os efeitos de sentidos atribuÍdos pelos sujeitos … · resumo verificando o que mudou no ensino...
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OS EFEITOS DE SENTIDOS ATRIBUÍDOS PELOS SUJEITOS AO DISCURSO SOBRE A VIOLÊNCIA NO COTIDIANO1
BASSÉGGIO, Sandra Mara2
DIAS, Luciana Ferreira3
RESUMO Verificando o que mudou no ensino da língua e da leitura, apresentar-se-á uma proposta de leitura em língua materna, inserindo o estudo na Análise de Discurso que busca o sujeito descartado e o encontra na psicanálise como um sujeito desejante, sujeito do inconsciente, materialmente constituído pela linguagem e interpelado pela ideologia. À luz da Análise do Discurso, nos interessa compreender como se dá o processo de construção de sentidos quando leitores atribuem significados à violência. Perguntou-se: como os alunos atribuem sentidos aos textos, tendo-se em vista duas posições-sujeito representadas empiricamente por Luciano Huck e Ferréz. O objetivo do estudo é o de apontar os efeitos de sentidos produzidos nos leitores a respeito da violência a partir de um estudo de campo realizado com alunos das 3ª séries, diurno e noturno, do Colégio Estadual Carlos Gomes, localizado no município de Pato Branco, Paraná. Os procedimentos metodológicos incluíram a aplicação de questionário composto de perguntas abertas e fechadas aos alunos no mês de março de 2008. Os resultados confirmam que a violência faz parte de um discurso conhecido no cotidiano dos alunos, vivenciado no ambiente familiar, refletido por meio de atos de violência cometidos por familiares, bem como no ambiente da escola cometido por colegas e por eles mesmos. Também, desenvolvemos uma proposta de leitura de perspectiva discursiva, a partir do trabalho de dois artigos polêmicos produzidos na mídia que comentam a respeito do assalto contra o apresentador Luciano Huck. Concluiu-se que há uma correspondência íntima dos alunos com o aporte que possuem como sujeitos da e na escola, de modo que o aluno lê a partir de uma posição, de uma história de leitura, interpelado por uma ideologia que o constitui. PALAVRAS-CHAVES: Língua Portuguesa. Leitura. Análise do discurso. Violência
THE EFFECTS OF MEANING ATTRIBUTED TO DISCOURSE ABOUT DAILY VIOLENCE BY THE SUBJECTS
ABSTRACT Examining what changed in the language and reading teaching, one proposition about reading in mother language will be presented, insering it in the Discourse Analysis that seeks the discarded subject and finds him in the psychoanalysis as subject that wants; dependented of subconsciousness, materially constituted by language and persuading by ideology. Under Discourse Analysis, we are interested to understand how occurs the process of meaning creation when the readers attribute meanings to the violence. Asking: how the students impute meaning to the texts, considering two subject positions empirically represented by Luciano Huck and Ferréz. The purpose of this study is to point the effects of meaning produced on the readers about violence since a campus study realized with third-grade students, high school, diurnal and nocturnal shifts,
1Artigo apresentado ao Programa de Desenvolvimento Educacional – PDE da Secretaria de Estado da Educação – SEED, Superintendência da Educação – SUED. Curitiba, Paraná, set 2008.2 Formada em Letras pela FUNESP (Fundação de Ensino Superior de Pato Branco); professora do Colégio Estadual Carlos Gomes, Ensino Fundamental e Médio3 Profª Orientadora: Ms. Luciana Ferreira Dias
at Carlos Gomes School, located in Pato Branco – Paraná State. The methodogic procedures included the application of one questionary constituted of opened and closed questions to the students in March, 2008. The results confirm that the violence intregates a known speech in the current lives of students, living in the familiar and school environment, refleted through violente attitudes commited by family members, also by classmates or themselves. We also developed a reading proposition of discourse perspective, through two polemic articles produced by midia about an assault against Luciano Huck, the television performer. As a result, it was discovered that there is an identification of the students with the background that they have as subjects of the school and inside it, in this matter the student reads under a position and reading history, interpelated by an ideology that has created him. KEY WORDS: Portuguese Language. Reading. Discourse Analysis. Violence.
1 INTRODUÇÃO
É muito comum ouvirmos que o ensino de Língua Portuguesa vai
mal. Não só os professores parecem insatisfeitos, mas também os alunos
e os pais que freqüentemente comentam que “na época deles as pessoas
falavam, escreviam e liam melhor”.
