os hospitais na reforma sanitÁria brasileira · dados a respeito de leitos, número e porte dos...

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OS HOSPITAIS NA REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA Ivan Batista Coelho UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO 2013

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OS HOSPITAIS NA REFORMA SANITRIA BRASILEIRA

Ivan Batista Coelho

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

2013

OS HOSPITAIS NA REFORMA SANITRIA BRASELEIRA

Orientador:

.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL DA TESE

DEFENDIDA PELO ALUNO

Assinatura do orientador

________________________

Informaes para Biblioteca Digital

Ttulo em ingls: Hospitals in the brazilian health reform. Palavras-chave em ingls: Public policies

Unified Health System

Hospital beds

Supplemental health

Health inequalities

rea de concentrao: Poltica, Planejamento e Gesto em Sade

Titulao: Doutor em Sade Coletiva

Banca examinadora:

Data da defesa: 19-02-2013 Programa de Ps-Graduao: Sade Coletiva

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo a anlise dos principais movimentos do parque

hospitalar brasileiro a partir da estruturao do Sistema nico de Sade e da

regulamentao da Sade Suplementar. Para isto foram utilizadas sries histricas de

dados a respeito de leitos, nmero e porte dos hospitais e outras variveis extradas do

Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade (CNES), da Assistncia Mdico

Sanitria (MAS), da Agncia Nacional de Sade (ANS) e do Sistema de Informaes

Hospitalares do SUS (SIHSUS), alm de revises bibliogrficas sobre o tema. Estas

sries de dados, associadas a variveis econmicas e polticas permitiram uma anlise

do quadro atual e o desenho de cenrios futuros possveis. O resultado evidencia uma

queda acentuada dos leitos hospitalares disponveis ao SUS, com crescimento do

nmero de hospitais vinculados Sade Suplementar. A distribuio pelo Pas

heterognea, com maior concentrao de leitos no Sul e Sudeste e nas capitais em

detrimento do interior. Quando se trata de equipamentos de maior complexidade

(unidades de terapia intensiva, tomgrafos, ressonncia nuclear, etc.), estas diferenas

se acentuam. No que tange qualidade e resolutividade, a maior parte dos equipamentos

de maior complexidade existentes no Pas no se encontram disponveis ao SUS.

Considerando os movimentos e as polticas atuais em curso vem se configurando no

Pas um quadro hospitalar bipolar: Baixas resolutividade e incorporao tecnolgica nos

hospitais ligados ao SUS e alto grau de incorporao de equipamentos nos hospitais

ligados Sade Suplementar.

Palavras chave: Polticas Pblicas; Sistema nico de Sade; Leitos

Hospitalares; Sade Suplementar; Desigualdades em Sade

ABSTRACT

This study aims to analyze the key achievements of the Brazilian hospital complex

based on the National Health Care System implementation and the establishment of

Private Health Insurance groups. For such, we used historical series of data on hospital

beds, number and size of hospitals and other variables from the National Register of

Health Facilities (CNES), the Medical Sanitary Service (MAS), the National Health

Agency (ANS) and Hospital Information System (SUS SIHSUS), and literature reviews

on the topic. These data sets, combined with economic and political variables allowed

an analysis of the current situation and a design of possible future scenarios. The result

shows a sharp decline in hospital beds available to SUS, with growth in the number of

hospitals tied to Private Health Insurance setting. The distribution all over the country is

heterogeneous, with the highest concentration of beds in the South and Southeast and in

capitals over the interior. When it comes to more complex equipment (intensive care

units, CT scanners, magnetic resonance, etc..), these differences are highlighted.

Regarding the quality and problem solving capacity, most of the equipment of higher

complexity existing in the country are not available to SUS. Considering the current

political movements, it has been emerging in the country a bipolar hospital structure:

Low problem solving capacity and incorporation of technology in hospitals connected

to the SUS and high degree of incorporation of equipment in hospitals linked to Private

Health Insurance.

Key words: Public Policies; Unified Health System; Hospital Bed Capacity;

Suplemental Health; Health Inequalities

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Contribuio potencial de intervenes para reduo da

mortalidade nos Estados Unidos (Estilo de vida, biologia e

gentica, meio ambiente, sistema de sade)

51

Figura 2 Leitos hospitalares por 1.000 habitantes em alguns pases do

continente americano 1995-2003.

55

Figura 3 Nmero de leitos hospitalares em pases europeus

selecionados, 1991- 2003

55

Figura 4 Evoluo do Nmero de Hospitais Pblicos e Privados no

Brasil no perodo de 1976 a 2009.

84

Figura 5 Quantitativo de hospitais pblicos e privados por esfera

administrativa

85

Figura 6 Distribuio percentual dos hospitais cadastrados no SUS em

2002.

89

Figura 7 Leitos hospitalares no Brasil por esfera administrativa, 1976

2009

96

Figura 8 Evoluo comparativa do nmero total de leitos hospitalares e

leitos de Terapia Intensiva conveniados ao SUS no Brasil

julho de 1992 a julho de 2003

118

Figura 9 Internaes hospitalares pagas pelo SUS no perodo de 1984 a

2007

132

Figura 10 Beneficirios e operadoras de planos privados de assistncia

mdico-hospitalar (2000-2010)

167

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Participao percentual da iniciativa privada na rede hospitalar

brasileira, segundo o nmero de leitos instalados. Evoluo entre

1962 e 1971 por regies do Brasil.

76

Tabela 2 Hospitais com Funo de Ensino por formato jurdico. 87

Tabela 3 Nmero mdio de leitos dos hospitais brasileiros por esfera

administrativa.

90

Tabela 4 Leitos existentes e disposio do SUS por esfera administrativa

99

Tabela 5 Cobertura de Leitos Hospitalares no Brasil por Regio e Estado

100

Tabela 6 Leitos Hospitalares por Regio e Especialidade no Brasil 103

Tabela 7 Leitos necessrios para cada 1.000 habitantes por rea

especializada, segundo a Portaria n. 1101/GM

104

Tabela 8 Leitos destinados ao SUS por especialidade clnica 105

Tabela 9 Distribuio de leitos de terapia intensiva existentes no Brasil por

esfera administrativa

119

Tabela 10 Leitos de terapia intensiva disponveis ao SUS por classificao e

tipo de prestador

120

Tabela 11 Equipamentos de maior complexidade existentes no Brasil por regio

121

Tabela 12 Equipamentos de maior complexidade disposio do SUS por

regio

122

Tabela 13 Utilizao de leitos hospitalares nos Estados Unidos da Amrica

e em alguns pases da OCDE 2010

130

Tabela 14 Taxas de internao e custo mdio de internaes dos

beneficirios de planos de sade no perodo de 2007-2011

133

Tabela 15 Morbidade Hospitalar, Taxa Mdia de Permanncia e Taxa de

Mortalidade por Captulo CID-10 do SUS no ano de 2011

136

SUMRIO

Pag.

RESUMO vi

ABSTRACT

LISTA DE TABELAS

LISTA FIGURAS

vii

viii

ix

APRESENTAO 12

1. SOBRE MTODOS E ESTE TRABALHO 15

2. DA SALVAO DA ALMA DOS POBRES RECUPERAO DA SADE

DO CORPO: BREVE HISTRIA DOS HOSPITAIS NO OCIDENTE

23

2.1. O SISTEMA TRADICIONAL (at meados do sc. XIX) 25

2.1.1. Os templos de Asclpio 25

2.1.2. Os Valetudinaria dos Romanos 29

2.1.3. O hospital como pia causa crist: a idade mdia 31

2.1.4. O hospital entre o poder divino e o terreno: a idade moderna 33

2.2. O SISTEMA PROFISSIONAL LIBERAL (meados do sc. XIX II Guerra Mundial)

36

2.3. O SISTEMA TCNICO (a partir da II Guerra Mundial) 42

3. TENDNCIAS MAIS RECENTES NA HISTRIA DOS HOSPITAIS 50

3.1. Desospitalizao 53

3.2. Aumento do nmero de internaes 56

3.3. Aumento do porte mdio das unidades 57

3.4. Manuteno do carter geral 58

3.5. Regulao do acesso e integrao do hospital na rede de servios 58

3.6. Maior permeabilidade participao social 60

3.7. Orientao ao mercado 61

3.8. Manuteno do carter de fronteira cientfica e tecnolgica na pesquisa clnica 62

3.9. Ampliao da autonomia administrativa e reduo da autonomia assistencial

63

3.10. A ttulo de concluso

64

4. HISTRIA DOS HOSPITAIS NO BRASIL AT O SUS 67

5. O SUS E O QUADRO HOSPITALAR COMTEMPORNEO NO BRASIL 82

5.1. Introduo 82

5.2. O parque hospitalar brasileiro por esfera administrativa

83

5.3. Porte dos hospitais brasileiros

88

5.4. A cobertura populacional de leitos hospitalares

95

5.5. A distribuio entre o SUS e a sade suplementar dos leitos hospitalares

existentes no Brasil.

99

5.6. A distribuio regional dos leitos hospitalares no Brasil 100

5.7 A distribuio por especialidades dos leitos hospitalares no Brasil 102

5.8 A ttulo de concluso do captulo 106

6. OFERTA DE LEITOS DE TERAPIA INTENSIVA COMO PROXY DA

RESOLUTIVIDADE DOS HOSPITAIS NO BRASIL

111

6.1. Terapia intensiva e resolutividade hospitalar 111

6.2. Terapia intensiva no Brasil 115

6.3. Distribuio SUS/sade suplementar dos leitos de terapia intensiva no Brasil

119

6.4. Distribuio regional e SUS versus sade suplementar de leitos de terapia

intensiva e servios de maior complexidade no Brasil

221

6.5. A ttulo de concluso do captulo

125

7. AS INTERNAES HOSPITALARES NO BRASIL 128

7.1. Introduo 128

7.2. Coberturas populacionais 130

7.3. Ocupao dos leitos e permanncia hospitalar 134

7.4. Motivos de internao 135

7.5. Internaes por condies sensveis ateno primria 138

7.6. Internaes por causas externas 139

7.7. Internaes em unidades de terapia intensiva 139

7.8. Pagamento mdio por internao no SUS e na sade suplementar 140

8. POLTICAS HOSPITALARES DO MINISTRIO DA SADE NO CONTEXTO

DO SUS

142

8.1. Introduo 142

8.2. Polticas de compra de servios 145

8.3. Polticas para hospitais de pequeno porte 147

8.4. Polticas para hospitais filantrpicos 149

8.5. Polticas para hospitais psiquitricos 151

8.6. Polticas para hospitais universitrios e de ensino (HUE) 151

8.7. Polticas de avaliao e qualificao hospitalar 154

8.8. Polticas de reviso do formato jurdico para hospitais pblicos 156

8.9. Da subservincia ao clientelismo: as polticas de investimento no SUS

157

9. O IMPACTO DA SADE SUPLEMENTAR NO QUADRO HOSPITALAR

BRASILEIRO

159

9.1. Introduo 159

9.2. Concentrao de mercado 164

9.2.1. Concentrao de mercado como fenmeno nas economias ocidentais

164

9.2.2. Concentrao de mercado na sade suplementar 166

9.3. Verticalizao 169

9.3.1. A verticalizao como fenmeno de mercado 169

9.3.2. A verticalizao na sade suplementar 171

9.4. Competio SUS / Sade suplementar pelo parque hospitalar 175

9.5. A ttulo de concluso do captulo 177

10. O FUTURO DO PARQUE HOSPITALAR BRASILEIRO COMO HISTRIA

POR SER ESCRITA

180

10.1. Introduo 180

10.2. O futuro como objeto de investigao 180

10.3. Cenrios possveis para os hospitais nos prximos 10 anos 185

10.4. A ttulo de concluso 197

REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS

201

12

APRESENTAO

Este trabalho nasceu do desejo de analisar a estrutura hospitalar brasileira a partir de sua

