os irmãos corsos · 2017-12-17 · 1a edição alexandre dumas irmaoscorsos 1 04.09.03, 9:56. ......

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Coleção Aventuras Grandiosas Os Irmãos Corsos Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez 1 a edição edição edição edição edição Alexandre Dumas Alexandre Dumas Alexandre Dumas Alexandre Dumas Alexandre Dumas

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Coleção Aventuras Grandiosas

Os Irmãos

Corsos

Adaptação de Ana Carolina Vieira Rodriguez

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Alexandre DumasAlexandre DumasAlexandre DumasAlexandre DumasAlexandre Dumas

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Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1Capítulo 1

Viajando pela Córsega

Em março do ano de 1841, resolvi fazer uma viagem pelo Mediterrâneo. Pegueiuma embarcação no porto de Toulon, que fica no sul da França, e dirigi-me a uma peque-na ilha chamada Córsega. A viagem foi longa, mas aproveitei para apreciar a paisagem,extremamente bela. Navegamos pelo mar azul intenso, com o sol quente durante o dia eas estrelas cintilando no céu à noite durante quase vinte horas, até chegarmos à capital dailha, chamada Ajácio. Em seguida, seguimos viagem por mais quatro horas, aportando fi-nalmente na cidade de Bastia, um vilarejo pitoresco do lado oposto de Ajácio.

Apesar da longa distância, a Córsega é muito visitada por turistas. É um lugarlindíssimo, onde podemos encontrar ruínas de castelos, natureza exuberante e pes-soas muito hospitaleiras. Aliás, a hospitalidade é marca registrada dos habitantes da-quela ilha. Qualquer pessoa que queira passar a noite na Córsega é recebida comtodo o conforto e muita gentileza na própria casa dos moradores de lá. Basta apresen-tar-se como um viajante cansado para desfrutar de um jantar farto e de uma cama ma-cia para dormir.

Assim que cheguei em Bastia, resolvi seguir os costumes locais e alugar um cavalo.Pensei que custasse caro, mas o preço do aluguel foi praticamente IRRISÓRIOIRRISÓRIOIRRISÓRIOIRRISÓRIOIRRISÓRIO. Os cavaloscorsos são muito fortes, pois precisam cavalgar por estradas irregulares, de solo acidenta-do. Estão acostumados a andar vários quilômetros por dia sem água, nem comida. Alémdo cavalo, contratei também um guia para me mostrar os locais mais importantes. Era umrapaz atencioso, que me levou para conhecer antigas torres e castelos FEUDAISFEUDAISFEUDAISFEUDAISFEUDAIS abandona-dos. Quando lhe perguntei se a ilha era segura, ele me respondeu:

— Não existem ladrões na Córsega. Um visitante pode trazer quanto dinheiroquiser sem o menor risco de ser roubado. Porém, existe a vendetta.

— Vendetta? — indaguei.— A palavra significa “vingança” — explicou. — A Córsega é muito conhecida

pela vendetta. Quando uma família se sente ofendida por outra, acaba jurando vin-gança pela ofensa sofrida. O desejo de vingança vai passando de geração em gera-ção, causando assassinatos cruéis. Famílias inteiras já foram mortas.

Na verdade, eu já ouvira falar que a Córsega era povoada de pessoas corajosase lutadoras, mas não imaginava que estivesse pisando numa terra de guerras e assas-sinatos justificados pela honra. Perguntei mais coisas para o meu guia:

— A vendetta é comum em toda a ilha?— É mais tradicional na região da província de Sartene, exatamente onde

estamos agora — disse, sorrindo.

IRRISÓRIO IRRISÓRIO IRRISÓRIO IRRISÓRIO IRRISÓRIO: irrelevante

FEUDAIS FEUDAIS FEUDAIS FEUDAIS FEUDAIS: relativos a feudo, que se referem a uma propriedade nobre que o senhorde certos domínios concedia mediante a condição de vassalagem e prestaçãode certos serviços e rendas

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Um arrepio percorreu todo o meu corpo ao imaginar que, naquele local, existiamlutas de espada e duelos entre famílias inimigas. Minha curiosidade se aguçou eeu pedi ao guia que me levasse a alguma vila, já que nos encontrávamos no altode uma colina.

— Quero ver como as pessoas vivem em terras de vendetta — expliquei.— Lá embaixo ficam as cidades de Olmeto e Sullacaro. Sugiro irmos até

Sullacaro, um lugar onde os costumes são bastante preservados.Realmente, assim que chegamos a Sullacaro, vi uma cidade bem diferente das

que eu conhecera no caminho. Já estava no fim da tarde e as ruas estavam desertas,como se as pessoas tivessem medo de sair depois de escurecer. Todas as casas eramconstruídas de pedras, como fortalezas, tinham as janelas e portas trancadas, além demuros que cercavam todo o terreno. Alguns muros tinham buracos bem construídos.De acordo com o guia, eles serviam para encaixar fuzis e espingardas.

Preocupado com o horário, pois em breve estaríamos no escuro, meu guia disse:— Temo que precisaremos passar a noite aqui, senhor. Não há tempo para vol-

tarmos até Bastia. Gostaria de escolher uma residência?— Posso escolher qualquer uma? — perguntei, espantado.— Aquela que lhe agradar mais.Olhei em volta e apontei para a única casa que não tinha as janelas pregadas

com pedaços de madeira e pedras. Ao contrário, a fachada da bela mansão exibia vi-draças aparentemente frágeis. No muro, viam-se alguns buracos de bala, que deviamter uns dez anos ou mais.

— Ótima escolha — disse o guia. — É a mansão da senhora Savília de Franchi,uma jovem viúva, de mais ou menos quarenta anos, mãe de dois filhos, Luís eLuciano. Uma família muito hospitaleira.

— Uma viúva tão jovem irá receber um viajante solitário? — perguntei.— Não há problema nenhum nisso. Além do mais, Luciano mora com ela.— Quantos anos têm seus filhos?— Vinte e um.— Quer dizer que os dois são gêmeos?— Sim, os dois nasceram grudados e idênticos. O médico fez uma cirurgia e os

separou logo após o nascimento. Os dois irmãos acabaram se tornando pessoas mui-to diferentes, apesar da semelhança física.

— O que fazem?— Luís mora em Paris e está estudando para ser advogado. Luciano é apenas corso.Achei a resposta um pouco estranha, afinal, como alguém pode ser “apenas

corso” de profissão? Mas, diante da garantia de meu guia de que eu seria bem recebi-do, dirigi-me à porta da grande mansão. Um homem carregando uma enorme facaespanhola na cintura veio abrir a porta. Apesar de seu aspecto ameaçador, tinha umamaneira agradável de falar e de se comportar.

— Boa-noite. Em que posso ajudá-lo? — perguntou, amavelmente.— Viajo sozinho pela Córsega e, como não conheço ninguém por aqui, vim pe-

dir para passar a noite antes de seguir viagem. Se incomodo, por favor, diga.— Esta casa terá muita satisfação em recebê-lo, senhor. Não há incômodo algum.

Espere apenas um minuto.

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Assim que voltou, o homem me ajudou a descer do cavalo, depois levou-o paraa ESTREBARIAESTREBARIAESTREBARIAESTREBARIAESTREBARIA. Despedi-me do guia, que iria dormir na casa de amigos, e fui convidadoa entrar na mansão da senhora Savília de Franchi.

Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2Capítulo 2

Na casa dos De Franchi

A simpática viúva me recebeu na porta de entrada. Era bonita, de cabelos escu-ros presos para trás e um vestido preto indicando luto pelo marido. Tinha o rosto sua-ve, porém transmitia determinação e força no olhar. Assim que me aproximei, deu-meas boas-vindas:

— Desfrute desta casa como se fosse a sua.— Obrigado, senhora. Não quero importuná-la e pretendo apenas passar a noite.

Amanhã cedo devo partir.— É uma pena, pois meu filho e eu gostaríamos de tê-lo conosco mais tempo.— Agradeço, senhora.— Agora acompanhe a criada até o quarto de meu filho Luís, que mora na França.

Ela lhe levará água quente para um banho e lenha para a lareira. Fique à vontade. Embreve meu filho Luciano estará aqui. Jantaremos dentro de uma hora.

Assim que subi as escadas e entrei no quarto, espantei-me com o tamanho dosaposentos. Havia uma cama de ferro com um colchão alto e macio no centro, umamesa com seis cadeiras, uma estante, uma escrivaninha de madeira sólida, sofás epoltronas forrados de veludo. Tudo de muito bom gosto.

Tomei banho e, enquanto aguardava a hora do jantar, resolvi olhar a estante deLuís de Franchi com mais atenção. Ele, com certeza, era amante da boa literatura, poissuas prateleiras estavam repletas de grandes poetas franceses, como Racine, Molière,La Fontaine, Victor Hugo e Lamartine, além de bons historiadores, sábios e filósofos.

Como eu era extremamente curioso, abri as gavetas da escrivaninha, empolga-do que estava por encontrar tantos livros bons. Havia um pequeno caderno sobre ahistória da Córsega, alguns poemas italianos escritos à mão e um texto, do próprioLuís, sugerindo meios de acabar com a vendetta. Encontrei também um livro meu cha-mado Impressões de viagem, o que me deixou muito orgulhoso. Sentei-me em umapoltrona a folhear algumas páginas, quando escutei batidas na porta.

— Entre — falei.Era o mesmo criado que abrira a porta da mansão para mim. Ele anunciou:

ESTREBARIA ESTREBARIA ESTREBARIA ESTREBARIA ESTREBARIA: lugar onde se recolhem cavalos e arreios

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— O senhor Luciano de Franchi está aqui e deseja vê-lo.— Por favor, faça-o entrar — pedi, colocando-me de pé.Luciano era um jovem alto e forte, de fisionomia séria, porém simpática. Calça-

va botas com esporas e usava uma CARTUCHEIRACARTUCHEIRACARTUCHEIRACARTUCHEIRACARTUCHEIRA com duas pistolas. Tinha um ar inde-pendente, apesar da pouca idade.

— Vim dar-lhe as boas-vindas — falou o rapaz.— Agradeço imensamente a hospitalidade. Sua mãe me proporcionou um trata-

mento impecável. Sinto-me melhor do que se estivesse em minha própria casa.— Que bom, pois em breve nossa Córsega será lembrada apenas por esta velha

tradição de receber bem os estrangeiros. De resto, nós corsos somos rudes, quase sel-vagens, se comparados aos franceses, principalmente.

— Quisera eu ser um selvagem como vocês, tendo uma biblioteca de tão altaqualidade — disse eu, em tom de brincadeira, apontando para os livros da estante.

Luciano sorriu discretamente e respondeu:— Meu irmão Luís sempre cultivou os hábitos franceses, apesar de amar tam-

bém a Córsega. Acho que será difícil para ele se acostumar com nossa vida por aquidepois que retornar de Paris.

— Há quanto tempo ele foi para a França? — perguntei.— Há seis meses.— E quando pretende voltar?— Só depois de uns três ou quatro anos, não sei bem. Está estudando Direito.— Vocês são muito amigos?— Muito — respondeu Luciano, deixando um ar tristonho tomar conta de seu rosto.

