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Anais do XV Encontro Estadual de História 1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis “Os maçons são úteis ao regime”: Uma análise das representações sobre a franco- maçonaria nos filmes Les forces occultes (1943); Independência ou Morte (1972) e Un borghesse piccollo piccollo (1977) Felipe Côrte Real de Camargo 1 Resumo: No presente ensaio analisarei as relações entre a linguagem do cinema e as representações que esse meio oferece sobre a maçonaria. Os três filmes escolhidos merecem destaque pela sua qualidade exemplificativa, dadas as diferentes formas a partir das quais maçonaria é apresentada ao público. Tais estudos se tornam bastantes relevantes na medida em que a maçonaria vem se tornando um tema recorrente nos estudos históricos; conjugado a esse fenômeno há a maior exposição pública da ordem, provocada, em grande medida, por obras de ficção. A formação da percepção do público sobre esta sociedade se dá, também, por meio do cinema, objeto que procuramos abordar aqui em suas relações com a história. Em um primeiro momento será abordado o filme Les forces occultes, filmado na França ocupada pelos nazistas em 1943. Essa obra pode ser classificada como exposure, ou seja, que propõem desvelar algum segredo maçônico, uma vez que fez parte do repertório doutrinário nazi- fascista, que alegava a manipulação da política mundial e a degeneração dos costumes. O segundo, Independência ou Morte, filme brasileiro de 1972, demonstra o uso ufanista que a ditadura civil-militar, aliada a setores da maçonaria brasileira, fez do sesquicentenário da independência para engendrar o reforço de uma identidade nacional, atraindo milhões de espectadores. O terceiro, Un borghese piccollo piccollo, italiano, de 1977, nos mostra o aspecto tragicômico da maçonaria como símbolo de status e de ascensão, principalmente pela pequena burguesia. Filmado na turbulenta década italiana de 1970, o filme busca demonstrar o tumultuado ambiente político à época. Analisando essas três obras buscaremos uma aproximação entre as imagens veiculadas da e pela maçonaria neste produto social que é o cinema, em três contextos diferentes, porém buscando pontos em comum. Palavras-chave: Cinema, História, Maçonaria Cinema e História Longe de ser um cruzamento atual, a interface, ou interpenetração, entre cinema e história é tão longevo quanto a sétima arte. Data de 1898 o ensaio do polonês Boleslas Matuzewski chamado “Une nouvelle source de l’histoire: création d1un depot de cinematographie historique”, no qual o autor expõe sua teoria de que o cinema, por ser uma fotografia animada, sendo capaz de dar um testemunho verídico dos fatos, controlaria assim os testemunhos orais; o cinema possibilitaria então a formação de um depósito de imagens dos fatos importantes, ou nas palavras de Matuzewski “um depósito de cinematografia histórica”. 1 Historiador do Arquivo Histórico Pastor Wilhelm Lange. Bacharel e Licenciado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,

11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

“Os maçons são úteis ao regime”: Uma análise das representações sobre a franco-

maçonaria nos filmes Les forces occultes (1943); Independência ou Morte (1972) e

Un borghesse piccollo piccollo (1977)

Felipe Côrte Real de Camargo1

Resumo: No presente ensaio analisarei as relações entre a linguagem do cinema e as

representações que esse meio oferece sobre a maçonaria. Os três filmes escolhidos merecem destaque pela sua qualidade exemplificativa, dadas as diferentes formas a partir das quais maçonaria é apresentada ao público. Tais estudos se tornam bastantes relevantes na medida em que a maçonaria vem se tornando um tema recorrente nos estudos históricos; conjugado a esse fenômeno há a maior exposição pública da ordem, provocada, em grande medida, por obras de ficção. A formação da percepção do público sobre esta sociedade se dá, também, por meio do cinema, objeto que procuramos abordar aqui em suas relações com a história. Em um primeiro momento será abordado o filme Les forces occultes, filmado na França ocupada pelos nazistas em 1943. Essa obra pode ser classificada como exposure, ou seja, que propõem desvelar algum segredo maçônico, uma vez que fez parte do repertório doutrinário nazi-fascista, que alegava a manipulação da política mundial e a degeneração dos costumes. O segundo, Independência ou Morte, filme brasileiro de 1972, demonstra o uso ufanista que a ditadura civil-militar, aliada a setores da maçonaria brasileira, fez do sesquicentenário da independência para engendrar o reforço de uma identidade nacional, atraindo milhões de espectadores. O terceiro, Un borghese piccollo piccollo, italiano, de 1977, nos mostra o aspecto tragicômico da maçonaria como símbolo de status e de ascensão, principalmente pela pequena burguesia. Filmado na turbulenta década italiana de 1970, o filme busca demonstrar o tumultuado ambiente político à época. Analisando essas três obras buscaremos uma aproximação entre as imagens veiculadas da e pela maçonaria neste produto social que é o cinema, em três contextos diferentes, porém buscando pontos em comum.