capacidade instalada de servios. Mais do que uma fotografia abrangente do setor, o que

j se configura bastante trabalhoso, o objetivo era tentar entender os rumos que este

parque hospitalar vem tomando. Por trs deste desejo uma intuio: a dinmica deste

setor se alterou profundamente nos ltimos anos em nosso Pas, levando-nos a um hiato

entre os discursos que so produzidos em torno do hospital e os movimentos que vm

ocorrendo no segmento.

Em estudo anterior j havia analisado o crescimento das unidades de terapia intensiva

no Brasil, com nfase em sua recente expanso, enfocando sua distribuio pelas

diversas regies do Pas, bem como o que estava disponvel ao SUS e sade

suplementar. Boa parte do que desenvolvo no trabalho atual foi esboada enquanto

desenvolvia a pesquisa anterior, pois, compreender a estrutura e as dinmicas

hospitalares era um pressuposto para entender a que propsitos serviam a expanso da

terapia intensiva no Pas. No entanto, o escopo do trabalho foi ampliado, tanto no que

diz respeito s questes conceituais, quanto ao universo de dados tratados para melhor

compreender a trajetria dos hospitais no Brasil.

O trabalho aqui apresentado pretende contribuir com os estudos sobre os hospitais no

Brasil, trazendo algumas reflexes sobre os rumos da poltica de assistncia hospitalar

no contexto da reforma sanitria brasileira. Como os legados das polticas de sade

previamente estabelecidas so responsveis e condicionam, em grande medida o

desenvolvimento futuro das novas polticas, precisei retroceder no tempo para melhor

compreender o que vem se passando com o quadro hospitalar na reforma sanitria

brasileira. Assim, os primeiros captulos abordam questes de mtodo e tentam compor

o legado com o qual o SUS se defrontou, enquanto os demais analisam o perodo atual e

as perspectivas futuras.

No captulo 1, Sobre mtodos e este trabalho so abordadas questes relativas aos

mtodos com os quais este trabalho tem maior proximidade, bem como so reportadas

as principais fontes de dados utilizadas.

13

No captulo 2, Da salvao da alma dos pobres recuperao da sade do corpo:

Breve histria dos hospitais no ocidente procuro fazer um relato de como os hospitais

se tornaram o que so hoje. As transformaes pelas quais os hospitais passaram ao

longo da histria so analisadas a partir das mudanas nos seus processos de trabalho,

sem, no entanto, desconsiderar os aspectos econmicos, sociais e culturais nos quais

estavam inseridos.

No captulo 3, Tendncias mais recentes em relao aos hospitais, os principais

movimentos, tanto internos quanto externos aos hospitais que vm alterando suas

dinmicas de funcionamento e conformando uma nova forma de insero nos sistemas

de sade so analisados. O esprito do captulo o da tentativa de identificar os

principais rumos que os hospitais vem trilhando, bem como o porqu destes rumos.

No captulo 4, Histria dos hospitais no Brasil at o SUS fao uma anlise de

aspectos relevantes da histria dos hospitais no Brasil at o surgimento do Sistema

nico de Sade (SUS). Embora a evoluo dos hospitais brasileiros seja vista

brevemente desde a implantao das primeiras unidades ainda no Brasil colnia, o

enfoque principal compor um panorama do parque hospitalar que o Sistema nico de

Sade (SUS) herdou, com suas possibilidades e limitaes.

No captulo 5, O SUS e o quadro hospitalar contemporneo no Brasil so analisadas

as capacidades instaladas dos setores pblico e privado, coberturas populacionais de

leitos, porte e distribuio pelo territrio nacional. O parque hospitalar nacional

analisado a partir de suas mudanas mais recentes, com o intuito de permitir, por um

lado algumas correlaes e anlises com o que vem ocorrendo com essas organizaes

no mundo e, por outro lado, compreender em que aspectos as tendncias mais recentes

dos hospitais brasileiros tm contribudo para conformar avanos e limitaes do nosso

sistema de sade.

No captulo 6 abordo a oferta de leitos de terapia intensiva como proxy da

resolutividade dos servios hospitalares no Brasil. A terapia intensiva foi escolhida

para ser analisada com mais detalhe neste captulo no apenas pela sua importncia

14

intrnseca, mas tambm porque a mesma pode funcionar como Proxy da oferta de

servios hospitalares de maior complexidade, uma vez que grande parte destes servios

depende do suporte deste segmento. Esta abordagem permite uma viso aproximada do

que vm ocorrendo em relao aos hospitais em termos de resolutividade, qualidade da

assistncia e incorporao tecnolgica.

No captulo 7, As internaes hospitalares no Brasil so analisadas com o intuito de

identificar por um lado, a que problemas os hospitais esto dando respostas e, por outro,

para analisar a performance e o grau de adequao da estrutura instalada no Pas para o

enfrentamento de nosso quadro sanitrio.

No captulo 8 Polticas hospitalares do Ministrio da Sade procuro fazer uma

anlise das principais polticas editadas pelo Ministrio da Sade, tentando identificar

em que medidas elas contriburam para conformar o atual parque hospitalar brasileiro.

No captulo 9 abordo o Impacto da sade suplementar no quadro hospitalar

brasileiro. Para compreender o impacto deste segmento no parque hospitalar brasileiro

faz-se necessrio compreender quais so seus principais processos nesta quadra de

nossa histria. Procuro analisar os processos de concentrao de mercado e de

verticalizao que vem ocorrendo na sade suplementar e de como estes processos

interferem na dinmica hospitalar brasileira.

No captulo 10 analiso O futuro do parque hospitalar brasileiro como histria por

ser escrita. Aqui, ao invs de formular concluses ou snteses dos captulos anteriores -

o que, de alguma forma, j foi feito na estrutura dos prprios captulos - procuro

analisar potenciais impactos de polticas ou da economia na conformao do parque

hospitalar brasileiro nos prximos anos. Utilizando uma metodologia de construo de

cenrios futuros procuro contar histrias passveis de serem vividas pelos hospitais

brasileiros, caso algumas situaes se concretizem.

15

1 - SOBRE MTODOS E ESTE TRABALHO

comum comear uma discusso sobre mtodo invocando a etimologia da palavra.

Este procedimento seria capaz de nos levar ao verdadeiro sentido da palavra, segundo os

essencialistas. Um sentido que foi perdido ou deturpado ao longo do tempo. Buscar este

sentido buscar a fora das palavras primitivas, palavras estas que dizem diretamente

do ser das coisas, sem nenhuma mediao, como diria Heidegger. Por esta acepo,

mtodo seria a via (por meio da qual (se chega a algum lugar. Mesmo

acreditando que a etimologia no mximo nos diz como uma comunidade de prticas

distante no tempo costumava usar determinadas palavras e que comunidades de

prticas diferentes podem usar uma mesma palavra para expressar coisas diferentes e

usar palavras diferentes para expressar coisas parecidas -, este parece o sentido mais

adequado a este trabalho. No por acaso, um dos ltimos captulos escritos. Tendo

percorrido o caminho, olho para trs e agora descrevo os passos que andei. A descrio

de mtodo neste trabalho uma tentativa de ordenar o trajeto atravs do qual se chegou

aos resultados que esto sendo apresentados. No acredito que tenha seguido risca os

mtodos que descrevo abaixo e, que mais fortemente serviram de inspirao para este

trabalho. No entanto, com os devidos ajustes, eles traduzem razoavelmente o processo

empreendido.

Analisado sob o ponto de vista dos mtodos em economia, o processo desenvolvido

neste trabalho mostra muitas proximidades com o mtodo histrico-dedutivo. Pois, ele

parte de sequncias observadas de fatos - no caso a evoluo temporal do parque

hospitalar brasileiro recortado por uma srie de categorias analticas -, mantendo-se

prximo a estes fatos por ocasio das anlises (Bresser-Pereira 2009). O mtodo

histrico dedutivo tem uma longa tradio e, em seus caracteres mais gerais vem se

consolidando, desde o renascimento. Deste, absorveu a nfase no humano em

contraposio ao divino. Do racionalismo cartesiano absorveu principalmente a dvida

e, posteriormente, do iluminismo, mais do que do cartesianismo, o racionalismo e uma

consistente ojeriza por argumentos de autoridade. Mais tarde, convertido em

materialismo histrico e dialtico com Marx, este mtodo passou por uma grande

expanso. No se prestava apenas exegese de textos bblicos por parte de padres e

pastores pouco crdulos, que o utilizavam para separar a palavra divina da palavra

16

humana, mas tambm anlise dos fatos econmicos. isto mesmo, exegetas de textos

bblicos, muito antes de Marx ou Hegel utilizavam o mtodo histrico para tentar

discernir o que foi acrescentado pelos homens, em cada perodo da histria, inteno

ou palavra divina nos textos bblicos. Assim, no apenas Marxistas, mas tambm

muitos leitores da bblia ainda utilizam o mtodo, ao qual os ltimos do mais

frequentemente o nome de mtodo histrico-crtico, at nossos dias.