A questão posta, desta forma, leva-nos a perguntar o quê,
efetivamente, mudou no ensino da língua portuguesa e, de maneira
específica, no ensino de leitura. E para que uma resposta seja dada
continuamos a questionar professores, alunos e pais sobre: o que
significava falar, escrever e ler melhor num contexto em que a escola não
era para todos e que a leitura era entendida como um processo
instantâneo de decodificação das letras em sons, e a relação deste com o
significado? Vejamos o que Menegassi (1995, p.87) nos diz: "A
decodificação resulta do reconhecimento dos símbolos escritos e da sua
ligação com um significado [...], porém o simples reconhecimento de
letras e sua ligação com os significados não implica em leitura."
Ainda hoje, nas escolas, segundo Coracini (2002, p.18) as posturas
teóricas que dominam são aquelas que vêem o texto com um objeto uno,
completo, que tem um fim em si mesmo. Ainda segundo Coracini (2002,
p. 19) raramente se observa a concepção de leitura enquanto processo
interativo (leitor-texto, leitor-autor) e mais raramente ainda a concepção
2
discursiva. Nesse artigo, em termos de filiação teórica, nos apoiamos na
análise do discurso de tradição francesa e partimos de uma concepção de
texto não como mero produto lingüístico, mas como instância de um
processo discursivo do qual fazem parte memórias discursivas e
condições de produção.
Vale dizer que a Análise de Discurso é uma prática de uma área da
lingüística e da comunicação especializada em analisar construções
ideológicas presentes num texto. É muito utilizada, por exemplo, para
analisar textos da mídia e as ideologias que trazem em si. A Análise do
Discurso é proposta a partir da filosofia materialista que põe em questão
a prática das ciências humanas e a divisão do trabalho intelectual, de
forma reflexiva.
A importância da Análise do Discurso desperta o desejo de saber
mais, de conhecer o processo ideológico na construção do texto. Neste
artigo, portanto, define-se como assunto a Língua Portuguesa e como
tema da pesquisa a Análise do Discurso, a partir de uma concepção de
leitura na qual o discurso é entendido como efeito de sentidos entre
locutores.
Além disto, o artigo traz um recorte do Plano de Trabalho por mim
elaborado sobre a Língua Portuguesa sob o título Texto: objeto simbólico
que produz sentidos para e por sujeitos. Neste Plano de Trabalho, a
metodologia consistiu da seleção de textos que culminariam numa
proposta de leitura embasada pela análise do discurso, considerando o
necessário levantamento dos subsídios teóricos necessários à
compreensão das análises relacionando a língua com a memória e o
objetivo foi buscar estabelecer como a memória ganha corpo na
formulação jornalística mediante mobilização de quais memórias sócio-
culturais estariam em jogo nos textos analisados.
O recorte apresentado faz simetria com outro: o Projeto Folhas, sob
o título Como a violência está sendo vista pelos brasileiros?, com ênfase
na interdisciplinaridade da Língua Portuguesa com a Sociologia e a
Geografia. No Projeto Folhas a metodologia de investigação analisou três
artigos jornalísticos, em específico: a. Pensamentos quase Póstumos; b.
3
Pensamentos de um “correria”; c. Sobre Manés e Mauricinhos, tendo
também como base, conceitos sociológicos e geográficos.
Analisando esses dois trabalhos, foi possível perceber a presença de
uma problemática com referência aos sentidos produzidos pelos artigos
neste trabalho. Considerando a língua e a história que ganham corpo nos
artigos analisados, a elaboração do Projeto Folhas levou em conta essa
problemática da violência de modo a permitir a alunos das 3ª séries do
Ensino Médio, um espaço de reflexão sobre a mesma. Isto permitiu o
seguinte enunciado: como os alunos atribuem sentidos aos textos quando
o referente do discurso é a violência?
Na busca da resposta ao questionamento foi realizado um estudo de
campo com alunos das 3ª séries (diurno e noturno) do Colégio Estadual
Carlos Gomes localizado no município de Pato Branco, Paraná, com o
objetivo de apontar os efeitos de sentidos traduzidos nos leitores a
respeito da violência, ou ainda, os sentidos que alunos atribuem a esta
problemática. A metodologia consistiu na aplicação de questionário
composto de perguntas abertas e fechadas aos alunos. Os dados
coletados sofreram ordenação, processamento e são analisados neste
artigo.
