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R E P O R T A G E M D10S Texto de Jonathan Franklin. Fotografias de Morten Anderson e Martin Schiappacasse. OS FANÁTICOS DO FUTEBOL ARGENTINO ENCONTRARAM DEUS. O SEU DIEGO. COMEMORANDO O DÉCIMO ANIVERSÁRIO, A IGREJA DE MARADONA CONTA JÁ COM 120 MIL MEMBROS ESPALHADOS POR SESSENTA PAÍSES. Os fãs gritam tão alto que mal consigo ouvir o padre, e estou na primeira fila de la iglesia maradoniana (a igreja de Maradona). A ceri- mónia começa e os fiéis rezam a sua versão do Pai Nosso: Diego nosso Que estais na Terra, Bendito seja o teu pé esquerdo, Seja feita a vossa magia, Recordem-se os vossos golos. (...) As luzes esbatem-se e seis homens vestidos com túnicas caminham até ao altar. Cada um tem o n.º 10 de Diego nas costas. Defronte, um acólito segura uma bola de futebol ensan- guentada. A bola parece torturada. Os seus he- xágonos de cabedal pingam sangue. Está coroada por rolos de arame farpado. Atrás do altar, um enorme retrato de deus: Diego Ar- mando Maradona. O homem atrás de mim veste uma t-shirt que diz: “O Papa é alemão, mas Deus é argen- tino.” O logótipo é um Diego Maradona, de- senhado em stencil, a correr a toda a velocidade atrás de uma bola. A sala está quente, transpirada e cheira a cerveja. Não é de admirar, pois toda a gente tem uma na mão. O público, quinhentas pessoas no total, acerca-se de um pequeno palco que presta tri- buto aos golos e aos espectaculares acidentes do adorado Diego. Vozes de homens ecoam: (...) Ele foi crucificado, morto e torturado, Afastado do relvado, Cortaram-lhe as pernas, Mas ele regressou e o seu feitiço renasceu. (...) Um homem começa a chorar. A parte de den- tro do seu braço direito exibe uma enorme ta- tuagem onde se lê: “Diego.” No interior da igreja, está uma estátua do n.º 10, de cabeça erguida e com a mão assente sobre o coração. Envergando a camisola da Selecção Nacional de futebol da Argentina e com um pé cerimo- niosamente colocado sobre uma bola da Puma, Maradona parece invencível. A Iglesia Maradona ainda não tem um edifício próprio. É um espectáculo itinerante de amor e afecto, e inclui um santuário a Diego. À se- melhança de uma banda de rock em digressão, os ícones e as estátuas viajam pela Argentina, levando imagens e vídeos do seu adorado Diego a todos os cantos da nação. “Esta procissão é importante. Demonstra o nosso amor incondicional por Diego”, afir- mou Alejandro Veron, um dos fundadores da igreja, que ajuda a gerir o website oficial (www.iglesiamaradoniana.com.ar). “A nossa religião é o futebol e, como em todas as reli- giões, precisa de um deus. Nunca esquecere- mos os milagres que ele obrou no relvado e o espírito que despertou em nós, os fanáticos.” (...) Perdoai aos jornalistas Como nós perdoamos à máfia napolitana Não nos deixeis manchar a bola Livrai-nos do Havelange (FIFA) Ámen.

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R E P O R T A G E M

D10STexto de Jonathan Franklin. Fotografias de Morten Anderson e Martin Schiappacasse.

OS FANÁTICOS DO FUTEBOL ARGENTINOENCONTRARAM DEUS. O SEU DIEGO.COMEMORANDO O DÉCIMO ANIVERSÁRIO, AIGREJA DE MARADONA CONTA JÁ COM 120 MILMEMBROS ESPALHADOS POR SESSENTA PAÍSES.

