevetersidodestruído.Háparedesderrubadas,marcasdeincêndioeflechasdeferroespalhadas.Apósasoperaçõesromanasde67—voltamosànarrativadeJosefo—aDécimaLegião estava acampada em Cesareia, no Mediterrâneo, e em junho do ano seguinte VespasianovisitouJericóeomarMorto.OimperadortinhacuriosidadedeverificarporsimesmoseaáguadomarMortoeratãodensacomosedizia;assim,mandouamarrarasmãosdealgunsdeseushomensquenãosabiamnadareatirá-losnolago:elessubiramàtona.OsromanosdevemterpermanecidoemQumran pelomenos até boa parte do reinado de Tito— algo em torno de 79 d.C.— comodemonstramtrêsmoedascomainscriçãoJudaeacapta[Judeiacapturada].Explicaapresençadesse

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posto romanoo fatodeo localdomosteiropermitirumavisãodo litoraldesdeaembocaduradoJordãoatéRâsFeshkhaedametadesetentrionaldomar.Osromanostinhamtambémdeenfrentaraescarpada fortaleza de Massada, da qual já falamos, situada ao sul do mosteiro. A fortaleza foicapturadaem66pelosjudeus,quemassacraramaguarniçãoromanaemantiveramsuaconquistaatéabril de 73, três anos após a queda de Jerusalém. Havia ali um único ponto vulnerável, que osromanosconseguiramrompercomumaríete;depoisseviramdiantedeumbaluarteerguidopelosocupantes, mas acabaram incendiando-o. No interior encontraram apenas duas mulheres e cincocriançasvivas.Osrestantes960judeusforaminduzidosporseulíderasuicidar-se.SegundoJosefo,o líder os lembrara de que “hámuito tempo decidiram nunca ser escravos dos romanos, nem dequalqueroutroquenãoDeus”.

O que indica que as ruínas de Qumran foram usadas novamente durante a segunda revoltajudaicasãoasmoedasdesseperíodo.Dezdessasmoedasforamencontradasnosubterrâneodatorre.Osocupantesdoedifício, fossemquais fossem,haviam fechado toda a facedo sudeste. “Oprédiomudoudefunção”,dizDeVaux.“Jánãoabrigaosserviçosgeraisdeumacomunidadeorganizada.Apenasservedemoradiaparaumgrupolimitadodepessoas,quesealojamnospequenosaposentos,assam seu pão no forno [...] protegem-se dos ataques [...] emantêm um posto de vigia na torre.”Quandoos romanos reprimiram essa segunda revolta, o edifício foi abandonado para sempre.Asduas moedas árabes e as três bizantinas encontradas na superfície devem ter sido deixadas porviajantesquealiacamparam.Nãosabemosoqueaconteceucomosessênios.a*EmL’archéologieetlesmanuscritsdelamerMorte[AarqueologiaeosmanuscritosdomarMorto],de1961,opadreDeVauxdizqueoprimeiroesqueletofemininofoiencontrado em uma sepultura incomum, ra dos limites do cemitério oficial, e que outros esqueletos de mulheres e de crianças pequenas foram descobertos no quedenominadecimetièressecondaires[cemitériossecundários],bemdistantesdomosteiro.1969.

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4.OMESTREDARETIDÃO

Nãosabemosoqueaconteceucomosessênios;porémagora,desdeadescobertadabibliotecadomarMorto, sabemosmuitomais o que passaram, como viviam e em que acreditavam.A estaalturacabeassinalarqueapresençadasmoedasantigas—quesugerequeaocupaçãodomosteiropelaseita,precedidasemdúvidaporseuestabelecimentonaregião,deveterseestendidodoúltimoterçodoséculoiia.C.,maisoumenos(comumainterrupçãodetrintaanos),aténomínimo68d.C.,vésperadavitóriadosromanos—parecedeterminardemodogeraladatadosmanuscritos,sobreaqualhouveviolentacontrovérsiaantesdaescavaçãoda ruína.Naturalmentenão temos ideia,anãoserporevidênciasintrínsecas,daépocaemqueasobrascopiadasforamescritas,masparececlaroqueascópiassãoanterioresàchegadadosromanos,quandoospergaminhosforamescondidosemcavernas do mais difícil acesso possível — como aquela que De Vaux arriscou o pescoço paraalcançar. Isso condiz com a data atribuída por Albright, que, baseando-se nas evidênciaspaleográficas, imediatamentesituouo rolode Isaíasem tornodoano100a.C.;comasconclusõesdosespecialistasemcerâmica,quedisseramqueosjarroserampré-herodianoseosdataramdefinsdoúltimo século anterior aCristo, nomáximo; e comos testes de carbono14que, aplicados aosinvólucrosdelinho,abriramumlequedepossibilidadesentre168a.C.e233d.C.

Nãosóosdocumentosencontradosseconjugavamcompassagensdeautoresantigosecomadescoberta do mosteiro para nos permitir formar uma ideia de um extraordinário movimentoreligioso do qual até então pouco se sabia; mas também, com relação a outros textos hebraicostardios—conhecidosporémnãocompreendidosinteiramenteejásituadosnessemesmoperíodo—,osnovosmanuscritosestabelecemdeimediatooquepodemoscompararaumareaçãoemcadeiaeaoajuntamentodelimalhadeferroemtornodeumímã.

Primeiro havia os chamados fragmentos zadoquitas. São partes de um ou vários documentosdescobertas no Cairo em 1896 durante a escavação da genizah de uma sinagoga medieval. Osmanuscritosdatamdealgumaépocasituadaentreosséculosxexiidaeracristã;contudoostextosoriginaisdevemderivardamesmafontee,portanto,datardomesmoperíododaquelesdomosteirodomarMorto.Oprimeirolotederolospareciaevidenciarisso,jáqueodocumentozadoquitaexpõeasmesmasdoutrinas,refere-seaosmesmosfatoseatéempregaamesmalinguagemdoManualdeDisciplina e de outros pergaminhos; agora, porém, o achado de vários fragmentos do texto“zadoquita”emumadasoutrascavernaspôsfimàsdúvidas.Assim,nãovourelacionarasestreitassemelhanças entre esses documentos e os outros; só vou juntá-los aos demais quando expuser ahistória e a doutrina contidas nesse conjunto de escritos.Cabe, entretanto,mencionar dois pontos.Nenhum desses fragmentos, nem oManual deDisciplina, nem qualquer outro dos textos já lidos,refere-se aos membros da seita como essênios. No Manual, bem como nos fragmentos, seussacerdotessãosempreos“filhosdeZadoc”;eseusleigosnãorecebemnenhumnomeespecial.NãosabemosaocertoquemeraesseZadoc.Entretantoquase todosos estudiososacreditamque sejaoZadocdaBíblia:osacerdotequeungiuSalomão—pois,comrelaçãoàpoligamiadeDavi,umdosfragmentosdizque,quandoDaviesqueceuaLei,Zadocaredescobriu.Textosantigosmostramqueos essênios se consideravam reformadores, e esses fragmentos descrevem um conflito com ossacerdotesoficiaisdeJerusalémqueresultou—osegundofatoadestacar—numamigraçãodaseitaparaDamasco.SegundoopadreDeVaux,talmigraçãopodetermotivadooabandonodomosteiro

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noinexplicadoperíododetrintaanos.Adiscrepânciaentreonomedadoaogrupodissidentepelosautoresqueescreveramsobreeleeonomequeosprópriosmembrosdogruposederamtemsidoexplicadapelateoriadequesóosestranhoschamavamtaismembrosdeessênios,“santos”.Nofuturoseguireioexemplodeoutrosautoresquesededicaramaoassuntoemereferireiaelessimplesmentecomo“aseita”,“irmandade”ou“aordem”.

Contudo,alémdochamadotextozadoquita(tambémconhecidocomodocumentodeDamasco),existem pelomenos quatro livros apócrifosa do Velho Testamento que evidentemente têm estreitarelaçãocomaliteraturadaseita:OLivrodosJubileus,OLivrodeHenoc,OsTestamentosdosDozePatriarcas eAAssunção deMoisés. Dois dosmais destacados estudiosos dos apócrifos doVelhoTestamento—R.H.CharleseC.C.Torrey—atribuíramdatasumpoucodiferentesparaessasobras,masasdivergênciasnãosãomuitograndes,eCharleseTorreyconcordamquetaisescritosforamproduzidos,emsuapresenteforma,entreasegundametadedoséculoiia.C.eo iníciodoséculoid.C.Embora até agora fossemconhecidos apenas em tradução—grega, latinaou etíope—, já sesupunhaqueosoriginaistivessemsidoescritosemhebraicoouaramaico.AgoraarelaçãocomosmanuscritosdomarMortoconfirmaessahipóteseeadatação.Àparteasevidênciasintrínsecasdoassuntoedafraseologia,temosnumapassagemdosfragmentoszadoquitasumareferênciaaoLivrodosJubileusrelacionadacomonovocalendárioqueaseitadissidenteadotouequeaafastoudocultojudaicoortodoxo,umavezqueseusdiassantospassaramacairemdatasdiferentes;eumfragmentodosJubileus,bemcomofragmentosdeHenoceOsTestamentosdosDozePatriarcas,nosoriginaishebraicosearamaicos,figuramentreosmanuscritosdeQumran.

AligaçãocomaliteraturadoscristãosseevidencianacitaçãodeumtrechodoLivrodeHenocnaEpístoladeJudas(14),doNovoTestamento;nareferênciaóbvia,emJudas9,aumepisódiodeAAssunçãodeMoisés—alutadoarcanjoMiguelcomodemôniopelapossedocorpodeMoisés—;eempassagensdosDozePatriarcasqueembreveabordaremos.Ehátambéminequívocassemelhançasentretodosessestextospré--cristãosounãocristãosealgumasobrasqueoutrorafizerampartedocânoncristãoedepoisforamrejeitadas.

A situação se tornou ainda mais empolgante quando o professor Otto Eissfeldt, de Halle,chamouaatençãodosestudiososparaumdocumento—publicadopelaprimeiravezem1901—quedevedatardeumaépocapróximaaoiníciodoséculoixd.C.Trata-sedeumacartaendereçadaporumpatriarcadeSelêuciaaummetropolitadoElam.Dizopatriarca:

Soubemosdejudeusfidedignos,quevinhamsendoiniciadosnareligiãocristã,quealgunslivrosforamencontradoshádez anosnumacavernapróximade Jericó.Eis ahistória: o cãodeumárabequeestavacaçandoentrounumacavernaaoperseguirsuapresaenãomaisvoltou;odonofoiasuaprocuraeencontrounarochaumacâmaraqualhaviamuitoslivros.OcaçadorseguiuparaJerusalémecontousuahistóriaaosjudeus,queacorreramaolocalemgrandenúmeroesedepararamcomlivrosdoVelhoTestamentoeoutrosescritosemhebraico;e,jáquehaviaentreelesumeruditoversadoemliteratura,interroguei-osobremuitaspassagensquesãocitadasemnossoNovoTestamento como sendo doVelhoTestamentomas neste não se acham em partealguma,nemnascópiasdosjudeus,nemnasdoscristãos.Elerespondeuqueestãoláepodemser encontradas nos livros ali descobertos. Quando ouvi isso do catecúmeno, e depois deinterrogarosoutrosemsuaausênciaeouviramesmahistóriasemvariações,escreviarespeito[a alguns amigos nessa parte do mundo e pedi-lhes que examinassem tais manuscritos everificassem] se a passagem “Ele será chamado Nazareno” [Mateus 2:23] e outras que sãocitadasnoNovoTestamentocomosendodoVelhoTestamento,porémnãoconstamdotextoquepossuímos,podiamserencontradasemalgumtrechodosProfetas.

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Opatriarcaperguntava tambémsobreapassagem“Tempiedadedemim,óDeus,conformeaTuamisericórdia[...]asperge--mecomohissopodosanguedeTuacruzepurifica-me”(quenãoestáemnossoNovoTestamento,mas é obviamente uma versão cristianizada do Salmo 50). E o patriarcaprossegue:

Tal expressão não ocorre na Versão dos Setenta nem nas outras [traduções] nem no [texto]hebraico; entretantoohebreumedisse: “AquiencontramosmaisdeduzentosSalmosdeDavientrenossos livros” [...]Semembargo,não responderamaminhacarta sobreesses tópicos, enãotenhonenhumapessoaadequadaaquempossarecorrer.Istoécomofogoemmeucoração,queimandoeardendoemmeusossos.

Dificilmente se encontrariam nos documentos do mar Morto as passagens que preocupavam opatriarca.Elassãodeevidenteorigemcristã,ealiteraturadocristianismosópassouaserregistradaapósadestruiçãodomosteiro.Contudoosexploradoresdascavernasdoséculo ixpodembemterlocalizadonoLivrodeHenoca jámencionadaprofecia invocadaporJudaseainda—numaobraque, comoveremosmais adiante, constavadoprimeiro lotedemanuscritos—numerosos salmosdesconhecidos.

Relacionadacomosachadosrecentes,acartadopatriarcadoséculoixlançaluzessobreoutromistério.Noséculoviiid.C.fundou-seemBagdáumaseitajudaicaheréticaquerejeitavaaautoridadedoTalmude e restabelecia o contato direto com aBíblia. Tal seita, autodenominada caraíta, aindaexistenoOrienteesobrevivianaRússiaantesdarevolução.Ora,aliteraturadoscaraítasestárepletade referências à seita zadoquita, eumdosautores caraítasdizqueos textos zadoquitas circularamamplamenteentreeles.OsfragmentoszadoquitasdoCairo,cujomanuscritoosestudiososdataramdealgumaépocadaIdadeMédia,foramnaverdadeencontradosentrelivroscaraítas.J.L.Teicher,deCambridge,queestudouespecificamenteesseaspectodaquestão,dizqueoscaraítasinvocaramtaistextos“parademonstraralinhagemdeseucredoatravésdareferênciaaosdocumentosqueatestamuma antiga oposição ao judaísmo talmúdico”. E acredita que a literatura da seita inspirou seucalendário peculiar, suas regras alimentares e alguns outros costumes.Mas por que a linguagemcaracterísticadaseitaaparecederepentenoséculoixsemtertidonenhumaparticipaçãonaliteraturajudaicaanterioraessadataeposterioraocristianismo?Porqueostextoszadoquitasacabavamdeserdescobertosnacavernadaqualopatriarcativeraconhecimento,respondeodr.Teicher.Naturalmenteacartadopatriarcaforaescritaantesqueeleouseucorrespondentetivessemorrido—ouseja,emalgummomento na últimametade do século viii ou no começo do ix. Teicher diz que as formaspeculiaresdaescrituradospergaminhosdomarMortotambémcomeçamaaparecerderepenteemdocumentoshebraicosdoséculox.DeVauxassinalouqueporvoltade937d.C.umautorcaraítafaladeumaseitaantiga,aqualparecesituarnomesmoperíodogeraldossaduceusedeJesusequelevaonomedemagaritaporqueseuslivrosforamencontradosnumacaverna(magharahsignificacavernaem árabe); e dois autores muçulmanos posteriores também mencionam a mesma seita, um delesinformandoquefloresceuemmeadosdoséculoia.C.

Assim,todoumconjuntodedocumentosquenuncaforamentendidosquandorelacionadosentresihojepareceencaixar-seperfeitamenteeadquirirumnovosignificadocomopertencenteàliteraturadaseitadomarMortooucomorepresentantes,numafaseanteriorouposterior,dastendênciasquetalseitarepresenta.Assimtomaformatodoumcapítuloausentedahistóriadodesenvolvimentodasideiasreligiosasentreojudaísmoeocristianismo—umcapítuloque,comodisseAlbrightemseuposfácio de 1951 da tradução do Manual de Disciplina elaborada por Brownlee, “poderárevolucionar nossa abordagem dos inícios do cristianismo”. “Os estudos rabínicos são afetadosainda mais diretamente”, acrescenta, “e é seguro dizer que nada do que foi escrito sobre os

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movimentos sectários dos últimos três séculos do Segundo Templo pode escapar a uma revisãocompleta à luz das evidências hoje disponíveis e ainda não publicadas.” Mais recentemente, nosuplemento literário doHerald Tribune de 18 de julho de 1954, Albright disse que agora “seránecessário reescrever todo o material básico de nosso Novo Testamento, pois as novas fontespreenchemumvazioquasetotaldaliteraturajudaicaentreosúltimosapócrifoseasprimeirasfontesrabínicas”. Podemos citar aqui também a opinião de umdosmais eminentes estudiosos franceses,AndréDupont-Sommer,daSorbonne,quepublicoudois livros sobreospergaminhos.Sobre a atéentãoconfusaliteraturadosapócrifospré-cristãoseleescrevenoprimeirodesseslivros:

Éprecisoreconsiderar inteiramente todasasquestõesdecrítica literáriaehistóricarelativasaessa literatura. Confrontamo-nos com toda uma massa de documentos cujo estudo históricoapresentou dificuldades extremas, pois muitas das alusões que contêm permaneciamindecifráveis. Mas agora a nova luz iluminou a história religiosa dos últimos dois séculosanteriores a nossa era; mil detalhes dos textos desse período agora se tornam inteligíveis,finalmenteemergindodocaos.

Mencioneiosdocumentosapócrifosdoperíodo“intertestamental”quejáeramconhecidosemtraduçãoantesdadescobertadosmanuscritosdomarMorto.Comrelaçãoaessestextosesparsos,hámuito tempo se percebeu que pertenciam a uma literatura de transição entre o judaísmo e ocristianismo.AinvocaçãodoSalvador-Messiastorna-semaisimportanteeinsistentequenoslivroscanônicos; e os novos textos cada vezmais tomam a forma de apocalipses— a saber, de visõessobrenaturaisquerevelampassado,presenteefuturosobodisfarcedeumasucessãofantasmagóricade pessoas e animais simbólicos, seres divinos e demoníacos, fenômenos celestiais e infernais.Charles resumeasituaçãoaoprefaciarosegundovolumedesuagrandeediçãodosapócrifos.Noséculoiiia.C.passou-seaconceberaleijudaicadoPentateuco“comoarevelaçãofinalesupremadeDeus”, diz ele; “agora não havia mais possibilidade de representantes independentes de Deusaparecerem diante dos homens, como os profetas anteriores ao Exílio”. De acordo com Zacarias(13:1-5), que escreveuporvoltade500a.C. apartir dopontodevista sacerdotal conservador, umhomempodiaoudeviasermortoporarvorar-seemprofeta.OresultadodissoeraqueumautorquetivesseumanovarevelaçãoseviaobrigadoaatribuirseurelatoouaumdosprofetascanônicosouaumdospatriarcasdoPentateuco.Osúltimosescritosapócrifossãoapresentados,emmuitoscasos,como expressão de Henoc ou Moisés, Jeremias, Baruc ou Isaías. Uma dessas obras, o Livro deDaniel, faz parte do cânon, mas na Bíblia hebraica, ao contrário do que ocorre na cristã, não éadmitidoentreosProfetas,esimrelegadoàmiscelâneadosTextosSacros.Essaobra,quepretendenarrarfatosdocativeironaBabilônia,foielaboradanaverdadeparaaplicar-seàslutasdosjudeusdoperíodohelênicocontraseureiselêucida,Antíocoiv,Epífano,econtém,nasvisõesdeDanielenossonhos de Nabucodonosor, os primeiros exemplos extensos do apocalipse em sua formacaracterística.Oproblemadoestudiosooudohistoriadorconsistiaemestabeleceracorrespondênciaentre os acontecimentos fantásticos descritos nessa literatura apocalíptica e os fatos verdadeirosregistrados; e dificulta essa tarefa a tendência dos autores judeus de verem tudo a partir daperspectivadeDeus:nãopossuindonossosensoocidentaldahistória,misturampassado,presenteefuturoereferem-seapessoascontemporâneassobosnomesdefiguraslegendárias.

Ora,doispergaminhosdoprimeiro lotepertencemaessacategoriaapocalíptica.OprofessorSukenikintitulouumdeles—oqueexpôsaoscorrespondentesemmeioaobombardeiodosárabes—deAGuerradosFilhosdaLuzContraosFilhosdasTrevas.(Atéagoraasautoridadesemquemebaseioconheciamapenasalguns fragmentos,poisoprofessorSukenik faleceuantesdeacabar suaedição.Aíntegradotextohebraicofoirecentementedivulgadaporseufilho,ogeneralYigaelYadin.)

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O outro pergaminho representa uma variação especial, até agora desconhecida, da formaapocalípticacostumeira.Aparentementeumcomentário,versoporverso,sobreoprofetacanônicoHabacuc,constituina realidadeumahistóriados fatosqueeramrecentesnaépocade sua redação,masaquisãorelatadoscomoseHabacucestivesseprofetizando-os.(Trata-sedeumgêneroqueeradesconhecidoquandosedescobriuoprimeirolotederolos;entreosmanuscritosencontradosmaisrecentemente,porém,algunsfragmentosforamidentificadoscomopertencentesaumainterpretaçãosimilardeMiqueias.)Osdoisdocumentosabordamumaguerra,eemambososcasosoinimigosechama kittim. Na origem o termo designava adequadamente o povo de Kition, cidade de Chipre;depois,comsuasvagasideiasarespeitodeseusvizinhosmediterrâneos,osjudeuspassaramaaplicá-loaoshabitantesdasilhasorientaisemgeral,daMacedôniaeatédaItália.AGuerradosFilhosdaLuznosfalados“kittimdeAssur”—obviamenteossírios,osselêucidas—edos“kittimdoEgito”—obviamenteosseguidoresdosPtolomeus.OComentáriodeHabacucoschamasimplesmentedekittim,masdescrevecomcertograudeparticularidadesuaspráticasemétodos:informa-nosquesão“rápidos e corajosos na batalha”, “uma fonte de terror [...] para todas as nações”, “insolentes emrelaçãoaospoderosos”;que“zombamdereiselíderes”e“desprezamasfortalezasdopovo”e“ascercam”e“asdestroem”;queseuscapitães“assumemocomando”edepois“desaparecem,umapósoutro”; que pilham o povo que conquistam e em seguida os sobrecarregam de tributos; e que“passammuitosàespada—homensjovens,adultos,velhos,mulheresecrianças—nãotêmpiedadepelo frutodoventre”.Tudo issoparece aplicar-semelhor aos romanosque aquaisquer outros.Odesaparecimento sucessivo dos líderes bem poderia descrever a situação que prevalece durante asguerrascivis,quandocônsulesegeneraiseramsubstituídosconstantemente.Ofatodequeoskittim“devoramtodasasnaçõescomoumaáguia”tambémcondizcomosromanos,quelevavamaáguiaemseusestandartes;econfirmariaaidentificaçãoocostume,atribuídoaesseinimigo,de“sacrificarassuasinsígnias”.“Suasarmassãooobjetodesuareligião”,dizoautordoComentário.Numerososescritores antigos atestam o culto dos signa de batalha entre as legiões romanas. Embora osestudiososnão sejamunânimes em identificaroskittim comos romanos, parecemconfirmar essahipóteseasconclusõesaquechegouogeneralYadinnumestudosobreAGuerradosFilhosdaLuz.Eleacreditaquealgumasarmasatribuídasaoinimigocorrespondemàsespadascurtasdosromanosequemuitosdetalhesmilitares da luta descrita nesse rolo sópodem referir--se—ou se aplicariammelhor— ao período de JúlioCezar.Os kittim deAssur e os kittim do Egito seriam os sírios eegípciosaliadosaosromanos.

Dupont-Sommer,cujosargumentosresumimaisacima,acreditaqueoComentáriofoiescrito,muito provavelmente, em 41 a.C.— ou seja, três anos após a morte de Júlio César. Ele tambémprocurouidentificarduasfigurascujosnomesotextonuncamenciona,masqueevidentementesãodegrandeimportânciaparaahistóriadaseitadomarMorto.UmadessasfiguraséoMestredaRetidão,umsacerdotequerecebeurevelaçõesdivinaselideraumacomunidadecujosmembrossãopobreseseautodenominam“aNovaAliança”.OmestreéchamadodeEleitodeDeus.Insistenamaisrígidaobservância da Lei e contudo discorda dos sacerdotes de Jerusalém. Foi perseguido por umSacerdote Iníquo — aparentemente chamado às vezes de Profeta da Inverdade ou Homem daInverdade—,que“odevorounoardordesuafúria”,“ousoudespojá-lodesuasvestes”eogolpeou“naexecuçãodeiníquosjulgamentos”,quando“profanadoresodiososcometeramhorroressobreelee vingança sobre o corpo de carne”. (Sigo a tradução de Dupont-Sommer. Outros estudiosostraduzemessaspassagensdemaneiradiferente.Maisadiantevoltareiaesseproblema.)Entretantoosperseguidores serão punidos: “Assim, no final da festa, no descanso doDia dasExpiações, ele [oMestredaRetidão]apareceu-lhesesplendorosoparadevorá-losefazê-loscaíremnessediadejejum,noshabatdeseudescanso”.(EssatraduçãoédeBrownlee,comoasqueseseguem.)Eotextonosdizque“diantedoMestredaRetidãoedoshomensdeseuconselho”DeusentregouoSacerdoteIníquo

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“nasmãosde seus inimigosparaogolpearem,demodoqueelepudesseconsumir-secomaalmaamarga,porquefizeramalaSeueleito”.

QueméoMestredaRetidãoequeméoSacerdoteIníquo?FaleisobreasestreitassemelhançasentreoManualdeDisciplinaeosfragmentoszadoquitas.AcorrentedeevidênciasganhouumnovoeloquandoseobservouqueoMestredaRetidãotambémfiguravanotextozadoquita(aexpressãoéexatamenteamesma,comaomissãodoartigo)equeemambososcasosseusseguidoresestavamunidos por uma Aliança ou Nova Aliança. Além disso a palavra “aliança” aparece ao longo doManualdeDisciplina,referindo-seaosmembrosdaordem.AdescriçãodosseguidoresdoMestredaRetidão, citada acima, coincide com o quadro montado a partir de Josefo e Fílon. O Profeta daInverdadeeoHomemdaInverdadefiguramnosfragmentoszadoquitas,eoProfetadaInverdadeémencionadonosfragmentosdoComentáriodeMiqueias.Dupont-Sommersupõequeosdoisnomesse refiram ao Sacerdote Iníquo e encontra em Josefo uma figura que por seu papel parececorresponderaessehomemodiado.Trata-sedeAristobuloIi,membrodadinastiaasmoniana,sumosacerdoteereideJerusalém,quegovernouoestadojudeudurantetrêsanosemeio(entre67e63);foicapturadoem63eencarceradoporPompeuemRoma;fugiueretornouàPalestina,masdenovofoipresoepostoaferros—demodoquedevetersidoforçadoaparticipardotriunfodePompeu,“comaalmaamarga”—;eporfim,em49a.C.,foienvenenadonocárcereporsequazesdePompeu.Umaprova contundente corrobora tal identificação.OComentário fala da “casadeAbsalão e doshomensdeseuconselho,quesilenciaramanteareprovaçãodoMestredaRetidãoenãooajudaramcontraoHomemdaInverdade,querejeitaramaLeientretodosospovos”.Ora,JosefonosdizqueAristobulotinhaumtiochamadoAbsalãoequeesposousuafilha.

QuantoaoMestredaRetidão,podetratar-sedeumtítulogenéricoconferidoaumasucessãodeMessias.AntesdadescobertadosmanuscritosdomarMortoasmaisantigasreferênciasconhecidasao Messias como “O Eleito” e “O Justo” ocorriam no Livro de Henoc, que Charles datou dosprimeirosanosdoséculoia.C.;eessesnomesnãosófiguramnaliteraturadaseitadomarMorto,comonosEvangelhossãoaplicadosaJesus—aexpressão“oFilhodoHomem”,emboracomumnosprofetasdoVelhoTestamento,éusadapelaprimeiravezparadesignaroMessiasemHenoc.PorcertoexistiramváriaspessoasquediversosautoresaceitaramcomoMessiasemváriassituações;noentanto esses documentos da caverna do mar Morto parecem referir-se a um homem específico.Apresentaram-senumerosassugestões,emaisumavezconsultou-seJosefo,bemcomoiiMacabeus;ambos contam a história de um sumo sacerdote de Jerusalém chamado Onias, exemplar em sua“santidade” e em sua “aversão à maldade”, que foi primeiro suplantado pelo irmão e depoisassassinadopelosucessordesseirmão.Porémissoocorreusobosselêucidas;amortedeOniasdatade171a.C.NessecasoomosteirodomarMortoteriasidoocupadopelaprimeiravez(136?)uns35anosapósoassassinatodoMestredaRetidão,easeitateriatidotempodeabandonarocostumedesacrificar animais (ou de praticá-lo fora do Templo); na condição de sumo sacerdote Oniasnaturalmenteseriaobrigadoaobservartalcostume,assimcomoaadotarocalendárioespecíficodaseita(descritopelaprimeiravezemOLivrodosJubileus,cujaredaçãoR.H.Charlessituouentre153e105a.C.).Assim,oSacerdoteIníquoseriaosumosacerdoteMenelau,sobreoqualiiMacabeusnosdizque“chegoua Jerusalémnada trazendodignodo sumosacerdócio,mas tendoapaixãodeumtiranocruel e a fúriadeumabesta selvagem”.TalqualoSacerdote Iníquo, ele tambémédescritocomoummonstro de rapacidade.Evidentemente amorte deOnias chocou omundo judaico, e hámuito se acreditaque a referência, no capítulononodeDaniel (165a.C.?), aumMessiasque será“decepado”e“nadaterá”aplica-seaoassassinatodeOnias.MasentãooqueacontececomateoriadeDupont-Sommer sobre a Casa de Absalão e a veneração dos estandartes romanos? Não havendomençãodenenhumoutronomepessoal,esseAbsalãopodeserapenasoAbsalãodaBíblia,invocadoemsentidosimbólicoporJosé,sobrinhodeOnias,queodespojoudegrandepartedesuaautoridade;

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esabemosseosexércitosdosselêucidastambémnãoveneravamseusestandartes?Dupont-SommerargumentouqueoskittimdoComentárionãopodiamsersírios,poisestesúltimosnãoprovinhamdas “ilhas” do mar; contudo, objetou-se, a tradução ilhas é vaga, podendo o termo referir-se aqualquerregiãomarítima,e,seépossívelqueoskittim fossemmacedônios, igualmentepossíveléquefossemsírios—aindamaisqueAGuerradosFilhosdaLuzdeixaclaroqueelessãoselêucidas.E,seoSacerdoteIníquoeraMenelau,oHomemdaInverdadenãopodiaseroutrapessoa?Antíocoiv,Epífano, talvez?OpróprioDupont-Sommer considera a hipótese contrária—adequeos nomes,emboraintercambiáveis,serefiramaduaspessoas:Aristobuloiieseuirmãoesucessor,Hircanoii.A situação complicou-se ainda mais quando alguns estudiosos consideraram que, alterando-se asformas verbais doComentário deHabacuc, os fatos envolvidos poderiam pertencer ao campo daprofecia — ou seja, poderiam ter sido apenas preditos em função de um forte desejo de querealmenteacontecessem.(OgeneralYadin,editordeAGuerradosFilhosdaLuzContraosFilhosdasTrevas,defineessaobracomoumavisãoidealdeumtriunfoqueaindaestavaporocorrer,maseraapresentadoemtermosdasarmas,estratégiaetáticasrituaiscontemporâneasdoshebreus.)

O dr. W. H. Brownlee acredita que toda a história envolvida no Comentário de Habacuc énarradapeloMestredaRetidão,oqualvaticinaosacontecimentossubsequentesa suamorte.Odr.Brownlee acredita ainda que o texto se refere a três Sacerdotes Iníquos — Alexandre Janeu,Aristobulo ii e Hircano ii — e descobre uma série de indícios para identificá--los nessa ordemcronológica.SugerequeoMestredaRetidão talvezsejaumcertoJudámencionadonoTalmudeequeteriacriticadoHircanoii.Explicaque,quandopublicousuatraduçãodoComentáriodeHabacuc(citada anteriormente), estava convencido de que o Sacerdote Iníquo “reprovara” o Mestre daRetidão,masadmitequealeituraopostatambémépossível;encontraemJosefoumessêniochamadoJudas (forma helenizada de Judá), que instruía seus discípulos na arte da profecia e se opunha aoclerooficial.Ora,entreostrêsrolosdacavernaoriginaladquiridospeloprofessorSukenikháumacoletânea de 35 salmos — até então absolutamente desconhecidos — que receberam o título de“Hinos de Ação de Graças”. (O texto integral desses hinos finalmente foi publicado pelaUniversidadeHebraicadeJerusalém;atéagoraapenascincoestavamàdisposiçãodosestudiosos.)Supõe-sequeforamcompostosoupelopróprioMestredaRetidão,ou,emsuahomenagem,porumdiscípulo que atua como porta-voz do profeta. O dr. Brownlee assinala que todos os salmos seiniciamcomafrase“LouvareiaTi,Senhor”elembraqueessassãoaspalavrasproferidasporLiaquando lhe nasceu o quarto filho, Judá. O autor de tais salmos “fala eloquentemente de suaperseguiçãoedaperseguiçãodeseupovo”,dizYadin,“edepois,aolongodemaisdevintepáginas,agradeceporsualibertaçãonumalinguagemmajestosa”.Entretantonãosabemosseessalibertaçãoocorreudefatoouseéapenaspreditacomtodaaconvicção.Maisumaveztemosaquidescriçõesdearmasetáticasdeguerra,porémnenhumdadohistóricopreciso.

Esboceiaqui,damaneiramaissimplificada,apenastrêsdaslinhasteóricasqueváriosestudiososdesenvolveramafimdeelucidaroComentáriodeHabacuc.Abibliografiasobreoassuntoéimensa,sendo impossível resumi-la. Tentei tão somente dar uma ideia da dificuldade que existe paradeterminarosfatosreais—enuncasepodetercertezadequesãoreais—dequetratamessestextoshebraicos tardios, para conciliar visões apocalípticas com as crônicas mais realistas de judeushelenizadoseromanizadoscomoJosefoeoautordeiiMacabeus.Noentanto,seédifícilestabelecerahistoricidadedecertos fatose seusatores,asdoutrinaseossímbolomísticosnãoseconfundemfacilmente.Essesnemsempresãocoerentes—devempertenceraummovimentoreligiosoqueseestendeuporunsdoisséculosemeio;semembargoéóbvioqueumacertateologianãosóperpassatodoesseconjuntodedocumentosapócrifostardiosealiteraturadaseitadomarMorto,comoaindaabrangetambémoNovoTestamento.Nãoseriapossíveldelinearaquitodaaintricadarededeinter-referências e inter-relações que une esses textos. Terei de me limitar a descrever os principais

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elementosdessaescoladepensamentomessiânico.

UmadasdoutrinasmaisimportanteséadamoralidadedasDuasVias,desconhecidadosantigoshebreus e presente emmuitos desses documentos. Nessa literatura encontramos repetidas vezes oCaminhodasTrevaseoCaminhodaLuz,oEspíritodasTrevaseoEspíritodaLuz,osFilhosdasTrevaseosFilhosdaLuz.ALuzé aVerdade, e asTrevas sãoaMentira.OMessias,oMestredaRetidão,opõe-seaoDemôniodoMal,maisfrequentementechamadoBelialouBeliar.OCaminhodoBemconduzàsalvação;oCaminhodoMal,aotormento.HaveráumJuízoFinalnofimdostempos— também desconhecido do judaísmo ancestral —, quando o Messias dividirá o mundo. Ele, oEleito, salvará os Eleitos, o povo da Nova Aliança. Os males que sofreram nas mãos de seusinimigos serão vingados. Entrementes, porém, devem preservar sua santidade através dos sacrosrepastos presididos por um sacerdote, da purgação pelo batismo e por abluções constantes. Nosfragmentoszadoquitashátrêsreferênciasao“poçodaáguaviva”salvadoraqueparecemanteciparodiálogodeJesuscomasamaritanajuntoaopoço,quandoelefalada“fontedeáguajorrandoparaavidaeterna”,ediversaspassagensdoNovoTestamentoqueassociamobatismotantoareferênciasdoVelhoTestamento—porexemplo,asdeJeremiasaDeuscomo“fontedeáguasvivas”—,quantoà regeneração espiritual através de Cristo. As águas vivas de Jeremias constituem umametáfora;todavia parece claro que a água dos fragmentos zadoquitas, considerada em relação com o quesabemos sobre as cerimônias da seita, é algo mais que uma metáfora. No Manual de Disciplinaencontramos,porexemplo,aseguintepassagem:

EentãoDeuspurificarácomSuaverdadetodososfeitosdohomem,aprimorando-lheumapartedehumanidadeafimdeeliminardesuacarneosmausespíritoselivrá-lodetodasaspráticasperversas pormeio de umEspíritoSanto, aspergindo-lhe umEspírito da verdade comoáguapurificadoraafimdelimpá-lodetodasasabominaçõese[impedir]quechafurde[ousemacule]noespíritodaimpureza—eassimlhedaráapercepçãocorretadoconhecimentodoAltíssimoedasabedoriadosfilhosdoCéu,dar-lhe-áamaneiraperfeitadecompreender.

Pode ser, como falei anteriormente, que o batismo e a adoração do sol já tivessem chegado àPalestinavindosdoOriente—comoadoutrinadasDuasVias,comseusespíritosdeLuzeTrevas,lembra os Dois Espíritos de Zaratustra e a teologia persa mais recente do maniqueísmo, queconsideravaomundoobjetodeumalutaentredoisespíritosdeLuz-BemeTrevas--Mal,cadaqualcomsuaexistênciaindependente,aoinvésdeobradeumDeustodo-poderoso,criadordoBemedoMal—, uma religião que, originada no século iii d.C., durante algum tempo competiu duramentecomocristianismo.

Encontra-se,porém,adoutrinadasDuasViasnumdocumentoquesetornoupartedaliteraturacristã,emboratenhapermanecidoumtantomisterioso.Antesdesedescobrirtaldocumento,sabia-sepelas velhas listas de textos canônicos e não canônicos que existira outrora uma obra intituladaDidachê,ouEnsinamentosdosdozeapóstolos.Desconfiava-sequeumaobra,àqualosestudiosossereferiamcomoAsDuasVias,forausadaeincorporadaemmanuaisdaigrejaprimitivaetextosdospadresapostólicos.Em1882oalemãoAdamKrawutzcky,estudiosocatólico,tentoureconstituirAsDuasVias; numdesses acidentes espetaculares da erudição ometropolita grego deConstantinoplapublicou no ano seguinte, 1883, um texto grego da Didachê recém-descoberto, que começavadizendo “Há duas vias [...]” e cuja primeira parte era evidentemente a obra desconhecida queKrawutzcky pretendia reconstruir. Suas suposições se confirmaram num grau espantoso. No anoseguinteveio à luzum fragmentodeumaversão latinadomesmo texto,masquenão continha as

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referências especificamente cristãs características daDidachê grega. Alguns estudiosos julgaramentãoqueAsDuasVias—cito11aediçãodaEnciclopédiaBritânica(1910-1)—“pareciaummanualjudaico que passara a ser utilizado pela Igreja cristã”. “Isto, porém”, acrescenta a enciclopédia,“naturalmente é apenas uma inferência provável; não existe protótipo na literatura judaica.”Hoje,contudo,restapoucadúvidaquantoàfontenãosódeAsDuasVias,comotambémdasegundaparteda Didachê, que é um manual de preceitos eclesiásticos. Temos aqui, tal como no Manual deDisciplina do mosteiro do mar Morto, os dois caminhos de luz e trevas que conduzemrespectivamenteàvidaeàmorte,cadaqualsendopresididoporseuanjo,ealinguagemsimilarda“luta” que se trava entre eles e da “coroa” que o homem bom poderá ganhar. Temos o batismo(precedido de jejumnaDidachê), que, como sabemos, era fundamental para o ritual da seita, e osacro repasto,queenvolvepãopartidoeuma taçadevinho,porémnoqualovinho representa “aSanta Videira de Teu [de Deus] filho Davi” e pão simboliza a “vida e o conhecimento que nostransmitiste através de Jesus, Teu filho”.Cabe notar que, emboramencione Jesus, o texto não diznada sobre o perdão cristão. Até então alguns acreditavam que a cerimônia do pão e do vinhorealizada na Santa Ceia e descrita nos Evangelhos se baseava na bênção do pão e do vinho dacelebração da Páscoa judaica; entretanto num estudo da evolução da Eucaristia o professor KarlGeorgKuhn,deGöttingen,assinalouqueacerimôniadaPáscoajudaicaéfamiliar:delaparticipamhomensemulheres,eopaiapreside;jáaComunhãocristãprimitivanatradiçãodeSantaCeiaeraexclusivadehomensquepertenciamaumcírculorestritoepresididapelolíderdeumacongregação.Já vimos que os banquetes da seita eram sagrados e constituíam parte importante de seu ritual.Oprofessor Kuhn acredita que a Comunhão cristã deriva de tais banquetes e que o próprio Jesusacrescentouoperdão.MasestenãoseencontranaDidachê, comovimos, eoutros julgamque foiacrescentadoposteriormente.

Dentre os fragmentos encontrados na primeira caverna deQumran constam duas colunas doManual de Disciplina que tinham desaparecido e ainda não haviam sido publicadas quando oprofessorKuhnelaborouseuestudo; taldescoberta favorecea teoriadequeoritualdaSantaCeiaderiva, emúltimaanálise,da seita.Prescreve-se aquiumprocedimentoque se assemelhademodoaindamais impressionante ao daComunhão cristã. Sempre que dez homens se reunirem para umbanquete,sentar-se-ãoporordemdeprecedência,eosacerdoteeoMessiaspresidirão.Osconvivasnãotocarãoopãonemovinhoatéqueosacerdoteosabençoeeostome—depoisdoqueoMessiasseservirá,seguindo-seosoutrosemordemhierárquica.PodeserqueacerimôniaaquidescritasejaumaantecipaçãolitúrgicadeumbanqueteesperadonoCéu,queoMessiasnãoestejadefatopresente,masosacerdoteajaemseunome,comoosacerdotecristãoemnomedeCristo.Afirmou-seaindaqueumincidentenaSantaCeianarradaporLucastemumsignificadoquesósepodecompreenderrelacionando-ocomoritualdoManual:

Levantou-seentreelesumacontendasobrequaldelessedeviaconsideraromaior.Jesus,porém,disse-lhes:“Osreisdosgentiosexercemdomíniosobreeles;eosquetêmautoridadesobreeleschamam-se benfeitores.Mas entre vós não é assim; antes, o que entre vós é omaior, faça-secomomaisnovo,eoquegoverna,sejacomooqueserve.

Não sabemos qual era a relação de Jesus com os essênios, mas parece que nessa ocasião eledeliberadamentetranstornouseuprotocolo.Josefonosinformacomoerarígidaentreosmembrosdaseitaahierarquiabaseadanaantiguidade,ealinguagemde“maior”e“maisnovo”ébemaqueencontramosnoManual,quefalade“maior”e“menor”.

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As semelhanças entre oManual e aDidachê foram cuidadosamente levantadas por um padrecanadense,Jean-PaulAudet,bqueapartirdomesmopontodevistapublicouemLaRevueBibliqueumestudodeoutraobratidanopassadocomocristã,oPastor,deHermas(osdoisassuntosconstamdos trabalhos lançados sob o título geral de Affinités littéraires et doctrinales du ‘Manuel deDiscipline’ [Afinidades literárias e doutrinais do “Manual de Disciplina”]). Este é um livro de“Visões, Preceitos e Similitudes”, escrito emmeados do século ii d.C., que durante muito tempointegrouemalgunslugaresocânoncristão,porémnofinaldoséculov,emfunçãodeumconcíliodaIgrejaromana,foirelegadoàposiçãodenãocanônico.Sempreseachouesselivroenigmático.NelefiguraumfilhodeDeusquenuncarecebeonomedeJesusouCristoeque,comoumEspíritoSantomencionado ocasionalmente, não se comporta da maneira esperada e condizente com a teologiacristã.AgoraopadreAudetrelêoPastoràluzdessasdescobertasrecentes.Afirmaquesemprefoidifícilexplicá-loexatamenteporqueosestudiososoabordarampeloqueelenãoé—querdizer,emrelaçãoaocristianismo.Abordando-opeloqueeleé,percebe--se que se trata de umproduto perfeito das doutrinas da irmandade.ODeus, oFilho deDeus e oEspírito Santo de Hermas não formam uma Trindade: é Deus que domina oPastor; o filho e oespíritosãomencionadosapenasemconexõesespeciais.A“Igreja”daqualHermasfalanãodevesuacriação ao “Filho de Deus”: tinha já uma longa história quando este último veio purificá-la elembrar-lheosmandamentosdivinos;nãofoisequerfundadaporhomens.“AlgumacoisaditounumsentidopositivoaunidadedopensamentoteológicodeHermas”,dizopadreAudet,“ealgumacoisadevetertambémdeterminadosuaqualidade.”Essa“algumacoisa”éumatradiçãojudaica,nãocristã;masumatradiçãojudaicadeumtipoespecíficoqueagorasetornareconhecívelpelaprimeiravez.Hermas menciona a Didachê, que é obviamente uma das fontes de seus “Preceitos”; e de novoencontramosnoPastoroCaminhodasTrevaseoCaminhodaLuzqueconduzemàsalvaçãoouàperdição e os dois anjos a eles designados.Encontramos o perdão através do batismo, e esse é oúnico tipodeperdãomencionado.QuantoaoEspíritoSanto,vimosnapassagemcitadadoManualque umEspírito Santo estava associado ao ritual da purificação pelo batismo e esse parece ser omesmoEspíritoSantoquefiguraduasvezesnosfragmentoszadoquitascomoalgoquenãodeveserprofanado.Ora,HermasnoscontaqueviveuemRomaedurantealgumtempofoiescravo.OpadreAudetformulaahipótesedequeseupaifosseumjudeuquepertenciaàseitadomarMortoeapósachegadadosromanos,em70d.C.(quandoomosteiroprovavelmentefoidestruído),levouomeninoparaRoma e vendeu-o. (“Aquele queme criou vendeu-me emRoma a um certoRhoda”, escreveHermas.) O filho acabaria tornando-se cristão, porém já estaria tão profundamente imbuído dadoutrinaemsuaformamaisantigaquenuncaassimilariadefatoateologiaelaboradapeloscristãos.aNaturalmenteháumadiferençaentreapócrifosepseudepígrafos,etaisescritospertencemàúltimacategoria.Emboraàsvezessejausadoparaambasascategorias,otermo“apócrifo”designapropriamenteostextosqueaparecemnatraduçãogregadaBíbliaeforamacrescentadosàstraduçõescatólicas,masnãofazempartedocânonmassoréticoeestãoexcluídosdoprotestante.1969.bDepoisdissoopadreAudetpublicouumlivrointeiroemqueabordaoassunto:LaDidachê,introductionsdesapôtres[ADidachê,introduçõesdosapóstolos](J.GabaldaetCie., Paris, 1958).1969.

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5.OQUERENANTERIADITO?

Quem se põe a estudar as controvérsias provocadas pelos manuscritos do mar Morto logopercebeaexistênciadeumacerta“tensão”.Em1951odr.Albrightescreveu:

Nosúltimostrêsanostemhavidoumdebatesobreacronologiadospergaminhosqueàsvezeschegoua transformar--senumaverdadeiraguerredessavants [guerradossábios].Trata-sedeumcapítuloespantosodahistóriadoconhecimento,sobalgunsaspectossemparalelo.

Entretantoatensãonãosedeveapenasaosproblemasdadatação,muitodiscutidosaprincípio,eportrás do próprio debate relativo à datação talvez haja outras ansiedades desvinculadas da puraerudição.

Eu tinha jáumavagaconsciênciada situação,queme foiexpostademaneira instigantenumanoite que passei na zona israelense de Jerusalém com um ilustre erudito judeu de Praga, DavidFlusser.EuacabaradelernoIsraelExplorationJournaluminteressantíssimoartigodeFlusserquerelacionavaoutro livroapócrifo, intituladoAscensãodeIsaías,coma literaturadomarMorto.AoexaminarapartedesselivroconhecidacomoOMartíriodeIsaías,tidacomopré-cristã,odr.Flusserpassou a suspeitar que aqui o profeta do Velho Testamento era o Mestre da Retidão. Aqui oadversáriodelsaíaséBelial,oAnjodaAnarquia;sendoBelial,comovimos,onomecaracterísticocomoqualesseconjuntodetextosdesignaosoberanodasforçasdomal,Flusseridentifica-ocomoAnjodasTrevas, senhorde“todosos filhosdadesordem”,que figuranoManualdeDisciplina; etambémcomoAnjodasTrevasedoMaldasDuasViasdaDidachê.OsagenteshumanosdeBelialserram ao meio esse Isaías porque ele declarou ter visto Deus — e Moisés afirmara que eraimpossívelverDeusecontinuarvivo—esabermaisqueMoisés.(OComentáriodeHabacucdizqueDeus revelou aoMestredaRetidão “todosos segredosdaspalavrasde seus servos, os profetas”.)Poucoantesdeseumartírio,contudo,Isaíasfalaaseusseguidoreseexorta-osa“fugir”paraaregiãode Tiro e Sídon: “Amim somente Deus reservou este quinhão”. Nem a Bíblia nem outros textosmencionam uma fuga para Tiro e Sídon; no entanto Flusser chama a atenção para a seguintepassagemdosfragmentoszadoquitas:“Todososquevoltaramforamentreguesàespada,eaquelesquesemantiveramfirmesescaparamparaaterradonorte”.Damasco,TiroeSídonsituavam-seaonortede Jerusaléme tantona épocados selêucidas comonados romanospertenceramaomesmodepartamento da administração imperial. Flusser supõe que o autor de O Martírio de Isaías“participoudacontrovérsiasobreessapartida”e“tentouprovarpelaautoridadedoprofetaIsaíasqueapartidaforaprenunciadasegundoaVontadeDivina”.

Conquantonão seja implausível, tal teoriadificilmente se apoiaemprovasdecisivascomoasqueunemosoutrosdocumentos.TodaviaFlusseréumhomemcultoeinteligente,evaleapenaouvi-lodiscorrer sobreosmanuscritos,dosquais temseocupadoultimamente, embora seucamponãosejaesse.Conheci-onabibliotecadauniversidadeepedi-lhequefossemevisitar;elechegouaoKingDavidHotelderepente,apressado,semchapéu,comsuapastanamão,e,quandonossentamosnosaguão,deixoude ladoospreâmbulosconvencionaisepôs-sea falardospergaminhos,poissabiaqueeuestavaprocurandomeesclarecersobreoassunto.Foidinâmico,criativo,apaixonado.Haviammecontadoqueelemergulhavaemtextosantigos—pareciacarregá-losportodaparte—enquanto

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esperavanafiladomercado.Oimportante,foilogomedizendo,nãoeraapolêmicasobreasdatas,esimoqueoconteúdodosmanuscritosimplicava.Começoueminglês,masmeperguntousepodiafalarfrancês.Seuinglêserahorrível,explicou;epoucagenteentendiatcheco.(Tiveaimpressãodequenão era comum falar alemãoem Israel.)Aprenderahebraicomeio tardenavida, acrescentou;“aquiminhamelhor língua é na verdade o latimmedieval”. Eu sabia que ele era basicamente umestudioso de assuntos medievais, mas perguntei-lhe com quem falava latim. “Com os jesuítas”,respondeu.Disseram-mequeaoouvirumaperguntaelesedemoravatrêshorasnaresposta,eagoraeu entendia o que isso significava; entretanto Flusser não era nem enfadonho nem tagarela. Aocontrário,rarasvezesconheciumeruditoqueseexpressasse—comtodooseumaterialàmão—demodo tão brilhante e preciso. A cada uma de minhas questões fez uma explanação completa,silenciando só depois de esgotar o assunto.Todos os textos de que precisávamos estavam em suapasta,eelemedeuumTestamentogregoparaeuacompanharasEpístolasdeSãoPaulo,enquantoliaos textoshebraicoseos traduzia fluentementeparaogrego,demonstrandoquenão sóadoutrina,comotambémalinguagemeramamesma.Agoranãolembroquaisforamaspassagenslidas,porémumadecertoeraadescriçãodobatismosegundooManualdeDisciplina (citei-aanteriormente), aqual pode muito bem ter sido justaposta à Epístola a Tito, 3:5: “Não pelas obras de justiça quetivéssemos feito, mas por sua misericórdia, salvou-nos mediante o batismo de regeneração erenovaçãonoEspíritoSanto”.FlusserfaloucomgrandeentusiasmosobreadoutrinadaEleição,dasalvaçãopelagraça,queestáimplícitanessaafirmaçãoedominaasEpístolasdeSãoPaulo.“TemosagoraumanovagenealogiaparaadoutrinadaEleição:oMestredaRetidão,Paulo,Spinoza,Calvino,Hegel,Marx—umadasideiashumanasmaisdesastrosas,adoutrinadapredestinação!”,disseele.Apremênciaeoritmodeseudiscursoeramtaisqueemdadomomentoelefoitãolongecomonuncaviirem nem os oradores mais entusiasmados. Não só levantou a voz, dominado por alguma ideia,esquecidodaspessoasqueseencontravampertodenós,falandocomoseestivessenumasaladeaula,masainda,quandonoaugedeumdeseusargumentosamúsica interferiuemnossaconversacomumamelodia conhecida (embora tivéssemos idopara o ladomais distante a fimdenos afastar daorquestra),meucompanheirocantousuaexposiçãoporalgunscompassos,comosefizessepartedeumaópera;depoisseconteveeretomouaprosa,enquantoguardavaolivronapasta.

Eu já havia começado a imaginar as possibilidades explosivas do tema e agora o ouviadescrevê-las imparcialmente. “Les chrétiens sont dérangés”, declarou Flusser. “Les juifs sontdérangésaussi.Moi, jenesuispasdérangé!”[“Oscristãosestãotranstornados.Osjudeus também.Eu não estou transtornado.”] Eu já ouvira dizer, na Universidade Hebraica, que a seita “cresceradentrodojudaísmo,porémnadatinhaavercomojudaísmo”,eparecequecapteientreoscristãosuma certa relutância em reconhecer que as doutrinas características do cristianismo devem ter sedesenvolvido de maneira gradativa e natural ao longo de alguns séculos e a partir de um ramodissidente do judaísmo. Era isso que transtornava os estudiosos — do lado cristão, sobretudosacerdotesanglicanos,padrescatólicoseministrospresbiterianosoumetodistas;edoladojudeu,senão ortodoxos, pelomenos especialistas na literatura do judaísmo, que abordavamo assunto comcerta reverência. Um estudioso independente como Flusser, que não estava comprometido comnenhuma religião, não tinha motivo para ficar transtornado. “C’est très désagréable pour tout lemonde”, disse-me em outra ocasião, “sauf pour ceux qui s’occupent des apocalypses — ils sontcontents.”[“Émuitodesagradávelparatodomundo,menosparaosquetrabalhamcomoapocalipse—elesestãosatisfeitos.”]Pareciaatéacharpoucoarriscadoenfrentarpublicamenteas implicaçõesdosmanuscritos; no entanto gostava de sua douta neutralidade, e houvemomentos em que quasechegueiapensarqueodiabooenviaraaJerusalémparatiraromáximoproveitodasituação.Flusseréumhomematarracado,depequenosolhosverdes,penetrantesefrios,quebrilhamatrásdosóculosredondossobumassobrancelhasmodestamentemefistofélicas,ecabelos ruivosespetados.Egosta

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dohumorimpassível,que,seointerlocutornãodámostrasdeapreciarimediatamentesuaintençãoirônica,sublinhacomumarisadasecaeestridente.Euovidesconcertaroutrosestudiososaoafirmarque os erros nos textos sagrados e suas leituras equivocadas e ignorantes eram na verdade oelemento construtivo da história da civilização, pois foi principalmente neles que se basearam asideias religiosas de maior sucesso. No entanto Flusser é respeitadíssimo e muito sério em seutrabalho; enão temnadadoblasement [fastio] dopolímata.Mais tarde, quando fomospara o bar,brindamosaoqueelechamoude“levraisaintesprit”[“overdadeiroespíritosanto”]—oπνεῦμαἅγιονeחודשרקהandaramrondandonossocantonosaguão—queahumanidade levaconsigo.Efalou-mecomadmiraçãosobreocaráterdoMestredaRetidão,oqualconseguiaimaginargraçasaotexto integral dos então inéditos Hinos de Ação de Graças: um homem corajoso, acreditava, queenfrentaracomdignidadesuaderrota.NamoralidadedoMestredaRetidãonãohavianadadeJesus,disseFlusser,pois Jesusnosensinouaamarnossos inimigos, eoMestre sentiapelos seusapenasódio e esperava que o Senhor o vingasse. E na doutrina dos seguidores do Mestre, assinalou,tampoucohaviavestígioda ideiacristãdeque sedeveconquistar a salvaçãoatravésdacrençaemJesus,quetiraránossospecados.