Pretendeu-se, portanto, associar um viés que se produz no processo
de leitura, a partir do qual o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo
tempo, tendo em vista o papel do discurso e a concretude da violência.
2 ABORDAGEM À ANÁLISE DO DISCURSO
O objeto da Análise de Discursos (AD) é o “discurso”. Dito assim
parece uma colocação repetitiva, redundante e óbvia. Mas é preciso antes
de tudo definir que tipo de discurso é esse. A noção elementar que se tem
de discurso como sinônimo de mensagem, informação, pronunciação de
meras palavras combinadas em frases, não corresponde ao interesse
básico da AD. Podendo estar relacionada tanto à História quanto à
Sociologia, a AD vai buscar, na verdade, o sentido ou sentidos produzidos
4
pelo sujeito ao elaborar um discurso, as suas intenções e a forma como é
recebido por quem ouve ou lê suas palavras.
Por isso Pêcheux (1969, p.82) define discurso como “[...] efeito de
sentidos entre interlocutores”, é o lugar de contato entre a língua e a
ideologia, sendo que a materialidade da ideologia é o discurso e a
materialidade do discurso é a língua.
De acordo com as leituras possíveis, discurso é a prática social de
produção de textos. Isto significa que todo discurso é uma construção
social, não individual, e que só pode ser analisado, considerando-se seu
contexto histórico-social, suas condições de produção; significa ainda que
o discurso reflete uma visão de mundo determinada, necessariamente,
vinculada à do(s) seu(s) autor(es) e à sociedade em que vive(m).
Na sua origem, o termo significa curso, percurso, correr por,
movimento, ou nas palavras de Orlandi (2005, p.15) “O discurso é assim
palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso
observa-se o homem falando.” Isso indica que a posição frente aos
conceitos fixos, imutáveis, deve ser diferenciada. A língua não é algo
pronto, à disposição dos falantes. Portanto, o discurso não pode ser
encarado como mera mensagem, um simples esquema onde há emissor,
receptor, código, referente e mensagem.
O discurso é muito mais; não é individual, ou seja, não é um fim em
si mesmo, mas tem sua gênese sempre numa atitude responsiva a outros
textos (BAKHTIN, 1996).
Quanto à ideologia, segundo Ferreira (2006), ela não desapareceu do
nosso mapa epistemológico, evidentemente, pois isso é da ordem do
impossível, mas a noção vem sendo, a partir de Althusser, e por
influências bastante produtivas da interface com outras áreas,
ressignificada.
Pêcheux (1969) mesmo já sinalizava nessa direção, ao se interessar
pelas brechas que se abrem nas falhas do ritual de interpelação e
permitem alcançar o sujeito e a língua naquilo que lhes é mais próprio: o
sonho, o ato falho, o lapso, o witz..., formações essas que deixam
irromper equivocidades de várias ordens (FERREIRA, 2006).
5
2.1 TEORIAS SOBRE A LEITURA
Ao longo do século XX, a leitura passou por muitas transformações,
portanto, torna-se necessário apresentar um panorama das acepções
atribuídas a ela dentro dos modelos estruturalista, psicolingüístico, do
interacionismo e da Análise de Discursos.
A leitura, sempre carrega consigo uma postura teórica, ainda que
não explicitada, já que se parte dos pressupostos de que teoria e prática
se entrelaçam e se interpenetram – uma constitui a outra sem que se
tornem um todo homogêneo – e de que é no espaço que as separa e ao
mesmo tempo as une, espaço de tensão, que ocorre o processo de leitura,
como ocorre, aliás, toda e qualquer atividade humana, consciente ou não
(CORACINI, 1995).
Na modernidade, a leitura pode ser vista sob dois enfoques.
Primeiramente enquanto decodificação: descoberta de sentidos e, depois,
enquanto interação: construção de sentidos. Enquanto decodificação tem-
se o estruturalismo que vê a língua e o texto como uma estrutura, um
todo passível de ser desmembrado em unidades menores. Considerar o
signo como parte de uma estrutura maior e mais complete significa
considerá-lo fora de toda subjetividade como puro instrumento de
comunicação, em que o sujeito – e, portanto, a subjetividade – não teria
lugar. (CORACINI, 1995).