Os fãs gritam tão alto que mal consigo ouviro padre, e estou na primeira fila de la iglesiamaradoniana (a igreja de Maradona). A ceri-mónia começa e os fiéis rezam a sua versão doPai Nosso:Diego nossoQue estais na Terra,Bendito seja o teu pé esquerdo,Seja feita a vossa magia,Recordem-se os vossos golos.(...)As luzes esbatem-se e seis homens vestidoscom túnicas caminham até ao altar. Cada umtem o n.º 10 de Diego nas costas. Defronte,um acólito segura uma bola de futebol ensan-guentada. A bola parece torturada. Os seus he-xágonos de cabedal pingam sangue. Estácoroada por rolos de arame farpado. Atrás doaltar, um enorme retrato de deus: Diego Ar-mando Maradona.O homem atrás de mim veste uma t-shirt quediz: “O Papa é alemão, mas Deus é argen-tino.” O logótipo é um Diego Maradona, de-senhado em stencil, a correr a toda avelocidade atrás de uma bola. A sala estáquente, transpirada e cheira a cerveja. Não éde admirar, pois toda a gente tem uma namão. O público, quinhentas pessoas no total,acerca-se de um pequeno palco que presta tri-buto aos golos e aos espectaculares acidentesdo adorado Diego. Vozes de homens ecoam:(...)Ele foi crucificado, morto e torturado,Afastado do relvado,

Cortaram-lhe as pernas,Mas ele regressou e o seu feitiço renasceu.(...)Um homem começa a chorar. A parte de den-tro do seu braço direito exibe uma enorme ta-tuagem onde se lê: “Diego.” No interior daigreja, está uma estátua do n.º 10, de cabeçaerguida e com a mão assente sobre o coração.Envergando a camisola da Selecção Nacionalde futebol da Argentina e com um pé cerimo-niosamente colocado sobre uma bola daPuma, Maradona parece invencível.A Iglesia Maradona ainda não tem um edifíciopróprio. É um espectáculo itinerante de amore afecto, e inclui um santuário a Diego. À se-melhança de uma banda de rock em digressão,os ícones e as estátuas viajam pela Argentina,levando imagens e vídeos do seu adoradoDiego a todos os cantos da nação.“Esta procissão é importante. Demonstra onosso amor incondicional por Diego”, afir-mou Alejandro Veron, um dos fundadores daigreja, que ajuda a gerir o website oficial(www.iglesiamaradoniana.com.ar). “A nossareligião é o futebol e, como em todas as reli-giões, precisa de um deus. Nunca esquecere-mos os milagres que ele obrou no relvado e oespírito que despertou em nós, os fanáticos.”(...)Perdoai aos jornalistasComo nós perdoamos à máfia napolitanaNão nos deixeis manchar a bolaLivrai-nos do Havelange (FIFA)Ámen.