DepoisfuicomFlusseredoiseruditos israelensesmais jovensaumanoitadadeconferênciassobre osmanuscritos domarMorto.No jantar ele suscitou umprotesto ao anunciar que, sendo afunçãodaapologéticafundamentalparaaciência,nãoseopunhaàapologética.Semseimportarcomas objeções, explicou que, apesar disso, sempre desconfiou das pessoas que, como um dosconferencistasdanoite,invariavelmentecomeçavamdizendoquesuasopiniõeserambemobjetivaseimparciais.Essaspalestrassobreosmanuscritosforaminteressantes.Umdemeuscompanheirosmetraduziu os pronunciamentos, todos feitos em hebraico. A. M. Habermann, conhecido estudiosoisraelense,expôsasinibiçõesdosjudeusemrelaçãoaosmanuscritos;dissequeoseruditosjudeusàsvezestemiamquetaisdocumentosdestruíssemaautoridadedotextomassoréticodaBíbliaeàsvezesdavamaentender—numaatitudedeploradapelopalestrante—queoassuntointeressavamenosaosjudeus que aos cristãos. Contudo o imenso auditório estava lotado. Eram os feriados da Páscoajudaica, e essa noitada foi apenas um dos eventos de uma semana de conferências realizadassobretudo para professores, muitos dos quais não moravam na cidade e pareciam preferir aspalestras a qualquer divertimento. As sessões se iniciavam, creio, às oito e meia da manhã eprosseguiamatéasonzedanoite.Todasabordavam temasbíblicos.Tivea impressãodequeeramparticularmente interessantes para o público, eFlusser, que também falou, ao voltar para a plateiaexclamou, num trocadilho terrível: “Tout le monde est mégillotmane!” [“Todo mundo émegillotmaníaco!”]—megillotsignificamanuscritosemhebraico.

NamanhãseguinteatravesseiafronteiraefuiparaaVelhaJerusalém,naJordânia,aondefiqueinaAmerican School ofOrientalResearch.O dr. FrankM.Cross, Jr., doMcCormickTheologicalSeminary, de Chicago, que estava trabalhando com o novo material, era professor convidado daescola;eodiretorresidenteeraodr.JamesMuilenburg,doUnionTheologicalSeminary,queandaraestudando novos fragmentos do Eclesiastes e chegara à conclusão de que esse livro pessimista esofisticadonãopodiadatardaépocatãotardiaquealgunssupunham,masdeviapertenceraoséculoiii ou iv a.C., não ao ii a.C. Os últimos anos — com suas descobertas de tumbas egípcias, asescavações de Paestum, Pompeia e Atenas, a sondagem das camadas milenares de Jericó e adecifração da escritaminoica— têm sido gloriosos para os arqueólogos; e têm-se acompanhadocom grande interesse a escavação domosteiro e a leitura dos manuscritos domarMorto. AcheilamentávelqueabarreiraentreIsraeleaJordâniaseparasseosdoisgruposdeestudiosossemitasque—noMuseu Jordaniano daVelha Jerusalém e na universidadeHebraica daNova— trabalhavamrespectivamente com a nova safra de fragmentos e os trêsmanuscritos de Sukenik. O pessoal daUniversidadenãosabianadadasdescobertasdeDeVaux,anãoseroquelera,comlongosintervalos,

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naRevueBiblique(revistatrimestralpublicadaemParis,maseditadaemJerusalémporDeVaux)eprecisa esperar que os textos sejam lançados em fascículos — ao cabo de alguns anos — pelaClarendonPress,deOxford.Aomesmotempo,atéarecentepublicaçãodostextosdaUniversidadeHebraica o estudioso cristão não tinha acesso a eles.Na sessão de palestras da noite anterior, emIsrael,ouviumespecialistaemrabinismo—umhomemalto,magro,debarbanegra,queusavaumsolidéupretoepareciaumrabino—explicarqueumestudodasfotografiasdomanuscritocompletode Isaías, que ainda se encontravamnosEstadosUnidos,mostrava que o texto fora elaborado emconformidade com as normas rabínicas. Entretanto nenhum erudito com esse tipo de competênciapodeexaminarosmanuscritosrecém-encontrados,poisaJordânianãoadmiteaentradadejudeusnopaís, nem deixa permanecer em seu território nenhum judeu reconhecido como tal. Assim, ainimizade entre judeus e árabes está contribuindo para os obstáculos e os riscos dessa curiosasituação, que tem sido umpouco afetada tambémpela rivalidade entre judeus e cristãos.Às vezesencontramosestudiosos judeusafirmandoqueseusadversáriosgentiosnarealidadenãoconhecemhebraico o suficiente para chegar a uma opinião segura; do outro lado também encontramoshebraístasnãojudeusdesdenhandoovalordosestudosrabínicos.

OmomentodemaiortensãonadiscussãodosdocumentosdomarMortotalveztenhaocorridonodia26demaiode1950,quandoA.Dupont-Sommer,professordelínguasecivilizaçõessemíticasdaSorbonneediretordeestudosdaÉcoledesHautesÉtudes,leuperanteaAcadémiedesInscriptionsetBelles-LettresumtrabalhosobreoComentáriodeHabacuc.EscrevendosobreissonoBulletinoftheAmericanSchoolsofOrientalResearchdedezembrode1953,odr.W.H.Brownleerefere-seaDupont-Sommercomo“ooriginalíssimoorientalistafrancês”,chamaotrabalhode“dramático”,dizque“causousensação”econtinua:

OquesuscitouomaiorespantofoisuaafirmaçãodequeoMestredaRetidão,fundadordaseitadosmanuscritos,erasobalgunsaspectosumprotótipoexatodeJesus,especialmentecomoumprofetamartirizado, reverenciado por seus seguidores como o sofredor Servo do Senhor doDeutero-Isaías(OSegundoIsaías,oautordesconhecidodoúltimoscapítulosdoLivrodeIsaías).

VoltemosàsopiniõesdeDupont-Sommer,expostasemseulivroAperçuspréliminairessur lesmanuscritsdelamerMorte,quefoitraduzidoparaoinglêscomoTheDeadseascrolls:apreliminarysurvey[OsmanuscritosdomarMorto:umestudopreliminar]epublicadonomesmoanodaleituradotrabalho.DizDupont-Sommer:

Tudo na Nova Aliança judaica anuncia e prepara o caminho para a Nova Aliança cristã. OMestre daGalileia, comoEle se nos apresentounos textos doNovoTestamento, aparece sobmuitosaspectoscomoumasurpreendentereencarnaçãodoMestredaRetidão.Comoele,pregoupenitência, pobreza, humildade, amor ao próximo, castidade. Como ele, prescreveu aobservânciadaLeideMoisés,daLei inteira,masdaLeiacabadaeaprimoradagraçasaSuasrevelações.Comoele,eraoEleitoeoMessiasdeDeus,oMessiasredentordomundo.Comoele, foi o objeto da hostilidade dos sacerdotes, do partido dos saduceus. Como ele, foicondenadoe executado.Comoele,pronunciou julgamento sobre Jerusalém,que foi tomadaedestruídapelosromanosporqueOhaviammatado.Comoele,nofinaldos temposseráo juizsupremo.Comoele, fundouuma Igrejacujosmembrosesperavamardentemente seugloriosoretorno. Na Igreja cristã, assim como na Igreja dos essênios, o rito fundamental é o sacrorepasto, presidido pelos sacerdotes. Cá e lá, à frente de cada comunidade há o supervisor, o

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“bispo”.EoidealdeambasasIgrejaséessencialmenteodaunidade,dacomunhãonoamor—chegandomesmoaopontodepartilharapropriedadecomum.

Todasessassemelhanças—eaquimaltoconoassunto—reunidasformamumconjuntoimpressionante.Deimediatosurgeapergunta:qualdasduasseitas,ajudaicaouacristã,detémaprioridade?Qual das duas era capaz de influenciar a outra?A resposta não deixamargem adúvidas.OMestredaRetidãomorreuporvoltade65-53a.C.;JesusdeNazarémorreuporvoltade30d.C.Sempreque a semelhançanos levaounos convida a pensar emempréstimo é porpartedocristianismo.Entretanto,poroutro lado,nãosepodeexplicarosurgimentodaféemJesus—a fundaçãodaNovaIgreja—semaatividadehistórica realdeumnovoprofeta,umnovoMessias,quereacendeuachamaeconcentrouemsiaadoraçãodoshomens.

Taisconclusões,prosseguiuodr.Brownlee,

suscitaramgrandeoposição,empartedevidaaomedodequeaunicidadedeCristoestivesseemjogo, mas seguramente baseada num estudo cuidadoso dos textos que o próprio Dupont-Sommer apresentou, o qual prova a fragilidade (se não a impossibilidade) de suasinterpretações.

Com efeito, se examinamos as duas passagens do Comentário de Habacuc em que Dupont-Sommer baseia sua teoria de que oMestre da Retidão foimartirizado— citei-as na tradução dopróprioDupont-Sommer—,descobrimosquenãoconduzemnecessariamenteaessa interpretação.Numdos casos,Habacuc2:7, faltamduas linhas no final domanuscrito, e o tradutor preencheuoespaçocomafrase“ele[oSacerdoteIníquo]perseguiuoMestredaRetidão”.Pelocontextoparecemais provável— como outros tradutores julgaram— que era do Sacerdote Iníquo “o corpo decarne”sobreoqualos“profanadoresodiososcometeramhorroresevingança”.(Cabenotar,todavia,queumdosmaisdestacadosestudiososinglesesdaBíblia,oprofessorH.H.Rowley,daManchesterUniversity,acreditaqueaqui“alinguagemparecefavorecer”aopiniãodeDupont-Sommer.)Nocasodaoutrapassagem,Habacuc2:15,aspalavrasqueDupont--Sommer traduzpor“ousastedespojá-lode suas vestes” podem significar também “pretendeste que ele fosse exilado” (Brownlee) ou“desejaste seu exílio” (DeVaux).DeVaux imediatamente abordou a questão numartigo datadodeJerusalém,marçode1951,epublicadonaRevueBiblique;eacreditaqueaspalavrasdoComentáriotraduzidas por Dupont-Sommer como “apareceu-lhes todo resplandecente” não indicam umatransfiguraçãoporpartedoMestredaRetidão,masqueosujeitodoverboéoSacerdoteIníquo,emostraqueopróprioverbonaverdadetemumsentido—derevelar-se,apenas—muitodistantedeseusignificadooriginalderesplandecer.

PoderiaparecerqueDupont-Sommerexagerou.ContudooMestredaRetidãofoiperseguidoeparece que foi visto como um Messias; e em seu segundo volume, Nouveaux aperçus sur lesmanuscritsdelamerMorte,publicadoem1953etraduzidoparaoinglêscomoTheJewishsectofQumrân and the Essenes [A seita judaica do Qumran e os essênios], o erudito francês conseguefundamentarsuatese,assinalandoaseguintepassagemdeOsTestamentosdosDozePatriarcas,umaobraapócrifa tardiaque jámencioneiaquiemrelaçãocomadoutrinadaseitaecujos fragmentosforamencontradosnascavernas:

Eagoraeusoubequedurantesetentasemanaserrareis,eprofanareisosacerdócio,emaculareisossacrifícios.Etornareisaleinula,eporperversidadedesdenhareisaspalavrasdosprofetas.Eperseguireis homem justos, e odiareis os pios; abominareis as palavras dos fiéis. [E a um

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homemquerenovaaleinopoderdoAltíssimochamareisdeimpostor;eporfimcaireis(sobreele)paramatá-lo,ignorandosuadignidade,pormaldadedeitandosangueinocentesobrevossascabeças.]Eporcausadelevossoslocaissagradosserãodestruídos.Enãotereisumlugarlimpo;massereisentreosgentiosumapragaeumadispersãoatéqueelevolteeemsuapiedadevosreceba[atravésdaféedaágua].

Quando editou os Doze Patriarcas R. H. Charles considerou esse trecho “ininteligível” e em suatraduçãocolocoualgumaspassagensentrecolchetes,conformedeixeinacitaçãoacima,paraindicarqueasviacomointerpolaçõescristãs.Noentantohojenãohánecessidadedeexcluí-las,eotrechopareceperfeitamenteapropriadoseoaplicamosaoMestredaRetidão.Charlestraduzo“Christos”dotextogrego,queaparecetambémemoutraspassagens,por“Cristo”;todavia,como“Cristo”éapenasatraduçãogregadohebraico“Messias”,ambasaspalavrassignificando“Ungido”,istonãosignificaqueasreferênciasnãovisemaoMestredaRetidão;e,sedefatovisam,parecequeoMestremorreumesmonasmãosdeseusinimigos.Alémdisso,OsTestamentosdosDozePatriarcasestãorepletosdeideiaselinguagemsemelhantes,porumlado,àliteraturadaseitae,poroutro,àdocristianismo.AsDuasVias reaparecem; eodr.Charles, escrevendoháquarenta anos,mostroucomclarezaque“muitas passagens dosEvangelhos apresentam traços” dosTestamentos dosDozePatriarcas e que“SãoPaulotalveztenhausadoolivrocomoumvademecum”.“Háoutrassetentapalavras”,segundoparece, “que são comuns aosDozePatriarcas e àsEpístolaspaulinas, porémnão se encontramnorestantedoNovoTestamento.”Oparalelomaisimpressionanteé,talvez,aqueleentreMateus23:35-36eumapassagemdoTestamentodeJosé,i:5-6.Éimpossívelduvidarqueoprimeiroconstituiumaimitaçãodoúltimoouqueambosderivaramdeumafontecomum.

Fuivendidocomoescravo,eoSenhordetodasascoisasmefezlivre:Fuitomadoemcativeiro,eSuamãofortemesocorreu.Fuiatormentadopelafome,eoSenhormealimentou.Estivesozinho,eDeusmeconfortou:Estivedoente,eoSenhor,mevisitou:Estivenocárcere,emeuSenhordemonstroubenevolênciapara

[comigo;Acorrentado,eElemelibertou.[...]

testamentosPorquetivefome,emedestesdecomer,Tivesede,emedestesdebeber,Fuiforasteiro,emeabrigastes,Estivenu,emevestistes,Enfermo,emevisitastes,Estivenocárcere,eviestesver-me.[...]

mateusE as promessas do Sermão da Montanha se prefiguram em vários trechos: “E aqueles que

morreramnosofrimentoseerguerãonaalegria;eosqueerampobresporcausadoSenhortornar-se-ãoricos;eosqueforamassassinadosporcausadoSenhordespertarãoparaavida”.Oevangelhodoperdão perpassa osDozePatriarcas; e aqui ocorre a primeira proposição conhecida—que serepetiriaemMarcos12:19-31—dopreceitodoDeuteronômio6:5deamar“aoSenhorteuDeusdetodooteucoração”etc.,edo19:18deamar“teupróximocomoatimesmo”.(Ainjunçãodeamaro“próximo”ou“irmão”aparecetambémnoLivrodosJubileusenosfragmentoszadoquitas;econta-sequeogranderabinoHilleldoTalmude,queatuounoséculoia.C.e,portanto,pertenceaomesmoperíodo,disseaumgentioqueodesafiouaconvertê-loensinando-lhetodaaToráduranteotempo

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emqueele,ogentio,pudessepermanecerapoiadonumsópé:“Oqueéodiosoparati,nãoofaçasateusemelhante;eisaítodaalei”.OdiálogorelatadoporMarcossepareceumpoucocomisso.)

Notrabalhojácitadoodr.Brownleesustentavaaindaque,emboraemseusegundolivrotivesseestabelecido “de modo mais firme o fundamento de sua teoria”, Dupont-Sommer não conseguiu“apoiá-lacomsegurançaemtextoscomprobatóriosindiscutíveis”.Dizaindaque

muitas vezesDupont-Sommer tem a extraordinária capacidade de no fundo estar correto (ouquase),mesmo quando se baseia nos textos errados!Assim, tambémno presente caso há nosmanuscritosumadoutrinadeumMessiassofredor,porémnão(creioeu)ondeDupont-Sommera encontrou. Acha-se esta numa passagem do Manual de Disciplina então inédito e numapassagemqueaindanãoforadiscutidaemtalperspectiva.

Ora,umadasprovasmaisimpressionantesqueoscristãospodemaduzirdoVelhoTestamentoparafundamentarsuaafirmaçãodequeoadventodeJesuscomoMessiasforaprofetizadonotextoantigoé, naturalmente, o capítulo (53) doSegundo Isaías, que fala deumServoSofredor, “desprezado erejeitadopeloshomens,umhomemdetristezas”,quefoi“feridoporcausadenossastransgressões”e contudopor suas “chibatadas nos purificamos”. Se este não é Jesus, perguntaram-se os cristãos,quem poderá ser?Os estudiosos propuseram Israel, o desconhecido Segundo Isaías, o verdadeiroIsaíaseJeremias.Nenhumdelesparecesatisfatório;eDupont-SommersugeriuqueoSegundoIsaíastalvezdatedomesmoperíodopresentenaliteraturadaseita.Hámuitotempoessesúltimoscapítulosde Isaías foramatribuídos ao exílio naBabilônia, duzentos anos depois do Isaías original, e já seadmitiuapossibilidadedeacréscimosposteriores.EagoraDupont-SommerperguntaporqueessaspassagensnãopoderiamtersidoescritasapósamortedoMestredaRetidão.Ediz:

Agora que soou o alerta é preciso examinar com outros olhos muitas passagens do VelhoTestamento.Semprequesetrata,maisoumenosexplicitamente,deumUngidooudeumProfetaeliminado pormorte violenta, como se pode deixar de perguntar se a pessoa indicada não énossoMestredaRetidão?

MencionaalgunstrechosdeDaniel,ZacariasedosSalmos;esobreaspassagensdoSegundoIsaíasintituladas“CânticosdoServodeJavé”afirma:

Durante vinte séculos tem-se perguntado quem foi esse Profeta manso e humilde, esse justosofredorcujaagoniasalvoumultidões;averdadeéque,excetoJesus,oMessiascristão,sóseconheceumhomemassimemtodaahistóriajudaica—eessefoiconhecidoapenasnumbreveespaço de tempo. Trata-se do pio Mestre martirizado por Aristobulo ii. Não é uma únicarevolução no estudo da exegese bíblica que os documentos do mar Morto desencadearam;começa-seapreverqueelessignificamtodaumatorrentederevoluções.

É impossível para o leigo calcular o valor dessa hipótese. Voltemos a Brownlee, quedesenvolveuumateoriainteressantesobreoSegundoIsaías.Oqueelechamade“umaleituranovaesurpreendente” de Isaías 52:14 foi encontrada no manuscrito completo de Isaías descoberto naprimeira caverna.O acréscimo de uma única letra a esse textomuda o significado aceito de “seuaspecto [do ‘Servo’] foi desfigurado além da semelhança” para “assim ungi seu aspecto além dequalqueroutro”,eissopelaprimeiraveztornaplausíveloiníciodoversoseguinte,umapassagemnaqualoseditoressempretêmtropeçado.AnovaRevisedStandardVersionbtraz:“Demodoqueelesurpreendeumuitasnações”;noentantoosentidomaisóbviodoverboseria“eleespargirámuitasnações” (é o que consta daVersão do rei Jaime). Entretanto, se o Servo Sofredor do Senhor foi

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ungido ao invésdedesfigurado, serianaturalqueem troca tivesseamissãodeespargir asnações.Quemquerquetenhasidoresponsávelporessavariante,parececlaroqueoescribadopergaminhodomarMortoserefereaumMessiasdefinido,eodr.Brownlee,comoDupont-Sommer,associaessapassagem às referências messiânicas em Zacarias e Daniel (9:24-27: o “Ungido”, que será“decepado”).Odr.Brownlee não se compromete coma teoria de que esseMessias é oMestre daRetidão; porém tenta ligar o refinando e espargindo mencionados no Manual de Disciplina eassociados com dar aos adeptos uma “percepção do conhecimento do Altíssimo”, bem como aafirmaçãodoManualdeque“Deusosescolheuparaseremumaeternaaliança”,comalinguagemdoSegundo Isaías nos capítulos sobre oMessiasSofredor. Parece que com isso seria provável Jesuspretender “dar sua vida [como] resgate por muitos no cumprimento da profecia do VelhoTestamento”—profeciaque,senãoderivoudaliteraturadaseita,nelasenutriuefoielaborada.Emoutraspalavras,parecequeoensinamentodaseitadomarMortopodeterpreparadoparaJesusumpapelmessiânicoespecial,omodelodeumacarreirademártir,queeleaceitou,eaoqualaspirava.

Quando se descobriu o Manual de Disciplina, as purgações pela aspersão que nele figuramlevaramosestudiososapensaremde imediatoemJoãoBatista,eaprincípio julgou-seatéqueelepoderia ser oMestre daRetidão. Supõe-se que JoãoBatista nasceu nãomuito longe domosteiro,talvezemHebron;“apalavradeDeus”,contaLucas,chegou-lhe“nodeserto”,oquedeviaindicarasmontanhasáridas,situadasabaixodoníveldomar,queseerguementreomosteiroeacivilização;eseuministério,segundoLucas,exerceu-seem“todaaterradoJordão”.Elenãosótinhaemcomumcomosmembros da seita a prática dobatismo,mas tambémparece seguir seus princípios (Lucas3:11),quandopregaàs“multidões”queoprocuramparaqueasbatize:“Oquetemduastúnicas,dêumaaoquenãotem;eoquetemoquecomer,façaomesmo”.Comoaseita,eleesperaoMessiase,comoaseita—éoquenoslembraodr.Brownlee—,invocanesseaspectooSegundoIsaías:“Avozdoqueclamanodeserto:PreparaiocaminhodoSenhor”.Contudoaseitavivianodeserto,enquantoJoão,nosEvangelhoseemJosefo,sempreaparececomoumascetasolitário,talqualBannus,osantododesertoacujospésJosefosesentou.Qual,então,foiarelaçãodeJoãoBatistacomaseita?Odr.Brownlee supõe que João tenha sido, talvez, umdaqueles “filhos de outros homens” que segundoJosefo os essênios adotavam e “moldavam em conformidade com seus princípios”. “E omeninocrescia”, diz Lucas (1:80), “e fortificava-se no espírito, e habitava no deserto até o dia de suamanifestação a Israel”. Isso nos explicaria por que João passou sua infância no deserto —circunstância que de outra forma seria inexplicável. Nunca vi ninguém sugerir que João tivessealgumadesavençacomaseita;massuadietanodesertoàbasedegafanhotosemelsilvestrelembraosessêniosexpulsosquepassaramacomercapimporquejuraramnãoingerirqualqueralimentoquenãofossepreparadopelairmandade.

EqualfoiarelaçãodeJesuscomoritualeadoutrinadaseita,tãopresentesnosEvangelhos?Seráqueelefoidefatomembrodaseitanaquelesprimeirosanosdesuavidadosquaisnadasabemos—ondeestava,dequeseocupava—,ouseráqueentrouemcontatocomosessêniosbasicamenteatravésdeJoãoBatista,comoAlbrightacredita?DevemoslembrarqueBelémnãoeramuitodistantedomosteiro.Osbeduínosparalásedirigiamquandoencontraramosmanuscritosnacaverna.Ora,segundo Lucas, João e Jesus eram parentes por parte de mãe. Em seus vinte e tantos anos, edificilmentemais jovemqueJoão,JesuspartiudaGalileiaafimdeserbatizadoporJoãoe jejuouquarentadiasnodeserto.Poucotempodepois,segundoparece,JoãofoipresoporHerodes,eentãoseiniciouoministériodeJesus.SabemosbempoucosobreosprimeirostrintaanosdavidadeJesus—oqueleu,quemoinfluenciou.Nasentrelinhasdoqueseusseguidoresescreverampodemossentiro fogo e a força dinâmica, a capacidade de enternecer e o magnetismo de uma personalidadeextraordinária. Entretanto sabemos também que os ritos e os preceitos dos Evangelhos e dasEpístolasseencontramemquasetodasaspáginasdaliteraturadaseita.Àluzdosmanuscritos,alguns

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estudiosos acreditamqueoEvangelho segundo João, que até então sepensava ter sido escrito emépoca tardiae soba influênciadomovimento—empartepersa,emparteplatônico—conhecidocomognosticismo, deve ter partido da seita e deve ser omais, e não omenos, judeude todos osEvangelhos. No começo de João já encontramos o conflito entre Luz e Trevas, e depois muitasexpressõescomo“oespíritodaverdade”,“a luzdavida”,“caminharnas trevas”,“filhosda luz”e“vidaeterna”,queocorremnoManualdeDisciplina.EaindatemosnoManualumapassagemquaseidêntica à descrição do Logos (“Verbo”) que está no início de João e que até então se julgavaderivadadosgnósticos.OManual11:11diz:“Eatravésdeseuconhecimentotudopassouaexistir.Etudoqueexisteeleestabeleceuporseupropósito;esemelenadasefaz”.EJoão1:2-3diz:“EleestavanoprincípiocomDeus.Todasascoisasforamfeitasporele;esemelenadafoifeito”.

Porfim,qualéaevoluçãoqueconduzdamoralidadedaseita—queimpõeatolerânciafraternaentreosmembrosdaordemeinsistenacaridadeparacomospobres,mascondenaedeclaraguerraauminimigoquetentaaniquilá-la—àmoralidadedeJesus,marcadaporexplosõesocasionaisdebelicosidade (“Nãovimpara trazer apaz, e simaespada”) e contudodominadapeloprincípiodoperdão?Como conciliarAGuerra dos Filhos da Luz, que está repleta de armasmilitares, com ainformaçãodadaporFílonnoséculoidequeosessêniosnãoasfabricavam?

A resposta é, sem dúvida, a seguinte: aqui estamos lidando com as fases sucessivas de ummovimento.Teriaoretornodoexílio—queparecedatardecercade4a.C.,conformesugeremasmoedasmaisantigasdasegundalongasequênciaencontradanomosteiroporDeVaux—dadoinícioaumanovafasedavidadaseita,daqualJesuseJoão,comseusministériositinerantes,sãodealgummodosintomáticosoucaracterísticos?DequalquerformapodemosexplicararebeldiadoMestredaRetidão, o pacifismo dos essênios de Fílon e a entrega da outra face de Jesus como indícios desucessivosestágiosdaadequaçãodosjudeusàderrota.NaBíbliavemosclaramentecomooDeusdeIsraelpassoudoferozevingativoJeová,temidoeaplacadonoPentateuco,aoDeusdamisericórdiaedoamorqueosprofetasmaisrecentescomeçamaconceber.OsTestamentosdosDozePatriarcas—queCharles data do final do século ii a.C.— enfatizam amansidão e amisericórdia quase tantoquanto os Evangelhos. Será que aqui o ressentimento com a derrota já está cedendo lugar àresignação, à resignação da impotência política; que nem judeus nem sectários podiam esperar avitória;equeaquelequejulgaser,ouqueseusseguidoresjulgamser,oMessiasdesesperadamenteaguardadopodepregarapenasumasalvaçãomoralatravésdafénumDeusnãomilitanteedaretidãoindividual?AespadaqueJesustrazemMateus10:34,citadoacima,éozeloporseuevangelho,quecolocará o filho contra o pai e tornará “inimigos do homem aqueles de sua própria casa”. Semembargo, em tudo isso ainda parece haver um conflito entre perdão e renúncia aomundo, de umlado, e pugnacidade e ambiçãomundana, de outro.Na linguagemdoSermão daMontanha parecehaverumaestranhahesitaçãoentreprometeraos“pobresdeespírito”“oreinodoCéu”,porumladoe aos “mansos” que “herdarão a terra”, por outro lado.NosDozePatriarcas, que devem ser bemmaisantigos—napassagemcitada,quepareceumprotótipodoSermãodaMontanha—os“pobres“setornarão”“ricos”.c

De qualquer modo, se agora olhamos para Jesus na perspectiva proporcionada pelosmanuscritos, podemos estabelecer uma nova continuidade e finalmente entender o drama queculminou no cristianismo. Podemos perceber como, durante dois séculos, talvez, o movimentorepresentadopelosessêniosresistiuàcoerçãodosgregoseromanoseseopôsnãosóaosmétodos,mastambémaosideaisdeRoma.Podemosimaginarcomo,cercademeioséculoantesdeseurefúgioserincendiadojuntocomoTemplodoDeushebreu,essemovimentonutriraumlíderquehaveriadetranscenderojudaísmoeoessenismoecujosseguidoresfundariamumaIgrejaquesobreviveriaaoImpérioromanoeacabariaporidentificar-secomaprópriaRoma.Soboaguilhãodessesséculosdesofrimentoseaindaantesqueosessêniosfossemexpulsosdesuabase,oespíritodairmandadejáse

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tornaralivreparapercorrertodoomundoantigo,tocandoalmascomaqueleevangelhodepurezaeluz ao qual a seita se consagrara e incutindo desprezo por aquelas águias que o exército de seusinimigosvenerava,conformenotaramcomevidenteespanto.Omosteiro,essaestruturadepedraqueresiste,entreaságuasamargaseosrochedosescarpados,comseufornoeseustinteiros,seumoinhoeseupoço,suaconstelaçãodefontessagradaseostúmulossingelosdeseusmortos,é,talvez,maisqueBelémouNazaré,oberçodocristianismo.

Gostaríamosdeveressesproblemasdiscutidos;eentrementessópodemosnosperguntarseosestudiosos que vêm trabalhando nos manuscritos— muitos dos quais são sacerdotes cristãos ouforameducadosnatradiçãorabínica—nãoteriamseinibidoumpoucoaolidarcomtaisquestõesemfunçãomesmodesuafiliaçãoreligiosa.Paraoleigoésurpreendenteeinspirarespeitodescobrirqueosmaiscompetentesdessesestudiosostêmtratadocomumaargúciaeumafriezabemobjetivaso que há alguns séculos os homens da Igreja deviam ver quase como um domínio do puromito.Sobre qualquer aspecto dos manuscritos que demande conhecimento especial e pesquisa especialencontramos um estudo profundo realizado por umdesses sacerdotes; e não obstante percebemostambém um receio, uma relutância em colocar o assunto na perspectiva histórica. Do lado judeu,comodisseA.M.Habermann,háomedodeenfraqueceraautoridadedotextomassoréticoeainda,conclui-se,umaresistênciaemadmitirqueareligiãodeJesuspodeterbrotadoorganicamentedeumramodojudaísmo,comooprodutodeumasequênciaidentificáveldepressõeseinspirações;doladocristão,comodizodr.Brownlee,háomedo“dequeaunicidadedeCristoestejaemrisco”,eumaresistência recíprocaemadmitirqueamoralidadeeomisticismodosEvangelhospodembemserexplicadoscomoacriaçãodeváriasgeraçõesdejudeustrabalhandosozinhoseparasimesmos,emsuaprópriatradiçãoreligiosa,equenãoéprecisosuporomilagredeumespecialemagnânimoatodivino de permitir a salvação da raça humana. Tais preconceitos desempenham algum papel emcertas tentativas obstinadas — aparentemente contra todas as evidências — de estudiosos comoSolomon Zeitlin, do Dropsie College da Filadélfia, e G. R. Driver, de Oxford, de atribuir aosmanuscritosumadatabem tardia?Odr.Zeitlin,queacreditaqueoscaraítasnão forambuscar suadoutrinanoszadoquitas,porémescreveramosdocumentoszadoquitas,quersituá-losnoséculoviii;o dr. Driver tende ao vi. De qualquer modo seus ensinamentos não poderiam ter desempenhadonenhum papel na evolução inicial do cristianismo. Tais considerações têm alguma relação com apersistência — não isenta de acrimônia, receamos — com que o dr. Joseph Reider, também doDropsie College, tenta invalidar o texto do Isaías do mar Morto, no qual Brownlee encontrouevidênciasdomessianismooudopróprioSegundoIsaíasoudeumescribaquefezacópiadomarMorto.

OsestudiososdoNovoTestamento,quasesemexceção,parecequeboicotaramoassuntodosmanuscritos.Nessecampoasituaçãoépeculiar.Sãojustamenteoseruditosmais“liberais”daGrã-BretanhaedosEstadosUnidosquetêmdemonstradomaiorrelutânciaemlidarcomosmanuscritos;omotivovemaseratendênciadessesliberaisasuporqueasdoutrinasconhecidascomocristãsnaverdadesóforamformuladasváriasgeraçõesapósamortedeJesus:esobretudo,comoeudisse,ajulgarem que o Evangelho de João é tardio e sofreu a influência do pensamento gnóstico. Oprofessor Albright acredita que a doutrina de João já estava “ou explícita ou implícita antes daCrucifixão”, que omaterial referente a Jesus— embora só tenha sido escritomais tarde—deveremontaraantes;de70d.C.(datanaqual,segundoindicamasmoedas,osromanosteriamexpulsadoaseita)equerepresentalembrançasautênticaserefletedemaneiracorretaosensinamentosdeJesus.

Assim,essesnovosdocumentossurgiramcomoumaameaçaadiversasconvicçõesarraigadas,desde questões de tradição e dogma até hipóteses que constituem proezas de erudição. Os textosinquietantesmasesclarecedoresdeDupont-Sommertêmdemonstradodemodocontundentequeemmuitos lugares a abordagem dos manuscritos há muito tempo continua sendo extremamente

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cautelosa.OprofessorA.Dupont-Sommerocupaumaposiçãosingularnacontrovérsiadosmanuscritos.

Lendoseus livros,percebi (atéondemepermitiuminhaexperiência)queeleeraoúnicode todosesseseruditosainvocaraautoridadedeRenan.OautordaHistoiredupeupled’Israël [Históriadopovo de Israel] e dasOrigines du cristianisme [Origens do cristianismo] chama a atenção para apresença, nos apócrifos “intertestamentais”, de certos temas cristãos característicos, e Dupont-Sommer refere--se a isso.Assim, quandoo conheci, não fiquei surpreso ao constatar que ele templena consciência de seguir o que se poderia chamar de tradição renaniana. Hoje Renan é vieux[velho],disse-me,nosentidodequesetornouobsoleto,porémseuidealdehistoriografiaéválido.Dupont-SommerocupaacátedradehebraiconaSorbonne,enquantoRenanfoiprofessordoCollègede France; contudo seus papéis se assemelham, e Dupont-Sommer é o atual diretor do projetopresididoporRenan, tendoditoalgumasvezesqueoconsiderao trabalhomais importantede suavida,oCorpusInscriptionumSemiticarum[CorpodeInscriçõesSemíticas].Dupont-Sommerconstituium exemplo extraordinário de um fenômeno encontrado com tanta frequência que não pode serinteiramente fruto de coincidência. Assim como os biógrafos às vezes se parecem com seusbiografados e os ornitologistas comumente têm um aspecto de pássaro, assim também Dupont-Sommerapresentaumaespantosa semelhançacomRenan.Temo rosto redondo, ébaixoegordo,amável,gentilesorridente.Emboracriadonafécatólica,declara-sehoje“umpursavant”[“umpuroerudito”],semfiliaçãoreligiosa;eparaumentrevistadornamesmasituaçãoéagradáveleanimadordescobrir que os grandes perseguidores seculares da verdade, bem como osMestres da Retidão,podem estabelecer suas disciplinas duradouras. Tal entrevistador no fim se pergunta se qualqueroutroquenãoumestudiososecularestádefatolivreparaenfrentarosproblemasdasdescobertasdomarMorto.Pode terhavidoumapitadade sensacionalismonamaneirapelaqualDupont-SommerexpôsinicialmentesuateserelativaaoComentáriodeHabacuc.Outrosestudiososporcertoficaramchocados, e uma referência ao texto fragmentado mostrará, como eu disse, que ele preencheu alacuna comuma conjetura um tanto arbitrária.Mas afinal resta o fato de que esse erudito francêsindependentefezatéagoraaúnicatentativaemescalaconsiderávelderecuperarocapítuloperdidodahistóriaeapresentá-loaopúblico.Pode-secompraremqualquerboalivrariadeParisseusdoislivrosadmiravelmentebemescritos—nasérieL’Orientancienillustré[OOrienteantigoilustrado].Até agora constituíram a única fonte — deixando-se de lado alguns artigos muito superficiaispublicadosemjornaiserevistas—quepossibilitavaaomundoavaliarointeresseeaextensãodostextoscontidosnosmanuscritos.Emboraasprimeirasnotíciastivessemsidoamplamentedivulgadasem1948-9,desdeentãooassuntovemsendoescondidodoconhecimentogeralemmonografiaseperiódicos. Por exemplo, para conhecer as importantes ideias do dr. Brownlee sobre o ServoSofredordeIsaíaséprecisoreunirumartigotécnicosobrealinguagemdotextoqueseencontranoBulletin of the American Schools ofOriental Research e outro artigo seu que, dividido em partesmuitobreves,saiuemnadamenosquecincoediçõesdaUnitedPresbyterian,umsemanárioreligiosopublicado em Pittsburg. E é impossível explorar essa literatura sem perceber que o impacto deDupont-Sommer não se limitou a suscitar resistências. É evidente que dois dos homens maiscompetentesqueseocuparamdosmanuscritos—H.H.RowleyeopadreDeVaux—,apesardesuasfortescríticasedesuasreservas,emmuitosaspectosseviramobrigadosareversuasposiçõesemfunçãodeDupont-Sommer.

Compete,noentanto,aoseruditoscriticarteoriaseruditas.OleigosópodetentaravaliarseumestudiosocomprometidocomafécristãdefatoarriscaalgumacoisaaolidarcomopossíveldébitodamoralidadeepráticadocristianismoparacomaseitadomarMorto.ParaquemacreditaqueoFilhodeDeusnasceunafamíliadeumcarpinteirodeNazaré,nonortedaPalestina,pregoujuntoaolagodeTiberíadeefoiinterrogadoporPilatosemJerusalémserádefatomaisdifíciladmitirqueele

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foieducadonadisciplinaeinfluenciadopeladoutrinaespecial—contraaqualpareceterreagido—deumacertaseitajudaicaequecomessaseitaaprendeuopapelquedepoisdesempenhoudemestre,Messias emártir? Ou será que a explicação de Jesus— bem como a de Paulo— em termos defatores preexistentes, o situá-lo e visualizá-lo num cenário histórico definido inevitavelmenteenfraquecerãoaafirmaçãodesuadivindadeporpartedaIgreja?QuemvaiaosEvangelhospartindodos apócrifos intertestamentais e da literatura da seita domarMorto deve perceber de imediato ogênio característico de Jesus e a impossibilidade de concordar comuma das piores tendências dainsensívelerudiçãomodernaedeexplicar tudoqueestánosEvangelhosemtermosdeanalogiaseprecedentes. Muitas vezes, mas nem sempre, os textos desses profetas e santos pré-cristãos sãoinsípidos.Parajulgá-losadequadamente,noentanto,teríamosdelê-losemhebraico—nocasodosescritosapócrifoso textohebraicoemgeralnãosobreviveu—;edevemosouvirogeneralYadinquando,referindo-seaosHinosdeAçãodeGraças,declaraduvidar“quequalqueroutralínguaalémdohebraicooriginalpossatransmitiraprofundidadedeemoçãoeabelezaespiritualdessesversos”.Contudo mesmo em seu grego não clássico os Evangelhos ainda transmitem uma força elétrica;conseguemcomover, empolgar e converter.Anteriormente falei da audáciamoral, da sensaçãodeliberdade espiritual que encontramos em determinadas cenas dos Evangelhos; e uma dessaspassagens dramáticas é a de João, 18-19: Jesus acusado perante Pilatos por certo deve ter sidoinspirado — como o texto de Platão sobre o julgamento e a morte de Sócrates — (seja issoliteralmenteverdadeiroounão)porumapersonalidadenobree superior.NemHillel,nemoautordosDozePatriarcas,nemaparentementeoMestredaRetidãojamaistocarameatraíramaspessoascomo Jesus. E sem embargo, como disse Albright, agora é possível pela primeira vez “elucidarhistoricamenteoNovoTestamentoàluzdocontextoimediatodeJoãoBatistaeJesus”.Seráqueesseprocessode elucidação inevitavelmente fará Jesusparecermenos sobre-humanoatéque semostremiraculoso apenas no sentido em que Shakespeare, digamos, é miraculoso: em relação a seuspredecessores?OprofessorAlbrightevidentementenãopensaassim,poisdeclaraalhuresque

ohistoriadornãopodecontrolarosdetalhesdonascimentoedaressurreiçãodeJesuse,assim,nãotemodireitodejulgarsuahistoricidade.[...]AdecisãocompeteàIgrejaeaofielindividual,que estão historicamente autorizados a aceitar o conjunto da estrutura messiânica dosEvangelhosouaconsiderá-laemparteverdadeiradopontodevistaliteraleemparteverdadeiradopontodevistaespiritual—oqueémuitomaisimportantenaesferadoespíritocomaqualafécristãdevelidarbasicamente.

Sim:sóofielpoderesponderaisso.Entretantoparaquemnãoestápreocupadocomoproblemateológico as implicações dosmanuscritos são animadoras. O professorMillar Burrows, de Yale,expôs ao presente autor, de modo preciso e conservador, um ponto de importância fundamental.“Agorapercebemos”,disseele,“quenojudaísmohaviamuitomaisvariedadeeflexibilidadedoquesesupunha.”Paraquemjápensounasrelaçõespeculiaresetensasqueduranteséculosprevaleceramentrejudeusecristãos,equeemalgunslugaresaindapersistem,deveserevidentequeportrásdessesantagonismosexisteummedoantigoearraigadoquecadaumdessesgrupos temdooutro.Quasetodomundodeve terpercebidoalgumamanifestação,aindaquemomentânea,deumadesconfiançainvoluntária, irracional e emmuitos casos injustificada que só perturba as relações normais. EmIsraelmecontaramumahistóriacaracterísticadessetipodesituação.NaépocadaúltimaguerraumainglesaquemoravanaInglaterraachouquenãoseestavafazendoobastantepelosjudeusrefugiadosdeHitler.Umdeseusvizinhoserajudeueestavaregandoojardimquandoelapassoudiantedacasaerecebeuunsborrifosdamangueira.“Vocêachaqueelefezissodepropósito?”,amulherperguntouaumamigojudeu.Essareação—resultadodomedoinstintivomisturadoaumsentimentodeculpa—

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equipara-se,dooutrolado,acasosemquecríticosjudeusencontraramimplicaçõesantissemitasemlivros que absolutamente não as continham. Recentemente essemedo se deve sobretudo ao climacriadopelasperseguiçõesnazistas;ecomcerteza taisperseguiçõesnãose realizaramemnomedeantigasquestõesreligiosas.Hitlerpregouainferioridadeinatadospolonesesedosjudeuserepudiouocristianismocomoumareligiãojudaicaparamaricas;aofazerdosjudeusumbodeexpiatóriooslíderesnazistassemdúvidaestavamtocandoemalgumacoisadamentalidadealemãtãoprimitivaqueparecia pré-cristã.Contudo tais perseguições dificilmente teriam sido possíveis se não houvesse aoportunidadede reavivaras tradicionais restriçõesaos judeusexistentesnaAlemanhamedieval—restrições que foram produto de intolerância e superstição. Educados nos Evangelhos, os cristãosjamaisconseguiramesquecerqueosjudeusrejeitaramJesuseexigiramsuamorte.Duranteséculos—comoaprendicomumhistoriadorjudeu,odr.CecilRoth—nãopodiamconceberqueosjudeusacreditassemdeboa-féquesuateologia,seuritualesualeifossemosverdadeiros,dadosaelesporDeus através de Moisés; tinham plena convicção de que os judeus não acreditavam nisso e nãoconseguiamaceitara fécristãporcausadeumaobstinadaperversidadeatrásdaqualdeviaestarodemônio.Duranteséculosumdosobjetivosdoscristãosfoiconverterosjudeusaocristianismo,e,como quase invariavelmente falharam, voltaram-se contra eles. Mesmo quando os cristãos lhesextorquiram as formas de conversão— como ocorreu na Espanha e em Portugal—, os judeuscontinuaram praticando o judaísmo e aos olhos daqueles ainda mantinham o mesmo estado deespírito que os levara a crucificar Jesus, a quem de bom grado crucificariam de novo. Isso deuorigem à lenda do assassinato ritual de crianças cristãs na Páscoa judaica, um perpetuamentesimbólicodaCrucifixão.Aslendasjudaicascorrespondentes,relacionadascomassassinatoritual—como as que se referem ao rabino Loew, de Praga —, mostram que ainda no século xvi osmoradoresdosguetoseuropeusviviamcommedodequeoscristãos lhes imputassemtalcrime:ogranderabinoestásempresalvando-os;enaviradadoséculoxixaindaocorriamnaEuropacentralprocessos por assassinato ritual. Entrementes, convencidos da depravação judaica, os cristãos sesentiamlivrespara—nãosócomaconsciênciatranquila,mastambémcomfervoreexaltação—penalizar, acusar, torturar e matar os judeus, sob o signo do Jesus crucificado. No lado judeuinfringiu-seosensomoraleemcertamedidaaindapersisteoressentimentocomosadeptosdeumareligiãocujaDivindadeéumDeusdeAmorecujoSalvadortrazasalvaçãoatravésdamisericórdia,masquetiveram,porexemplo,deinaugurarumacruzadaàTerraSantapararesgataratumbadesseSalvadormassacrandoseuscompatriotas judeus.SeocristãonuncadeixoudesehorrorizarcomaindiferençadosjudeusemrelaçãoaJesus,ojudeununcadeixoudesechocarcomoquelhepareceahipocrisia dos cristãos. Numa posição de poder um judeu é capaz de se tornar tão fanático eimplacável comoqualquer tipodehomem; contudo, embora talvez aja assimemnomeda Justiça,comoalgunsdeseuscorreligionárioscomunistas,nãoageassimemnomedeumareligiãoquefalaemperdoartodomundoeofereceraoutraface.Entretantoorancordosjudeuspeloscristãospodeteroutrascausastambém.ÀsvezesimaginoqueosjudeusseressentiramcomosucessodeJesus,queficaramincomodadosaopensarqueemsuaépocaareligiãodeJesusfoiummovimentobenéficoe“progressista”equeoscristãoslhesroubaramseuMessiasetentaramapoderar-sedesuaBíblia.OsdoisMessiaspós-cristãosquemaioresesperançassuscitaramentreosjudeusacabaramporfrustrá-los:SabbataiZeviporseconfessarmaometano,eJacobFrankporsucumbiraocristianismo.Ojudeuortodoxo ficou com uma disciplina de difícil observância, uma devoção ansiosa à letra dasEscrituras,aqualfoi,talvez,tãomalignaquantoopreconceitocristão,mantendo-ofechadoemseucompartimentoespecial.

Pode-se avaliar os rigores e repressões desse velhomundo judaico pela atitude dos espíritosmais fortesquedele se libertaram.Lembro-medeumaconversacomo falecidoprofessorMorrisCohen—umhomemque,comoumavezdisseAlvinJohnson,davaaimpressãodeumalâmpadade

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alabastrodentrodaqual ardia uma chama resplandecente.Parameu espanto e horror, o professorCohenmedisseque,emboranajuventudetivesseadoradoaDivinacomédiaesoubesseboapartedecor,passouanãosuportá-ladepoisque rompeucomo judaísmo:aobra lembrava-lhedeumjeitoclaustrofóbicodemaisoestreitosistemamedievalnoqualelemesmocrescera.Aoouvi-lopercebique na verdade isso distorcera sua concepção de Dante, para quem o tomismo não constituíarealmenteumaprisão,poiseletinhasuaspremoniçõesdoRenascimentoeatéalgumaafinidadecomaReforma.Um curioso incidentemostrou-me comoMorris Cohen permaneceu ligado, apesar detudo,aessefechadomundoortodoxo.Quandoeueraeditordeumarevistasemanal,convenci-oemmeadosdadécadade1920acontribuircomumartigosobreumdocumentárioemcartazquetentavademonstrarateoriadeEinstein.Umdia,quinzeanosdepois,encontrei-oporacasonumtrem.“Sabe”,disse-meele,“foivocêquemeinduziuairaocinema—pagou-mecinquentadólares.Foioúnicofilmequevinavida.”Assim,foiMorrisCohenquemmedeuminhaprimeiravisãomemoráveldascondiçõesemqueointelectualjudeusobreviveuaolongodaIdadeMédiaeagoraatenhopresente.Étãoembaraçosoparaopensamentocriativoaceitarasrestriçõesjudaicasquantoéilusórioeperversoimaginarqueocristianismoinventouorespeitopelosquesofrem,aconsideraçãopelosoutrosealuzdoEspíritoSanto.Todosessespreconceitoselimitaçõesantiquadosparecemgrosseirosquandoexpostoscomclareza,masnomomentoatualnãosepode tratar levianamentea forçamalignadosfanatismosedassuperstições;eparecequeseriaumaimensavantagemparaointercursoculturalesocial— ou seja, para a civilização— se por fim se considerasse o surgimento do cristianismoapenascomoumepisódiodahistóriahumanaeseparassedepropagá-locomodogmaerevelaçãodivina.O estudo dosmanuscritos domarMorto— com o rumo que agora está tomando— nãodeixarálevaraisso,pensamos.

Entrementes avança a passos vigorosos. No belo museu moderno da Velha Jerusalém,construídocomdinheirodeRockefeller,admiravelmenteconcebidoparaseenquadrarnapaisagemarquitetônica de rombudas torres amarelas e velhas paredes nuas e que no entanto faz o visitantesentir-secomoseestivesseemNovaYork,numaalanovadoMetropolitanMuseum,osfragmentosdosmanuscritosdomarMortoforamreunidoseestãosendoexaminados.OpadreDeVauxdirigeostrabalhos; e só três estudiosos têm permissão para decifrar osmanuscritos e pronunciar-se sobreeles:J.T.Milik,umsacerdotecatólicopolonês;odr.JohnAllegro,deManchester;eumespecialistaamericano,quenoanopassadoeraoprofessorCross,deChicago,ehojeémonsenhorPatrickW.Skehan,daCatholicUniversityofAmerica.Asdezenasdemilharesdefragmentos—nãosetentoucontá-los—foramcolocadasemcaixas.Grandesesforçostêmsidofeitosparamanterseparadososconteúdos das diferentes cavernas e as peças encontradas em grupos. Seu tamanho varia desdefragmentosgrandescomoumamão,quepodemconterumacoluna inteira,atémigalhascomumaúnica letra.Alguns acreditamque se levará cinquenta anosparaordená-los edecifrá-los, porémodinâmico De Vaux está mais esperançoso e acha que em dez anos concluirão o trabalho. Osfragmentos selecionadospara estudo sãodispostos em longasmesasnumagrande saladeparedesbrancas.Amaioriaédecouro,masalgunssãodepapiro.Emcorvariamdomarrombemescuroaumtomclarocomodepapel,demodoquedãoaimpressãodefolhasdeoutonoqueficavamcaídasnaflorestadurantetodooinverno.Osfragmentosemestudoacham-sedispostossobplacasdevidro;antes, porém, foi preciso torná-los menos quebradiços, colocando-os num “umidificador”, umacampânulaquecontémesponjasmolhadas.Aoretirá-losdacampânula,oestudiosolimpa-oscomumpinceldepelode cameloembebidoemálcoolouóleode rícino.Àsvezes a tinta sai junto comobarro margoso das cavernas. Às vezes os fragmentos se despedaçam ao toque do pincel e énecessárioprendê-loscomfitaadesiva.Àsvezesficaramnegros,enessecasosãofotografadoscom

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raiosinfravermelhoseexaminadoscomlentedeaumento.Oprimeiroproblemaconsisteemreunir— através de um estudo dos vários escribas e das substâncias que utilizaram— os pedaços quepertencem ao mesmo manuscrito. Os especialistas trabalham numa pequena sala, equipada comíndicesdaBíblia,dicionáriosetodosostextospertinentes.Atravésdoíndicepode-seidentificarumfragmento como parte de um livro bíblico ou de uma obra não canônica conhecida e encontraroutrosqueseencaixem.

Aindanãosereuniramtodososfragmentos;centenasdelesseencontramnasmãosdosárabes,que têm dificultado a situação, pois cortam em tiras os pedaços maiores e vendem-nos um apósoutro,aumentandoopreçodosegundofragmento,pedindomaispelo terceiro,eassimpordiante.Paraacabarcomissoéprecisooferecerumagorjetaproporcionalaotamanhodaspeças.OpadreDeVaux calcula que ainda se deva dispor de 15 mil dólares para comprar o resto dos fragmentos.Levantarodinheironecessárioparacomprartodoomaterialqueseachaempoderdosárabesémaisdifícil do que se imagina. Estabeleceu-se uma norma rígida e imutável: não se pode separar osfragmentosatéquetodostenhamsidoclassificadosedecifradossobaorientaçãodopadreDeVaux.Trata-sedeumanormamuitosábia:éimportantemanterosfragmentosreunidosparacompará-loseordená-los;masemconsequênciadissoasinstituiçõesculturaistêmdeixadodeadquirirconjuntosdefragmentos,poisa instituiçãoqueoscomprar,comofoiocasodasuniversidadesdeManchestereMcGill,sóosteránasmãosdepoisqueforemlidosepublicados.

Debruçando-se sobre as mesas onde se encontram os fragmentos sob placas de vidro,reconhece-secáelá—éespantosocomograndepartedaescritasemantevenítida—oinextinguíveltetragrammaton,onomeimpronunciáveldeDeus.(Orespeitocomquesetratavaessenomevaimaislonge no Comentário de Habacuc, no qual está escrito em caracteres hebreus arcaicos; e cabemencionartambémquefragmentosdevárioslivrosbíblicosqueconstavamdasúltimasdescobertassomaram-se aos pouquíssimos exemplares conhecidos de manuscritos nessa grafia.) Aqui está amaioriadoslivrosbíblicos,àsvezesnumtextoestranhoounumtextoquecorrespondeaogregodaVersão dos Setenta, porém não ao hebraico massorético; e há também livros não canônicos,conhecidos ou não. Imagino que novas revelações ainda podem sair desses fragmentos. Com queavidezosestudiososdevemdebruçar-sesobreessefértilmaterialaquiespalhado!—umaavidezqueemalgunsinstantes,quemsabe,mistura-secomapreensão.

Os achados que, suponho, estão causandomaior empolgação e expectativa são dois rolos decobre que até agora não foram lidos. Parece que até omomento não se conheciam tiras de cobrecomoessas.Foramencontradasumasobreaoutra,juntoàparede,numacavernadeQumranquederestosereveloudecepcionante.Acredita-sequeforamescondidasaliàspressasequelogodepoisumterremoto impossibilitou o acesso à caverna. Essas tiras de cobre foram enroladas com o escritovoltadoparadentro,masoestilopenetroutãofundo—amarteladas,talvez—quesepodedecifrarparte do texto em relevo. A dificuldade está em desenrolar essas tiras. Elas estão verdes emconsequência da oxidação e se esfacelariam se fossem submetidas a pressão. Enviaram-se algunspedaços à Johns Hopkins, na esperança de que se descubra algum método para torná-las maisflexíveis.Seissofalhar,seráprecisocortá-las.Calculou-sequeosdoisrolossomadosteriamquase2,5metrosdecomprimento.