Palavras-chave: Cinema, História, Maçonaria

Cinema e História

Longe de ser um cruzamento atual, a interface, ou interpenetração, entre cinema e história é

tão longevo quanto a sétima arte. Data de 1898 o ensaio do polonês Boleslas Matuzewski

chamado “Une nouvelle source de l’histoire: création d1un depot de cinematographie

historique”, no qual o autor expõe sua teoria de que o cinema, por ser uma fotografia

animada, sendo capaz de dar um testemunho verídico dos fatos, controlaria assim os

testemunhos orais; o cinema possibilitaria então a formação de um depósito de imagens dos

fatos importantes, ou nas palavras de Matuzewski “um depósito de cinematografia histórica”.

1 Historiador do Arquivo Histórico Pastor Wilhelm Lange. Bacharel e Licenciado em História pela Universidade

do Estado de Santa Catarina (UDESC) e Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade pela

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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Sabemos que o projeto do autor polonês não se concretizou da forma como previu, porém,

afora as questões do cinema, e\ou imagem, e a apreensão do real, a chegada das imagens em

movimento modificaram de modo indelével o entendimento do processo histórico. Não

somente pelo seu valor documental, como previam uns ou como tentam cercear outros até

hoje, mas também por seu valor estético e demais variáveis das quais a história pode, e deve,

se ocupar.

Maçonaria

Antes de qualquer outra informação, faz-se necessário responder, de modo bastante geral,

porém esclarecedor e não mitificador, o que é a maçonaria. Maçonaria, ou franco-maçonaria,

é uma fraternidade que possui entre seus pilares os valores da fraternidade e do

aperfeiçoamento moral e espiritual de seus membros. Sendo uma ordem iniciática apresenta

aspectos filosóficos e místicos, além de ensinamentos distribuídos em um sistema de graus.

Embora, a partir do século XVIII, a maçonaria procure ligar suas origens a eventos

bastante anteriores a sua formação, seu início está, temporalmente2, bastante explícito. É em

meados do século XVII que se tem os primeiros registros da aceitação nas corporações de

ofício de pessoas que não intentavam exercer a profissão de pedreiro. Estes homens eram

chamados de “aceitos”, provinham das mais variadas profissões, porém eram em sua maioria

comerciantes e proprietários, os motivos de suas filiações derivam da popularidade que o

modelo de sociabilidade das guildas exercia em toda a Europa à época. Hobsbawm, em seu

artigo sobre os rituais do operariado, sublinha o modelo que daria origem à franco-maçonaria

como sendo um dos mais copiados dentre os diversos modos de sociabilidade dos operários3.

O declínio das corporações de ofício e a iniciação de membros estranhos às guildas

formam o início do que conhecemos como maçonaria hodiernamente. Para fins de

caracterização costumou-se chamar a maçonaria ligada às corporações de ofício de maçonaria

operativa e àquela formada exclusivamente por “aceitos” de maçonaria especulativa, pois o

trabalho, outrora real e material, passava agora a ser simbólico e intelectual.

O final do século XVIII e todo o século XIX são fundamentais para a construção da

identidade da maçonaria moderna. A filosofia do iluminismo, tanto em sua vertente francesa

2 Espacialmente a aceitação dos primeiros maçons não integrantes das guildas, os chamados “aceitos”, ainda é

tema em discussão. Alguns autores defendem que a maçonaria, no seu caráter especulativo, ou seja, somente

com “aceitos”, teria se formado primeiramente na Alemanha, outros na Escócia. 3 HOBSBAWM, Eric J. Mundos do Trabalho. Tradução de Waldea Barcellos e Sandra Bedran. – Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 2000, pp. 103 – 105.

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quanto na do Aufklärung alemão, o evento político da revolução francesa, a codificação da

doutrina espírita, o misticismo rosacruciano e cabalista, além das práticas mágicas que

floresceram por toda parte nos anos 1800, todas estas correntes exerceram forte impacto sobre

a maçonaria que, a partir daí, imprimiu de modo indelével sua característica mais marcante: o

sincretismo.

Muito embora seja uma árdua tarefa escrutinar os primórdios da maçonaria,

especialmente sua transição de operativa para especulativa, há um marco fundacional que é

ponto pacífico para a maioria dos autores: a fundação da Grande Loja da Inglaterra, em 1717,

vista desde então como a “loja mãe” e garante da legalidade das demais lojas maçônicas

mundo afora4. Este papel da Grande Loja da Inglaterra como árbitro do que é chamado pelos

maçons de “regularidade” é bastante questionado atualmente5.