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Quando os cânticos diminuem de volume, o“sacerdote” faz-me sinal. “E, agora, o teu bap-tismo.”As cinco palavras por que ansiava desde quecheguei. Caminho até ao palco, dispo a cami-sola. Há uma pausa. A multidão grita quandoeu visto a camisola com o n.º 10 de Maradonae recordo os meus ensaios. Basta uma vez.“Faz tudo como deve ser”, digo-me, a mimmesmo. A cerimónia do baptismo visa recriaro momento sagrado em que Maradona mar-cou o seu famoso golo “Mano de Dios” (mãode Deus), batendo na bola e atirando-a para abaliza inglesa com o punho. Os árbitros, nãotendo um bom ângulo de visão, acharam queMaradona havia usado a cabeça, mas os replaymostram claramente Maradona a empurrar abola, tirando-a do alcance do guarda-redes in-glês Peter Shilton, primeiro, surpreendido e,depois, indignado. Numa conferência de Im-prensa após o jogo, Maradona disse que a suamão nunca tocara na bola. “A mão de Deusenviou-a para dentro da baliza”, afirmou. Imi-tar a “Mão de Deus” é, agora, um ritual fun-damental na Igreja de Maradona.Primeiro, aproximo-me de um poster, em ta-manho real, do guarda-redes Shilton a saltarsobre Maradona. Nesta versão, porém, Mara-dona e a bola foram editados com o Photoshope encontram-se fora do enquadramento. Éaqui que a cerimónia do baptismo começa.Preparo-me para saltar. Quando a bola é ati-rada, eu salto, tentando proteger a minha ca-beça com a mão, e “pum!”, dou um soco nabola, impulsionando-a para a frente. Fun-ciona! A minha imitação é digna de um certi-ficado e sou registado como membro oficialda “Cerimónia de Maradona”.O dia 29 de Outubro é especial para os fiéis daIgreja de Maradona. É a sua “Consoada”. Odia antes de deus nascer. Para o comemorar,quinhentos dos mais ardentes devotos reú-nem-se em Buenos Aires. Estão 27o C e fazsol, mas eles estão todos juntos, perto de umaárvore de Natal decorada com ornamentosazuis e prateados, em homenagem às cores na-cionais da Argentina. Os ramos estão cobertospela fotografia de um Maradona sorridente.Examinando-as de perto, vemos que Mara-dona segura o seu Santo Sudário, a camisolada Selecção Nacional argentina.Seguidores leais acorreram aqui, vindos dosE.U.A., do Brasil, da Dinamarca e de Itália,para saudar o santuário e comemorar o dé-cimo aniversário da igreja. Tiram algumas fo-tografias. Outros limitam-se a fazer brindes.Uma pilha de oferendas e de lembranças acu-mula-se – fotografias antigas, cartões despor-tivos e até retratos a óleo de Diego com oscaracóis penteados e um halo amarelo. A “Bí-blia” de Maradona está pousada nos degrausda igreja – um exemplar usado de Yo Soy ElDiego (sou o Diego), a biografia best-seller de

Maradona. A bíblia tem as páginas a cair, masé exibida com reverência no altar.Num dos lados da igreja, decorre o concursode tatuagens de Diego. Quem tem o retratomais fidedigno do deus para sempre gravadosobre a pele? Os fiéis despem as roupas paramostrar as tatuagens. Um outro concurso –quem sabe mais sobre diego? – tem lugar nopalco. A dificuldade das perguntas aumentaaté dois finalistas discutirem a cor do pri-meiro carro do deus e a data de nascimento doseu segundo filho.À semelhança dos que prestam culto em Sto-nehenge, os membros da Igreja de Maradonavivem com a sua própria noção de tempo e dedatas sagradas. O ano começa no dia de nasci-mento de Maradona, 30 de Outubro. Os ma-radonistas não vivem em 2009; para eles, oano é 48 d.D. (depois de Diego).A igreja possui também os seus próprios “DezMandamentos”, incluindo o n.º 5, “divulgueos milagres de Diego por todo o Universo”, eo n.º 8, “apregoe e divulgue os princípios daIgreja de Maradona”. A Internet facilita a“evangelização”. As obras de Diego são eter-namente espalhadas pelo ciberespaço atravésde vídeos do YouTube e de arquivos como omagistral www.archivo10.com.Durante a cerimónia, minúsculas estátuas deDiego adornam as paredes, enquanto altifa-lantes repetem o relato de rádio, jogada a jo-gada, dos maiores milagres de Diego, os seusgolos. Primeiro, a “Mão de Deus” e,depois, o segundo golo contra In-glaterra, conhecido como o“Golo do Século”. Os doisgolos contra Inglaterra sãomostrados incessante-mente, como provadas suas capaci-dades divinas.A comemora-ção dos dezanos celebradaem 2008 foip a r t i c u l a r -mente doce. Nofinal de Outubrode 2008, as autori-dades argentinas para o futebol espantaram o mun-do ao anunciarem o novotreinador da sua selecção na-cional: Diego Maradona. Superes-trela. Ex-viciado em cocaína. E agoratreinador da selecção nacional argentina. Oenérgico atacante do tamanho de uma boca-de-incêndio recebeu uma nova missão, sertreinador nacional da Argentina. O seu pri-meiro desafio? Injectar adrenalina num plan-tel nacional com problemas. Após umadécada de decadência, o imparável Diego Ar-mando Maradona está de volta, ressuscitado