Se dividirmos o mundo dos economistas em relao aos mtodos que utilizam, em

clssicos e neoclssicos como faz Bresser Pereira (Bresser-Pereira, 2009), para o

arrepio de muitos autores (Singer, 1991), colocaremos no apenas Marx, mas tambm

Smith e Keynes como pertencentes escola clssica e utilizadores do mtodo histrico-

dedutivo, que consiste eminentemente na constatao e observao de fatos econmicos

empricos, para em seguida oferecer generalizaes a partir da anlise destes fatos e, do

outro lado, entre os neoclssicos teramos Ricardo, Stuart Mill, Mankil, que utilizam o

mtodo hipottico-dedutivo. Estes ltimos, em contraposio aos primeiros partem de

hipteses formuladas e tambm de pressupostos, como o homo economicus e o modelo

do equilbrio geral, para em seguida deduzir o que ocorreria em situaes especficas, a

includos os eventos empricos. Na filosofia, este debate metodolgico feito sob o

formato induo versus deduo (Hume, 2000).

Estas distines em relao a mtodos no podem ser vistas como tendo um carter

absoluto. Seguidores do mtodo histrico-dedutivo tambm usam pressupostos e

seguidores do mtodo hipottico-dedutivo tambm analisam sries histricas de

eventos. Marx, como bom seguidor de Hegel partia de alguns pressupostos. Acreditava

que a realidade no algo imutvel, mas que seguia leis. Os fenmenos nossa volta

esto sujeitos a contradies e um conflito perptuo. No entanto, seu ponto de partida

consistia nos fenmenos empricos. Estes deveriam ser estudados no apenas do ponto

de vista deles mesmos, mas de suas relaes com os outros, uma vez que nada existe

como objeto isolado. No vale a pena levantar a hiptese de que Marx, um grande leitor

de Maquiavel, retirou deste, mais que da Dialtica do Senhor e dos Escravos, a idia de

que o conflito e o confronto podem funcionar como motor da economia. Em seus

Discorsi, Maquiavel dizia que o imprio de Alexandre, que tinha como um de seus

pressupostos a produo da harmonia, foi menor que o imprio romano, que cresceu

17

com patrcios e tribunos digladiando-se o tempo todo. Assim, conflito e expanso da

economia no eram para Marx uma equao estranha. Este conflito, ao qual chamou de

dialtica, seguindo Hegel, se resolvia em uma sntese, que se transformava em tese, para

a qual surgia uma nova anti-tese e assim sucessivamente. A histria do que nos rodeia -

da sociedade, do pensamento ou mesmo de nosso atual objeto de estudo, os hospitais no

Brasil, pode ser analisada a partir de suas relaes de conflitos, da oposio de

contrrios e das mudanas decorrentes destes conflitos.

Os simpatizantes da Escola Clssica, muito provavelmente se reconhecero neste

trabalho. Encontraro um grande nmero de sries histricas de dados, devidamente

periodizados, acoplados a anlises que procuram manterem-se coerentes a estes fatos,

no se preocupando com a explicitao de um pressuposto aceito coletivamente ou de

uma hiptese que d conta de todos os eventos. Provavelmente, at se sentiro

confortveis com a leitura, pois, encontraro um trabalho em estilo muito prximo ao da

sua escola, o que no muito comum, uma vez que fazem parte de uma corrente que

minoritria atualmente entre os economistas. No entanto, os simpatizantes dos

neoclssicos, torcedores de Ricardo, Stuart Mill, Mankil e outros oporo alguma

resistncia ao meu trabalho. Se for um economista mais erudito, daqueles que no

precisaram trabalhar enquanto faziam o curso e, assim teve oportunidade de ler muitos

outros livros, comear argumentando a prpria impossibilidade da induo. Recitar

todos os argumentos que Hume utilizou contra a induo e, muito provavelmente

terminar me dizendo que no possvel fazer cincia sem formular hipteses que, a

rigor, nem precisam ser demonstradas, como diria Popper, ou sem partir de axiomas,

que tambm no precisariam ser explicitados. Mas que eu precisaria dizer em quais

condies estas hipteses podem ser contestadas. Indo alm, e sendo generoso, este

neoclssico erudito poderia dizer que at admitiria que eu fosse de um tipo antigo,

daquele que partindo de uma hiptese, vai buscar na realidade alguns fatos que a

demonstrem. Mas, definitivamente, no havia jeito de fazer cincia sem formular

hipteses e explicitar pressupostos. Desta forma, tenderia a acreditar que meu trabalho

no cientfico.

Eu ficaria tentado a continuar o debate dizendo que embora acredite que modelos

tericos, como o atmico utilizado pela fsica tm possibilitado nas cincias exatas

18

avanos importantes, a utilizao destes mesmos modelos, sejam eles estruturas,

rizomas, epistems ou quaisquer coisas que os equivalham (como o modelo do

equilbrio geral, na economia, a teoria da barganha na poltica, etc.) no encontraram no

campo das cincias sociais e humanidades a mesma utilidade praticamente inconteste

que encontraram nas cincias naturais. Indo alm, eu poderia at dizer com Gadamer

que este desejo de trazer para a rea social e as humanidades a mesma forma de pensar e

de proceder das cincias naturais tambm histrica, alm de pouco original, e tem a

ver com o sucesso das cincias naturais nos sculos XVII e XVIII (Gadamer, 2002), o

que despertou nas outras reas de conhecimento o desejo de operarem sob o rtulo de

cincia. Afinal, esta havia se tornado uma marca de conhecimento com aceitao

garantida. Poderia insistir na opinio de que conhecimentos podem ser produzidos, sem

que sua veracidade tenha que ser decorrente de algo com o nome de mtodo cientfico.

No entanto, como bom pragmtico, ao invs de insistir no debate, eu simplesmente

tentaria passar logo aos outros tpicos da discusso, pois esta j se arrasta por mais de

cem anos. Alm do mais, eu no teria mais o que acrescentar ao que Paul Feyerabend j

disse contra o mtodo.

Visto pelo ngulo da sociologia no que diz respeito a mtodos, eu diria que este trabalho

tem muitas proximidades com o mtodo ecolgico, em especial com a verso brasileira,

trabalhada por Freyre, onde natureza principalmente o lugar onde os acontecimentos

humanos tem lugar e no o determinante destes acontecimentos. Iniciado com a Escola

de Chicago no incio do sculo passado, tem uma linguagem muita prxima da rea de

sade, em especial da epidemiologia, da qual parece extrair vrios conceitos. Algumas

de suas verses mais contemporneas, usadas para analisar as organizaes tratam-nas

como se fossem uma populao. Seguindo este raciocnio em relao a este trabalho,

uma populao de hospitais analisada. Eles tm uma natalidade, uma longevidade,

uma mortalidade, uma distribuio espacial, um determinado porte, um comportamento

ao longo do tempo, mudanas em suas estruturas e prticas, etc. E aqui, vrios

procedimentos neste trabalho se assemelham ao que foi desenvolvido por seguidores

desta escola em relao a um grupo de hospitais americanos (Scotti, 2000).

Do ponto de vista prtico, eu parti de algumas intuies advindas de crenas anteriores

sobre o parque hospitalar brasileiro, mas tambm de vivncias e experincias cotidianas

19

no sistema de sade onde trabalhei como mdico, como gestor, como consultor, como

professor em cidades grandes e pequenas, atuando nas esferas municipal, estadual e

nacional, na rea pblica e tambm privada. Compus durante este perodo um vasto

leque de opinies, entre as quais algumas foram se tornando bem antigas, sobreviventes

por assim dizer. Durante o trabalho, policiei-me ao mximo para no transformar

antiguidade em critrio de adequao e, embora tenha dvidas do sucesso desta

empreitada, coloquei este estoque de opinies em movimento. Fui buscar nas histrias

contadas por vrios sanitaristas brasileiros e nos estudos de vrios pesquisadores, apoio

para a interpretao dos dados arrancados dos bancos de dados e que compilei em

inmeras tabelas e grficos que podero ser vistas ao longo deste trabalho. Em alguns

momentos fiz o procedimento inverso. Busquei os dados para apoiar intuies minhas

ou de outros autores que eram importantes para o projeto. As idias e vises que adotei

de vrios sanitaristas brasileiros, dentre as quais destaco o meu orientador, professor

Gasto Wagner em conversas, palestras e debates so muitas e, de to introjetadas que

foram, passaram a se constituir em parte das minhas crenas pessoais, sendo de difcil

citao, pois j no consigo distinguir exatamente de onde as tirei. Mas, elas

indubitavelmente se constituram em apoio e motivao para a construo de sentido

para os vrios fragmentos que tentei costurar em uma histria crvel.

Durante todo o percurso deste trabalho fui assombrado por vrios fantasmas, com os

quais mantive longos dilogos. Os espectros de Marx, Nietzsche, Freud, Wittgenstein,

Benjamin, Foucault, Gadamer, Rorty e vrios outros sopraram tantas vezes em meus

ouvidos, em algumas madrugadas, mas muitas vezes luz do dia, que, ao reler o texto

tenho a impresso de que alguns trechos foram psicografados.

Como a ideia de histria recorrente neste trabalho importante que eu ressalte como

esta questo foi abordada. Como conseqencialista, cuja preocupao o futuro, nico

tempo sobre o qual se tem alguma governabilidade, j advirto que o uso da histria

neste trabalho predominantemente instrumental. Usando Benjamim em minha defesa,

na maior parte das vezes, arranquei as sries histricas de dados e os fatos do caos nos

quais estavam mergulhados e tentei costur-los em uma histria com sentido. Com

certeza estes fatos ou eventos podem ser retecidos em histrias diferentes. Vrios

20

ensaios histricos podem ser construdos a partir dos mesmos eventos e fatos que

analisei.

Ao contrrio da maior parte dos historiadores contemporneos ou mesmo dos

historiadores da sade pblica, minha preocupao principal no foi fundamentar ou

documentar referncias linearmente no tempo, mas, ao invs disto, localizar

acontecimentos ou sequncias de eventos que corroborassem algumas construes de

sentido medida que consolidava sries de dados sobre o parque hospitalar brasileiro.

Desta forma, no estou reivindicando para esta pesquisa o mesmo tipo de validade que

alguns historiadores costumam reivindicar para suas pesquisas. Fidelidade e coerncia

aos fatos e eventos como efetivamente ocorridos podem ser conseguidos, segundo estes

historiadores, com o tipo de mtodo que utilizam, o que no foi feito neste trabalho. A

melhor imagem que consigo criar para o processo que utilizei para juntar dados de

sries histricas, interpretaes dessas sries, eventos similares descritos por outros

pesquisadores a do colecionador. Fui compondo um mosaico e, em determinados

momentos este mosaico pareceu-me fazer algum sentido. As lentes que utilizei para

olhar sries de dados, eventos e relatos de outros pesquisadores certamente promoveram

alguns coloridos diferentes, ampliaes, redues ou at mesmo distores, caricaturas

dos fatos. Mas, com certeza, estes fatos no foram criados como efeitos das lentes

utilizadas.