Logo após um conjunto de maçons, tendo a frente o Reverendo John Anderson,

sistematiza os antigos diplomas legais sobre os direitos e deveres dos maçons e, com algumas

adaptações, publicam a primeira constituição maçônica, no ano de 1723. O que de mais

importante consta neste documento são os landmarks, conjunto de regras e posturas que

devem ser observadas por todas as lojas e maçons a fim de que sejam consideradas regulares.

Esses landmarks são as cláusulas pétreas da maçonaria regular mundial.

À partir o século XVII, a maçonaria espalhou-se pelo mundo. Seus modelos de rituais

e de sociabilidade foram amplamente copiados por uma série de sociedades secretas,

sindicatos e uniões operárias. Construir uma história da maçonaria no mundo requer uma

sistematização de milhares de trabalhos que vem sendo produzidos por maçons e historiadores

desde a iniciação dos “aceitos”. Porém, o que faz a história da maçonaria tão confusa, para

historiadores e maçons, é a falta de uma sistematização mínima destas múltiplas narrativas

(que envolvem desde relatos fartamente documentados, até folhetos com pseudônimos

dizendo que a maçonaria foi criada por Jesus Cristo) além da questão do segredo, que embora

essencial para a maçonaria não representa obstáculo instransponível para que se possa lançar

em estudos sobre seus mais variados aspectos.

Antimaçonaria

4 O reconhecimento entre lojas maçônicas é um dos fundamentos da ordem. A Grande Loja da Inglaterra, quando

não reconhece uma potência maçônica (como são chamadas as admisnistrações centrais de um grupo de lojas

reunidas) 5 ISMAIL, Kennyo. Vaticano Maçônico. Blog “No Esquadro” (http://www.noesquadro.com.br), artigo

publicado em 14 de fevereiro de 2012.

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Grande é a tendência nos dias atuais de chamar de antimaçonaria tudo que a ela se opõe.

Porém há de se diferenciar o que são críticas à ordem maçônica, seja pela sua estrutura,

filosofia e\ou atitudes enquanto organização e o que são opiniões contrárias à maçonaria

advindas de preconceitos ou distorções propagadas desde o século XVII, ou seja, desde a

estruturação da maçonaria moderna.

Muitos são os exemplos e histórias de antimaçonaria; para analisarmos da maneira mais breve

e sistemática façamos uma síntese. Desde que a maçonaria foi sistematizada na Inglaterra, no

século XVIII, a antimaçonaria foi o seu inevitável subproduto, de variados matizes e

motivações os discursos contra a ordem adquiriram vigor e sofreram mutações, tornando

possível sua permanência até os dias atuais. Dentre os discursos antimaçônicos podemos citar

três bastante profícuos e que, de certo modo, deram origem aos demais6.

Como aponta Girardi

Três temas sucessivos sustentaram a antimaçonaria do século XIX: a) O

tema anglófobo: Segundo os seus defensores, a maçonaria seria apenas uma

máscara do Inteligence Service inglês; b) O tema anti-semita: Os maçons

seriam apenas umas marionetes dos judeus. As altas finanças judias ,

principalmente os Rothschild, se escondem por detrás da maçonaria. Precisa-

se que a Cabala Judaica inspirou os Altos Graus. O simbólico Templo de

Salomão significa a dominação judaica mundial, etc.; c) O tema luciferiano:

O verdadeiro segredo da maçonaria seria a ação oculta do demônio nas Lojas.

(GIRARDI, 2008, p.30)

Assim, a antimaçonaria tem sido um dos principais feixes de lenha na fogueira das “teorias da

conspiração”. O tão propalado “segredo maçônico” ajudou a alimentar ainda mais a

imaginação daqueles que possuem uma relação de amor, ódio ou curiosidade com a

instituição. A maçonaria virou uma espécie de peça coringa no quebra-cabeças das teorias

conspiratórias que, dada sua natureza, moldam-se conforme o desenho que se quer como

resultado.

Cinema e Maçonaria

A maçonaria tem sido um tema recorrente no cinema, de maneira explícita ou aparecendo

como parte do contexto ou de pano de fundo. Um exemplo deste uso está no filme El Angel

6 Para tal sistematização basear-me-ei na obra de João Ivo Girardi que é um dos mais atuais esforços de

sistematização do conhecimento maçônico circulante no Brasil. GIRARDI, João Ivo. Do Meio-Dia à Meia-

Noite: Vade-Mécum Maçônico. Blumenau: Nova Letra Gráfica e Editora, 2008.

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Exterminador (Buñuel, 1962); nele em meio a uma trama surrealista que critica de maneira

indelével a burguesia, transbordam referências maçônicas, direta e indiretamente.