do Inferno dos talkshows televisivos de do-mingo à tarde, presente na chamada de se-gunda-feira, num campo de futebol, lutandopela sua adorada equipa.Conseguirá Maradona melhorar a SelecçãoNacional? Trará uma nova diplomacia à con-flituosa equipa? A maioria das pessoas, até osseus críticos, pensa que sim. Mas conseguiráo inexperiente treinador de 48 anos conduzira sua adorada equipa a vitórias no relvado?Conseguirá um ex-jogador, apreciador de pros-titutas e inalador de cocaína, instaurar a dis-ciplina num grupo de jovens milionários com22 anos que adora festas? São tarefas que, porsi só, exigem milagres. Um inquérito reali-zado para o jornal Clarin, em Buenos Aires,indica que 74% do público argentino nãoapoia Maradona como seleccionador nacional.Os membros da sua igreja vêem esta dúvidacomo um obstáculo de rotina montado pelosinfiéis. Os fanáticos afirmam que o seu deusfoi chamado para uma missão específica: con-duzi-los a uma data sagrada, a final do Cam-peonato Mundial, em 2010, na África do Sul.«Estivemos ao lado de Maradona nos seusmomentos mais sombrios. Agora que estamosaqui com ele, como poderíamos não comemo-rar?», escreve Jose Caldeira, autor de La Igle-sia Maradoniana, um livro com 260 páginasque descreve, ao pormenor, os dez primeirosanos da igreja. “Os momentos mais sombriosde Maradona” é uma expressão de código para

o seu longo romance com a cocaína.Durante quase toda a carreira, Ma-

radona inalou alegremente, tantonos momentos de fama, como

nos de desgraça internacional. “Ele admitiu todos os

seus erros. Admitiuser viciado em co-

caína. O organismode uma pessoanormal não supor-taria toda a cocaínaque ele consumiu.Um mero mortal

teria morrido”, ex-plica Mariano Israe-

lit, produtor executivoda Fox Sports. “Diego per-

tence a outra dimensão. Ele dize faz muitas coisas estúpidas.

Ele comete um erro e é perdoadopor ser um mito, uma lenda viva.”

Num famoso momento estilo Britney,Maradona disparou uma carabina contra jor-nalistas que se encontravam apinhados àporta de sua casa. Depois foi fotografado nu, ainalar cocaína, rodeado por mulheres nuas. Acena decorreu em Cuba, numa clínica onde,supostamente, Diego se reabilitava. MasDiego Maradona emergiu do fundo do poçonegro da cocaína. Reconquistou, a pulso, a sua

O ÍCONEDe doces argentinos a licores italianos e a refrigerantes naChina, ou até mesmo a selos na Tanzània, o nome de DiegoArmando Maradona tem um apelo global e...vende. Àsemelhança de outro argentino, Che Guevara, tambémMaradona se tornou num num ícone rebelde, admirado,como o provam estas tatuagens com o nome de Diego, afigura de Diego, o génio de Diego ou o autógrafo de Diego.

“DIEGO FOI-NOSENVIADO LÁ DECIMA. DEUS NÃO

FALA COMMARADONA, É ELEQUE FALA COM

DEUS.”(JOSE GABINO)