— Além da nossa aparência ser quase idêntica.— Ouvi dizer que são gêmeos…— A única coisa que nos difere é o tom da pele. Luís é mais claro, pois gosta

muito de ficar em casa estudando. Eu, como o senhor pode ver, sou bastante more-no, devido aos hábitos que tenho de cavalgar, subir montanhas, nadar. Não consigoficar parado um instante sequer.

— O senhor não tem vontade de ir visitá-lo em Paris?— Não — respondeu determinado. — Eu não deixo a Córsega por nada.— Espero, então, que me dê a honra de levar uma carta, ou talvez um presente

para seu irmão. Terei imenso prazer em conhecer Luís de Franchi.— É claro, minha mãe e eu lhe agradeceríamos imensamente. Agora, se me dá

licença, vou me trocar para o jantar.— Se vai trocar de roupa por minha causa, não se incomode. Não tenho cerimô-

nias com as refeições.— Obrigado, mas preciso mesmo vestir uma roupa mais confortável, tenho um

encontro depois do jantar.Sorri e Luciano foi logo se explicando.— Não, não se trata do que o senhor está imaginando. É só um encontro de

negócios.

CARTUCHEIRA CARTUCHEIRA CARTUCHEIRA CARTUCHEIRA CARTUCHEIRA: faixa de lona ou de couro com orifício para cartuchos de balas, usa-da, comumente, à cintura ou a tiracolo

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— Perdoe-me, não queria ser indiscreto.— Não há nada para se desculpar. Mas por que não vem ao meu quarto daqui a

alguns minutos? Assim que estiver pronto, mandarei a criada chamá-lo. Poderei entãolhe mostrar meu ARSENALARSENALARSENALARSENALARSENAL. Tenho armas belíssimas, algumas de grande valor histórico.

Logo que adentrei o quarto de Luciano, pude perceber grande diferença entre osgêmeos. Luís era um estudioso, enquanto Luciano era um guerreiro. Havia pistolas, facas eespadas penduradas pela parede. Pedi que me mostrasse alguma arma histórica.

— Este SABRESABRESABRESABRESABRE — apontou-me a parede sobre a cama. — Meu avô o recebeu dasmãos do próprio Napoleão Bonaparte durante a Batalha das Pirâmides. Leia a inscriçãoda lâmina.

Aproximei-me e li, gravado em letras bem finas: “Batalha das Pirâmides, 21 dejulho de 1798 ”. Peguei nas mãos também um punhal que pertencera a Sampietro, ofamoso matador de Vanina, e uma espada entregue à avó de Luciano por Paoli. A se-nhora recebera a espada como sinal de desculpas, uma vez que ela havia perdido umfilho em nome da pátria.

Quando já íamos sair do quarto para jantar, duas CARABINASCARABINASCARABINASCARABINASCARABINAS chamaram a mi-nha atenção. Luciano se aproximou e disse:

— Estas também são históricas, pelo menos para os De Franchi.— A quem pertenceram? — perguntei.— Uma ao meu pai e a outra… à minha mãe.Descemos as escadas e encontramos a senhora Savília de Franchi já sentada

à mesa. “Uma mulher que tem uma carabina”, pensei. “Preciso observá-la com maioratenção.” Luciano beijou a mão da mãe e pediu desculpas pelo nosso atraso.

— Eu é que peço desculpas, senhora De Franchi. É que seu filho estava memostrando armas maravilhosas e contando histórias incríveis — disse eu.

— Não se preocupe. Acabei de me sentar. Mas diga, Luciano, tem notícias de Luís?Estou preocupada — falou, dirigindo-se ao filho.

— Infelizmente não, mamãe.— Aconteceu alguma coisa? — perguntei.— Não sabemos, mas Luciano tem sentido angústia e tristeza nos últimos dias

— explicou a senhora.— Desculpem-me, mas não entendo o que os sentimentos de Luciano possam

ter a ver com Luís.— Como sabe, somos gêmeos. Nascemos grudados e fomos separados quando

bebês — disse Luciano.— Sim, o guia me contou.— Pois bem, temos corpos distintos, mas o sentimento de um reflete no outro,

seja alegria ou tristeza. As experiências físicas também são vivenciadas, sendo que seLuís sofre algum acidente, por exemplo, eu também sinto suas dores e vice-versa.

— O importante é que ele está vivo — disse a senhora De Franchi.— Isso com certeza, mamãe. Se Luís tivesse morrido, eu saberia.

ARSENAL ARSENAL ARSENAL ARSENAL ARSENAL: lugar onde há muitas armas

SABRE SABRE SABRE SABRE SABRE: espada curta e curva, que corta apenas de um lado

CARABINA CARABINA CARABINA CARABINA CARABINA: espingarda, fuzil

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Calei-me, intrigado que estava com tantas coisas estranhas. Primeiro um rapazde vinte e um anos que não estuda, nem trabalha, “é apenas corso”, como me disse oguia. Depois uma senhora dona de uma carabina. E agora dois irmãos que sentem asangústias e dores um do outro.

Capítulo 3Capítulo 3Capítulo 3Capítulo 3Capítulo 3

Histórias sobre a vendetta

Depois de alguns minutos em silêncio, Luciano pareceu adivinhar meus pensa-mentos.

— Não sei qual é a sua profissão, nem lhe peço que nos diga. Tem o direito demantê-la em segredo, se assim o desejar, mas acredito que tenha vindo à Córsegaatrás da famosa vendetta. Queria ver um bandido de verdade, acertei?

— Na realidade, vim em busca de um passeio diferente, com belas paisagens,montanhas, mar… Mas confesso que, quando meu guia falou sobre a vendetta, fiqueicurioso.

— Pois venha comigo esta noite e eu lhe apresentarei um bandido em carne e osso.— Está falando sério, senhor Luciano?— Sim, mas deixe de me chamar de senhor.— Está bem, contanto que também me trate por você. Agora me diga, sua famí-

lia também faz parte da vendetta? — perguntei, entusiasmado.— Graças a Deus, não. Esse costume acaba com a reputação da Córsega. Como

pode ver, nossa casa é das únicas que não se transformaram numa verdadeira fortale-za fechada. Ainda podemos abrir a janela. Porém, tenho um papel nisso tudo.

— Qual?— Sou o mediador entre as famílias inimigas. Trabalho como árbitro.— Não é possível acabar com tantos atos de vingança? — perguntei.— Inúmeras tentativas já foram feitas — respondeu a senhora De Franchi. — Mas

quando tudo está calmo, algo acontece e os duelos recomeçam.— E qual foi a causa da briga?Os dois se entreolharam, como se estivessem com vergonha de falar.— O importante não é a causa, mas sim as conseqüências — disse Luciano.— É algum motivo secreto? — insisti.— Não, de jeito nenhum. O problema é que a razão da mais recente desavença

entre famílias corsas é ridícula. Um dia, cerca de dez anos atrás, uma galinha fugiu dogalinheiro dos Orlandi e foi parar no galinheiro dos Colona. Quando os Orlandi forambuscar a ave, os Colona não quiseram devolvê-la. Afirmaram que a galinha era deles.Os verdadeiros donos da galinha, então, disseram que chamariam as autoridades. Foiquando, irritada, a senhora Colona pegou a galinha, torceu-lhe o pescoço e a jogou

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no quintal dos vizinhos, dizendo: “Se é de vocês, que a comam”. Um burburinho co-meçou, houve discussões e até agressões físicas. Um Orlandi pegou a galinha mortapelos pés e bateu na senhora Colona com força. Nisso, um Colona veio de dentro dacasa com uma espingarda carregada e atirou no Orlandi que batera na senhoraColona à queima-roupa. O rapaz morreu na hora.

— Muita gente já morreu depois disso? — perguntei.— Nove pessoas — respondeu a senhora De Franchi. — Para que a décima não

precise morrer, Luciano escreveu um tratado de paz e espera conseguir a assinaturadas duas famílias.

— Suponho que tenha feito isso a pedido de alguém envolvido.— Não — respondeu Luciano. — A pedido de meu irmão Luís que, desde a ado-

lescência, luta contra a vendetta.— E você acha que conseguirá as assinaturas?— Espero que sim. Apesar de que, na Córsega, vivemos de surpresas. O homem

que veremos hoje à noite é um Orlandi. O encontro será às nove horas nas ruínas docastelo de Vicentello d’Istria. É a última tentativa que me resta para convencê-lo a assi-nar o acordo.

— É longe daqui? — perguntei.— Apenas quarenta e cinco minutos a cavalo.— Luciano — disse sua mãe —, para você, um montanhês NATONATONATONATONATO, são apenas qua-

renta e cinco minutos, mas um parisiense cansado de viajar pode levar mais tempo.— Tem razão, mamãe. Neste caso, precisamos ir. Vamos buscar as espingardas.Pegamos as armas e começamos a subir a enorme colina atrás do povoado. O

luar estava esplendoroso e Luciano resolvera levar Diamante para nos acompanhar,um enorme cão espanhol que saltitava entre nós e, por vezes, corria na frente abrindocaminho. Pouco antes de partirmos, recomendou ao empregado:

— Avise na cidade que, se ouvirem tiros, somos nós caçando FAISÕESFAISÕESFAISÕESFAISÕESFAISÕES. Podempensar que a vendetta está recomeçando e isto é a última coisa que eu quero.

O terreno que percorríamos era muito acidentado e a montanha bem ÍNGRE-ÍNGRE-ÍNGRE-ÍNGRE-ÍNGRE-MEMEMEMEME. Eu realmente estava mais cansado que Luciano, tão acostumado a esse tipo decaminhada, mas a beleza da noite não deixava que eu me arrependesse um minutosequer de ter acompanhado o jovem corso. Quanto mais subíamos, mais o marprateado pela luz da lua se destacava. A cidade lá embaixo parecia dormir em paz, es-quecida das lutas e vinganças.

Certa hora, percebi que o cachorro FACEIROFACEIROFACEIROFACEIROFACEIRO que abria nosso caminho havia de-saparecido. Logo em seguida, escutei um sonoro uivo.

— Esse uivo… será Diamante? — perguntei a Luciano. — Faz tempo que seperdeu de nós.

— Não se preocupe, é ele, sim. Diamante está triste e chora por seu dono morto.— Então, Diamante não é seu?

NATO NATO NATO NATO NATO: que é de nascença, inerente à natureza

FAISÕES FAISÕES FAISÕES FAISÕES FAISÕES: aves da família das galinhas, que têm ótima carne e belas plumagens

ÍNGREME ÍNGREME ÍNGREME ÍNGREME ÍNGREME: difícil de subir, que tem forte aclive

FACEIRO FACEIRO FACEIRO FACEIRO FACEIRO: alegre, contente, satisfeito

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— Não, pertencia a um Orlandi, morto por um Colona. Logo que perdeu o dono,Diamante veio sozinho até a minha casa. Acabei ficando com ele, pois já o conhecia etinha por ele uma grande afeição.

— E o outro cachorro, aquele que vi da janela do quarto de Luís?— Aquele é Brusco. Foi de um Colona, assassinado por um Orlandi. Também

adotei-o. Infelizmente não posso colocá-los perto um do outro, pois lutariam até amorte. Os homens podem até se acalmar, mas os cães agem por instinto e não dei-xam nunca suas raivas de lado. Sempre que tenho negócios com um Orlandi, levoDiamante. Quando me encontro com um Colona, deixo Brusco me acompanhar.