Ainda nos primeiros anos do cinema com entretenimento comercial a maçonaria foi tema de

uma das aventuras de Bobby Bumps, personagem principal de uma série de animações mudas

produzidas pela Bray Productions entre os anos de 1915 à 1925. Tais animações foram

lançadas pela Paramount Picutres e faziam parte do Paramount Package, pacotes de

pequenos filmes e animações que eram exibidos nas salas de cinema antes dos filmes.

Na animação Bobby Bumps starts a lodge (Hurd, 1916), o personagem principal chama seu

vizinho para fazer parte da sua loja maçônica, obviamente não há loja nenhuma, pois o

objetivo de Bobby é tão somente o de pregar peças no seu amigo como estas fossem parte de

seu ritual de iniciação. Por ser tema de um desenho animado para um entretenimento de

massa, fica claro que o tema maçonaria não era algo muito obscuro na sociedade norte-

americana da década de 1910.

Desde então a maçonaria tem sido habituée do cinema, tanto do circuito mainstream quanto

fora dele. Como coloca Michèle Lagny, os historiadores, frente a um arquivo fílmico, podem

se questionar sobre a quais filmes dar prioridade, sendo que aqui entrará prioritariamente dois

aspectos: o valor estético e o valor de testemunho (GARDIES, 2007). Porém nos filmes

abordados neste artigo temos presentes ambos os aspectos, pois não somente a análise de seus

entornos de produção nos dão elementos que atestam sua força como valor de testemunho

como também seus aspectos estéticos nos fornecem dados cruciais sobre o tema que aqui

desejamos tratar.

O aspecto que estes filmes possuem em comum, além de tocarem na temática “maçonaria” é

que foram produzidos dentro de um regime de exceção ou extrema polarização política, no

caso italiano. Assim buscaremos perceber como foi possível e recepção e a produção de uma

dada representação sobre a maçonaria nos três contextos. No primeiro como forma de tornar a

fraternidade um párea desejoso por destruir a sociedade, no segundo um espaço de profusão

dos pruridos de independência mas que podem ser perigosos e no terceiro a banalidade e

servilidade de uma ordem que busca a manutenção do status quo que mesmo assim por ele

são tragados.

É importante ressaltar que entenderemos representações juntamente a Moscovici na sua

leitura dentro da psicologia social, principalmente como o que o autor assinala como sendo as

duas principais funções das representações, que são

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a) Em primeiro lugar, ela convencionalizam os objetos, pessoas ou

acontecimentos que encontram. Elas lhes dão uma forma definitiva, as

localizam em uma determinada categoria e gradualmente as colocam

como um modelo de determinado tipo, distinto e partilhado por um

grupo de pessoas. Todos os novos elementos se juntam a esse modelo e

se sintetizam nele. (MOSCOVICI, 2009, p.34)

b) Em segundo lugar, representações são prescritivas, isto é, elas se

impõem sobre nós com uma força irresistível. Essa força é uma

combinação de uma estrutura que está presente antes mesmo que nós

comecemos a pensar e de uma tradição que decreta o que deve ser

pensado (MOSCOVICI, 2009, p.36)

Assim, buscaremos observar de que modo ocorrem estas convenções do que é a maçonaria, de

que forma estas convenções se inscrevem na sociedade sintetizando visões a seu respeito e

como estas obras prescreveram modos de perceber o fenômeno social da maçonaria em suas

sociedades.

Les Forces Occultes (1943) – A antimaçonaria como propaganda do regime nazista

O filme “Les Forces Occultes” é uma produção francesa do período conhecido como a França

de Vichy. Costuma-se creditar toda a ação política francesa deste período à

ocupação nazista, é importante ressaltar que o colaboracionismo não se devia à mera pressão

da ameaça. O État Français , embora governo fantoche do regime nazista, dava vazão à

ideologia vigente, qual seja aquela do catolicismo, do autoritarismo, do Travail, Famille,

Patrie (trabalho, família, pátria) e, principalmente para o escopo deste artigo, do anti-

maçonismo e do anti-judaísmo, ou como ressaltou o ex-Grão Mestre do Grande Oriente da

França, Jean-Robert Ragache, do anti-cosmopolitismo7.

O média metragem drigido por Marcel Mammy é uma expressão genuína da estética do

cinema nazista. Recorrendo ao mesmo estilo de narrativa, o filme utiliza também os mesmos

efeitos de câmara8 já vistos em clássicos como “Der Triumph des Willes” (O Triunfo da

Vontade), “Jude Suss” (O judeu Suss) e Der Ewige Jude (O Judeu Eterno).

7 A propos de Forces Occultes. Diretor: René Le Moal. Produção: Les éditions Véga. 16 min e 26 seg.

Disponível em http://www.dailymotion.com/video/x81q5t_forces-occultes-le-complot-judeo-ma_news. Acesso

em 27 de junho de 2014. 8 O teórico Jean-Patrick Lebel utiliza o termo câmara para englobar todo o processo que ocorre desde a filmagem

até a edição final. Pela simplicidade conceitual, recorrerei à mesma estratégia.