No acredito que o tipo de pesquisa que empreendi seja desconectada do contexto em

que vivo, qual seja o de uma comunidade de prticas, incluindo as investigativas, com

sua cultura e poca prprios, com suas crenas, modos de agir e pensar, com suas

instituies, que, ao mesmo tempo, moldam e so moldadas por nossas aes. Assim,

este trabalho no descolado do contexto atual de um sistema de sade em processo de

implantao, com suas lutas, suas marchas e contra-marchas, e, dificilmente faria algum

sentido fora deste contexto. A histria que tento compor neste trabalho tem uma

finalidade clara: construir algum tipo de entendimento sobre como estamos sendo

arrastados em direo ao futuro no que tange a assistncia hospitalar e, porque no

dizer, em relao ao Sistema nico de Sade.

21

Nesta busca e anlise de dados que empreendi, me deparei com fatos, informaes ou

interpretaes que se chocaram, algumas vezes de forma turbulenta, com o estoque de

opinies, ideias e at mesmo de dados que eu tinha previamente, fazendo com que se

transformassem profundamente e redundassem no trabalho que estou apresentando na

forma de tese para doutoramento. No acredito que este processo tenha chegado a um

lugar especial ou a uma verdade, mesmo que provisria sobre o quadro hospitalar

brasileiro. Trata-se a meu ver de uma espcie de relatrio parcial, incompleto,

provisrio e inacabado. Inacabado, no sentido que Umberto Eco d ao termo, de obra

aberta, em constante construo (a work in progress, como diria James Joyce) ou

mesmo no sentido que os pedreiros do ao termo, faltando quartos, banheiros ou at

mesmo andares inteiros para serem construdos.

As principais fontes de dados secundrios utilizadas na elaborao deste trabalho so

constitudas por quatro grandes bases de dados, s quais se tem acesso via INTERNET,

ou pela disponibilizao de microdados via CDs ou DVDs . So elas:

A. ESTATSTICA DE SADE ASSISTNCIA MDICO-SANITRIA (AMS) DO

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATSTICA (IBGE) 2002,

2005 e 2009.

Trata-se de uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE

que investiga todos os estabelecimentos de sade, sejam pblicos ou privados, com ou

sem internao, em todo Territrio Nacional, com o objetivo bsico de revelar a

capacidade instalada em sade no Brasil. Alm de detalhar a oferta desses servios, esta

pesquisa fornece elementos importantes para a identificao de demandas regionais por

servios de sade, principalmente em relao ao processo de municipalizao da

organizao da gesto dos servios. Parte das informaes da pesquisa pode ser

acessada diretamente no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE).

Conta-se tambm com publicao impressa e DVD, com dados e planilhas elaboradas

pela Diretoria de Pesquisas, Coordenao de Populao e Indicadores Sociais.

B. CADASTRO NACIONAL DOS ESTABELECIMENTOS DE SADE (CNES).

22

O Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Sade foi institudo pela Portaria MS/SAS

376, de 03 de outubro de 2000, publicada no Dirio Oficial da Unio, de 04 de outubro

de 2000, e a base para operacionalizar os Sistemas de Informao em Sade. Em

29/12/2000 editou-se a Portaria SAS-511/2000 que passava a normatizar o processo de

cadastramento em todo Territrio Nacional. Este sistema vem sendo atualizado e

modernizado ao longo dos anos. Como seu preenchimento feito diretamente pelos

prestadores de servios, apresenta algumas inconsistncias e nem sempre suas

informaes so atualizadas pelos prestadores, o que, certamente leva a algumas

imprecises. Assim, no incomum que seus dados se mostrem divergentes dos dados

coletados pela AMS que o faz diretamente junto aos prestadores de servios em sade.

C. SISTEMA DE INFORMAES HOSPITALARES DO SISTEMA NICO DE

SADE (SIH/ SUS)

O Sistema de Informaes Hospitalares (SIH-SUS) um banco de dados que foi

desenhado para fins administrativos, com o objetivo primordial de responder pelo

processamento de registros existentes nas Autorizaes de Internaes Hospitalares

(AIH). Este sistema foi implementado pelo Instituto Nacional de Assistncia e

Previdncia Social (INAMPS) no incio da dcada de 80 para ressarcir os servios

realizados pelos prestadores privados, filantrpicos e das universidades pblicas do

Pas, cuja forma de pagamento fixo por procedimentos. Posteriormente, o formulrio

da AIH passou a ser obrigatoriamente utilizado por toda rede de prestadores de servios

hospitalares do SUS, passando a abranger cerca de 70% das internaes realizadas no

Pas.

D. CADERNOS DE INFORMAO DA SADE SUPLEMENTAR ANS

Trata-se de publicao trimestral da Agncia Nacional de Sade com compilao de

dados sobre operadoras de planos de sade, usurios, procedimentos realizados,

financiamento e uma vasta gama de informaes consolidadas em tabelas e grficos aos

quais se tem acesso em publicao eletrnica. O acesso disponvel em

http://www.ans.gov.br/portal/site/informacoesss/informacoesss.asp

http://www.ans.gov.br/portal/site/informacoesss/informacoesss.asp

23

2. DA SALVAO DA ALMA DOS POBRES RECUPERAO DA SADE

DO CORPO: BREVE HISTRIA DOS HOSPITAIS NO OCIDENTE

Desde o seu surgimento na antiguidade at assumir suas caractersticas contemporneas,

os hospitais passaram por grandes transformaes. As periodizaes e caracterizaes

dessas transformaes variam amplamente segundo os enfoques e mtodos utilizados

pelos diferentes autores. Enquanto alguns, como Rosen (1980) e Antunes (1991)

preferiram manter uma periodizao convencional seguindo as idades Antiga, Mdia,

Moderna e Contempornea - outros, como Steudler (1974), retomado por Graa (1996 e

2000), utilizados como as principais referncias neste trabalho, optaram por uma

periodizao dos sistemas hospitalares, nos pases ocidentais, que tem como principal

recorte a anlise dos processos de trabalho no interior do hospital, correlacionando-os

com a evoluo dos sistemas econmico, social e poltico. Segundo estes ltimos

autores, os hospitais no ocidente teriam passado por trs grandes fases: o sistema

tradicional (at meados do Sc. XIX); o sistema profissional liberal (de meados do

Sc. XIX at II Guerra Mundial); e o sistema tcnico (a partir da II Guerra Mundial).

Essa periodizao foi inspirada na tipologia dos sistemas de trabalho de Touraine

(1973). Em termos resumidos poderia ser assim descrita: no sistema tradicional o tipo

de trabalho dentro do hospital era mais prximo do que se convenciona hoje chamar de

ocupaes, ou trabalho no qualificado, para o qual no se demandava uma formao

especfica. No sistema profissional liberal o trabalho no interior do hospital centrado

na figura dos mdicos, j reconhecidos como profissionais, ou seja, constituem-se como

uma corporao efetiva, com um corpo de conhecimento esotrico prprio, que

repassado em carter restrito e controlado pela corporao, no acessvel a toda

sociedade e no podendo ser exercido livremente pelos demais cidados. O sistema

tcnico est baseado em outra forma de diviso do trabalho, que evidencia processos

tpicos de ambientes industriais, com especializao e diferenciao de funes e a

produo em srie tanto dos produtos usualmente utilizados como de procedimentos,

extrapolando assim a questo das corporaes profissionais, apesar de no neg-las.

24

Estabelecidos os perodos nos quais essas mudanas no interior do hospital se deram,

procurou-se correlacion-las com a funo dos hospitais no sistema mais geral de

assistncia mdica e destas no interior das mudanas sociais, polticas, econmicas e

culturais pelas quais passaram o ocidente, e, em especial, o ocidente europeu. As fases

so analisadas a partir de uma perspectiva sociolgica, incluindo a as relaes que se

estabelecem entre os principais atores, quais sejam: a igreja, o estado, as empresas e

outros mantenedores, os gestores, os mdicos, outros prestadores de cuidados de sade e

usurios.

No que diz respeito transio do sistema profissional liberal ao tcnico, a abordagem

anteriormente mencionada apresenta muitas similaridades com o que foi descrito por

Scott (2000) como a passagem da dominncia corporativa ao cuidado gerenciado

(managed care), em relao histria recente dos hospitais americanos. Em termos

hospitalares, a fase da dominncia corporativa caracterizada como tendo ainda o

mdico controle sobre a integralidade de seus atos (diagnstico, deciso e teraputica) e

corresponderia ao sistema profissional liberal de Steudler e Graa, ao passo que o

managed care, predominante no cenrio atual - onde temos uma profunda

racionalizao do trabalho, atravs do uso de protocolos, produo em srie de

procedimentos, decomposio do ato mdico em um conjunto de intervenes em

cadeia efetuadas no apenas por diferentes especialidades mdicas, mas tambm por

uma vasta gama de outros profissionais - corresponderia ao sistema tcnico.

Campos (2010), divergindo dos autores anteriormente citados considera que existe

ainda uma tenso entre a prtica clnica e a gesto, tanto nos hospitais, quanto em outras

organizaes de sade. A corporao mdica teria se organizado poltica e tecnicamente

encontrando mecanismos de resistncia fragmentao da clnica e operando a

mediao entre os saberes estruturados e o contexto singular de cada paciente. A ttulo

de exemplo, mesmo a realizao de alguns procedimentos ou exames altamente

sofisticados em unidades especializadas do hospital no retiraria do profissional mdico

a deciso final sobre o que fazer em cada situao. Acrescenta ainda, que mesmo nos

contextos, pblicos ou privados, onde profissionais mdicos so contratados sob a

forma explcita de assalariamento, sua autonomia em relao s prticas clnicas

grande. Em um dilogo com outros autores, como Donngelo (1975) e Ricardo Bruno

25

(1979) vai sustentar que no h uma subordinao da clnica racionalidade gerencial

hegemnica, mas sim um tensionamento permanente entre estas duas racionalidades, o

que conferiria vrias caractersticas diferentes s organizaes de sade, e, tambm um

leque de possibilidades e alternativas diferentes. Neste contexto, esta transio, da

racionalidade clnica racionalidade gerencial - ou a transio de um modelo liberal

para o tcnico como mencionado pelos historiadores acima - no teria ainda se

concretizado, mas se constituiriam em um tensionamento que perpassa as organizaes

de sade como um todo e o hospital em particular.

Embora as constataes de Campos se mostrem, muito provavelmente, mais pertinentes

em relao ao contexto hospitalar no Brasil, o mesmo no prope periodizaes, uma

vez que este no era seu objetivo central nos trabalhos que tratam do tema. Desta forma,

por didatismo, sero mantidas neste trabalho as periodizaes propostas por Steudler e

Graa, que sero descritas a seguir.