Enquanto interação, leva-se em conta a existência do sujeito-autor
e do sujeito-leitor, ambos presentes a ativos, conforme diferentes escritos
sobre esse processo: a. a leitura como um processo interativo-
compensatório (STANOVITCH, 1980); b. a leitura como um processo de
interação entre Leitor e Texto (MENEGASSI, 2005); c. a leitura como um
processo de interação entre Leitor e Autor (KLEIMAN, 1989); d. a leitura
como um processo de interação social (LEFFA, 2001; MOITA LOPES,
1996).
Em 1996, Moita Lopes sugeriu que a abordagem interacionista
fosse complementada com intravisões da Análise do Discurso, isto é, que
fosse verificado o processo de negociação do significado entre os
6
partícipes de uma interação comunicativa – leitor e autor – posicionados
social, política, cultural e historicamente, pois ler é envolver-se em uma
interação com alguém em momento sócio-histórico específico.
Já para Coracini (1995), a perspectiva interacionista consiste num
prolongamento da abordagem ascendente, na medida em que ela vê
ainda o texto como objeto autoritário, pois é em sua leitura literal que o
leitor encontra as marcas para inferir significados não literais:
Se é o texto que predetermina, ou seja, autoriza um certo número de leituras (através das chamadas inferências autorizadas) e impede ou impossibilita outros, então, o texto é ainda autoridade, portador de significados por ele limitados, ou melhor, autorizados: o texto teria, assim, primazia sobre o leitor, que precisa, com competência, apreender o (s) sentido (s) nele inscrito (s). (CORACINI, 1995, p.15).
E na perspectiva da pós-modernidade, aborda-se a leitura enquanto
processo discursivo: “[...] a leitura é o momento crítico da produção da
unidade textual, da sua realidade significante. É nesse momento que os
interlocutores se identificam como interlocutores e, ao fazê-lo,
desencadeiam o processo de significação do texto” (ORLANDI, 1988,
p.10).
Analisar a leitura dentro dessa perspectiva é compreender o
funcionamento da língua para a produção de sentido. E esse não está nas
palavras e nem nos textos, mas na relação com a exterioridade e nas suas
condições de produção. Coracini (1995, p.23) indaga: “como fica o olhar
do leitor?”. E então diz que o “olhar” vem de dentro do sujeito,
inteiramente impregnado por sua subjetividade e por sua historicidade. A
subjetividade se constitui das relações sociais que nos inserem no mundo
pré-organizado impulsionado pelos desejos, culturalmente adquiridos e
culturalmente recalcados, de verdade absoluta, de totalidade, de
completude.
2.2 A ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA FRANCESA NO BRASIL
Concebe-se a Análise do Discurso de linha francesa como um
modelo metodológico que surgiu na década de 60 fundada por um grupo
7
coordenado por Michel Pêcheux e associada a uma tradicional prática
escolar francesa: a explicação de textos. Trata-se, portanto, de uma
metodologia que, privilegiando a interdisciplinaridade, articula
pressupostos teóricos da Lingüística, do Materialismo Histórico
(Marxismo) e da Psicanálise. Pêcheux foi influenciado por Foucault no
discurso e por Althusser na ideologia.
A Análise do Discurso, apesar de ser uma ciência recente, utiliza
como material de estudo, elementos que sempre fizeram parte da
existência humana, visto que, de uma maneira ou de outra, todas as
Ciências que se relacionam com a presença do homem na Terra possuem
pontos de encontro e intercessão com a AD, uma vez que ela inclui os três
elementos que foram excluídos por Saussure: mundo (ou referente), o
sujeito e a história.
Por conta disso, suas possibilidades de investigação, realização e
expansão dentro dos pressupostos que lhe são oferecidos são ilimitáveis,
uma vez que ela tem objeto próprio (o discurso), unidade de análise (o
texto), procedimentos analíticos específicos, pressupostos teóricos que
delimitam um campo disciplinar, resultando daí que produz conhecimento
no domínio das ciências humanas.
Arriscando uma delimitação do que pode ser entendido como
Análise do Discurso, numa perspectiva abrangente da sua atuação como
ciência que se ocupa do sujeito e dos sentidos suscitados por ele ao
produzir um discurso, pode-se apontar para a identificação dessa prática
científica, nascida no século XX as seguintes palavras-chave: sujeito -
linguagem – história – sentido.