— Mas, afinal, onde está Diamante?— Está no túmulo de seu antigo dono, logo em frente. É na verdade um mo-

numento, o qual chamamos Mucchio. Sempre que as pessoas passam em frente,atiram pedras e galhos, fazendo com que, ao contrário dos túmulos comuns, quetendem a desaparecer, este se torne cada vez maior. Uma verdadeira pirâmide deplantas e pedras.

— E qual o significado disso?— É um sinal de que o desejo de vingança pela morte daquela pessoa deve

crescer cada vez mais no peito dos seus familiares.Aproximamo-nos do local. Diamante olhava, imóvel, o enorme túmulo de seu

dono. Luciano pegou uma pedra, algumas folhas secas e as colocou sobre a pirâmide.Fiz o mesmo. Depois voltamos para a estrada. Diamante ficou lá por mais algum tem-po. Escutávamos seus uivos ao longe. Logo depois, o cão passou correndo e nos ultra-passou, voltando a nos ESCOLTARESCOLTARESCOLTARESCOLTARESCOLTAR.

Depois de grande esforço, chegamos às ruínas do castelo de Vicentello d’Istria.O luar iluminava tudo e, como estávamos cansados, sentamo-nos sobre uma pedra.Luciano pôs-se a me contar outra história sobre seus antepassados.

— Este castelo já pertenceu aos De Franchi, antes do nascimento de Vicentello— começou. — Nossa família também participava da vendetta, tempos atrás. Éramosinimigos dos Giúdices, cujo castelo também está em ruínas, a poucos quilômetros da-qui. Essa luta durou quase quatrocentos anos.

— E como terminou? — perguntei.— Foi no dia 21 de setembro de 1819, às onze horas da manhã.— Exatamente a data que vi gravada nas duas carabinas que pertenceram ao

seu pai e sua mãe! — disse, exultante, pois sabia que estava prestes a descobrir o mis-tério sobre a senhora Savília de Franchi.

— Meus pais foram bravos guerreiros. Um Giúdice atacou meu pai no mato, acaminho de Sullacaro, enquanto outro invadiu a casa dos De Franchi para matar minhamãe. Os dois Giúdices foram mortos por aquelas carabinas que você viu na parede,pelas mãos dos meus pais, quase no mesmo horário. Desde aquela data, não houvemais guerras entre as duas famílias. Meses depois, nasceram os dois gêmeos, o corsoque aqui se encontra e o ERUDITOERUDITOERUDITOERUDITOERUDITO Luís.

ESCOLTAR ESCOLTAR ESCOLTAR ESCOLTAR ESCOLTAR: acompanhar para defender ou guardar; ir ou seguir junto de; acompanhar

ERUDITO ERUDITO ERUDITO ERUDITO ERUDITO: estudioso

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Capítulo 4Capítulo 4Capítulo 4Capítulo 4Capítulo 4

Uma aventura corsa

Naquele exato momento, ouvimos o relógio de Sullacaro soar nove badaladasao longe. Um barulho vindo da entrada do castelo fez Diamante se levantar e meucoração quase sair pela boca. Aquelas conversas sobre tiros e mortes haviam me as-sustado mais do que deveriam.

— Não se preocupe — acalmou-me Luciano. — É Orlandi que se aproxima.— Veio acompanhado? — perguntou o bandido, assim que se aproximou.— Este é Alexandre, senhor Orlandi. Ouviu falar no senhor e por isso quis conhecê-lo.— Sendo assim, seja bem-vindo — afirmou.— Obrigado — respondi, inclinando levemente a cabeça.— Vejo que se adiantou, senhor De Franchi — continuou.— Calculei mal o tempo, pois achei que meu amigo parisiense demoraria mais

para subir a montanha. Já o senhor, continua pontual como sempre — disse Luciano.— Nove horas são nove horas, nem mais nem menos.— Está bem, agora vamos ao que interessa.Os dois pediram licença e foram conversar longe de mim. Tentei ouvir o que

falavam, mas deviam estar usando algum DIALETODIALETODIALETODIALETODIALETO corso, pois eu não conseguia en-tender uma palavra sequer. O senhor Orlandi gesticulava muito, parecendo não estarsatisfeito com as coisas que Luciano falava, mas, depois de um tempo, os dois aperta-ram as mãos e caminharam na minha direção.

— O senhor Orlandi quer cumprimentá-lo — disse Luciano.— Por quê? — perguntei, sem compreender o motivo.— Prometi que você seria seu padrinho no acordo de paz amanhã — respondeu

o jovem corso.— Se prometeu alguma coisa em meu nome, aceito SEM PESTANEJARSEM PESTANEJARSEM PESTANEJARSEM PESTANEJARSEM PESTANEJAR — respondi.O senhor Orlandi estendeu a mão e nos cumprimentamos. Depois, Luciano

continuou a falar:— Quem sabe, além da paz, não teremos um casamento em breve?— Casamento, não! — exclamou o bandido. — Prefiro a morte a ver meu filho

Bonomi Orlandi casado com Graziella Colona.— Ora, senhor Orlandi, os dois jovens se gostam. Por que privá-los do amor que sentem?— Senhor De Franchi, a paz será selada, como o senhor e seu irmão desejam.

Isso já é o bastante. Não me peça para fazer mais concessões.— Está bem, senhor Orlandi. Agora, que tal procurarmos algum faisão para o al-

moço de amanhã? Pedi que meu empregado fosse à cidade avisar que iríamos caçar.

DIALETO DIALETO DIALETO DIALETO DIALETO: variedade regional de uma língua

SEM PESTANEJAR SEM PESTANEJAR SEM PESTANEJAR SEM PESTANEJAR SEM PESTANEJAR: sem manifestar dúvidas

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— Vi um bem grande perto do Mucchio — falou o bandido, já mais calmo.— Ótimo, peguem as espingardas — disse Luciano.Luciano matou um enorme faisão com um tiro certeiro. Despedimo-nos do se-

nhor Orlandi, enquanto o jovem corso amarrava a ave abatida na cintura, e começa-mos a descer a montanha.

— Vou me demorar mais um pouco — disse o bandido. — Talvez consiga mataralgum faisão também.

Cerca de vinte minutos depois, quando já avistávamos algumas casas mais pró-ximas do morro, ouvimos uma SARAIVADASARAIVADASARAIVADASARAIVADASARAIVADA de tiros a distância. Luciano ficou subita-mente pálido.

— Deus do céu, o criado não deve ter conseguido falar com os Colona. Elespensam que o senhor Orlandi saiu de casa para planejar algum ataque e devem tercercado a casa dele.

Se Luciano, que era corso, acostumado à vendetta, estava praticamente em pâ-nico, imagine – eu.

— O que devemos fazer??? — perguntei, quase gritando.— Preciso descer o mais rápido possível. Se quiser, vá mais devagar – res-

pondeu Luciano.— De jeito nenhum, vou com você.Corremos como doidos, quase caindo nos altos PRECIPÍCIOSPRECIPÍCIOSPRECIPÍCIOSPRECIPÍCIOSPRECIPÍCIOS que cruzavam o

caminho. Meu coração batia mais forte à medida que eu escutava mais e mais tirosvindos da aldeia. Assim que conseguimos alcançar a casa dos Orlandi, vimos o senhorOrlandi escondido atrás do muro. O bandido descera a montanha por outro caminhoe com que rapidez!

Tentamos falar com ele, mas quando fizemos um pequeno movimento em di-reção à casa, vários tiros de espingarda saíram de trás de uma árvore. Eram os Colona,que nos confundiam com algum Orlandi. Olhei para Luciano e percebi que uma balahavia lhe atingido no ombro. Ele e eu estávamos, de uma hora para outra, no meio dofogo cruzado de famílias em luta.

Não ousávamos falar, pois qualquer ruído era motivo para um novo tiroteio. Aju-dei meu amigo a amarrar um pano no pescoço, que serviu de torniquete, mas nemsei como consegui fazer isso, tanto que minhas mãos tremiam.

De repente, Luciano me disse:— Espere aqui.O rapaz saiu correndo para trás de uma árvore, sem que eu pudesse fazer ou

dizer qualquer coisa. De lá, ele começou a gritar:— Sou Luciano de Franchi. Fui ferido no ombro!As balas que vinham dos arbustos, das árvores e da grande mansão dos Orlandi

pararam subitamente de cruzar o ar. Num golpe de coragem, Luciano andou para omeio da rua e mostrou o ferimento. Em seguida, falou:

— Os tiros que vocês escutaram foram disparados por mim. Eu estavacaçando faisões. Por alguma razão, meu criado não os avisou. Os Orlandi não

SARAIVADA SARAIVADA SARAIVADA SARAIVADA SARAIVADA: descarga

PRECIPÍCIOS PRECIPÍCIOS PRECIPÍCIOS PRECIPÍCIOS PRECIPÍCIOS: abismos, local íngreme

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têm nada a ver com isso. O senhor Orlandi e eu nos encontramos para selar apaz entre vocês.

O senhor Colona, então, gritou:— Se algum filho meu foi morto, acabo de vez com os Orlandi.— Estamos todos bem, pai, Anselmo, Napoleão, Paolo e eu, Ferrúcio — falou

uma voz jovem, saindo de trás de uma árvore.— Há alguém ferido dentro da mansão? — gritou o senhor Orlandi, ainda do ou-

tro lado do muro.— Não — respondeu um de seus filhos, lá de dentro.— Pois então quero os dois chefes das famílias aqui comigo — ordenou Luciano.O senhor Colona e o senhor Orlandi se aproximaram do jovem corso, que os

obrigou, muito contrariados, a voltarem para casa sem que um insulto sequer fossedito um ao outro.

— Amanhã assinaremos o contrato de paz, como combinado — falou Luciano,em tom de autoridade.

As famílias foram dormir em paz e a cidade caiu novamente num silêncioacolhedor. Luciano me pediu que o levasse até a casa do médico que, com certe-za, estava acordado diante do tumulto. O doutor tirou-lhe a bala do ombro e reco-mendou repouso.

Quando voltamos para casa, a senhora Savília de Franchi nos aguardavacalmamente, como se estivesse acostumada a acontecimentos como o da-quela noite.

— Perdoe-me, meu filho. Por um descuido meu, dei algumas tarefas ao criado.Quando ele saiu para falar com os Colona, era tarde demais, pois os tiros da caçada jáse faziam ouvir aqui embaixo — ela explicou.

Fomos todos dormir exaustos, mas eu não consegui pregar os olhos, tamanhastinham sido as emoções que a Córsega me proporcionara.

Capítulo 5Capítulo 5Capítulo 5Capítulo 5Capítulo 5

Aparições para os homens da família De Franchi

No dia seguinte cedo, Luciano bateu na porta do meu quarto. Disse que tinhadormido muito bem e que quase não sentia o ferimento do ombro. Descemos paratomar café da manhã e, como ainda faltava cerca de meia hora para o encontro comos Colona e os Orlandi na praça central, ficamos conversando um pouco.

— Luciano — falei —, se não estou sendo indiscreto, gostaria que me explicassemelhor como você e seu irmão são capazes de sentir as dores um do outro.

O rapaz calou-se e ficou olhando para a janela.— Desculpe, não precisa falar se não quiser — acrescentei.