A princípio pensou-se que tais tiras fossem inscrições das paredes domosteiro, e alguns atéimaginaramquepoderiamprovirdasparedesdoTemplo—nestecasoteriamsidoremovidaspoucoantesdeosromanosincendiaremoTemplo,em70d.C.,eescondidasnumacavernasituadaunsdoisquilômetrosaonortedomosteiroquandooprópriomosteirocorriaperigo.EntretantooprofessorK.G.Kuhn,deGöttingen,dquerecentementevisitouJerusalémeestudouosrolosnomuseu,chegouaumaconclusãodiferente.Decifrandotudoquepôdelernoversodascamadasexternas,encontrouuma sucessão de numerais acompanhados da palavra que designa côvado e de outra que pode

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significar ouenterrado ou um lugar—umavala, uma caverna—onde se possa enterrar algumacoisa; encontrou ainda termos como “acima”, “deste lado”, “na sala” que parecem referir-se alocalizações.OprofessorKuhnacreditaqueastirascontenhamumalistadostesourosdomosteiro,comindicaçõesparaseencontraroslocaisondeforamescondidosdosromanos.Nãopodiamestarafixadosnasparedes,pensaele,poisnãohásinaisdepregoseotextonãodeixamargenssuficientesparamolduras.Umdosrolosconsistededuaspeçasseparadasquesepodereunir,comoastirasdecouronospergaminhos,oquelevouodr.Kuhnasuporqueessesmanuscritosforamfeitosparaserdesenrolados e lidos, como os pergaminhos. Prestes a fugir, os membros da irmandade teriamescritoseuinventárionocobreecolocadonumacaverna,esperandoquesobrevivesseàdestruiçãosistemáticadosromanos(ocouronãoresistiria).Seissoéverdade,osarqueólogostalveztenhamasuafrenteumagenuínacaçaaotesouro.aEntre1948e1967,portantonaépocaemqueEdmundWilsonescreveusobreosmanuscritosdomarMorto,JerusalémestavadivididaentreIsraeleaJordânia.(N.T.)bRevisedStandardVersion:versãorevistadaBíbliaelaboradaporestudiososamericanosepublicadaintegralmenteem1952.(N.T.)cConvémassinalarqueodr.J.L.Teicher,deCambridge,acreditaqueaseitafossedosebionitas,“pobres”—ouseja,judeusqueseconverteramaocristianismoporémmantiverampráticas judaicas. Então oMestre daRetidão seria Jesus e oHomemda Inverdade seria Paulo, que estendeu o culto aos gentios. Essa teoria esbarra emalgumasdificuldades;umadelas é a localizaçãodapartidadomosteironumaépocaantigamaispara torná-lapossível; outra équea literaturada seitanãocontémnenhumamençãoevidentedeJesus,nemqualquerreferênciadiretaaseusensinamentos.Odr.Teichertentouencontraralgumas,porémaspoucassemelhançasqueapontaparecemforçadasoumuitovagas.AspalavrasdeJesusteriamdeixadomarcasnítidasmesmonosadeptosjudaizantes.dAtualmenteemHeidelberg,1969.

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6.OGENERALYADIN

E agora vamos finalmente voltar ao metropolita Samuel, que comprou o primeiro lote demanuscritoseacreditoucompersistênciaemsuaantiguidade,quedeixouosestudiososdaAmericanSchooldeJerusalémfotografá-loseque,encorajadoporessesamericanos,foiaosEstadosUnidosemjaneirode1949.OmetropolitaSamuelesperavavenderosmanuscritosaumainstituiçãocultural,porém isso se reveloumais difícil do que os americanos o levaram a acreditar.A publicação dostextos pelaAmerican School não causou o efeito previsto de despertar interesse pela compra dosmanuscritos; ao contrário, diminuiu seu valor comercial. Como os estudiosos tinham acesso aostextos, não havia necessidade de colocar os manuscritos numa biblioteca. O metropolita Samuelfirmara um acordo com a American School, pelo qual esta publicaria em três anos os textosfotografadoseemtrocaelereceberia50%doslucrosdecorrentes.Entretantoapublicaçãodetextoshebraicosaoladodefac-símilesfotográficosémuitocara.OprimeirovolumedosmanuscritosdomarMortocustouàAmericanSchool8mildólares,e,emboraestejaagoranasegundaedição,sónoúltimoanoometropolitaSamuelrecebeusuaparte:cercadetrezentosdólares.Antesdissooúnicolucroqueeletevecomosmanuscritosresumiu-seemalgumaspequenastaxaspagasparaexposiçãoemmuseus.

Entrementes o Departamento de Antiguidades da Jordânia, dirigido pelo inglês Harding,protestou:ometropolitaSamuelnãotinhaodireitode levarosmanuscritosparaforadopaíseosamericanosnãotinhamodireitodepublicá-loseforamconiventescomometropolitanapráticadeum ato ilegal. Insinuou-se que seriam tomadas providências se ele voltasse a Jerusalém. Osamericanos responderam que foram precisamente os homens da escola que explicaram aometropolitaasleispalestinasrelativasaantiguidades,dasquaiselenãotinhaconhecimento;queessesmesmoshomensinformaramodepartamentosobreosmanuscritos;equeantesdisso,quandoandavaprocurandoaopiniãodeumespecialista,ometropolitaosmostraraaopessoaldomuseu;queemnenhum caso ninguém ligado ao departamento demonstrou o menor interesse;a e, por fim, que,quandoometropolita levou seusmanuscritospara foradopaís, seumosteiro se encontrava sobofogocruzadodejudeuseárabes(osúltimoscomandadospelobrigadeirobritânicoGlubb);equenocaosgeraldeixadopelosinglesesnãohaviasegurançanemparasacerdote,nemparamanuscrito,etampoucohaviagovernonem lei relativa a antiguidadesouaqualqueroutra coisa.EmJerusalém,semprequeesseassuntovemàbaila,reconhece-sedeimediatoarixaentreingleseseamericanosquecom tanta frequência se encontra na Europa onde as duas nacionalidades se reúnem. Os inglesesdizemque os ianques, como sempre, foramdesonestos; os americanos replicamque afinal foramelesosprimeirosaperceberemaimportânciadosmanuscritosdometropolitaeoaconselharamairpara os Estados Unidos a fim de colocá-los em segurança. Devo acrescentar, em defesa dosamericanos,queoprofessorDupont-Sommermedissequeosestudiososeuropeus sãogratosaoshomensdaAmericanSchoolporteremtornadoostextosacessíveiscomtantarapidez.

O dr. Burrows, da Yale Divinity School, tem sido diligente em relação aosmanuscritos, e abiblioteca daYaleUniversity chegou a considerar a aquisição dos rolos,mas no fim decidiu nãocomprá-los.Os interessadosnosmanuscritos reclamam—não semalgumazedume justificado—queabibliotecanãotevedificuldadeemlevantar450mildólares,segundoconsta,paraadquirirostextosdeBoswell,porémnãoconseguiureunirasomaprovavelmentemenorqueteriacompradoo

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quesemdúvidaconstituiamaispreciosadescobertadogênerodesdeosclássicosgregose latinostrazidos à luz no Renascimento. Isso era ainda mais lamentável porque nem tudo havia sidopublicado.ExistiaumgrupodefragmentosdeDanielqueometropolitanãoliberara,bemcomoummanuscritointeiroquenemsequerforalido.

Foi essemanuscrito,omenorde seu lote,queometropolita levaraconsigonodiadas fotos,quandoascamadasestavamtãopresasquenãoseriafácildesenrolá-lo.Aindanãosedesenrolouessemanuscrito;mas apartir dedois fragmentosdestacadosdoverso constatou-seque está escrito emaramaiconuma“caligrafiamuitonítidaebela”.Taispeçasforamdecifradaspelodr.JohnC.Trever,queidentificouapalavraBT’NWBcomonomefemininoBetenosdotextoetíopedoLivrodosJubileus.BetenoseraaesposadeLamec,umdospatriarcasdaparteinicialdoGênesis,eparececonfirmaraidentificaçãoumtrechoquediz:“Entãoeu,Lamec,corriaentraremcasadeBetenos”.Ora,umalistaantigadelivrosapócrifosmencionaumLivrodeLamec,epensou-sequeestedeviaestarcontidonoLivrodeHenoc—poisHenoceraancestraldeLamec.Todaviaaleituradomanuscritoparouaí.Ometropolitalevou-oaoFoggMuseum,deCambridge,easautoridadesdomuseulhedisseramqueoroloestavacoladocomumasubstânciaviscosacomoalcatrão,oqueapresentavaumproblemadequímica orgânica. Diante das objeções dos jordanianos ao direito do metropolita sobre osmanuscritos, o pessoal do museu insistiu em segurá-los contra possíveis processos, e quemprovidenciouodinheironecessáriofoiodr.C.H.Kraeling,doChicagoOrientalInstitute.Tratava-se,obviamente,deumasituaçãoincomum,e,comooLloyd’snãosedispôsaassumironegócio,oFoggdemorou algum tempo para conseguir uma apólice. O metropolita foi convidado a assinar umdocumentonoqualdeclaravaquenãoresponsabilizariaomuseuseosmanuscritossofressemalgumdano. Entrementes o sacerdote levou os pergaminhos de volta e deve ter desistido de confiar otrabalhoaoFogg,poisacaboudeixandooassuntodelado.Elesequeixadeque,enquantonoOrienteMédio os arranjos são verbais e as partes cumprem sua palavra, nosEstadosUnidos sempre se éobrigadoaassinarpapéis,quenofimnãogarantemnada.Porexemplo,tevedeassinarcontratosparaexporseusmanuscritosedeterminouquenãoosfotografassem.Entretantoinfringiu-seessetipodecontratoquandoosmanuscritosforamexpostosnoOrientalInstitutedeChicago.Umestudiosoquequeria verificar uma passagem discutida conseguiu fotografar com raios infravermelhos umapalavraborrada.Ometropolitadescobriuissodepois,aolerumtrabalhobaseadoemtalfotografia.

Entrementesnãosehaviamvendidoosmanuscritos,eosestudiososseimpacientavametemiamqueomaterialsedeteriorasse.Aolevá-losparaosEstadosUnidos,ometropolitaoscolocaranumcofre e confiara a custódia a uns sírios de sua Igreja.Qualquer negócio relativo aosmanuscritosseriafeitoemnomedoscuradores,queadministrariamoprodutodesuavenda,eodinheiroseriaempregado em obras eclesiásticas e educacionais. Nessa época o metropolita anunciou que nãodisporiadorolodeLamecseparadamente.Comoovalordosmanuscritoscaíracomsuapublicação,agoraseriamaisdifícilnegociá-lossemochamarizdotextodesconhecido.Eledecidiuvendê-losemlote, porém não fixou o preço. Sugeriu que os especialistas os avaliassem. Em vão esperaria umcompradoramericano,eissoressaltaosfalsosvaloresdoslivrosrarosnomercadodestepaís.Vêm-nos à lembrança os 150mil dólares que o dr. Rosenbach pagou por um exemplar do Bay PsalmBook,cos106mildólarespagosporumaBíbliadeGutenberg,os50milpelaprimeiraversãodeAlicenopaís dasmaravilhas.Os problemas referentes aos direitos dometropolita podem ter tidoalgo a ver com a relutância das instituições culturais;mas semdúvida o principal obstáculo foi arelativa pobreza das instituições interessadas em manuscritos bíblicos — escolas de teologia eseminários—eagrandesuscetibilidadedoscolecionadoresricos,cultivadapeloslivreirosdurantedécadas,àsprimeirasediçõesdeclássicosacessíveisatodomundo.

No verão passado o general Yigael Yadin, filho do professor Sukenik, esteve nos EstadosUnidos, onde ficou demeados demaio ao fim da primeira semana de julho.Conversou sobre os

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manuscritoscomAlbrightedecidiutentarlevantarodinheiroemIsrael.Escreveuumacartaparaometropolita, da qual não obteve resposta, e concluiu que naquelas circunstâncias os sírios nãopoderiam vender os manuscritos abertamente a Israel. Sempre havia a possibilidade de osjordanianos recorrerem às autoridades e tentarem evitar que os rolos saíssem do país; e ainda aJordâniapoderiaapresentarqueixaàsNaçõesUnidas.ContudoumanúncioquesaiunoWallStreetJournal nos primeiros três dias de junho, na seção de “Diversos à Venda”, chamou a atenção dogeneral:

OSQUATROMANUSCRITOSDOMARMORTO

Manuscritos bíblicos que remontam nomínimo a 2000 a.C. estão à venda. Seria uma doaçãoidealparaumindivíduoougrupofazeraumainstituiçãoeducacionaloureligiosa.

Os sírios, ansiosos, lançaram mão desse recurso. Sem deixar seu nome aparecer, Yadin seofereceu para comprar osmanuscritos, utilizando os serviços de um intermediário, um advogadoneutroemrelaçãoaosassuntosisraelensesquenegociouatransaçãoatravésdeumbancodeNovaYork.OssíriosnuncaforaminformadosdequeosmanuscritosiriamparaIsraele,assim,aosolhosdosjordanianosdevemterpassadoporinocentesnaquestãodesuavendaaosinimigos.Opreçofoide 250mil dólares.Umaorganização chamadaAmericanFund for Israeli Institutions dispunha de100mildólares,eYadinconvenceuseugovernoaemprestaro restante.D.SamuelGottesman,ummilionárioamericanodeNovaYork,ofereceu-separadevolverodinheiroaofundoeaogovernoisraelense.TodaatransaçãofoimantidaemsegredoatésetransportaremosmanuscritosparaIsrael.Naturalmente isso ocorreu há algum tempo, porém a compra dos pergaminhos para Israel só foianunciada em 13 de fevereiro de 1955, quando o premiê Sharett explicou que se guardariam osmanuscritos,comoutrosdocumentoantigos,nummuseuqueseriaconstruídoparaessepropósitoese chamaria Santuário do Livro. Assim, os primeiros manuscritos encontrados na caverna deQumran finalmente estão reunidos na Nova Jerusalém. Agora se abrirá o rolo de Lamec, e aUniversidadeHebraicapublicaráseutexto.Istoterágrandeinteresseparaosestudiosos,poistrata-sedoúnicoexemplarconhecidodoaramaico literáriodoperíododequatrocentosanosqueseparaoaramaicodoLivrodeDaniel,noiníciodoséculoiiia.C.,eodorolodoJejum,umdocumentodoséculoiid.C.

O metropolita Samuel mora em Hackensack, New Jersey. Há quatro igrejas de sua fé nosEstados Unidos — uma não muito longe, em West New York — e apenas uma no Canadá. Ometropolitatemviajadodeumaaoutra,massuaposiçãoédifícil,poisnuncahouvenestapartedomundoummetropolitada Igreja jacobita síria e tampoucouma sépara ele.Longedapompaedaantiguidade de seu mosteiro na Velha Jerusalém, mora numa casinha na área suburbana deHackensack,onde,sustentadopelacongregaçãosírialocal,desfrutademodestoconforto.Emmaiode1954 fuivisitá-lo.Asmadeirasbrancaseos tijolosàvistade suacasaneocolonial sedestacamdentre as residências um tanto sombrias e às vezes arruinadas dos bairros mais antigos de NewJersey.Depoisdeatravessarumpequenogramado,bemcuidadoebrilhante, encontrei seunomeeseucargografadosemferrobatido,naantigaescritasíriachamadaestrangelo,sobreumaportadevidroornamental.Eleeraumafiguraexótica,comseusolhosnegrosemagnéticos,suabarbaassíriaeseumantonegro,queumforropúrpuratornavaaindamaisnegro.Disse-mequemuitossacerdotesrussosqueseencontravamnosEstadosUnidostrocavamsuasvestesporternos,quandonãoestavamoficiando,masqueeleusavasempreotrajeclerical.Omobiliárioeraoamericanomoderno;doissuportesde livros tinhambustosdeLincoln.Massobrea lareirahaviaumlivrodeoraçõessírioeuma imagem de Cristo, e ao lado pendia da parede um báculo reluzente, cravejado de rubis. O

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metropolita transformou essa lareira em altar e diante dela celebra o culto de domingo para seusfiéis.NessaépocaplanejavaconstruirumapequenacatedralemHackensack.

Torneiavisitá-loemfevereiroúltimo.Eunãosabiaqueosmanuscritosforamvendidos.Elemerecebeu com um humor excelente e explicou que, por motivos desconhecidos, o comprador dosrolos não permitiu que se revelasse seu nome. O própriometropolita tratara apenas com o vice-presidente de um banco. Serviu-me uma suntuosa refeição síria, composta de legumes, verduras,saladas,frutas,queijosepeixe.Esteúltimoeraopratoprincipal,emeuanfitriãomeexplicouqueaIgreja jacobita síria destinara três dias de fevereiro a umaQuaresma especial para comemorar ojejumdosninivitasquandoJonas,pregandoparaeles, induziu-osaoarrependimento.Esse jejuméuma instituição única das Igrejas orientais dissidentes.Ometropolitame disse que o dinheiro dosmanuscritosseriausadoemobraseducacionaiseeclesiásticasdaIgrejasírianoOrienteMédio.Nãosabia muito bem o que ia fazer agora. De qualquer modo continuará exercendo suas funçõesarquiepiscopais,semseabalarcomascontrovérsiasprovocadaspelosmanuscritosaCabenotarqueG.LankesterHardingnegoutudoisso:“Emtodoessetempo[dadescobertadosmanuscritosàpartidadometropolitaparaaAmérica],sealguémpensouseriamenteemrelataroassuntoaoDepartamentodeAntiguidadesdoGoverno,aideiafoidescartadacomotola,poisnuncaseconcretizou.Oarcebispodeclarouquefezisso,poisconsultouummembrodeseurebanhoqueerabibliotecárioassistentedoMuseuArqueológicodaPalestina,maspode-sedesconsiderartalfato,jáqueapessoaem questão não tinha competência para se pronunciar sobre antiguidades de qualquer espécie e nemmesmo levou o assunto ao conhecimento de seus superiores”.DiscoveriesintheJudaeandesertofJordan[DescobertasnodesertojordanianodaJudeia],ClarendonPress,1955.bAtéoséculoxd.C.,aproximadamente,ohebraicoescritoquasenãousavavogais;assim,nocasodeumnomeatéentãodesconhecido,épossívelgrafarapenasasconsoantes,semoquesechamadepontosmassoréticos.cBayPsalmBook:traduçãodosSalmoselaboradapelomissionárioJohnEliot, “oApóstolodosÍndios”,eoutros;foioprimeirolivropublicadonaAmérica(1640).(N.T.)

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1955-1967

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APRESENTAÇÃO

Os capítulos seguintes foram concebidos como um suplemento de Os manuscritos do marMorto,publicadoem1955.Considerandoquedepoisdissoencontraram-senovosmanuscritos,quealguns manuscritos já descobertos foram desenrolados e lidos pela primeira vez e que surgiramsobreessesdocumentosnovaseinteressantesteorias,acheiquevaliaapenaatualizarmeulivrocomo relato do queme parecem ser os fatosmais importantes. Quero deixar bem claro que não souespecialista em semítico e que só posso expor o que outras pessoas determinaram ou supuseram.Nesse campominha posição émais oumenos como a deHemingway em relação às touradas—também uma ocupação que exige treinamento completo, rígida autodisciplina e disposição paracorrercertosriscos.Semestarqualificadoaparticiparemqualquercondiçãoprofissional,souumobservadoratentoeentusiástico,queaolongodotempoaprendeualgumacoisasobreostoureiroseseus empresários. Conheço a grande autoridade do dominicano Roland de Vaux; a destreza e aelegânciacomqueAndréDupont-Sommermanejaacapa;aagilidadeeavervedeYigaelYadin;atática desastrosa de G. R. Driver, que tende a procurar o touro do lado errado; e os vistososdesempenhos de John Allegro, que deixam o espectador nervoso porque não pode acreditar queterminem tãobemcomohaviamcomeçado.Econsigodistinguir entreasdiferentesescolas:háosestudiososjudeusquereclamamporqueosgentiosnãoconhecemhebraicoosuficienteesãocapazesdepassaranosemcimadeumtextoqueumespecialistanamatériapoderiaeditaremalgunsmeses—aoqueosgentiosreplicam,queixando-sedeque,quandotrabalhamrápidodemais,osestudiososjudeuspodemencontrarnessaliteraturapré-talmúdicaideiasrabínicasposteriores.EháosjudeuseoutrosorientalistasquedeclaramqueoseruditosdeParis,fiéisàtradiçãoracionalizantedeRenan,procuramprecisãoelógicademasiadasnostextosdeautoresorientaisque,nãotendonossamesmaconcepçãodotempo,confusamentemisturampassado,presentee futuro;queviamapersonalidadeindividualdemodotãopoucoocidentalqueéumerrodetectarmodernosromansàcleffrancesesemnebulososrelatosdeacontecimentosquereceberamformaapocalíptica.Eháasdissensõesentreosarqueólogos,quesãoobrigadosabasearsuasespeculaçõesnasevidênciasencontradasemcampo,eos estudiosos puramente acadêmicos, que nunca puseram o pé num sítio, mas se satisfazem comteoriaselaboradasemseusgabinetes.Aestesúltimosvoltareimaisadiante.

Amuitosestudiososdosmanuscritosdevogratidãonãosóporseus textos,comotambémporteremtidoagentilezademereceberoudecorresponder-secomigooudemefornecermateriale,emmuitoscasos,delerminhasprovasparaverificarsehaviaerros:professorW.F.Albright,daJohnsHopkins; professor JohnM.Allegro, daUniversity ofManchester; professorW.H. Brownlee, daClaremontGraduateSchool;professorFrankM.Cross, Jr., deHarvard;padreRolanddeVaux,daÉcole Biblique et Archéologique da que até pouco tempo era a Jerusalém jordaniana; professorAndréDupont-Sommer,quepertenceuàSorbonneehojeestánoCollègedeFrance;professorDavidFlusser, da Universidade Hebraica; dr. Malachi B. Martin, ex-professor do Pontifício Instituto deRoma;professorMenahemMansoor,daUniversityofWisconsin;professorJ.A.Sanders,doUnionTheologicalSeminary;eprofessorYigaelYadin,daUniversidadeHebraica.

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1.POLÊMICAS

A recepção que omundo clerical dispensou a meu livro publicado em 1955 tornou-se umaexperiência educacional para mim: com ela, já que não pertenço a nenhuma Igreja, compreendimelhorquenuncaasdoutrinaseatitudesdosváriosorganismosreligiosos.Ogruporeligiosoquemenos se perturbou com as implicações dosmanuscritos foi o dos unitaristas americanos, que naocasiãodiscutiamseeramounãoeramcristãosequesemprerecebiamcomalegriaqualquercoisaque pudesse enfraquecer as pretensões das Igrejas mais fundamentalistas. Os grupos que mais seperturbaramforamosjudeusortodoxos,oscatólicoseo“Establishment”daIgrejadaInglaterra.

Nocasodosestudiososjudeus—comoSolomonZeitlin,doDropsieCollege,eYitzhakBaer,da Universidade Hebraica, hoje aposentado— que se recusaram a reconhecer a antiguidade dosdocumentos, acho que essa relutância se deveu ou ao fato de os manuscritos apresentarem tantasvariantes do texto massorético da Bíblia — o qual uma comissão de especialistas rabínicos quefizeramopossívelparaeliminarqualqueroutro textosituaramemdatadesconhecidaeasinagogaortodoxadesdeentãoaceitoucomoinalterávele inquestionável—,ouaoconservadorismonaturalde homens cultos que organizaram satisfatoriamente o material disponível de sua área e recuamdiante de qualquer novidade que acrescente elementos inexplicados. Os gentios podem achar issosurpreendente. Sabemos que tanto a Versão dos Setenta quanto a Vulgata de são Jerônimo foramtraduzidas de textos diferentes do massorético e que os samaritanos sempre afirmaram que suaversãodaTorá—ouseja,oqueoscristãoschamamdePentateuco—émaisautênticaqueajudaica.ContudoparaojudeurigidamenteortodoxootextomassoréticodaBíbliaconstituiumaespéciedeobjetosagradoqueéquaseveneradoenãopodesermudado.Cadapalavra—atémesmocadaerro— é inalterável, podendo-se fazer anotações namargem. Omundo do judaísmo ortodoxo é bemfechadoedifícildeser invadido,equandosurgemtextoshebraicosantigosquecorrespondemaosgregos ou samaritanos ou contêm leituras inteiramente novas é necessário rejeitá-los, pois nãopodempertenceraessesistema.Dopontodevistadahistóriatambém,tantoparaoestudiosocristãotradicionalistaquantoparaojudeu,asevidênciasestãotodasali:naBíblia,noTalmude,emJosefo,nosváriostiposdeapócrifos,noshistoriadoresatéagoraaceitosenostextospatrísticoserabínicos.

Ocomportamentodoscatólicosromanosmostrou-mepelaprimeiravezumfenômenodoqualnãome havia dado conta: amedida em que a Igreja católica opera em vários níveis. Um eruditocatólicome disse que a princípio uma espécie de política oficial tendeu a induzir os estudiosos aminimizaremaimportânciadosmanuscritos.Oclerorevelouummedodesnecessárioqueoimpediudelidarcomaquestão.Elemedissequedurantealgumtemposesubmeteuaessapolítica,masdepoisadeixoudelado.Quemestádeforapoderáperguntaraoscatólicos:seCristotinhaumaidentidadehumanacomoJesusdeNazaré,quenumaépocaenumlugardefinidosenfrentouosistemajudaicoea ocupação romana, por que seria chocante supor queEle tivesse colhido algumas de Suas ideiasteológicas nos mestres da seita do mar Morto, hoje identificados em geral com os essênios, damesmaformaquepresumivelmenteaprenderacarpintarianaoficinadeJosé,ouquealgunsdeseusditos e açõespossam representar um repúdio a essesmestres?Umcatólico inteligente e cultoporcerto não se perturbará — pois sabe que seu Cristo apareceu em determinado momento, numasituaçãohistóricaespecial—aodescobrirquecertoselementosdessecontextoagorasetornammaisdistintos.Entretantomuitoscatólicos—comomuitosmembrosdequalqueroutrogruporeligioso—

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não são inteligentes e cultos. Tentar preencher com mais fatos históricos o contexto humano datrajetóriadeCristoequivaleacorreroriscodeenfraqueceralendaqueopopulachoignoranteadoraenãodevequestionarparaqueaIgrejamantenhasuaautoridade.Oqueosacontecimentospolíticos,militares e até doutrinais da história dos antigos judeus têm a ver com as auréolas e os sagradoscorações, o manto azul da Virgem, o manto branco da Ascensão de Jesus, o coro de anjos queanunciaSeunascimentoeosanjos“devestesresplandecentes”queanunciamSuaressurreição?Ospadresmaiscultoseesclarecidosresponderãoquetaisesforçosderepresentaçãoconcreta,sejamasobras-primas de Fra Angelico e Rafael, sejam as estatuetas e amuletos baratos do mais humildevendedordeimagens,queatémesmoaslendascujaverdadeliteralessesmesmossacerdotespodemnão aceitar simbolizam e lembram aos simples uma salvação e paixão divina e, assim, podemparticipardanaturezasagradadaFé.Contudoossimplesnãosabem,nãopodemsaberenãodevemser estimulados a saber o que os católicos eruditos estão escrevendo. Talvez o mais importanteserviço prestado em relação aos manuscritos tenha sido o trabalho do padre Roland de Vaux, oarqueólogoarrojadoeperfeitoqueencontrououcomproudosbeduínosboapartedaliteraturadascavernasomarMortoerevelouomotivodesuapresençanesselugarremoto,Qumran,escavandoasruínas do que foi presumivelmente o mosteiro dos essênios, cuja biblioteca devia consistir dosmanuscritosqueesconderamnascavernasparaprotegê-losdosromanos.AtérecentementeopadreDeVauxeraeditordeumarevistatrimestralpublicadaemParis,aRevueBiblique,quehojetemumacirculaçãode2800exemplarese,emboraestejalongedeserumperiódicomuitolido,temveiculadoamaioriadasnotícias importantessobreasdescobertasdeQumran;ehámaisoumenosdezanos,desdeosprimeirosachados,asconclusõesdeoutrosestudiosos—àexceçãodaseDupont-Sommer,cujos livros começaram a sair em 1950— vêm parecendo só em publicações especializadas tãopoucolidasquantoaRevueBiblique.

Os dois primeiros livros de Dupont-Sommer, logo traduzidos na Inglaterra, despertaram oantagonismo do clero católico, mas não foram amplamente discutidos. Já meu livrinho, que foipublicadopelaprimeiraveznumarevistapopularenãopassadeumatentativapuramentejornalísticade explicar ao leitor comum o conteúdo e a importância dos manuscritos, bem como o que temocorridoemrelaçãoaeles,parecequeexigiudomundocatólicoumantídotopopular.Entreoutrosprotestos,estetomouaformadeumlivro,publicadoemRomaumanodepois(acapaadornadacomospeixesdocristianismo)pelopadremaristaGeoffreyGraystonesobotítuloTheDeadseascrollsandtheoriginalityofChrist[OsmanuscritosdomarMortoeaoriginalidadedeCristo].Pareciaumpanfletodirigidoamim,poisdentretodosqueescreveramsobreoassuntosófalavademim.Trata-sedeumaobrasimplesdeapologéticacatólica,semnenhumvalorerudito,destinadaaumpúblicoinstruídonasnãoculto,equecumpresuafunçãosemacrimônia,numtomdepacienteboavontade.Todavia em outras tentativas de correção, anglicanas e católicas, surpreende o tom arrogante,conjugadocomaabsoluta faltadeescrúpulos,queosapologistasàsvezesadotam.Aocriticarumlivrosobreosmanuscritosparaumapublicaçãonãoespecializada,partemdopressupostodequeaspessoasquevãoleramatérianãotêmnenhumaerudiçãobíblicaeacreditarãoemqualquerafirmaçãodo crítico, desde que este finja falar com autoridade. E naturalmente esse pressuposto em geral écorreto.Atémesmoocríticonãoclericalsério,paraquemoassuntoconstituinovidade,nãopercebequandocometeumerro,conformedemonstraofatodequenenhumadasresenhasdemeulivro—àexceçãodaquelasfeitasporestudiososprofissionaisextraordinários,comoArnoldToynbeeeW.F.Albright—deixoudedeturparoqueeudisse.Meusadversáriosclericaissabiammuitobemcomoerafácil induziroleigoaoerronessecampo.Àsvezesdeclaravamqueeracedodemaisparatirarconclusões,comoquequeriamdizerestabelecerhipóteses,ouqueosestudiososbíblicosrealmenteprofundos estavamdescartando os voos dos superficiais ou, como com frequência são chamados,“sensacionalistas” — tendo como premissa que o crítico possuía suficiente competência para

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determinarquaiseramosestudiososprofundosequaiseramossuperficiais—,ouquehaviamuitotempo se provara o engano de certas conjeturas, como quando um tal reverendo Hugh WilliamMontefiore, hoje vigário deGreat SaintMary’s, emCambridge, e no passado professor deNovoTestamentoemCambridge,afirmounoSpectatorde18demaiode1956queoeruditoanglicanoJ.B.LightfootdemonstraradeformairrefutávelqueJesusnuncapoderiatersidoessênio.Ora,apesardeser um estudioso sério, Lightfoot era ao mesmo tempo um porta-voz de sua Igreja. Era capelãohonorárioaserviçodarainha,tornou-se,sucessivamente,cônegodeSt.Paul’sebispodeDurhametinhaporobjetivodefender a santidadedasEscriturasdos ataquesqueos alemãesdesferiamentãocontrasuaautenticidade.Opequenotratadoemqueabordaosessêniosencontra-senumvolumedecomentáriointituladoSt.Paul’sEpistles to theColossiansand toPhilemon [EpístolasdeSãoPauloaoscolossenseseaFilêmon],publicadopelaprimeiravezem1875.NaépocaLightfootachoumuitoimportante mostrar que Jesus nunca foi essênio. Diz que, “sempre que uma força externa se faznecessária para resolver uma perplexidade, eis o deus ex machina cujo auxílio [os estudiososseculares]prontamenteinvocam”.E,baseadonasdescriçõesdosessêniosfeitasporFílon,JosefoePlínio, o Velho, que forneceram o único testemunho então disponível, discute o assuntominuciosamente. Os dois principais argumentos dos que acreditam que o cristianismo deriva dosessênios,dizele,são,

primeiro,queexisteprovahistóricadiretadeestreitarelaçãoentreosdois;e,segundo,queassemelhanças de doutrina e prática são tão extraordinárias que impõem, ou pelo menosjustificam, a crença em tal conexão. Se essas duas linhas de argumento falham, deve-seconsiderarocasoperdido.

Refutandooprimeirodessespontos,Lightfootafirmaque,emborafosseumascetaquebatizavaseusseguidores, assim como os essênios eram ascetas que batizavam, João Batista era um pregadorindependente,enquantoosessêniosformavamumairmandadequetinhanobatismoumdeseusritos;eque,longedehabitarummosteiro,Jesuseseusdiscípulosviviamemconstantemovimento;equeJesus não observava práticas que os membros da ordem consideravam sagradas, mostrandodesrespeitopeloshabat,comendosemlavarasmãos,jantandodebomgradocompecadoresqueosessênios julgavam intocáveis, deixando-se ungir com óleo, assistindo a um casamento comum ereferindo-se aosmatrimônios “como símbolos dasmais elevadas verdades teológicas”, quando amaioriadosessêniosdeviamanter-senocelibato,enãoseabstendodossacrifíciosconvencionaisnoTemplo,dosquaisosessêniosseafastavam.Lightfootacreditavaquenadahaviadesignificativonofato de que, embora Josefo afirme que as três principais seitas judaicas de sua época eram osfariseus, os saduceus e os essênios, sobre estes últimos não se encontra nos Evangelhos uma sópalavra e nenhumamenção direta e segura na literatura rabínica. Falou--se que a primeira dessasomissõessedeviaaumarelaçãoespecialdeJoãoeJesuscomosessênios,talvezaoafastamentodeJoão, que não obstante continuou a imitar a linguagem da seita; que Jesus podia estardeliberadamente zombando de suas normas. Entretanto Lightfoot explica tudo isso em função darelativa insignificância dos essênios e da remota localização de seusmosteiros. Algumas de suasconclusõesnãosãoincompatíveiscomasquesetêmtiradoultimamente:

Os essênios sofreram muito na guerra romana de extermínio. [...] Após a destruição deJerusalém,reforçarambastanteoorganismocristão.Astendênciasjudaizantesentreoshebreuscristãos,queatéentãoforamtotalmentefarisaicas,tornam-seamplamenteessênias.

MasaquiopontoimportanteéqueLightfootnãodispunhadosdadoshojefornecidospelabiblioteca

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deQumran.Nãotendonenhumaprovadocontrário,dizele:

Comopregadoresdaretidão,comoarautosdoreino,nãotêmdireitoaotítulo[deprofetas].EmtodasasinformaçõesdeJosefoeFílonnãopodemosencontraramenorindicaçãodeesperançasmessiânicas.

NoentantosabemoshojequeapersonalidadepredominantenosdocumentosdosessênioséolíderchamadoMestredaRetidãoequeaseitapossuíaumaliteraturaprofética,podendoeletersidoautorde grande parte. Sabemos também que essa literatura está repleta de referências messiânicas ecarregada de esperanças messiânicas. O reverendo Hugh Montefiore declarar que a última edefinitivapalavrasobrearelaçãodocristianismocomosessênioscoubeaJ.B.Lightfootem1875equivaleadizeraumfísicomodernoquenãosepodefissionaroátomo.

Outro exemplo desse blefe clerical — que ilustra também claramente os diversos níveis daabordagemcatólica—encontra-senaediçãode4defevereirode1956dosemanáriojesuítaAmerica.QuandomeuartigosaiunoNewYorker,recebiumacartagentileelogiosadeumpadreFrederickL.Moriarty, S. J., professor de Velho Testamento noWeston College, Massachusetts, expressando aesperança de que o artigo fosse publicado num livro, “sem a distração dos anúncios demaiôs!”.Quandosaiunumlivro,elemeenviouprovasdeumaresenhaqueescreveraparaoAmerica,naqualfalava do artigo como o fizera na carta. Contudo, quando a matéria foi publicada, vi que estavajustapostaaoutroartigo—anunciadonacapa,ondenãohaviamençãodaresenha—daautoriadoreverendíssimo John J. Dougherty, professor de Sagradas Escrituras no Immaculate ConceptionSeminaryofDarlington,NewJersey,eregentedoInstituteofJudaeo-ChristianStudiesofSetonHallUniversity, Newark. Tal artigo parecia ter sido concebido para neutralizar o possível efeito dasimpáticaresenhadopadreMoriartyecomcertezaparacolocarosleitoresdoAmericaemguardacontrameulivroinsidioso.Continhaaseguintedeclaração:

Ele[Wilson]tomouuma interpretaçãohipotética,adoeruditofrancêsAndréDupont-Sommer,daSorbonne, e apresentou-a, envolta numa linguagemempolgante, ao círculodosque sabemler, porém não sabem avaliar. Isso é maldade. A tese sensacionalista e não comprovada deDupont-Sommer, adotada porWilson, era de que os documentos doQumran revelavam umaantecipação do cristianismo na seita dos essênios. Permitam-me dar um exemplo dainterpretaçãodeDupont-Sommerparaexporminhaposiçãoecolaborarparaestadiscussão.AcolunaoitodoComentário[deHabacuc]terminanomeiodeumafrase;faltaumapartedotexto.[Faleisobreessecomentárioanteriormente.]Acolunanovecomeçanomeiodeumafrase.Aspalavrasiniciaisdacolunanovefalamdealguémquesofreu“vingançanocorpodesuacarne”.Dupont-Sommerespeculativamenteacrescentouaspalavrasquefaltavamnofinaldacolunaoitopara transformar o sofredor da coluna nove no “Mestre da Retidão” [que é citado comfrequênciacomochefedaseita]edaspalavras“corpodesuacarne”inferiuqueeleeraumserdivino.Sic.Ébemverdadequeemsuaobraposteriorabandonouistoeboapartedesuateoria,masWilsonescreveuapenasumartigoquedávidaimerecidaaumahipótesejádescartadaporseuautor.

Ora, antes de mais nada Dupont-Sommer não foi o único estudioso que apresentou a “tesesensacionalistaenãocomprovada[...]dequeosdocumentosdeQumranrevelamumaantecipaçãodocristianismonaseitadosessênios”.HouveaindaW.F.Albright,W.H.Brownlee,K.G.Kuhnemuitosoutros.Setivesseescritoumanodepois,omonsenhorDoughertyteriadeseentendercomopadreJean Daniélou, estudioso que num artigo publicado por L’Express em 1o de fevereiro de 1957

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enumerou 27 razões para acreditar que os essênios influenciaramos primeiros cristãos.Ademais,nãoéverdadequetomeiapenas“umainterpretaçãohipotética”—adeDupont-Sommer.Naverdadeapresentei três.Tampouco é verdadequenão expliquei queDupont-Sommerpreencheuo hiato nofinaldacolunaoito.Narealidadefaleiqueele“exagerou”.Éverdadequenoprimeirodeseuslivrossobre os manuscritos Dupont-Sommer afirma que as passagens do Comentário de Habacucmencionadasacimaconstituem

evidentementeumaalusãoàPaixãodoMestredaJustiça;elefoijulgado,condenadoetorturado.Sofreu “no corpo de sua carne”; era sem dúvida um ser divino, que encarnou para viver emorrercomohomem.

ContudodesconsidereiainferênciadequeoMestredaRetidãofoi“umserdivino”etc.,porque,assimcomoomonsenhorDougherty,euconheciaosegundolivrodeDupont-Sommer,noqualeleseesforçaparaesclarecerquenãoidentificaoMestrecomJesusemostraque,emboraassituaçõesdeambos apresentem certas características em comum, “a semelhança está longe de ser completa”.Alémdecorrigiressaimpressãoqueseuprimeirolivroderaaalgunsleitores,elecomcertezanão“abandonou boa parte de sua teoria”, como declara o monsenhor, mas, ao contrário, defendeu-avigorosamente.

Ocorrem-meapenasduas explicaçõesparaos equívocosdomonsenhorDougherty.OuelenaverdadenãoleumeulivronemosdeDupont-Sommer,ou,apostandonaignorânciadeseusleitoresem relação à literatura dos manuscritos, deliberadamente resolveu enganá-los com uma falsaerudição.

Apesardaevidênciaarqueológica,têminsistidoempós--datar os manuscritos não só estudiosos judeus conservadores, como também o professor G. R.Driver, deOxford, que a fim de expor tal teoria publicou em 1965 uma obra longa eminuciosa,intituladaTheJudaeanscrolls:theproblemandasolution [OsmanuscritosdaJudeia:oproblemaeumasolução].Masantesdeabordaressateoriavoucontinuardefendendomeusinteresses—eosdosestudiososqueDrivertentadesacreditar.NumprólogodeextraordináriaarrogânciaDrivercitameulivro para referir-se, semnomeá-lo, ao professorDavidFlusser, daUniversidadeHebraica, como“um jornalista judeu que aprendeu hebraico ‘meio tarde na vida’”. Sinto muito ter equivocado oprofessorDriver.Quando afirmei que o professor Flusser aprendeu hebraicomeio tarde na vida,quis dizer e esperava que o contexto mostrasse que aprendeu a falar hebraico como língua vivarelativamentetarde,depoisdepassararesidiremIsrael.Quantoaoresto,pareceestranhoDriverterachadoqueFlussererajornalista.Elesemprefoiumerudito.LecionouhebraicoemPragade1947a1950e,quandoconversamos,eraprofessornaUniversidadeHebraica,daquallogodepoisrecebeuotítulodedoutor.Drivermemencionanamesmafrase,depoisdeumpontoevírgula—eigualmentesemcitarmeunome—,como“outro”jornalistajudeuquetambémexpressouopiniõesabomináveis.Soujornalista,seassimquerem;maspeloqueseiDavidFlussernuncaescreveunadaalémdeartigospara periódicos especializados, e tratá-lo como jornalista é de uma impropriedade chocante numintelectualdosupostoportedeDriver.ComoimpróprioeaindamaisindesculpáveléodesdémcomquetrataDupont-Sommer,quehojeocupaacátedradehebraicoearamaiconoCollègedeFrance:Drivernãosónãomencionasuaaltaposição,mastampoucoochamapelonome,referindo-seaeleapenascomo“umprofessorfrancês”.TalqualomonsenhorDougherty,oprofessorDriverafirmaqueesseprofessorfrancêsserefereaoMestredaRetidãocomo“umserdivino”ecitaumapassagemnaqualumjornalistafrancêsabsurdo,quenãoconsigoidentificar,fazpoucodeJesus.

OprincipalobjetivodolivrodeDriverérefutarateoria,emgeralaceita,queopadreDeVauxapresentamagistralmenteemL’archéologie et lesmanuscrits de lamerMorte [A arqueologia e os

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manuscritos domarMorto]: o edifício escavado por ele e peloDepartamento deAntiguidades daJordâniaeraummosteirodosessênios,a seitadescritaporFílone Josefoe situadana regiãoporPlínio,queoocupou—comumintervalodetrintaanos,segundoparece—desdealgummomentonofinaldoséculoiia.C.até68d.C.,quando,naépocadaprimeirarevoltadosjudeus,osromanossitiarametomaramolocal;osmanuscritosforamguardadosnascavernasparanãocaíremempoderdosromanos.(OprofessorDupont-SommerfoioprimeiroadizerqueabibliotecadeQumrandeveterpertencidoaosessêniosequeestesescreverampelomenosumapartedosrolosalicontidos—oquetalvezexpliqueodesdémdeDriver.)AsobjeçõesdeDriverconsistemdesuposiçõesforçadas,incompatíveiscomasevidênciasemqueessa teoriasebaseia.SegundoDriveraseitadomosteironão era a dos essênios — na realidade eles nunca se referem a si mesmos com tal nome nosdocumentosquepossuímos—,esimdequalqueroutrogrupojudeu,queoprofessoringlêschamade “os pactuantes”. O latim de Plínio, diz ele, não significa o que parece significar— pode nãoindicara localizaçãodomosteiro—,eosessênios,que“abjuravamaguerra”,nãoprecisariamde“edifícios tão sólidos”. Osmanuscritos encontrados na cavernas podem não ter relação nenhumacomomosteiro.Driveradmitequeosjarrosnosquaisestavamguardadoseramiguaisaoqueforamachados no mosteiro: “a coincidência, no entanto, pode ser pura casualidade”. As pequenasdimensõesdasalaquesedenominouscriptoriumeaescassaquantidadedetinteirosnelaencontradosmostram que era inadequada ao trabalho de copiar “muitas centenas de manuscritos”. Driverdesenvolveuma teoriacomplicadaeextremamente implausível,quenãobaseiaemnenhumaprovareal.Chegaaessateoriapelométodonegativodeprimeirorejeiteasevidênciasatéentãoaceitas.Oresultadodetudoissoéumatentativadeatribuiraosmanuscritosumadatatãotardia—entremeadosdoséculoid.C.eaprimeirametadedoii—queasdoutrinasepráticasdaspessoasqueosredigiramnãopoderiamtertidonenhumainfluênciasobreasorigensdocristianismo.NumartigopublicadonaRevueBibliquede12deabrilde1966enumaversão inglesaumtantoresumidaquesaiunosNewTestamentStudiesde13deoutubrode1966opadreDeVauxresenhaolivrodoprofessorDrivere,apósexpressarestimapessoalepesarporseverobrigadoacontradizê-lo,destróiporcompletosuateoria.NooriginalfrancêscomeçadedicandonadamenosqueseispáginasàimprecisãoeàconfusãonemumpoucoeruditasdasreferênciasdeDrivereàsfalhasdesuabibliografia.Depoismostraquesuastentativasdeconfutarasevidênciasarqueológicassedevemaofatodenãotê-lascompreendido.SegundoDriverasruínasdeQumrannãopodemserremanescentesdomosteirodosessêniosporquesua reinterpretacão de Plínio situa omosteiro em outro lugar, onde acredita que surgiram ruínascontemporâneasàsdeQumran.DeVauxrespondequeessasruínasrepresentamoquartel-generaldosromanos e que os essênios não podiam viver perto deles, pois Plínio deixa bem claro que eramarredios.DeacordocomDriverosromanosnãopodemteratacadoosedifícios,porqueasflechasencontradas em Qumran e supostamente disparadas pelos invasores estavam “reunidas emdeterminadosaposentos”e,assim,deviampertenceraosmoradores,queparaDrivererammembrosdo belicoso partido dos zelotes ou com ele tinham alguma ligação.Não é nada disso, declaraDeVaux:algumassetasforamencontradasnospátios,“ecreioquepodemosserperdoadospornãoterescavado, à procura de outras, toda a encosta além dosmuros” etc. EDeVaux prossegue:Driver“parece não ter compreendido” a presença das moedas nomosteiro, que estabelecem as datas decertosfatos,bemcomoumterminusadquem,junhode68d.C.,paraacomposiçãodosdocumentos;e,emborademonstreterlidoumartigoquefalasobreisso,nãomencionaadescoberta,emMassada,deumdocumento—o chamado “LiturgiasAngélicas”ou “Cânticos dosSacrifícios doSabá”, doqualseencontraramnabibliotecadeQumranquatrooutrosfragmentosdequatrocópias—queseidentificacomopertencenteàseitadeQumranporqueasequênciadedatasdosshabatsédadanostermos de seu calendário específico. Já queMassada, último baluarte dos judeus na época de suaprimeira revolta, foi tomada pelos romanos em 73 d.C., quando os defensores da fortaleza se

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suicidaramparanãocairnasmãosdoinimigo,éimpossívelquealiteraturadeQumrantenhasidoelaboradanumadataposterior,comoDriverestátentandomostrar.

“É triste encontrar aqui,mais umavez, esse conflito demétodo ementalidade entre o críticotextualeoarqueólogo,ohomememseugabineteeohomememcampo”,observaDeVaux.Esteéumexemplododesacordodequejáfaleiequesedeveteremmenteaolidarcomascontrovérsiasrelativas aosmanuscritos.Através de um trabalho de detetive textual e de imaginaçãohistórica “ohomem em seu gabinete” tentará reconstruir o que aconteceu—mais adiante darei um exemploimpressionante da reconstituição feita por Dupont-Sommer dos fatos existentes por trás doComentáriodeNaum—,porémàsvezesdeixarádeconsiderarosdadosarqueológicos.Poroutroladooarqueólogoprocurasempreaproximar-sedeumacronologiaacuradaenotará,comalgumceticismo,queosfatosdoComentáriodeNaum,porexemplo,foramreconstruídosdeformasmuitodiversasporoutrosestudiososigualmentecompetentes.

Acho que cabe mencionar aqui outro motivo da discordância entre os estudiosos dosmanuscritos:trata-sedaoposiçãoentreaquelesquepelaféoupelaafiliaçãoestãoligadosaumcredocristãoortodoxoeaquelesquesão“livres-pensadores”outeólogosmuitoliberais.Osprimeiros,queinstintivamente se afastam de qualquer coisa que pareça conflitar com a atribuição divina dosEvangelhos, tendema esforçar-se para dissociar osmanuscritos doNovoTestamento, enfatizandosuasdiferenças;osúltimosachamfascinantedescobrirsuassemelhanças.Ora,oautor responsávelnuncanegouasdiferençasqueexistementreasposiçõesatribuídasaJesusnosEvangelhos,comsuaaceitaçãodospobreseproscritos,suapregaçãodeamoreperdão,bemcomoaapresentaçãodaFéquePaulofazaosgentios,porumlado,e,poroutro,ateologiadeumarestritaseitajudaicaqueseconsiderava uma elite—embora às vezes seja cordial ao falar dos “simples”—e a belicosidadeaparentementeferozdeseuMestredaRetidão.ConquantoaliteraturamessiânicadaseitapareçadefatoprepararocaminhoparaosurgimentodeumafiguracomoJesus—devemossemprelembrarqueCristoéapenasa traduçãogregade“Messias”,ou“OUngido”—econquantoalgunsdeseustermos e conceitos se encontrem na literatura do cristianismo, ainda assim são tão evidentes asdiscrepânciasentreosmanuscritoseapalavradeJesus,nãohavendodeunsàoutranenhumaponteinequívoca,queaindanãoseapresentounenhumaprovaqueabalasseacrençanutridapormuitosdequeJesuseraofilhodeDeusnumsentido literal,especial,equesó issopodeexplicara tremendaforçadosEvangelhos.

“Minha fénão tememeusconhecimentos”,disse-mecertavezopadreDeVaux.Eemboranopassado ele eventualmente fosse severo comos eruditos descrentes, tenho a impressão de que, notocante ao estudo dos manuscritos, as inibições impostas pelos envolvimentos religiosos e pelostabusdasuperstiçãoagoratendemadesaparecer.Ojovemquecomeçounumsemináriopodeviradesconsiderara teologiaepartirparaapesquisaarqueológicaoupaleográfíca,oudescobrirqueécapaz de ganhar a vida lecionando hebraico ou história oriental antiga num seminário ou numauniversidadeondesequestionarásuaortodoxia.

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2.OAPÓCRIFODOGÊNESIS

Umúnicomanuscrito da caverna um não havia sido lido nem publicado quando o governoisraelense adquiriu todos esses rolos; com base em dois fragmentos destacados, os estudiososinicialmente se referiam a ele como o Livro de Lamec, obra que consta de uma antiga lista deapócrifos. Tal manuscrito encontrava-se em condições bem piores que as dos outros do mesmogrupo.Grudara-ode tal formaumasubstânciaviscosaexsudadapelocouroemdecomposiçãoqueera difícil desenrolá-lo, e agora o couro estava tão ressequido que era difícil evitar seuesfarelamento.Atintautilizada,quepareciadiferentedadosoutrosmanuscritoseemalgunspontoscorroeuocourooudavaa impressãodemanchanomata-borrão, tambémdificultavaa leitura,demodoquefoiprecisorecorreraosraiosinfravermelhos.Recobriaapartedebaixodascolunasumafolhadeumfinomaterialbrancoquetinhadeserremovida.Partedoroloapodrecera,demodoquefaltamasporçõessuperioresdascolunas.Em1956aUniversidadeHebraicapublicoucincocolunasmaisoumenoslegíveisdessedocumento,editadaspelosprofessoresYigaelYadineNahmanAvigad,eanunciouqueo trabalhoprosseguia.Constata-seagoraquesónoinícioesseapócrifoserefereaLamec;éumaversãoaramaicadoGênesis.EmalgunstrechossegueoGênesisbemdepertoeemoutrosseassemelhaaoslivrosintertestamentaisdeHenocedosJubileus,quetalveztenhamderivadoparcialmentedessetexto.Adataatribuídaaessacópiaéfinaldoséculoia.C.ouprimeirametadedoséculoid.C.

SobváriosaspectosessedocumentointeressaaosestudiososdosemíticoedaBíblia:ampliaoconhecimentodoaramaico,a línguafrancadoOrienteMédioquesuplantouohebraico;especificamais que o Gênesis a geografia das andanças de Abraão; identifica o “mar Vermelho” como ooceano Índico; tenta preencher e explicar algumas lacunas e incongruências da narrativa bíblica.Entretantopara o leitor comumdaBíblia o que esseGênesis aramaico temdemais interessante éprovavelmenteadescriçãodabelezadeSaraeorelatodasexperiênciasdeSaraeAbraãonoEgito,tendocomonarradoroprópriopatriarca.(AquielessechamamAbrãoeSarai,comoaprincípiosãochamados na Bíblia, antes de Deus mudar seus nomes para sinalizar o elevado destino que lhesreservava.) Ora, no Gênesis há dois episódios (12:10-20 e 20:1-18) em que um governante —primeiroofaraódoEgito,depoisAbimelec,reideGerara—apaixona-seporSaraeumsemelhante(26:6-11)emqueoreiénovamenteAbimelec,porémocasaléIsaaceRebeca.OescribaouescribasdesconhecidosquecompuseramoGênesisapartirdenarrativasmaisantigasnãoseesforçaramparaproduzirumahistóriacoerente,comosepresumequeoseditoresdospoemashoméricosofizeramno século vi a.C. a mando de Pisístrato. Simplesmente incluíram tudo que se julgava possuir aautoridadedoantigo.Assim, contam-nosque,quandoAbrãoeSarai foramparaoEgito, tangidospela fome, o faraó se encantou de talmodo comSarai, por causa de suamagnífica beleza, que atomoudeAbrão.Jáprevendoisso,AbrãofizeraSaraipassarporsuairmã,afimdequeofaraónãoomatasse.(Apartirdaquisigoonovorelato,noqualaprópriaSaraicontaissoaorei.)AgoraAbrãopede aDeus que intervenha para que o rei não profane sua esposa, eDeus envia umvento—ouespírito,חוד—pestilentoque,comoutraspragas,aflige-odurantedoisanos,levando-oaadoecerdetalformaquenãopodeseaproveitardeSarai.OfaraóconvocatodososmédicosemagosesábiosdoEgito,masnenhumconseguecurá-lo:“Ovento—ouespírito—golpeou-os,eelesfugiram”.Umdos príncipes procura Abrão e lhe suplica que reze pelo faraó, mas Lot, sobrinho do patriarca,

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explicaqueAbrãoeSaraisãomaridoemulherequeseutionãopoderezarpeloreienquantoestemantémcomelesuatia.Opríncipeexplicaasituaçãoaofaraó,quedeimediatolibertaSarai.Abrãorezaporele,easpragasdesaparecem.