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A maçonaria estava banida oficialmente do território francês desde 13 de agosto de 1940 pela

lei que proibia o funcionamento de “sociedades secretas”, certamente a maior visada era a

franco-maçonaria, e principalmente as potências9 mais importantes, o Grande Oriente da

França e a Grande Loja de França. Um exemplo desse foco nas potências maiores é que

somente no início de 1941 as potências menores, as mistas e as femininas são atingidas pelos

decretos de “nulidade” de sua Constituição. Imediatamente os arquivos maçônicos caem em

mãos nazistas e francesas colaboracionistas, inquéritos extensos são levados a cabo, lista com

os nomes dos maçons franceses são publicadas em jornais e cerca de três mil funcionários

perdem seus empregos por conta de sua condição de membro da fraternidade.

Mais do que a paranóia do complô judaico-maçônico-comunista, temia-se que a capilaridade

das instituições maçônicas servisse à resistência francesa, situação esta que se concretizou,

aumentando em muito a eficiência da resistência. Os membros da franco-maçonaria estavam

acostumados ao silêncio, se reconheciam de modo discreto e tinham em seus quadros desde

carteiros até industriais, ligações improváveis que fizeram o Governo de Vichy montar um

Serviço Especial para tentar desbaratinar o quebra-cabeças que se apresentava.

É neste contexto que o cinema francês de então lança “Les Forces Occultes”, uma mistura dos

arquivos maçônicos confiscados, embebida da paranóia nazi-facista. Não cabe a este artigo

fazer uma verificação do que é ou não é verdadeiro ou verossímil no referido filme, vale

somente fazer a ressalva que muitos maçons quando chamados para depor e confrontados com

os documentos apreendidos afirmavam desconhecer ou não se lembrar, e quando instados a

citar nomes de outros maçons citavam longas listas de maçons de suas lojas, já falecidos. É

bastante provável, embora seja somente uma hipótese, que algum maçom, prestou o mesmo

tipo de “ajuda” aos produtores do filme.

Jean-Marques Rivière, conhecido panfletista anti-maçônico, anti-semita e anti-comunista, fez

o roteiro do filme e na estréia afirmou que se tratava “de um ato político e revolucionário”.

O trama conta a história de um deputado francês que, como notamos na seqüência inicial, na

qual ele está discursando na Assembléia Nacional Francesa, é porta-voz da ideologia

nacional-socialista. Dirigindo insultos a todos os partidos, acusando-os de lançar a França em

uma crise e uma ameaça de guerra que estariam na verdade atendendo os interesses da direita

e da esquerda, constrói uma imagem de integridade acima de qualquer suspeita.

9 Potências são as entidades administrativas centrais que agrupam três ou mais lojas, toda loja maçônica

responde a uma potência, também pode ser chamada de obediência. Tais potências podem funcionar de modo

federado, com um Grão-Mestre nacional, ou de modo confederado, existindo então somente Grão-Mestres

estaduais e um colegiado no nível nacional.

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A trama conspiratória se desvela deste modo, desde o princípio da película; uma divisão clara

entre bons e maus, honestos e desonestos. Porém o enredo, neste caso, é somente um pano de

fundo para o que seria o grande chamariz do filme, a demonstração, pela primeira vez

filmado, de um ritual maçônico, e como fazia questão de reforçar toda peça de divulgação da

obra “conforme utilizado pelo Grande Oriente da França” à época da proibição.

O cartaz anunciava “Os mistérios da Franco-Maçonaria desvendados pela primeira vez na tela”

Assim que entra para a loja, que abriga em seu seio deputados de todas as vertentes, Avnel

começa a receber pedidos, todos excusos, de favores em nome da irmandade. O filme faz

referência a famosos escândalos da Terceira República, estampando, incusive, números do

jornal “L’Anti-Maçon”, jornal dirigido por Léo Taxil, um dos mais famosos propagandistas

contra a maçonaria.

Avnel decide então deixar a loja após perceber que a entrada da França na guerra contra a

Alemanha é na verdade um complô maçônico-judaico-comunista. Sua decisão se dá após uma

discussão dentro da loja e na mesma noite o deputado sofre um atentado planejado em

velocidade recorde por seus irmãos.

A cena final mostra o triunfo do mal sobre o bem, com o Venerável Mestre da loja, que

durante todo o filme é retratado de maneira maléfica, principalmente nos enquadramentos e

closes, acima do globo terrestre que está em chamas.

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Triunfa o complô maçônico e, consequentemente, o mal.