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respeitabilidade. E é esse espírito lutador, essapaixão pela vitória que fazem com que os fiéisda Igreja de Maradona sejam tão leais.“Tenho a mesma idade que Maradona”,afirma Jose Gabino, de 51 anos, um homemdesgastado, que se encontra ao fundo do localda cerimónia. “Sonhei em ser como ele. Eraesse o meu sonho. Para o bem ou para o mal,ele diz as coisas tal como são.” Neste mo-mento da entrevista, os olhos de Gabino ilu-minam-se e ele proclama: “Diego foi-nosenviado lá de cima. Deus não fala com Mara-dona, é ele que fala com Deus.” (E não, caroleitor, ele não estava bêbedo.) “Preocupa-o aideia de este movimento morrer, de durar ape-nas uma geração?”, pergunto a Gabino. A res-posta encontra-se sentada a meu lado.“Chamei Diego ao meu filho por admiração”,afirma Gabino, com orgulho, apontando parao filho de 17 anos. “Um fã morre, cem nas-cem. Isto é amor.”Desde a sua fundação, há dez anos, em Rosario,na Argentina, a Igreja de Maradona evoluiudesde um pequeno grupo de amigos até umapresença mundial. Há dias em que o número decandidatos excede a capacidade da conta doHotmail. “Tivemos de levar um CD para o ci-bercafé e gravar cópias de todos os e-mail”, lem-bra Caldeira, o historiador da igreja. “Nenhumde nós tinha computador, mas, se não fizésse-mos isso [descarregar constantemente os e-mail], as caixas de entrada teriam bloqueado.”Dias houve em que mais de quinhentas pessoasrequereram a integração na igreja. Em finais de2008, a lista de membros da igreja continua aaumentar. “Acho que temos cerca de 140 milinscritos, mas, depois de eliminarmos os dupli-cados, o valor deve aproximar-se mais dos 100mil”, afirma Veron, fundador da igreja.A igreja também documenta o reconheci-mento do seu deus. Na Argentina, pensa-seexistirem cerca de seiscentos produtos regis-tados sob a égide do sortudo n.º 10. Alémdisso, países desde o México à Tanzânia emi-tiram selos com a imagem de Maradona.À semelhança de Che Guevara, o outro mega-herói rebelde argentino, Diego Maradona re-presenta uma noção universal da existênciaesforçada do homem pobre. Na sua época deglória, junto do argentino Boca Juniors e doitaliano Nápoles, o espírito de Maradona fun-diu-se com os de fãs empedernidos que corres-pondem à alma apaixonada destes clubes.Enquanto jogou no Nápoles, Maradona foiacusado de ser um playboy da máfia. Elepouco fez para negar o seu fascínio por esseinvejável estilo de vida.Futebolistas profissionais acorrem à igreja deMaradona. Ronaldinho implorou por uma t-shirt da Igreja de Maradona e jogadores profis-sionais como Tevez, do Manchester United, eMessi, do Barcelona, têm cartões de membro.Enquanto que os jogadores profissionais admi-

ram Maradona, os fiéis religiosos são mais de-votos. Assistem, juntos, a filmes de vídeo pro-tagonizados por Maradona, organizam festasem homenagem a Maradona e seguem cadaum dos “Dez Mandamentos”, que variamdesde o simples n.º 2, “ame o futebol acimade todas as coisas”, ao n.º 9, condicionante dasrelações humanas, “chame Diego ao seu pri-meiro filho”.“O meu filho tem um ano e meio, e aprendeua responder ‘Diego… Diego...’ quando lhe digo‘olé! olé!” Ele sabe dizer três palavras: ‘mãe’,‘pai’ e ‘Diego’”, afirma Lionel Diaz, um dosprimeiros membros da igreja. Quando chega a meia-noite, o calendárioatinge o dia 30 de Outubro e dá-se início auma festa barulhenta e espalhafatosa. Empre-gados fazem circular tabuleiros com taças dechampanhe e brinda-se. Depois, o sistema dealtifalantes enche-se de som e um tele-fone toca. A multidão aquieta-se. Édeus ao telefone. Faz-se ouvir emalta voz, através do altifalante:“Obrigado por me darem tantoafecto e por se reuniremnum dia como o domeu aniversário”,diz Maradona. Amultidão estoura.Correm lágrimas.Corre cerveja. Começam a can-tar: “Campeõesoutra vez… Comoem 86”, referindo-se à última vitória daArgentina no Campeo-nato Mundial. “O que vocêscantam é o sonho que acalentodentro de mim”, afirma Mara-dona. “Deus há-de estar con-nosco.”É impossível disso-ciar Diego da Ar-gentina. Seria como suge-rir que Chur-chill era francêsou que GeorgeBush é um típicorepresentante daSuécia. Há arquéti-pos que representaminegavelmente o seu paíse Diego Maradona é, incondi-cional e insuportavelmente, ar-gentino. Quando era jogador daselecção nacional, dormia todas asnoites, religiosamente, com a camisolada selecção. Mesmo com o tornozelo inchado,do tamanho de uma toranja, no CampeonatoMundial de 1990, ele jogou a 100%, fazendouso do seu coração e da sua paixão. Maradona