Mais tarde, em Gerara, no Neguev — segundo o relato bíblico: as colunas publicadas doapócrifonão incluemestahistória—,Abimelec,o rei local, tambémseencantacomSara.Abraãorecorreaomesmoartifício,porémDeusapareceaoreiemsonhoeoprevineantesqueeleatoque.Ora,seacreditamosnoGênesis,Saratinha65anosquandoofaraóaachouirresistívelemuitomaisquando fascinou Abimelec. Como seria sua beleza? Acho que tentemos a imaginá-la como umamatrona,esposadeumpatriarca,queriuaoouvirDeusanunciarque,atéentãoestérilecomnoventaanos,finalmentedariaàluzumfilho.ContudoesseapócrifopelaprimeiraveznosdescreveSaraiemseuapogeu,segundoorelatodeumcortesãoaofaraó:

Quão[...]formosooaspectodeseurosto[...]equão[...]lindososcabelosdesuacabeça,quãobelosrealmentesãoseusolhosequãoagradáveisseunarizetodoobrilhodesuaface[...]quãoformososeubustoequãoencantadoratodaasuaalvura.Seusbraçosbonitosdesever,esuasmãos,quãoperfeita[...]todaaaparênciadesuasmãos.Quãobonitasaspalmasequãolongosebelos todososdedosdesuasmãos.Suaspernasquãolindasesuascoxassemjaça.E todasasdonzelasetodasasnoivasquecaminhamsobapálionupcialnãosãomaisformosasqueela.Eacimade todasasmulhereselaéadorávelesuperioremsuabelezaa todas,ecomtodaasuabelezahánelamuitasabedoria.Eapontadesuasmãosélinda.

Outroponto interessanteéque,aocurarofaraó,Abraãonãosórezaporele,comoimpõeasmãos sobre sua cabeça. O professor David Flusser comentou isso no Israel Exploration Journal,volume 7, número 2, 1957. Essa imposição das mãos é mencionada com frequência no NovoTestamento como uma característica da cura realizada por Jesus, porém não figura no VelhoTestamento, nem, pelo que se sabe, na literatura rabínica. Contudo sua presença no apócrifo doGênesis, que se supõe ter sido escrito na épocade Jesus ouumpouco antes, parece indicar que apráticanãoeraexclusivadeJesus,masconstituíaummétodoreconhecidodeefetuarcuras.

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3.OSSALMOS

Em1965publicou-seumnovomanuscritodosSalmosnasériedeDiscoveries in the JudaeandesertofJordan[DescobertasnodesertojordanianodaJudeia]—ouseja,nasériedosmanuscritosdomarMortoquenãopertenciamàUniversidadeHebraica,maseramsupervisionadospelopadreDeVauxepublicadospelaClarendonPress.Seueditoreraodr.J.A.Sanders,doNewYorkUnionTheologicalSeminary,quesobreoassuntolançoutambémumlivromaisinformalebastantefácildese ler:TheDeadseaPalmsscroll [OmanuscritodosSalmosdomarMorto] (Cornell).Cobertodeexcrementosdemorcegoeparcialmentedecompostoquandofoiencontrado,dizSanders,esserolocontém 41 salmos, tanto fragmentários quanto completos. O tetragrammaton, o nomeimpronunciáveldeDeus,quesedevesubstituirporAdonaiaoler-seaBíblia,aquisetornaaindamaisdistanteporestarsempregrafadoemcaracteresdoantigohebraico,como .(Issoécomumnaliteraturadaseita,masnãoemseustextosdaBíblia.)AquihávariantesdaBíbliamassorética—querdizer,dotextohebraicooficial,comoháemfragmentosdosSalmosencontradosemumadasoutrascavernas—,porémoaspectomaisinteressantedessemanuscritoéa inclusãodeoitocomposiçõesapócrifas.(Fragmentosdesalmosnãocanônicostambémforamdescobertosalhures.)Quatrodessaspeças já eram conhecidas em tradução grega, latina ou siríaca. Uma foi identificada como umaversãohebraicadeumcânticonofinaldoLivrodeSirac(ouEclesiástico,noroldosapócrifos):umdoscuriososelogiosdabuscadaSabedoriana figuradeumamulher,oque seaproxima tantodoeróticoquelevouSandersaafirmarqueacomunidadecelibatáriadomosteirousavaotextocomoumestímuloà“sublimação”.Todavia trêsdos salmosnãobíblicoseram inteiramente inéditos:umhinodelouvoraDeusportersalvadoosalmistadospecadosqueofizeramchegarpertodamorte;umhinode louvoraoSion;eumaglorificaçãodeDeuscomoocriadordomundo.Háaindaumabrevepassagememprosa,atéentãodesconhecida,quefaladasexcelsasqualidadesdeDavieafirmaque ele escreveu 3600 salmos (o termo hebraico tehillim significa “cânticos de louvor”) e 450cânticosdeoutrostipos.

Provavelmente amais interessante dessas obras não canônicas é omisterioso Salmo 151. (ABíbliamassoréticacontémapenas150salmos.)Jáeraconhecidoemgregoesiríaco,poisfiguranaVersãodosSetenta,atraduçãogregadoVelhoTestamentoelaboradaemAlexandria,quenemsemprecorrespondeàBíbliamassoréticaeevidentementefoifeitaapartirdeumtextodiferente.AgoraesseSalmo151daVersãodosSetentaaparecenonovotextocomoduaspeçasseparadas,queobviamenteforamreunidasnasversõesgregaesiríacaecensuradasatécertoponto.Considera-seimportantetalcensura,poisnessanovaversãohebraicaosrebanhoseasárvoresrespondemàmúsicaqueDavitocaemsualira,oquenãoacontecenasoutrasversões.Ora,ainfluênciadocultogregodeOrfeu,cujamúsica encantava seus ouvintes animais e vegetais, é bem clara na arte judaica e na cristã,Orfeuconfundindo-secomDavinaprimeiraecomCristonaúltima.OsanimaiseasárvoresencantadosporOrfeusetransformamnoscarneirosguardadosporDavienorebanhodaqueleoutrobompastor,Cristo. Entre os afrescos de uma sinagoga do século iii descoberta em Dura-Europus, no altoEufrates,háumquemostraOrfeudebarrete frígio tocandosuacítaraparaummacacoeumleão.TambémseencontrouumOrfeunumacatacumbajudiapróximadeRoma,elembrou--sequealgunssaltérios bizantinos traziam miniaturas semelhantes de Davi tocando para seu rebanho. A maisextraordináriadessasrepresentaçõesestánummosaicodoséculoiiqueseachanumaigrejacristãde

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Jerusalém:retrataumafiguramasculina,tambémdebarretefrígio,comumaliraecercadaporseisanimais, dentre os quais dois pássaros, e algumas plantas e árvores. Omais surpreendente é queabaixodessafigurasepostamumsátirocomchifreepédebodeeumcentaurocompeledeleopardoeumaclava.Eusébio,ohistoriadordaIgrejadosiníciosdoséculoiv,comparouamagiadamúsicadeOrfeuàmagiadaspalavrasdeJesus.

Os estudiosos que traduziram esse salmo divergem ao enfatizar ou minimizar sua supostainfluênciaórfica.Quasetodos,comoSanders,traduzemostermosqueprecedemaafirmaçãodequeasárvoreseos rebanhos respondemàmúsicadeDavicomoumadeclaraçãodequeasmontanhasnão testemunham o Senhor nem as colinas o proclamam. Por certo a negativa do hebreu estápresente,porémnumtrabalhointituladoDavidetOrphée[DavieOrfeu]Dupont-Sommerevitaessasafirmaçõesaparentementecontraditórias, interpretando taisversoscomoperguntas:“Asmontanhasnão testemunham?” etc. A seu ver o que se segue também trai a influência grega— no caso, opitagorismo, uma concepçãodaharmoniadomundo, amúsicadas esferas, queomúsicopiedosoimitaereproduzemsualiraparahomenagearoDeussupremo.“PoisquemhádeproclamarequemhádecelebrarequemháderelatarasobrasdoSenhor?Deusvêouniverso;Deusouveouniversoelhedáouvidos.”OstermoshebraicosquesignificamotodosãotraduzidosporSanderscomotudoeporDupont-Sommer como “l’univers”— foi essa a solução que escolhi acima.Deus dá ouvidos,prossegue Dupont-Sommer, “como que para saborear na condição de connoisseur tanto a suaveharmonia domundo que ele criou quanto os sons que brotam das cordas inspiradas e nomesmoconcerto místico se unem à música do universo”. Ao reagir contra os gregos, os judeus teriameliminado qualquer vestígio de orfismo ou pitagorismo, daí a versão resumida desse salmohelenísticonaVersãodosSetentaenostextossiríacos.

Dupont-Sommer acredita ainda que essa obra foi elaborada por um membro da seita. Seusargumentosmaisconvincentesbaseiam-senaênfasedadaàmúsicanaliteraturadomarMortoenainformação de Josefo de que a vida dos essênios tinhamuito em comum com a dos pitagóricos.Ademais, o hino órfico termina com Davi dizendo que Deus “fez-me príncipe de Seu povo egovernantedosfilhosdeSuaaliança”.Aexpressão“filhosdeSuaaliança”encontra-setambémemoutro manuscrito de Qumran, mas, como os termos órficos, não figura na Versão dos Setenta.Caberiaconcluir,então,queaquihouveumatentativadeeliminartodososvestígiosdaseita,cujosmembrosintroduziramo“Davi-Orfeu”emseusaltérioesereferiamasimesmoscomo“osfilhosdaaliança”.

Convémfalaraquisobreosmanuscritosdacavernaonze,descobertossomenteem1956.EntreelesestavamessemanuscritodosSalmos,alguns fragmentosdoLevítico,umrologelatinizadodeEzequiel, um targum aramaico de Jó (uma versão lida nas sinagogas quando já não havia amploentendimentodaBíbliahebraica)etrechosda“NovaJerusalém”daseita,umtemaqueosestudiososainda não expuseram, apesar de já se terem encontrado outros fragmentos a ele relacionados.AoadquiriressesmanuscritosoMuseudaPalestinatevedepagar48millibrasaKando,umcomerciantesíriodeBelémqueatuaracomointermediárioentreosbeduínoseoscompradores.Issolheabalarade talmodoasituaçãofinanceira—mantidaporRockefeller—queagoraomuseuse recusavaaliberar qualquer manuscrito para publicação sem antes receber uma quantia proporcional aoressarcimento dessa despesa. Por conseguinte, só em 1964, oito anos após a aquisição dosmanuscritos,quandoumricodoadoramericanoadiantou25millibras,publicou-seoprimeirorolodesselote.OtextodeJófoifinanciadopelogovernoholandêseestánasmãosdeJ.vanderPloeg,oestudiosoholandêsdominicano,quehámuitotempoovemexaminando.

Algunsprotestantesejudeus,bemcomoestudiososindependentes,têmsemostradoinsatisfeitos

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comalentidãocomqueoconteúdodosmanuscritosjordanianoschegaaoconhecimentopúblico—mesmoantesdeocorreressasituaçãoespecialnoMuseudaPalestina.Trêsrolosdoloteoriginaldaprimeiracavernaforampublicadosquasede imediatopelaAmericanSchoolofOrientalResearch,através da Yale University Press, e os outros quatro com a mesma presteza pela UniversidadeHebraica tão logo chegaram a suasmãos e puderam ser lidos sob forma impressa.Em ambos oscasoshouvepouco trabalhodeedição.Reproduziu-seo textoemcaractereshebraicosmodernosecomumatraduçãoaproximada.Assimosmanuscritosforamcolocadosàdisposiçãodeestudiososdetodo o mundo. Com isso Yadin pretendia que todo estudioso que resolvesse estudá-los pudessebeneficiar-se com as interpretações de outros especialistas. No entanto os rolos do Museu daPalestinatêmsidopublicadosalongosintervalosemuitosanosdepoisdesuadescoberta,comumapesada bagagem editorial, textual e arqueológica, e a preços acessíveis a poucos, na série daClarendonPressmencionadanoiníciodestecapítulo.ControlatudoissoaÉcoleBiblique—e,porconseguinte,aautoridadecatólica—,etem-seinsinuadoqueseencontroualgumacoisaprejudicialao dogma católico e por essa razão tratou-se de escondê-la. Todavia, embora seja verdade, comorelateianteriormente,queoscatólicos relutamematrairespecialatençãoparaosmanuscritos,nãovejo razãonenhumapara acreditar quequalquer umdessesdocumentos tenha sidoouvenha a sersuprimido—ou que se encontre alguma coisa que lance qualquer dúvida sobre a fé católica.Atéagoranão surgiunos textosdeQumramnenhuma referência a Jesusou a JoãoBatista, e, comoaseitacertamentejamaisteriaaceitoessesprofetas,édifícilimaginarporquenãoosteriaignorado.Dequalquermodo,porqueumcristãodeveriaseabalarporqualquercoisaqueaseitapudesseterdito sobre eles? Deixando de lado uma possível intenção de retardar e abafar a publicação dosmanuscritosafimdeimpedirquesuasimplicaçõesprovoquemumimpactomuitogrande,explicaoatrasoemparteadificuldadedemontarosmanuscritosqueforamencontradosemfragmentoseemparte a lentidãode certos estudiosos.Soma-se a isso, talvez, o instintodo erudito,muitonatural ecomum,deestabelecerprioridadeepossequelevariaumhomemcomoDeVauxaquererconduziromanuseioecertificar-sedaapresentaçãoadequadademateriaisque,afinal,eleprópriotrouxeàluzepelos quais se sente pessoalmente responsável.De qualquermodo recentementeDeVaux ouviu asqueixas dos estudiosos ávidos e pressionou vários editores a levarem a cabo as tarefas que lhesforamatribuídas.

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4.OPESHERDENAUM

Uma das fascinantes atrações da biblioteca deQumran é uma série de aparentes comentáriossobrealgunssalmoseprofetas,escritosevidentementeporumouváriossectários,equenaverdadesãoregistrosmeiodisfarçadosdefatosdahistóriadaseita.Taiscomentáriossãoconhecidoscomopesharim, porque após cada verso a interpretação especial se inicia com “Pishro al [...]” (“Suainterpretaçãorefere-sea[...]”).Quandoescrevisobreesseassuntopelaprimeiravez,ocomentário—oupesher—mais extenso era o deHabacuc, encontrado na caverna um entre o primeiro lote demanuscritos. Esse texto despertou grande interesse, pois parecia lançar alguma luz sobre osantecedentes históricos dos documentos. Nele aparecem algumas figuras sem nome que sãomencionadas em outros rolos: oMestre da Retidão, o Sacerdote Iníquo, o Profeta ouHomem daInverdadeeos inimigosqueos essênios enfrentame aosquais chamamdekittim.Acredita-se queestes últimos, que adoravam suas águias e pareciam identificar-se de outras formas, eram osromanos,queinvadiramaPalestinaem63a.C.OMestredaRetidãoeraobviamenteochefedaseita;oSacerdoteIníquoeoHomemdaInverdadeeram,talvez,amesmapessoaodiada,afinalidentificadaporDupont-SommercomooasmoneuHircanoii,quefoisumosacerdotedeJerusalém(78-40a.C.)ereidosjudeusnessadinastia—descendentedosmacabeus,abelicosafamíliajudiaquecombateuosselêucidas,sucessoresdeAlexandre,oGrande,nodomíniosobreaPalestina.Maseraumsuplícionãosaberexatamentequemforamessaspessoasouoquedefatoocorreu.

Depois se descobriram mais manuscritos em outras cavernas, entre os quais um pesher deNaum;apesardeseucompromissodemantersilêncio,algunsestudiososdaBíbliamurmuraramqueessetextomencionavanomeshistoricamenteconhecidosequeimportantesrevelaçõessedelineavam.Quandoumadascolunasdocomentário foipublicada,em1956,constatou-seque taisnomeseramum Antíoco e um Demétrio. John Allegro, um jovem estudioso inglês ligado à University ofManchester, ao qual se confiou o manuscrito, anunciou antes de sua publicação que o SacerdoteIníquonãoeraHircanoii,esimopaideste,AlexandreJaneu,igualmentesumosacerdoteerei,cujacrueldadeparacomoprópriopovoJoseforegistrou.AllegroacreditavaqueJaneuperseguiuaseitae“atacou”omosteirodomarMorto,dali

arrancouoMestre[daRetidão]e,comoagorapareceprovável,entregou-oàstropasdosgentiospara que o crucificassem. [...] Contudo, depois que o rei judeu partiu e a paz retornou aoQumran,acomunidadedispersavoltouepegouocorpofraturadodeseuMestreparaguardá-loatéoDiadoJuízo.

Apartir das práticas da seita, de seus textos e de suapresençanessa localidade, onde JoãoBatistapregoucomo“umavozqueclamanodeserto”ebatizouJesusnoJordão,jásedissequeJoãoeJesustinhamalgumarelaçãocomaseitaejáseconcluiuqueoMestrepodetersidoumprecursordaqueleJesuscujosdiscípulosoaceitaramcomooCristo—ouseja,comooMessias.AseitaesperavaumMessiase,segundoumateoria,esperavaansiosaqueseuchefemortoretornassenessepapel.SesecomprovassequeoMestredaRetidãofoicrucificado,haveriaumparaleloevidenteentreatrajetóriadeJesuseadoMestre—oqueostextossemdúvidaestabelecem—emuitacoisaemcomumentreadoutrinacristãeadaseitadomarMorto.Allegrochamouaatençãoparaisso.“Paraamaioriadenós

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essesfatosseassociarãoautomaticamentecomatraiçãoecrucifixãodeoutroMestre,queviveuumséculodepois”,dizele.

Entretanto Allegro foi imprudente ao divulgar conclusões baseadas no pesher e totalmenteconjeturaisantesdepublicaressetexto,paraquesepudesseverificarsuaexatidão.Naverdadeotextonunca cita o nome de Alexandre Janeu e, apesar de em uma passagem bastante fragmentáriamencionar alguém que foi crucificado, não traz nenhuma indicação de que se trata doMestre daRetidãonemdeque“acomunidadedispersavoltouepegouocorpodeseuMestre”.AcontribuiçãodeAllegroparaesseassuntoconsistedetrêsprogramasderádio,maisumartigonelesbaseado;deumaentrevistaaumrepórterdaTime (Allegrodeclaraqueotextopublicadodeturpoudetalmodoseudepoimentoquenarealidadenãosepoderesponsabilizá-lopornadadoquealiseencontra);edaversãoposterioremaiscompletadesuaargumentaçãonumlivrointituladoTheDeadseascrolls[OsmanuscritosdomarMorto].NestelivroelenãorepetequeaseitadispersapegouocorpodoMestreecontaahistóriademaneiraadeixarbemclaroqueseuscomentáriosanterioressobreoconteúdodo rolonãopassavambasicamentedeconjeturas.Contudoaqui tambémprovavelmentedeveria tersido um pouco mais explícito ao indicar os passos pelos quais reconstruiu o episódio. O queapresenta é uma narrativa coerente que tomou a liberdade de animar e colorir. Deleitou-se, porexemplo, em inventar uma confrontação melodramática entre oMestre da Retidão e o SacerdoteIníquo:

Acenaemqueessesdoissacerdotessedefrontaramdevetersidobemdramática.Um,altivoeorgulhoso,marcadopelascicatrizesdemuitasbatalhasepeladevastaçãodeumavidadecobiçaeluxúria;ooutro,tododebranco,santo,olhandodesdenhosamenteparaoinimigo,segurocomsuaféemDeuseaesperançadaressurreiçãoparaavidaeterna.

Mas é verdade que uma interpretação de uma passagem do Comentário de Habacuc pode levar asuporqueemalgummomentooSacerdote IníquoapareceudiantedoMestredaRetidãoede seusseguidores“paraconfundi-losefazê-losvacilaremnodiadojejum”.Hátambémumareferênciaà“casadeseuexílio”.Adatadaresidênciadaseitanomosteirofoideterminadapelasmoedasquealise encontraram e permite perfeitamente identificar o Sacerdote Iníquo com Alexandre Janeu. ODemétriocitadonocomentário,quetentouentraremJerusalém“peloconselhodosQueProcuramCoisasAmenas”(possivelmenteosfariseus),eraDemétrioiii,oreiselêucidareinante,que,comosesabe, foi chamado pelos fariseus na época em que lutavam contra Janeu; e o Antíoco pode seridentificado comAntíoco iv, Epífano, um selêucida anterior, que fora rei da Síria e inimigo dosjudeus.

OpróximofatoimportanterelacionadocomopesherdeNauméumartigoescritoporDupont-SommerdepoisqueAllegropublicouastrêscolunasdotextododocumento;oartigo,quesaiunoJournaldesSavantsdeoutubro-dezembrode1963,parece-meumadas reconstruçõesbaseadasemevidências fragmentárias e esparsas mais magistrais que me lembro de ter lido. Dupont-SommerconcordacomasidentificaçõesqueAllegrofazdeum“LeãodaIra”comoJaneu,deDemétriocomoo rei grego edosQueProcuramCoisasAmenas (“CoisasLisonjeiras”paraDupont-Sommer, queutilizaoutrosignificadodeתקלח)comoos fariseus.ANínivequeNaumdenuncia representaaqui,segundoacreditaDupont-Sommer,o“establishment”oficialdeJerusalém,doqualaseitaseafastara.AgorasabemosqueOsQueProcuramCoisasLisonjeiras(pelasquaistentamganharopovo),quejáhaviamaparecidoemcertosfragmentosdomarMorto,sãoosfariseus—citoaquioargumentodeDupont-Sommer—,poisforamosfariseusquechamaramDemétrio.Osfariseuserampopulistas—

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ouseja,procuravamganharopovoatravésdalisonja—,enquantoossaduceus,queapoiavamJaneu,eramconservadoresearistocráticos;easeita,quefugiradeJerusalémeagorahabitavaummosteironomarMorto,opunha-seaambos.OcomentaristadizqueoLeãodaIra—ouseja,AlexandreJaneu—“golpearáatravésdeseusnobresedoshomensdeseuconselho”.GraçasaJosefosabemosque,apósaexpulsãodeDemétrio,Janeucrucificouoitocentosjudeusqueocombateram:

Levou-os para Jerusalém e contra eles praticou um dos atosmais bárbaros domundo; pois,enquanto festejava com as concubinas, à vista de toda a cidade, ordenou que se cortasse opescoçodeseusfilhosesuasesposasdiantedeseusolhos.

EvidentementeéaissoqueocomentaristaserefereaodizerqueoLeãodaIraoperousuavingançasobreOsQueProcuramCoisasLisonjeiras,queapoiaramDemétrio,“pendurando-osvivos”.Nessepontootextoestámuitofragmentado.AllegroeDupont-Sommercompletamumapassagemcom“oquenuncaforafeitoemIsrael”,esegue-seumafraseinacabadaquefaladealguém“penduradovivonumaárvore”(ou“nolenho”—ץעtemosdoissignificados),eesseeraomodousualdereferir-seàcrucifixão.FoiessafrasequelevouAllegroaimaginarqueAlexandreJaneucrucificouoMestredaRetidão. Há no texto duas palavras incompletas, que Allegro e Dupont-Sommer reconstituem deformadiferente.Allegrointerpretaassim:“Poisohomempenduradovivonumaárvoreé[cham]ado[...]”.Dupont-Sommertraduz:“Masaquelequeestavapenduradovivo[no]lenho”e,comoAllegro,completaapalavraseguinte,daqualrestamapenasumresheumaleph,comumaformadoverbo:acrescentaE[ch]amarão”.(o)“Elescomointerpretaporémchamar,,אךק

Completando-seapalavradessamaneira,afraserefere-seaalguémquesofreupuniçãonacruze tornou-se um objeto de invocação. Quem seria essa pessoa extraordinária? Quem a teriacrucificado? Nada nos leva a concluir que foi executada por Janeu: suamorte pode ter sidodecretada por um sucessor de Janeu. A frase pode resultar de uma associação de ideias:conquanto a crucifixão seja um escândalo, há um homem crucificado que, ao contrário, setornaráobjetodeprecesparaalguns.

Vejamos como Dupont-Sommer reconstrói os fatos históricos. Quando Alexandre Janeumorreu,suaviúva,Alexandra,assumiuoreino.Tinhadoisfilhos:HircanoiieAristobuloii.SendoHircanoomaisvelho,Alexandraonomeousumosacerdote.Fezdosfariseusopartidogovernante,eestesaobrigaramadecretaraexecuçãodosquepersuadiramseumaridoacrucificarosoitocentosjudeus. Cortaram o pescoço de vários conselheiros da rainha. Aristobulo, seu filho mais novo,procurou-a com uma delegação de saduceus, o partido de Janeu, e implorou-lhe que afastasse osfariseus e permitisse que seus seguidores saduceus vivessem seguros nas fortalezas nacionais.Nofim,quandoAlexandraestavavelhaedoente,Aristobuloassumiuocontrolede22dessasfortalezasefez com que Hircano, que não gostava de governar e só queria viver em paz, reconhecesse suaascensãoaotrono.Josefodizque

osfariseustransmitiramaopovomuitasobservâncias,porsucessãodeseuspais,quenãoestãoescritasnaleideMoisés;eéporessemotivoqueossaduceusasrejeitamedizemquedevemosconsiderar obrigatórias as observâncias que se encontram na palavra escrita e não seguiraquelasque[meramente]derivaramdatradiçãodenossosancestrais;eemrelaçãoaessascoisasé que têm surgido entre eles grandes disputas e diferenças; os saduceus não conseguempersuadirninguémexcetoos ricosenão têmopopulachosubmissoaeles,porémosfariseustêmamultidãodeseulado.

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Dupont-Sommerobservaque,seOsQueProcuramCoisasLisonjeirassãoosfariseus,osessênioseram tão contrários a eles quanto aos saduceus. Esses sedutores do povo são assim chamados edenunciadosemoutrosdoisdocumentosdeQumran:nosHinosdeAçãodeGraçasenosfragmentoszadoquitasouDocumentodeDamasco.OSacerdoteIníquo,quefiguraaquietambémnoComentáriodeHabacuc,seria,então,Hircanoii(portanto,nãooLeãodaIra).Dupont-SommerlembraadenúnciaqueJesusfazdosescribasefariseus(Mateus23:15)esugerequetalvezsetratedeumacontinuação— supondo que em algum momento Jesus tenha sido influenciado pela seita — da atitude dosessêniosemrelaçãoaeles.

OpeshermencionaumEfraimeumManassés.Quemsãoeles?EmGênesis41:51Josétemdoisfilhos que recebemesses nomes.Manassés é o primogênito.Mais adiante (48:13-20) seu avô Jacó(que agora se chama Israel) os abençoa, porém coloca a mão direita na cabeça de Efraim e aesquerdanadeManassés.QuandoJosétentacorrigi-lo,Jacórespondequeoirmãomaisnovoserámaiorqueomaisvelho, “e sua semente se transformaránumamultiplicidadedenações”.EntãooEfraim e oManassés do pesher devem ser os irmãos Hircano e Aristobulo. Destes dois últimosHircano com certeza era o mais velho; contudo, como em sua bênção Jacó trocou a ordem donascimento,HircanodeveserEfraim,cujonomeestáassociadocomosfariseus,aqueles“queporseus falsosensinamentose sua línguamentirosae seus lábios falazesamuitos induzirãoaoerro”.Manassés é associado com “os nobres, os honrados”— ou seja, os aristocráticos saduceus— etambém é um líder de “guerreiros”, comoAristobulo. O texto nos diz queManassés perderá suarealeza, que suas mulheres e filhos irão para o cativeiro e seus guerreiros e nobres serãomassacrados—foiexatamenteoqueaconteceucomAristobuloquandocaiuempoderdosromanos.Um fragmento deumpesher do Salmo 37 nos fala dos “iníquos Efraim eManassés, que tentarãoapoderar-se do Sacerdote”, referindo-se possivelmente aoMestre da Retidão. O pesher de Naumtambémmenciona “os iníquosde seu [exército], daCasadePeleg”, osque seuniramaManassés.Ora,Pelegsugereumverbohebraico,palag,quesignificadividir,eissoestáemGênesis10:25,ondeo nomePeleg é dado ao filho de umpatriarca destinado a “dividir a terra”. Será que isso não serefereàdinastiaasmoniana,quefoisempretãodividida?

AocontráriodealgunsestudiososqueacreditamqueoMestredaRetidãosurgiunocomeçodaeraasmoniana—entre160e135a.C.,talvez—,apartirdapassagemdocomentáriosobreoSalmo37, citada acima, Dupont-Sommer convenceu-se de que o Mestre viveu na época de Hircano eAristobulo, os quais brigavam entre si porém se uniam na hostilidade aos essênios, que eramigualmentehostisaambosospartidosdo“establishment”deJerusalém,assimcomomais tardeosfariseus e os saduceus se uniriam contra Jesus.Dupont-Sommer assina--la que tanto Josefo comoDiodoro da Sicília relatam um sugestivo incidente que ocorreu quando Pompeu marchava sobreJerusalém.HircanoeAristobuloforamaseuencontroeexpuseramsuasreivindicaçõesconflitantes,mas uma delegação que representava um terceiro grupo dos judeus declarou que não desejavamnenhumrei;quesegundosuatradiçãodeviamsergovernadospelos“sacerdotesdaqueleDeusaquemadoravam”;queHircanoeAristobulo,emboradescendessemdeumafamíliasacerdotal,agoracomoreisestavamse transformandoemtiranos.Dupont-Sommeracreditaqueessegruposópodiaserodos essênios — o que explicaria sua resistência à Jerusalém oficial e a morte de seu líder pordeterminaçãodeHircano.

Esperoqueessebreveapanhadonãosejaconfusoparaoleitor.Comcertezanãoconseguedarumaideiadaelegância,dalucidezedalógicadademonstraçãodeDupont-Sommer.

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5.JOHNALLEGRO

As tentativasparaestabeleceras relações entre esses comentários bíblicos encontrados nosmanuscritosdomarMortoefatosdahistóriadaseitadomarMortojásãoporsisóstãocomplicadasqueeviteicomplicá-lasaindamaiscomadescriçãodasrelaçõespessoaisdosestudiososquetêmsededicadoaoassunto.Ascontrovérsiasmaisazedassobreosmanuscritos surgiramapropósitodasopiniõesedasfaçanhasdeJohnAllegro,daManchesterUniversity,eaoresumirotrabalhorealizadonesse campo é importante explicar seu papel. Como erudito Allegro possui credenciais bastantesólidasparaocuparsuaatualcátedradeVelhoTestamentoeestudosintertestamentaiseparticipardacomissão internacional designada para trabalhar com os manuscritos jordanianos, porém nãopoderia ser mais oposto ao típico estudioso da Bíblia ou ao tradicional catedrático inglês. Éirreverenteepetulante.Quandooconheci,hádozeanos,pareciapertencerrealmenteàespéciedosentãochamadosAngryYoungMena—poderiaserummembrodessageraçãoqueporumestranhoacidenteveiopararnocampodaespecializaçãoemsemítico.Ocupasuaatualposiçãoporquequandojovemsepreparouparaserpastormetodista,porqueseesmerounoestudodohebraicoeobteveumabolsa para trabalho avançado em Oxford, foi recomendado para a equipe da Jordânia por H. H.Rowley, chefe do departamento de semítico da Manchester University, e obteve uma cadeira defilologia semítica comparada em Manchester. Foi encarregado de editar e publicar na sérieDiscoveries in the Judaean desert of Jordan um lote de fragmentos basicamente não bíblicos queincluiopesherdeNaum.Entrementes—elogo,imagino—Allegroperdeuafé,deixoudepertencera qualquer Igreja e, assim, encontrou-se numa posição única entre os estudiosos protestantes,anglicanosecatólicosquecompunhamorestantedacomissãoecumênica.Parece-meque,emparte,oresultadoinevitáveldissoéofatodenemsempreconcordarcomseuscolegas;todavianãosepodenegarqueosagastoutanto—eseindispôscomalgunsestudiososjudeusefuncionáriosárabes—por demonstrar uma certa parcela demau juízo e indiscrição.Antes de dar exemplos específicos,cabe explicar que suas brigas com outros estudiosos em geral se deveram a suas declaraçõessensacionalistas,na imprensaouno rádio, sobre revelações inéditase inquietantesque teriamsidoencontradas nos rolos; tais declarações precederam a publicação dos documentos nos quais sebaseavam e nem sempre se comprovaram quando os textos vieram à luz. Assim, em algunsmomentosAllegro pode ter desnorteado o público. E sem dúvida não tem se entendido com seuscolegas.

Já falei sobre suas conclusões ou “conjeturas” referentes aoComentário deNaume sobre asobjeções levantadas quando ele publicou as três colunas do documento. Entrementes, porém, suasopiniões foramexpressas demodopositivo e garboso em seus três programas na bbc e um tantodistorcidasnoartigoresultantedessesprogramasedeumaentrevista.Talartigo,publicadonarevistaTime, levou o padre Roland de Vaux a escrever uma carta para o jornal Times, de Londres,declarandoquenosdocumentosatéentãodecifradosnãohavianadaqueindicassequeoMestredaRetidão fora crucificado ou que confirmasse outros pronunciamentos deAllegro.Assinaram essacartamais quatromembros da equipe, dos quais três eram sacerdotes católicos. Posteriormente ocatólicoTabletpublicoutrêsartigosdeoutrosacerdote,opadremaristaGeoffreyGraystone,decujoenfadonho livrinho sobre os manuscritos já falei e que dá aqui a impressão de ter entrado nacontrovérsiacomoporta-vozoficialdoVaticano.A linhaqueopadreGraystoneadotoufoi,como

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sempre, a de ridicularizar os paralelos entre as doutrinas e práticas da seita e as dos primitivoscristãos e enfatizar as várias divergências. Um desses artigos, intitulado “A mente de Allegro”,pareciavisaradesacreditarolivrodoestudiosoinglêsmesmoantesdeseulançamento—emboraserestringisseaosprogramasdabbc.OpadreGraystoneacatouaautoridadedacartaqueopadreDeVaux enviou aoTimes e também do protesto de um colega deste último, omonsenhor americanoPatrickSkehan, daCatholicUniversity deWashingtonD.C., que acabara de ingressar na equipe; etranquilizouseusleitorescatólicos,dizendo-lhesquepelomenosametadedosestudiososqueagoratrabalhavamcomosmanuscritoseracatólicaequeoVaticanocontribuíracom5mil librasparaadecifraçãodosrolos—ouseja,iriamparaabibliotecadoVaticanomanuscritosnovalorde5millibras. Já expliquei que no livro que publicou em seguida Allegro deixou bem claro que suasdeclaraçõesanterioressebasearamessencialmenteemconjeturas,mascontinuasendoverdadeque,ao elaborá-las, ele se entregou a algumas fantasias. Conta-se que seu superior na universidade, oprofessorbatistaRowley,certavezoadvertiu:“Allegro,adágio,adágio!”.

Com relação ao comportamento geral de Allegro devo observar que, embora atueprofissionalmentenumcampoacadêmicobastanterestrito,elepossuialgunsdostalentoseinstintosdeumjornalistadotadodesensibilidadedramáticaegraçasaissopodesairdesuaárea.Aofazê-lo,com seus pronunciamentos espantosos, que bem podem passar por verdades, explora tanto aignorânciadopúblico—comaintençãodeinfluenciá-lonadireçãocontrária—comoosblefesdosclérigos ortodoxos de cujas práticas tenhome queixado. Entretanto sua posição de livre-pensadornumdepartamentoaoqual,naInglaterra,poucoscandidatospodemaspirarounoqualdificilmenteobterãoalgumcargosenãotiverempelomenosumaafiliaçãoreligiosanominaltendeaserumtantoprecária. Quantas cátedras como essa a Inglaterra oferece a um estudioso declaradamenteindependente? Durante algum tempo Allegro andou inseguro quanto a sua posição e, com umafamília para sustentar, obviamente tinha interesse em escrever tantos artigos, transmitir tantosprogramasderádioepublicartantoslivrospopularesquantoslhefossempossíveis.Eseriaumerrodenossaparte desacreditar o homemde imaginaçãohistórica, aindaque às vezes ele vá alémdasevidências,embenefíciodoestudiososemnenhumaimaginação.

No próximo capítulo tratarei das últimas aventuras deAllegro comosmanuscritos de cobre.Agora devo falar um pouco de suas “conjeturas” mais recentes, que me parecem fantásticas. Emartigos publicados na revistaHarper’s de agosto de 1966 e no suplemento dominical do jornallondrino Observer de 13 de novembro de 1966 ele apresentou uma teoria segundo a qual osEvangelhos são na verdade um documento essênio, os nomes de Jesus e de todos os apóstolos,inclusiveJudas,servemdedisfarceparaostítulosdefuncionáriosessênioseaspersonalidadesdosEvangelhos provavelmente não passam de “mitos”. Allegro diz que os membros da seita eram“adivinhos” e curandeiros e chama os Evangelhos de “manual de feitiçaria”. Chega a essasconclusõesatravésdeummétodoextremamenteforçadoqueconsisteempesquisartermoshebraicosouaramaicosaosquaispossaatribuiralgumarelaçãocomosnomesdoNovoTestamentodemodoque lhe permitam tal interpretação. Allegro enfatiza muito que a palavra τέτων, carpinteiro, emgrego,queemMateuséaplicadaaJoséeemMarcosaopróprioJesus,devetercomoseuequivalentehebraicoשךח,quetambémpodesignificarmágico.NumacartaàHarper’soprofessorJ.A.Sanders,quejámencioneicomoeditordonovomanuscritodosSalmos,protestou,dizendoqueessapalavrapoderia significar também gravador,aradura, caco de louça e outeiro de árvores; e refuta outraafirmação de que o nome Jesus deve equivaler a mágico. Quando li pela primeira vez Allegrodiscorrendo sobre esse tema, lembrei-me das pessoas que conseguem encontrar em Shakespearecifras ocultas quemostramque as obras creditadas a ele na verdade foram escritas porBacon ouMarloweoupelocondedeOxfordeacheiquecomessemétodoteriapoucadificuldadeemprovarqueBen-GurionescreveuoPentateuco.Depois,quandovisiteiosestudiososmais interessadosnos

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manuscritos,nãoencontreiumquelevasseasérioasteoriasdeAllegro—nemmesmoentreosquenãodavamamenorimportânciaàdivindadedeJesus.Numaconversagravadaemdezembrode1966na redação do Observer londrino Allegro se confronta com os professores Yigael Yadin, daUniversidadeHebraica,eGézaVermès,deOxford,ecomocônegoE.F.Carpenter,deWestminster,que o desafiam a defender sua tese, à qual ele se refere constantemente como um “avanço”. Porexemplo,Allegrovalorizaramuitooquechamade“umpequenodocumento”noqual,diz,ocorreum termo semítico que deve ser a base do nomeCefas, dado por Jesus a SimãoPedro. (Kefa, oupedra em aramaico, é traduzido para o grego como πέτροσ.) “Os essênios a consideravam umapalavra‘especial’”,afirmaAllegro,“poissignificaaquelequetemacapacidadedeleramentedoshomensatravésdaface.”Portanto,Pedroéum“chefe”essênioeoprimeiroareconhecerJesuscomooMessias.Portanto,“falaemlínguasdesconhecidas”—comoéasequência?—“relatandoasobrasmaravilhosasdeDeus,supervisionandoaadmissãodenovosmembrosàcomunidade,administrandoofundocomum”etc.AquitambémAllegrosebaseianumtextoqueaindanãoforapublicado,eosprofessores Yadin e Vermès perguntam-lhe qual é. O professor Vermés lembra-lhe que tem sidohábito daquele outro erudito nada ortodoxo, porém escrupuloso, Dupont-Sommer, não fazerqualquerdeclaraçãodirigidaaumaplateiamaiorsemantespublicartrabalhosacadêmicosqueoutrosespecialistas possam ler e avaliar. Todavia só conseguem fazer Allegro responder no final doencontro,eentão,apesardeanteriormenteterditoquetrabalharacomodocumentoemquestão,eleexplicaquenãoopossui:

yadin:Podemosverotexto?Qualé?allegro: Por que não pedem a Milik [outro editor dos manuscritos]? Faz parte de seus

documentos.vermès:Comoseescreve?[apalavraqueAllegrorelacionacomCefas].allegro:Nodocumento?Escreve-sededuasmaneiras—ondeháumaassinaturanofinale

ondeseencontraaabreviação—enocomeçotemosasletraskaph,‘ayin,pe,samekh.cross[nãoodr.FrankM.Cross,Jr.,deHarvard,aquemjámereferi,esimumapessoacom

essenomequepresidiaaconversação]:Qualéodocumento?allegro:Éestepequenoregistroclínico.cross:CombasenissoCefassignificachefeessênio?allegro:Não,não;émaiscomplicado.vermès:Muitocomplicado.allegro:Parecequesetratadeumtítuloespecialdentrodacomunidade.Oequivalenteem

hebraicoseriapaqid,supervisor.[...]yadin:Seuargumentonãomeconvencenemumpouco.allegro:Muitobem,resolvasozinho.

SeriainjustonãoencararasteoriasdeAllegrocomotextosponderadosebemdocumentados,se

ele não fizesse declarações cada vezmais fantasiosas. A entrevista que se segue foi publicada noDailyMaillondrinode13deoutubrode1967,ecomcertezaojornalsensacionalistanãopodeserresponsabilizadointeiramentenempelalinguagemnempeloconteúdodoscomentáriosdeAllegro.Diz o repórter que Allegro “em breve publicará novas descobertas que situarão as raízes docristianismoem‘umcultosecretodecaráter fálico,queenvolvia ingestãodedrogasecomoqualnenhumdenósgostaria de ter qualquer relação’”. “Oquê?”, perguntao repórter. “Osprofetas dolsd?”EAllegroresponde:

“Sim,defato,oualgomuitoparecido.Elestinhamvisões.Viajavam.”[...]Allegroacreditaque

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estabeleceu um fundo comum de vocabulário religioso entre as literaturas pré-cristãs e ashistórias da Bíblia — entre os mistérios dos cultos anteriores e o que chama de “contosinteressantesealegresdesserabino,Jesus,esuamamãeeseupapai.[...][ONovoTestamento]nãopassadeumdisfarce.[...]Asorigensdocristianismotransparecemnessecultodavegetação,que envolvia o uso de drogas. Seu sacerdote e seus profetas eram traficantes de drogas, sequiser,massónoâmbitodeseusprópriosgrupos.Buscavam libertaraalmadocorpo,comoalgoquepudessevoarparaofuturoedepoisvoltar.Comdrogasoucomjejuns—oefeitoeraomesmo — eles viajavam e voltavam. Aqui está seu falar em línguas desconhecidas. AincompreensãodasorigensdeseucultoporpartedaIgrejacomeçouquandoelaaceitouoNovoTestamentoporseuvalornominal.Decompondo-oemseusubstratosemítico,chega-sepertodomistério, do culto da fertilidade, que émuitomais importante do que julgamos.NãohámaisJesus,nemJosé,nemMaria.Aquiselidacommitos.Seexistealgumapersonalidadeenvolvida,épossivelmenteumafigurairrealdaseitadosessênios,cercadeumséculoantes”.

Aquiaúnicacoisaquemepareceplausível—equesesugeriualgumasvezes—équeocultodeJesus,comsuaressurreiçãonaprimavera, tomoualgodoaspectodosantigoscultosdafertilidade.Quantoaorestoateorialembrou-meofalecidoBenjaminSmith,umestudiosodevastacultura,quesem embargo também acreditava que Jesus não foi uma personagem histórica real e que todo oconjuntodosEvangelhosconstituiumaalegoria,naqualJesusfiguracomoopovojudeu.aCabenotarqueG.LankesterHardingnegoutudoisso:“Emtodoessetempo[dadescobertadosmanuscritosàpartidadometropolitaparaaAmérica],sealguémpensouseriamenteemrelataroassuntoaoDepartamentodeAntiguidadesdoGoverno,aideiafoidescartadacomotola,poisnuncaseconcretizou.Oarcebispodeclarouquefezisso,poisconsultouummembrodeseurebanhoqueerabibliotecárioassistentedoMuseuArqueológicodaPalestina,maspode-sedesconsiderartalfato,jáqueapessoaem questão não tinha competência para se pronunciar sobre antiguidades de qualquer espécie e nemmesmo levou o assunto ao conhecimento de seus superiores”.DiscoveriesintheJudaeandesertofJordan[DescobertasnodesertojordanianodaJudeia],ClarendonPress,1955.

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6.OSMANUSCRITOSDECOBRE

Emmarçode1952encontraram-senumadascavernasdomarMortodoismisteriososrolosdecobre,colocadosumsobreooutro.Evidentementeestavamtãooxidadosequebradiçosqueseachoumelhornãotentardesenrolá-los.Todaviaoscaracteresforamgravadostãofundoquesepôdelê-losnoversodacamadaexterna.Depoisdeestudá-losoprofessorK.G.Kuhn,deGöttingen,chegouàconclusãodequecontinhaminstruçõesparaencontrarotesouroenterradodomosteiroessênio.Maistardeenviou-seumdessesrolosaoManchesterCollegeofScienceandTechnology,naesperançadeque se criasse algum método para abri-los. Em 1955-6 o dr. H. Wright Baker, professor deengenhariamecânica,conseguiua façanha: inventouumapequenaserracircularque,passandoporentreoscaracteres,cortouo roloemfatiasquesepodiamabriremtiras,dispor ladoa ladoe ler.Agoraenviou-seosegundomanuscritoeconstatou-sequeosdoisfazempartedomesmodocumento.OtextofoidecifradoporAllegroedefatocontéminstruçõesparaencontrarumtesouroescondido.Taisinstruçõesforamescritasgrosseiramente,comoqueàspressas,eporcertonãofoifácilusaroestilonocobre—ébemprovávelquesetenhaachadomaissegurodeixaramensagemnocobrequeno pergaminho, pois as chances de conservação erammaiores.Mas será que se trata mesmo dotesourodomosteiro,cujoshabitantesteriamlevadoumavidatãoaustera?Odocumentoenvolveumabela soma em dinheiro, bem como recipientes de ouro e prata.Osmanuscritos se encontravam aalgumadistânciadosfragmentosdejarros,oquelevaasuporquetalveztenhamsidodepositadosaliseparadamente.Allegro chegou a acreditar que os essênios nada tinham a ver com esses rolos—apenaspermitiramquefossemescondidosnumacavernapróximaaomosteiro—equeotesouroeraodoTemplode Jerusalém,cujos sacerdotes tomaramocuidadodecolocá-lo foradoalcancedosinvasoresromanos,damesmaformaqueosessêniostrataramdeescondersuabiblioteca.

Agora devemos voltar ao espinhoso tema das relações de Allegro com seus colegas. EleentregouaumjornaldeManchesterumadeclaraçãosobreocortedosroloseimediatamenterecebeudeJerusalémumaordemparanãodizermaisnadasobreisso.Foiaindarepreendidopelodr.Bakerpor ter fotografado o processo de abertura do primeiro manuscrito. Allegro não se pronuncioupublicamentesobreoconteúdodosrolos,porémseismesesapósaaberturadestesodr.Bakerenviouà imprensaumanotaemqueopadreDeVauxeseuscolegasdeclaravamqueo tesouroescondidoquase com certeza era imaginário. Tal parecer tornou-se uma espécie de posição oficial. ComoprofessordeManchesterAllegroforaoprimeiroadecifrarosmanuscritos,masdeixaram-lhebemclaro que sua edição competia a J. T. Milik, sacerdote e erudito polonês, que, como o próprioAllegroadmite,

é talvez o editor mais brilhante de nossa pequena equipe. [...] Adquiriu uma facilidadeextraordinária para ler uma escrita semítica em caracteres cursivos nunca vistos e parareconhecerotrabalhodeescribasindividuaisapartirdosmaisínfimosfragmentos,oquevemaserabasedenossatarefade[...]reconstituiçãodosdocumentosoriginais.

EntretantoAllegrofizeraumatraduçãoepublicou-aem1960,antesqueotextoeatraduçãodeMiliksaíssemnaterceiraseçãodasérieoficialdasDiscoveriesintheJudaeandesertofJordan.IssolevouopadreDeVauxaescreveremsuaRevueBibliquede janeirode1961umartigoviolento sobreo

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livro de Allegro. Este último afirmara que três diretores sucessivos do Departamento deAntiguidadesdaJordânia lhederampermissãoparapublicarosmanuscritos,masDeVauxdizqueeles não tinham o direito de fazer isso. O direito de publicação pertencia aos que efetivamenteencontraramosrolos,eAllegrosequercitapelonomeaAmericanSchoolofOrientalResearchouL’École Archéologique Française de Jérusalem, da qual De Vaux era diretor, ou o MuseuArqueológicodaPalestina,quenaverdadetinhaacustódiadosmanuscritos.Furiosooucumprindoordens,opadreMilikserecusaamencionaraobradeAllegroatéofinaldeseuvolume:

Acrescenteinasprovasdeterminadonúmerodereferênciasaestudosqueapareceramdepoisqueomanuscritoseencontravanoprelo.ContudonãocitoolivrodeJ.M.Allegro,Thetreasureofthe copper scrolls [O tesouro dosmanuscritos de cobre], Londres, 1960, pormotivos que sepodemadivinharlendo-seoscomentáriosdeR.DeVaux[emseuartigodaRevueBiblique].

Entrementes Allegro conseguira levantar fundos em Manchester para realizar uma expedição àJordânianaesperançadeencontrarossítiosdotesouroescondido,eemseuartigoDeVauxdisseraque“essasexpedições,semnenhumaautoridadearqueológicaséria,evisceraramosoloeosmurosdeQirbetQumraneosarredoresdasgrandestumbasjudaicasdovaledoCedron”e“sónoúltimoinstante foram impedidas de estender sua depredação à esplanada damesquita deOmar”.Milik secontentacomcitaressadeclaração.EmSearchinthedesert[Buscanodeserto],umlivrosobresuaexpedição,Allegroafirmaqueoguardiãodamesquitaoautorizouacavarumtúnelsobopisodoterraço sem danificá-lo. No entanto, quando estive em Jerusalém, concluí que seu ato causouapreensão. A mesquita se situa no local do antigo Templo judaico e contém a pedra veneradaduplamentecomoaquelanaqualAbraãodeveriasacrificarIsaaceaquelanaqualMaomépousouaofugirdeMecapelosares.Chamou-seoExércitoparaimpedirasexploraçõesdeAllegro.Esteexplicaquenãoéoprimeiro inglêsaentrarnoDomodaPedra,comotambéméconhecidaamesquitadeOmar.Quantoàsinstruçõescontidasnosrolosdecobre,opadreMiliksegueoqueAllegrochamade“linhadopartido”,daqualoutrosestudiosostendemadiscordar:queotesouroéimaginárioequeosrolosconstituemumatentativadeacrescentardocumentaçãoaumafantasiaoriental.Milikcitaumaobra da “literatura popular”, escrita noEgito, emárabe,O livro de pérolas enterradas emistériospreciosos, que fornece instruções para localizar tais tesouros e é típica de um gênero, diz ele,admitindo,porém,queoautordas instruçõesdomarMorto“conseguiucriaruma forte ilusãodorealgraçasaosprincípiosqueadotou:aeliminaçãodosdetalhes ‘históricos’eexplicaçõessobreaorigem dos esconderijos, redução da informação ao mínimo estrito de dados topográficos enuméricos”.ComoAllegro,entretanto,Milikseesforçaparadeterminartaissítioscomexatidão.Oqueédifícil,poishápoucosnomesdelugares—monteGerizim,ovaledeAcor—reconhecíveisatualmente;quantoàtumbadeAbsalão,atumbaejardimdeZadoceovaledeSecacah,mencionadocomfrequência,sópodemosconjeturar.Podeserqueasdescriçõesdoslocaissejampropositalmenteconfusasparaquesóos iniciadoscompreendam.ConcordocomAllegroqueessa listaéconcisaepormenorizadademais—aseumodo,organizadademais—paranão indicar tesourosautênticos.Allegrodefendesuaconvicçãolembrando-nosdostrêsjarrosquecontinhamquinhentasmoedasdeprataeforamencontradossobopisodomosteiro,eaacusaçãolevantadaporDeVauxde“eviscerarseusoloeseusmuros”refere-seàtentativadeAllegrodeprosseguirnaescavaçãoeencontraralgomais — tentativa que, como podemos facilmente compreender, muito aborreceu o arqueólogoquando,aovisitarasruínasqueescavara,descobriuquealguémandaraporalisemsuapermissão.Milikprocurainsistirqueovalordotesouroétãoenormequesetornainacreditável,porémAllegroreplicaquenãosabemosquantovaliaentãootalento.OsvaloresconstantesdoVelhoTestamentoedaliteratura rabínica tardia resultariam de fato em pesos fantásticos, e se o administrador injusto de

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MateustrabalhavacomvaloresdoVelhoTestamento“poderiasedarmuitobememWallStreet”,eo“servo bom e fiel” do mesmo evangelho “que teve tanto sucesso em especular com seus cincotalentos precisaria de um carrinho de mão bem grande para levar a seu amo os resultantesquatrocentospesosdeprata”.

As traduções dos rolos de cobre feitas por Allegro eMilik diferem consideravelmente, e oprimeiro,numasegundaediçãodesuaobra,reconheceacontribuiçãodeMilikeemcertamedidaaacata para rever a sua. Lamenta que a controvérsia recente tenha destruído um relacionamentoprazeroso,baseadoempartenumentusiasmocomumpelostextosdeP.G.Wodehouse.Explicaquepublicouotextosemapermissãodoscolegaslevandoemcontaareclamaçãodeváriosestudiosos,aqualjámencionei:queDeVauxdemoroudemaisparapublicarosoutrosdocumentos.AissoaequipedaVelhaJerusalémrespondequeAllegro,comomembrodessaequipe,violouaéticadaerudição.Ele justifica a expedição realizada por sua iniciativa alegando que o grupo oficial não tencionavafazer nada, umavez que considerava o tesouro imaginário.Na Jerusalém jordaniana disseram-meque as autoridades oficiais da Jordânia, que sem dúvida autorizaram a expedição de Allegro,esfriaram, como ele diz em seu livro, quando Allegro não encontrou nada importante— apenasumaspoucasmoedasealgumaspeçasdecerâmica.