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— Temo que nos julgue malucos. Não creio que um parisiense irá acreditarnuma tradição que vem ocorrendo há mais de quatro séculos na família De Franchi.

— Está enganado — disse eu. — Para que não tenha dúvidas de que sou umapessoa CRÉDULACRÉDULACRÉDULACRÉDULACRÉDULA, vou lhe contar o que me aconteceu quando pequeno.

Luciano se acomodou melhor na cadeira, como que mostrando interesse pelaminha história.

— Pois bem — comecei —, quando eu tinha três anos, meu pai faleceu. Na noitede sua morte, como ele estava agonizando, fui levado para a casa de uma tia. De ma-drugada, acordei assustado com batidas na porta do quarto em que eu estava dormin-do. Levantei imediatamente da cama para abri-la, mas minha tia, que dormia ao lado,impediu-me. Ela não escutava nada e pensou que eu estivesse sonhando. Chorei semparar, dizendo: “Papai veio dizer adeus, quero falar com ele!”.

— E depois? — perguntou Luciano. — Seu pai apareceu outras vezes?— Nunca mais. Acho que só as crianças têm o privilégio dessas aparições. São

criaturas inocentes, sem julgamentos.— Na nossa família é diferente. Sempre vemos os parentes mortos quando algo

importante está para acontecer.— E vocês sabem por quê?— Só o que sabemos é que uma antepassada da família, também chamada

Savília, como minha mãe, morreu deixando dois filhos homens. Os dois eram tão ami-gos que fizeram um pacto. Quando um morresse, o outro viria avisá-lo. Além disso,aquele que vivesse receberia a visita do irmão morto nos momentos mais grandiososde sua vida.

— E isso aconteceu?— Sim — continuou o jovem corso. — Um deles foi pego numa EMBOSCADAEMBOSCADAEMBOSCADAEMBOSCADAEMBOSCADA

bem na hora em que o irmão lhe escrevia uma carta. No momento exato em que acarta foi fechada, o rapaz sentiu a mão do irmão tocando-lhe o ombro. Voltou-se paratrás, entregou-lhe a carta e o viu desaparecer no ar. Desde aquele dia, os homens daminha família vêem aparições em momentos significativos da vida.

— Só os homens?— Somente os homens, não sabemos por quê. Meu pai recebeu um aviso de

meu avô quando estava prestes a morrer, por isso Luís e eu acreditamos que tambémseremos avisados, caso algo aconteça a um de nós.

Fiquei pensativo por alguns instantes, maravilhado com uma história tão fantástica.Nisso, o empregado da casa entrou, avisando que a praça já estava cheia de gente.

— Meu Deus! — exclamou Luciano. — Faltam apenas dez minutos para a assina-tura do tratado de paz. Perdemos a noção do tempo conversando.

Levantamos da mesa e nos dirigimos ao centro de Sullacaro. Luciano estavamuito bem vestido, segundo ele, com roupas parisienses enviadas por Luís, que ele sóusava em ocasiões especiais.

CRÉDULA CRÉDULA CRÉDULA CRÉDULA CRÉDULA: pessoa que crê (acredita) facilmente

EMBOSCADA EMBOSCADA EMBOSCADA EMBOSCADA EMBOSCADA: ato de esperar às escondidas o inimigo para assaltá-lo, cilada

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Capítulo 6Capítulo 6Capítulo 6Capítulo 6Capítulo 6

Um casamento, a garantia de paz

O acordo de paz foi assinado em uma bela cerimônia, na qual estavam pre-sentes muitos moradores da província de Sartene, o prefeito e o padre deSullacaro, Luciano, que fazia sempre o papel de mediador, os chefes das famíliasOrlandi e Colona e seus padrinhos. Eu, como padrinho de Orlandi, fui chamadopara assinar o tratado, que seria emoldurado e pendurado na Prefeitura, para queninguém se esquecesse daquela data, 4 de março de 1841. A parte mais emocio-nante da cerimônia foi quando Luciano pediu que o senhor Orlandi e o senhorColona apertassem a mão um do outro. Os dois não pareciam muito satisfeitos,mas o fizeram, arrancando palmas da multidão.

Quando tudo parecia ter terminado e a paz fora finalmente selada, uma vozmasculina, alta e forte, surgiu no meio da multidão:

— Esperem! Não vão embora!O rapaz, dono da voz, caminhou por entre as pessoas e subiu no palanque

montado para o evento. Era bem jovem, mas aparentava a mesma determinaçãoque eu vira em todos os homens corsos até então.

— Bonomi Orlandi, o que quer? — perguntou Luciano.— Quero pedir a mão de Graziella Colona em casamento.A menina também subiu no palanque, emocionada, enquanto um enorme

burburinho agitava os espectadores. O senhor Orlandi e o senhor Colona puxaramos filhos para perto deles, cada um jurando que não aceitaria a união.

— Minha filha nunca será uma Orlandi! — gritou Colona.— Nem meu filho fará parte da sua família! — revidou Orlandi.Foi necessário que Luciano intercedesse novamente, acalmando os pais e a

multidão, que pedia empolgada o casamento dos dois jovens. Graziella chorava eera consolada pela mãe, enquanto Bonomi pedia ajuda ao padre.

Depois de muita discussão, vencidos pelo cansaço e pelos bons argu-mentos de Luciano, o senhor Orlandi e o senhor Colona acabaram aceitandoo casamento, convencidos de que esse laço de matrimônio impediria definiti-vamente a vendetta entre as duas famílias. O padre achou melhor celebrar aunião naquela hora mesmo, para evitar arrependimento por parte dos pais. Oque se seguiu foi uma linda cerimônia de casamento, que emocionou a todosque ali estavam.

Feliz da vida por ter sido testemunha de acontecimentos tão importantes, deci-di partir naquela tarde mesmo. O guia me encontrou na casa dos De Franchi logoapós o almoço e esperou que eu me despedisse da família que me hospedou.

— Tem certeza de que não quer ficar mais um dia? — perguntou a senhoraSavília de Franchi.

— Agradeço, mas preciso voltar logo a Paris. Tenho muito trabalho para fazer.

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— Vi seu nome assinado no tratado de paz — disse, envergonhada, a senhora.— Queria que soubesse que li vários livros seus e gostei muito.

— Obrigado, fico muito LISONJEADOLISONJEADOLISONJEADOLISONJEADOLISONJEADO com isso e prometo mandar-lhe os pró-ximos que eu venha a publicar.

Luciano aproximou-se, trazendo uma carta para o irmão.— Você pode entregá-la a Luís?— É claro, terei imenso prazer em poder retribuir um pouco da hospitalidade

que recebi. Agora me diga, Luciano, posso esperá-lo para uma visita em Paris?— Creio que não, Alexandre. Não desejo sair da Córsega, como lhe disse.— De qualquer maneira, aqui está meu cartão. Prometa que irá me procurar,

caso um dia vá a Paris.— Se eu for a Paris, será a primeira pessoa que visitarei — disse o jovem

corso, com determinação.O guia e eu saímos cavalgando pela estrada. Luciano e sua mãe observa-

ram-nos da porta da mansão, até que nos perderam de vista. No caminho, um ca-valo se aproximou com rapidez. Paramos um pouco assustados, mas logo vi queera o senhor Orlandi.

— Não poderia deixar que partisse sem agradecer-lhe por ter sido meupadrinho.

— Não precisava se incomodar, senhor Orlandi, foi um prazer. Imagino queesteja satisfeito com o final da vendetta.

— Mais ou menos, mais ou menos… — suspirou.Percebi que a vendetta já fazia parte das vidas daquelas pessoas. A quebra

de uma tradição os deixava um pouco perdidos, sem saber ao certo como proce-der diante das coisas do dia-a-dia.

— O que o senhor irá fazer agora? — perguntei.— Cuidar da minha plantação de uvas.— Ah, o senhor é fazendeiro?— Não, senhor, sou corso. Os corsos não trabalham. O serviço na fazenda é

feito pelos trabalhadores. Nós só supervisionamos tudo, de espingarda em punho.— É só isso que fazem? — perguntei.— Caçamos também, enquanto as mulheres cuidam da casa e da comida.— Então, desejo-lhe boa caçada, senhor Orlandi. E não se esqueça de que a

paz deve reinar na cidade a partir de agora.O antigo bandido concordou e saiu galopando, meio triste com essa cons-

tatação. Eu continuei a viagem, pensando se os Colona e os Orlandi iriam de fatorespeitar o final de tantos anos de vendetta. Conheci outros lugares muito boni-tos, mas os dias que passei em Sullacaro foram realmente os mais marcantes dajornada. Cerca de duas semanas depois, estava de volta a Paris.

LISONJEADO LISONJEADO LISONJEADO LISONJEADO LISONJEADO: satisfeito, orgulhoso; honrado

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Capítulo 7Capítulo 7Capítulo 7Capítulo 7Capítulo 7

O inquieto Luís de Franchi

Logo que cheguei a Paris, fui procurar Luís de Franchi, mas, infelizmente, o ra-paz não estava em casa. Deixei um bilhete com o criado, no qual eu me apresentavae dizia ter prometido à senhora Savília de Franchi que entregaria a carta de seu irmãoLuciano pessoalmente. No dia seguinte, logo após o café da manhã, meu empregadoavisou que o senhor Luís de Franchi estava na porta.

— Faça-o entrar – disse.Assim que vi Luís, quase caí para trás. A semelhança entre os irmãos era tão

grande que eu parecia estar diante de Luciano. Não pude conter meu espanto e a pri-meira coisa que disse, antes mesmo de ele falar qualquer coisa, foi:

— Meu Deus, o senhor e seu irmão são idênticos!Luís sorriu:— Somos realmente muito parecidos fisicamente, embora tenhamos gostos

bastante diferentes. Agora, desculpe-me senhor, mas quando li seu bilhete, tive ÍMPE-ÍMPE-ÍMPE-ÍMPE-ÍMPE-TOTOTOTOTO de vir até sua casa ontem à noite mesmo. Sou seu leitor há muito tempo e sempredesejei conhecê-lo pessoalmente.

— Obrigado mas, na verdade, depois de ter sido tão bem recebido por sua fa-mília na Córsega, era eu que estava ansioso por conhecê-lo.

— Sinto falta de minha casa, senhor Alexandre. Quero que me conte como vãoas coisas por lá.

— Prometo contar-lhe, se deixar de me chamar de senhor.— Está bem — respondeu o rapaz, meio sem graça. — Também não tenha ceri-

mônias comigo — pediu.— Por enquanto, aqui está a carta de seu irmão. Fique à vontade, sente-se e leia

com calma. Enquanto isso, vou pedir que meu criado nos sirva um suco.Luís parecia um pouco emocionado quando acabou de ler a carta, por isso,

perguntei:— Você está bem, Luís? Todos estão preocupados com você lá na Córsega.— Sim, estou bem. Passei por uma fase difícil há pouco tempo e creio que a carta

de Luciano tenha me deixado triste em saber que ele também sentiu minhas angústias.— Então é mesmo verdade? — perguntei. — Vocês sentem as dores um do outro?— Sim. Outro dia, por exemplo, senti um forte baque no ombro e logo percebi

que Luciano devia ter se ferido. Felizmente, a dor passou rápido e penso que meu ir-mão tenha se recuperado.