Colocando isso em palavras de Orlandi (1996) fica claro entender
“que a história ‘afeta’ a linguagem de sentidos. Desse encontro resulta o
texto, logo textualidade que é história, que faz sentido”. Textualidade é a
função do texto consigo mesmo (com a língua que ele arregimenta) e com
a exterioridade (condições de produção, dentre as quais as posições
ideológicas – interdiscursivas – que significam nele. E tudo isso é o que
nos dá a certeza da amplitude de possibilidade de pesquisa a respeito
dessa fundamental ciência, que veio ajudar na compreensão e resolução
8
das questões referentes aos sujeitos de uma sociedade e os efeitos de
sentido produzidos por seus diferentes discursos, verbais ou não-verbais.
Se não há sentido, sem interpretação, é aí que a ideologia se
apresenta. Segundo Pêcheux (1990), a ideologia adquire materialidade no
discurso, assim, ao se analisar a articulação da ideologia com o discurso,
o analista tem de se reportar a dois conceitos tradicionais da AD, a
saber, o conceito de formação ideológica e o de formação discursiva: “[...]
a região do materialismo histórico que interessa ao estudo do discurso é a
da superestrutura ideológica ligada ao modo de sua produção dominante
na formação social considerada.” Desse modo, para o referido autor, a
região da ideologia deve ser caracterizada por uma materialidade
específica articulada sobre a materialidade econômica.
Por conseguinte, a ideologia vai funcionar como reprodutora das
relações de produção, isto é, o sujeito será assujeitado como sujeito
ideológico, de forma que cada sujeito interpelado pela ideologia busque
ocupar o seu lugar em um grupo ou classe social de uma determinada
formação social, acreditando estar exercendo a sua livre vontade.
Por sua vez, as classes sociais mantêm e perpetuam a ideologia
através do que Althusser (1974) denominou de AIE (Aparelhos
Ideológicos do Estado). Assim, os AIE(s) “colocam em jogo práticas
associadas a lugares ou a relações de lugares que remetem à relação de
classe.” (ORLANDI, 1983, p.166).
Althusser propôs a mais influente visão das duas últimas décadas.
Uma das grandes contribuições do pensador francês foi o de distinguir:
Uma teoria da ideologia geral, na qual a função da ideologia é assegurar a coesão na sociedade, da teoria das ideologias específicas, na qual a função geral já mencionada é sobredeterminada pela nova função de assegurar a dominação de uma classe (ALTHUSSER, 1980, p.186).
Segundo Althusser (1980, p.81), é “[...] a natureza imaginária (da
relação entre os homens e as suas condições reais de vida) que
fundamenta toda a deformação imaginária que se pode observar em toda
ideologia”.
9
Partindo das contribuições do materialismo histórico no que diz
respeito à superestrutura ideológica em sua ligação com o modo de
produção e realizando um novo deslocamento, Pêcheux (1988) mostra o
importante papel que a ideologia representa no processo de interdição
dos sentidos. Propondo o conceito de “condições de produção”, ele
mostra que o discurso é efeito de sentidos entre os interlocutores.
Assim, temos que o indivíduo não está livre para escolher
deliberadamente, numa determinada situação, o que falar, pois o seu
dizer estará sendo afetado por este “já lá”, que Pêcheux denomina de
interdiscurso ou “o todo complexo com dominante das formações
discursivas” (1988, p.162). Esse “já–lá” são sentidos que foram se
construindo historicamente a partir da constelação das relações de poder,
que podem ser assumidas ou não pelo sujeito, a depender das posições
discursivas que este poderá ou não ocupar em função do funcionamento
da ideologia.
Assim, Pêcheux vai mostrar que o “caráter material” do sentido, ou
dos sentidos, somente é possível porque: “a materialidade concreta da
instância ideológica existe sob a forma de formações ideológicas, que, ao
mesmo tempo, possuem um caráter ‘regional’ e comportam posições de
classe”. Isto quer dizer que na luta de classes, não há “posições de classe
que existam de modo abstrato e que sejam aplicadas aos diferentes
‘objetos’ ideológicos regionais das situações concretas” (PÊCHEUX, 1988,
p.146).
Pêcheux (1988) afirma ainda que a materialidade ideológica só é
possível de ser apreendida a partir da materialidade lingüística, que
aparece nas formações discursivas; dizendo de outro modo, que aparece
no dizer concreto de cada sujeito. A modalidade particular do
funcionamento da instância ideológica consiste justamente nesse
assujeitamento ideológico que conduz cada pessoa a acreditar que, a
partir de sua livre vontade, pode se colocar, sob a forma discursiva, no
lugar de uma ou outra classe social, antagonistas no modo de produção.