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7.OSTEXTOS

Já mencionei a consternação causada entre estudiosos judeus ortodoxos pela descoberta deantigostextoshebraicosdaBíbliaquediferemdaversãomassorética;faleitambémdotranstornoquefoiparaosestudiososcristãosadescobertadedocumentosdesconhecidosque lançamnovas luzessobre o surgimento do cristianismo. O judeu comum sabe apenas que a Torá e os Profetas e osHagiógrafos,astrêspartesdesuaBíblia,sãosagrados;ogentiocomumsabequesuaBíblia,daqualaprimeirapartetemumaorganizaçãodiferentedo“Tanakh”a(palavracriadaapartirdasconsoantesiniciaisdas três seções)hebraicoeque foi traduzidade formasdiversas, éumaobrade revelaçãodivina e consiste de duas unidades sólidas chamadas Velho e Novo Testamentos. Hoje em diararamentealêe,sevaiàigreja,ouvealeituradeunspoucosversículosselecionados,emgeralbemdestacadosdocontexto.Fiqueisurpresoquandodescobriquemuitosgentiosletradosnãosabememque línguas a Bíblia foi escrita. D. F. Hudson, do Serampore College de Bengala, autor de umagramáticadogregodoNovoTestamento,contaqueumasenhorainglesadisseaummissionárioquetraduziaoNovoTestamentodogregoparaumalínguadaÁfricacentral:“Masparaquefazerisso?Seo inglês serviupara sãoPaulo,porquenãopode servirpara eles?”.Emseu livroThe Englishbible:ahistoryoftranslations[ABíbliainglesa:umahistóriadetraduções]F.F.Bruce,daUniversityofManchester, também relata histórias engraçadas sobre a reação à Revised Standard Version de1952— revista obviamente em benefício da precisão: nessa época não se cogitava em retomar oestilodaVersãodo rei Jaime.Algumaspessoasprotestaramporqueum ilustre erudito judeu, umaautoridade na Versão dos Setenta, fora incluído na comissão que preparava a Revised Version. Equandoessaversãofoipublicada“umpregadoramericanoqueimouumexemplar[...]emseupúlpito,comentando que parecia o diabo porque era difícil de queimar”. Surgiram panfletos com títuloscomo“ABíbliadoAnticristo”,“ANovaBíbliaBlasfema”e“QueDedosSujosAndaramMexendoComaBíbliaSagrada,aPalavraPura,Infalível,VerbalmenteInspiradadeDeus?”—esteúltimoseinicia com a seguinte frase: “Toda pessoa informada e inteligente sabe que nosso governo estárepletodecomunistasoudeindivíduosqueaprovameestimulamocomunismo”.Naturalmenteparaessetipodegenteéaindamaisdifícilentenderosproblemasqueaparecemquandosefazumesforçosério para determinar o que de fato foi escrito naBíblia e o que significava para as pessoas queescreveram.Emsuapoética linguagemseiscentista aVersãodo rei Jaime éumaobra literária tãobela que se torna difícil para o leitor familiarizado com ela não imaginar que ali está impressa aPalavradeDeus—comoachavamasenhorainglesaouoautordopanfletoanticomunista.NãosólembramosiCoríntios—“Agoravemoscomoporumespelho,emenigma”—enãoreconhecemos(provavelmente não lemos) James Moffatt — “Agora vemos apenas os confusos reflexos numespelho”—ouRonaldKnox—“Agoraestamosolhandoparaumconfusoreflexonumespelho”—,masaindaimaginamosojovemJosédoGênesisnumaespéciedefantasiadearlequim,o“casacodemuitascores”,emboraMoffatteaRevisedStandardVersionnosdigamquesetratavanaverdadedeuma toga ou túnica demangas longas (Knox tenta tornar a velha interpretaçãomais apresentávelchamando a veste de “um casaco todo bordado”. Entretanto todo professor de hebraico paraprincipiantestemdecomeçarcombatendoessainfluência,explicandoqueemmuitoscasossabemosmaisqueos tradutoresdoséculoxvii.UmprofessordoUnionSeminarymecontouquedistribuiuentreseusalunoscópiasmimeografadasdoensaiodoprofessorWalterRaleighsobreasbelezasda

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traduçãodoreiJaime,garantindo-lhesquetudoqueRaleighdiziaeraverdade:deviamler,masteremmentequeerairrelevanteparaoqueiamestudar.UmprofessordoPrincetonSeminaryfaziaumavisosemelhante,referindo-seaovelhoclichêdequeosmaiorestesourosdaliteraturainglesasãoShakespeareeaBíbliadoreiJaime,edepois,quandopercebianumatraduçãodaclasseumecodessaBíblia,queevidentementeforausadaparacola,interrompia:“NãosepreocupemcomShakespeare!”.

Principalmente depois que as cavernas do mar Morto apresentaram tantos textos novos, oestudiosoqueprocuraseaprofundarnaquestãodoqueaBíbliadizeentenderosmotivosdasmuitasvariantes entre suasdiferentesversões—emhebraico,gregoe latim, samaritanoeoutras línguassemíticas—vê-sediantedeumdesafio,queconsisteemestudarsemcessarumaespéciedequebra-cabeçasqueé raroconseguirmontar,pois faltammuitaspeças.Asmonografias sobreesses temassão extremamente difíceis para o leigo: por que fragmentos de outro texto grego parecemdiferirdaqueles da Versão dos Setenta? Um fragmento em hebraico, recém-encontrado, representa umaversãoanteriordo textodoPentateucosamaritano,que,emboraescritonoscaracteresenodialetodosdissidentes samaritanos, estes sempreafirmaramsermaisantigoeautênticoqueodos judeus,seusparentesdistantes?AlgumasnovasleiturasdosmanuscritosnãosãomuitomaissatisfatóriasqueaquelasquetêmsidotãozelosamenteguardadasnasagradaBíbliamassorética?UmexemplonotáveldessaúltimaquestãoéotextodascolunasdeSamueldescobertonacavernaquatro,cujaimportânciaodr.Crossfoioprimeiroacompreender.Édivertidocotejarseumododetrabalharcomessetexto,totalmentesecoeimpessoal,emseulivroTheancientlibraryofQumrânandmodernbiblicalstudies[A antiga biblioteca de Qumran e os modernos estudos bíblicos], com o estilo muito maisempolgantedeAllegroemTheDeadseascrolls:areappraisal[OsmanuscritosdomarMorto:umareavaliação].SeCrossnãodramatizasuadescoberta,Allegrofazissoporele.Assimescreve:

EnquantoseempenhavaemlimparereunirunsfrágeispedaçosdecourodoLivrodeSamuel,provenientesdacavernaquatro,FrankCrosspercebeuqueemdeterminadopontootextopareciaserinteiramentecontrárioaotm[textomassorético].Verificoumaisumavezenãotevedúvida.Continuouesfregandodelicadamenteatéapareceralinhaseguinte.Denovootextoapresentavaacentuadasvariantes, e aspoucas linhas seguintes incluíam todoumparágrafoquenãoestavagrafadonohebraicousual.Cadavezmaisempolgado,Crossfoiconsultarasprincipaisversõesequasedeimediatoconstatouqueseutextocorrespondia,palavraporpalavra,àtraduçãogrega.Ospreciososfragmentosunidosaoutros[...]

EmtrêscolunasparalelasAllegrocolocasuas traduçõesdasmesmaspassagens tiradasdessenovotexto,daVersãodosSetentaedaRevisedStandardVersion,eissotalvezdêaoleitorcomumaideiamaisclaradasvariantesemtaistextos.(Seulivroencontra-seàvendanumabrochuradaPelican.)OnovomanuscritodeSamuel,dizodr.Cross,coincidemaisfrequentementecomaVersãodosSetentado que com o texto “tradicional”, porém existem muitas novas leituras que não coincidem comnenhumdosdois.Aproxima-semaisqueotextomassoréticodaqueleusadopeloautordasCrônicas,quecontamaisoumenosamesmahistória.Graçasaumreforçodepapiro,esseSamueléomelhordos textos bíblicos encontrados na caverna quatro. Um texto de Samuel mais antigo sobreviveuapenasemsetefragmentos.Odr.CrossacreditaqueéomaisantigodosmanuscritosdomarMorto,nãosendoposteriora200a.C.Sódessacavernaquatrosaíramfragmentosdoqueseestimaem382manuscritos,bíblicosedaseita.Entreosrolosencontram-seversões—sempreincompletas,excetonocasodeIsaías—detodososlivroscanônicos,menosEster.

Na cerimônia de abertura do Santuário do Livro, o museu especial para a exposição dosmanuscritosdaUniversidadeHebraica,naJerusalémisraelense,odr.Crosspronunciouumdiscursoparaumaplateiadeeruditossobre“AcontribuiçãodasdescobertasdeQumranparaoestudodotexto

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bíblico”quedepoisfoipublicadonovolumexvi,número2,1966,doIsraelExplorationJournal.Taldiscursodaráaoleigoumaideiadecomoécomplexaatarefadedesemaranharasrelaçõesentreosdiferentestextosbíblicos,porémvaleapenacitaraquialgumasdasconclusõesmaisgeraisdeCross.Dizelequeexistemtrêsprincipais“famílias”detextos:palestina,egípciaebabilônia,cadaumadasquais apresenta características especiais resultantes de seu desenvolvimento em diferenteslocalidades.CrossnãoencontranosdocumentosdeQumrannenhumaindicaçãodequenaépocaemque foram escritos e reunidos existisse um texto bíblico básico. “Não há um exemplar do textomassorético”,declara,“nemsinaisdesuainfluência.”Essetextomassorético—queparaosjudeuséo“tradicional”ehojeemdiaoficial—foicompostoapartirdasversõespalestina,babilôniaedosSetenta,atraduçãoparaogrego,elaboradaemAlexandria,deumaversãoentãocorrentenoEgito,oqueexplicaasdiferençasentreelas.A“recensãorabínica”,dizCross,deveter“surgidoentreaeradeHillel”—ouseja,ofinaldoséculoia.C.—“eaprimeirarevoltadosjudeus”.ConquantonãofosseaversãodabibliotecadeQumran,

parecequefoiaceitaemoutroscírculosporvoltade70d.C.enointervaloentreasrevoltasdosjudeus contra Roma tornou-se o texto predominante em todas as comunidades judaicas quesobreviveram.Sua vitória foi completa, e tradições textuais rivais logo se extinguiram, salvoquandoforampreservadasemtraduçõesantigasousobreviveramnotextodeumaseitaisoladacomoadossamaritanos.

Tendochegadoaesteponto,serámelhorcontinuaradiscussãodostextosbíblicosemrelaçãocomoschamadosTestimonia.aTanakh:astrêsseçõessãoTorá(Lei), Nabbhin(Profetas)eKathubhin(Hagiógrafos).(N.T.)

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8.OSTESTIMONIA

AspassagensdoVelhoTestamento que são citadas noNovoTestamento comoprofecias davindadeJesusCristo—ouseja,deJesusdeNazarécomooMessiasesperadopelosjudeus—edeoutroseventosdosEvangelhos sempreconstituíramumembaraçoparaosestudiosos,poisounãoocorremnaBíbliahebraicatalcomoapossuímos,ouocorremnumaformadiferente.Calcula-sequejánocomeçodoséculoix—faleidissoanteriormente—umpatriarcadeSelêuciaescreveuaummetropolita do Elam perguntando sobre uns textos que teriam sido encontrados numa cavernapróxima a Jericó.Opatriarca perguntara a umestudiosoque tinhavisto osmanuscritos se algunsdeles continham tais passagens, que não figuram nem no texto massorético nem na Versão dosSetenta.Oestudiosorespondeuque taispassagensforamefetivamenteencontradasnos textosdessacaverna e que entre eles havia também mais de duzentos Salmos de Davi. (Conforme vimosapareceramrecentementeemQumranoutrossalmosquenãoos150canônicos,emboranãofossemtantos.) O patriarca continuou investigando, mas para sua frustração não obteve resposta. “Isto écomofogoemmeucoração”,escreveemsuacartaaometropolita,“queimandoeardendoemmeusossos.”Nãosabemoscomosuacarta foi respondida.Entretantooenigmasobrea fontedaqualoscristãos tiraram o que se passou a chamar suas “provas textuais” continuava a preocupar osestudiososdaBíblia.NãosóaBíblia,comoaindaaapócrifaEpístoladeBarnabéealgunspadresdaIgrejaparecemrefletiremsuascitaçõesotextodaVersãodosSetenta—podiamterlidoaBíbliasóem grego—, porém em alguns aspectos diferem dela. Em 1838 o erudito alemãoK.A. Crednerapresentouateoria,formuladaclaramentecinquentaanosdepoispeloestudiosoinglêsEdwinHatch,dequeexistiamantologiasdecitaçõesproféticas—primeirocompiladaspelospróprios judeus—usadastambémpelosautoresdoNovoTestamentoepelospadresdaIgrejacristã.Nofinaldoséculoxix,F.C.BurkitteJ.R.HarrischegaramàhipótesedosTestimonia—ouseja,coletâneasdetextosproféticos organizadas para uso exclusivo dos cristãos em suas discussões com os judeus paramostraremqueoslivrossagradosdestesúltimospredisseramavindadeJesuscomooCristo.Ilustradramaticamenteasdisputasqueissogerouo“DiálogodeJustino,filósofoemártir,comTrífon,umjudeu”,escritoporJustinonoséculoiid.C.Justino,queestáesperandoumnavioemÉfeso,conheceo rabinoTrífon,que fugiudaPalestina,oraocupadapelos romanos,naépocada rebeliãodeBar-Kochbacontraestes.Nodecorrerdeumalonguíssimadiscussão,queaparentementeseestendeupordois dias e naqualTrífon é intimidado, Justino acusaos judeusde teremalteradoo textode suasEscriturasafimdeeliminaraspassagensqueoscristãospodiamcomtodaapropriedadeinterpretarcomoprofeciasdaorigemmiraculosaedamissãodivinadeJesus.Numcasoaindamuitodiscutíveltrata-sesimplesmentedeumproblemadetradução,podendoosjudeusalegaremqueseinterpretouohebraicodemaneiraequivocada.EmIsaías7:14aBíbliacristãtemestaversão:“PortantooSenhorvosdaráumsinal;atenção,umavirgemconceberáedaráàluzumfilho,eseunomeseráEmanuel[Deusestá conosco]”, evidentemente seguindoaVersãodosSetenta, emqueo termohebraicoquedesignaamãedeEmanuelfoitraduzidocomoἡπαρθένοσ;Trífonobjetaqueha-almahnãosignificanecessariamentevirgem,masapenasjovem,equeaprofecia,quesecumpriu,nãoseaplicaaJesusesimaEzequias,acujopai,Acaz,Isaíassedirige.Orabinodizaindaqueessahistóriadonascimentode Jesus se situa no mesmo nível do mito grego segundo o qual Zeus gerou Perseu em Dânaedescendo sob a formade uma chuva de ouro e que os cristãos deveriam se envergonhar de fazer

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afirmações tão absurdas. (A questão continua em debate, como demonstra a recente tradução daBíbliaelaboradapelomonsenhorRonaldKnox,queparecetransigirumpoucoaotraduzirotermopordonzela—comoalmah,acreditaele,nãonecessariamenteumavirgem—,“poisrefere-seaumaépocadavida,nãoaumestado”;eacrescenta: “masdiantedo fatonãopodemosduvidarqueessaprofecia se aplica à Virgindade de Maria”.) É evidente, contudo, que Trífon e Justino discutiambaseadosemtextosdiferentes,ehojesepensaquetrêstraduçõesgregas,alémdaVersãodosSetenta,quedatammaisoumenosdaépocadeTrífonesedevemaosestudiososjudeusTeodócio,AquilaeSímaco,apresentamumviésanticristãoouumaênfaseantiantropomórficanãocristãemoposiçãoaotipodecoisaqueseprestaaosempregosdosTestimonia.

E onde os cristãos conseguiram suas “provas textuais”?Constavam de outras versões que seperderamouàsvezesforamcriadasdeliberadamente?AspessoasqueelesprocuravamconverternãodeviamestarfamiliarizadascomaVersãodosSetentaemuitomenoscomomassoréticohebraico.Entretantoodeslindamentodessesmistériossemprefoiumaquestãodelicada,porquepodepôremjogo a veracidade do Novo Testamento. No início da apresentação de seu recente livro,The OldTestament of the early Church [O Velho Testamento da Igreja primitiva] Albert C. Sundberg, Jr.,explicaque

oVelhoTestamentoda igrejaprimitiva,queconstituiumproblemaem termosdocânon, temrecebidonosestudosbíblicosum tratamento inadequado.Temsido tratadocomoapêndicedocânon do Velho Testamento, do cânon do Novo Testamento e estudado na Literatura dosApócrifos e Pseudepígrafos, restando definir ainda a disciplina responsável pela abordagemdesseproblema.

PodemilustrarotipodeentravesaquienvolvidosdoisexemplosclarosdeMateus27:9e2:23.NoprimeirodessesexemploslemosqueJudasdevolveu“aospríncipesdossacerdoteseaosanciãos”astrintamoedasdeprataquereceberaparatrairJesusequeelesserecusaramacolocarodinheiroemseutesouroporqueera“preçodesangue”,masutilizaram-noparacomprar“ocampodooleiro,para sepultura dos estrangeiros”, e que tudo isso foi predito pelo profeta Jeremias. Ora, nãoencontramos tal predição em Jeremias,mas Zacarias (11:12-13) contém a seguinte passagem, quenuncasecompreendeuequetalveztenhasidotiradadeoutrolugar:

Eeulhesdisse:Sevosparecebem,dai-mearecompensaquemeédevida;e,senão,deixai-vosdisso.Então,pagaram-mepelomeusaláriotrintamoedasdeprata.EoSenhormedisse:Arrojaaooleiroessedinheiro,essabelasomapelaqualmeapreciaram.E tomeias trintamoedasdeprataelancei-asnacasadoSenhorparaooleiro.

As opiniões divergem em relação à palavra :ךצןי alguns acham que designa o bairro dos oleiros,onde havia um pátio no qual se jogavam os vasos quebrados doTemplo; para outros trata-se, naverdade,do termoque significa tesoureiro e figura nos textos aramaico e siríaco, tendo sido aquigrafadoerroneamente.DequalquermodoébemdiferentedaversãodeMateus,eKnoxapresentaahipótesedequeapassagemtenhasidooresultadodafusãodosversículosdeZacariascomJeremias32:7-9,que faladacompradeumcampopor“dezessetesiclosdeprata”.AsegundareferênciaemMateus—comaqualopatriarcadeSelêuciaestavaparticularmentepreocupadoaoescreverparaometropolita do Elam sobre os manuscritos recém-descobertos— é a seguinte: “E, chegando, ele[Jesus] habitou numa cidade chamada Nazaré, cumprindo-se deste modo o que tinha sido preditopelos profetas, que seria lá chamadoNazareno”.Mas nos Profetas que temos não há tal predição.MinhavelhaBíbliainglesa,impressaemfinsdoséculoxix,remete-nosparaJuízes13:5eiSamuel

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1:11,quenãosereferemanazarenos,esimanazireus,umgrupoespecialmencionadopelaprimeiraveznoGênesis,cujocultoexigia,entreoutrascoisas,quenãoraspassemacabeçadosfilhos,masosdeixassemterlongoscabelos.NaprimeiradessaspassagensoAnjodoSenhorprofetizaparaamãedeSansão:

Porqueconceberásedarásàluzumfilho,cujacabeçanãoserátocadapornavalha;poisqueeleseránazireudeDeusdesdea sua infânciaedesdeoventredesuamãe.Elecomeçaráa livrarIsraeldasmãosdosfilisteus.

Evidentemente isso não se aplica a Jesus.A proveniência desse versículo emMateus geroumuitacontrovérsia,tendosidopropostas,segundomedisseram,quasetantasexplicaçõesquantosforamosestudiososqueabordaramoproblema.

NãohaviaTestimoniaconhecidosparamostrardeondeoautordeMateustirousuascitaçõestãooportunas,eaexistênciadetaiscoletâneaseraaindainteiramentehipotética.PorémumdosaspectosmaisextraordináriosdasdescobertasrealizadasnascavernasdomarMortoéquealgumacoisadessetipoveio à luz.Trata-sedoDocumento iv, da cavernaquatro, publicadoporAllegrona ediçãodesetembrode1956doJournalofBiblicalLiterature(edepois,semseucomentáriocrítico,novolumevdeDiscoveriesintheJudaeandesert).EssetextonãofalanadasobreNazaré,nemJesus,nemtrintamoedasdeprata.Apenasprediz a vindadeumMessias.Entretanto, para atender a seuspropósitosespeciais,ocompiladoralterouligeiramenteascitaçõesbíblicas,comofizeramosautoresdoNovoTestamento, ou, como estes também fizeram, juntou dois textos distintos demodo a lhes dar umsignificadodiferentedoquetinhamemseusrespectivoscontextos.Assim,aDeuteronômio5:28-29segue-seimediatamenteDeuteronômio18:18,compondoaseguintepassagem:

Ouviavozdaspalavrasqueessepovodirigiuati:elesfalarambemtudooquedisseram.Oh,quemderaquetivessemumcoração,emetemessemesempreguardassemmeusmandamentos,paraquetudofossepropícioaeleseaseusfilhos,parasempre!Suscitareidentreseusirmãosumprofetacomotu;enabocadesseprofetacolocareiminhaspalavras,eelelhesdirátudoqueeuordenar.

O primeiro texto, que termina em “filhos, para sempre”, aplica--se no Deuteronômio a Moisés;porémnosegundo,quecomeçacom“Suscitareidentreseusirmãosumprofeta”,oquesereferiaaMoiséspareceaplicar-seaumprofetainominadoqueestáporvir.CabenotartambémqueemAtos3:22 e 7:37, nos discursos de Pedro eEstêvão, o segundo desses textos é aplicado a Jesus.O quecomplicaaindamaisoproblemaéofatodequeafusãodessasduaspassagensocorreemÊxodo20noPentateucosamaritano,demodoquesuaexistênciadeveseranterioraotextomassorético.

O que realmente aconteceu aqui é que os primitivos cristãos utilizaram os Profetas paraprediçõeseautenticaçõesdasorigensdeseugrupo,assimcomofezaseitadeQumran—conformeexpliqueiemrelaçãoaopesherdeNaum—comosfatosdesuahistória.

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9.AEPÍSTOLAAOSHEBREUS

Pelasdiscussõesmencionadasvemoscomoseexaminoucadapalavradessesdocumentosequeconclusões sepode tirar damais ligeira alusãoou sugestão.Aexistênciados remanescentesdessabiblioteca, que aumentam sem cessar, essa torrente repentina de dados compreendidos apenas empartetemlevadocadavezmaisaestenderaespeculaçãoemtodasasdireções—sobreahistóriadosdocumentosdoquechamamosoVelhoTestamento, sobreosdocumentos já conhecidosdoque sedenominaoperíodointertestamentalesobreosprimórdiosdocristianismo.Noúltimocasoalgumassemelhançaseramóbviasdesdeocomeço:a influênciadaseitadomarMortopareciapresenteemparte da linguagem do Evangelho segundo são João e na doutrina das Epístolas de são Paulo; ocomportamento de Jesus na Santa Ceia parecia explicar-se como um desafio ao protocoloestabelecido pelos essênios em suas prescrições para seu banquete sagrado. E ainda se fazemtentativas— às vezes com resultados implausíveis— para ligar o que sabemos da literatura docristianismoprimitivoaoquesabemosdaliteraturadaseita.UmadasmaisinteressanteséateoriadeYigaelYadinsobreaEpístolaaosHebreus.

Essedocumento,queagoraéapresentadocomoaúltimadasepístolasatribuídasaPaulo,semprefoisuspeito,nãosóparaoquesedenominava“críticasuperior”doséculoxix,masdesdeoiníciodocânon cristão.Numdos três primeiros códices aEpístola aosHebreus é omitida; emoutro figuraapenasemlatim;numterceiroaparececomoumaespéciedeapêndice.OsprimeirospadresdaIgrejatinhamsobreelaopiniõesdiversas.AepístolafoiatribuídaasãoLucas,aBarnabé—que,emboranão fizesse parte dos Doze, logo foi considerado apóstolo—, a um alexandrino convertido porPauloechamadoApoloeaobispoClementedeRoma,doséculoi.Oseruditosmodernosparecemtendercadavezmaisaatribuí-laaApolo.AconvicçãodequefoiescritaporPaulofortaleceu-seemmeadosdo século iii,masno final do ivAgostinho e Jerônimoexpressaram suasdúvidas.Parecehaverumcertomistério,emprimeirolugar,sobreamaneiracomoessaepístolaentrounocânondoNovoTestamentoealiseincorporou.AsrazõesparaseacreditarquenãoéobradePaulosão,entreoutras,asseguintes:aocontráriodasdemaisepístolaspaulinas,nãotrazsaudação,nemindicaçãodeautoriaoulocalidade;ogregonoqualestáescritaémuitomelhorqueodePaulo,eoestilodiferedoseu. O autor parece alexandrino— donde a preferência por Apolo— e se baseia naVersão dosSetenta, a tradução alexandrina da Bíblia, expressando-se de uma forma que sugere seudesconhecimentodooriginalhebraico.

Equemsãoesses“hebreus”aosquaisaepístola tãovagamentesedirige?Quemerameondemoravam?Osdadosdequedispomosparaidentificá-lossãotãoescassosquantoosquetemosparaidentificaroautor.OprofessorYadin,quediscutiuoproblemacomosprofessoresW.F.AlbrighteDavidFlusser,tentouumarespostadaqualatéagoraosoutrosapenasseaproximaramconfusamente.Eleiniciaumtrabalhosobreoassunto—“OsmanuscritosdomarMortoeaEpístolaaosHebreus”,no quarto volume dosScriptaHierosolymitana, publicados pelaUniversidadeHebraica— citandoalgumasdasopiniõesregistradasporestudiososanteriores,queemgeraldiscordamentresi.Esseshebreuseramjudeusortodoxos, judeuscristianizadosougentioscristianizados?OprofessorYadinacreditaqueagoraexisteoutraexplicaçãopossível:esseshebreuspodiamsermembrosdaseitadomar Morto. O autor da epístola se empenha em prevenir seus destinatários sobre alguns errosespecialíssimosquenãoparecemtermuitoemcomumcomasopiniõeseospreconceitosquePaulo

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geralmente procura destruir. O professor Yadin teve a brilhante ideia de inverter essa doutrinanegativa a fim de descobrir qual seria o lado positivo e no quadro formado pelo lado positivoreconhecealgumasdasdoutrinascaracterísticasdaseitadomarMorto—emespecialaquelascontraasquaisumdefensordeJesus-Messiasseveriaobrigadoalutar.DizYadin:

De início cabe enfatizar que a maior parte da Epístola aos Hebreus procura provar asuperioridade de Jesus sobre diversas pessoas e criaturas celestiais de carátermessiânico ouescatológico,asquais—segundoascrençasdosleitores—ousãosuperioresaJesus,comoumMessiasleigo,ouforamencarregadasderealizardeterminadasfunçõesnoFimdosTemposque— segundo o autor— reservam-se a Jesus, o Messias [divino]. Assim, o autor da Epístoladiscuteosseguintestemas:Jesuseosprofetas;Jesuseosanjos;JesuseMoisés;eporfimJesuseAarão.

Seguindoessaordemdeapresentação:jánocomeço(1:1-2)aEpístoladesconsideraosprofetas,coloca-osdeladocomoobsoletos,pois“ultimamente,nestesdias,[Deus]falou-nospormeiodeseuFilho,aquemconstituiuherdeirodetudo,porquemcrioutambémosséculos”.(AquiedoravanteusoatraduçãodopadreKnox,que,emborarespeiteaVulgata,estámaispróximadooriginalgregoqueaVersãodoreiJaimeouaRevisedStandardVersion.)TãoinvocadosnosdocumentosdomarMorto,nessesdoisversículososprofetassãorebaixados,eopassoseguinteconsisteemtentarrebaixarosanjos,poisestes tinhamimensa importânciaparaaseita,que—àsvezes referindo-seaelescomo“santos”, “deuses” ou “filhos do Céu”— parece lhes dar o poder supremo depois deDeus, comMiguel,oAnjodaLuz,àfrente.(Josefotambémfaladissoemseutextosobreosessênios.)Ora,oautor daEpístola aosHebreus dedica amaior parte de seus dois primeiros capítulos a enfatizar ainferioridadedosanjosemrelaçãoaJesusCristo:

Porque, a qual dos anjos disse [Deus] jamais: “Tu és meu filho, eu te gerei hoje”? [...] Enovamente [ninguém sabe o que significa esse “novamente”], quando introduz o seuPrimogênito no mundo: “Todos os anjos de Deus o adorem”? [...] E a qual dos anjos dissealgumavez:“Senta-teàminhadireita,atéqueeuponhaosteusinimigosemescabelosaosteuspés”? Porventura não são todos esses espíritos seus ministros enviados para exercer o seuministérioafavordaquelesquehãodereceberaherançadasalvação?

Jesus,queemseupapelhumano foi feito“porumpouco inferior aosanjos [...] emnenhum lugarvememauxíliodosanjos,masvememauxíliodadescendênciadeAbraão”.Querdizer,osanjossãoosservosdoFilho,emboraJesus,namedidaemqueéhumano,partilheanaturezadohomem,queé“porumpoucoinferioraosanjos”.

Convém observar, como Yadin menciona, que Colossenses 2:18 também previne contra aseduçãodosqueafetam“humildadeecultodosanjos”.AoescreversobreColossensesem1875,J.B.Lightfootfaloudessaadvertênciacontraaangelologiaeapartirdestaedeoutrasindicaçõesconcluiuque a influência dos essênios— que, achava, se inspiraram nos gnósticos— era identificável damesmaformanegativaquandoPaulotentapreveniroscolossensescontraoqueLightfootchamade“aheresiacolossense”.Nãodeviamconsiderar-seumaelite,nempossuidoresdesabedoriaesotérica,poisCristoveiopara“admoestar todohomeme instruir todo homemem toda sabedoria,paraquepossa apresentar todo homem perfeito em Cristo Jesus” (tradução e grifos de Lightfoot). Aocontrário dos essênios, não deviam observar normas rígidas quanto ao que bebiam e comiam.“Assim, que ninguém vos censure pelo que comeis ou bebeis, ou por observardes festas, e luasnovas,ediasdeshabat; tudo issosãoapenassombras lançadasporeventos futuros,a realidadese

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encontraemCristo”(Knox).Nãotendoaliteraturadaseita,Lightfootnãopodiasaberqueessaúltimaadvertênciateriaconfirmadosuateoriadequeoscolossensesaosquaissedirigiaestavamimbuídosdasdoutrinasdosessênios,que,comoagorasabemos,possuíamumcalendáriosolarsegundooqualsuasfestascaíamemdiasdiferentesdasfestasdosoutrosjudeus.

VoltandoaoautordaEpístolaaosHebreus, elepassaaumaargumentaçãoespecialqueocupaquaseametadedesuacartaevisaamostrarqueJesuséumautênticosacerdotenumalinhagemqueseus destinatários devem aceitar. “Sobre este assunto [do sacerdócio de Cristo] tínhamos muitascoisasquedizer,ecoisasdifíceisdeexplicar,porquevostornastestardosparacompreender.”Aseitaesperava,noFimdosTempos,umMessiasqueseriaumsacerdotenalinhagemdeAarão—ouseja,umlevita—,porémissonãoseaplicaaJesus,queeradalinhagemdeJudá,“edesta triboMoisésnada falou no tocante aos sacerdotes”. No entanto Deus declarara a Jesus: “Tu és sacerdoteeternamente segundo a ordem de Melquisedec”, o qual era sumo sacerdote e rei, como a seitaesperavaquefosseseuMessias.Melquisedec

saiuaoencontrodeAbraão,quandoelevoltavadedestroçarosreis[deSodomaeGomorraeseus aliados] e o abençoou; a ele deuAbraão o dízimo de todos os despojos; [o seu nome]primeiramente se interpreta reide justiça, edepois reideSalém,quequerdizer reidepaz [éevidentequeshalemtemaquiomesmosentidodeshalom].

MelquisedecrealmenteésuperioraAarão.UmdossalmosdizsobreDavi:“JurouoSenhor,enãosearrependerá: Tu és sacerdote eternamente, segundo a ordem de Melquisedec”. E sabemos queMelquisedec foi sumo sacerdote e reimuito antes de Levi nascer— do qual a seita esperava seuduploMessias,demodoquenãoimportavaJesusnãodescenderdeLevi.(Combasenumfragmentodacavernaonze—MelquisedeceoFilhodoHomem,emChristianNewsfromIsrael,abrilde1966— David Flusser acha que “pelo menos alguns membros da seita acreditavam que o Messiassacerdotal dos Últimos Dias seria Melquisedec. Como conciliavam essa convicção com a crençacomumenteaceitanumMessiasaarôniconãosabemos.Noentantoumaconclusãopareceimpor-se:areferênciaemHebreusnãoseriaumaexpressãodeoposiçãoàideologiaaarônicadaseita,esimumaopiniãojáexistenteemdeterminadoscírculosdaseita”.)

AdemaisorolodaGuerraestipulavaquenofim,apósalibertaçãodeJerusalém,ossacrifíciosno Templo fossem retomados em conformidade com a lei deMoisés: tais sacrifícios deviam serfeitos“paraoprazerdeDeus,paraexpiaçãodetodososSeusfiéis”.OautordaEpístolaaosHebreusdescreveobanhodesanguedossacrifíciosmosaicosedepoisexplicaqueCristonãoprecisava

seoferecermuitasvezesasimesmo,comoopontíficeentratodososanosnoSantodosSantoscomsanguealheio;doutramaneiraser-lhe-ianecessáriopadecermuitasvezesdesdeoprincípiodomundo; apareceu, porém, uma só vez no fim dos séculos, para destruir o pecado com osacrifíciodesimesmo.

Cadaumadessasadvertênciastem,portanto,suaaplicaçãomuitoespecialàsdoutrinasdaseitadomarMorto.ErnestRenandatouaEpístolaaosHebreusdoperíodoentre65e70d.C.—ouseja,dosúltimosanosdaseita,poucoantesdadestruiçãodomosteiro.Oautor judeuconvertidoestariatentandoconverterigualmenteoshabitantesdomosteiro?

CabeassinalarqueemAcomparativestudyoftheOldTestamenttextintheDeadseascrollsandintheNewTestament[UmestudocomparativodotextodoVelhoTestamentonosmanuscritosdomarMortoenoNovoTestamento](E.J.Brill,Leiden,1965),umaobrapuramentetextual,quenadatemadizersobreateoriadeYadin,oestudiosoholandêsJ.DeWaardchegouàconclusãodequeoautorda

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EpístolaaosHebreusdeviaconheceraliteraturadeQumran.

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10.MASSADA

Massadaéumrochedoimensoeabrupto,situado48quilômetrosaosuldeQumran,erguendo-se a 390metros de altura próximo àmargem ocidental domarMorto. Seu cume chato,mais oumenossemelhanteaumnavio,mede570metrosdenorteasule195delesteaoeste.AquiHerodes,com sua desconfiança paranoica, construiu uma das várias cidadelas em que procurou armar-secontraasforçasqueoameaçavam:os judeus,queestavamdescontentescomumrei impostopelosromanosedesangueedomita,querdizer,nãojudeu—ahostilidadeentreosjudeuseseusvizinhosébemantiga—, e podiam tentar restaurar sua dinastia asmoniana; e as ambições deCleópatra, quepediraaAntônioquematasseHerodeselhedesseotronodaJudeia.Josefo,nossaúnicaautoridadeantigasobreoassunto,conta-nosqueemMassadaHerodesconstruiuumpalácioeumamuralhadecasamatas com38 torres.ApósamortedeHerodesos romanos tomaramessa fortaleza,quemaistardefoiconquistadaporMenahem,olíderdarevoltajudaicade66d.C.,quematouoslegionários.Depois a ocupou durante sete anos um grupo de judeus militantes conhecidos como zelotes ousicários.Apenasdoiscaminhosconduziamàcidadela,sendoumdelesumatrilhaemzigue-zaguequesegundoJosefoerachamada“aserpente”:

Pois seucursoé interrompidoaocontornar as fragas salientese,voltando-secom frequênciasobresimesmaepoucoapoucoestendendo-sedenovo,avançapenosamente.Quemsegueporessecaminhodevefirmarcadapéalternadamente.Adestruiçãoestápresente;poisdecadaladoabrem-sefendasprofundasetãoterríveisqueintimidamosmaiscorajosos.Depoisdepercorreressaperigosatrilhaporunsseisquilômetroschega-seaocume,que,aoinvésdeafilar-senumpicoagudo,estende-senumaplanície.

Entretantoosjudeusconseguiamlevarprovisõesparacima,eotopodorochedoerarelativamentefértil, de modo que sempre foi possível cultivar hortaliças ali; o clima era tão preservador, dizJosefo,queosjudeusencontraramalimentosaindautilizáveisqueestavamnolocalhaviaquaseumséculo.Josefodeclaraqueoszeloteseramumtranstorno,quepilhavamoscamposdemaneirabrutaleinescrupulosa.EmtodaasuaHistóriadaguerrajudaicaelemostraumcertopreconceito.Primeiroparticipara da campanha da Galileia, mas depois rendeu-se a Vespasiano, o general romano naPalestina,eduranteocercodeJerusalémaconselhouofilhodeste,Tito.Jerusalémfoidestruídaem70d.C., na época emque Josefo está escrevendo, enadapodia sermais amargoqueo sentimentoentre os judeus que se submeteram aos invasores — como no passado fora o caso dos que sesubmeteramaosgregos—eosquecontinuaramcombatendo-os.JosefogostadebajularTitoporsuarelativamagnanimidade e— sendo elemesmo descendente de uma nobre família sacerdotal, quevisitou Roma na juventude e evidentemente ficou impressionado com o poderio e a civilizaçãoromana—tendeaenfatizarasbarbaridadesdeseuscompatriotas.NaverdadeestavaescrevendoseulivroemRomanacondiçãodeprotegidodoimperador.

Naturalmentehojesabemosqueosjudeuseramcapazes,àsvezes,deserquasetãocruéisquantoseusinimigosromanos,epodemoscompreenderqueJosefotinhainteresseemtentarmostrarcomoosdefensoresdaJudeiasecomportaramdemodoabominávelecomoteriasidomuitomelhorparaosjudeusserenderemmaiscedoaosinvasoresromanos.Contudoédifícilparanósnutrirqualquer

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simpatiapelosromanos.Porque,perguntamos,deviamacharque,depoisdeocuparaJudeia,destruirJerusalémequeimaroTemplo, aindaprecisavamencurralaros intransigentes (menosdemil)queresistiam em Massada? E por que não conseguiam sossegar enquanto não matavam os homens,violentavamasmulhereseescravizavamascrianças?EncontramosarazãoexpressaclaramentenasHistóriasdoromanoTácito(livrov).Foiasimples,ingovernável,insaciávelcobiçadoorganismodo poder que tudo quer engolir, acompanhada pela necessária convicção de que existe algo deinferiorouperversono“estilodevida”dasfuturasvítimas.AacusaçãodeTácitocontraosjudeuspodeservircomoummodelocômicoetrágicodetodasasacusaçõesabsurdascomoessaqueatéosdiasdehojeumgrupolançacontraooutro.DizTácito:

Afimdeassegurarparaofuturosuaautoridadesobreseupovo,Moisésintroduziuumcultoqueeramuitooriginaleseopunhaaodeoutrosmortais—segundoessecultotodasascoisasquenós consideramos sagradas eles julgam profanas e inversamente toleram práticas queconsideramosimpuras.

Consagraramnumlocalsantoumaimagemdoanimalsobcujaorientaçãopuseramfimasuas perambulações e sua sede [isto se refere à antiga lenda, repetida com frequência pelosautores clássicos, de que os judeus adoravam uma cabeça de asno; aqui Tácito explica queinspiroutalcultoagratidãoaumrebanhodeasnosselvagensque,nasandançasdosjudeusemseu Êxodo, conduziram-nos até as águas de uma fonte], tendo já matado um carneiro parainsultarAmon[odeusprincipaldosfaraós].

Tambémsacrificaramumtouro,queosegípciosadoramcomoÁpis.Tácitoprossegue,falandodasrestriçõesalimentaresdosjudeus,deseusjejunsesuaobservânciadoshabat,aquedáumaconotaçãoofensiva.

Elessãoobstinadamenteleaisentresiedispostosademonstrarcompaixãorecíproca,massãohostiscomrelaçãoaosoutros.Suavidasexualéabominável:entregam-seàluxúriaecontudonãotêmrelaçõescomestrangeiros,emboraentresinadasejaproibido.Instituíramacircuncisãoa fim de distinguir-se dos outros povos. Enterram seus mortos ao invés de cremá-los econsideram uma impiedade matar os filhos tardios [nascidos depois que o pai fez seutestamento].Os egípcios adorammuitas imagensde animais e homens conjugados, porémosjudeusconcebemumaúnicaDivindadeeapenasemsuamente.[NessepontoparecequeTácitoesqueceusuaobjeçãoaocultojudaicodoasno.][Declaram]profanosaquelesqueproduzemimagensdedeusesàsemelhançadoshomensecommateriais perecíveis: seu Deus é supremo e eterno, imutável e indestrutível, e, assim, nãopermitemimagensdeleemsuascidades,nemmesmoemseustemplos.

Não prestam tal homenagem nem a seus reis nem a César. Como seus sacerdotes usamcoroadeherae tocamflautasecímbalos,ecomoseviuemseuTemploumavideira, julgamalgunsqueadoramBaco,oqualchegouadominaroOriente;todaviaosritosbáquicosnãosecoadunamcomosjudeus,poissãofestivosealegres,aopassoqueosritosjudaicossãorudeseindecorosos.

Ofatoeraqueosjudeuslevavamsuareligiãoasérioeosromanosnãoconseguiamentenderisso.Tácitonãoécapazdeentenderporqueosanimaisegípcioseos imperadores romanosdeificadosnão eram mais aceitáveis como divindades que um Deus único, invisível e insuscetível derepresentação, assim comoAntíoco iv, Epífano, não conseguira perceber por que não podiam seconformar com a instalação de Zeus no Templo — o que chamavam de “a Abominação daDesolação”—nemaceitaraexigênciadefazersacrifíciosaodeusgrego.Durantealgumtempoosromanos se afastaram do Oriente em função de suas guerras civis, prossegue o historiador, mas

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depois que se estabeleceu a paz voltarama pensar no assunto. “Augebat iras quod soli Judaei noncessissent”(“Irava-osofatodesóosjudeusnãocederem”).TácitolamentasuateimosiaedescreveospreparativosparaocercodeJerusalém.Taltarefacabiaàslegiõesromanas,ealutasócomeçariadepoisque tudoestivesseorganizadopara tomaracidadepelos“velhosenovosdispositivos”nosquaisosromanossetornaramperitos.Masnessepontoohistoriadorpassaafalardaguerracomosgermânicos,eosúltimoslivrosdasHistóriasseperderam.

Josefo, no entanto, continua a história. Presenciou a queda de Jerusalém e fala do cerco deMassada.FlávioSilva,ogeneralromanoencarregadodessaoperação,dedicou-seàtarefautilizandoasavançadastécnicasdeengenhariaeasistemáticadeliberaçãocaracterísticadosmétodosromanos.Primeiroergueuummuroaoredordopenhascoparaquenenhumdossitiadosconseguisseescapar;depoiscomeçouaconstruirumarampanoúnicolugarondeumalargasaliêncianarochaformavaumpatamarparaalcançarotopo.Alifezumaterrosobreoqualergueuumaplataformadepedraqueserviriadebaseparaasmáquinasbélicas.Essasincluíamumatorredeferro,quecontrolavaotopoepermitia atacar os defensores com uma saraivada de lanças e pedras atiradas das catapultas, e umaríete, com o qual os soldados abriram uma fenda namuralha. Prevendo isso, os zelotes haviamconstruídooutramuralhanointerior—duasfileirasparalelasdevigasempilhadaseoespaçoentreelaspreenchidoporterra—,queamorteciaoimpactodosprojéteis.Oinimigopassouaatacaressaparede interna com chuvas de tochas ardentes e conseguiu incendiá-la. A princípio o vento nortesoprava-lhe as chamas no rosto; depois o ventomudou de direção e se pôs a soprá-las contra amuralha.

Percebendoqueosdefensoresdacidadelaestavamcondenados,oentãogovernadordeMassada,umhomemchamadoEleazarBenYa’ir,reuniuseuscompanheirosmaiscorajososesegundoorelatode Josefo, que segue a prática dos historiadores antigos, pronunciou discursos tão eloquentes elongosquesópodemserfrutodainvençãodonarrador.PrimeiroEleazarlhesdizquenãohámaisesperanças.ÉóbvioqueemfunçãodesuasmaldadespassadasDeusagoraestáimplacávelemrelaçãoa eles, pois, embora tivessem provisões em abundância e armas e uma fortaleza aparentementeinexpugnável,oSenhormudouadireçãodoventoeconduziuaschamasparaosdestruírem.

Salvemos então nossas esposas da desonra e nossos filhos da vergonha da escravidão. Nãopaguemosaos romanosopreçodenossospecados;paguemo-lodiretamenteaDeus.Elepelomenos nos concedeu este favor: morrer por nossas próprias mãos. E antes de morrerqueimemos tudo que existe na fortaleza, para que os romanos de nada se apoderem— tudo,menososalimentos,quedeixaremosafimdequeoinimigosaibaquenãofomosvencidospelafome,porémpreferimosamorteàservidão.

Nãoquerendomorrernemmataraesposaeos filhos,algunsdeseuscompanheiroshesitavamemseguir suas recomendações, e houve até quem derramasse lágrimas. Diante disso Eleazar se viuobrigadoa renovar seuapelo,que,naversãodeJosefo,estámaispertoda filosofiagregaquedotradicional ensinamento judaico. O ponto de vista de Josefo parece uma mistura de pensamentojudaicoeeuropeu.EmJerusalémjáhaviaconcluídoqueosjudeusforamcondenadosporDeus,queem sua concepção realizara algo como o Destino sofocliano que elimina o protagonista de umatragédia, e o historiador tentara convencer os habitantes da cidade a aceitar a dominação romana.AgorafazEleazardizeramesmacoisa,mas,emboraconsidereteimososessesjudeusrebeldes,nãopode deixar de conferir ao episódio um forte caráter de trágica nobilidade. Seu líder helenizantepergunta:“Amortenãolibertaaalmadocorpo,queestásujeitoatantasenfermidades,elhepermitepartir para sua pura morada?”. Invoca também os filósofos indianos, os quais, como homensadmiráveisquesão,reconhecemqueavidaénamelhordashipótesesumadesgraçaesedestroem

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pelofogoafimdelibertarseuespírito.

Aindaquenostenhamensinadoocontrário—asaber,queavidaéomelhorbemdohomemeamortedeveserumadesgraça—,precisamosenfrentarcomocoraçãodestemidoasituaçãonaqualagoranosencontramos.HámuitotempoDeusdeterminouquetodoopovojudeudeixasseestavida,poisnãoseempenhouemdelafazerbomuso.Osjudeusnãosóforammassacradosemterraegípciaesíria,comotambémemseuprópriosolotiveramdelutarcomosromanos,eaqueles que apenas morreram em combate merecem felicitação, pois dos outros algunsmorreramdesmembrados, alguns sofrerama torturadoaçoite edo fogo, alguns forammeiocomidospelasferasedepois,pararisoedivertimentodeseusinimigos,forammantidosvivospara ser comidos de novo. Sem embargo osmaismiseráveis de todos são aqueles que aindavivemequecom frequênciaorampedindoamorte,porémnãoveematendidas suasorações.Nãoviramsuacidade-mãe,Jerusalém,queseacreditavafundadaporDeus—apesardearmadae entrincheirada e defendida por milhares—, arrasada, e a única lembrança que restou é oacampamento dos que a destruíram, que ainda se ergue entre suas ruínas?Velhosmiseráveissentadosnapoeiradeseusantuário,comumaspoucasmulheresqueo inimigo reservouparaserem vítimas de seu desavergonhado ultraje! Esperavam recuperar-se e vingar-se de seusinimigos, porém agora que a esperança terminou apressemo-nos em morrer com honra!Apressemo-nosemterpiedade,enquantoaindaépossível,denósmesmosedenossosfilhosedenossasesposas!

Como os romanos nos odiarão por termos resistido! Deve um homem ver sua mulhersendocarregadaparasofrerviolação,ouviravozdeseu filho,comasmãosatadas,gritandopelo pai? Se os romanos conseguirem seu intento, nenhum de nós morrerá antes de sercapturado.Apressemo-nosemfrustrarsuaesperançaedeixar-lhesasurpresapornossamorteeaadmiraçãopornossafortitude!Nessepontointerrompe-seodiscursodeEleazar.Agoraseusouvintesestãoconvencidos.Como

se tivessempressadeagirenãoficarentreosúltimos,abraçamebeijamsuasfamíliasequasenomesmoinstanteasmatam.Depoissorteiamdezquedeverãomatarosrestantes.Deitam-seaoladodasesposasedosfilhoseoferecemopescoço.Mortostodosesses,umdosdezéescolhidoporsorteiopara eliminar os outros nove.Depois olha cuidadosamente para certificar-se de que ninguém estávivo,ateiafogoaopalácioetranspassaoprópriocorpocomaespada.Umavelhaeumamulhercomcinco crianças esconderam-se nos aquedutos subterrâneos, e não se notou sua ausência.Elas saemquandoossoldadosentramecontamaosromanos,incrédulos,oqueacontecera.ProvavelmentefoiatravésdessasmulheresqueJosefotomouconhecimentodahistória.

Aoviajarem1838,doiseruditosamericanos,EliSmitheEdwardRobinson,identificaramcomoMassadaorochedoqueosárabeschamamdees-Sebbeh.Masaliestavaumaempresatãodifícilqueraramenteosarqueólogostentaramaventurar-se.EstimuladospelasugestãodeSmitheRobinson,umpintoringlêseummissionárioamericanochamadosW.TippingeS.W.Wolcottdecidiramexaminaro sítio mais cuidadosamente. Conseguiram escalar o rochedo pelo lado onde havia a rampa dosromanosereconheceramcertoselementos:oacampamentoromano,amuralha,agrandetorreeostanques de água descritos por Josefo, os contornos de longas salas paralelas que serviramevidentemente de depósitos ou alojamentos. Wolcott escreveu: “A linguagem daquele historiador[Josefo] em relação à altura do local não émuito extravagante. É preciso ter nervos firmes parapostar-senabeiradesuasencostasíngremeseolhardiretamenteparabaixo”.Tippingretratouosítioemalgumasgravurasimpressionantes,queYadinreproduziunumlivrosobreMassada.Seguiram-se

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a esses exploradores um oficial daMarinha americana, que explorou omarMorto em 1848, umeruditofrancêseumestudiosoholandês.

AexpediçãomaissériaatéasrealizadasrecentementefoiadoalemãoAdolfSchulten,queem1932 passou ummês inteiro no local, porém só duasmanhãs no topo do penhasco. Em 1955-6 aSociedadedeExploraçãode Israelefetuouduasexpediçõesdedezdiascadaumaquedescobriramgrande parte do palácio de Herodes, exatamente igual à descrição de Josefo, na ponta da granderocha em forma de navio. Membros do movimento jovem israelense já estiveram escalando osrochedos. Dois deles já percorreram a “trilha da serpente” mencionada por Josefo: ShmaryahuGuttmaneseucompanheiro,MichaLivne,quearestauraramedesenterraramseuportãoetambémdescobriram a disposição de um dos acampamentos romanos. A expedição israelense definitiva,conduzida pelo professor Yadin, estendeu-se por onze meses— “com uma breve interrupção naPáscoajudaica”—,deoutubrode1963amaiode1964edenovembrode1964aabrilde1965.TudoquesesegueaquidevoadoisvolumesdeYadin:Masada:Herod’sfortressandthezealot’slaststand[Massada:fortalezadeHerodeseúltimoredutodoszelotes], livroconcebidoparaoleitorcomum,comumPreliminaryreport[Relatóriopreliminar]maiserudito,publicadoeminglês,emJerusalém,pela Sociedade de Exploração de Israel; e aThe zealots ofMasada: story of a dig [Os zelotes deMassada:históriadeumaescavação],deMoshePearlman.Achoumapenaresumiroprimeirodesseslivros,asdescobertassensacionaisdoquefoitraduzidonuminglêstãovívidoporMoshePearlmaneilustradocomfotostãomagníficas,muitasdelascoloridas—tiradasdebaixo,doaltoenolocal.Sópossogarantiraoleitorque,seestáinteressadonoassunto,acharáesseslivrosfascinantes.

Antes de passar às descobertas realizadas por essa expedição, vale a pena falar umpouco damaneiraextraordináriacomoseconstituiu.Yadinanunciou seuprojetoeconvidouaspessoasa seapresentarem,explicandoqueosvoluntáriosaceitosreceberiamalimentoeabrigopossíveisnolocal,porém não ganhariam salário nem seriam reembolsados por despesas com transporte. Recrutouassim numerosos voluntários, a maioria jovens, mas também alguns de meia-idade e nem todosjudeus.Haviaumbomnúmerodeescandinavos.UmasenhorainglesacasadaexplicouquedecidirapassarasfériasemMassada.SoboescaldantesoldaPalestinaasmulherestrabalhavamdebiquíni.Todos dormiamembarracas de cáqui.Yadin conta que às vezes tentou, sem sucesso, impedir queseusrecrutasrealizassemtarefasparaasquaispareciamnãotercapacidadeequesóemdoiscasosprecisou despachar um trabalhador. A meu ver Massada demonstra que, quando são chamados aparticipardeumprojetoquereúneidealismoeaventura,os jovensrespondemprontamente.NossoPeaceCorpsatraiumuitosdeles,masagora,comaguerradoVietnã,onomedessaorganizaçãoatorna tão ridícula que o tipo de desafio proposto parece ter sido suplantado pelo de queimar oudevolveraconvocaçãodoserviçomilitaroudeirparaaprisãoouparaoCanadá.

OpaláciodeHerodesdescritopor Josefo revelou-seoqueYadinchamade“palácio-vila”.Opalácio administrativo, com sua sala do trono, é um edifíciomaior, situado na parte ocidental dorochedo. Herodes deve ter causadomuitos problemas para seus operários e deve ter gastomuitodinheiro para pendurar seus três terraços na proa do penhasco íngreme. Só com grandeengenhosidade e um risco considerável os engenheiros militares israelenses construíram umaescadariademadeiraquepermite subirdabasedoprecipícioaté esses terraços, e foiprecisoatarcom cordas, como alpinistas, os operáriosmodernos que trabalhavamna borda do abismo, a 390metros acima do nível do mar Morto. No terraço mais baixo havia colunas coríntias e pinturasmurais. Josefo registrouqueopalácio era revestidodemármore e que as colunas foram talhadasnumaúnicapedra,masdescobriu-sequeospainéiseramdegessopintadocomveiosparasimularmármoreequeascolunassecompunhamdetamboresdepedramoleestriadaerevestidadegessopara apresentar a aparência do mármore. Um capitel guarda vestígios de pintura dourada. Nesseterraçohaviatambémumacasadebanhos,comumapiscinadeáguafria,umasalatépidaeumasala

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quente.Sobasruínasdessesaposentoshaviaumadensacamadadecinzas—possivelmenteresultadodofogoqueoúltimodoszelotesateara—,naqualseencontraramcaroçosdetâmaraeazeitonaemoedascominscriçõescomo“ALiberdadedoSion”.Nopisodacasadebanhosacharam--separtesdearmadura, flechasde ferro,os restosdeum tallithouxalede rezar,umcacodecerâmicacominscriçãoemcaractereshebraicoseosesqueletosdeumhomemdeaproximadamentevinteanos,deuma mulher e de uma criança que deviam fazer parte de uma daquelas famílias zelotes que seentregaramàmorte.Ocourocabeludoeastrançascastanho-escurasdamulherseconservaramnoarseco, e havia um par de sandálias femininas. O revestimento dos degraus em que se encontrou amulherapresentavamanchasquepareciamserdesangue.

O terraço intermediário estavacheiodepedrasgrandesquecaíramdo terraço superior, e foimuito difícil removê-las. Esse terraço continha umpavilhão circular que, segundo acreditaYadin,Herodesconceberatambémpara“lazeredescanso”,masacabaracaindoempoderdoszelotes,quealiqueimaram—algunsobjetosestavamcarbonizados—umapilhadeossosdeanimaiserestosdecomida,cacosdevidroecerâmicaecatorzepontasdeflecha.Oterraçosuperiorabrigavaamoradia,quenaépocadeHerodesconsistiadeapenasquatroaposentos;noséculovosmongesbizantinosqueviveramemMassadaosdividiramparaaumentaronúmerodecelas.Haviaumpórticosemicircular,comumafantásticavistadomarMorto,eumpisosimplesdemosaico,que,comalgunspoucosmaiselaborados,figuraentreosmaisantigosqueseconhecemnaPalestina.

Haviatambémumagrandecasadebanhosromana,cujomecanismoaindaerabastanteclaro:umforno produzia ar quente que entrava num espaço entre dois pisos e dali em canos de argilaembutidosnaparede;depósitosdearmasedehortaliças,frutosegrãos;eumaespéciedeprédiodeapartamentos que podem ter sido usados como escritórios. Cada unidade deste último edifício secompunhadeumasalagrande,doisquartospequenoseumpequenopátiofechado.Numadassalasmaioresencontraram-serestosdeumsacoeumaquantidadedesiclosemeiossiclosdeprata.Emoutrolugaracharam-semaisdoisconjuntosdesiclos,querepresentamtodososanosdarevolta.Nasala emqueestavaoprimeirodesses conjuntoshaviaumcacode cerâmica comonome“Hillel”,que, segundoYadin, pode designar um sacerdote que coletava as contribuições para o Templo.OmaioredifíciodeMassadaeraopalácioocidental.Parecequecontinhaumasaladotrono,ricamentemobiliada, com quatro buracos no chão para os pés do trono e um belo mosaico colorido, que,cumprindoaleideMoiséscomoHerodesdeviacumprir,nãorepresentahomensnemanimais,esimramos de oliveira, folhas de videira e outros exemplares da vida vegetal. Há uma cozinha comfogõesimensos,maisdepósitoseapartamentosparaosempregadosdopalácio.Hámuitosindíciosde incêndio, o qual deve ter ocorrido no final da revolta, segundo revela uma moeda de 72-73encontradaentreascinzas.Pertodopalácioerguiam-seváriasvilaspequenaseumacapelabizantinacommosaicosmaisrecentes.Umestranhoedifíciocirculartinhanasparedesnichosquadradoscomouma forma de waffles. Primeiro pensou-se que se tratava de um pombal, mas a experiênciademonstrouqueaspombasnãocabiamnasaberturas;concluiu-seentãoqueoprédioforaconstruídopara abrigar as cinzas dos funcionários e criados não judeus após sua cremação. As estruturasespecificamente judaicas eram os banhos rituais de imersão e as ruínas de uma sinagoga, compequenosfragmentosdepergaminhosbíblicos.