— Ele está bem! — exclamei, constatando, de fato, a relação sensitiva entre osirmãos. — Eu estava lá quando ele levou um tiro no ombro, mas no dia seguinte jáestava ótimo. Foi um tiroteio entre os Orlandi e os Colona.

— Mas, pelo que li, a vendetta chegou ao fim.

ÍMPETO ÍMPETO ÍMPETO ÍMPETO ÍMPETO: impulso, precipitação súbita

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— Eu mesmo assinei o tratado de paz como padrinho do senhor Orlandi. Alémdisso, como Luciano deve ter escrito, Bonomi e Graziella se casaram diante de todos.

— Vejo que já conhece muito bem minha velha Sullacaro, Alexandre.— Foi uma viagem inesquecível. Mas diga, Luís, o que aconteceu que lhe cau-

sou tanto aborrecimento e angústia?— É melhor que nem falemos sobre isso. As feridas já estão cicatrizando.— Como queira.— Gostaria de vê-lo mais vezes, assim poderíamos conversar sobre minha cida-

de natal e sobre literatura — disse Luís.— Com prazer. Que tal irmos ao baile de máscaras amanhã, que é Sábado de

Aleluia? Ouvi dizer que será no salão Ópera e, como voltei de viagem recentemente,estou querendo rever alguns amigos. Nada melhor do que uma festa.

— Ótima idéia! Amanhã tenho um encontro à uma hora da manhã em frente aorelógio do salão de baile. Poderíamos nos encontrar à meia-noite e meia.

No dia seguinte, no horário combinado, lá estava Luís, em frente ao relógio. Fi-cou feliz em me ver, mas parecia um pouco agitado. Olhava para todos os lados,como se procurasse alguém. As pessoas usavam máscaras e as mulheres levavam ra-malhetes de flores nas mãos. Certa hora, Luís pediu licença:

— Se me permite, volto logo, lá está a pessoa que eu esperava.Vi que Luís foi conversar com uma mascarada segurando um ramo de violetas,

mas como tinha muita gente ao meu redor, logo os perdi de vista. Algumas pessoasvieram cumprimentar-me, dar-me as boas-vindas de volta a Paris, entre elas, um bomamigo, chefe de um importante jornal da capital francesa. Junto dele, estava uma beladama carregando um ramo de miosótis.

— Alexandre! Já voltou de viagem! Faço questão de que vá cear em minha casadepois do baile.

— Não posso, Davi. Estou com um amigo.— Leve seu amigo também. Há bastante comida e animação para todos!— Vou consultá-lo e te respondo mais tarde. A que horas será a ceia?— Às três horas.Quando Luís se aproximou, parecia um pouco abatido.— Más notícias, Luís? — perguntei.— Não tão boas.— Vamos comigo cear na casa de um amigo, isso vai animá-lo um pouco.— Não posso, não fui convidado.— Foi sim, meu amigo faz questão de que eu o leve comigo.— Acho que não serei uma boa companhia, Alexandre. Vamos deixar para outro dia.Neste momento, Davi se aproximou, dançando com seu ramo de miosótis.— Infelizmente, não poderei ir ao jantar, Davi — disse eu.— Não quero nem saber, Alexandre. Espero por você e seu amigo às três horas.Luís pareceu se entusiasmar subitamente:— Por que não me disse que seu amigo era o senhor Davi? Nesse caso, tudo

muda de figura. É claro que irei ao jantar.— Conhece Davi? — perguntei.— Apenas de vista, do jornal.

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— Ótimo, então vamos avisá-lo da nossa presença — falei, dirigindo-me paraonde Davi estava.

— Caro amigo — disse a ele —, estaremos em sua casa para a ceia.— Agora sim — respondeu. — Só há um problema. Quem jantar em minha casa

hoje à noite terá que jantar amanhã na casa de Château-Renaud. É uma aposta.— Que tipo de aposta?— É segredo, mesmo porque há uma dama envolvida que não deve ficar saben-

do de nada.— Está bem — respondi. — Até mais tarde.— Até… — disse Davi, já recomeçando a dançar com sua dama.Olhei para Luís e ele agora havia EMPALIDECIDOEMPALIDECIDOEMPALIDECIDOEMPALIDECIDOEMPALIDECIDO.— Você conhece esse tal Château-Renaud, Alexandre? — perguntou-me.— Só de vista. Por que, ele o incomoda?— Não é nada — falou o rapaz, tentando desviar o assunto. — A que horas deve-

mos estar na casa de seu amigo?— Às três, mas não precisamos ir, se não gosta de Château-Renaud…— Já combinamos, então estaremos lá — respondeu Luís, impedindo-me de

continuar a frase.

Capítulo 8Capítulo 8Capítulo 8Capítulo 8Capítulo 8

A aposta

Cada convidado de Davi havia levado uma dama como acompanhante, com ex-ceção de mim, que levara Luís. No centro da mesa de jantar havia um jarro, para queas senhoras colocassem seus ramalhetes de flor. O dono da casa nos recebeu muitobem, dando especial atenção à Luís, a fim de que ele se sentisse à vontade. A comidaestava prestes a ser servida, quando constatamos que dois lugares estavam vazios.

— Estas cadeiras estão reservadas para Château-Renaud e sua acompanhante —disse Davi. — Não devemos esperá-los, pois ele tem até as quatro horas para chegar.

Uma risada geral surgiu entre os convidados.— Será que ele ganhará a aposta? — perguntou um senhor, também antigo co-

nhecido meu.— Se perder, terá que nos oferecer um jantar amanhã — respondeu Davi.— Afinal, o que está em jogo? — perguntei.— Château-Renaud prometeu trazer uma certa dama para cear conosco. Se con-

seguir trazê-la até as quatro, ganha a aposta — alguém explicou, em meio a brindesde champanhe e risadas.

EMPALIDECIDO EMPALIDECIDO EMPALIDECIDO EMPALIDECIDO EMPALIDECIDO: perdido a cor, ficado pálido

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— E quem é a senhora? — insisti.— Penso que não há problema em dizer seu nome, afinal, ninguém a conhece.

Ela se chama…— Espere, senhor Davi — interrompeu-o Luís, pálido como uma folha de papel.

— Conheço o marido dela e sei que é uma pessoa de bem. Não seria bom que elechegasse de viagem e soubesse que sua esposa aceitou um convite do senhorChâteau-Renaud.

— Caro Luís de Franchi, como o senhor mesmo disse, o marido está viajando. Équase como se não existisse — falou, gargalhando.

— Insisto, senhor Davi, não diga o nome dela.— Está bem, não o farei em consideração ao senhor. Não sabia que a senhora

era sua conhecida. Porém, se ela vier, todos saberão quem ela é.— Agradeço mesmo assim.Começamos a cear. Cada convidado tinha uma garrafa de champanhe ao seu

lado, o que nos fazia ter vontade de brindar a toda hora. Luís era o único que não sedivertia. Olhava ansioso para o relógio.

— Acalme-se — aconselhei-o —, ele não virá.— Ainda são vinte para as quatro.— Olhe, Luís, percebo que esta senhora é bem importante para você. Mas con-

sidere uma coisa: a REPUTAÇÃOREPUTAÇÃOREPUTAÇÃOREPUTAÇÃOREPUTAÇÃO que Château-Renaud tem de conquistador é notóriaaqui em Paris. Se uma mulher casada com homem tão íntegro, como você expôs,aceitar um convite dele, é porque não vale a pena se preocupar com ela.

— Prometo-lhe que ficarei relaxado dentro de vinte minutos, se tudo der certo.Quando faltavam cinco para as quatro, Luís resolveu tomar um gole de champa-

nhe, certo de que o apostador não chegaria mais. No entanto, foi ele levar o copo àboca para a campainha soar. Nunca vi um homem tão alterado quanto Luís estava na-quela hora. Suas mãos tremiam e o rosto tornara-se ainda mais branco.

— Entrem, fiquem à vontade — disse Davi aos novos convidados.A senhora vinha de máscara e não fez MENÇÃOMENÇÃOMENÇÃOMENÇÃOMENÇÃO de tirá-la. O dono da casa

intercedeu:— Aqui estamos entre amigos, senhora Emília. Pode tirar a máscara, se quiser.O senhor Château-Renaud cochichou ao ouvido de Davi:— Aposta ganha!Na mesma hora, a senhora voltou-se para aquele que a trouxera à festa:— Agora entendo por que tanta insistência para que eu viesse. Por acaso sou

alvo de alguma aposta?Todos se calaram e um silêncio constrangedor se fez na sala de jantar.— Diga, senhor Davi, por acaso o senhor Château-Renaud apostou que conse-

guiria me trazer até aqui? Seja honesto e diga a verdade!— Perdoe-nos, senhora Emília. Foi apenas uma brincadeira.— Pois eu digo que não vim de livre e espontânea vontade. Sendo assim, o se-

nhor Château-Renaud perdeu a aposta.

REPUTAÇÃO REPUTAÇÃO REPUTAÇÃO REPUTAÇÃO REPUTAÇÃO: renome, estima

MENÇÃO MENÇÃO MENÇÃO MENÇÃO MENÇÃO: gesto(s) de quem se dispõe a praticar um ato, intento

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— Está bem — concordou o dono da casa. — Mas agora que está aqui, janteconosco. É um prazer recebê-la em minha casa.

— De jeito nenhum. Vou embora.— Eu a acompanho — disse o senhor Château-Renaud —, afinal, eu a trouxe.— Prefiro que o senhor Luís de Franchi me leve para casa.Imediatamente, Luís colocou-se ao lado da senhora mascarada e lhe ofereceu o

braço. Enraivecido, o senhor Château-Renaud revidou:— Pois agora já sei com quem devo acertar contas.— Faça como quiser — disse Luís. — O senhor sabe onde me encontrar. Eu ja-

mais recusaria o pedido de uma dama.— Pode esperar, Luís de Franchi, amanhã receberá a visita de dois amigos meus.Luís e Emília saíram, deixando um clima bastante desagradável entre os convi-

dados durante o final da ceia. O senhor Château-Renaud propôs um brinde para dis-farçar seu mal-estar:

— Ao jantar de amanhã! Afinal, perdi a aposta — disse, soltando uma gargalhada.

Capítulo 9Capítulo 9Capítulo 9Capítulo 9Capítulo 9

Uma senhora como centro das desavenças

No dia seguinte bem cedo, fui até a casa de Luís, pois aquela ameaça deChâteau-Renaud me deixara intrigado. Ao chegar lá, encontrei o rapaz justamente meescrevendo um bilhete. Ele estava ainda mais abatido do que na noite anterior.

— Que bom que veio, Alexandre — disse ele. — Eu ia mesmo mandar meu cria-do lhe entregar este bilhete.

— Parece preocupado, Luís. O que houve? — perguntei.— Os amigos, padrinhos, melhor dizendo, de Château-Renaud vieram me procurar

logo que o sol se levantou. Pediram que eu enviasse dois padrinhos até a casa deleshoje à tarde.