2.1. O SISTEMA TRADICIONAL (AT MEADOS DO SC. XIX)

O Sistema Tradicional tem como caractersticas comuns o fato dos hospitais, ou de seus

ancestrais, no se constiturem em lcus de trabalho predominante ou de importncia

significativa para o que mais tarde viria a ser considerado profissional mdico, alm de

no ser uma preocupao importante do Estado, poder pblico ou equivalente. Trata-se

de uma gama variada de organizaes, que em diferentes pocas tiveram finalidades

distintas, mas que de alguma forma estavam voltados para a acolhida e apoio no

apenas a doentes e portadores de alguma limitao ou sofrimento, mas tambm a

pobres, debilitados, excludos, etc. Para facilitar seu entendimento, optou-se aqui por

subdividir o sistema tradicional em quatro momentos.

2.1.1. Os templos de Asclpio

Asclpio (ou Esculpio para os romanos), heri homrico, filho do Deus Apolo com

uma mortal, era considerado o semideus da medicina. pouco provvel, que os

muitos templos erigidos em sua homenagem, desde o Sculo V a. C. at a difuso do

cristianismo na poca do imperador Constantino, guardem semelhanas significativas

26

com o que chamamos hoje de hospital. No entanto, o grande nmero de peregrinos e

doentes que acorriam aqueles templos procurando consolo ou cura para seus males,

conferiu-lhes um carter muito popular, seja na Grcia antiga, seja entre os romanos,

conforme relata Charitonidou (1978) em seu livro sobre o templo e o museu de

Epidauro, erigido em homenagem a Asclpio.

O sacerdote - que era tambm o terapeuta (do grego: - servir a deus) -, aquele

que possui um carisma ( ou um dom, funciona como um intermedirio entre o

Deus e o adorador que nele cr. Deus precisa de um medium para operar a cura. Tudo

leva a crer que nos primrdios do culto a Asclpio, os sacerdotes no se mostravam

muito interessados nas especificidades de cada doena e tambm da teraputica.

Charitonidou (1978) descreve os rituais e o mtodo teraputico que eram usados. Antes

de conduzir o doente ao abaton - o local do templo onde os doentes deviam passar a

noite, j que a cura dos seus males, ou as recomendaes a serem seguidas aconteciam

durante o sono (incubatio) - o sacerdote cuidava apenas de administrar e fazer respeitar

os preceitos do culto, que deviam ser seguidos pelos doentes. Afinal de contas os

sacerdotes eram at ento apenas terapeutas, servidores de Asclpio, que era quem

operava a cura. Porm, com o decorrer do tempo, sob a influncia de Hipcrates e seus

seguidores, essa prtica vai se alterar.

Hipcrates (, Cs, 460 a.C. Tesslia, 377 a.C.) foi educado no templo de

Asclpio por seu pai, que era mdico, pelos sacerdotes terapeutas do templo e por

Herdico, mdico da Trcia. Com o passar do tempo, deixou de lado a divindade e seus

mistrios, dando maior ateno s observaes dos aspectos biolgicos e

comportamentais dos homens. Seus escritos sobre anatomia contm descries claras

tanto sobre instrumentos de dissecao quanto sobre procedimentos prticos. O Corpus

hippocraticum contm uma srie de descries clnicas pelas quais se pode diagnosticar

um extenso conjunto de doenas. Abandonando a concepo mgica da doena,

postulou que elas e as epidemias relacionavam-se com fatores climticos, raciais,

dietticos e do meio onde as pessoas viviam. Na escola de Cs desenvolveu com seus

seguidores o que temos considerado atualmente os caminhos cientficos da sade.

27

Segundo Galimberti (2006), Hipcrates teria produzido uma dupla ruptura em relao s

concepes de sade e doena. A primeira em relao concepo de que as doenas

seriam produzidas pelos deuses como forma de punio ou castigo e que estes tambm

seriam responsveis pela sua cura. At mesmo em relao epilepsia, a doena

sagrada, vai supor, que tinha causas naturais, mundanas, no relacionadas com os

deuses ou seus cios e divertimentos. O tratamento para os males, por seu turno nada

teria a ver com os Deuses, mas com aes concretas desencadeadas pelo Homem.

A segunda ruptura diria respeito concepo grega de cosmos como totalidade

equilibrada, e de que nossos problemas e suas solues teriam relao com o equilbrio

csmico. Vale lembrar, que os gregos associavam sade idia de equilbrio, harmonia.

Aqui, vai propor, que o local adequado para o homem no cosmos com seu equibrio,

mas um ambiente, com ares e humores em lugares favorveis sade humana. A

natureza, phisis, deixa de ser considerada como me provedora de todas as necessidades

qual devamos nos adequar. Certamente, nenhum dos escritos atribuidos a Hipcrates

nos autoriza a supor que o mesmo considerava a natureza uma madrasta que nos dava

de comer a outros animais, nos matava de frio e de fome, nos trazia ares insalubres, que

nos envenenava com lquidos pestilentos e assim por diante. Por outro lado, no resta

dvida de que suas concepes nos levam a crer que julgava importante intervirmos na

natureza, modificando-a para que determinados locais se tornassem mais adequados

existncia humana.

Tudo indica que os sacerdotes de Asclpio, sentindo a concorrncia dos mdicos e da

eficincia da medicina hipocrtica, tenham adotado algumas prticas novas para manter

vivos os velhos templos e o culto a Asclpio. Charitonidou (1978), ao descrever o

Templo de Epidauro, relata que este sofreu vrias modificaes ao longo dos seus quase

dez sculos de funcionamento. Considerando que ele foi erigido prximo ao Sculo V

a.C., e que foi desativado com o florescer do cristianismo no Sculo V d.C., bem

provvel que represente o que tenha ocorrido tambm com outros templos similares

neste intervalo de tempo. Incorporou um centro de lazer, banhos de guas quentes e

frias, pousadas, ginsios, prtica de esportes, jogos e at um teatro. Procurar algumas

similaridades entre estes locais, suas prticas e os contemporneos SPAs no de todo

infundado. Os sacerdotes, por sua vez, procuraram obter mais conhecimentos sobre cada

28

um dos males e as suas possveis abordagens. bastante provvel que tenham tambm

incorporado algumas prticas teraputicas, e, que antes de conduzir os doentes ao

abaton, lhes dessem no apenas orientaes de como proceder ao culto, mas, tambm,

conselhos bem especficos de como cuidar de seus problemas de sade. Os templos,

assim concebidos, j no tinham mais funes ligadas apenas religiosidade, se

configurando tambm como verdadeiros estabelecimentos sanitrios.

Segundo Charitonidou (1978), o templo de Epidauro contm vrias inscries. Em uma

delas encontram-se as queixas formuladas por um tal Apellas, que dizia sofrer de

hipocondria e de terrveis indigestes. bem provvel que alm da estadia no templo,

onde podia descansar por alguns dias, tomar banhos quentes e frios, caminhar, praticar

esportes e ir ao teatro, o sacerdote lhe tenha aconselhado uma vida mais comedida, uma

alimentao saudvel, em perodos regulares e sem excesso de condimentos, que no

fizesse uso de bebidas alcolicas, ou faz-lo apenas com moderao, que evitasse

ambientes insalubres e, que a prtica de atividades fsicas e um sono tranquilo fossem

uma constante em sua vida. Nada que, provavelmente, parea muito estranho ao que

preconizam contemporaneamente os adeptos da promoo da sade.

Devemos registrar ainda que, segundo a mitologia, Asclpio teve quatro filhos. Dois

mdicos e duas outras filhas que tinham os sugestivos nomes de Hgia e Panaca. Em

grego Hgia poderia ser traduzido por higiene, limpeza, e representava a arte de se

manter saudvel; enquanto Panaca tinha o sentido de remdio para todos os males,

tratamento das doenas, mitigao dos sofrimentos. Decifrar a simbologia representada

por um pai mitolgico da medicina, seus dois filhos mdicos, uma filha cujo nome,

Hgia, carrega consigo um conjunto de significados relacionados preservao,

promoo e proteo da sade, e outra, cujo nome, Panaca, traz consigo outro conjunto

de significados relacionado cura dos males j instalados e articul-lo aos campos da

sade coletiva e da assistncia mdica individual ou da promoo da sade em

contraposio ateno aos enfermos, embora represente trabalho desafiador, est alm

do escopo desta tese.

29

2.1.2. Os Valetudinaria dos Romanos

Segundo Graa (2000), existem muitas controvrsias a respeito dos valetudinria

romanos. Sua origem remonta ao Sculo I a.C., e possuam diferentes finalidades. Em

geral constituam-se como estabelecimentos destinados a recolher e cuidar de familiares

idosos, doentes e escravos, pertencendo a famlias proprietrias de terras. No se sabe

ao certo se haviam valetudinria abertos populao em geral, de natureza pblica e

controlados pelo Estado. Sabe-se que os mdicos no contavam com grande prestgio

poca. Mesmo assim, tudo leva a crer que havia alguma diferenciao entre os medicus

a valetudinrio, que se dedicavam prtica da medicina nos diferentes valetudinria, e

os medicus a bibliotecis que se dedicavam ao ensino e teoria da medicina, geralmente

de origem grega, formao hipocrtica e que se fixaram em Roma. Estes trabalhavam

tambm nas medicatrinas, ambulatrios que provavelmente se desenvolveram a partir

dos iatreuns gregos ou dos tabernae medicorum (consultrios mdicos), que j existiam

desde o final do Sculo III a.C. Em que pese a constatao histrica das diferenciaes

entre os mdicos que se dedicavam ao ensino e os que se dedicavam prtica, no

existem, at o presente momento, muitos relatos que autorizem a tese segundo a qual os

problemas da integrao entre ensino e servio j se faziam presentes nesta poca.

Assim, a tentadora idia de aceitar que os problemas relacionados ao processo de

integrao entre a academia e os servios tm sua origem no prprio nascimento das

prticas mdicas e que, provavelmente, tero fim apenas quando no mais houver

prticas mdicas no dever ser desenvolvida aqui, pois, alm do risco de se incorrer em

um anacronismo (projetar fatos, conceitos ou pensamentos recentes em tempos

passados) poder levar a polmicas de difcil soluo.

Merece destaque no cenrio romano da antigidade os valetudinria militares, que

podem ser considerados verdadeiros hospitais de campanha. Estes estabelecimentos

eram destinados ao tratamento dos feridos em combate ou dos soldados que

adoecessem. Eram dirigidos por mdicos que tinham status de oficial militar, no

combatente. As instalaes fsicas contavam com enfermarias, cozinha, locais para

mdicos e enfermeiros, medicamentos, etc. Associado a essas caractersticas fsicas e

funcionais, o processo de diviso do trabalho entre mdicos e outros trabalhadores,

principalmente escravos treinados, fazem com que, aos olhos contemporneos, esta seja

30

o tipo de organizao da antigidade que mais se assemelha ao que chamamos hoje de

hospital. Vrias runas margem do Danbio, em Bonn (Alemanha), em Viena, etc., e

relatos feitos por Vegzio documentam bem estes fatos.