A muralha de casamatas, com seus vários compartimentos, revelou-se extremamenteinteressante.Oszelotesdividiramessescômodosparaaumentaraomáximoosalojamentos.Pareciaque tudo estava como eles deixaram, o que nos permitiu imaginar facilmente sua vida doméstica:panelasejarrosdebronze,lâmpadasdeargila,pequenosfrascosdeperfume,bastõesdesombraparaosolhos,umpentedemadeira,umapaletadecosméticosfeitadeumaconchadomarMorto,anéis,fivelas e chaves. Quando os romanos atacaram a muralha, lançaram-se pela catapulta pedras dotamanhodeummelão;enumpontoestratégico,logoacimadatrilhadaserpente,haviaumadúziade

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pedrascommaisdequarentaquilosqueoszelotessemdúvidareuniramaliparadespejarsobreseusagressores. Encontraram-se mais 25 esqueletos nos porões, onde os romanos provavelmente osjogaram:homensde22asetentaanos;mulheresdequinzea22;criançasdeoitoadoze;eoesqueletodeumfeto.Emoutrolocalacharam-se

onzepequenoseestranhosóstracos,diferentesdequaisqueroutrosdescobertosemMassada.Emcada um estava inscrito um único nome, e todos diferiam entre si, embora aparentementetivessem sido grafados pelamesmamão.Os nomes também eram estranhos,mais parecendoapelidos.

Seriamosnomesdoshomensque foramsorteadosparacortaropescoçodosoutros?Umdelesé“BenYa’ir”,opatronímicodeEleazar.

Em vários pontos de Massada encontraram-se fragmentos de manuscritos de couro oupergaminho — sobretudo de Levítico, Deuteronômio, Ezequiel e dos Salmos e praticamenteidênticosaotextomassorético.Algunsdeles,comoalgunsdosrolosdeQumram,parecequeforamdeliberadamente rasgados pelos romanos. E há quase setecentas inscrições em peças de cerâmica,sendo algumas apenas os nomes— todos hebraicos—das pessoas às quais as peças pertenciam;tambémhá fragmentos demuitos documentos, emhebraico, aramaico, grego e latim, semgrandepossibilidadededecifração.Umadescobertaimportanteparaoestudioso,porémdemenorinteresseparaoleitorcomum,foiumapartedeummanuscritohebraicodoLivrodaSabedoriadeBenSirach,obra apócrifa que na Vulgata recebeu o título de Eclesiástico (não confundir com Eclesiastes).Embora tal livrosejacomfrequênciacitadoemhebraico,ooriginalnesse idiomadesapareceuemprincípios do século xi, sendo conhecido somente em traduções até que em 1896 descobriram-sequasedoisterçosdeumtextohebraiconagenizah—oudepósitodevelhosmanuscritosemdesuso—dasinagogamedievaldoCairo,ondeseacharamtambémoschamadosfragmentoszadoquitasquemaistardeseidentificaramcomopertencentesàliteraturadaseitadomarMorto.Discutiu-seseeraotextooriginalouuma traduçãodogrego,porémonovorolopôs fimaessacontrovérsia: trata-seclaramentedomesmotexto,quedeveseranteriora73d.C.Entretantohojeemdiaomaisinteressanteé outro fragmentomenor, que tambémdeve ser anterior a 73 e, assim, resolve uma questãomaisimportante. Entre os outros rolos das cavernas de Qumran havia quatro fragmentos de quatromanuscritosdistintosdoquecomtodaaevidênciaeraumdocumentoritualísticobásicoparaaseitadomarMorto.Tornou-seconhecidocomoLiturgiasAngélicasouCânticosdosSacrifíciosdoSabá.Osessênios tinhamumcalendárioespecial,diferentedocalendário judaicotradicional.Erasolarebaseava-se num ano de doze meses de trinta dias cada um, com um dia extra ao final de cadatrimestre.Cadashabat tinhaseuprópriohinosacrifical,entoadoalternadamenteporsete“príncipessupremos”, que deviam ser arcanjos do tipo que os essênios imaginavam. Ora, encontrou-se emMassada, num compartimento da muralha de casamatas, um fragmento que pertence ao mesmodocumento. Deve ter chegado ali através de alguém da seita, que, afastado do Templo— talvezdestruídonessaépoca—,queriamanter-sefielasuaprogramaçãosectária,eissodeveterocorridonoperíodoemqueoszelotesocuparamorochedo—querdizer,antesde73.G.R.DrivereCecilRoth, ambos de Oxford, e mais um ou dois estudiosos, muito velhos ou inflexíveis, tentaramtenazmente incorporar novo material a fim de mostrar que os rolos de Qumran devem datar de“meadosoufinaldoséculoid.C.”(aquicitoDriver)“ouiníciodoséculoiid.C.”equeoshabitantesdomosteiro(aquicitoDrivereRoth)nuncaforamosessênios,esimoszelotes.Ébemverdadequeosessêniossãodescritoscomohomenspacíficos,porémorolodaGuerramostraqueesperavamnoFim dosTempos um violento confronto entre os Filhos das Trevas e os Filhos daLuz. Pode ser,conforme sugereYadin, que, ao invés de acompanhar a evoluçãodos acontecimentos como olho

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realista de Josefo, eles tenham achado que esse confronto ocorreu quando os judeus se lançaramcontraos romanosnoque lhespareciauma luta final,e Josefodeixaclaroque,quandoasituaçãochegouatalponto,outrosjudeushaviamunidoforçascomoszelotes.ComoassinalaYadin,JosefofaladuasvezesdeJoão,oEssênio,comoumdosgeneraisnaguerracontraosromanos.Enãoseriapossível que alguns essênios, ainda fiéis à programação de seu calendário, tivessem subido dovulnerávelQumran,situadonapraia,àsformidáveisalturasdeMassada?Seodocumentoquecontémseucalendáriodeveserbemanteriora73,entãoorestantedaliteraturasectáriatambémnãodevetersidoelaboradomuitoantesdessadata?

Mesmo antes das escavações os novos recrutas das unidades blindadas doExército israelenseprestavam seu juramento de lealdade no topo de Massada. Yadin pronunciou um discurso nacerimôniade19dejunhode1963,dirigindo-seaossoldadosnosseguintestermos:

Depéentreseushomens,diantedaspirâmidesdoEgito,Napoleãodeclarou:“Quatrocentosanosdehistóriahumanavoscontemplam!”.

Masoqueelenãoteriadadoparaconseguirdizeraseushomens:“Quatrocentosanosdevossaprópriahistóriavoscontemplam!”.

Yadincontou-lhesresumidamenteahistóriadoszeloteseconcluiu:

Massadasetornouumsímboloparanós.Aspalavrasdopoeta“Massadanãocairádenovo”setransformaramnumchamadoparaageraçãomaisjoveme,naverdade,paratodaanação.NãoéexagerodizerqueégraçasaoheroísmodosguerreirosdeMassada,bemcomoaosoutroselosdalongacadeiadovalorjudaico,quehojeestamosaquidepécomosoldadosdoExércitodeumpovojovemesemembargoantigo,enquantotudoanossavoltasãovestígiosdosacampamentosarmados daqueles que desejaram nos destruir.Hoje estamos aqui de pé, nãomais impotentesfaceaopoderiodenossosinimigos,nãomaisfazendoumúltimoedesesperadoesforçonumaguerrajáperdida,esimfirmes,orgulhososeseguros,sabendoquenossodestinoestáemnossasmãos,naforçadenossoespírito,queéoespíritoredespertadodovelhoIsrael.Oecodenossojuramento nesta noite será ouvido entre os exércitos de nossos inimigos. Nele reside nossaforça, não menos que em nosso armamento. E nós, os descendentes daqueles heróis de umpassadodistante,estamoshojedepéaqui,prontospararestaurartodaanossanação.

Somosfelizespormereceristo.

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11.DOCUMENTOSDUVIDOSOS

Em 1868 um missionário alemão encontrou entre as ruínas da região bíblica de Moab, namargemorientaldomarMortoenolocaldaantigacidadedeDion,quaseemfrenteaEngadi,umaesteladebasaltonegro,comummetrodealturaesessentacentímetrosdeespessura,portandoumainscriçãonodialetomoabita,quepoucodiferedohebraicoantigo.Umjovemarqueólogofrancês,Charles-SimonClermont-Ganneau,ligadoaoconsuladoemJerusalém,tirouumacópiadessaestela.Descobriu-se então que continha um relato da guerra que o reimoabitaMesa travouno século ixcontra os israelitas a leste do Jordão e que é narrada em ii Reis 3. Ao perceber o interesse dosestrangeiros, os árabes dessa localidade concluíram, comoos beduínosmodernos em relação aosmanuscritosdomarMorto,quedeviahaveralgumtesouroenvolvidonahistória.Quebraramaestelaparaabri-la,masClermont-Ganneaureuniuosfragmentosereconstituiu-a.HojeelaseencontranoLouvreeéconhecidacomoaPedraMoabita.ProvavelmentedatadaépocadeMesa,emcujonomeéfeitoorelatoquecontém.

NessaépocaviviaemJerusalémumcomerciantedelembrançaseantiguidadeschamadoMosesWilhelm Shapira. Juntamente com a esposa, Shapira se convertera ao cristianismo, porém, sendojudeu, tinha certa competência em hebraico e seu comércio de livros e manuscritos raros,muçulmanos,judaicosecristãos,queguardavanofundodalojaevendiaamuseusebibliotecas,eramuitomaisimportantequeseumovimentodelivrosdeoraçãoeBíbliasencadernadascommadeirade oliva que vendia aos turistas.Após a descoberta da PedraMoabita o negociante enviou algunshomensparaescavaremolocal,eesteslhelevarampequenasimagensdecerâmicacominscriçõesnos caracteres antigos e que supostamente representavam deuses moabitas. Shapira vendeu asestatuetas ao governo prussiano, mas Clermont-Ganneau declarou que se tratava de falsificaçõesproduzidas em Jerusalémpor um empregado do comerciante. Então Shapira explicou que sempretivera dúvidas quanto à autenticidade dessas peças, porém não era responsável pelas falsificações.Maistardeapresentouquinzefragmentosdeummanuscritodecourotãoenegrecidosqueeramquaseilegíveis;incluíamosDezMandamentoseaShema(“Ouve,óIsrael,oSenhornossoDeuséoúnicoSenhor” etc.) de Deuteronômio 6 — o discurso de Moisés sobre a Lei, à qual os judeus dãoimportânciaespecial,tantoemcasacomonasinagoga,levando-ajuntoaocorpoemseusfilactérioseinscrevendo-anosmezuzahsdesuaporta.Essesfragmentostambémestavamescritosnoscaractereshebraicos arcaicos e diferiam muito do texto massorético. Em 1883 Shapira foi a Londres eofereceu-os aoBritishMuseumpor 1milhão de libras.A princípio estudiosos ingleses e alemãeslevaramasérioomanuscritoeconcluíramqueeracontemporâneodaPedraMoabita,senãomaisantigo; no entantoClermont-Ganneau foi a Londres e interferiu com sua decidida opinião de queShapiraestavanegociandofalsificações.UmprofessordeOxfordjáhaviaassinaladoqueoclimadaPalestina era úmido demais para que um couro de carneiro se conservasse por quase 3mil anos.Contudo o manuscrito fora encontrado numa caverna por um árabe, como o foram os rolos deQumran, no lado oposto do mar Morto, e, assim, podia ter-se mantido igualmente seco. EntãoClermont-GanneaumostrouqueosMandamentoseaShema foramescritosnasbordasretiradasdeumroloque tinhaapenasduzentosou trezentosanoseemcaracterescopiadosdaPedraMoabitaeenegrecidospormeiodeumprocessoquímico.Oroloforapautadocomponta-seca,eofalsárionãopercebera. O estudioso francês acrescentou, zombeteiramente, que ele próprio se encarregaria de

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reproduzirum texto semelhantedoLevítico, comavantagemdequenãocustaria tãocaro.Aessaaltura Shapira esperava vender os fragmentos por uma bela soma; sua família em Jerusalém semudaraparaumacasamaior,compraracavaloseseendividava.AnotíciadafaçanhatransformaraosShapiraempessoasimportantes.Umcertodr.C.D.Ginsburg,queescreverasobreaPedraMoabita,foi consultado pelo British Museum e pronunciou-se favoravelmente; acreditava-se que o museucomprariaosfragmentos.Contudo, talvezemfunçãodeClermont-GanneauedeumacartaqueeleescreveuaoTimesdeLondres,declarandoqueotextoeraumafalsificação,Ginsburgmudoudeideiae passou a repetir mais ou menos os mesmos argumentos do erudito francês. Naturalmente osfraudulentosdeusesmoabitasficaramnacabeçadetodomundo.

Shapira deixou Londres e foi para o continente, sem avisar nada à família. As más novaschegaramaJerusalém,eocréditodosShapiradesabou;naverdadeeleshaviamcaídoemdesgraça.Sónaprimaveradoanoseguinte,1884,souberamque,depoisdeperambularpelaEuropaeescrevercartasquenuncaenviouàesposa,ocomerciantesemataracomumtironumhoteldeRoterdã.

NinguémsabeseShapira forjouos fragmentosouseoutrapessoaos forjou.Nemmesmoháunanimidade quanto à falsificação. Osmanuscritos desapareceram. Em 1885 foram vendidos pelaSotheby’s—Ginsburgcomproualguns—,mas até agoranão se conseguiu encontrá-los.Existemapenasfotografiasilegíveisetranscriçõesdecifradas.Entretantorecentemente,em1959,oprofessorMenahemMansoor,daUniversityofWisconsin,reavivoutodaahistórianumartigodovolumexlviidas Transactions of the Wisconsin Academy of Sciences, Arts and Letters [Atas da Academia deCiências, Artes e Letras de Wisconsin], que depois foi acrescido de material suplementar ereimpressoemformadefolheto;eem1965oprofessorJohnAllegropublicouumlivrinhosobreomesmoassunto,intituladoTheShapiraaffair[OcasoShapira].Osdoisestudiosos—aosquaisdevoamaiorpartedoqueaquiinformo—estãodispostosaaceitaroDeuteronômiocomoautêntico.Nãopossorecapitularseusargumentos,quenocasodoprofessorMansoorenvolvemdiscussão técnicadelinguagem,enãoestoucapacitadoajulgá-los.NotextodeAllegroasituaçãosecomplicacomaexistênciadeoutrodocumentoquedemandaatenção.AfamíliaShapirapartiudeJerusalém,eafilhamaisnovadocomercianteescreveuumasériederomancesemfrancêssobonomedeMyriamHarry.Umdeles—UnepetitefilledeJérusalem[UmameninadeJerusalém],publicadoemcapítulosporLaPetite Illustration, em 1914, com muitas ilustrações encantadoras da época — consiste de umanarrativa autobiográfica, na qual os nomes são vagamente disfarçados. A filha de Shapiraevidentementeoamavaecontatodaahistóriadesuasfaçanhasesuamortetrágicadeummodoquenos leva a simpatizar com ele e lamentar seus infortúnios. Clermont-Ganneau aparece como umbicho-papão,quesemembargoexercesobreameninaumtipoestranhodepérfidafascinação. (Háumalendadequeelatentouatirarnoeruditofrancês.)Boapartedessahistóriaromanceadaentrounotexto de Allegro e também um pouco no meu, talvez. Mas não se deve encará-la como umdepoimentoconfiável.Noromanceháumacena,porexemplo,emquea filha,aindamuito jovem,correparaopai,todaempolgada,afimdelhecontarqueestánoiva,porémoencontratãoabsortoemseusrecém-adquiridosfragmentosdoDeuteronômioquenãorecebeamenoratenção;segue-seumaconversaengraçada:“Papai,elesechamaCasimirKra”.“Seráminhaglóriaetuafortuna!”“Eleaindaéjudeu,masvaiseconverter.”“Siona,éoDeuteronômio.[...]Comprei-onaArábiaporumaninharia”etc.Allegrocitaessacena,explicandosuafonte.Masseráqueissoocorreurealmente?SedefatoaconteceumostraqueouShapiraseconvenceudaautenticidadedomanuscrito,poisestudou-ocomcuidado—afilhaodescrevemolhandoocouroenegrecidoparaamaciá-lo—,oufeztodaumaencenação para persuadir a família. Já se disse também que ele estava na verdade trabalhandoatentamente em sua falsificação. Mas afora isso os professores Allegro e Mansoor teriam meconvencido de que os fragmentos de Shapira eram autênticos, se o professor Frank Cross, umaautoridadeempaleografiahebraica,nãomegarantissequeosfragmentossãoforjados,nãosópelas

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razões que Clermont-Ganneau apresentou, como também porque a “posição” dos caracteres éimpossível,oqueofalsificadornãopodiasaber,eporqueaescritautilizadanãoseidentificacomaescritadenenhumperíodoconhecidoemisturacaracterísticasdeváriosséculos.OprofessorW.F.Albright, da JohnsHopkins, tambémos considera forjados, conforme observou em seu livroThearchaeologyofPalestine[AarqueologiadaPalestina].

Naturalmente essa questão ressurgiu em função da descoberta dos rolos de Qumran — opróprioShapiradisseraqueseusfragmentosdoDeuteronômiopodiamterpertencidoaalgumaseitado mar Morto —, que da mesma forma foram rejeitados por estudiosos competentes maspreconceituosos.AlgumascaracterísticasespeciaisdostextosdeShapira,queforamutilizadaspararefutar sua autenticidade, apareceram agora nos documentos de Qumran, segundo o professorMansoor.Pareceumpoucoimprovávelqueumfalsáriotenhaproduzidoumtextoquediferetantodoaceito quanto o Deuteronômio de Shapira: o sexto e o sétimo mandamentos intercambiados;elementosdosvelhossegundo,terceiroenonoreunidosnumnovosétimo;eaprimeiraproibiçãodeLevítico19:17—“Nãoodiarásteuirmãoemteucoração’’—figurandocomoumnovodécimoetc.NoentantoAlbrightafirmaque talversãoseria impossívelparaospiedosos judeusdoperíodonoqualessetextoteriasidoescrito.

TalqualaPedraMoabitaemsuaépoca,hojeadescobertadosmanuscritosdomarMorto,comospreçosqueessascoisasacabaramporalcançar,vemestimulandotodaumasériedefalsificações.Ofereceram ao dr. Cross, que imediatamente as recusou, umas tiras de prata contendo disparatesinscritos em caracteres derivados do grego arcaico. Um grupo de papiros que se consideravamescritos em hebraico tardio, sobre os quais o professor alemão K. G. Kuhn pagou uma opção,tambémserevelaramfalsos.OprofessorWilliamH.Brownlee,umdoseditoresoriginaisdopesherdeHabacuc,escreveu-meoseguinte:

Naprimaverade1962euestavatrabalhandoemJerusalémnorolodeEzequiel,dacavernaonzeQ. [...] Fui surpreendido por um visitante vindo de Belém que me contou que os beduínosTa’âmireh [que descobriram o primeiro lote de manuscritos e desde então vivem à caça deoutros] andavam escavando novamente e ali estavam algumas coisas que encontraram. UmadelasseidentificavadeimediatocomopartedeummodernorolodeEster[oúnicolivrobíblicoqueaindanãoapareceuemQumran].Aoutraeraumaplacadecalcáriocomformatoirregular[...] eumas letras aramaicas (ouhebraicas) rabiscadas.Respondiqueumapeçaeramodernaeque a placa de calcário era falsa, porém a forma de suas letras era mais antiga que osmanuscritosdomarMorto.

Essescaracteresrevelaram-secópiadeumamontoadodepapirossamaritanosdespedaçadosqueosbeduínosacharamnumacaverna,explicaodr.Cross,

localizadanumaregiãoremotaeterrível,catorzequilômetrosaonortedavelhaJericó[...]cercadedozequilômetrosaoestedoJordãonascolinasretorcidasquemarcamolimiteocidentaldafalhaquecriouovaledoJordão.

Odr.Brownleeacreditaqueessaplacaforjadafoiamaneiratortuosaqueosbeduínosencontraramparasondarointeressedosestudiososemcaracterescomoesses.KandodeBelém,ointermediáriodosbeduínos,mostrouumfragmentodepapirocomescritaaramaicaemambososladosaodiretordaAmericanSchool,quepartiucomopadreRolanddeVauxeodiretordoMuseudaPalestinaparaacaverna quase inacessível, pouco menos de cem metros acima do nível do mar; com grandedificuldade—primeiropensaramqueprecisariamdehelicópteros,depoisdescobriramquepodiam

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subirmontadosemasnos—ostrêschegaramláeentremontesdeestrumedemorcegoencontraramos restos de uns quarenta documentos que com toda a evidência datavam do século iv a.C. Eram“relativamentebanais”,dizoprofessorCross,quetemtrabalhadoneles—registrosde“comérciodeescravos, vendas ou transmissões de bens e documentos de manumissão [...] transações depropriedade,resoluçõesdecontratosquebrados,incluindodivórcio,eacordosdeempréstimos”—,porémdoponto de vista histórico e paleográfico não deixamde ter interesse por se referir a umperíodo da Palestina sobre o qual pouco se sabe. Havia ainda moedas e anéis com sinete e umaextraordinária quantidade de esqueletos humanos — homens, mulheres e crianças: mais provasterríveis domassacre dos nativos pelos invasores ocidentais, dessa vez gregos. Esses samaritanosaparentementefugiramparaascolinas,levandoconsigoseusregistros,paraescapardeAlexandre,oGrande.ConstaqueAlexandredestruiuacidadedeSamariaeemseulugarestabeleceuumacolôniademacedônios.Odr.Cross acreditaqueograndedominador insaciáveldeve ter se apressadoemseguirparaaBabilônia.Essesrefugiadosteriamsidooslíderesdosqueresistiramaosgregos,mas“foram descobertos em seu esconderijo pelos macedônios— em consequência ou de uma buscaassídua,ou,maisprovavelmente,datraiçãodeseuscompanheirosquepermaneceramnaSamaria—eforamtodosmortossempiedade”.

O dr. Cross disse que às vezes estremece ao pensar que algum falsário engenhoso e bemequipado possa, como John Collier e o falecido Thomas Wise no campo da literatura inglesa,produzirumaobra-primanessecampomuitomaislucrativo.

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“NAVÉSPERA”1967

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1.TATTOO

Eisaíumapalavraqueosisraelensesemprestaramdoinglês.Significabasicamenteumtoquedetambor, à noite, para chamar os soldados a se recolherem,mas conforme a definição doConciseOxfordDictionarypodedesignarum“aprimoramentodessetoque,commúsicaemarcha,sobformadeespetáculo”.

O tattooque soouna Jerusalém israelensenanoitede14demaiode1967precedeuaparadacomemorativado19oaniversáriodaindependênciadeIsrael,aqual,começandoàsseteemeiadodiaseguinte,tevelugarnograndeenovoestádiodacidade.Assistiramaodesfile1700pessoassentadasno estádio emuitasmais instaladas nas janelas ounos telhados.Umespetáculo formidável: febril,nervoso,umpoucosinistro.Osalto-falantesnosassaltaramcommúsicajudaica,rápidaefanhosa—cançõesemarchaspopulares.Umademonstraçãomilitarcomelementosdecirco:aarenailuminadaouescurecidaparaenfatizareventosespeciais.

As unidades marcharam uma a uma, representando todos os setores das Forças Armadas.Entretanto as únicas armas permitidas eram relativamente leves, como fuzis utilizados nostreinamentos e canhões antiaéreos. Pelos termos do armistício de 1949 os armamentos pesadosestavambanidosdeJerusalém,demodoquenãodesfilaramtanques,grandescanhõesouaeroplanos.Vendooespetáculocomoumatodeprovocaçãohostil,osjordanianoshaviamexigidodaComissãodeArmistícioqueoproibisse;todaviaacomissãoconcluiuque,observadasasnormasdoarmistício,nadalhecabiafazer.Segundosediz,porpressãodaInglaterra,quejátemproblemascomosárabes,amaioria do corpo diplomático não compareceu às cerimônias, e os israelenses se aborreceram,creioeu,porquepraticamenteosúnicosrepresentantesestrangeirosqueassistiramaosfestejoseramdospequenospaísessul-americanosedasrecém-criadasrepúblicasafricanasàsquaisIsraelenviavaconselheiros para ajudá-las a implantar seus novos regimes. Ben-Gurion desaprovou de talmodoessa deferência pela opinião estrangeira que boicotou toda a comemoração. Pensou-se que elecolocaria os tanques na rua, desafiando os termos do armistício, que, concebido para garantirJerusalémcomocidade internacional, tornara-se letramorta.Osmais importantesárabesdeIsrael,comsuastúnicasnegraseseustoucadosbrancos,ocupavamalgunsdoslugaresmaisprestigiosos,elegionáriosjordanianosforamvistoscombinóculoseperiscópiosacompanhandoafestadoaltodamuralhadaCidadeVelha.

Dequalquermodoerapatenteocaráterbelicosodaocasião.Oespetáculocomeçoucomotattoopropriamente dito—o toque dos tambores.Mas não foi só o nome e a natureza do ritual que osisraelensesaprenderamcomosmilitaresingleses.Todooestilodastropasemdesfileerabritânico:oexagerado balanço rítmico dos braços, as longas passadas com as pernas bem estendidas, os pésbatendo no chão vigorosamente. Os vários comandantes e oficiais entraram individualmente,precedidos pormotocicletas. Foram conduzidos pela arena e escoltados até a tribuna oficial. Essedesfileculminoucomachegadadopresidente,comumaguardademotocicletaemfrenteebatedoresmontadosembeloscavalosbrancosatrás.(Aosairpeloportão,umdessescavalosescorregou,caiuequebrouapernadocavaleiro,semdúvidaparamaldosasatisfaçãodosárabes,queseorgulhamdesuaperíciaemequitação.)Entãotodomundoselevantouecantouohinonacional—compostoporum sionista palestino anos antes da fundação do Estado de Israel. Leu-se um poema de NatanAlterman.TalpoemaforaescritonaépocadacampanhadoSinai,enoensaioconsiderou--sequeera

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belicosodemaisparaaatualocasião;cortaram-sealgunstrechosnogabinetedoprimeiro-ministro.Depoisapagaram-seasluzes,eparesdegrandespontosbrilhantessurgiramnaescuridão,descendopelos corredores. Eram soldados com lâmpadas nos ombros—brancas, azuladas e vermelhas—que,lotandopoucoapoucoaplataforma,realizaramcomplicadasevoluções.Todomundoaplaudiumuito.Iluminadosporholofotes,coroscantaramnumpalanqueenumportão.

As luzes se acenderam de novo, e o presidente pronunciou um discurso no qual se abstevecuidadosamentedemostrarqualquerindíciodebelicosidade,porémlamentouque

aharmonianaqualdesejamosvivercomnossosvizinhosdemoramuitoainstaurar-se.Todasasnossas tentativas de cooperação e comunicação com eles, mesmo as mais banais, ainda nãoderamfrutos,eseoódiopornósjánãolhesasseguraaunidadetambémestálongedediminuir.

FaloudasdificuldadeseconômicasqueIsraelvinhaenfrentando—odesemprego,odecréscimodaimigração, os perigos da “recaída espiritual” — e dos promissores indícios de que se podiacontrabalançá-lascomadiminuiçãodabrechaentreimportaçõeseexportações,oaprimoramentodaagriculturaeamecanizaçãoavançada.NãoentendiodiscursodeShazar,masestavapertoobastantepara ver a repercussão de cada declaração enfática e achei-omuito convincente.Ohebraico é umidiomaparticularmenteprático;reúneemsuasvariadaseexpressivasformasverbaisamaioriadossignificadosquerelegamosaosadvérbios.Depoisfaleisobreissocomumamigoisraelense,dizendoque,aocontráriodosrussos,que,mesmoquandopronunciamdiscursosquedevemservigorosos,parece que nunca abandonam um tom lúgubre de lamentação, um discurso em hebraico sempre éenérgico.(Achoqueissosedeveemparteàcadênciaarrastadadaspalavrasrussasemoposiçãoaostermos curtosdohebraico.)Meuamigo respondeuque, se tivesse entendidoodiscursodeShazar,nãoteriaficadocomessaimpressão.Porquenão?“Porqueelefaztudoparecerpatético.Sefalassesobreessamesa,afariaparecerpatética.”Masporquê?“Porqueeleérusso.”Shazarsóeravigoroso“foneticamente”,afirmou.Edefato,quandoliodiscurso,percebiqueossentimentoserammesmobastante moderados. Para mim isso constitui um exemplo impressionante dos poderestransformadoresdalinguagem.

Asmanobras continuavam.Um contingente de homens emulheres veteranos daAltaGalileiaOrientaldesfiloucomsuascamisasbrancasecalçasousaiasazuis.Eleu-seumapassagemadequadadeJosefo,naqualohistoriadorelogiaabravuradosgalileusemsuaguerracontraosromanos:

Essas duas Galileias, de tal tamanho e rodeadas por tantas nações de estrangeiros, sempreconseguiram resistir com firmeza em todas as ocasiões de guerra; pois os galileus estãohabituadosàguerradesdeainfânciaesempreforammuitonumerosos;nemopaísjamaisseviudesprovidodehomenscorajososoudesejouumahostemuitogrande.

Comuma tochaacesano túmulodeTheodorHerzl ateou-se fogoadezenovecaldeirões contendogasolina—umparacadaanodeindependência—,eelesficaramardendoorestodanoite.Criançastrouxeramvasosdefloreseoscolocaramnabeiradaplataforma,enquantoabandatocava“Happydaysarehereagain”.Acadaunidadequepassavadiantedatribunadisparava-seumtirodecanhão.Ninguémmeavisaradisso,einicialmentepenseiqueosjordanianospodiamestarlançandobombasdooutroladodafronteira,poisquandoentreinoestádioatensãoquehavianoarmelevouatemerqueumasirenequesoouderepenteefoiseguidaporumrepentinosilêncioestivesseanunciandoumataqueaéreodaSíria.Explicaram-mequeissoapenassinalizaraotérminodoDiadaLembrançadoshomens que morreram por Israel, o qual precedera a comemoração. O espetáculo da noite seencerrou com fogos de artifício, osmais esplêndidos e explosivos que já vi. Os rojões e outros

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fogoseramlançadosdeambososladosdoestádioepassavamtãopróximodenossascabeçasqueporpoucoascentelhasnãonosatingiram.Disseram-mequeessaqueimacustoucaríssimo,poisosfogosforamcompradosemParis.

SónodiaseguintefiqueisabendoqueastropasegípciasdeixavamoCairoaolongodoNilo.

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2.PALESTINOS

OKingDavidHotel,noqualeuestava,ficourepletodevisitantesquereservaramacomodaçõesparaafestadoDiadaIndependência,etivedememudarporumanoite.Hospedou--meafamíliadeumjovemadvogado,eparamimfoiumaalegriaconheceressagentemoçaevercomoelavivia.Seuapartamento parecia típico dos prédios mais recentes— modesto, confortável, claro e espaçoso.(Contudonãomelembrodetervistoelevadoremnenhumdeles.)Comotinhamdepassarodiafora,oadvogadoe suaesposaarrumaramumaempregada—oquepareciamais fácilquenosEstadosUnidos—quefaziaosserviçosdomésticoseficavacomafilhinhadocasal.Maridoemulhererampalestinosdevelhacepa,cujasfamíliashabitaramalidurantesetegerações.Falandosobreoassunto,descobriramqueosancestraisdaesposachegaramàregiãodoisanosantesdosdomarido.ObisavôdamulherfundaraoprimeirojornalemlínguahebraicapublicadonaPalestinaetambémaprimeiracolônia judaica estabelecida foradaVelha Jerusalém.Fiqueimais atento a essespalestinos antigosqueemminhavisitaanterioraIsrael.Conhecivários, inclusiveumabelasenhorasefarditaquemecontouquesuafamíliafoidaEspanhaparaaPalestinanoséculoxvi.Quandofalasobresualinhagemum palestino às vezes acrescenta— ela não— “Mayflower”. Esses nativos, pensei, eram a pedrafundamental sobre a qual se erigira o novoEstado. São tão seguros e autóctones quanto qualqueroutropovo.Nunca tiveramdeseadaptaraoutracultura.Nãoparecemtersido influenciadospelosárabese, emboraos inglesesos tivessemdecepcionadoenão fossemparticularmentequeridos,naépoca domandato aprenderam com eles a língua inglesa e o treinamentomilitar. Falam idiomasestrangeiroscomsotaquehebraico,oqualnãoseparececomoiídiche.LembroqueFrancesGunther(ex-esposade JohnGunther)— lamentei ao saberquemorreradepoisdeminhavisita anterior—acreditava-se descendente de Davi, e quando mencionei isso disseram-me que houve mesmomonarquistasisraelensesquetambémsejulgavamdescendentesdeDavieafirmavam,comotodososmonarquistas,queoregimemonárquicopoderiaresolvermaisfacilmenteosproblemasdopaís.

Oadvogadoesuaesposa,queforamtãogentisapontodemehospedar,constituíamexemplosdotipodegentejovemcujoobjetivobásico,aforaavidafamiliar,étrabalharpelonovoEstado.Aesposa passava o dia atendendo visitantes estrangeiros. Como muitas mulheres, trajava-se comsimplicidade,usandoumvestido solto, listradodeverde e laranjaou rosa e azul.Oadvogadomedisse que praticamente não bebia; só na ceia do shabat, na sexta-feira à noite, tomava seu vinhoCarmelo.Jogamoscartas,oqueeratidocomo“decadente”.Eleestavapreocupadocomossírios,queconstantemente colocavamminas nas estradas, demodo que ninguém se arriscava a viajar com afamília.Até a estrada para TelAviv foraminada,mas na época já haviam retirado asminas. EraaflitivopensarquecincoEstadosárabespodiamestarseunindocontraIsrael:“Queremnosjogarnomar!”.

Os hóspedes doKingDavidHotel contrastavamnão só comesses palestinos autóctones,mastambémcomos israelensesemgeral,quesãoumpovoativoe trabalhador,bronzeadopelosoldoOriente.Jáosvisitantessãoburguesesjudeusdetodolugardomundo,geralmentepálidos,gordosedisformes — inchados, barrigudos, com tornozelos e pescoço grossos —, e, embora sejamabastados,vestem-semuitomal.Àsvezesapareceumcasalvelhoemagro,quenofimdavidasedeuo trabalho de viajar a Israel para ver o que seus correligionários judeus realizaram.Quase todosvieram para a comemoração, e a maioria partirá no dia seguinte. Avistei apenas um homem de

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solidéupretonorestaurante.Todosessesvisitantes,disseram--me,têmumníveleconômicoquelhespermite arcar com os preços do King David. Os jovens sem dinheiro ficam nos albergues. DequalquermodoeraestranhoeimpressionanteirdosaguãodohotelaoescritóriodaAirFrance,alivizinho, e encontrar uma bela jovem israelense, morena como qualquer árabe, de intensos olhosnegros, o corpo esguio totalmente escondido nesses vestidos-saco. Ela não usava sua beleza paraagradarosoutrosebaixouosolhosquandoafitei.

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3.ASDUASJERUSALÉM

Cheguei a Israel vindo da Jordânia, onde fiquei naAmerican School of Oriental Research,como em minha viagem anterior. Sempre achei que ali o ambiente era amistoso e a conversainteressante.FuiaoOrienteMédioafimdeatualizarestelivrosobreosmanuscritosdomarMortoedescobri que podia aprender muito na American School, cujos residentes são principalmentearqueólogos, historiadores ou estudiosos da Bíblia. Fiquei impressionado com a paixão pelaarqueologiaquesedesenvolveunasúltimasdécadas.AsescavaçõesdeJericórealizadasporKathleenKenyon,domosteirodeQumranpelopadreDeVauxedeMassadapeloprofessorYadinsãoosfeitospalestinosmaisnoticiados,porémaJordâniatemestadorepletadeescavadoresestrangeiros(parecequeosárabesnãoseinteressammuitoporseupassado);osisraelensestambémandamocupados,ecom isso o mundo da Bíblia— seus palácios, templos e túmulos e todos os tecidos, alimentos,utensílioseadornosdesuavidacotidiana—étrazidoaténósnessestermosdosobjetosconcretosque foramdesenterrados em locais antigos equedesvinculamopassadodistanteda linguagemdaBíbliado rei Jaimeedaatmosferade lendaqueela inevitavelmentecria.Entreos arqueólogosdaescolahaviaumdominicano,um jesuíta euma freira— todoscom trinta epoucosanos, eudiria.Passavamamaiorpartedotempo“nossítios”esóvoltavamnosfinsdesemanaouquandoadoeciamem função do trabalho e domau tempo. Eram uma companhia agradabilíssima.Quando estive naescola,trezeanosatrás,ninguémmeofereceuumdrinque—anãoserodiretor,emsuacasa.Agora,noentanto, esses jovensestudiososmeconvidavampara ir a sua sala comum,ondeos encontravareunindoforçascomaajudadealgumasdosesdeuísqueparaencararojantarhorrível—arrozcomcarneiro e um pão árabe borrachento. A irmãMarie usava roupas comuns e tinha lindos cabeloscastanhos.ElaeojesuítamedisseramquehojeemdianosEstadosUnidosatosquiadasfreirasera“ummito”.

Mas diz-se que a American School é um reduto de europeus. Os estrangeiros se isolam ereclamamquenas festasencontramsempreasmesmaspessoas.Conheciapenasdoisárabescultos.Minhamelhorimpressãodeumnativoignorante—90%dosárabessãoanalfabetos—foiaquemedeuovigianoturnodaescola,aquemchamavamde“oHajj”,porquefizeraaperegrinaçãoaMeca.Eleusavaturbante,umatúnicabrancaebarbaetinhaaformadeumimensotonelcomaconsistênciadeumaalmofada.Ficavanopequenoterraçoaofimdaescadaqueconduziaàporta,oudormindo,todoenrolado,ouentãorezando.Nãofalavaumapalavradeinglês,masinvariavelmenteapertavaamão e abençoava a gente com um ar de extrema benevolência. Às vezes abraçava e beijava osresidentes permanentes da escola. Cabe lembrar que, apesar da ferocidade atribuída aos árabes, omaometismoinculca,seuritualàparte,virtudesdelicadascomoascristãs.

Osmuçulmanosládeforanemsempreeramtãoatraentes.Desdeminhavisitaanteriortodaumapequena rue de la Paix árabe — nas vitrines das lojas de roupas femininas, manequins meioeuropeizados,comminissaiaeamendoadosolhosárabes—cresceuesetransformounumadasruasprincipaisdoexteriordavelhamuralha,ondeestãoaAmericanSchooleasededogoverno,ealinosabordam engraxates, negociantes de antiguidades, proxenetas e gente que quer nos levar a Petra,primeiroporumpreçoexorbitante,depoispelametadeouumquartodaquantiainicial,quecontinuasendo algo excessivo. Os incautos são sujeitos a falcatruas colossais. Uma moça americana quemorou algum tempo no OrienteMédio me preveniu: “Lá não existe nem certo nem errado. Eles

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pegamtudoquepodem”.Contaram-mequeatéoscorreiostrapaceiamaovenderselosequeavelhatradição oriental de não fazer nada sem propina dificultou o recebimento de uns livros que aAmerican School encomendara para sua biblioteca. Isso não quer dizer que não encontrei— naslivrarias, por exemplo — homens muito sérios e dignos, mas andar pelas ruas era irritante.Naturalmente esse tipo de coisa acontece em toda cidade que vive de turismo, porém a Jerusalémjordaniana é pior que qualquer lugar da Itália, pelo queme lembro. Se a gente diz não, eles nãoaceitamevêmatrásporalgumtempo.Aconselharam-meaviraracabeçaeproduzirumestalidocomalíngua,edescobriqueissofuncionava.Aspessoascaminhampelasruassemnenhummétodoparadividir os espaços. O controle do trânsito tampouco temmétodo, e os carros, apesar de poucos,conduzidos por motoristas descuidados, vivem batendo e buzinando sem parar — o que tornaperigosoatravessarumarua.

QuandoestiveláanteriormenteviamaioriadospontosturísticosesóumavezestivenaCidadeVelha.Minhasreaçõessemdúvidaforaminfluenciadasporminhasdoençaseminhaidadeavançada—agoratenhodificuldadeemsubiredescerescadas,eháumbomnúmerodelasparaseentrarnacidadepelavelhaPortadeDamasco—,masnãogostomuitodaVelhaJerusalém.Quandoavipelaprimeiravez,anosatrás,incitou-meaimaginação;hojesómecansaemeaborrece.AoentrarpelaPortadeDamascoovisitanteseencontraemtúneisestreitosemalcheirosos—mercadosemarcadaschamadossuqs, cheios de todo tipo de barraca e de loja que vendem carne, tortas, doces, roupas,joias, cartões-postais e toda espécie de adornos demetal—, um bazar que os amadores daVelhaJerusalém fingem achar fascinante e que para mim é repulsivo. O que o torna um pouco maisinteressante, porémnãomuitomais tolerável, é saber que durante 2mil anos esse foi o principalmercadodeJerusalém.Fiqueicontentepormeveraoarlivre,emboraosvelhosmonumentos,comexceçãodamesquitadeOmar,não sejamextraordinariamentebelos.OMurodasLamentações, aoqualosjudeusdãotantaimportânciaporseroúltimoremanescentedoSegundoTemplo,nadatemdeimpressionante.AigrejadoSantoSepulcroé“umabagunça”,comotodomundodiz,ecomosempreestavacercadadeandaimespara se evitarquedesmorone.NaentradanosdefrontamoscomoqueseguramentesãodoisdospioresmuraissacrosdomundoecomasmulheresqueseinclinamparabeijaratampadapedranaqualteriarepousadoocorpodeJesus.Parasairumpoucodosolinvadiapenumbrainterior,queémaisnevoentadoqueescura,e,evitandoosepulcrosufocante,entreinumasala provida de bancos e li “Dick Tracy” no Herald Tribune de Paris. Toda a atmosfera édesagradável.Nenhumapessoabeminformadaacreditanaautenticidadedesses“lugaressagrados”,eossacerdotesdosváriosritosvivembrigandoentresi.Esteano,nacerimôniadoFogoSagrado—na qual morreu gente esmagada e numerosas mulheres perderam a consciência, tendo de sercarregadas para fora — tais sacerdotes, segundo me contaram, deixaram os espectadoresconstrangidosnopátioemfrenteàentradaporqueatirarampedrasunsnosoutros.

UmdiafuiaPellacomumgrupodearqueólogos.Diz-sequeemseusprimórdiososcristãosiam a Pella para se afastar dos romanos, e com o passar do tempo estabeleceu-se ali umaconsiderável colônia cristã. Erguia-se no lugar uma catedral bizantina, cujas fundações de pedraestãosendoavidamenteescavadas.QuandopartimosodiretordaAmericanSchooldisseparanossocônsul,comoqualeuviajava,queaestrada“nãoémuitoboa”.Depoisquepercorremosumpequenotrechoo cônsul falou: “Entendooque ele quis dizer com ‘a estradanão émuitoboa”.Era a piorestrada que já vi— cheia de buracos enormes e fendas pelas quais passávamos sacolejando e tãoestreitaquedepararcomumcaminhãoouumônibussempreconstituíaumproblema.Ocampoeratípico, creio eu: beduínos em tendas pretas; casas com um ou dois cubículos que mais pareciamgaiolas—umpadrãodevidaprimitivoemiserável.Emboracultiveaterrasemprequepossível,essa

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genteseocupamaisdeseuscarneirosecabras.Osfardossãocarregadospelos jumentosoupelasmulheres, que os levam balançando na cabeça. Poucasmulheres usam longos véus negros que ascobremdacabeçaaospés.(Sãoaindamaisrarasnascidades.)Nemosanimaisnemaspessoasligammuito para os carros. O máximo que homens, mulheres e crianças fazem é sair lentamente docaminhoquandoocarrojáestábempertodeles.Osjumentosficamempacadosnomeiodaestrada,anão ser que alguém os puxe. Quando se avista o que, em comparação com o resto, parece umacomunidade integrada e bem construída, descobre-se que se trata de uma aldeia de refugiadossubsidiadapelasNaçõesUnidas.Taisaldeiaspossuemclínicaseescolas,inexistentesnorestantedointerior.Ascolinasaofundosãograndesdobrasáridas.Unspoucoscamelospercorremoscampospedregosos.OJordãocorreestreitoelamacento.

ParairdaAmericanSchool,naJerusalémjordaniana,aoKingDavidHotel,nooutrolado,sãoapenas quinzeminutos de carro.Na fronteira, no lado jordaniano, vê-se, ainda em ruínas, a velhaCasa Mandelbaum, bombardeada na primeira guerra árabe. Depois que se cruza a fronteira, ocontrastenoclimaenoritmoéabrupto.AJordâniaéatrasadaeestática,enquantoIsraelédinâmicoeresoluto. Isso gera um trânsito igualmente perigoso: hámais carros e os motoristas também sãodescuidados.Contudoestãosujeitosaalgumcontrole,equandoestiveemJerusalémrealizou-seemTel Aviv uma conferência cujo objetivo era eliminar os acidentes. Os motoristas de ônibus quebateram menos recebem medalhas. Entretanto esse setor da Jerusalém anterior à guerra vem setransformandonuma cidade sólida.Fiquei impressionado comobomgosto dos novosprédios deescritórios e de apartamentos, bem como do museu e da universidade; e disseram-me que umacomissãodeplanejamentodirigeaexpansãodacidade.Éilegalconstruircasascomqualqueroutromaterialquenãoapedralocal,claraeáspera.Pormotivosdeeconomiainfelizmentejánãopodemerguerosvistosostelhadosvermelhosquequebravamamonotonia.NaKingDavidStreethaviaumterrenobaldiocheiodedetritoseparcialmenteárido;agoraestavalimpoeplantado.

EmboraanovaJerusalémsejaestimulanteemmuitosaspectos,àsvezessente-sealiumvazio,uma desolação— os judeus provenientes de outros países, aos quais se integraram parcialmente,devem ter se achadomeio num vácuo. E sempre há um elemento de incerteza, de dependência deajudaexterna.Atualmenteos israelensespassamporumafasedifícil.As indenizaçõesdosalemãesterminaram,ecomisso Israeldeixoude receber70milhõesdedólaresporano;eaindaporcimaparece que se tornou mais difícil conseguir empréstimos dos americanos. Calcula-se que odesemprego seja da ordem de 10% e uma tentativa de congelar salários já resultou em greves.Aemigraçãoaumentaeaimigraçãodecresce.Apresençadejudeusorientaisenorte-africanostambémtemcriadoproblemas.Oníveldeinstruçãoeopadrãodevidadessaspessoassãomuitobaixos.Sãoosocidentalizadoresquemandamnopaís,eosrecém-chegadosnarealidadeaindanãosemisturamcomeles.Mostraram-menovosprédiosdeapartamentosnabordadaterradeninguémqueseparaasduasJerusalémedisseram-mequesedestinavama“moradoresdecortiços”.Minhacamareira,umamulherbonitaemuitotrabalhadeira,deaparênciaafricana,eramarroquinadelínguafrancesa,mascontou-mequeagorafalavahebraicomelhorquefrancês.ElaestevenaFrança—peloqueentendiaserviçodogovernooucomumabolsaoficial.Acheiqueessamulherdevia representaranatadosimigrantesnorte-africanos.

Ànoite,olhandopelajanelademeuhotel,noprolongamentodaKingDavidStreet,vejoalongaestrada iluminada e as outras artérias dasmargens da cidade estendendo-se em direção às colinas

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tranquilas. Não há nada ofuscante como as luzes que brilham na noite de uma grande cidademoderna; um movimento rápido e um zumbido de automóveis, mas sem o barulho irritante dasbuzinas frequentes. Essa ruas foram planejadas para unir-se facilmente às estradas do ladojordaniano.(Naépocanãoconseguipreverquandoissoseriaconveniente.)

Lino jornalquecatorzepessoas—entreasquaisvários turistasepoliciais—forammortospor um carro-bomba que alguns sírios levaram para a Jordânia. Isso evidentemente foi obra daesquerda síria: o país, onde são frequentes as mudanças de governo, agora é socialista econsequentementeantimonarquistaeinimigodoreiHussein,aoqualacusadeser“brando”demaiscom os israelenses. (Os governos sírio e jordaniano romperam relações na última crise e só asretomaramsobpressãodeNasserparamanteraunidadeárabe.)

UmahistóriaquecirculanoOrienteMédioeatéchegouaumacolunadoGlobedeBoston—ameuverumafábulaárabeatualizada—faladeumescorpiãoquechegaaumrioepedeaumsapoqueoleveparaooutrolado.“Masvocêvaimeaferroar”,argumentaosapo.“Oh,não,nãovoufazerisso”,dizoescorpião.“Sóqueroatravessarorio.”Entãoosaporesolvelevá--lo,masnomeiodocaminho o escorpião o aferroa. “Oh, por que você fez isso, se tinha prometido? Agora eu voumorrerevocêvaiseafogar!”“AssiméoOrienteMédio!”,concluioescorpião.

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4.ONOVOMUSEUNACIONALDEISRAEL

AchoqueoMuseudeIsrael,construídodepoisdeminhaúltimaestadiaemJerusalém,éumdosmais bem concebidos que já vi. É relativamente baixo e parece esparramado, pois os váriosdepartamentos foram adaptados à configuração da encosta na qual se encontra, de modo que ovisitanteprecisasubiredesceralgunsdegrausparapassardeumaoutro.Hátantoespaçonassalasqueaapresentaçãodomaterialexpostonuncaéconfusaouapinhada:menorásdeouro,prataecobre,estojos de pergaminho e caixas de especiarias e outros objetos ricos e curiosos provenientes desinagogas abastadas; imagens populares que ilustram a Bíblia, entre as quais uma série deliciosasobre a dona de casa ideal descrita nos Provérbios; quadrosmodernos que incluem um daquelesFrancisBaconshorríveis,maisdisformequequalquerpinturapopular,eestãolongedealudiraumasociedadebemorganizadaedevota;inscriçõeslatinasefaunospseudogregosdaépocadaocupaçãoromana; o piso de mosaico de uma sinagoga e uma sinagoga inteira, transportada de Veneza ereconstruída—tudoissoaoladodeossosepedrasetecidosantigosquenoslevamàeradeSalomãoeatéadeAbraão.Atrásdomuseuháumparquecomesculturasexpostasaboasdistânciasumasdasoutras—muitas legadasporBillyRose,oprodutor teatralamericano—;amostravaideRodineMaillol, passando por uma coleção de bustos de Epstein—que também os legou a Israel—, atéengenhocas mecânicas e objetos bizarros dos quais se podem ver exemplares nas coleções“vanguardistas”dosmuseusnova-iorquinos. Jerusalémémuitoaustera—nãosópornecessidade,creio eu,mas também por acatar a tradicional determinação deMoisés de não se fazer “imagensgravadas”, o que, apesar do esplendor dos objetos sagrados provenientes dessas sinagogas maisricas,estende-seàsamenidadesvisuaisemgeral.Sóhojeéqueumjudeusepermitiudeleitar-secomrealizaçõesartísticascomoasmagníficasjanelascriadasporMarcChagallparaadornaroHospitalHadassah.(Contudodiz-sequeChagallficoudescontentecomalúgubrecapelinhainadequadaasuaobra.)

Uma construção mais imaginativa é o museu especial, projetado por dois arquitetos nãoisraelenses,F.J.KieslereA.P.Bartos,paraabrigarossetemanuscritosdomarMortoencontradosnaprimeiracavernaeadquiridospelogovernodeIsrael.Esseprédio,chamadoSantuáriodoLivro,foiconcebidoparaenfatizar seuconteúdodevárias formas simbólicas.Naentradaháumanteparodebasaltonegrocujopropósitoparecemeramentedecorativo.Explica-sequeonegropuroestáaliparacontrabalançarobrancopurodacúpuladosantuário,assimrepresentandoocontrasteentreasforçasdastrevaseasforçasdaluzquedesempenhamumpapeltãoimportantenaliteraturadosmanuscritos.Para dar ao visitante a impressão de que vai entrar numa caverna, o acesso ao santuário é umcaminhoestreito,margeadopormurosdepedrabrutainclinadosnadireçãodocaminho.Esteconduza um túnel cavernoso de forma simetricamente irregular, ao longo de cujas paredes se dispõemfileiras demostradores de vidro, iluminados, cada qual contendonumcanto uma caixa de cristaisparaprotegerdaumidadeomaterialexposto.Essematerialvemaseroconteúdodascavernasqueequipes chefiadas porYadin e outros estudiosos daUniversidadeHebraica exploraram a partir daprecáriasaliênciadeumrochedoentreMassadaeEngadi.AliseesconderaBar-Kochba,olíderdaúltima revolta judaica contra os romanos, em 132-35 d.C. Há os pertences das mulheres queacompanharam os seguidores de Bar-Kochba: caixas de joias, espelhos de cobre, pentes, objetos

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relacionadoscomcosméticos;assandáliasdasmulheresedascrianças,quenãodiferemmuitodassandáliasatuais;umpratoeumagrandetigeladevidro,facas,panelaseumacestacomgrãosdesal;restosdexalestingidosetecidos;tigelasejarrosdebronzedecoradosparausoritual,amaioriadosquais,feitosevidentementenosuldaItália,assemelham-seaosqueforamencontradosemPompeia(devemtersidopilhadosdoExércitoromano);ossoshumanosevárioscrânios,umdelesaindacomum pouco de cabelo. O mais extraordinário, talvez — embora duas dessas cartas já tivessemaparecidonumadascavernasdooutroladodafronteiraentreaJordâniaeIsrael—,éadescobertadequinzepapiroscomcartasemhebraico,aramaicoegregocompostas,senãoescritas,pelopróprioBar-Kochba e contendo ordens sobre suprimentos e mobilização. Há também um maço de 35documentos cuidadosamente rotulados, dobrados e amarrados; referem-se aos negócios de umamatronacasadaduasvezesecomtodaaevidênciarica,quepossuíapropriedadenasvizinhanças:sãocontratosdecasamento,escrituras,papéis relativosaprocessos legais.Nosarredoresdescobriu-seuma escritura de propriedade em aramaico lavrada “no primeiro dia de Iyar no primeiro ano daredençãodeIsraelporShim’onBar-Kosiba,príncipedeIsrael”.(Acredita-sequeBar-Kosibaeraoverdadeironomedolíder,sendoBar-Kochba,FilhodaEstrela,umapelidohonorífico.)Odocumentoincluía“direitossobreaáguanaformaprópriaeadequada”,ouseja,odireitodecanalizaroscursosdasfontesexistentesnasencostasdemodoqueirrigassemosjardins.Osisraelensesgostamdedizerque só depois de quase mil anos Engadi voltou a ser irrigada. Após 52 batalhas Bar-Kochba foiderrotadoemortopelosromanos,masaotérminodeséculososjudeusdenossotemporecuperaramsuaterra.