— Não é possível! Château-Renaud quer um duelo?— Exatamente, caro Alexandre. Por isso peço que você, juntamente com o barão

Giordano Martelli, também um bom amigo, sejam meus padrinhos.— Mas que loucura é esta? Os acontecimentos de ontem à noite não justificam

um duelo!— Vou lhe contar minhas desavenças com o senhor Château-Renaud. Talvez as-

sim compreenda por que não posso recusar o duelo.— Por favor, Luís, conte-me, pois estou sem entender nada.— Muito bem, cerca de sete meses atrás, quando me mudei para Paris, fi-

quei muito amigo de um oficial da Marinha, que conheci durante a viagem. Edu-cado, ele me convidou para jantar e me apresentou sua esposa Emília, a dama

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mascarada de ontem à noite. Além da beleza, encantei-me pela inteligência e sim-patia da moça, o que me deixou muito incomodado. Não queria me apaixonarpela esposa de um amigo. Mas, infelizmente, não consegui controlar meus senti-mentos. O amor invadiu completamente meu coração. A cada semana, durante osjantares que meu amigo organizava em sua casa, eu sofria por estar na presençade tão maravilhosa senhora.

— E o que fez? — perguntei.— Resolvi contar ao marido de Emília o que eu estava sentindo.— E qual foi sua reação?— Ele foi extremamente elegante. Disse que confiava plenamente na esposa e em

mim. Entendia o que eu estava passando, mas tinha certeza de que eu superaria minhapaixão. Foi então que, depois de várias semanas tentando me ESQUIVARESQUIVARESQUIVARESQUIVARESQUIVAR dos jantares se-manais, recebi a visita do marido de Emília em minha própria casa. Ele disse que viajariapara o México durante seis meses, talvez mais, pois deveria respeitar as regras de sua pro-fissão. Pediu que eu tomasse conta de Emília durante a sua ausência e a visitasse pelo me-nos uma vez por semana para que ela não se sentisse tão sozinha.

— Você aceitou, mesmo estando apaixonado?— Não tive outra saída. Segundo meu amigo, eu era a única pessoa em quem

ele confiava para pedir esse favor.— E onde Château-Renaud entra nessa história?— Emília não era a mulher solitária que eu imaginava. Ela continuou a organizar

festas e a convidar pessoas para jantar em sua casa semanalmente, como antes deseu marido viajar. Em um desses jantares, uma amiga sua levou Château-Renaud. Nãosei como explicar, mas senti por ele uma antipatia gratuita, mesmo ele tendo sidoCORTÊSCORTÊSCORTÊSCORTÊSCORTÊS e educado durante toda a noite. Ao contrário, Emília demonstrou enorme sa-tisfação em conhecê-lo. A partir daquele dia, Château-Renaud passou a freqüentar to-dos os jantares na casa dela, arrancando comentários maldosos dos convidados. Osboatos de que Emília e Château-Renaud eram amantes correu pela cidade. Eu mesmojá acreditava nisso, pois a troca de olhares entre eles à mesa era incessante durante asreuniões semanais. Além disso, os dois passavam horas conversando, elogiando-se e,muitas vezes, trocando presentes disfarçadamente.

— E os dois são realmente amantes?— Depois de pensar muito, resolvi falar com ela sobre o assunto, mas sua rea-

ção foi a pior possível. Ela disse que não era amante de Château-Renaud e que eu nãodeveria me intrometer em sua vida. Além disso, falou que minha atitude era a de umhomem com ciúmes, o que era compreensível em uma pessoa apaixonada. Eu nãoimaginava que o marido havia lhe contado sobre a conversa que nós dois tivemos.Fiquei perplexo e parei de freqüentar sua casa.

— Deve ter sido nessa época que Luciano sentiu suas angústias.— Sim, com certeza foi naquela época, pois eu passei a saber da vida de Emília

apenas pelos comentários que se ouvia na cidade, e que eram os piores possíveis.Um dia recebi um bilhete anônimo convidando-me para um encontro no baile de

ESQUIVAR ESQUIVAR ESQUIVAR ESQUIVAR ESQUIVAR: evitar, escapar

CORTÊS CORTÊS CORTÊS CORTÊS CORTÊS: que tem cortesia, delicado

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máscaras do Ópera à uma hora da manhã. Uma dama carregando um buquê de viole-tas iria me contar um segredo sobre Emília e Château-Renaud.

— Eu vi quando você se encontrou com a moça das violetas lá no baile.— Sim, a informação que ela me deu foi que os dois eram mesmo amantes e

que a confirmação disso ocorreria quando Château-Renaud ganhasse uma aposta, le-vando Emília à casa do chefe do mais famoso jornal parisiense.

— Davi? — perguntei, incrédulo.— Exatamente. Naquela mesma noite, o destino quis que você encontrasse seu

amigo e ele nos convidasse para a ceia. O que ocorreu depois, você viu com os pró-prios olhos.

— Ainda assim, Luís, você não fez nada que justifique um duelo.— Sou corso de nascimento, Alexandre, apesar de me considerar quase um

parisiense. Não pretendo dar as costas às minhas raízes. Se Château-Renaud quer lu-tar, não vou fugir. Além disso, Emília estava sob meus cuidados. Devo isso ao meuamigo, que me confiou a esposa. É a honra de uma senhora que está em jogo.

— Diga, Luís, alguma vez já pegou numa arma?— Nunca. Não puxei aos meus pais, nem ao meu irmão Luciano.— Luís, nesse caso não pode duelar com Château-Renaud, um EXÍMIOEXÍMIOEXÍMIOEXÍMIOEXÍMIO atirador

e espadachim!— Não importa. Peço que vá com o barão Giordano Martelli até este endereço

— disse, entregando-me uma folha de papel. — Decidam, juntamente com os padri-nhos de meu OPONENTEOPONENTEOPONENTEOPONENTEOPONENTE, as armas e o local do duelo. Não agirei como um covarde,mas sim como um verdadeiro De Franchi.

Capítulo 10Capítulo 10Capítulo 10Capítulo 10Capítulo 10

Aparição ou alucinação?

Durante o resto do dia, fiz de tudo para impedir a realização do duelo. Primeiroinsisti com Luís que a idéia dessa luta era completamente absurda, sem motivos, nemfundamentos. Meu amigo, no entanto, estava IRREDUTÍVELIRREDUTÍVELIRREDUTÍVELIRREDUTÍVELIRREDUTÍVEL.

— Se continuar insistindo, terei que procurar outro padrinho, Alexandre — foi oque ele disse, antes de eu sair em direção à casa do barão Giordano Martelli.

O barão, também corso da província de Sartene e amigo de infância dos irmãosDe Franchi, disse que temia sim pela vida de Luís, mas me explicou que de nada adi-antaria eu tentar impedir o duelo.

EXÍMIO EXÍMIO EXÍMIO EXÍMIO EXÍMIO: excelente

OPONENTE OPONENTE OPONENTE OPONENTE OPONENTE: contrário, oposto, opositor

IRREDUTÍVEL IRREDUTÍVEL IRREDUTÍVEL IRREDUTÍVEL IRREDUTÍVEL: que não se pode convencer do contrário, indomável

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— Luís jamais se negaria a lutar com Château-Renaud, senhor Alexandre. Umhomem tem sua honra e nós não temos o direito de interferir nessas questões. Sinto-me honrado por ter sido escolhido seu padrinho — falou.

— Mas, senhor barão, não acha que poderíamos pedir aos padrinhos de Château-Renaud que falassem com ele, tentando DISSUADI-LODISSUADI-LODISSUADI-LODISSUADI-LODISSUADI-LO da idéia de se bater em duelo comum homem que, até hoje, só pegou em armas de brinquedo na infância? — tentei.

— Nem pense nisso! — indignou-se. — Pode parecer que Luís está se acovardan-do. Isso seria a pior vergonha que um corso poderia sentir.

— E o que diremos à família de Luís, se ele morrer?— Diremos que ele foi um De Franchi, corajoso e digno. Além disso, pense no

lado positivo. Se por uma desventura, Luís for morto, ele será vingado.— O senhor está falando… em… Luciano?— Sim. Desde criança, um irmão sempre defendeu o outro. Se fosse o contrário,

Luís também vingaria Luciano, mesmo não tendo gosto pelas armas.— Acha realmente que Luciano viria a Paris acertar contas com Château-Renaud?— Vamos rezar para que isso não seja necessário, mas se for preciso, pode ter

certeza de que ele virá.Não tive saída, a não ser ir visitar os senhores Châteaugrand e De Boissy, padri-

nhos de Château-Renaud. Eles pareciam animados com a idéia do duelo, o que medeixou com raiva, com vontade de eu próprio desafiá-los para um combate, emboranão gostasse de violência.

Como, para Château-Renaud, o tipo de arma era indiferente, uma vez que eleera bom tanto na pistola quanto na espada, o barão Giordano Martelli sugeriu que nósquatro decidíssemos as armas na moeda. Foi sorteada a pistola, o que, de certa forma,poderia ser melhor. Luís não saberia nem como segurar uma espada.

Acertamos o duelo para o dia seguinte, às nove horas da manhã, no bosque deVincennes. Os adversários ficariam a vinte passos de distância um do outro e atirariama um sinal feito com as mãos pelo senhor De Boissy. O barão foi avisar Luís dos deta-lhes para o EMBATEEMBATEEMBATEEMBATEEMBATE e eu, sentindo-me vencido, fui preparar meu estado de ânimopara a tão importante missão de apadrinhar Luís de Franchi.

Às sete e meia da manhã, eu já estava na casa de Luís. Cheguei antes do barão,o que me proporcionou alguns minutos para uma conversa privada com meu amigo.Ele estava extremamente pálido, apesar do olhar sereno e da voz suave que me falou:

— Alexandre, peço que, na condição de meu padrinho, escreva uma carta a mi-nha mãe dizendo-lhe que morri de um tipo fulminante de febre cerebral.

— Luís, o que está me dizendo?— Vou morrer no duelo, exatamente às nove horas e dez minutos.— Como pode saber disso?— Meu pai… meu pai virá me buscar.— Está querendo dizer que seu pai avisou-o de sua morte?— Sim, não sei se Luciano lhe contou, mas os homens da minha família têm

esse privilégio. Nossos parentes vêm nos avisar antes da morte.

DISSUADI-LO DISSUADI-LO DISSUADI-LO DISSUADI-LO DISSUADI-LO: convencê-lo a deixar de fazer alguma coisa

EMBATE EMBATE EMBATE EMBATE EMBATE: oposição, encontro violento

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— Sim, ele me disse.— Pois então, recebi a visita de meu velho pai ontem, por volta da meia-noite.

Ele deixou escapar uma lágrima dos olhos quando lhe perguntei se morreria no duelo.Depois, apontou-me o relógio, que marcava nove horas e dez minutos.

— E o que você fez, caro Luís?— Apenas agradeci-lhe. Disse que estava triste por deixar minha mãe e meu ir-

mão, mas feliz por me juntar a ele.Completamente surpreendido com as revelações de meu amigo, perguntei-lhe:— E por que quer que eu diga a sua mãe que morreu de febre cerebral?— O que pensa que Luciano fará, se souber que morri em um duelo?— Virá imediatamente a Paris, vingar-se de Château-Renaud. Pelo menos é nisso

que o barão Giordano Martelli acredita.— E ele está certo. Não quero que Luciano lute com Château-Renaud, pois, se

ele morrer também, minha mãe ficará sozinha neste mundo.— Mas Luís, lembre-se de que uma carta pode não servir para nada. Luciano irá sentir…Neste momento, o barão adentrou a sala, lembrando-nos de que preci-

sávamos sair o quanto antes, ou não chegaríamos ao bosque de Vincennesno horário combinado. Minha frase inacabada deixou Luís com um olhar ain-da mais preocupado.