Uma boa definição da estrutura narrativa do filme, que possui o mecanismo da propaganda,

foi feita por F.Chevessu na revista Image et Son

1.reação emocional, derrota, 2. Dizer o obvio: a França não estava preparada

para a guerra, 3. Projeção do espectador no personagem: Pierre Avenel,

honesto, ardente patriota e que refuta aquela guerra vergonhosa, 4. a

personagem, desse modo o espectador, vítima de bodes expiatórios, 5.

Condenação instintiva dos bodes expiatórios (IMAGE ET SON, 1965, p.36)

A utilização do filme Les Forces Occultes como propaganda contrária, seja à maçonaria, aos

judeus ou a política em geral, não cessou com o fim da França de Vichy. O filme, disponível

na íntegra online, conta com milhões de acessos e os comentários deixados pelos espectadores

provam que a obra de Mammy ainda ecoa como formador, ou reforço, de uma certa imagem

da maçonaria para grande parte das pessoas.

Independência ou Morte (1972) – A maçonaria como parte do “Brasil grande potência”

O filme Independência ou Morte, mais do que levar as telas a versão oficial da história da

proclamação da independência política do Brasil, tornou-se a confluência de uma série de

fatores que o fazem uma obra importante para o cinema brasileiro. O filme de Carlos

Coimbra, diretor experimentado e responsável por grande parte da chamada “estética do

cangaço” no cinema brasileiro, foi a última grande produção da Cinedistri, produtora e

distribuidora de filmes nacionais, criada em 1949 por Osvaldo Massiani.

A Cinedistri foi responsável por uma série de filmes históricos para o cinema brasileiro, basta

citar O Pagador de Promessas (1962) de Anselmo Duarte e Lampião, o Rei do

Cangaço(1962), do mesmo Carlos Coimbra. Tais filmes iniciaram a chamada terceira fase da

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produtora, ou fase áurea, que havia se instalado sua sede no quadrilátero que ficou conhecido

como Boca do Lixo, em São Paulo (RAMOS; DE MIRANDA, 2004, pp. 132-133).

A produção Independência ou Morte encerra essa chamada fase áurea e, apesar do

investimento, o resultado estético não foi satisfatório, embora tenha sido um dos recordes de

bilheteria no Brasil com 2.957.083 espectadores (SILVA NETO, 2002). O enredo, já bastante

conhecido, traz a didática e pessoal epopeia de um só homem, D. Pedro de Alcântara,

auxiliado por seu mentor, José Bonifácio de Andrada e Silva, na árdua tarefa de desligar o

Brasil do Reino de Portugal à época do retorno da família real portuguesa para aquele país e

do domínio político das Cortes de Lisboa.

Todo esse emaranhado já foi desenredado por uma série de pesquisas que demonstram a

diversidade e pluralidade de forças que estiveram envolvidas na proclamação da

independência do Brasil (BOXER, 1969; CALDEIRA, 2002; DIAS, 2005; FAORO, 1963;

FRAGOSO, 1992, Neves, 2003). Porém, a narrativa oficial, que elidisse disputas políticas,

transformando-as em disputas pessoais, e que reverberasse apenas a historiografia oficial, caía

como uma luva para a máquina propagandística do Governo Médici que

[...] não se limitou à repressão. Distinguiu claramente entre um setor

significativo mas minoritário da sociedade, adversário do regime, e a massa

da população que vivia um dia-a-dia de alguma esperança nesses anos de

prosperidade econômica. A repressão acabou com o primeiro setor, enquanto

a propaganda encarregou-se de, pelo menos, neutralizar o segundo

(FAUSTO, 2004, p.484)

Assim também interessava ao Grande Oriente do Brasil, que vivendo lutas internas pelo

poder, buscava, através de sua ala majoritária, ligar-se à ditadura para poder expurgar os

maçons que, incomodamente, demonstravam a pluralidade do pensamento político presente

na ordem até 1964 e que vinha se tornando cada vez mais unitário dadas as condições do

ambiente político nacional e as conveniências do poder por parte dos ocupantes do Grão-

Mestrado (SCHÜLER SOBRINHO, 1998; CASTELANI, 1993).

O Grande Oriente cedeu suas instalações, mais especificamente o templo principal da sai

então sede, o Palácio do Lavradio, além de paramentos maçônicos (aventais, faixas e joias)

para que fossem filmadas as cenas de sessões maçônicas; atitude bastante incomum para a até

então reservada maçonaria brasileira. Porém, figurar como próceres da independência

brasileira seria uma oportunidade de figurar uma boa imagem perante o público e reforçar a

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imagem de colaboração perante o regime. Ilustrativo é o diálogo ocorrido entre D.Pedro I e

Frei Habner

Frei Habner: Sabeis que já se reabriu a loja maçônica que Dom João VI havia

fechado? Conspiram novamente os pedreiros livres da maçonaria...