Como coloca Pêcheux, essa interpelação do sujeito em sujeito ideológico,
ou sujeito do discurso:
10
Se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora de unidade (imaginária) do sujeito apóia-se no fato de que elementos do interdiscurso (...), são re-inscritos no discurso do próprio sujeito” (PÊCHEUX, 1988 p.163).
No processo descrito pelo autor, ele usa o artigo definido “a” para
referir-se à formação discursiva que, na articulação com o sujeito, o
constitui. Isso não é à toa, pois não é possível ser uma formação
qualquer, mas sim uma específica, que se relaciona com a posição
possível para o sujeito ocupar, e que por sua vez, relaciona-se com a
forma-sujeito, que é a forma de existência histórica de qualquer
indivíduo, agente das práticas sociais.
Assim, essa unidade imaginária – sistema de evidências e de
significações percebidas - que fornece a cada sujeito a “sua realidade”, só
é possível através de uma submissão aos significantes da língua (ao pré-
construído); o que equivale a dizer que a língua funciona no sujeito cada
vez de modo diferente, pois esse assujeitamento não se dá da mesma
maneira para cada falante da língua. Daí a noção de que não há uma
relação direta e automática do discurso com uma dada situação
empiricamente descritível.
Chega-se, então, à definição de ideologia e, conseqüentemente, de
sujeito:
Ideologia não se define como o conjunto de representações, nem muito menos como ocultação de realidade. Ela é uma prática significativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente – ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique (ORLANDI, 1998, p.48).
Deste modo, tem-se que o sujeito pode, através de seu discurso,
marcar uma identificação com a ideologia da classe dominante, mesmo
não pertencendo a essa classe, e sem ter consciência disso. É isso
também que se procura mostrar através dos artigos aqui analisados.
3. OS SENTIDOS ATRIBUÍDOS À VIOLÊNCIA PELOS ALUNOS DAS 3ª SÉRIES DO COLÉGIO ESTADUAL CARLOS GOMES
11
3.1 LEVANTAMENTO A RESPEITO DA VIOLÊNCIA: APLICAÇÃO
QUESTIONÁRIO
Em uma de suas definições mais amplamente aceitas, “violência é
todo ato que implica na ruptura de um nexo social pelo uso da força”,
(SPOSITO, 1994), sendo assim, nega-se a possibilidade da relação social
que se instala pela comunicação, pelo uso da palavra, pelo diálogo e pelo
conflito. E há diversos níveis de significação para o que seja violência e o
reconhecimento do que seja ou não um ato violento só é definido pelos
sujeitos em condições históricas e culturais diversas. Ao elaborar o
questionário que foi aplicado a 36 (trinta e seis) alunos da 3ª série diurna
e a 59 (cinqüenta e nove) alunos das 3ª série noturna, do Colégio
Estadual Carlos Gomes, no período de 10 a 14 março de 2008, analiso
condutas que envolvem a destruição e a força, mas também considero
violência práticas sutis e cotidianas como racismo e intolerância Os
resultados das questões selecionadas para este estudo são apresentados
por período de freqüência em um gráfico de colunas, o qual permite
analisar comparativamente a incidência das respostas.
Evitando a repetição excessiva dos termos “diurnos” e/ou
“noturnos”, denomina-se de “D” a primeira turma, alunos da série diurna
e “N” a seguinte, alunos da série noturna, para efeito de apresentação
dos resultados. Os alunos são denominados de D1; D2;...Dn, para a série
diurna e, de N1; N2;...Nn para a série noturna. Quanto às
características, os alunos D apresentam idade média de 16,77 anos de
idade; e nos alunos N, a média é de 17,41 anos de idade. Quanto ao
gênero, se percebe que a incidência de alunos do gênero feminino é
maior, tanto na turma D, com 67% de alunas, quanto no N, com 58% de
alunas.
Perguntado se já sofreu algum tipo de violência, 53% dos alunos D e
51% alunos N responderam que sim, enquanto que 47% e 41% alunos,
respectivamente, afirmaram que não, conforme o gráfico 1.
12
53% 51%47%
41%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
Sim Não
Diurno Noturno
Gráfico 1 Alunos que já sofreram algum tipo de violência Fonte: Dados da pesquisa, 2008.