era adorado por não jogar pela fama ou pelafortuna mas pelo seu país.Embora actualmente viva no centro da suaprópria religião, Maradona nunca foi aben-çoado. Nascido nas lixeiras de Villa Fiorito,um bairro-de-lata argentino, o seu churrascode domingo tanto podia ser de gato como devaca. Longe do glamour de Buenos Aires, Ma-radona estava destinado a não chegar a ladonenhum. Mas o rapaz baixinho, com cabeleiraafro, ascendeu e, com onze anos, era uma es-trela numa equipa denominada Cebollitas (ce-bolinhas). Aos quinze anos, ingressou naselecção nacional de juniores, sendo já umprotegido, o “Próximo Pele”. Ao contrário doque sucede com tantos talentos precoces, esterapaz pobre das barracas foi bem sucedido.Enquanto estrela do Boca Juniors e depois doNápoles, Maradona associou-se às noções de

justiça popular e de espírito lutador dohomem trabalhador. Os seus fãs

sempre foram loucamente leais.Quando Maradona foi vendido

ao Barcelona, os adeptos doBoca invadiram o aero-

porto, ultrapassando asegurança e dei-

tando-se na pista.Tentaram impe-dir o avião de le-vantar voo.“O argentino éa p a i x o n a d o ,

temperamen-tal. Mostramos as

nossas emoções eaquilo que queremos.

Maradona demonstra-onum campo de futebol. Ele é

aquele que nunca desiste eque está sempre a lutar”,

afirmou Amez, funda-dor da igreja. “Para

nós [olha em re-dor da sala], cada um tem um mo-mento especialde Maradona. Talvez seja umamemória de um

irmão que já nãoestá vivo ou um

amigo que já não seencontra entre nós”,

prossegue Amez, enquantoum empregado avança pela

multidão com um tabuleirocom taças de champanhe. “Mara-

dona faz-nos lembrar esses momen-tos. É impossível separá-lo destas emoções.Maradona faz-nos sentir tão fortes. É porisso que gostamos dele como se fosse umdeus.” l

A CERIMÓNIA DOBAPTISMO PELA QUALPASSAM TODOS OSNOVOS MEMBROS DA IGREJA, RECRIA

O MOMENTO SAGRADO EM QUE

MARADONA MARCOU O SEU FAMOSOGOLO “MANO DE DIOS”,

BATENDO NA BOLA E ATIRANDO-A PARA A BALIZA INGLESA COM O PUNHO.

IN GOD WE TRUSTNa igreja maradoniana, não faltam rituais, como beijara copa, do campeonato de Mundo de 1986. Não faltamtambém os mandatórios dez mandamentos, e nemsequer a Árvore de Natal (que se comemora a 29/10,data do nascimento de deus), onde, as bolas, sejuntam os cromos de Armando com a camisola alzul-celeste. A nota, claro, é falsa.

OS DEZ MANDAMENTOS1. A bola nunca fica suja.2. Ame o futebol acima de todasas coisas.3. Declare amor incondicionalpor Diego e pela beleza dofutebol.4. Defenda a camisola da equipada Argentina.5. Divulgue os milagres de Diegopor todo o Universo.6. Honre os templos onde elejogou e as sua sagradas camisolas.

7. Não proclame Diego comomembro de qualquerequipa individual.8. Apregoe e divulgue os princípios de da Igreja de Maradona.9. Use Diego como segundonome e chame Diegoao seu primeiro filho.10.Não seja cara-de-pau e nãodeixe que lhe escape nada.