Esse túnel conduz o visitante a uma espécie de rotunda, onde estão expostos osmanuscritos,protegidosporplacasdevidro.AlivemosomanuscritodosHinosdeAçãodeGraças,queémarrombemescuro,quasepretoemalgunspontos;oManualdeDisciplinadaseita,claríssimoemsuabelacaligrafia;umfragmentodoLevítico,procedentedeMassada,quedetãoenegrecidopareceilegível,porém se torna perfeitamente nítido quando fotografado com raios infravermelhos; o intriganteComentário deHabacuc, sem a base de suas colunas, e o rolo daGuerra, também deteriorado; oapócrifodoGênesis,comalgumaspartesreduzidasafarraposrendados.Nomeiodasalaredonda,quetemaformadeumagrandetigelaemborcada,háumaplataformaredondaàqualsesobeporumaescada,enocentrodestaháumgrandeburacoredondo,doqualseergueumaespéciedepedestal.EssepedestalérodeadoporumcírculodevidroconcebidoparaconterorolodeIsaíasabertoemtodooseucomprimento,demodoquesepodelê-locontornandoopedestal.Sobreocírculodevidrovê-seoquepareceumenormecarimboantigo,cujocabodemetalsugereumsímbolofálico,emborase diga que o objeto ali está para harmonizar-se com a forma dos jarros em que os rolos foramescondidos.Acima, como um pescoçomais estreito desses jarros, há uma abertura para o céu.Aprincípiopensou-seemtransformarocabodocarimbonumrepuxo,cujaáguasairiapelaaberturadotetoeescorreriapelacúpula,caindonumavala,masdepoisseabandonouaideia,poisaumidadepoderiadanificaromaterialexposto.Assim,essesímbolo fálico ficoumeiosemsentido,amenosqueointerpretemoscomoarepresentaçãodeumavigorosavontadedepersistir.

Oefeitodessesantuárioéumpoucobizarro,porémimpressionante.

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5.CONVERSASCOMYADINEFLUSSER

Várias vezes conversei com o professor Yigael Yadin sobre os manuscritos do mar Morto.YadinéfilhodofalecidoE.L.Sukenik,quechefiaraoDepartamentodeArqueologiadaUniversidadeHebraicae,emmeioàconfusãodaguerraárabede1947,foraoprimeiroareconheceraantiguidadedos manuscritos, tendo comprado de um negociante de Belém alguns da primeira leva. Tambémarqueólogo, Yadin (ele assumiu um nome hebraico) desempenhou um papel importantíssimo naprimeiraguerraárabe,quandosetornou,aostrintaanos,chefedeoperaçõesdasForçasDefensivasdeIsraeledepoischefedoestado-maior.Possuiextraordinária inteligência,autoridadebaseadaemsólida cultura eumpoderdepersuasãoquasehipnótico.É fácil compreenderporque se tornouolíder da equipe de trezentos voluntários que conseguiram escavar a fortaleza de Massada, comorelatei anteriormente.EmYadin o estudioso e o homemde ação se conjugamde ummodomuitoincomum.

Falamos da possível relação entre os manuscritos da seita do mar Morto e o cristianismoprimitivo.EleachavaqueasdeclaraçõesdeJoãoBatistaePauloevidenciamainfluênciadaseitaeafirmouqueaimportânciadeDamascotantoparaaseita—que,segundoumdeseusdocumentos,estevedurante algum temponessa cidade—comoparaPaulo—que se converteu repentinamentequandoiaperseguiroscristãos—eraumtemaquesepodiainvestigar.Acredita-sequedepoisessessectáriosvoltaramparaseumosteironomarMorto;masseráquealgunsnãoficaramemDamascoetransmitiramsuasdoutrinasaPaulo?YadinfalouquenãoencontrounadanaspalavrasatribuídasaJesusquesepudessecreditaràdoutrinadosessênios.Desconfiavaqueapresençados romanosnaPalestina subjugada de Jesus era mais importante nos Evangelhos do que em geral se explicita.CertamenteaspessoasprocuravamJesuselheperguntavam:“Rabino,queatitudedevemostomaremrelaçãoaosromanos?”.EJesusrespondiaqueporenquantodeviamsubmeter-se—“daiaCésar”etc.—,porémnomomentooportunolutariamevenceriam.YadinlembrouaspassagensdoEvangelhoemqueJesusdemonstraumespíritoveladamentecombativo—“Nãovimtrazerapaz,masaespada”(Mateus10:34)e“Quemnãotemespadavendaoseumantoecompreuma”(Lucas22:36);contudo,quando lhe apresentam duas espadas, declara que são suficientes. E há Simão, o zelote, que éescolhidocomodiscípulodeJesus(Lucas6:15).OszeloteseramogrupoqueresistiuferozmenteefezdeMassadaseuúltimoreduto.Edepois,quandoos inimigosdeJesusaparecemcomespadasepausparaprendê-lo,umdosdiscípulosdesrespeita a talpontoaordemdoMestreparaoferecer aoutra face que chega a cortar a orelha do servo do sumo sacerdote. Concordei com Yadin: ospreceitosdenão-resistênciadeJesusàsvezesnãocondizemcomsuaordemdeenfrentarosinimigosnem com os gestos retaliativos de seus discípulos. Yadin pensava que a ênfase no perdão e nasubmissãoàautoridadepodetersidoacrescentadaaosensinamentosdeJesusdepoisdesuamorteenumafasetardia;entretantonãotenhoamenordificuldadeemimaginarque,emboraachassemelhorpregar a resignação, após o triunfo dos romanos, Jesus podia às vezes dar vazão a seu espíritobelicoso. De qualquer modo, ao relatar o corte da orelha, os quatro evangelistas têm formascuriosamentedistintasdeconciliaresseatodeviolênciacomasupostamansidãodeJesus.EmMateus(26:52-53)Jesusdiz:“Põeatuaespadanoseulugar,porquetodososquetomaremespada,morrerãoàespada”—querdizer,pregaanão-resistência—;contudoafirmaquepodechamarumaproteçãosobre-humana: “Julgasporventuraqueeunãoposso rogar ameuPai, equeelemenãoporá aqui

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logomaisdedoze legiõesdeanjos?”.EmMarcos(14:48)simplesmentefalaaseusperseguidores,comotambémocorreemMateuseLucas:“Comoseeufosseumladrão,viestescomespadasepausaprender-me?”—lembrando-lhes,comoemMateus,queoouviramsemhostilidadeno templo.EmLucas (22:51)—uso aqui a tradução deRonaldKnox, um poucomais clara que aVersão do reiJaime— seus seguidores lhe perguntam: “Senhor, se os feríssemos à espada?”; e ele responde:“Deixai, basta. E, tendo--lhe [ao servo] tocado a orelha, o sarou”. Em João (18:10-11)— aqui éSimãoPedroquemcortaaorelhadoservoeestesechamaMalco—JesusdizparaPedro:“Põeatuaespadanabainha.NãoheidebeberocálicequeoPaimedeu?”.

Aosair,pergunteiaYadinoqueachavadacrisecrescente.Contei-lhequeasváriaspessoascomquemfaleipareciamnãolevá-lamuitoasérioequefiqueipensandoseahistóriatodanãopassavadeumacomédia.“Umaestranhacomédia”,disseYadin,“comastropasdelesconcentradasaolongodafronteiraeasnossasconcentradasdooutrolado,esetecentostanquesdecadalado!Sebloquearemnossosnavios,haveráguerra.”

NodiaseguintefuivisitarDavidFlusser—meuamigo,oincomparávelFlusser.Anãosernaerudição,eleéemtudooopostodeseucolegaYadin.Casou-sedepoisdaúltimavezqueovieagoraécatedráticonaUniversidadeHebraica—contou--meosdoisfatosnolatimmedievalque,comomedissera numa visita anterior, era a língua que melhor falava em Israel. Apesar de ser professoruniversitário,nada temdeacadêmico.Éumeruditoqueamaaculturapeloqueelaé, enãocomomeiodeassegurarqualquertipodepromoção.Temcomoprincipalinteresseareligiãocomparada,massuasleiturasabrangemumlequeimenso,esuacabeçaestátãorepletadeideiasqueoobrigaasecomunicar, e uma ideia interessante sugere outra, de tal modo que conversar com Flusser éfascinante.Certavezumdeseuscolegasmedisse:“OqueacontececomFlusseréqueeleflui”.Eseufluxopodesetransformarnumatorrente.Eleparecetersimultaneamenteasuafrente,emsuacabeça,os textos abertos para consulta imediata: o Velho e o Novo Testamentos, os Apócrifos e osPseudepígrafos (ou seja, os escritos intertestamentais), o Talmude e outros livros rabínicos e ospadres da Igreja, bem como os estudos bíblicos modernos e a filosofia e a literatura da Europaclássica e moderna. Embora nem sempre eu consiga acompanhar seu pensamento e muitas vezesfiqueperplexocomsuasimportantescitações—queelefazdememóriaoulênoidiomaoriginal,achando que posso entendê-las— acho fascinante conversar com Flusser sobre osmanuscritos eassuntosafins,porquesuamemóriaprecisa, seuamploconhecimentoeseuspoderesde intuiçãoolevarama estabelecer relações e tirar conclusõesquenãoocorreramaninguém.Dois tópicosquesurgiram emnossas conversas dão uma ideia disso.A figura central na literatura da seita domarMortoéolíderdesignadocomoהךומהקךעה,oquesetraduzcomoMestredaRetidão,MestreJusto,MestreLegítimoeMaîtredeJustice.UmestudiosoprotestantequeconhecinaEscolaArqueológicaHebraica,emIsrael—umdoscéticosprofissionaisemrelaçãoàsteoriassobreosmanuscritos—,disse-me,todosatisfeito,quehaviaencontradoessaexpressãonaMichna,numareferênciaquenãopodiaternenhumaligaçãocomosessênios,equeiaescreversobreoassunto.ConteiissoaFlusser,eelemefalouqueaexpressãoocorrecomfrequêncianoTalmudeeforaaplicadaaMaimônides.Eisumbomexemplodadesvantagemdeumestudiosocristãoquedesconhecealiteraturarabínica.EmoutraocasiãoFlussermemostrouumtexto,emeslavônioantigo,doLivrodosSegredosdeHenoc—textoqueR.H.Charlesdesconheciaquandopublicouuma traduçãodesse livro feitaapartirdeoutrosescritos.Umadasversõeseslavôniasdessaobracontaonascimentomiraculosodosacerdote-reiMelquisedec, oqual temmuito emcomumcomonascimentomiraculosode JesusnarradonoEvangelho.Sofonim,amãedeMelquisedec,eraestérilevelha.Aodescobrirsuagravidez,escondeu-se;eNir,seumarido,sósoubedesuasituaçãoquandoachamounodiaemqueelaestavaprestesa

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daràluz.Sofonimdissequenãoimaginavacomoissohaviaacontecido;nãotinharelaçõescomNirdesdequeMatusalémoungirasacerdote,eomaridofezumacenaterrível.NirerairmãodeNoéeneto deMatusalém. Ele ordenou àmulher que fosse embora para não ser obrigado a bater-lhe e,assim,pecaraosolhosdoSenhor.Diantedisso,Sofonimcaiumortaaseuspés.Nirficoucheioderemorso e achou que Deus fora misericordioso só porque o impedira de bater na esposa.SecretamentepreparoucomNoéumasepultura,masnessemeio-tempoumacriançanasceudocorpodeSofonim.Ummeninointeiramentedesenvolvidoequejáfalava;quandoosirmãosvoltaramparacasaencontraram-nosentadonacamaelouvandooSenhor.ForageradoporDeusedestinadoaserosumo sacerdote Melquisedec. Já se estabeleceu uma tradição, conforme lemos na Epístola aosHebreus,dequeMelquisedecsurgiu“sempainemmãe,semgenealogia,semprincípiodedias,semfim de vida, tornado assim semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre”.Entretanto,comoseuirmãoNoé,NirsabiaqueDeusplanejavaumexpurgocompletodahumanidadeepediuaElequelhemostrasseoqueseriafeitodomeninomaravilhoso.Deusrespondeu-lhenumsonho que esse problema se resolveria. Então o arcanjoMiguel apareceu para Nir, também numsonho,efalou:“Devolve-meacriançaquedeixeicontigo”.Desconhecendoovisitanteesabendoqueaspessoassetornarammuitomás,Nirficouamedrontadoeperguntousepretendiammataracriançadivina.Oanjoidentificou-seeexplicouquevieraparalevaromeninoaoJardimdoÉden.AgoraNirsentia alegria e tristeza por ter tido essa criança como filho. Assim Melquisedec — seu nomesignificaReideJerusalém—foipoupadodoDilúvioparanofimemergircomosumosacerdote.

OLivro dos Segredos deHenoc existe apenas emmanuscritos eslavônios,mas supõe-se queestes sejam tradução de um original grego elaborado no Egito, um desdobramento do Livro deHenochebraico,semoqual,dizCharles,“nãosepoderiaterescritoahistóriadodesenvolvimentodateologiasuperiornosdoisséculosqueantecederamaeracristã”.Nessaobraaexpressão“FilhodoHomem”, aplicada a um Messias esperado, “aparece pela primeira vez na literatura judaica e é,historicamente,afontedadesignaçãodoNovoTestamentoecontribuicomalgunsdeseusconteúdosmaiscaracterísticos”.NoLivrodeHenocoFilhodoHomeméaquele“emquemresidearetidão”e“querevela todosos tesourosdoqueestáescondido,porqueoSenhordosEspíritosoescolheu”eque “soltará as rédeas dos fortes e quebrará os dentes dos pecadores” etc.Aqueles que “negam oSenhordosEspíritos[...]perseguemascasasdeSeusfiéis”.CharlessituaoLivrodosSegredos—nãooLivrodeHenoc,aquicitado,quedevetersidoescritomuitoantes—naprimeirametadedaeracristã e, embora desconhecesse a versão descrita anteriormente, notou semelhanças com osEvangelhos. O editor francês M. A. Vaillant, do Collège de France, acredita que se trata de umdocumentocristãoprimitivo.HáoutrahistóriaapócrifaumpoucoparecidanoLivrodeAdãoeEvaetíope: quando se tirou daArca o corpo intacto deAdão para enterrá-lo,Melquisedec, que estavaentão com quinze anos, foi arrancado de seu pai pelo anjo, ungido sacerdote e encarregado deguardarotúmulo.Vaillantnãodiz,masissomeparecebempossível,queahistóriadeMelquisedecnos Segredos de Henoc eslavônios é um típico conto de fadas russo inventado por um mongecriativo.Diferencia-semuitodanarrativaanterior,quefaladaviagemdeHenocpelooutromundo.Achoqueemsuaênfasepsicológicaeemcertosdetalhesrealistasébastantefácilreconhecercomorussos o remorso do pai deMelquisedec e seumodo de consolar--se, seumedo da crueldade daspessoaseseumistodealegriaetristezaaosaberqueomeninoescaparádeumdestinomedonhosóparaserlevadoembora.UmcopistadessaversãoomitiutodaahistóriadeMelquisedecporjulgar,segundo acredita Vaillant, que se assemelhava muito ao nascimento de Cristo. Os fatos dos doisTestamentosqueficaramvagosounãoforamdesenvolvidosderamtodotipodeensejoàsinvençõesdoscontribuidoresdoTalmudeedosautoresdosapócrifosjudaicosecristãos.

Estendi-me sobre o assunto porque é não só interessante, mas também típico das portasinesperadasqueFlusserpodeabrir.

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Flusserpossuiumaironiajocosaeumaempolgaçãointelectualegostadepregarpeçascomacaramaisimpassível.Engordoudesdequeovipelaúltimavezeestácomumaaparênciaaindamaisextraordinária,comseuscabelosruivos,seusolhinhosargutos,oraverdes,oraazuis,suasorelhasgrandesepontudas,quenãotêmlóbulosesaemdiretamentedacabeça.Nãomesurpreendiaosaberque num congresso de estudiosos realizado na Índia ele foi o único dos delegados cujos pés osnativosbeijarameque,comseuaspectodegênio,foivistocomoumsersemissobrenatural.

Emnossasconversassobrereligiãoàsvezesacabávamosfalandodefatosdomomento,sobreosquaisFlusserestavamuitobeminformado.Antesdeeclodiracriseedeosárabescomeçaremafazerpronunciamentospúblicos,explicou-mequeelesaindapensavamem termosdeguerra santa,comonaépocaemquemassacravamoscristãos:consideravamumpontoparaoIslãcadahomemoumulherqueexplodissemcomdinamite.Osjudeushaviamabandonadoaideiadeguerrasantajánostempos talmúdicos. Ademais, os muçulmanos ainda eram feudais. Os países tinham entre sidesavençasmuitoprimitivas,eosgruposbrigavamemsuaprópria terra.Mencioneias retaliaçõesdos israelenses. Conversei com um motorista da American School que passara alguns anos noExército jordaniano e falou com azedume sobre o ataque israelense contra a Jordânia, no anopassado, quando bombardearam quarenta casas, depois de expulsar as famílias. “Recorrem àrepresáliaporquechegaramàconclusãodequeéaúnicalinguagemqueosárabesentendem”,disseFlusser.“Enãoconseguimos!Nãoacreditamosnissorealmente!”

Fuivisitá-loem23demaio,navésperademinhapartida.Elemerecebeuanunciando:“EstaéaGuerra dos Filhos das Trevas Contra os Filhos da Luz!” — o título que foi dado a um dosmanuscritos,quepredizumaespéciedeArmagedon.a “UmanuvemsobreEilat!Você se lembradanuvem que Moisés viu sobre Eilat.” No momento os egípcios estavam ameaçando Eilat em seuesforçoparabloquearomovimentodosnavios israelensesqueiamouvinhamdogolfodeÁcaba.Em seu êxodo doEgitoMoisés teria passado por Eilat, porém não encontrei referência à nuvem.Comumaesposaedois filhospequenos,disseFlusser,eramuitodesagradável teressasombranohorizonte.

Esetudoistoaquiforvarridodomapa?Osprofetassempreacertam!Dizemouqueosdesastresocorreramporqueos judeus foram tãopecadores,ouqueos judeussão tãopecadoresqueosdesastresvãoocorrer.Eos judeus sempre sãopecadores,demodoqueoprofeta sempre temrazão!

Aquemdevemospedirqueintervenha?AJoanad’Arc?Não,elapoderialutarporNasser.ATomásdeAquino, talvez.Contei-lheoqueYadin falara sobreaatitudede Jesusem relaçãoaos romanos.Yadin foi soldado, disse Flusser, e naturalmente pensava em termos de armas. A mensagem doensinamentodeJesuseratotalmentediferente.EntãomefezamaiseloquentedissertaçãosobreJesusque me lembro de ter ouvido. (Anunciou que estava para escrever um livro em alemão sobre oassunto.)OMestre daRetidão e Jesus tinham ideais e objetivos inteiramente distintos.OprimeiroqueriacriaremsuaisoladacomunidadedomarMortoumapequenautopiadaelite.Osmembrosdacomunidadedeviamsertolerantesentresievertodososoutroscomoinimigos;condenavamtantoos romanoscomoJerusalém.EntretantoJesusestavanomundoe instruiuseusdiscípulosparaquenãoresistissemàautoridade:issosótornariapioresasautoridadescivis,quelogooscolocariamnaprisão.“OReinodeDeusestádentrodevós.”ContudoJesusfoicrucificado,enquantooMestredaRetidão— segundo Flusser acreditava agora, baseado nos fragmentos do marMorto— não foiexecutado ou assassinado por seus inimigos, conforme se pensara. No fundo da casa a senhoraFlusserouviaasnotíciaspelo rádio, eomarido saiuda salapara saberoqueestavaacontecendo.“Eshkol apelou paraDeGaulle”, informou ao voltar. “Ora, se Jesus estivesse aqui e ouvisse isso,

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diria,referindo-seaEshkol:‘Pobrehomem!’”—porqueEshkolestavarecorrendoàautoridade.NãodiriaamesmacoisasobreNasser?,perguntei.Flusserficouemsilêncioporuminstante.“Sim,diria‘pobre homem’ em relação a Nasser também, mas não estaria particularmente interessado.” Nãopensei emcomentar queEshkol também representava a autoridade.Depois compreendi que, comojudeu,Flusserpodiacolocar-senolugardeJesusepensarqueelenãoteriaagidocomoEshkol,masadmitiriaqueNassereDeGaullepertenciamaooutrolado—eramasautoridadesdessemundoquequeriameliminarosjudeus.Pareceu-metambémque,aoimaginarosoutrosjudeusprocurandoJesusparaperguntarqueatitudelhescompetiatomaremrelaçãoaosromanos,Yadindeveterinterpretadotalsituaçãoemtermosdesuaprópriaexperiênciaquando,duranteosanosdoarmistício,semdúvidaseuscompatriotasoconsultaramparasabercomoagiremrelaçãoaosárabes.

[OlivrodoprofessorFlussersobreJesussaiutãologofoiescrito:JesusinSelbstzeugnissenundBilddokumenten, na série Rowohlts Monographien, Rowohlt Taschenbuch Verlag, Reinbeck beiHamburg.Flusserescreve:

O presente estudo não tenta estabelecer uma ponte entre o Jesus histórico e a fé cristã.Procuramosapenas,semnosanularnemsuprimirnossopróprioperíodo—deoutraformaéimpossívelescreverbiografia—,colocarJesusaquieagoradiantedosolhosdoleitor.NossoperíodopareceespecialmenteadequadoparacompreenderJesusesuapregação.Umaprofundaansiedadeem relaçãoao futuroeaopresentedespertouemnósumanova sensibilidade.HojesomosreceptivosàreavaliaçãoqueJesusfezdetodososoutrosvalores,emuitosdenósagorapercebem a dubiedade da moralidade instituída— percepção da qual Jesus parte. Como ele,tambémnossentimosimpelidosemdireçãoaospáriaseaospecadoresdasociedade.E,seeledizquedevemosnãoresistiraomal,porqueindocontraomalsócontribuímosparaalutadeforças,desimportantesemsimesmas,nasociedadeenograndemundo,hojepelomenostemoscondiçõesdeentendê-lo.E,senoslibertamosdascadeiasdepreconceitosobsoletos,temosmaissegurançaparaatenderasuaexigênciadeamor indiviso,nãoporfraquezafilantrópica,esimcomoumacorretaconclusãopsicológica.

Atremendarealizaçãodesuavidatambémnosinteressahojeemdia:dochamadonaépocade seu batismo, da ruptura dos laços com sua família estranha e da descoberta de uma novapaternidademaiselevadaparaopandemôniodosenfermosedosinsanosedaliparaamortenacruz. Assim, chegamos a entender as palavras que, segundo Mateus (28:20), ele disse naressurreição,numsentidonovoenãoeclesiástico:“Euestareiconvoscotodososdias,atéofimdomundo”.

EsselivroconstituiumexemplosignificativodocrescenteinteressequeosjudeusrecentementevêmtendoporJesus.AdescobertadosmanuscritosdomarMortoeasnovasescavaçõesnaPalestinavierampreencheralgumasdaslacunasdahistória judaicaantiga,e issotemlevadoosestudiososaperguntar:QuemfoiJesusexatamente?Oqueolevouafalareagirdaquelaforma?Oqueeledisseefez na realidade?Equal foi a explicaçãodo imenso sucesso de sua doutrina entre os não-judeus?1969.]aArmagedon(montedeMegidoouMagedo):simbolizamassacreederrotaepressagiaoextermíniodasforçascontráriasaDeus.MencionadoemApocalipse16:16.(N.T.)

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6.PARTIDA

AntesdepartirdeBoston eu jáhaviaplanejado todoomeu itinerário enamanhãde24demaioestavadeixandoTelAviv.NatardedavésperaocônsuldosEstadosUnidosmeligouedissequereceberaordemdeWashingtonparacomunicaratodososamericanosquedeviamsairdopaís.

Nãoesperavarevernenhumdemeusamigosdogoverno,porémnofimdodiaTeddyKollek,prefeitodeJerusalém,eMoshePearlman,veteranodaprimeiraguerraárabe,autordemuitoslivrosedurantealgum tempoporta-vozdogoverno,apareceramnoKingDavidcomumex-embaixadorisraelenseesuaesposa,osquaiseunãoconhecia;comoobardoandarsuperiorestavafechado,oque indicavamobilização,descemosparaobardo térreo.OdinâmicoKollek,cuja famíliapassoupor Praga e Viena, tem alguma coisa da dureza e da brusquidão germânicas, embora vivesse naPalestinadesdeaadolescência.Segundomecontaram,eledissequeoproblemadesecandidataràprefeitura era correr o risco de ser eleito. Kollek não tirou seu número da lista telefônica e eraacessívelatodomundo—comissoqualquerumpodiachamá-lonomeiodanoiteparareclamarquenão conseguia dormir com os latidos do cachorro do vizinho. Ele possui uma biblioteca sobre oOrienteMédiodotipoquesósepodeadquiriracompanhandooscatálogoseencomendando;possuitambémumaseletacoleçãodeutensíliosejoiasantigas,queguardaemcristaleiras.Quandoovipelaprimeira veznessaviagemeleme falou: “Você está aqui para conversar comas pessoas sobreosmanuscritos,maseudevomepreocuparcomoproblemado lixo”.Agoraperguntei se tinhamummonturo. Sim, tinham. “E o problema de Teddy é ver o lixo de novo nas ruas”, brincouMoshePearlman. A conversa foi muito agradável. Quando comentei que Eshkol apelara a De Gaulle, amulherdodiplomatacorrigiu-metranquilamente:“Lembrou-o”.

Namanhã seguinte levantei-me às cinco horas e fui de carro para o aeroporto. Percorrer asestradas que se afastam de Jerusalém é enervante, seja em Israel, seja na Jordânia. Osmotoristascorremnascurvas,semavistaroquevempelafrente,tendodeumladoumbarrancosemproteçãonenhuma;eemIsrael,quandosefalacomochofer,eletendeagesticulardeumamaneiratalquedámedodeque largueovolantedeumavez.Oaeroportopareciaumabrigopara refugiadosdeumexército hostil. Nunca ouvi num local público tanto falatório, tanto grito, tanto uivo. As únicaspessoascalmasequietaseramumvelhodebarbadensaeumhomembembarbeadodecamisaabertanopescoçoeumacarecacomoadeBenGurion,umhalodecabelosgrisalhoscircundando-lheacabeça.Havia tambémjovens judeusortodoxosdeóculosecachinhosnasorelhas,barbasnegraselongoscapotespretosquelheschegavamatéquaseostornozelos.ÉumadelícialersobretaispessoasemAgnon, e entretantonãopudedeixardepensarqueesses jovensneófitos, tãoaltosemagrosepálidos,tãopoucoadaptadosaomundomoderno,destoamdetudoqueestáocorrendohojeemIsrael.AtribuíahisterianobalcãodaAirFranceàagitaçãodosjudeus,porémencontrei-adenovoemOrly— os mesmos funcionários confusos, os mesmos gestos febris ao verificar e carimbar ospassaportes,amesmagritariadeumafamíliafrancesareclamandoporquealgumacoisadeuerrado.Encontrar esses dois tipos de histeria reunidos nos funcionários que falam francês e atendempassageirosquefalamfrancêsnoaeroportodeTelAvivéalgumacoisaquefazdeobterumcartãodeembarqueumaguerradenervos.

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Foiumalívioentrarnoavião.Umaveznoar,osviajantesseacalmaram.DevoltaaosEstadosUnidos,linosjornaisquemeusamigosdaAmericanSchool,odiretore

sua família, saíram da Jerusalém jordaniana quando se iniciou o bombardeio da fronteira, com acúpula da igreja da Dormitiona destruída e com Israel prestes a recuperar omonte Scopus, ondeoutroraseerguiaaUniversidadeHebraicaequenãopassavadeumenclaveinútilnaJordânia;liqueaoctogenáriasenhoraVester,agrandedamadacolôniaamericananaJordânia,recusara-seadeixarohotelqueduranteváriasgeraçõespertenciaasuafamília;queumabombaatingiuoMuseudeIsraelepormotivosdesegurançaseuconteúdofoiretirado;queumabombadestruiuumaárvoreemfrenteaoKingDavidHoteleoshóspedesseabrigaramnobardotérreo,cujasjanelasestavamprotegidasporsacosdeareiaenoqualaindaseserviamdrinques;queobarmandoKingDavidperdeuseufilhode dezenove anos, esfaqueado na Cidade Velha ao tentar socorrer um amigo ferido (devo estesúltimosdetalhesaumartigodeFloraLewisquesaiunaNewYorker);queTeddyKollekpercorreuasruas de Jerusalémpara tranquilizar o povo, enquanto as bombas caíam a sua volta, e disse que iaacrescentara suacoleçãoumabalaquesealojouemseucarroeduranteobombardeiocontinuoubrincando sobre a coletade lixo, à qual se somava agoraoproblemada remoçãodos escombroscausadospelaguerra;quePearlman, tenente-coronel, reassumiuemTelAviv suaantiga funçãodeporta-vozmilitar.Quanto aosmanuscritos domarMorto, a nacionalização doMuseu daPalestinatornou-os propriedade do governo jordaniano, e tenho tentado imaginar como serão tratados nofuturo. Li que num primeiro instante os israelenses ocuparam o museu, porém até agora sóencontraram fragmentos dos rolos; depois li que o prédio foi alvejado e os manuscritosprovavelmente enviados para Amã. O padre Roland de Vaux me pedira que, antes de deixar aJordânia,eutransmitissesuaslembrançasaYadinelhedissesseoquantoelelamentava“abarreira”queosimpediadeencontrarem-seemqualquerlugarexcetoParisouLondres.OdiretoramericanodaEscolaHebraicadeArqueologia,no lado israelense,contou-mequeosamericanosse reuniramcomasautoridadesárabesnoedifícioneutrodasNaçõesUnidasa fimdepedirpermissãoparaosestudiosos estrangeiros utilizarem a biblioteca da École Biblique jordaniana. Tal permissão foinegada,mas pela primeira vez—assim esperamos—estudiosos israelenses e gentios finalmentepodemexaminartodooconjuntodosmanuscritos,discuti-losereunirsuasconclusões.aDormition(emfrancêsnooriginal):nateologiacatólicaotermodesignaoúltimosonodaVirgemMaria,duranteoqualocorreusuaAssunção.(N.T.)

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AGUERRADEJUNHOEOROLODOTEMPLO

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QuandoentraramnaVelhaJerusalém,em5dejunhode1967,osisraelensesconstataramqueosdefensoresjordanianosestavamusandocomofortalezaoMuseuArqueológicodaPalestina,ondese haviam guardado e estudado os últimos lotes de manuscritos. O museu era um dos objetivosbásicosdas forçasde Israel,quenão tiveramgrandedificuldadeemcapturá-lo;em6de junho,aomeio-dia,içaramalisuabandeiraazulebranca.Em12dejunho,doisdiasapósocessar-fogo,odr.William G. Dever, da Escola Arqueológica Hebraica, na Jerusalém israelense, foi ao museu;encontrou o prédio todo marcado de balas e a torre, que fora usada pela artilharia, seriamentedanificada. No interior os mostradores e vitrines estavam despedaçados; o material exposto seespalharapelochão,algumaspeçasquebradas.Haviacorposdeváriossoldados israelensesdentrodoprédioenopátio.UmaplacanaentradaanunciavaqueagoraomuseueradoEstadodeIsrael.Aprincípio não se encontraram os manuscritos e pensou-se que não estavam mais ali; depois, noentanto, foramdescobertosnumcofrenaparede,atrásdeummostrador.Fez-seuminventáriodosfragmentos, que tinham sido reunidos pelos estudiosos e colocados entre placas de vidro, eaparentemente só faltavamas tiras dos rolos de cobre, desdemuito enviadas paraAmã, capital daJordânia.

Essemuseufoiconstruídoem1929comdinheirodeRockefeller.Duranteomandatobritânicofoi administrado pelo governo do mandato, porém quanto este terminou, em 1948, comoconsequênciadaprimeiraguerraentreárabesejudeusedaproclamaçãodoEstadodeIsrael,assumiusuadireçãoumajuntainternacionaldecuradores.TalvezincitadosaemularoSantuáriodoLivrodonovoMuseuNacionaldeIsraeleanimadoscomaofertadeumadoação,em1965essescuradorespropuseramconstruir-seumaalaespecialparaosmanuscritosepediramaogovernojordanianoquelhes vendesse um terreno atrás do museu. O resultado disso foi que, através de seu principalrepresentante na junta de curadores, o governo da Jordânia exigiu de repente a nacionalização domuseu. Os embaixadores americano e britânico não levantaram objeções, embora os estudiososestrangeiros ficassem muito inquietos, e em novembro de 1966 a nacionalização ocorreu. Osjordanianos transferiram seus títulos — menos de meio milhão de dólares — de um banco deLondres para umbancodeAmã.Os estudiosos estavamperplexos.Agoramanuscritos pertenciamaos jordanianos, que sequer conseguiam lê-los, e decidiu-se nãopermitir a publicaçãode nenhummanuscrito sem que os estudiosos estrangeiros tivessem levantado uma grande soma de dinheiropara reembolsaromuseudosgastosque tiveraaocomprardosbeduínosos rolosencontradosnacavernaonze.Assim se financiou apermissãopara lançar-seo rolodosSalmos—oúnicodessacavernaatéagorapublicado—,earicasenhoraqueforneceuodinheironãosedeixouconvenceracontribuir comumaquantiamaior porque, agoraqueoMuseudaPalestinapertencia à Jordânia eportanto não era mais uma instituição americana como fora a American School, tal doação nãopoderiaserdeduzidadeseuimpostoderenda.EmJerusalémtiveaimpressãodequetodooprocessoestavaparado.Sabia-sequefaltavacompraroutrosmanuscritos,masnãohaviacomochegaratéeles.Se descobrissem seu paradeiro, as autoridades poderiam simplesmente confiscá-los e colocar nacadeiaseudetentor,demodoqueesteúltimonãosesentianemumpoucoestimuladoaoferecerosmanuscritos. E correu um boato, talvez infundado, de que algumas peças domuseu apareceram àvendaemlojasdeantiguidades.OsestudiososnãopodiamtercertezadequenovosmanuscritosnãoestivessemsendovendidosforadaJordânia.Acapturadomuseucolocanasmãosdosisralensesosrolosquealijáseencontram,porémorancordosárabesaumentaoperigodequeosbeduínosnãolhespermitamcomprarnenhumqueaindanãoforaadquirido.

AguerranãodanificouseriamentenemaÉcoleBiblique,nemaAmericanSchool.Nasegunda-feira,5dejunho,oprimeirodiadoconflito,opadreDeVauxlianabibliotecaquandoumabombaexplodiudoladodeforaedespedaçouasvidraças.Todososfuncionárioscorreramparaoporão;namanhã seguinte chegaram os soldados israelenses e os tiraram dali sob a mira de suas armas.

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Fizeramtodososjordanianosprisioneiros,masdeixaramqueospadresfossemparaseusrespectivosquartos com a condição de que dois deles, revezando-se a cada hora, ficassem sentados no pátiocomoreféns.Disseram-lhesqueseriamexecutadosdeimediatoseumúnicotiropartissedoprédio.Instalarammetralhadorasnoterraçoenatorredomosteiro.Evidentementearazãodetudoissoeraque na manhã da segunda-feira os jordanianos haviam bombardeado a Jerusalém israelense,disparando de um terreno baldio vizinho à École Biblique. Consta que os sacerdotes aceitaram asituaçãosemprotestarnemseagitar, emboraela seapresentassenumaépocamuito imprópria.Osrestos do fundador da escola acabavam de chegar da França para ser enterrados no mosteiro, e,enquanto estavam sentados no pátio, os padres contavam histórias de seus primórdios.Na quarta-feira resolveram sedistrair pronunciandouma série de conferências—opadreBenoit, o diretor,falariasobreosReisMagos;opadreDeVaux,sobreAbraão—,masentãoobombardeiorecomeçoue se prolongou por uma hora emeia, durante a qual o terreno e o prédio— exceto a igreja domosteiro — foram consideravelmente castigados. Depois que a guerra terminou e o Museu daPalestinasetornoupropriedadedeIsrael,nãohaviamaisrazãoparatemerosárabesnotocanteaosmanuscritos; contudo os estudiosos estrangeiros que tanto trabalharam neles para a UniversidadeHebraica poderiam achar embaraçoso assumir o controle dos documentos e distribuí-los entrediferentes editores. Dizem que o padre De Vaux declarou que, se isso acontecesse, seria inútilpermaneceremJerusaléme,comojánãoeradiretordaescola,simplesmentevoltariaparaaFrança.Tranquilizou-odeimediatoumareuniãocomoprofessorYigaelYadineodiretordoDepartamentodeAntiguidades do governo israelense.Combinou-se que todo o trabalho iniciado porDeVaux eseus colegas e pelos estudiosos que ele incumbira de editar osmanuscritos prosseguiria como senadativesseacontecido.AprincipalmudançanaqualYadininsistiureferia-seaotítulogeraldasériepublicadapelaClarendonPress,quedeveriapassardeDiscoveries in theJudaeandesertofJordan[Descobertasnodeserto jordanianodaJudeia]paraDiscoveries in theJudaeandesert [DescobertasnodesertodaJudeia].

QuantoàAmericanSchool,naqualeuficaraemmaio,seudiretoranual,odr.JohnH.Marks,dePrinceton,partiudetáxicomafamíliaàs11h25damanhãdasegunda-feira,assimquesedispararamos primeiros tiros. Por várias vezes osMarks se acharam sob fogo cruzado e viram a cúpula daigrejadaDormition“envoltanumanuvemdeescombros”,aoseratingidaporumabombajordaniana(essaigreja,queosisraelensesestavamusandocomopostomilitar,situa-sepoucoalémdafronteira,emIsrael,econstaquedaliocorpodeMariateriasidolevadoparaoCéu).OsMarkschegaramaoaeroporto de Amã, porém encontraram-no fechado, com os funcionários fugindo. Os israelensesestavamprestesabombardeá-lo,eseguiram-seváriosataquesaéreoscontraacidade,oquelevouosMarksaumaboatetransformadaemabrigo.NofimelesconseguiramirparaAtenas,comescalaemTeerã.OconsuladodosEstadosUnidosnaJerusalémjordanianafoibombardeado,eseusocupantesse refugiaramnoprédiodaAmericanSchool.QuandosaídaJordânia,esseprédioestavaparaservendido a um xeque que representava o governo jordaniano. Os jordanianos reclamavam de suaisençãodeimpostosequeriam-noparaabrigarrepartiçõespúblicas,jáqueoedifícioselocalizavaquase em frente à sede do governo. O preço seria 1 milhão de dólares, e na época o dr. Marksacreditava ter quase fechado o negócio, depois de reuniões desnecessariamente sigilosas, quandorecebeu um cheque pós-datado cujo valor correspondia à sétima parte daquela soma.O banco deAmãdevolveuocheque,dizendoqueacontanãoexistia.OadvogadodaAmericanSchoolembargoualgunsbensdoxequepararessarciraescoladasdespesas.AAmericanSchoolenviouumacartaaoxequeexpressandosuaindignaçãocomochequefalsoerecebeuessadeliciosaresposta:“UmavezqueosEstadosUnidosdeclararamnaassembleiadasNaçõesUnidas,emmaio,quedecidiramopor--se aosEstadosÁrabesUnidos e apoiar Israel, o pagamentodemeu cheque [...] é algo, emminhaopinião,doqualodesfechopodenãoserconfiável”.

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Menos de duas semanas após a partida dosMarks o novo diretor anual chegou à AmericanSchoolefoirecebidoporOmar,ocozinheiro,quetrabalhavaalihaviaanoseexplicaraaossoldadosisraelensesqueaescolaerapropriedadeamericanaenãopodiammexeremnada.Aescolacontinuoufuncionando como antes, e devo a seus boletins e cartas amaior parte das informações sobre osacontecimentosnarradosacima.

Fazia sete anos que o professorYigaelYadin sabia da existência de outromanuscrito que seencontravanasmãosdosírioKando,aoqualosbeduínoslevaramoprimeirolotedepergaminhos,em1947.Kandoerasapateiroecompraraasvelhaspeçasdecouroporqueachouquelhepoderiamser úteis em seu trabalho. Depois disso, como já expliquei, atuou como intermediário entre osbeduínoseosestudiosos.Totalmenteignorante,éummestredaespertezaetemenriquecidoreunindoevendendomanuscritos.NumartigosobreonovopergaminhoYadindeclara:

Neste estágio não posso revelar a forma como tal manuscrito chegou a nossas mãos, poiscolocaria em risco as oportunidades de adquirirmos outros; basta dizer que essa história,quandofornarrada,pareceráumcontodasMileumanoites.

TudoquesabemosdeoutrasfonteséqueosisraelensesagarraramKandoeolevaramparaTelAviv,ondeosapateiroficoucincodiasemprisãodomiciliarefoi“interrogado”,segundoconsta;eque Yadin recebeu o manuscrito procedente do território recém-invadido. Kando pedira pelodocumento1,3milhãodedólareseoretiveranaesperançadequealgumocidentalricoocomprasse;YadinacreditaqueseteanosdoclimaúmidodeBelémdanificaramopergaminhomaisqueosdoismilêniospassadosnumacavernadomarMorto.Quandoorolochegouasuasmãos,contaYadin,apartesuperiorpareciachocolatederretidoeosvermestinhampenetradonascamadasexternas.Diz-se que Kando está processando o Estado de Israel por haver infringido uma lei jordaniana queconfere ao Museu da Palestina o direito de comprar qualquer manuscrito encontrado no país.Contudoagoraomuseuseencontraempoderdosisraelenses,assimcomoamargemocidentaldoJordão,ondeKandomora.Aindanãosedefiniuasituaçãodessaárea,masparecequeapossibilidadedeKando recuperar seu pergaminhoou receber a indenização exigida é tão remota quanto a de aAmericanSchoolserressarcidadasdespesasqueteveaonegociaravendadeseusprédios.

Essemanuscritoéumdocumentosingular.Éomaislongodetodosqueforamencontradosatéagora—tem1,20metromaisqueorolocompletodeIsaías,descobertonacavernaum—,eYadindiz que seu pergaminho é o mais fino que ele já viu: menos de um décimo de milímetro. Estãointactos 65 a 70% do texto. Sua linguagem indica que foi escrito na última parte do período doSegundo Templo — ou seja, no século i a.C. — e copiado talvez um pouco depois. O autorevidentemente eramembro da seita, pois segue o calendário especial dos essênios e, ao criticar apráticadoTemplo,temumaênfasedapolêmicasectária.

Oaspectomaisextraordináriodorolo,queotornaúnicoentreostextosreligiososhebraicos,équepassaporumamensagemcomunicadanãoatravésdeumprofetaesimdiretamenteporDeus,oqualfalanaprimeirapessoa,mesmoquandocitaSuasdeclaraçõescontidasnaToráereferindo-seaSimesmoporSeunomeimpronunciável,quenãotentadisfarçar,comoocorreemoutroslivrosnãobíblicosdaseita,queografamemcaractereshebraicosantigosouindicam-noapenasporyodhs.OautorpareceacreditarqueDeusfaladiretamenteaMoisés—acrescentando,narealidade,umnovolivroàTorá.Estabelecenormas relativas a limpezae sujeira, citandocom frequência aTorá,mascomacréscimoseomissõesdotextoaceito;enumeraossacrifícioseoferendasadequadasàsfestas,celebradas conforme o calendário dos essênios; e regulamenta os serviços do Templo. Quase a

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metadedodocumentoseocupadeplanosparaaconstruçãodoTemplo—razãopelaqualYadinodenominou o rolo do Templo —, e muitos detalhes diferem do que sabemos sobre o SegundoTemplonaformacomoHerodesoremodelou.Contudonãosetratadeumtemploilusório,previstopara“oFimdosTempos”,esimdeumumtemploconcretoaseredificadopeloshomens.Pensou-seaté no problema dos banheiros. Não deviam ser construídos muito alto, pois ficariam à vista—assim,nãopodiamsituar-senemalestedomontedasOliveiras,nemaoeste,porqueosconstantesventosoestesopravamnadireçãodoTemplo.Seulugaréa1350metrosaonortedoprédiosagrado,ouseja,apequenadistânciadolocaldaPortaMandelbaum,hojedestruída,ebempróximodaatualAmericanSchool.OTemplo compreenderia três pátios, umdentro do outro, tendoo exterior e ointermediário doze portas para as Doze Tribos, conforme as especificações de Ezequiel e doApocalipseparaasportasdeJerusalém.EmiCrônicas28DavientregaaSalomãoosplanosdivinosparaaconstruçãodoTemplo:“Todasestascoisas,disseorei,meforamdadasescritaspelamãodeDeus,paraqueeucompreendessetodasasobrasdodesenho”.YadinacreditaqueorolodoTemploconstituiuumatentativadeespecificarnessedocumentooquenãoseencontranasEscrituras,oqueDeusentregouaDavieeste,porsuavez,passouaofilho,oqualefetivamenteconstruiuoprimeiroTemplo.NaverdadeparecequeoTalmudepalestinocontémumareferênciaaesserolo.

Outra parte domanuscrito trata dos Estatutos do Rei. Achomelhor deixarYadin descrevê-locomsuasprópriaspalavras:

EmboraseiniciecomumacitaçãodiretadeDeuteronômio17:14ss[“Quandotiveresentradonaterra,queoSenhor,teuDeus,tedará,etiverestomadopossedela,enelahabitaresedisseres:Euconstituirei um rei sobremim, como o têm todas as nações em roda, elegerás aquele que oSenhor, teuDeus, tiverescolhidodonúmerode teus irmãos”] [...],passade imediatoaosdoisassuntosquemaisinteressamaoautor:aguardarealeosplanosdemobilização—faseafase—queosoberanodeveconcretizarquandoa“terradeIsrael”sedepararcomaameaçadeumaguerradeextermínio.Segundonossoautor,Deusestabelecequeaguardarealcompreenda12milsoldados—milportribo.Taissoldadosnãopodemtermácula,esimdevemser“homensdaverdade, tementesaDeus,avessosaoganhoinjusto’’.AlgumasexpressõeseprincípiossãoemprestadosdeÊxodo18,porémoquenosinteressasãoosacréscimosquerefletemasituaçãopolíticadaépoca.Oprincipalobjetivodessaguardaéprotegerorei“diaenoite,paraqueelenão caia nasmãos dos gentios”.Omedo dos gentios predomina nessa parte.Alhures o roloprescreve apenademorteparaquem trair opovode Israel e passar informação ao inimigo.Todaviaapartemaisinteressante—tambémdopontodevistahistórico—refere-seàsfasesdemobilização. Ao perceber que um inimigo deseja “tomar tudo que pertence a Israel”, o reimobilizará um décimo das forças nacionais. Se o contingente inimigo for maior, o reiconvocaráumquintodesuasforças.Seoinimigosurgir“comseureieseuscarrosegrandemultidão”, um terço das forças serámobilizado; dois terços permanecerão no país a fim deproteger suas fronteiras e cidades e impedir que “um grupo de inimigos penetre na pátria”.Entretanto, se“abatalha for renhida”,o reidevemobilizarametadeda força total e“aoutrametadepermaneceránascidades”afimdedefendê--las.Tendolidoessasregrasimediatamenteapósaguerra,nãopudedeixardecomentarnaépocaquealiestavaumaexcelentedescriçãodasfasesdemobilizaçãoqueprecederamaGuerradosSeisDiasemIsrael.OparaleloentreoqueoroloprescreveparaamobilizaçãodiantedoextermíniototaleoquedefatoaconteceuemIsraelduassemanasantesdaguerraéfantástico.Estaé,naturalmente,umareaçãopessoalesubjetiva;aimportância real dessa parte está no fato de que reflete os verdadeiros problemas políticos ehistóricos com os quais a antiga Israel se defrontava quando o rolo foi escrito. Tais normasdiferembasicamentedasdorolodaGuerradosFilhosdaLuzContraosFilhosdasTrevas.Este

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último trataexclusivamentedaguerraescatológicaofensiva, enquantoaqui temosumaguerradefensivacontrauminimigoinominado.

Yadinvê tambémum significado, um símbolodo renascimento de Israel no aparecimentodoapocalípticorolodaGuerradosessêniosquase2milanosdepoiseemmeioàprimeiraguerraárabe,quandoseupaifoiaBelémereconheceuaautenticidadedoprimeirolotedemanuscritos.EmminhaopiniãoessamisturamilenardehistóriaantigaemodernafazdeIsraelumlugardeinteresseúnicoedeestimulanteinspiração.Osjudeusantigosnãotinhamumsentidorealdotempocomotemoshoje.Seus verbos não possuem tempos, mas “aspectos”. Alguns desses aspectos são usados atualmentepara indicaro tempo;contudovisitaramoderna Israeleveroqueestáacontecendoaliequivaleasentir-se em parte liberado das estreitas constrições do jornal de hoje e de ontem e, elevando-seacimadosanos,comsuascatástrofesesuasidasevindas,entraremcontatocomumadasmaioresforçashumanasnotocanteàtenacidadeeàautoridadedenossaraça.

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REFLEXÕESGERAIS

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QualéofascínioqueessatãomutiladabibliotecadomarMortoexercesobrenós,levando-nosa tatear com extrema atenção entre os fragmentos de velhos pergaminhos escritos há quase 2milanoseaespecularsobreasdiferençasdedoutrinaentreantigasseitascujomododepensareramuitodiversodonossoeatecerteiaseteiasdeteoriasapartirdepassagensincompletasouapagadasafimde descobrir quem as compôs e que situações as provocaram?Se oVelho e oNovoTestamentosrepresentamaRevelaçãoDivina,taisinvestigaçõesnãotêmimportância.Seelessãoobrapuramentehumana,entãoéacuriosidadehumanaquenosimpeleainvestigarcomoforamescritosequalésuarelação com um culto de imenso prestígio. Sei que os clérigos mais liberais diriam que taisdocumentos ocupavam em sua época uma espécie de posição intermediária entre o judaísmo e oNovoTestamento;queJesuseosprofetasmaisantigoseramverdadeirosporta-vozesdeDeuseporissomesmopodemserestudadosemseuspapéishumanoscommaiorinteresseainda.Entretantoessaposiçãolevantaproblemasteológicosquenãoqueroabordaraqui.Queroapenasexporopontodevista a partir do qual tenho escrito sobre esse assunto. Descobri que por temperamento e pormentalidadesouumredutor inatodemitos.EmmeuslivrossobreosocialismomarxistaesobreaGuerraCivil,achoquedeiníciomeatraíramointeressedramáticodascriseshistóricasenvolvidaseo idealismoaprimoradorque tantonumquantonoutradesempenhou importantepapel,masdepoisqueosestudeieefetivamenteescreviarespeitopercebi,comoinveteradoredutordemitos,queemcertamedidasolapeiaspretensões idealísticasdeambos.Emmeus textossobreosmanuscritosdomarMortodesempenheiumafunçãomeiosemelhantenotocanteaomitodasorigensdocristianismo— embora não seja o primeiro nessa área, obviamente. Era inevitável que os estudiosos que têmtrabalhado com os manuscritos e me forneceram informações já tivessem desempenhado essafunção. Desempenharam-na às vezes sem querer; todavia agora, conquanto a maioria dessesestudiosos ainda tenham ou comecem a ter alguns compromissos religiosos, percebi que seuscompromissos com as religiões oficiais tornam-se cada vez menos um empecilho e que elesapresentamsuaspesquisasdemodomaisaberto,motivadosporuminteresseemdescobriroquedefato aconteceu em termos terrenamente inteligíveis—desejo pelo qual eu também, que sigo suasconclusõesemsegundamão,fuilevadoaescreversobreelas.EmAbuscadoJesushistórico,escritoantes da descoberta dos pergaminhos, Albert Schweitzer resumiu as várias tentativas dereconstituiçãoouexplicaçãodavidadeJesusenofimconcluiuquenãohaviamaneiradeconheceroJesushistórico,oqual“seráparanossaépocaumestranhoeumenigma”,poisé“umSernãosujeitoacondiçõestemporais”,masvemanóscomo“umgovernanteimperioso”,um“Desconhecido,semnome”,que“nosdizamesmapalavra:‘Segue-me!’enosencarregadastarefasquetemderealizarparanossaépoca”etc.TodaviasemessaconcepçãodeJesusnãosepodeaceitartalpontodevista,eentendoqueatéparaoshomensdasvárias Igrejas se tornamaisdifícil aceitá-lo, agoraque temostantosdadosnovossobreahistóriadaprofeciajudaica.

Issonão significa, comoparecempensaralguns,queeu sejanecessariamente“antirreligioso”ou “anticlerical”. Sei muito bem que para aqueles que têm verdadeira vocação religiosa suastranscendênciaserevelaçõesreligiosassãotãoreaisquantoqualqueroutracoisadesuavida,defatopodemseratémaisreaisqueoresto.Aspesquisasdosestudiosossobreasorigensdesuasreligiõespodemlhesparecerinsignificantes.Osestudiososreúnemrelíquiashumanasdavidadosprofetasedos santos, porém não apreendem a grande luz de Deus. Nunca tive essa visão da luz de Deus,nenhummomentodeexaltaçãojamaisfezcomquemesentissepertodeDeus;contudoseiqueváriascriaturashumanassentiramissoemváriassituaçõeseemváriosambientesmundanos;assim,porquenãosepoderiaexperimentá-loatravésdaspalavrasefeitosdeJesuscontidosnoNovoTestamento?Ocultoda“razão”,tãodifundidonodecorrerdosúltimostrêsséculos,parece-meagoraumbecosemsaída.Oquechamamosderazãopodecontrolarnossospensamentoseatos,masnãoosorigina.Nãosoumetafísicoenãopossotentardescreveroqueacontecequandooartistaouocientistaqueafastou

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umproblema da cabeça ou nunca sequer o teve de repente percebe que a solução está ali—que,comoColeridge, agora possui as palavras que compõem a harmonia de “KublaKhan”, ou comoDescartes, deitado na cama, recebeu a revelação que lhe daria a chave do sistema da geometriaanalítica (ou seja, as linhas geométricas podem ser representadas por equações algébricas). Épossívelexplicaressesdoisprodutosintelectuaisemtermos“racionais”,porémoqueinspiraessesatos de criação?Derivamdeumpoder quenão “compreendemos”; e o crente chama tal poder deDeus. Não consigo aceitar a palavra Deus, porque sinto que envolve um mito. Parece-me quequalquertipodeDeusaceitodeveterumafaceantropomórfica,enãopossoaceitarcomoencarnaçãodeDeusorostodeJesus,quenãoconhecemosesópodemosimaginareidealizar,nemsuaspalavrasefeitos,dosquaistemosumavaganoçãoequecertamenteforamcondicionadospelascircunstânciasdeépocae localhistóricosedaspessoasqueos registraram.Sinto-memaisàvontadecomoélanvital de Henri Bergson ou o princípio de concreção no universo de A. N.Whitehead. E todaviaexistemnaliteraturapassagensbaseadasnateologiacristãquemecomoverameimpressionaram:oclímax no final de Dante, quando ele diz que não pode descrever a iluminação da Visão Divina,porquelhefugiudamenteenuncamaisconseguirácaptá-ladenovo,quesóépossívelcompará-laàquadraturadocírculoeregistrá-lacomonossaimagemhumanaunificadadealgummodocomaLuzEterna;oúltimopoemadeDr.Jivago,emqueJesus,apósaagonianoGetsêmani,traídoporumdeseusdiscípulos e com todas as forçasda sociedadevoltadas contra ele, predizque se levantarádenovoparajulgarosséculosque,comobalsasnumrio,“comoasbarcaçasdeumacaravana”rumarãoparaele,saindodaescuridão.