Exceto pelos valetudinria militares, onde provavelmente os romanos desenvolveram

bem a arte da cirurgia, tudo leva a crer, que os romanos no valorizavam muito a

medicina. No grande nmero de runas italianas da antiguidade, Roma, Pompia, etc.,

no se encontrou, at o presente, um nmero significativo de edifcios pblicos ou

privados com funes que lembrem os nossos atuais hospitais. somente com Jlio

Csar, concedendo status de cidado romano a todos os que exerciam a medicina em 46

d.C. que a profisso mdica vai angariar algum reconhecimento pblico.

No campo da sade parece que a grande contribuio romana foi a engenharia sanitria.

Os inmeros banhos pblicos e privados, a refinada malha de esgotos e os aquedutos

para a distribuio de gua, o tratamento do lixo, a limpeza obrigatria das ruas, latrinas

pblicas e privadas, etc. fazem crer que os conceitos romanos de higiene pblica e

saneamento bsico contriburam muito para o que podemos chamar hoje de uma

urbanidade mais saudvel. Acrescente-se a isso a conformao de uma espcie de

autoridade sanitria, o edil, que tinha como responsabilidade a fiscalizao de

estabelecimentos comerciais e de manufaturas.

Concluir que a obsesso dos romanos com a engenharia sanitria e a higiene pblica,

que tantas epidemias preveniram, tem alguma correlao com a adorao de Higia - que

foi transformada na deusa da sade, smbolo de uma vida efmera, que para ser bem

gozada dependia de que vrios problemas fossem enfrentados, no por cada homem

isoladamente, mas em conjunto na cidade -, em contraposio sua irm Panaceia que,

como exposto acima, representava o tratamento da doena pode ser temerrio. Da

mesma forma, interpretar que a atividade cientfica na sade, aqui representada por

Hipcrates, filha ingrata do mito, representado por Asclpio e seus seguidores, alm

de polmico demandaria outro tipo de enfoque que no nos atreveremos a fazer. No

entanto, podemos afirmar que existe uma convergncia de opinio entre os historiadores

de que, se por um lado, operou-se uma ruptura em relao s prticas mdicas que,

afastando-se da religio, tornaram-se laicas e mais prximas do que hoje chamamos

31

cincia, por outro lado, o provimento de cuidados aos doentes, se dava

predominantemente atravs da religio ou de leigos, no se constituindo ainda em uma

preocupao do Estado ou seu equivalente poca, e que a participao dos mdicos

nas organizaes existentes era pequena ou quase nula.

2.1.3. O hospital como pia causa crist: a idade mdia

O hospital, com o formato como o conhecemos hoje, considerado por muitos

historiadores e socilogos, como Steudler (1974), Rosen (1980) e Antunes (1991)

uma criao da cristandade da alta idade mdia. Etimologicamente, a palavra vem do

latim hospitale (lugar onde se recebem pessoas que necessitam de cuidados,

alojamento, hospedaria), ou hospes, hspedes ou convidados. Inicialmente, ficava

prximo s igrejas e recebia todo tipo de pessoa que necessitasse alguma ajuda. No

apenas doentes, mas pobres, incapacitados, peregrinos, vagabundos, etc. Os relatos

histricos datam o surgimento destas organizaes a partir do final do Sculo IV e

incio do V d.C. Ao longo de toda a idade mdia, estes estabelecimentos foram se

multiplicando, diferenciando e assumindo finalidades distintas, entre as quais

mencionamos algumas citadas por Guimares (1989) em sua reviso da histria dos

hospitais.

xenodochia (albergarias para os estrangeiros, os peregrinos, os viajantes e

todos aqueles que, em trnsito ou viagem, necessitassem de alojamento);

nosocomia (hospitais ou enfermarias que prestavam cuidados aos doentes ou

enfermos);

gerontochia (estabelecimentos geritrico ou, pelo menos, destinados ao

acolhimento de idosos);

ptochia (hospcios ou albergues para os pobres);

lobotrophia (locais destinados aos leprosos ou doentes pestiferados);

orphanotrophia (orfanatos);

brephotrophia (locais destinados a receber e a criar as crianas

abandonadas ou sem famlia).

O cristianismo responsvel, no apenas pela criao das organizaes acima, mas

32

teve papel fundamental na preservao da medicina hipocrtica. Com as invases

brbaras que tiveram lugar no imprio romano, a igreja constitua-se como lcus onde

se refugiavam os eruditos. Assim, filsofos, mdicos, acadmicos e outros tiveram

abrigo nos mosteiros, onde puderam desenvolver-se. Ainda que a existncia de

mdicos prticos fosse uma constante at o Sculo XIX, sabe-se que gradativamente

os profissionais com formao acadmica foram ocupando, progressivamente, maior

espao na sociedade.

O fato da igreja ter servido de abrigo a eruditos de diversas reas, inclusive da medicina,

no pode nos fazer esquecer que seu principal propsito era cuidar das almas. Doena,

sofrimento e morte faziam parte dos desgnios de Deus. Estavam submetidas, pois,

divina vontade. Alm do mais, sabe-se que naquela poca desejar em demasia o bem

dos corpos j era considerado principiar por degenerar a alma. A assistncia a enfermos,

portadores de qualquer tipo de sofrimento, mendigos, etc. chamados poca os

pobres de deus - era uma virtude crist e fazia parte de uma complicada contabilidade

onde dar aos pobres equivalia a emprestar a Deus, com direito a cobrana futura de um

lugar ao cu. Porm, embora fomentasse a virtude da assistencia, a igreja no

estimulava que padres se tornassem mdicos. Alm disto, a igreja impedia que qualquer

membro do clero executasse tratamentos que implicassem em derramamento de sangue,

o que fez com que as cirurgias viessem a ser executadas pelos cirurgies barbeiros, que,

com o decorrer do tempo passaram a se organizar em corporaes de ofcio.

Segundo Graa (2000), mesmo os nosocomia, destinados mais estritamente a

enfermos, se constituem aqui como mais uma casa de Deus, onde mais que curar as

doenas, a preocupao com o salvamento das almas. Na Frana, os hospitais

primitivos recebiam a designao de Hotel-Dieu. O mais antigo deles, o de Paris,

fundado no Sculo VII d. C., um bom exemplo. Em alguns perodos de seu

funcionamento, este hospital chegou a contar com mais de dois mil internos, tendo

para assisti-los dois ou trs mdicos. As receitas que sustentavam os hospitais

provinham, de um modo geral, da caridade de ricos, que, considerando-se devedores

de Deus, faziam contribuies em vida, ou beira da morte, na expectativa de um

retorno celeste ao seu investimento terreno. Muitas vezes o faziam na forma de

33

imveis ou terras, de cuja explorao plantio, pecuria, aluguis, etc. os hospitais

auferiam recursos para o seu sustento.

Inmeras ordens religiosas criavam seus hospitais, e vrias delas se desenvolviam

especificamente como Ordens Hospitalrias. Se refizermos a histria daquelas ordens,

certamente chegaremos a vrios hospitais contemporneos espalhados pelo ocidente,

inclusive na Amrica, a exemplo do John Hopkins nos Estados Unidos. Durante as

Cruzadas, enquanto os Templrios dividiam seu tempo entre as oraes a Deus no cu

e as guerras aos infiis aqui na terra, os Hospitalrios edificavam inmeros hospitais

para abrigar os peregrinos que se adoentavam a caminho da terra santa, ou os

guerreiros que se ferissem ou ficassem adoentados nas batalhas.

Resumidamente pode-se dizer que o hospital da idade mdia foi menos um

estabelecimento sanitrio do que um lcus religiosus, e sua misso, uma pia causa, a

de assistir aos pobres e enfermos, e como tal j merecedor, poca, das isenes de

taxas, impostos, etc., merecimento este que se prolongou, em muitas circunstncias,

at os dias atuais, como bem demonstra o tratamento conferido pelo Estado brasileiro

s Santas Casas. Estes estabelecimentos funcionavam com pouca presena de

mdicos, e, ainda no se constituam em uma preocupao do Estado (ou seu

equivalente). O ethos cristo marcou to profundamente a fundao e a manuteno

da rede hospitalar - como de resto toda a questo assistencial - que sua influncia ecoa

pesadamente at nossos dias, como bem documentam Rosen (1963) e Steudler (1974).

2.1.4. O hospital entre o poder divino e o terreno: a idade moderna

A partir do final do Sculo XIII e incio do Sculo XIV, o Estado, principalmente as

autoridades municipais, passa a complementar, no princpio, e, posteriormente, assumir

os encargos da igreja. Rosen (1963) aponta como um dos principais motivos para isto o

surgimento da burguesia, que passaria a estimular as municipalidades a tambm atuar na

rea assistencial, para fazer face ao grande contingente de pobres que se formavam nas

cidades. Tornou-se necessrio alterar a dinmica do hospital para que viesse a atender

um maior nmero de pessoas, em menor espao de tempo, aumentando sua eficincia.

As mudanas demandadas no se coadunavam com o tipo de abordagem feito pela

igreja. Este movimento fez com que o formato do hospital tambm se alterasse

34

progressivamente, inclusive em seu aspecto fsico. A casa de Deus foi progressivamente

transformando-se em enormes pavilhes, com p direito de at 10 metros, muitos leitos

dispostos perpendicularmente s janelas, e algum mecanismo de separao entre os

mesmos que no chegava at o teto.

importante ressaltar, no entanto, que o fato da administrao dos hospitais ter passado

paulatinamente, durante o perodo que vai do Sculo XIII ao XVI, para as autoridades

municipais, no significa que a igreja tenha abandonado a atividade hospitalar. Havia

uma espcie de co-gesto entre os representantes do poder divino e do poder terreno.

Segundo Rosen (1963), somente com a Reforma e a ascenso do Estado Absolutista

que a separao se torna mais significativa. E, mais ainda, neste perodo que se

estabelece a noo de que a responsabilidade pelos pobres, assim como pelos doentes,

deve recair sobre a comunidade e no sobre a igreja.