Perguntado se o aluno ameaçado denunciou a violência a algum
órgão governamental, da série D 17% já denunciou e, da N, apenas 5%.
Os dados são mostrados no gráfico 2.
17%5%
81% 85%
2%10%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Sim Não Sem resposta
Diurno Noturno
Gráfico 2 Índices de denúncia de violência a órgãos governamentaisFonte: Dados da pesquisa, 2008.
Perguntado aos alunos se alguém da família responde ou foi
condenado, as respostas confirmam 14% na série D e 17% na N,
conforme gráfico 3:
13
14% 17%
86% 81%
2%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
90%
Sim Não Sem resposta
Diurno Noturno
Gráfico 3 Confirmação se alguém da família do aluno responde ou já foi condenadoFonte: Dados da pesquisa, 2008.
Na seguinte questão analisada, perguntou-se se os crimes são
diferentes dependendo da classe social; das respostas 81% D consideram
que sim, e mesma resposta para 41% N; entretanto, 59% N não
consideram essa diferença. Os dados são mostrados no gráfico 4.
81%
41%
19%
59%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Sim Não
Diurno Noturno
Gráfico 4 Se o aluno considera que o crime é diferente em razão da classe socialFonte: Dados da pesquisa, 2008.
Na seqüência a pesquisa buscou saber se o aluno já
presenciou alguma ocorrência em que um colega tenha sofrido violência.
Dos resultados, verifica-se a confirmação por 83% dos alunos D e por
76% dos alunos N, conforme mostrado no gráfico 5.
14
83%
76%
17%24%
0%
20%
40%
60%
80%
100%
Sim Não
Diurno Noturno
Gráfico 5 Confirmação por parte de alunos que presenciaram atos de violência Fonte: Dados da pesquisa, 2008.
A questão seguinte investigou se o aluno acredita que o
levantamento dos dados sobre violência pode contribuir para a
diminuição da mesma; 67% dos alunos D e 41% de alunos N acreditam
que sim; no entanto, 33% de alunos D e 59% dos alunos N não acreditam.
Os dados são mostrados no gráfico 6.
67%
41%
33%
59%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
Sim Não
Diurno Noturno
Gráfico 6 Levantamento de dados sobre a violência visando a sua diminuiçãoFonte: Dados da pesquisa, 2008.
A pergunta seguinte questionou se o aluno já foi vítima de algum
tipo de agressão dentro da Escola. Das respostas, 33% e 32%,
correspondentes alunos D e N, respectivamente, confirmam que sim.
Contudo, índices como 67% de alunos D e 66% de alunos N não
confirmam este fato. Os resultados constam no gráfico 7.
15
33% 32%
67% 66%
2%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
Sim Não Sem resposta
Diurno Noturno
Gráfico 7 Confirmação se o aluno foi vítima de violência na escolaFonte: Dados da pesquisa, 2008.
Para aqueles alunos que responderam sim, ou seja, que
confirmaram terem sido vítimas de violência na escola foi indagado em
qual local ocorreu este ato. Das alternativas elencadas para respostas,
destacam-se o pátio da escola, com 23% de incidência para os alunos D, e
de 44% para os alunos N. Em seguida vem as salas de aula, com 46% e
32%, respectivamente às turmas pesquisadas. Demais locais são citados,
cabendo observar o índice de 12% citado por alunos N para banheiros
como local onde ocorreu a violência da qual foram vitimas, conforme o
gráfico 8.
23%
44%46%
32%
8%
4%8% 8%
12%
8% 8%
0%
5%
10%
15%
20%
25%
30%
35%
40%
45%
50%
Pátio Salas deaula
Corredores Refeitório Banheiros Quadraesportiva
Diurno Noturno
Gráfico 8 Local de ocorrência de violência a alunosFonte: Dados da pesquisa, 2008.
16
Continuando, perguntou-se se o aluno já agrediu alguém. 36% de
alunos D e 54% de alunos N confirmaram que sim; 64% de alunos D e
44% de alunos N responderam que não. Os índices constam no gráfico 9.
36%
54%
64%
44%
2%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
Sim Não Sem resposta
Diurno Noturno
Gráfico 9 Confirmação de agressão a alunosFonte: Dados da pesquisa, 2008.