E contudo, quando percebemos a presteza com que os seres humanos se dispõem a aceitarlíderes“carismáticos”,nãopodemosdeixardesentircertodesprezo.Quandofoicolonizada,nofinaldoséculoxviii,aregiãosetentrionaldoestadodeNovaYorkrecebeuumapopulaçãoqueprovinhasobretudodaNovaInglaterraeque,aoganharoimensocampoaberto,renegouateologiarestritivadocalvinismodeseuspais.Noentantoessagenteprecisavadereligiãoelogoinventounovoscultos.Surgiram o perfeccionismo da Comunidade deOneida,a fundada por John Humphrey Noyes, queacreditava que o Segundo Advento já havia ocorrido; os Shakersb de madre Ann Lee, que seconsideravaumareencarnaçãodeCristo;eosseguidoresdeJemimaWilkinson,quetambémsediziareencarnação de Cristo e anunciou que nunca morreria. Dentre esses cultos o mais poderoso eduradourofoi,porém,omormonismodeJosephSmith,queseoriginounacidadedePalmyra,aonortedoslagosFinger.Éestranholerumrelatodocumentadoehonesto—oúnicoexistente,creioeu—dosurgimentodessanovareligiãonabiografiadeJosephSmith,intituladaNomanknowsmyhistory [Ninguémconheceminhahistória],deFawnM.Brodie,quecresceunumvilarejomórmonentre as lendasde acontecimentosmiraculosos e soboministério deSmith, o profeta, e quemaistardenavidaseincumbiudeaveriguaroquedefatoocorreraemtodooabsurdoeoescândalodaseita. Aqui vemos progredir bem diante do nariz, em nosso conhecido Oeste americano e já noséculoXIX,ocultodeumtrapaceiro,charlatão,libertinoinescrupulosoeinsaciável;ebaseadanestevemos estabelecer-se uma Igreja sólida e respeitável, que agora floresce com edifícios sagradosenormes e feios, umTabernáculo e umTemplo, seu sistema educacional específico e seu serviçomissionáriointernacional,tendocomofundamentososescritosfraudulentoseabsurdosealendadeJosephSmith,omártir,bemcomoaadministraçãohábileadisciplinaimpostasporBrighamYoung,sucessordeSmith.

Nascidoem1805,aosdezanosde idadeJosephSmithfoi levadodeVermontparaonortedoestado de Nova York. Segundo documentos não mórmons citados por Brodie, os vizinhos oconsideravamummeninomentirosoebriguento,quegostavadecontarfaçanhasdemágicaebuscade tesouros enterrados.Aos21 anosSmith seviuprocessado como“desordeiro e impostor”.Nãoobstanteerasimpáticoemuitoimaginativo.Umdeseusconcidadãos,queajudouamontarostipos

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paraimprimiroLivrodosMórmons,disseaseurespeito:

Nunca vi um homem tão ignorante como Joe possuir uma imaginação tão fértil. Ele jamaisconseguia contar um fato corriqueiro de seu cotidiano sem embelezar a história com suaimaginação;noentantomelembrodetê-lovistoaflitonodiaemqueParsonReedlhefalouqueiaparaoInfernoporcausadesuasmentiras.

O jovemJosephSmith interessou-sepelos túmulosdos índiose, semsaberdoque se tratava,inventouqueali se travaraumagrandeguerranaqualmuitosmorreram.Aos22anos contouqueDeusenviouumanjovestidonuma“túnicadomaispuroalvor”echamadoMoroniparaentregar-lheumlivrosagradoderevelaçãoescritoemlâminasdeouro.Dissequeencontrouessaslâminasnumrecipiente de pedra, onde achou ainda uma espada e um peitoral, aos quais estavam presos osmisteriososurimetumimccontidosnaArca.Aprincípionãodeixavaninguémveraslâminas—issosignificariamorteimediata,explicava.Afirmavaqueesselivroresolviaoproblemadaorigemdosíndios.AprincípiohouvenaAméricaduasraçasquelutaramentresidurantemilanos,eostúmuloserammonumentos erguidos a suas batalhas.Smith contavaqueditara o conteúdodo livro semaomenos desembrulhar as lâminas.Depois colocou umbiombo entre ele e a pessoa que tomava seuditadoecontouqueoanjoMoronilhederaunsóculosquelhepermitiramtraduziraslâminasdoquedenominou“egípcioreformado”.(Aindanãosehaviamdecifradooshieróglifos.)Tentoucomprovarsuahistóriaapresentandooquedisseseremastaislâminassagradas,cujotextonãopassavadeumamontoadodedisparates,segundoumprofessordeletrasclássicasdeColumbia:

Caracteresgregosehebraicos,cruzese floreios,caracteres romanos invertidosou inclinadosestavam dispostos em colunas perpendiculares, e o conjunto terminava numa grosseiradelineaçãodeumcírculodivididoemvárioscompartimentos,adornadoscomdiversasmarcasestranhaseevidentementecopiadodeumcalendáriomexicanodeHumboldt,porémcopiadodetalmodoquenãotraísseafontedequeprovinha.

A “tradução” é umamiscelânia de disparates, as únicas passagens que possuem alguma dignidadetendo sido emprestadas da Bíblia do rei Jaime e cuidadosamente alteradas a fim de pareceremdistintas. (Quando falei num artigo para a revistaNew Yorker que Joseph Smith havia “ditado” oLivrodosMórmons,ogabineteoficialdaseitaaoqualforasubmetidootextoinsistiuparaqueeumudasse o termo para “traduzido”.) Segundo o Livro dos Mórmons, o profeta Lehi viaja deJerusalém à América em barcaças que contêm exemplares de todas as espécies animais entãoexistentes no continente norte-americano, inclusive várias que foram na verdade importadas peloseuropeus,comocavalos,porcosecarneiros.QuandopergunteiaoDepartamentodeInformaçãodoJosephSmithMemorial, emPalmyra, onde se encontravamnomomento as lâminas da revelação,disseram-mequeforamlevadasdevoltaparaoCéu.

MartinHarris,umfazendeiroabastadoquepassarajáporváriasseitas, tornou-seummórmonfervoroso.Testemunhou—eaquicitoBrodie—que

viuJesussobaformadeumcervoejuntoscaminharamtrêsoucincoquilômetros,conversandocomamesmaintimidadecomquedoishomensconversam:odiabo,disse,pareciaumasno,depelos muito curtos e lisos como os de um camundongo. Ele profetizou que Palmyra seriadestruídaem1836equeem1838aIgrejadeJosephseriatãograndequeosEstadosUnidosnãoteriamnecessidadedeumpresidente.

OutrasvisõesocorreramnoestadodeNovaYork.Trêsforasteirosdesconhecidosararamumcampo

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à noite e espalharam fertilizante em outro campo. Um velho de barba branca apareceu para umafazendeira que ordenhava uma vaca e disse-lhe que estava cansada e que ele tinha vindo parafortalecersuafé.

Conta-sequeJosephSmithexpulsouodemôniodeumhomemquedesdejovemeraoquehojeemdiachamamosdeneuróticoe,comoeracomumnessaépoca,estavaobcecadocomsuasalvação.Em1830Smith fundou uma Igreja com seismembros, que ao cabo de ummês já eramquarenta.Continuava tendomá reputaçãoentreosquenãoseconverteram.Foiatacadopelamultidão,presoduas vezes e duas vezes absolvido. Identificava-se com os mártires cristãos. Como os autores dealgunsdocumentosdomarMorto,passouafalarsobreaconstruçãodeumanovaJerusalém.Envioumissionários a um evangelista de Ohio que em Kirtland, a pequena distância de Cleveland,estabeleceraumacomunidadeequasedeimediatoseconverteuaoevangelhodoLivrodosMórmons.OpróprioSmithmudou-separaKirtland,afronteiraorientaldaTerraPrometida,conformedisseaseusseguidores.Converteumaispessoas,quesejuntaramaele,eomormonismoseimpregnoudomilenarismo vigente — herança da profecia judaica — que, na primeira metade do século xx,impulsionou tantas seitas americanas. Joseph Smith ordenou sumos sacerdotes e designou dozediscípulos.Nãomereceuconfiançaemsuaspretensõesde realizarmilagres:constaquecurouumamulher que tinha um braço paralisado; porém outras tentativas de cura fracassaram, e, quandodesafiadoporumpregadorcampbellita,desquivou-seperguntandoseessecéticopreferiateramãoseca ou ficar cego e mudo. Explicou que Ohio não era território consagrado e, portanto, nãofavoreciaarealizaçãodemilagres;depoisdebesuntadodealcatrãoeespancadoemOhio,instalou-senaprogressistaIndependence,noMissouri,ondefundouumaCidadeSanta,lançandoapedraangulardeumtemplo.Persuadiumuitosdeseusconvertidosadoardinheiroparaomovimentoetransferirpropriedadesparasuaigreja.

Osmórmons foram perseguidos em toda parte. Criaram emKirtland um banco fictício, quediziamserpatrocinadoporDeuseparaoqualSmithfaziaempréstimosousados.Nocofredobancohavia várias caixas, cada uma comum rótulo demil dólares e todas contendo, na verdade, pedra,areiaeferrovelhosobumacamadadeautênticasmoedasdepratanovalordemeiodólar.Quandooscredorescomeçaramapressionar,obancopassouaproduzirnovasnotasqueàsvezestrocavapordinheiroreal.Masafraudulênciaacabouseevidenciandodemaneirainequívoca,eosmórmonsseviramcobertosdeprocessos,edecretou-seaprisãodeSmith.AseitaprecisousedeslocarsempremaisparaoOeste,eem1844,aos39anosdeidade,SmithfoimortoatirosnumacadeiadeIllinois,onde se encontrava por haver incendiado a gráfica de um jornal hostil. Naturalmente a lendatransformou em martírios todos esses infortúnios. Claro está que Joseph Smith possuía algo domagnetismopessoal, do poder hipnótico que sugeremo sobrenatural e aos quais sua biógrafa, derestoimplacável,nãoétotalmenteinsensível.Eletinhaumavitalidadeintensaeinabalável,umcalorsimpáticoeconvincente.Eraparticularmentepersuasivocomasmulheres,e,segundoBrodie,foiseudesejodeirparaacamacomqualquerumaqueoatraísse,inclusivecomasesposasdeseuscolegas,queinspirouapolíticadapoligamia—umapráticaquecontribuiumuitoparaaimpopularidadedosmórmonsequeempúblicoSmithsemprenegou.EmgrandepartedotempoJosephSmithdevetervividonumafantasiamegalomaníaca.Contudoeraumimpostorconscienteedecidido,queumavezsereferiuaseusseguidorescomo“tolos”.ApósseuassassinatoemIllinois,BrighamYounglevouseusadeptosparaodespovoadoDeseret,comoUtahsechamavaentão,ondeesselacaiomaisespertoe prático estabeleceu a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias sob a forma de umacomunidadeautocontidaeestável.

PertodePalmyraergueu-seumaltoobeliscodegranitoemhomenagemàrevelaçãodeJosephSmith.Talmonumentoéobradeumescultornorueguêsqueseconverteuaomormonismoemsuapátria. No topo, uma estátua do anjo Moroni levanta o braço direito para o céu e sob o braço

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esquerdoseguraaslâminasdoLivro.OobeliscorepresentaogranderaiodeluzqueapareceuparaJosephSmithnumbosquedasredondezaseosdesenhossobreeletraçadossimbolizamaestruturadaadministração da Igreja mórmon. Em três lados da base há placas que mostram Joseph Smithrecebendo as lâminas do anjo; as Três Testemunhas que mais tarde tiveram o privilégio decontemplaraslâminaseoanjo;easOitoTestemunhasqueaindamaistardevirameseguraramaslâminas—emboradissessemqueaprincípio,quandoseabriuacaixa,estalhespareceuvaziaatéqueSmithasexortouaajoelharem-seerezarparapedirmaisfé.Emdeferênciaaoanjo,astrêsprimeirastestemunhas apresentam-se de pé, com o chapéu de palha na mão. Eram importantíssimas paraconfirmarahistóriadeSmith,queasinduziuaassinarumadeclaraçãodequeelechamaraoanjoasua presença. O cume da “colina Cumorah”, como os mórmons biblicamente a denominam,erguendo-sebemaltoe íngremesobreoscampos,nofinaldacunhaondesesituaomonumentoaMoroni,dominaumavistamagníficadaplaníciehojecultivada,epercebe-sequepoderiaestimularum menino imaginativo, de pouca instrução e pouca leitura além da Bíblia, a assumir um papelsinaítico e elaborar umavisãoprofética.Umdepartamentode informação exibegratuitamente aosvisitantesumfilmecoloridocomumapreleçãogravadasobrea infânciaeo“chamado”deJosephSmith e a viagem dosmórmons em carro de bois. Em agosto realiza-se na encosta da colina umgrandeespetáculocomtextoadaptadodoLivrodosMórmons.Umfolhetoqueanunciataleventonosinforma:

Tãorealistaéapantomima,bemcomootonitruantesistemadesomeailuminaçãointensa,queumcríticoescreveusobrea“Cenadadestruição”,clímaxdoespetáculo:“Aaçãoeratãorealistaque me vi sentado ali boquiaberto. Quando a cidade foi destruída [a cidade de Zarahemla,invenção do Livro dos Mórmons], reproduziram perfeitamente relâmpagos e trovões.Lançaram-se bombas de fumaça, uma luz colorida rasgou a escuridão, e os atoresmovimentaram-seecaíramcomoumamultidãoempânico.

Naturalmentenãocomparoaexpansãodomormonismoaoprogressodocristianismo,anãoserparailustrarainevitávelnecessidadequeohomemtemdealgumtipodeheróisobre--humano.Aquiahistória todaédesagradável;JosephSmithnadatemdesanto.Todaviaparaquemnãoécrente,comoeu,ofenômenomereceatençãocomoumexemplodessanecessidaderecorrente.Emseu romance Imaginary friends [Amigos imaginários]AlisonLurie apresentao surgimentodeumareligiãofictícia.Essaescritorasempreteveumtalentoespecialparacaptaraatmosfera,misturarosváriosingredientesdequalquermeionoqualmergulhou.RetratouaCalifórniameridional,umafaculdade da pequena elite da Nova Inglaterra e a Boston de Harvard e Cambridge com umafidelidadeaotomeàcor,aoonipresenteespíritodolocalqueéespantosaparaquemsempreesteveemcontatocomoslugaressobreosquaisLurieescreveu.SuamudançarecenteparaonoroestedeNovaYork resultounumlivro igualmenteextraordinárioquedramatizaoselementosda formaçãoreligiosaqueoutroraforamtãoativosnessaregião.Umsociólogoacadêmicotentaestudar,apartirde um ponto de vista rigorosamente científico, um exaltado grupo local que, dominado por umajovemclarividente,imaginaterestabelecidocontatocomseresdoespaçocósmico.Inspiraegovernatais seres uma divindade chamadaRo deVarna, e nummomento de grande expectativa, quando ogrupoaguardaachegadadeseusenhor,quevirádooutromundo,osociólogo,tomadopelailusãocoletiva,acreditaencarnarRo.Nofiméinternadonumsanatório,ondecontinuaaidentificar-secomessadivindadeeconvertealgunspacientes,aomesmotempoquedeclaraaumdeseusantigosalunosestarverificando, comosociólogo, a facilidadecomque se conquistaopoder em tal comunidade.Aqui Lurie descreveu em termos contemporâneos plausíveis a metamorfose de um líder comoJoseph Smith — e talvez também de Jesus como o Messias judeu, que, segundo os relatos do

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Evangelho, parece que em alguns momentos teve não as interrogações da psicologia moderna,porémcertasdúvidassobresuamissãodivinaesuaproteçãoceleste.

ÉpossívelimaginarquenummomentodeambiçãoeinspiraçãoalguémquecresceuacreditandonumaDivindadederepentesejulgueporta-vozdessaDivindade;noentanto,emboraeusempretentecompreenderosmotivosdascrençasalheias,procureentrarnacabeçadequemtemideiasdiferentesdasminhas,eemborapercebapelosmanuscritosdomarMortoqueopapeldeumMessiasjudeufoitenazmenteconstruídodeantemãoequeJesuspodetersidodesignadoparaessepapeleconcordadocomsuadesignação,nãoconsigomeidentificarcomocristãoqueacreditaqueJesuseranarealidadeo filhodeDeus, enviadopeloPaiCelesteparanos concederumaoportunidadede redimir nossospecados através da crença nomito de seu papel divino-humano. Por que nunca duvidaríamos quesomosgovernadosporumDeusquecriouumahumanidadetãofalívelquelogonoiníciojácontraiuoPecadoOriginalecometeucrimescujoperdãosóseriapossíveldepoisqueDeusgerouumfilhonumavirgemesacrificouessefilhoparanossalvar?Aosercrucificado,comoJesuspoderiaredimirospecadosdeseusmeios-irmãos?AideiadeagradaraDeuscomsacrifícioanimalouhumanoébemcomum;e seiqueépossível reconstituir, peloestudodeoutrasmitologias, todosos elementosdocristianismo. Mas como é possível, nos dias de hoje, convencer seres humanos a investir nessahistória?Parece-meumcontodefadas tãoabsurdocomooachouorabinoTrífonemseudiálogocom Justino, oMártir—conquanto Justino obviamente não pretendia nos fazer concordar comorabino—,comoomitogregodeZeusdescendosobreDânaesoba formadeumachuvadeouroparaconceberPerseu.Omáximoqueconsigoéentenderqueossentimentosdeculparesultantesdosesforçosimperfeitosparaseviverdeacordocomospadrõespráticosimpostospelasexigênciasdeumasociedadeespecíficaembenefíciodesuaviabilidadepodelevaralguémaimaginar-seperdoadopelorebentomeiohumanodeumaDivindade,quevênossasvidasdeumnívelsuperior—ouseja,parece-me que, elevando-nos em alguns momentos a um nível superior, tornamo-nos capazes deperdoaranósmesmos.Quantoaoresto,sóconsigoexplicaraforçadocristianismo,comoaforçadeoutrasreligiões,pelainocentecredulidadedaraçahumana.EissonãoénadadifícilparaquemviuStálineHitlerexaltadoscomoossalvadoresdesociedadesqueelesestavamconduzindoàservidãoouàruína.

***

EntretantoéprecisoestabelecerumadistinçãofundamentalentretiranoscomoStálineHitlereos fundadores das grandes religiões. Eles tocaram necessidades muito diferentes; é impossívelanalisar a trajetória e a personalidade deHerodes, “oGrande”, sem perceber as analogias com atrajetóriaeapersonalidadedeStálin;eéinteressantecompararopapeldeHerodesaodeJesus.

ComoStálin,Herodesnãotinhaomesmosanguedamaioriadeseusgovernadose,sabendoqueestava numa situação precária, esforçou-se para menoscabar suas origens — assim como ogeorgianoStálin não semostrou benevolente em relação às nacionalidadesminoritárias daUniãoSoviética,aumadasquaiseleprópriopertencia.OspaisdeHerodeseramedomitas,eosedomitasestavamentreosinimigoshereditáriosdosjudeus,seusvizinhos.Seureinãopermitiuqueosjudeusatravessassem seu território quando Moisés voltava do Egito; e mais tarde os edomitas foramsubjugados por Davi, cujo general, Joab, segundo Reis permaneceu seis meses no país a fim degarantiroextermíniodetodaapopulaçãomasculina.EdepoisRomaelevouHerodes.SeupaiforaprocuradordaJudeia,eHerodesforaprefeitodaGalileia.ApósocercoeadestruiçãodeJerusalém,defendidapeloúltimo rei judeu asmoniano,Herodesmandou executar esse asmoneu; emais tardeconvenceuAugusto a dar-lhe o trono da Judeia. Para isso foi a Roma, e durante sua ausência osgalileusserebelaramemataramseuirmãoJosé;eHerodesnuncapôdetercertezadequeopovonão

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seergueriacontraele tambémenãorestaurariaadinastiaasmoniana—assimcomoStálin,poucoinstruídoenadaviajado,sempreodiouetemeuosvelhosbolcheviquescosmopolitas,osquaismaistardeeliminousistematicamente.Acrônicadeintrigapalaciana,assassinatoemfamíliaeescândalosexual, registrada por Josefo, é complexa demais para resumi-la aqui.Um dado importante nessahistória é o casamento de Herodes com a princesa asmoniana Mariamne. Consta que Herodes aamava.Elaeranetadeumdosreisjudeuseespezinhavaasograeacunhadaporseuberçoedomitainferior. Ao ausentar-se numa visita oficial, Herodes confiou-a a um cunhado chamado José,incumbindo-o de matá-la se ele não voltasse. Entretanto José contou isso a Mariamne, e quandoretornou Herodes ficou sabendo de tudo e ainda ouviu de sua irmã que José fora amante de suaesposa.Joséfoiexecutado,porémMariamnecontinuouviva—atéque,depoisdemaisumaausência,o rei soube através damãe e da irmã que amulher pretendia envenená-lo e, instigado pela irmã,relutantemente mandou matarMariamne, que estava então com 28 anos de idade. Torturado peloremorso,adoeceuduranteumacaçadanaSamaria.Esperandoqueelemorresse, sua terrível sograasmonianatratoudeassegurarotronoparasimesma;quandoserecuperouevoltouàcorte,Herodestomouconhecimentode tudoemandouexecutara sogra também.Stálin igualmentesuspeitavadosparentesdaesposaqueelelevouaosuicídioeosaprisionououexilou.E,comoStálin,Herodessetornoucadavezmaisdesconfiado,cadavezmaisloucoemaligno.AmãedeMariamneoconvenceraatransformarseufilhodedezesseisanosemsumosacerdote;todavia,aodescobrirqueissoelevaraomoraldosjudeus,oreimandouafogarojovem,submergindo-onobanho,duranteumfestimemJericó.Agora os dois filhos que tivera comMariamnevoltaramde umaviagemaRoma e, sendoasmonianosporpartedamãe,conquistaramgrandepopularidadeentreosjudeus.Instigadopelopaieajudadopelatia,umfilhodeumcasamentoanteriordeHerodesforjoucartasearrancouconfissõesdeescravos torturadosparaproduzirprovasdequeseusmeios-irmãos tinhamplanossinistrosemrelação a Herodes. Ambos foram estrangulados. E o meio-irmão sobrevivente passou a tramar amorte do pai, o qual, ao saber disso, acorrentou-o no cárcere. Entrementes, já com seu podersolidificado,Herodesentrouemsua fasedeesplendor: investiugenerosamenteemobraspúblicas,reconstruiuaarrasadaSamaria—queAugustolhedera—,ergueubelostemplosemhomenagemaAugusto e empenhou-se em restaurar o Templo judaico em Jerusalém.No entanto não conseguiuapaziguar os judeus, pois aomesmo tempo que favorecia suas instituições impunha-lhes os jogosolímpicoseaslutasdegladiadorescomferas,queeramcoisasdepagãos.ContratoumercenáriosdaGermânia, Galácia e Trácia e reprimiu com extrema crueldade as conspirações contra ele. UnsjovensconduzidospordoismestresdaLeitentaramarrancarumaáguiaromanadaportadoTemplo,emJerusalém,eporcausadissoforamqueimadosvivos.NessaépocaopróprioHerodesliteralmentese decompunha em função de uma doença da qual Josefo nos dá uma descrição horripilante. Aosaber, através dosMagos, que o Rei dos Judeus acabara de nascer, Herodes ordenou omassacreimediato de todos osmeninos commenos de dois anos existentes emBelém e seus arredores—nossaúnicafonteabalizadadessahistóriaéoEvangelhodeMateus,maseisaíotipodecoisaqueotiranodaJudeiaandava fazendonessaépoca.Emdadomomento tentouosuicídio;depois,quandodescobriuqueseufilhoprisioneiroprocurarasubornarocarcereiroparaqueolibertasse,mandouexecutá-lo imediatamente.Temendoqueos judeusnãochorassemsuamorte, encerrounumaarenaalguns de seus homensmais ilustres e ordenou que osmatassem todos quando elemorresse. Noentanto sua irmãos libertouquandoHerodesde fatomorreu, cincodiasapósoassassinatode seufilho.

Existe alguma lei de polarização pela qual uma vida como a de Herodes, uma época comoaquelaemqueelefloresceudevamexigireoriginarseuoposto—detalmodoqueainsolênciadoedomita, tendopor trásasconquistasdeRoma,écompensadaemBelémpelonascimentodoJesusque, tendo por trás umDeus judaico abrandado, procura perdoar, declarar a irmandade humana e

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liberardaignomíniadacompetiçãocriminosaosirmãosenlouquecidos?Jáfaleidabelicosidadequedeve ter permanecido parcialmente latente nas prédicas atribuídas a Jesus; mas outra mensagemtambémestáaí,amensagemque,emboramitificada,seriatãoimportanteparaomundo.OreinadodeStálinnaRússia,aindamaisexterminadorcomseumodernoequipamentodedestruição,produziualgunsresultadosumpoucosemelhantes.BorisPasternak,opoetajudeu,criticouatradiçãodeseusancestrais por não ter conseguido aceitar Jesus e, para consternação dos sucessores de Stálin,apresentouemDoutorJivagoumagrandereafirmaçãodoquemuitosaindaacatamcomoprincípioscristãos. Svetlana Alliluyeva, filha de Stálin, rompeu com a União Soviética: repudiou o sistemamantido por seu pai e assumiu uma afiliação religiosa, fazendo-se batizar na proscrita Igrejaortodoxagrega.SvetlanasóleuolivrodePasternakquandooencontrounaSuíça,depoisdedeixaraRússia; então, descobrindo que suas disposições eram substancialmente idênticas às do escritor,comoveu-se e fortaleceu-se com a leitura. Isso não significa, obviamente, que todo tirano, todoperíododeestupidezebrutalidadeengendrouoidealdeumJesusCristo;noentantoparecequeemtaissituaçõesàsvezesseestimulaumacontratendênciaàharmonia,àtolerânciaeàpaz.Aspequenasunidadescomunistasautocontidasdosiníciosdoséculoxixpretendiamrealizaralgumacoisadessetipo.Ofatodeocomunismotersetornadoagoraonomeusadoparadesignarumgovernodespóticoeumapopulaçãoescravizada,damesmaformacomoacristandadefoionomeusadoparadesignarperseguiçõesfanáticaseguerrasexterminadoras,apenasmostraqueopolodestrutivosemprepodeseimpornovamente.

De qualquer modo é impressionante que, apesar das muitas discrepâncias e maravilhastaumatúrgicas existentes nos relatos sectários dos Evangelhos, apesar dos sinais manifestos dapressãodeacontecimentospolíticossobaocupaçãoromanaedarebeliãocontrapráticascorruptaseantiquadasprescriçõesoficiaisdopróprio judaísmo,nomomentodahistória judaicaemqueJesusviveu, o mito do semideus que tudo perdoa, sofre e redime tomasse forma após sua morte eperdurassepelosséculosseguintes,coexistindocomaquelenomedeJesuspeloqualsejustificaramtantoshorroreseódiosesemantiveramtantasdesuniões;queaindasejaalgorealparacertaspessoasexcepcionais—ecomsuasadmoestaçõesatormentemuitasoutras—quetentamadequarosprópriospensamentoseatosaesseobsessivoidealprojetadopelaimaginaçãohumana.

Asincertezaseasincoerências,aspalavrasobscuraseasinvocaçõesmísticascertamenteforamfatoresimportantesparaosucessodoNovoTestamento,porque,comonoscasosmaisrecentesdostextosdeNietzscheeMarxeEngels,prestam-seaumavariedadedeinterpretações.aComunidadedeOneida:sociedadedereligiososperfeccionistasfundadaem1848emOneida,estadodeNovaYork.JohnHumphreyNoyes,seufundador,acreditavaqueareformasocialeliminariaopecado.Acomunidadedissolveu-seereorganizou-seem1881comoempresacomercial.(N.T.)bShakers:membrosdaIgrejadoMilênio,fundadanaInglaterraemmeadosdoséculoxviiiequepreconizaocelibato,aseparaçãodossexos,apropriedadecomum,asimplicidadedevida.Onomepeloqualsetornaramconhecidosequesignificaliteralmente“tremedores”deve-seaocostumedeagitarem-seduranteoculto.EntreseusfundadoresfiguraAnnLee,queem1774implantouaseitanosEstadosUnidos.(N.T.)cParecequeurimeostumim,citadosemÊxodo28:30,eramobjetosdemetaloupedrapreciosa,cominscriçõesemsímbolo,queosumosacerdoteusavanopeitoralparadelestirar, comoauxíliodivino,asrespostasadequadasaobem-estardeseupovo.Etimologicamenteparecequeosdoistermossignificam“luzeintegridade”.(N.T.)dCampbellita:membrodaIgrejadosDiscípulosdeCristo,que,fundadanosEstadosUnidosporAlexanderCampbellnocomeçodoséculoxix,rejeitatodososcredos,temnaBíbliasuanormabásica,ministraobatismoporimersãoecelebraaCeiadoSenhoraosdomingos.(N.T.)

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APÊNDICE

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IncluíaquiumatrocadecorrespondênciacomapublicaçãoListener,deLondres,apropósitodeuma crítica anônima do livro de Millar Burrows sobre os manuscritos do mar Morto paraexemplificar o tipo de controvérsia existente nesse campo bíblico. Note-se o tom arrogante docrítico,quenuncachegarealmenteafundamentartodasassuasopiniões—enote-setambémminhavontadedeapoquentarumdesseseruditospretensiosos.

18deoutubrode1956

PrezadoSenhor.Creioquevaleapenacomentara resenhadeTheDeadseascrolls,deMillarBurrows,quesaiupublicadanaListener,apesardetersaídojáhábastantetempo,naediçãode16deagosto.Entendoquedeve serdifícil paraumeditordecidiroque fazer comesses livros sobreosmanuscritos.Trata-sedeumassuntonovo,emesmoentreespecialistasemsemíticopoucossãoosqueoabordaramcomalgumgraudeprofundidade.Oeditorpodenãosaberqueméespecialistaetenderáaentregaroúltimolivroaqualquerprofessorouclérigoquejulgueteralgumconhecimentodehebraico.Os resultados àsvezes são fantásticos.Ocríticopode sermuito incompetente,porémcomalgumasreferênciasdeareruditoquenaverdadenadasignificamconseguiráintimidaroleitor,paraoqualtodoocampodohebraicoéquasecomcertezaremotoeobscuro.Dissooexemplomaisnotávelatéagoraéa resenhado livrododr.BurrowspublicadanaListener.Docomeçoao fiméquasetodaumdisparate.

Talresenhaconsistedeseisparágrafos,apenasumdosquais,oterceiro,realmentetratadolivroemquestão.Esseparágrafodáumvagoresumodeseuconteúdo.

Quantoaoresto,oprimeiroparágrafotraçaumacomparação,desfavorávelparamim,entreoamploestudododr.Burrowsemeubrevelivrinhopopularsobreosmanuscritos.Esteúltimo,dizseucrítico,“foiprejudicadopelasdesastrosastentativasdefazersensacionalismocomalgunstextos,emespecialcomacópiadesãoMarcosdorolodeIsaías.SeusrudimentosdehebraicolheforneceramumabaseinsuficienteparalidarcomosproblemastextuaisdaschamadaspassagenscristológicasdeIsaías”. Quais foram essas tentativas de fazer sensacionalismo às quais meus recursos eraminadequados?Simplesmenteumareferênciaaumartigododr.W.H.Brownlee—noBulletinoftheAmericanSchoolsofOrientalResearch,132—sobreanovaleituradadanacópiadomosteirodesãoMarcosaIsaías52:11,noqualsugerequeogrupodecaracteresligeiramentedistintosdevaserlidocomo uma forma do verbo ungir, para que seja a frase “Assim ungi seu semblante”, em vez daininteligível“Seurostoestavatãodesfigurado”dotextomassorético.Isso,dizele,corresponderiaao“Assimespargirámuitasnações”,nocomeçodoversículoseguinte.

Nosegundoparágrafoseucríticoafirmaqueosestudiososamericanos,dosquaisfaziaparteodr.Burrows,quepublicaramoIsaíasdesãoMarcos“arbitrariamenteignoraramadiferençaentreomem (a letram) final e inicial oumedial, sem saber como essa era vital para calcular a idade domanuscrito”.Essaafirmaçãonão temomenorsentido.Oseditoresdapublicaçãoempauta—TheDeadseascrollsofst.Mark’smonastery,VolumeI[OsmanuscritosdomarMortodomosteirodesãoMarcos,Volumei]—nãotiveramoensejodelidarcomaquestãodomem.Excetuando-seumabreveapresentação, o livro consiste basicamente de reproduções fotográficas das colunas de doismanuscritoseumatranscriçãodostextos.Oproblemacomasduasformasdomeméqueocopistadesse rolode Isaíasnãoseguiu invariavelmenteapráticaqueseacabouadotandodeescreverumadessasformasnocomeçoenomeioeaoutranofimdaspalavras.

Seráqueocríticodoseditoresdessetextoestálamentandoofatodeelesnãoteremmantidoaincoerência ao transcrevê-lo em caracteres modernos? E por que acusa o dr. Burrows de haverignorado tal problema?O dr.Burrows discute-o longamente, comdesenhos das várias formas domem, no livro — páginas 91-4 — que o crítico estaria criticando. O dr. Burrows explica que,desejandoatribuiraosmanuscritosumadatamaisrecente,algunsestudiosostentarammostrarquea

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diferençaentreasduasformasaindanãoseestabeleceradefinitivamentenoséculoiid.C.eapresentaváriosargumentosquerefutamessa teoria.Seucríticonãoconcordacomele?Ouentãodoquesetrata?Edizsobreostextospublicados:“Houveaindaumaporçãodeerrosdetranscrição,dosquaisomais espantoso é, talvez, nethibhim em lugar de nethibhoth (Isaías 43:20)”. Em primeiro lugar areferência está errada: essa leitura ocorre em Isaías 43:19, e não 20. A questão aqui é que omanuscrito de sãoMarcos traz uma palavra que significa vereda em vez da que significa cursosconstantedaversãomassorética.Talpalavrapodesertantomasculina—nathibh—quantofeminina—nethibhah—,compluralnosdoisgênerosnethibhimenethibhoth.Bastamalgunsrudimentosdehebraico(comoosqueocríticomeatribui)paraolharomanuscrito (nabasedaLâminaxxxvidareprodução)everqueapalavrafoiborradadetalmodoquenãosepodedecifrarofinal.Oseditoresa transcreveram no masculino; porém depois um deles, John C. Trever, tirou outra foto dessapassagem com raios infravermelhos e concluiu que a palavra fora grafada na forma feminina(BulletinoftheAmericanSchoolsofOrientalResearch,121).Oqueháde“espantoso”nofatodenumestágioanteriorodr.Burrowster-sedecididopormemenãoportaw?SeuartigosobreomanuscritopublicadonoBulletindefevereirode1949mostraqueaprincípioeleoptarapor taw.Dequalquermodoatéhojeninguémtemmuitacerteza.

Noquartoparágrafoocríticolamentao“ardeesterilidadeespiritual”que“parecepairarsobreostextosdessaseitaestranhamenteconfusaedesconcertante”;edizqueolivrododr.Burrowsdeve“ser considerado como um trabalho provisório.Mostra-nos o quanto é provisório o fato de hojesabermosqueoqueoprofessorBurrowseseuscolegaschamaramháalgunsanosderolodeLamecénarealidadeumaparáfraseemaramaico[...]doGênesis”.OcríticopareceignorarqueochamadorolodeLamecéoúnicodocumentodaprimeiracavernaquesófoidesenroladorecentemente.Estavatão grudado que não se podiamanuseá-lo como os outros. Recebeu o nome de “rolo de Lamec”simplesmenteporqueseviunumfragmentosoltoumareferênciaaLamec.Seseucríticosabiadisso,entãosósepodeexplicarocomentárioquefezcomoumatentativadeconfundiroleitoremrelaçãoàconfiabilidadedodr.Burrows.

O quinto parágrafo consiste da seguinte reclamação: ao dedicar seu livro em aramaico aoprofessorC.C.Torrey,especialistanessalíngua,odr.Burrowscometeudoiserros.Lamentodizerquenãoestouhabilitadoacorrigiroaramaicododr.Burrows.Se incorreuemdoiserrosporque,como afirma seu crítico, “debruçou-se demais sobre a versão siríaca (Peshitta) do NovoTestamento”,nãohádúvidadequesedeveriachamar--lheaatençãoparaeles.NessecasooprofessorTorreyteriaseabstidodemencioná-los.Noentantoodr.Burrowsaindaestávivoparanotá-los—nãomorreu,comoseucríticoimagina.

O sexto parágrafo lamenta que a edição inglesa do livro do dr. Burrows não foi impressatipograficamentemasporfototipiaequeé“umdisparatepagartrintaxelinsporumlivroquecontém‘tipos’borrados,letrasquebradasepapeldemáqualidade”.Quantoaissooseditoresjáexplicaram,emseunúmerode23deagosto,que,setivessesidoimpressonaInglaterra,olivrocustaria45xelins,enãotrinta.

Atenciosamente,EdmundWilson

25deoutubrode1956

Prezadosenhor.ConsiderandoqueEdmundWilsonimpugnouminhaboa-féecompetência,caberesponderracionalmenteasuasacusações.Passoaanalisar,umaauma,asquestõesqueelelevanta.

1)Mishhath, “desfigurado”, no textomassorético,versusmashahti, “Ungi”, a nova leitura doIsaíasdesãoMarcos(52:14,enão11,comodizWilson).Wilsonassumeumaatitudede inocência

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ofendidaporqueouseicriticarsuaapropriaçãodosargumentosdoartigododr.W.H.Brownleesemsubmetê-los a um exame imparcial.Naturalmente eu devia ter percebido queWilson não possui abagagemnecessáriaparafazerissodeformaadequada.Nãoépossíveldominaremalgunsanos—muito menos em alguns meses — o estudo dos problemas textuais da Bíblia hebraica. Se fosseversadonessaárduamatéria,Wilsonteriaavaliadoosmuitosobstáculosqueseopõemàaceitaçãodanovaleitura,comsuasimplicaçõescristológicassensacionalistas.

Oqueafirmoéqueanovaleituracontrariatodooespíritoeoteordosversículos14-15dessecapítulode Isaías.Temosaquios sofrimentose tribulaçõesdoServoSofredor.A inserçãodeumafrasecomo“Ungi”éinadequada,assimcomooéyazzeh,“eleespargirá”,noversículoseguinte.Oescriba que alterou o mishhath massorético para mashahti evidentemente ficou perplexo commishhath.Nãoésurpreendente,poistrata-sedeumhapaxlegomenon,querdizer,ocorreapenasumavezemtodaaBíbliahebraica.Comoacontececomfrequência,oescribaalteraquandonãoentende.Assim,nummomentodeextremairresponsabilidade,elesubstituiuotextomassoréticopormashahti.(Sefossemaisinstruído,teriavistoquemishhath,quenosprimeirostemposdatransmissãodaBíbliahebraicanaturalmentenãopossuíaindicaçãodevogal,tambémadmitiaaleituramashaht(I ), semainserçãodoyōdh,o“y”.)Ademais,aolermashahti,oescribaderivouapalavradoradicalmashah,“ungir”,enãodeshahath,“desfigurar,destruir”,seforaaceitoomassoréticomishhath.Emrelaçãoaissopossomencionar tambémqueapalavrayazzeh, “espargirá”,queocorrenoversículoseguinte(15)docapítulo52—eque, acompanhandoodr.Brownlee,Wilsonadota—,é suspeita.Émuitoprovável que essa palavra perdeu uma consoante — possibilidade que a Versão dos Setentacorrobora.

2)Assinaleiqueoseditoresfalharamcomseudevernãotranscrevendoaformaexatadomem(aletram)comoaencontraramnomanuscrito.Wilsondiz:

Essaafirmaçãonãotemomenorsentido.Oseditoresdapublicaçãoempauta—TheDeadseascrollsofst.Mark’smonastery,VolumeI—nãotiveramoensejodelidarcomaquestãodomem.

AquiWilson exibe sua ignorância.Os editores do rolo de Isaías de sãoMarcos incluíramem suaediçãonãoapenasfotos,mastambémumatranscriçãodotextotalcomoseencontranasfotos,peloquelhescabialidarcomquestõescomoaformadomem.ÉevidentequeWilsonnãopodiaverificaraacuráciadessatranscrição.Sepossuísseumavaganoçãodepaleografiahebraica,teriareconhecidoque os editores falharam com seu dever ao transcrever as fotos. Repetidas vezes—minha cópiacomentadaestárepletadeexemplos—colocaramummemfinalnofimdapalavra,quandoooriginaltinha a forma inicial (ou medial). Do mesmo modo, quando ummem final aparecia no meio dapalavra,oseditorescolocaramaformainicial.Umafalhatãosériaparacomseusdevereseditoriaistinhadedesorientareconfundirosestudiosos.Nenhumpaleógrafodignodetalnomeousariaalterarotextodemaneiratãoafrontosa.Aquiéimportantíssimoteraformacorretadaletramem,poisessapeculiaridade ortográfica ajuda a estabelecer a data domanuscrito. Tal distinção não apresentariadificuldades para os impressores. Em função dessa negligência por parte dos editores, todo otrabalhodetranscriçãoterádeserrefeito.

3)AleituranethibhothemoposiçãoanethibhimemIsaías43:19.Desdelogodevodizerqueaformanethibhim,queoseditoresadotarameparaaqualWilsoninutilmenteprocuraencontrarumasombra de confirmação, nunca existiu. Quando encontrei a transcrição nethibhim na edição fac-símile, imediatamente a corrigi para nethibhoth. Nada poderia ser mais claro para o paleógrafoexperienteemhebraico.NãofoisurpresaparamimdescobrirqueautoridadescomooprofessorW.F.Albright, deBaltimore, ou o professor deBoer, deLeiden, tambémperceberam essa falha, quenoteisozinho.Wilsontentaatenuaroerrocrassodenethibhimargumentandoqueaquiháumborrão.

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Masatarefadopaleógrafoconsisteemleratravésdoborrão.Nossosgrandeseditoresconseguiramdecifrartextosmuitomaisdifíceis.OsupremoabsurdodessagafeocorreuquandoumprofessordosEstadosUnidos escreveu um artigo cheio de erudição porém inútil sobre essa forma, que existiuapenasnaimaginaçãodoseditores.

Aosustentarquenethibhiméopluraldenathibhenethibhothéopluraldenethibhah,Wilsonsópodeprovocarrisosnoespecialistaemhebraico.Narealidade,seaformafemininanethibhahnuncativesseexistido,opluraldenathibhaindaserianethibhoth.NenhumesforçoporpartedeWilsonpodereabilitarumaformatãodesacreditadacomonethibhim.Jáquesepõeaexibirseusconhecimentosdagramáticahebraica,deveriasaberquemuitostermosmasculinosemhebraicoformamopluralcomaterminação “feminina” -oth, enquantomuitas palavras femininas fazemoplural coma terminaçãomasculina-im.EvidentementeWilsontratouagramáticahebraicacomospreconceitosqueassimiloude sua educação clássica. Em latim e grego, com poucas exceções (como poeta, nauta), osmasculinostêmterminaçãomasculinaeosfemininostêmterminaçãofeminina.Umaesquematizaçãotãorígidanãocondizcomaslínguassemíticas.Possodizerqueeusabiamuitobemquenethibhothera uma variante textual de neharoth (uma forma curiosamente análoga a nethibhoth por ter aterminação“feminina”dopluralacrescentadaaosingular“masculino”).Maseuestavadiscutindoapaleografiadapalavra,nãoseusignificadotextual.

4)“OrolodeLamec”.Naturalmenteeusabiaqueessemanuscritosófoidesenroladoemépocarecente. Gostaria de advertir sobre o perigo de atribuir prematuramente a um documentodesconhecido um rótulo como “O rolo de Lamec”. Por causa desse título muitos estudiososacreditaram que continha o apócrifo perdido de Lamec. Uma denominação neutra ou menoscomprometedora(porquenãorolox?)teriasidomaisadequada.

5)OprofessorC.C.Torrey,oilustrearamaísta—gosteidesaberqueaindaestávivo—,semdúvidaconseguirádescobrirpor simesmoosdoiserroscometidospeloprofessorBurrows (cujoconhecimentodoaramaicojudeuestálongedeseencontrar)numaúnicalinhadesuadedicatória.

Seucrítico

29denovembrode1956

Prezadosenhor.Permita-meresponderbrevementeàrespostadeseucríticoàminharespostaàresenhaqueelefezdolivrodoprofessorBurrows,TheDeadseascrolls.

1)OnovomanuscritodeIsaías,em52:14,realmentetrazmashahti.Seucríticodizqueissosedeve a “um momento de extrema irresponsabilidade” por parte do escriba que o copiou. O dr.Brownlee reconheceu perfeitamente que o escriba poderia ser responsável por essa leitura. Oproblemaéque,mesmoqueissofosseverdade,pareceriaindicarumapreocupaçãomessiânicaporpartedaseitadomarMorto.

2)Nãoénecessárioternemmesmo“umavaganoçãodepaleografiahebraica”paraperceberasváriasformasdememnosfac-símilesdoIsaíasdomarMortopublicadospelodr.Burrowseporseuscolegas. Por que seu crítico haveria de esperar que uma transcrição impressa reproduzisse asidiossincrasiasdaescritadessedocumento?

3)Seucríticoafirmaqueaformanethibhim,“paraaqualWilsoninutilmenteprocuraencontraruma sombra de confirmação, nunca existiu”.Minha sombra de confirmação está no dicionário deGesenius,quetrazospluraismasculinoefeminino.

4)Quantoaossupostoserrosdearamaiconadedicatóriadodr.Burrows—porqueseucríticonãonosdizquaissão?—,oprofessorTorrey,“oilustrearamaísta”(comodeclaraSeucrítico),nãotomouconhecimentodesuaexistência,segundoeusoube.

EmminhacartaanteriorrepreendiSeucríticoporfazerumareferênciaerradaaIsaías.AgoraeleassinalaqueareferêncianessacartaaIsaías52:11deveriaserIsaías52:14.Nãoseicomoocorreu

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tal erro.Emmeu livromencionooversículocorreto.Dequalquermodo,no tocantea referênciasincorretasaIsaías,agoraSeucríticoeeuestamosquites.

Atenciosamente,EdmundWilson

13dedezembrode1956

Prezadosenhor.ArespostadeWilsonaminhacarta,emboraescritanumestilobemmaisbrandoqueseuataqueoriginal,demandaresposta.

1)Elevai longedemaisaodizerque“umapreocupaçãomessiânicaporpartedaseitadomarMorto” foi responsável pelo absurdo mashahti, “ungi”. (Cabe notar, aliás, que o entusiasmo deWilsonporessanovaleituraarrefeceubastantedesdequeescreveuseulivro.)Aseitadeviarespeitardemais o caráter sagrado do texto da Bíblia hebraica para alterá-lo deliberadamente. O escribaresponsávelpelacópiadesãoMarcosdorolodeIsaíaspodemuitobemteradotadoaleiturafeitaporalguémquenãotinhaligaçãocomaseita.

2)Wilsonmantém-seestranhamenteinsensívelaosméritosdeumatranscriçãoacuradaedoutade um texto antigo tão importante quanto a Bíblia hebraica. Se tivessem reproduzido aspeculiaridadesortográficasdomem inicial e final, os editores teriamganho a eterna gratidão doshebraístas.Parareforçarmeuargumento,voutomarumexemplodeoutrocampodaliteratura,comoqualWilsonestámaisfamiliarizado.Seumestudiosoamericanoouinglêsdeixassedenotarumavariante ortográfica significativa e recorrente em sua transcrição de um manuscrito original deDryden ou Pope, com certezaWilson seria o primeiro a criticar uma violação tão flagrante dasnormasacadêmicas.

3) Quanto à forma nethibhim, que não consta da Bíblia hebraica, Wilson nos diz que odicionáriodeGeseniustrazospluraismasculinoefeminino.Aolerisso,algumaspessoaspoderãopensar que a Bíblia hebraica contém omasculino plural nethibhim. Mas isso está definitivamenteerrado.TalvezWilsonnosdêareferênciaexata.NãoconseguiencontraressaformanemnaediçãoinglesadeGesenius,feitaporBrown,DrivereBriggs,nemna17aediçãoalemã,deBuhl.Podeserque algumas edições mais antigas de Gesenius tragam nethibhim, uma forma que se encontra naliteraturarabínica,porémemnenhumlugardaBíbliahebraica.

4)Wilson torna a pedir detalhes dos erros existentes na primeira linha da dedicatória que oprofessorMillarBurrows redigiuemseupróprioaramaico judeu.Aprincípiohesiteiemfornecê-los, pois envolveriam uma discussão extremamente técnica. Todavia, comoWilson insiste tanto ecomooprofessorTorrey,quenãopôdeencontrarnenhumafalhanadedicatória,infelizmentefaleceudepoisqueWilsonescreveusuacarta,devofazeropossívelpararesponder-lhe.

Oque o professorBurrows fez foi retraduzir para o aramaico judeu as partes pertinentes deMateus13:52datraduçãodeTorrey,ThefourGospels[OsquatroEvangelhos],baseadanumsupostooriginalaramaico(umbrinquedocaroaoprofessor,queousoudemais).Torreytraduz:[A]“homemde letras que recebeu o ensinamento do reino do céu” [e] “é como um chefe de família etc.” Oprofessor Burrows retraduz da seguinte maneira: Saphera di meth’allaph le-malkhuth shemayyadame’le-ghabhraetc.Oqueestáerradoéaformaverbalmeth’allaph.Umaautoridadedoportedofalecido Gustaf Dalman, mestre em aramaico (ver seu Die worte Jesus, [As palavras de Jesus],segunda edição, Leipzig, 1930, página 87), afirma que no aramaico judeu não existe verboequivalente amatheteutheis (o termo pertinente no Novo Testamento grego). O único modo detraduzi-loparaoaramaicojudeuéatravésdeumaparáfrase,como,porexemplo:[Kol]sapherade-hu’thalmidhle-(oube-)malkhuthadhi-shmayya.

Wilson tem todaa liberdadedeexperimentar suapontinhade satisfaçãoaomeacusardeuma

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referênciaerrada,oqueemsuaopiniãonosdeixaquites.Irrefletidamenteescrevi“Isaías43:20”,aoinvésde“19”,poisofinaldoversículo19eocomeçodo20apareciamnamesmalinhanaediçãofac-símile.Issoexplicameupecado,senãooperdoa.

Seucrítico

5dejaneirode1957

Acartaseguintefoiescritanadatamencionada.Nãoconseguidescobrirsefoipublicada.Prezadosenhor.Emsegundaréplicaàréplicadeseucríticoameuprotestocontraaresenhaque

elaboroudolivroTheDeadseascrolls,deMillarBurrows.1.Meu“entusiasmo”pelaleituramashahtiemIsaías52:11não“arrefeceu”nemumpouco—se

assimcabedizer.OquepareceterarrefecidoéoentusiasmodeseucríticopelaideiaanteriordequeoescribadomarMortoregistroumashahti“nummomentodeextrema irresponsabilidade”.Agoraeledeclaraquea seitadomarMorto“devia respeitardemaisocaráter sagradodo textodaBíbliahebraicaparaalterá-lodeliberadamente”.Nãoseioquequerdizercomisso.Quetexto?NumerosostextosdivergentesdevárioslivrosdaBíbliaforamencontradosentreosmanuscritosdomarMorto.Dequalquermodoocríticoadmitequealguémpossaterfeitoumtextoquedivergedomassorético,quandodizquealeituranoIsaíasdesãoMarcospodeterocorridoantesdeotextochegaràseita.

2. Continua sendo inteiramente ridículo em relação ao fato de Burrows não ter chamado aatençãoparaasváriasformasdemememsuaediçãodasreproduçõesfotográficasdorolodeIsaíasde são Marcos. O volume em que essas figuravam não continha nenhum aparato acadêmico. Aanalogia entreoprocedimentopara lidar comomanuscritode Isaías eoprocedimentopara lidarcomummanuscritodeDrydenouPopenãopodiasermaisinfeliz.Aopublicarumfac-símiledeummanuscritodoséculoxviiouxviii,acompanhadodeumatranscriçãoimpressa,comcertezanãoseimprimiriamossslongos.

3. O masculino plural nethibhim figura na página 709 de minha edição inglesa de Gesenius(Boston,1844).Ocríticoadmitequeessaformaocorrena literaturarabínica.Comissoquerdizerquequalquer formaquenãoseencontrenaBíbliamassoréticanuncapoderiaocorreremqualqueroutro texto, que todas as inflexões possíveis das palavras hebraicas estão contidas na Bíbliamassorética?

4.AquestãodacorreçãodoaramaicodadedicatóriadeBurrowsaTorreypareceviremauxíliode seu crítico da autoridade de um especialista contra a de outro— estando hoje ambosmortos.Porémmesmocomoapoiode“umaautoridadedoportedofalecidoGustafDalman”seucríticoédecepcionante.Prometeu-nosdoiserroscometidospeloprofessorBurrowsedemonstrouapenasum.Ocríticointerpolakolemsuaversãocorrigida,masnãoinsistenoerrodesuaomissão.

Atenciosamente,EdmundWilson

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Edmund Wilson nasceu em Red Bank, Nova Jersey, em 1895, e morreu em 1972. Figuradecisivanavidaintelectualnorte-americana,esteveentreosprimeirosasaudarautorescomoJoyce,FitzgeraldeHemingway.Críticoativoatéofimdavida,assinoutambémváriasobrasdehistóriadasideias.Escreveu, entre outros,Osanos vinte,O castelo de Axel,Memórias do condado deHecate,OnzeensaioseRumoàestaçãoFinlândia,todospublicadospelaCompanhiadasLetras.

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Copyright©1955,1967,1969EdmundWilson

GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.

TítulooriginalTheDeadseascrolls1947-1969

CapaJeffFisher

PreparaçãoStellaWeiss

RevisãoRenatoPotenzaRodriguesMarceloD.deBritoRiqueti

ISBN978-85-63397-25-9

Todososdireitosdestaediçãoreservadosàeditoraschwarczltda.RuaBandeiraPaulista,702,cj.3204532-002—SãoPaulo—spTelefone:(11)3707-3500Fax:(11)3707-3501www.companhiadasletras.com.br

Page 150: Os manuscritos do mar Morto - cld.pt · Este volume contém, primeiro, uma reedição ligeiramente revista de meu livro The scrolls from the Dead sea [Os manuscritos do mar Morto],

TableofContentsOSMANUSCRITOSDOMARMORTO

1.OMETROPOLITASAMUEL2.AORDEMDOSESSÊNIOS3.OMOSTEIRO4.OMESTREDARETIDÃO5.OQUERENANTERIADITO?6.OGENERALYADIN

1955-1967APRESENTAÇÃO1.POLÊMICAS2.OAPÓCRIFODOGÊNESIS3.OSSALMOS4.OPESHERDENAUM5.JOHNALLEGRO6.OSMANUSCRITOSDECOBRE7.OSTEXTOS8.OSTESTIMONIA9.AEPÍSTOLAAOSHEBREUS10.MASSADA11.DOCUMENTOSDUVIDOSOS

"NAVÉSPERA",19671.TATTOO2.PALESTINOS3.ASDUASJERUSALÉM4.ONOVOMUSEUNACIONALDEISRAEL5.CONVERSASCOMYADINEFLUSSER6.PARTIDA

AGUERRADEJUNHOEOROLODOTEMPLOREFLEXÕESGERAISApêndiceSobreoautorCréditos

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1.OMETROPOLITASAMUEL2.AORDEMDOSESSÊNIOS3.OMOSTEIRO4.OMESTREDARETIDÃO5.OQUERENANTERIADITO?6.OGENERALYADIN

1955-1967APRESENTAÇÃO1.POLÊMICAS2.OAPÓCRIFODOGÊNESIS3.OSSALMOS4.OPESHERDENAUM5.JOHNALLEGRO6.OSMANUSCRITOSDECOBRE7.OSTEXTOS8.OSTESTIMONIA9.AEPÍSTOLAAOSHEBREUS10.MASSADA11.DOCUMENTOSDUVIDOSOS

"NAVÉSPERA",19671.TATTOO2.PALESTINOS3.ASDUASJERUSALÉM4.ONOVOMUSEUNACIONALDEISRAEL5.CONVERSASCOMYADINEFLUSSER6.PARTIDA

AGUERRADEJUNHOEOROLODOTEMPLOREFLEXÕESGERAISApêndiceSobreoautorCréditos