Ao longo dos sculos XVII e XVIII a administrao hospitalar, mesmo secularizada, vai

preocupar-se, sobretudo, com o financiamento e a gesto patrimonial do hospital, a par

da prestao dos servios hoteleiros, que j envolve uma ampla gama de trabalhadores

como cozinheiros, despenseiros, porteiros, etc. O servio de enfermagem ainda

prestado pelo pessoal religioso. Exceto pela participao dos cirurgies barbeiros, a

organizao dos cuidados mdicos praticamente inexistente.

Dois movimentos importantes e decisivos no processo de secularizao do hospital vo

se consolidando ao longo dos sculos XVII, XVIII e XIX. Por um lado, a direo vai

mudando seu perfil do tradicional provedor ligado nobreza e ao alto clero para o

burgus, doador ou pelo cidado que passava a representar os interesses do seu

municpio, que, alis, estavam, ambos, mais prximos dos mdicos. Por outro lado, a

crescente profissionalizao dos mdicos fez com que fossem paulatinamente

conquistando os espaos antes ocupados pelos curandeiros aos quais a populao

recorria. Esse processo de profissionalizao do mdico, descrito por Friedson (1970),

vai fazer com que seus estatutos profissionais e sociais se transformem radicalmente. De

posse de um corpo cientfico de conhecimentos e legitimidade social crescente, vai se

tornar o substituto (ou herdeiro) do carisma, do dom, da dedicao, da vocao e do

sacerdcio dos antigos homens de igreja.

35

Apesar da crescente importncia da medicina profissionalizada (dogmtica), em

contraposio aos mdicos prticos (ministrante), a presena dos mdicos nos hospitais

era pequena. H relatos, como os de Rochaix (1996 e 2004), que abordam o

funcionamento dos hospitais desde o ancien regime at nossos dias, tratando tambm do

trabalho e das formas de remunerao dos mdicos. Nestes relatos constata-se que as

poucas visitas a pacientes hospitalizados eram apressadas, sem regularidade, com

prescries e fichas clnicas mal preenchidas, deixando a clara impresso de que

remunerao e qualidade dos servios prestados no se conjugavam. bem provvel

que trazer essas questes para o cenrio atual, suscite a colocao pela corporao

mdica de que esse comportamento descrito em relao ao seu trabalho no hospital

fato histrico, coisa do passado, sem nenhuma similaridade com o presente. Embora a

universidade detivesse o monoplio da titulao dos mdicos, seu aprendizado passou a

se dar, ao longo do Sculo XVIII em especial, de forma crescente nos hospitais, onde

cuidava dos pobres, para, em seguida, no seu exerccio profissional, passar a maior parte

de seu tempo atendendo a uma clientela privada de ricos, como relata Foucault (1980)

com riqueza de detalhes.

Em relao aos pacientes internados, j era notrio o que Foucault chamou de regime

disciplinar. Os pacientes eram submetidos a normas que diziam respeito a horrios,

cuidados com o corpo, alimentao, comportamentos, etc. Estas disciplinas

implementadas por um poder com capacidade de imp-las, tambm se exerciam,

segundo Foucault, nas escolas, igrejas, prises e em outros tipos de estabelecimentos. O

poder disciplinar tinha como objetivo a formao de corpos dceis. Indivduos que,

introjetando as mencionadas disciplinas, estariam mais propensos a se subordinar - em

relao sociedade - s novas formas de organizao da produo nas indstrias e no

capitalismo que se anunciava. No interior do hospital, estes corpos dceis e assujeitados

passaram a despertar o interesse dos mdicos, no apenas pelo volume e diversidade de

patologias que apresentavam, o que facilitava seu aprendizado da clnica, mas tambm,

porque nestas circunstncias, se constituam em objetos de experimentao teraputica.

Em resumo, o fato que o hospital tornou-se uma via paralela de ensino cada vez mais

importante e legitimada, e tambm um local de trabalho insubstituvel para a elite

36

mdica. medida que a clnica foi se desenvolvendo, a atribuio de diplomas passa a

depender no apenas da presena efetiva dos estudantes nas aulas de anatomia das salas

das academias, mas tambm da prtica clnica nas enfermarias cabeceira do doente

internado, como descreve Foucault (1980). Seja em funo do ensino, seja em funo do

trabalho, o fato que o mdico passou a ligar-se em maior escala ao hospital. Esta

articulao recm iniciada entre mdicos e hospital vai mudar profundamente a vida dos

dois. No hospital, a sade do corpo vai substituir progressivamente a salvao da alma

como objetivo, enquanto para os mdicos, a clnica, mudando seu enfoque da doena

como essncia abstrata, passa a ver o indivduo no hospital como corpo doente a

demandar uma interveno que d conta de sua singularidade. Esses fatos prenunciam o

prximo perodo.

2.2. O SISTEMA PROFISSIONAL LIBERAL (meados do sc. XIX II Guerra Mundial).

Segundo Barreto (2005), em que pese a existncia de uma grande variedade de teorias

explicativas e doutrinas mdicas desde o final do Sculo XVII e incio do Sculo XVIII

- que vo desde o galenismo, com suas sangrias, emticos, purgantes, clisteres e

ventosas aplicados com o intuito de drenar lquidos e equilibrar os humores, segundo

Entralgo (1978), passando pela iatroqumica, iatromecnica e pelo vitalismo at o

neohipocratismo, que, alm do princpio de que o contrrio cura o contrrio, mantinha-

se fiel necessidade da abordagem dos ares, humores e lugares - parece ter

predominado como prtica e pensamento mdico at a primeira metade do Sculo XIX

uma associao entre a antomo-patologia e a higiene.

Os mdicos higienistas procuravam estabelecer uma correlao entre as doenas, o

ambiente e o padro scio-cultural. Mesmo as contribuies da fsica e da qumica - que

poca descreviam seus processos como putrefaes, fermentaes, etc. - foram

incorporadas teoria explicativa segundo a qual a matria orgnica em decomposio,

proveniente de excrementos, fossas fissuradas, pisos com folhas, tmulos no lacrados,

matadouros, fbricas, cadeias e, at mesmo de hospitais produzia emanaes ou gases

morbferos (tambm conhecidos como miasmas) que levados pelo ar atmosfrico

37

resultavam em doenas. Desta forma, para combater as doenas, os projetos mdicos do

perodo, contemplavam, inclusive no Brasil, medidas sanitrias que deveriam ser

tomadas pelos governantes, como a limpeza das cidades, a derrubada de prdios

insalubres, suprimento de gua potvel, destinao adequada de lixo e dejetos. Enfim,

preconizavam medidas que atuassem sobre a populao e no apenas sobre indivduos

doentes isoladamente.

Paralelamente a esse processo de higienizao das cidades, os hospitais tambm se

remodelam sob o impacto dessas ideias. Vo passar por um processo denominado por

Foucault (1978) de medicalizao dos hospitais. Considerando o risco que corriam,

no apenas as pessoas que se encontravam internadas no hospital, mas tambm o

restante dos cidados, pela possibilidade da disseminao das doenas para a

comunidade, uma srie de medidas passa a ser tomada. Em primeiro lugar, a presena

dos mdicos em maior intensidade para cuidar dos doentes. a cincia mdica

higienista que vai orientar as instalaes fsicas, a forma de organizao e distribuio

dos doentes no interior do hospital e os cuidados a serem dispensados.

Progressivamente, o hospital vai se tornar cada vez mais um local para doentes e no

para pobres. Desta forma, a associao entre o hospital, os doentes e os mdicos

consolida-se antes mesmo da mudana do paradigma miasmtico para o infeccioso. Os

mdicos atingem o auge de seu poder. Por um lado poder de diagnosticar e tratar os

doentes em sua singularidade. De outro, poder administrativo sobre coletividades, em

funo da prescrio de medidas higinicas, incidindo sobre ambientes e populaes.

No incio da segunda metade do Sculo XIX a teoria bacteriolgica de Pasteur e Koch

jogou por terra a teoria miasmtica como explicao para o adoecimento, operando uma

brutal mudana de paradigma. As doenas no mais tinham como explicaes os

vapores, humores, emanaes, mas sim bactrias animlculos, como queriam alguns

poca -, agentes infecciosos, contando com uma nova forma de abordagem. Uma nova

linguagem foi criada para descrever as doenas e as prticas mdicas. Contgio, perodo

de incubao, mecanismo de transmisso, hospedeiro, agente infeccioso, reservatrio,

etc., passaram a fazer parte do novo vocabulrio mdico. Para dar suporte prtica

mdica faz-se necessrio um novo apoio, um equipamento para visualizar a bactria, e,

progressivamente, aferir outros problemas, o laboratrio. O mdico j no depende

38

apenas de seu conhecimento clnico e de seu estetoscpio. O laboratrio passa a fazer

parte de sua vida e instalado predominantemente nos hospitais. J tendo se unido com

os mdicos, o hospital incorpora um novo parceiro que vem para ficar, o laboratrio.

Os mtodos teraputicos, em consonncia com a nova teoria proposta por Pasteur,

passam a contar com um novo arsenal. A abordagem dos miasmas d lugar preveno

e ao tratamento da infeco. Se o uso de mtodos asspticos e anti-spticos,

preconizados por Semmelweiss permitiu reduzir drasticamente as mortes por infeces,

o novo paradigma trouxe tambm suas inconvenincias. Na fase miasmtica, os

mdicos j haviam feito uma associao entre pobreza, insalubridade e doena. Na

teoria de Pasteur so as bactrias ou agentes infecciosos as causas destas doenas. no

microscpio, e no na forma de organizao da sociedade, que se procura suas causas.

O tratamento e a preveno de doenas para de ter relao com a reduo da pobreza,

passando a demandar outros mecanismos. O combate pobreza d lugar procura de

estratgias que abortem a transmisso, o contgio, a infeco, etc.. Muitos anos vo ser

necessrios at que se volte novamente a associar as doenas pobreza ou a formas de

organizao da sociedade.

A introduo da anestesia permitiu um enorme avano das tcnicas cirrgicas,

possibilitando a abordagem de um extenso leque de problemas. Ao abolir a dor, e j

contando com as melhorias propiciadas pela assepsia e anti-sepsia, um grande conjunto

de procedimentos cirrgicos passa a ser efetivado por mdicos para os mais diferentes

problemas. Aprofundam-se os conhecimentos da anatomia e da fisiologia in vivos.