— De qualquer maneira, envie a carta, Alexandre. É o que lhe peço.Em seguida, saímos, conduzidos pelo cocheiro de Luís, em direção ao local do

duelo. Giordano Martelli carregava uma caixa com as pistolas, como fora arranjadocom os outros padrinhos. Eu não conseguia parar de pensar na aparição do pai deLuís na noite anterior. Estaria o rapaz tão impressionado com a possibilidade da mortea ponto de ter alucinações com o pai? Ou seria mesmo verdade que Luís de Franchiestava prestes a perder a vida?

Capítulo 11Capítulo 11Capítulo 11Capítulo 11Capítulo 11

O duelo

Chegando ao bosque de Vincennes, dirigimo-nos até uma clareira, onde o ba-rão havia combinado o encontro com os senhores Châteaugrand e De Boissy. Os doispadrinhos nos cumprimentaram e examinaram as pistolas levadas pelo barão.

— São novas, comprei-as hoje de manhã — falou Giordano Martelli.— Parecem muito boas — disse o senhor De Boissy.O senhor Châteaugrand então colocou pólvora e uma bala em cada uma delas,

pois a munição era responsabilidade dos padrinhos de Château-Renaud. Eu fiquei per-to de Luís, que, apesar de muito pálido, parecia calmo.

— Não se esqueça de fazer o que me prometeu, caro Alexandre — pediu ele.

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— Pode ficar descansado, mas acredito que daqui a pouco voltaremos juntospara casa — respondi.

— Não se iluda. Esqueci de lhe dizer que na gaveta de minha escrivaninha vocêencontrará meu testamento e uma carta para o barão Giordano Martelli. É um pedidopara que ele não diga nada a minha mãe sobre o duelo. Além disso, peça queChâteau-Renaud deixe Paris, assim evitaremos uma possível vingança de Luciano.

— Está mesmo certo de que não sairá vivo daqui, Luís?— Já estou bem próximo da morte, Alexandre. Posso até senti-la.— E não está com medo?— Vou feliz ao encontro de meu pai. Sinto-me tranqüilo.Neste momento, o barão chamou Luís para o embate. O senhor Châteaugrand

e ele contaram vinte passos entre um e outro, estabelecendo assim o local onde Luíse Château-Renaud deveriam posicionar-se. Château-Renaud parecia muito calmo, atéalegre por estar naquela situação. Com certeza sabia que Luís nunca pegara numaarma. Estava seguro do sucesso. Peguei na mão de Luís e me assustei, pois estavacompletamente gelada.

— Adeus, você é um bom amigo — ele me disse.Fiquei olhando aquela cena, petrificado com a frieza de todos que participavam

dela. O senhor De Boissy levantou o braço e, ao sinal combinado, os dois tiros dispara-ram ao mesmo tempo. Houve, em seguida, um momento do mais longo silêncio quejá presenciei.

Meu coração quase parou quando vi Luís colocar a mão no peito e cair no chão. Obarão e eu corremos para perto dele, abrimos seu casaco e vimos que a bala havia perfu-rado o peito e saído mais abaixo, perto do quadril. O sangue saía pelos dois furos, nãodeixando dúvidas de que Luís iria morrer. Tudo o que ele conseguiu dizer foi:

— O relógio… o relógio…Olhei para o relógio que eu levava no bolso e constatei: nove horas e dez minutos.

Luís morrera exatamente na hora que tinha me dito que morreria. O barão e eu nosolhamos, com lágrimas nos olhos.

Château-Renaud não foi pego nem de raspão pela bala da pistola de Luís. Entre-gou a arma a um dos padrinhos e foi sentar-se na carruagem. Os senhoresChâteaugrand e De Boissy aproximaram-se e pediram:

— Esperamos que não odeiem o senhor Château-Renaud.— Não — disse eu, CONSTERNADOCONSTERNADOCONSTERNADOCONSTERNADOCONSTERNADO. — Mas, atendendo um pedido de Luís, peço

que Château-Renaud saia de Paris para sua própria segurança. Além disso, gostariaque esse duelo ficasse somente entre nós.

— Iremos adverti-lo sobre isso — afirmou Châteaugrand —, porém, não acreditoque ele o faça. É um parisiense convicto. Sobre a discrição, agradecemos, pois o se-nhor Château-Renaud também não quer informar ninguém sobre esse duelo. Não se-ria interessante para sua reputação que todos soubessem da morte do rapaz.

Levamos Luís, morto, para casa. Organizamos um funeral discreto e demosum jeito de esconder o caso da imprensa parisiense. Não queríamos que a notíciacorresse a quatro ventos. O barão acatou o pedido de Luís e pediu que eu escre-

CONSTERNADO CONSTERNADO CONSTERNADO CONSTERNADO CONSTERNADO: profundamente triste, de ânimo abatido

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vesse uma carta informando a senhora Savília de Franchi de que seu filho haviamorrido de febre cerebral. Apesar de ter se calado sobre o ocorrido, Château-Renaud não quis, como Châteaugrand havia previsto, sair da cidade. Continuou alevar sua vida normalmente.

Cinco dias depois do enterro, por volta de onze horas da noite, eu estava emcasa trabalhando, ainda sentindo-me bastante deprimido, quando meu criado bateuna porta do escritório. Ele tremia, falava devagar, com o olhar arregalado:

— Senhor, … seu… amigo está aqui.— Que amigo, Vítor? — perguntei.— O… senhor… de Franchi — respondeu, com um nó na garganta.Parei um minuto, intrigado com a alteração de Vítor, um empregado tão sério,

IMPECÁVELIMPECÁVELIMPECÁVELIMPECÁVELIMPECÁVEL no tratamento que dispensava aos cuidados da casa e dos convidados.— Vítor, está me dizendo que Luís de Franchi está aqui? Não sabe que o pobre

rapaz perdeu a vida alguns dias atrás?— Mas senhor… tenho… certeza… é ele!Desci a escada, certo de que Vítor estava impressionado com toda a história do

duelo, por isso talvez tivesse se enganado, algum outro amigo meu devia estar ali. Noentanto, quando cheguei perto da porta, senti minha perna enfraquecer.

— Desculpe-me o horário, Alexandre, mas acabei de chegar a Paris e não quisesperar até amanhã para lhe falar — disse o rapaz alto e forte que me aguardava.

— Lu… Luciano…? — perguntei, incrédulo. — É você?— Sim, sou eu, Luciano de Franchi.Era incrível, mas parecia que Luís estava de fato ali, bem na minha frente.

Luciano vestia uma roupa muito semelhante à de Luís no momento de sua morte, tal-vez os trajes que o irmão lhe enviara para a Córsega. A aparência dos dois era tãoidêntica que até eu fiquei em estado de choque. Vítor, que não sabia da existência doirmão gêmeo de Luís, acalmou-me um pouco.

— Este é o irmão… do senhor… De Franchi? — perguntou, ainda tremendo.— Sim, sim — disse eu, recuperando-me do susto. — Agora prepare o quarto de

hóspedes e uma ceia. Luciano ficará aqui esta noite e quantas outras quiser.O jovem corso agradeceu. Pensei um pouco e me dei conta de que a carta que eu

enviara para Sullacaro devia estar no meio do caminho. Coloquei a mão na cabeça e disse:— Meu caro Luciano, você ainda não sabe de nada!— Sei de tudo, Alexandre. Meu irmão está morto. Bateu-se em duelo com um

tal senhor Château-Renaud.— O quê? Como pode saber disso?— Meu irmão me contou.— Como assim? Não posso acreditar!— Veja — disse-me, levantando a camisa. — Não foi aqui que Luís foi baleado?Uma mancha roxa aparecia no corpo de Luciano, exatamente no local do tiro

que matou Luís.— A bala entrou por aqui e saiu por aqui — continuou Luciano, mostrando a tra-

jetória da bala.

IMPECÁVEL IMPECÁVEL IMPECÁVEL IMPECÁVEL IMPECÁVEL: sem falha ou defeito, perfeito, correto

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— Isso é inacreditável! Por favor, conte-me tudo — pedi.— Eu estava caçando com Orlandi quando senti um forte baque e caí no chão, de-

sacordado. Alguns segundos depois despertei e vi Orlandi me abanando. “O que foi?” —perguntou. Respondi que não sabia, mas parecia que eu levara um tiro. “Não ouvi ne-nhum barulho” — disse ele. Sentindo dores pelo corpo, abri a camisa e vi a mancha roxano peito. Ela ardia, quase sangrava. Na mesma hora, falei: meu irmão está morto.

— E como sabe do duelo?— Voltei para casa sentindo uma enorme vontade de chorar. Chegando lá, subi

ao quarto do meu irmão e fiquei sentado perto da cama, sem saber o que fazer. Derepente, levantei a cabeça e vi Luís deitado, morto, ali mesmo na minha frente. Vi oburaco da bala em seu corpo estendido, exatamente no mesmo lugar em que eu ti-nha sentido o golpe um pouco antes. Peguei em sua mão, que estava muito fria, eele desapareceu quase que instantaneamente. À noite, quando adormeci, sonheicom o duelo. Vi tudo, a clareira no bosque, os padrinhos, vi você, Alexandre. Escutei onome do assassino de Luís: o senhor Château-Renaud.

— Meu Deus, Luciano, estou impressionado! O que pretende fazer?— A única coisa que eu poderia. Vim a Paris matar o senhor Château-Renaud.— Luciano, por favor, nem pense nisso. Escrevi uma carta para sua mãe dizendo

que Luís morreu de uma doença. Ele não queria uma vingança.— Alexandre, por acaso você pensa que é justo um homem desafiar para um

duelo alguém que nunca sequer pegou em uma arma? Meu irmão morreu assassina-do! Luís nunca esteve sozinho enquanto viveu e na morte também não estará sozi-nho, pois seu irmão veio aqui para vingá-lo. Um corso não tolera injustiças. Comigo osenhor Château-Renaud lutará de igual para igual. Teremos um duelo justo, se aqueleassassino não se acovardar.

Percebi, mais uma vez, que era inútil discutir com um corso. A determinação deLuciano me assustava. Fiz com que o rapaz se acalmasse ceando e descansando da via-gem. No dia seguinte cedo, mandei chamar o barão Giordano Martelli em minha casa.

Fazia anos que os dois não se viam; apesar disso, cumprimentaram-se apenascom um forte aperto de mão. Luciano então pediu que o barão e eu fôssemos comele até o bosque de Vincennes. Assim que a carruagem se aproximou do local do due-lo, o rapaz pediu para o cocheiro parar.

— Foi logo ali em frente. Eu vi no meu sonho — falou Luciano.O barão e eu nos olhamos, imaginando se isso era mesmo possível. Caminha-

mos até a clareira. Luciano dirigiu-se exatamente para o local onde Luís caíra morto.Abaixou-se e beijou o chão, depois levantou-se e pediu a Giordano Martelli:

— Quero um duelo com o senhor Château-Renaud.Os olhos do barão pareceram brilhar, corso que era, acostumado à vendetta.