D.Pedro: Todos os cidadão deste país são livres em suas ações Frei Habner.

Frei Habner: Desde que não firam os princípios do regime alteza!

D. Pedro: Os maçons são úteis ao regime.

Frei Habner: São perigosos, insinuantes, agem nos bastidores...

A partir daí ocorrem, de modo intercalado, três cenas onde figura a maçonaria. Na primeira,

logo após esse diálogo temos uma encenação do que seria uma sessão extraordinária da Loja

Comércio e Artes, a qual, realmente, pertenceu D. Pedro de Alcântara. Na cena a palavra é

passada ao Orador da loja, Joaquim Gonçalves Ledo, que insufla os demais membros a não

aceitarem as novas exigências das Cortes de Lisboa. Depois os mesmos maçons se levantando

contra o pedido para que D.Pedro retorne a Portugal e pedindo, em algum outro cerimonial no

Paço, que o príncipe regente permaneça no Brasil.

As sessões maçônicas, ambientadas na mesma loja frequentada por D.Pedro I em 1822, auxiliaram esteticamente

o filme e fortaleceram a ligação do Grande Oriente do Brasil com o sesquicentenário

Após esse momento acontece algo que merece destaque, em uma cena de caçada o grupo de

Gonçalves Ledo, aparece tramando um golpe contra José Bonifácio, então Grã-Mestre do

Grande Oriente do Brasil, oferecendo a D.Pedro o título de Protetor e Defensor Perpétuo do

Brasil, iniciando-o na maçonaria e o elegendo Grão-Mestre. É neste momento em que ocorre,

sem uma narrativa explícita, a construção de um papel ambíguo para o grupo maçônico. Ato

contínuo temos a cena onde o ator que interpreta Gonçalves Ledo, Anselmo Duarte, empossa

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D.Pedro, vivido por Tarcísio Meira, no cargo de Grão-Mestre da maçonaria. É bastante

significativo que a próxima cena seja o ápice do filme, na qual às margens do rio Ipiranga, em

um cavalo branco e uniforme de gala, D.Pedro declara a independência. Cabe ressaltar aqui

que D.Pedro foi empossado como Grão-Mestre após a declaração da independência e não

anteriormente como o filme e alguns autores afirmam.10

A partir desse momento, nos quase sessenta minutos restantes, o tópico maçonaria não mais

se apresenta ao espectador. Mais do que um silêncio ou uma falha no roteiro, a falta de

menção à ordem maçônica possui lastro na história do Brasil, após ser empossado Grão-

Mestre, Pedro de Alcântara suspende os trabalhos do Grande Oriente do Brasil, que só serão

retomados a partir depois de sua abdicação em 1831.

Embora possa não ter sido a intenção do diretor Carlos Coimbra, o filme Independência ou

Morte serviu perfeitamente à propaganda do regime ditatorial brasileiro naquele momento. O

sesquicentenário da independência foi o momento crucial do programa político do governo

Médici, conforme coloca Daniel Aarão Reis

Foram os “anos de ouro”, de progresso contínuo, de abertura de horizontes e

de celebração patriótica, que alcançaram o apogeu entre 1970 e 1972, quando

a nação comemorou a conquista do tricampeonato mundial de futebol e

festejou o Sesquicentenário da Independência do país, com direito a mais

uma conquista futebolística internacional. (REIS, 2014, p.90)

Un Borghese Piccolo Piccolo (1977) – Apequenando a grandeza maçônica

Interpretar a década de 1970 na Itália é uma tarefa árdua para qualquer historiador. Para além

da questão de se houve ou não um regime de exceção, é inegável a tensão política existente no

país no decorrer do que Pierre Milza chamou de “Anos de chumbo” (MILZA, 2005, p.995). A

ação das brigadas vermelhas contrastava com um regime político que criou uma série de “leis

especiais” para julgar os crimes políticos, conforme aponta Giorgio Agamben (AGAMBEN,

2001). Com a negação do clima de disputa política, ou até de guerra civil, a Itália buscou

viver uma normalidade que muitas vezes acirrava ainda mais a tensão entre os dois horizontes

políticos que se apresentavam à época.

Neste ínterim a maçonaria italiana também cindiu-se em duas correntes de modo ainda mais

acentuado, pois foi naquele país que se originou a “carbonária” ou “maçonaria florestal”, que

10 Pedro de Alcântara, sob o nome simbólico de Guatimozin, prestou seu juramento como Grão-Mestre no dia 4

de outubro de 1822, conforme (CASTELLANI, 1993, p.81)

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diferentemente de sua coirmã, a franco-maçonaria, ergueu-se com propósitos explicitamente

políticos no século XVIII. A maçonaria tradicional acabou por se enveredar pelo

conservadorismo político na sua maioria, e uma minoria na extrema direita gestando

escândalos que viriam a eclodir na década seguinte como o da loja “Propaganda II” (P2).11

É neste quadro que Mário Monicelli adapta a obra de Vicenzo Cerami, Un borghese piccolo

piccolo, fazendo um retrato mordaz da pequena burguesia italiana na sua mais alta expressão

na Itália dos anos 1970, o funcionalismo público.