Do final do Sculo XIX primeira metade Sculo XX o hospital vai progressivamente

se tornando uma organizao complexa. J havia incorporado o laboratrio de

bacteriologia, o bloco cirrgico, as tcnicas de assepsia e anti-sepsia e na passagem do

Sculo XIX para o Sculo XX incorporou os Raios X e a patologia clnica. Estes e

vrios outros setores, como as enfermarias, as cozinhas e lavanderias foram,

paralelamente aos avanos da cincia, se sofisticando. Todo um aparato industrial, um

robusto setor da economia, vai sendo criado para dar suporte a este hospital e suas

prticas. A manufatura e a produo artesanal de medicamentos e materiais do lugar a

um complexo processo de industrializao que vai estender-se a itens como

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equipamentos mdicos, equipamentos para laboratrios e um grande nmero de

insumos necessrios s prticas no interior do hospital. No ocioso lembrar que este

tambm o perodo do liberalismo econmico, o perodo do surgimento das grandes

organizaes e empresas privadas e pblicas nos mais diferentes setores da vida.

No interior do hospital a diviso do trabalho se d em funo dos mdicos organizados

como principal categoria profissional, qual todas as demais se encontram, de alguma

forma, subordinadas como sugere Graa (2000). o triunfo da clnica! A funo das

outras categorias profissionais, incluindo a gesto, que no ultrapassa os limites da

hotelaria e manuteno prover meios para que os mdicos realizem os seus trabalhos.

At a relao contratual dos mdicos com o hospital diferente dos demais

trabalhadores. Constitui-se como profissional liberal, enquanto os demais se tornaram

assalariados e, em algumas circunstncias, at mesmo voluntrios que exerciam suas

atividades em funo de alguma religiosidade. Mesmo com o crescimento da medicina

laboratorial e experimental, o ato mdico continua indivisvel, segundo afirma Steudler

(1974).

Graa (2000) relata que a enfermagem neste perodo muda progressivamente de status,

profissionalizando-se e incorporando tcnicas cientficas de cuidados. Porm, o faz sob

fortes influncias. Por um lado, do domnio mdico que detm a legitimidade cientfica

e social, alm do poder de prescrever; por outro, herdeira do paternalismo que as

ordens religiosas dedicavam aos sofredores do mundo. Uma profisso constituda por

mulheres em sua avassaladora maioria, fazia parte de seu perfil a subservincia,

abnegao, docilidade e carinho. Vrios autores procuraram fazer associaes entre a

atuao da enfermagem e a simbologia representada por Maria, me de Jesus Cristo. Em

sua infinita bondade, representavam a mo macia que afaga as feridas, como a Virgem

Maria afagava as chagas de Cristo, a voz que acalma os aflitos, o colo que acalenta, etc.,

tudo isto, como no podia deixar de ser, acompanhado da pregao moral destinada

salvao das almas, mas que tinham tambm o intuito de preservar e manter a disciplina

e os bons costumes no interior e fora do hospital. Essas virtudes, se por um lado

auxiliavam no acolhimento e apoio aos doentes, por outro, facilitou a obedincia cega

da corporao aos mdicos, acostumados a considerarem-se substitutos de Deus na terra

quando o tema eram os doentes, o que se estendeu a outros contextos. O resultado

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prtico destas tenses foi a adoo pela enfermagem de uma forma de cuidado que

alguns estudiosos tm chamado de tender loving care. Uma forma de relao com os

pacientes que, ao mesmo tempo em que oferta cuidados, infantiliza, gera dependncia e

no promove autonomia. Em ltima anlise, uma relao com os pacientes que

diferente da relao mdico-paciente, porm to assimtrica quanto esta.

Do lado de fora do hospital, o desenvolvimento da sade pblica se deu paralelamente

ao que Foucault (1979) chamou do surgimento do poder regulador, uma forma de

normalizao da sociedade. Se o poder disciplinar agia sobre os corpos individuais, o

poder regulador age sobre a populao. So normas, rotinas, recomendaes,

prescries de comportamento, etc. que no visam mais o indivduo isoladamente.

Visam a populao como espcie. O alvo so os fenmenos coletivos. A natalidade, a

morbidade, a mortalidade, a longevidade, etc. da populao ou de grupos de indivduos.

Para poder se exercer, este poder precisou criar servios que lhe dessem suporte.

Surgiram os servios de estatsticas sanitrias. Os fenmenos populacionais passam a

ser medidos e quantificados. Estudos apontam o que pode ser feito para intervir na

natalidade, na mortalidade, etc.

As tcnicas de preveno e controle de doenas transmissveis, de epidemias e

endemias, aliados s mudanas demogrficas e do perfil de doenas da populao vo,

progressivamente se constituindo como importantes estmulos externos a novas

mudanas na configurao dos hospitais.

No incio do Sculo XX, outros eventos que ocorreram do lado de fora do hospital

impactaram profundamente sua existncia e repercutem at nossos dias. Entre estes

eventos importante mencionar o desenvolvimento inicial dos atuais sistemas de sade

nos mais diferentes pases - com a conformao de sistemas pblicos e privados de

proteo social para os casos de doena, acidentes, incapacidades para o trabalho -; os

relatrios Flexner e Dawson; o incio do processo de especializao mdica; a

industrializao dos medicamentos e o impacto das tcnicas cientficas de gesto.

No incio do sculo XX dois importantes relatrios tiveram grandes influncias sobre os

rumos dos hospitais. De um lado do Atlntico o Relatrio Flexner e do outro o relatrio

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Dawson (PAGLIOSA E DA ROSA, 2008). O primeiro trazia o hospital para o centro da

cena no apenas em termos de formao mdica, mas tambm em relao ao sistema de

sade, incentivando o processo de especializao e de tecnologizao. O segundo o

insere em uma rede de servios, na qual tem papel definido e interage com outras

organizaes de sade, para conformar um sistema com nveis de ateno que funciona

de forma integrada e complementar, e que corresponde, mesmo em nossos dias, ao

sonho ainda irrealizado da maioria dos sanitaristas. Estas.

O incio do processo de especializao mdica, par e passo com os progressos

cientficos por um lado, e, por outro, a progressiva industrializao dos medicamentos,

o avano dos meios diagnsticos e o impacto - tardio para o hospital em relao s

outras empresas - das tcnicas cientficas de gesto (Taylor, Fayol, Ford) vo exercer

profundas influncias sobre o hospital e sua insero no sistema de sade, que se

repercutem at nossos dias. So sintomas de que este perodo j est grvido da nova

estrutura hospitalar que vai nascer no ps-guerra.

A ttulo de sntese desse perodo da histria dos hospitais poderamos dizer que aqui

duas prticas que funcionavam antes relativamente separadas vieram a se juntar. As

prticas de um diversificado rol de cuidadores de doentes, representados principalmente

pela enfermagem por um lado, e as prticas mdicas, por outro. O hospital, que

anteriormente se constituiu como lugar onde os pobres aguardavam a morte ao abrigo

da caridade pblica, passou a ser considerado lugar onde se procura a cura para as

doenas. Em seu interior, o trabalho para a salvao da alma deu lugar a uma prtica

clnica para o restabelecimento da sade do corpo. Uma das mais importantes

conseqncias que pela primeira vez em toda a histria do hospital, seus servios

deixaram de ser procurados apenas pelos pobres. Para ele acorriam tambm os ricos a

procurar tratamentos para os seus males. Passou a ser o centro mais importante de

pesquisa, ensino, aprendizagem e dispensao de cuidados mdicos. Esse perodo da

evoluo dos hospitais coincide tambm, segundo Steudler (1974) e Freidson (1984),

com o reconhecimento de direito e de fato da medicina como profisso. Isto equivale a

dizer que a medicina tornou-se uma prtica dotada de autonomia tcnica, de poder

jurisdicional e de auto-regulamentao. Viu-se tambm, que aqui, o Estado aprofunda

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seu grau de responsabilidade com a seguridade social dos cidados, embora o faa ainda

de maneira supletiva e no como direito de cidadania.

2.3. O SISTEMA TCNICO (a partir da II Guerra Mundial)

O boom cientfico e tecnolgico do ps-guerra - que se deu em vrios campos da

cincia, como a bioqumica, gentica, farmacologia, fisiologia, fsica nuclear, biologia

molecular, informtica, etc. - produziu muitas inovaes que incidiram sobre os

aspectos diagnsticos e teraputicos da prtica clnica. Esse processo de produo de

novas tecnologias pelos mais variados campos disciplinares, associado a outros de

natureza corporativa afetaram profundamente o formato do hospital, propiciando uma

multiplicao dos espaos, equipamentos e unidades onde estas novas tecnologias so

utilizadas, assim como a multiplicao concomitante das especialidades mdicas que

lhes do suporte. Esta diversidade de unidades, com funes bastante diferenciadas e a

produo em srie de procedimentos, passam a ser a marca do hospital contemporneo.

Embora a histria da especializao mdica possa fazer-nos retroceder ao antigo Egito,

com seus mdicos para problemas oculares, respiratrios, etc. e China confuciana com

sua organizao hierrquica de mdicos, entre outros relatos, o fato que a

especializao mdica em seu formato atual teve incio, em carter muito restrito, no

Sculo XVIII, como afirma Martire Junior (2004). A pesquisa cientfica e a necessidade

de aprofundar os conhecimentos fizeram com que alguns profissionais restringissem seu

campo de atuao e observao, se detendo mais especificamente em algum rgo ou

sistema. Assim, os estudos sobre a antomo-patologia e a clnica do corao, com a

conseqente dedicao de alguns mdicos a esta rea fez com que eles se tornassem os

primeiros cardiologistas que conhecemos. As descobertas efetuadas nos estudos fsicos

sobre a luz com sua conseqente aplicao soluo dos problemas visuais levaram

formao dos primeiros oftalmologistas. bem provvel que processos similares

tenham contribudo para que vrias especialidades se consolidassem. Porm, o grande

impacto no processo de especializao mdica se deu no sculo XX, sendo geralmente

correlacionado com o avano tecnolgico e cientfico.

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A ampliao do conhecimento, nos mais diversos campos do saber, tornou impossvel a

um nico mdico deter todo o conhecimento necessrio prtica clnica. Assim, o

processo de especializao teria, hipoteticamente, se tornado uma necessidade e, como

decorrncia desse processo, se consolidaram as diversas especialidades mdicas.

Embora esse tipo de abordagem que associa especializao e desenvolvimento

tecnolgico e cientfico seja a viso dominante entre os profissionais da sade, outras

vises do tema necessitam ser consideradas.

Se por um lado, o volume de conhecimentos sobre cada rgo ou sistemas cresceu tanto

que se tornou impossvel a um nico mdico deter todos os conhecimentos sobre um

grande nmero de sistemas e rgos, por outro lado, grande parte das funes exercidas

pelos especialistas se deu no pela introduo destas novas prticas decorrentes dos

avanos tecnolgicos e seu aparato, nem mesmo pela necessidade de um conhecimento

mais profundo a respeito de determinados temas, mas por exercerem, em seus

consultrios ou em unidades especializadas no interior do hospital, as mesmas funes

anteriormente levadas a cabo pelos mdicos generalis