Apesar do entusiasmo impossível de ser disfarçado, falou em tom SOLENESOLENESOLENESOLENESOLENE, demons-trando preocupação:

— Vou hoje mesmo falar com Châteaugrand e De Boissy.— Acha que ele irá aceitar o duelo? — perguntou-me Luciano.— Tenho certeza — respondi. — Château-Renaud é conhecido pela coragem.

SOLENE SOLENE SOLENE SOLENE SOLENE: que tem um tom pomposo, enfático

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— Ótimo. Agora, será que podemos ir almoçar no Café de Paris?— Por que no Café de Paris? — perguntei.— Era lá que meu irmão fazia suas refeições, segundo me relatou em uma carta.Fomos os três para o café e almoçamos em silêncio, pensativos. Sentamo-nos em

uma mesa reservada no fundo do restaurante, pois já havia um boato sobre a morte deLuís nas ruas parisienses. A figura de Luciano poderia chamar muita atenção. Logo após oalmoço, o barão foi falar com os padrinhos de Luís de Franchi para propor um novo duelo.

Capítulo 12Capítulo 12Capítulo 12Capítulo 12Capítulo 12

A vingança corsa

Luciano disse que gostaria de passar a noite na casa de seu irmão. Lá ele senti-ria mais força para se vingar de seu assassino. Além disso, era preciso que alguém re-colhesse suas coisas, organizasse-as para serem levadas de volta à Córsega ou doa-das. Foi preciso falar com o delegado de polícia que havia INTERDITADOINTERDITADOINTERDITADOINTERDITADOINTERDITADO o apartamen-to até que as investigações sobre a morte do rapaz terminassem. A não ser os padri-nhos, que prometeram manter segredo, não havia testemunhas do assassinato, porisso era muito difícil que Château-Renaud fosse preso. Apesar disso, a investigação eraum procedimento de PRAXEPRAXEPRAXEPRAXEPRAXE.

Deixei Luciano no apartamento de Luís e fui para casa. Às seis horas da tarde, obarão e eu fomos nos encontrar com o jovem corso para lhe dar a notícia de que oduelo estava marcado.

— Será no mesmo local, no mesmo horário e com as mesmas armas — disseGiordano Martelli.

— Muito obrigado, Giordano. Sabia que podia contar com você. Agradeço avocê também, Alexandre, por ter sido o fiel padrinho de meu irmão e agora por acei-tar ser o meu, embora eu saiba que não gosta de lutas.

Fomos para casa descansar e nos preparar para mais um duelo. No dia seguin-te, antes das oito, eu já estava na casa de Luís. Assim que cheguei, meu coração ge-lou, pois encontrei Luciano sentado no mesmo lugar em que Luís estava uma semanaatrás. Além disso, estava pálido como o irmão, apesar de mais calmo.

— Alexandre, peço-lhe que escreva uma carta a minha mãe — pediu.— Pelo amor de Deus, Luciano, não está pensando que seu destino será igual

ao de seu irmão? Por favor, amigo, ainda há tempo de desistir. Sua mãe não pode fi-car sozinha no mundo.

INTERDITADO INTERDITADO INTERDITADO INTERDITADO INTERDITADO: proibido de ser utilizado

PRAXE PRAXE PRAXE PRAXE PRAXE: rotina, prática habitual

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— Desistir nunca! Mas acalme-se — disse ele, aproximando-se de mim —, vouficar bem. Quero que escreva a minha mãe dizendo-lhe que seu filho Luís foi vingado.Ela sabe que vim a Paris com esta missão e ficará orgulhosa de mim.

— Como sabe que conseguirá vingar seu irmão?— Luís me disse. Vou matar Château-Renaud com um tiro bem aqui — disse, co-

locando o dedo indicador na minha testa.— Como pode ter certeza?— Já lhe disse, Luís apareceu novamente em meu sonho. Tenho absoluta con-

vicção de que sairei do duelo sem um arranhão.Logo o barão Giordano Martelli apareceu e nós seguimos até o bosque de

Vincennes. No mesmo local de antes, paramos a carruagem e cumprimentamos ospadrinhos, que chegaram pontualmente às nove horas. Depois de carregadas as pisto-las, Luciano e Château-Renaud foram chamados para se posicionar.

Na hora em que desceu de sua carruagem, Château-Renaud estava calmo e sa-tisfeito, como no dia em que matou Luís. Porém, ao ver Luciano, mudou completa-mente a fisionomia. O suor começou a lhe escorrer pelo rosto e a impaciência era visí-vel em seu estado de ânimo. Seus olhos saltaram, enquanto a testa se franziu inteira,não deixando esconder que o medo se apoderara dele.

Talvez a aparência de Luciano tenha lhe causado algum tipo de pavor, como seLuís estivesse ali, vindo das trevas, para se vingar. Ou talvez Château-Renaud estivessesentindo a proximidade da morte, como Luís, uma semana antes. O certo era que elenão conseguia encarar Luciano de frente. O bravo corso, ao contrário, estampava cal-ma e segurança no rosto, INTIMIDANDOINTIMIDANDOINTIMIDANDOINTIMIDANDOINTIMIDANDO ainda mais o adversário.

Não havia mais tempo. Luciano se posicionou exatamente onde Luís caíra mor-to. Château-Renaud foi para o lugar de onde havia atirado da primeira vez. Virei-me decostas, pois não queria ver mais um amigo ser morto sob os meus olhos. De Boissydeu o sinal e os dois tiros foram disparados novamente.

Olhei para trás e vi Luciano, parado, com o olhar fixo em direção ao seu opo-nente. Imediatamente olhei para Château-Renaud. Estava caído no chão, com um bu-raco bem no meio da testa. Enquanto Châteaugrand e De Boissy correram para pertode seu afilhado morto, aproximei-me de Luciano. Assim que toquei em seu braço, elepareceu retornar de um estado de transe. Caiu de joelhos no chão, largou a arma ecaiu num choro compulsivo.

— Meu irmão! Luís, meu pobre irmão!Naquela hora, percebi que era a primeira vez que Luciano chorava. Chorava por

Luís, por seu pai, talvez chorasse por gerações inteiras de corsos que nunca derrama-ram uma lágrima.

INTIMIDANDO INTIMIDANDO INTIMIDANDO INTIMIDANDO INTIMIDANDO: causando medo, pavor ou apreensão

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Roteiro de Leitura

1) Quais as semelhanças e diferenças entre os irmãos De Franchi?

2) Você tem irmãos ou irmãs? Quais as diferenças e semelhanças entre você e eles(elas)?

3) Com qual dos irmãos você se identificou mais, com Luís ou com Luciano?

4) Como é a senhora Savília de Franchi? Você conhece mulheres parecidas com ela?Dê alguns exemplos.

5) Quem é o narrador do livro? Em que passagem da história o leitor fica conhecen-do o narrador?

6) Cite algumas características da Córsega comentadas no livro. Agora faça, com a ajudade seu professor (a) de História, uma pesquisa sobre esta região. A vendetta é mes-mo uma tradição do povo de lá? Como vive a Córsega atualmente?

7) Na aula de Geografia, faça um mapa em papel vegetal da região do Mar Mediter-râneo. Que outros lugares, além da Córsega, são interessantes naquela região?Quais as características físicas e políticas de lá?

8) Você acredita que Luciano queria realmente selar a paz na cidade de Sullacaro?Justifique sua resposta.

9) O que você acha que a passagem em que Luciano “alimenta” o Mucchio, o gran-de túmulo de um Orlandi morto, diz sobre a personalidade e os sentimentos dojovem corso?

10) Luís e Luciano desejam acabar com a vendetta na Córsega. No entanto, os doisparticipam, respectivamente, de duelos pela honra e pela vingança. Por que vocêacha que eles agiram assim?

11) Qual a principal atividade profissional de um homem corso? E as mulheres, o quefazem na Córsega?

12) Na sociedade em que vivemos, há uma divisão parecida das atividades profissio-nais? Na sua opinião, qual a principal diferença entre a organização profissionalna Córsega daquela época e atualmente no Brasil, na nossa comunidade?

13) Por que Luís foi desafiado para um duelo? Você acha que o motivo foi importante?

14) Na sua opinião, como seria uma outra maneira para que Luís e Château-Renaudresolvessem o impasse em que se encontravam?

15) Para Luís, a instituição do casamento e os laços de amizade eram extremamenteimportantes, a ponto de ele ter dado sua própria vida para preservar a honra deuma senhora, esposa de seu amigo. Você acredita que essas são questões valori-zadas na sociedade de hoje? Em que sentido são e em que sentido não são?

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16) Você acredita que é preciso fazer qualquer coisa pela honra de uma família ou deum povo, ou existe algum limite? Quando é preciso parar de lutar? Que tipos deatitudes podem dignificar uma pessoa ou uma nação?

17) O que você achou do ataque dos Estados Unidos ao Afeganistão, depois que osterroristas atingiram as torres do World Trade Center em Nova Iorque? Você con-corda com o presidente americano George Bush, ou teria feito diferente?

18) Você acredita que seja possível conversar com as pessoas que morrem, como oshomens da família De Franchi fazem? Que religiões no Brasil crêem na vida apósa morte?

19) Pensando na personalidade de Luís e de Luciano, por que você acha queChâteau-Renaud teve medo na hora de lutar com Luciano, mas se manteve calmoe confiante antes do duelo com Luís? Na sua vida, que tipos de “batalhas” ou “ini-migos” você enfrenta? Qual a sua atitude diante deles(as)? Você acredita que asua atitude pode influenciar a atitude de seu adversário?

20) Escolha a parte da história que você mais gostou e, na aula de artes cênicas, façaum teatro junto com seu colegas.

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Os irmãos corsosOs irmãos corsosOs irmãos corsosOs irmãos corsosOs irmãos corsos

Alexandre DumasAlexandre DumasAlexandre DumasAlexandre DumasAlexandre Dumas

Biografia do autor

Alexandre Davy de la Pailleterie, conhecido como Alexandre Dumas por serfilho do general Thomas A. Dumas, nasceu em Villers-Côtterêts, França, no dia 24de julho de 1802, e morreu em Puys, uma pequena cidade francesa, no dia 5 dedezembro de 1870.

Quando tinha vinte anos, resolveu mudar-se para Paris. Levando consigouma carta do General Foy, conseguiu um emprego num escritório. Naquela época,começou a escrever poemas e romances e logo publicou seu primeiro livro, LaChasse e l’Amour, em parceria com um amigo.

Aventuras acompanhadas de humor são a chave para agradar o público deDumas, que encontra diversão e entretenimento nas diversas obras do autor. Alémde O Conde de Monte Cristo, ele também escreveu: Os Três Mosqueteiros, Vinteanos depois e O Visconde de Bragellone (duas obras nas quais os mosqueteiroscontinuam suas aventuras), Os irmãos corsos, A tulipa negra, A máscara de ferro,O cavaleiro da casa vermelha, A rainha Margot, O colar da rainha, A Condessa deCharny e Memórias de um médico.

Dumas foi considerado um dos escritores mais lidos em todo o mundo,além de ter conseguido muito dinheiro com as vendas de seus livros. No entanto,não soube administrar sua riqueza e morreu na miséria.

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