O filmes conta a história de Giovanni Vivaldi, interpretado por Alberto Sordi, um

subserviente funcionário do instituto de previdência italiano que além de adoração pelo seu

patrão, possui uma estima igualmente grande por seu anódino filho que, com notas medíocres,

acaba de se formar contador. De modo tragicômico a pequenez de Vivaldi vai sendo revelada,

através do hábito de curvar seu corpo perante qualquer superior, bem como seu lado sombrio,

proferindo ofensas a qualquer um que se ponha a sua frente no trânsito.

Buscando colocar seu filho no mesmo instituto de previdência sem ter de fazê-lo passar pelo

temido concurso público Vivaldi vai falar com seu amado patrão, Dr. Spaziani, que lhe

informa que não há jeito, os tempos eram outros, deve-se obrigatoriamente entrar por

concurso. Frente a insistência de Vivaldi, Dr.Spaziani informa que há um meio de facilitar as

coisas, e pergunta para o néscio Vivaldi “O que o senhor sabe sobre a maçonaria?”. É neste

ponto que começa uma hilária sequência onde Giovanni Vivaldi se informará, através de

livretos sobre a ordem maçônica e irá a cerimônia de iniciação, não sem antes pedir perdão a

Deus no banheiro de casa, informando a Ele que “só está fazendo isso por causa do filho”.

11 A Loja “Propaganda Due”, devido a suas atividades ilícitas foi expulsa dos quadros do Grande Oriente da

Itália em 1976, porém continuou, ilegalmente, suas atividades onde infiltrou membros de seus quadros nos três

poderes, além do Vaticano e da Máfia. Seus esquemas foram descobertos em uma comissão parlamentar de

inquérito sendo inclusive denominada como “um Estado dentro do Estado”.

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Na imagem Dr.Spaziani, ao centro com avental e faixa, recebe o confuso e maravilhado neófito Vivaldi, em

meio a quase todo o grupo do escritório do instituto de previdência

Após a sua, divertida, iniciação, o agora neófito Vivaldi é recebido pelo seu mentor Dr.

Spaziani que em um discurso de boas-vindas informa a ele que ele, agora como irmão, tem

quase os mesmos direitos que os mais antigos e bem sucedidos, numa espécie de negação

metalinguística do discurso da igualdade. Após este episódio Dr.Spaziani lhe dá o gabarito

para a prova que o filho Mário fará, gabarito este que Mário decora com extrema dificuldade.

No dia da prova Mário é morto com um tiro na cabeça ao passar com Vivaldi no meio de uma

fuga empreendida por assaltantes de banco. É neste momento que Giovani Vivaldi deixará de

ser o pacato burguês para dar vazão a toda sua agressividade. A maçonaria é mostrada como

um paliativo frente a uma sociedade extremamente desigual. Em nenhum outro momento a

personagem consegue qualquer outra coisa dada sua condição de maçom. Emblemática é a

cena onde ele pede a um irmão de sua loja, responsável pelo cemitério, que apresse a alocação

de seu filho em uma tumba, pois dada a lotação do cemitério seu filho aguarda junto a outros

corpos em uma espécie de depósito que, conforme Monicelli mostra ao espectador, guarda

grande semelhança com o inferno descrito pelos católicos.

Seu irmão diz que nada pode fazer, pois há gente muito importante para passar na frente na

lista de espera, cardeais, deputados, ministros, etc. Os dois fazem, um para o outro, o sinal que

no filme parece ser o de reconhecimento maçônico, com um ar de desolados; estava

demonstrado ali que nenhuma fraternidade era possível em um sistema de privilégios.

O filme de Monicelli mostra a face mais interessante, e talvez real, da maçonaria dos anos

1970 até então, qual seja, a de uma estrutura capaz de docilizar uma camada média da

sociedade para que mantenha o status quo frente a uma instituição que no seu passado lutou,

realmente, contra injustiças, oferecendo assim, no presente, a sensação de que se faz o

mesmo. Giovanni Vivaldi é o burguês arquetípico, o que nos oferece uma visão cômica, que

se mostra extremamente trágica do sonho de fraternidade e pertencimento no capitalismo do

século XX e XXI.

Referências

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(seguido de valor e afeto). Trad. Renata Cordeiro. São Paulo, Editora Iluminuras Ltda, 2001.

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