Perguntado o motivo pela agressão, os dados constam no quadro 3:
Aluno
Resposta Aluno
Resposta
N1 Pelo motivo de falar de minha vida sem saber a verdade.
D2 Ciúmes.
N2 Pelo motivo de ofensa verbal. D3 Ciúmes.N3 Por ele ter se prevalecido de alguém. D4 Vários – profissão segurança.N4 De um dinheiro. D5 Porque me provocaram e fico
muito irritada e com raiva de quem faz isso.
N5 Raiva. D6 Para me defender.N6 Por ser muito pica-pau. D9 Ameaça.N7 X9. D10 Porque a pessoa tentou me
intimidar.N10 Por ela ter agredido minha irmã. D11 Bobagem de criança.N12 Se lá, não lembro. D14 Provocação.N13 Briga com meu tio. D15 Auto defesa.N18 Para me defender. D16 Revidei.N19 Discussão, desentendimento, loucura. D20 Por causa de mulheres.N23 Por brigas. D22 Agressão verbal.N23 Por causa que mentiu. D23 Agressão verbal.N25 Porque a menina queria briga com a
minha prima.D25 Agredi verbalmente por estar
nervoso.N27 Porque é um bosta. D26 Apelidos indiscretos.N30 Porque tinham me agredido
verbalmente.D27 Agressão verbal.
N33 Me incomodou excessivamente. D28 Por causa de fofocas.N35 Tentou me agredir antes. D29 Por motivos banais, coisas de
adolescente.N36 Provocações. D30 Legitima defesa.N37 Agressão verbal. D35 Discussão.N39 Defesa pessoal. D36 Bobeiras.N40 Motivo na escola.
17
N43 Ele precisava de corretivo.N44 Discussão, ofensa.N45 Raiva.N46 Por falar coisas que não deve.N49 Irritação e raiva.N50 Porque o” baguio fica loco”.N52 Fofoca.N53 O cara me empurrou, né.N55 Discussão.N57 Intrigas de fofocas.
Quadro 1 Motivo de o aluno ter agredido alguémFonte: Dados da pesquisa, 2008.
Para aqueles que responderam sim, no gráfico nove, a pesquisa
investigou se os mesmos foram penalizados. Os resultados são mostrados
no gráfico 10.
77%
31%
23%
69%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
Sim Não
Diurno Noturno
Gráfico 10 Alunos que sofreram penalização por agressão Fonte: Dados da pesquisa, 2008.
Dos 13 alunos D que agrediram alguém, 77% foram penalizados e
23% não sofreram penalização; dos 32 alunos N que agrediram alguém,
31% foram penalizados e 69% não. As penalidades sofridas incluem: “Fui
à delegacia e ao conselho tutelar de outra cidade” (D5); e, “Só com o
arrependimento” (D36).
Por fim, a pesquisa perguntou o que faria o aluno se estivesse na
rua (parado(a), andando, dentro do carro...) e alguém, montado em uma
moto, o assaltasse você e levasse alguma coisa sua (anel, corrente,
relógio, celular, carteira, bolsa...). A maioria, 64% de alunos D e 65% de
alunos N registrariam a ocorrência; apenas 8% e 18% de alunos D e N,
respectivamente, reagiram. Os dados são mostrados no gráfico 11.
18
8%
18%
5%11%
64% 65%
21%
6%2%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
Reageria Ficaria tãoassustado(a) que
nada faria
Registraria aocorrência
Registraria ecomentaria com todo
mundo seuinconformismo
Sem resposta
Diurno Noturno
Gráfico 11 Comportamento do aluno em caso de assaltoFonte: Dados da pesquisa, 2008
3.2 ANÁLISE E DISCUSSÃO
Analisando-se os resultados verifica-se que, em um contingente de
alunos no qual prevalece o gênero feminino, persiste alta incidência na
ocorrência de violências, com exposição a formas diversas de agressão e
ênfase na agressão verbal e física; dessas agressões, alguns alunos
admitem tê-las denunciado a órgãos governamentais.
No que diz respeito à ocorrência de casos de violência na família
com interferência legal, além da confirmação por parte dos alunos,
observa-se que eles detêm conhecimento específico sobre o caso,
punições recebidas e situação do processo de julgamento.
É interesse inferir com os registros de Coracini (1995), de que o
olhar vem de dentro do sujeito, agregado à subjetividade que se constitui
das relações sociais que inserem o indivíduo no mundo pré-organizado
impulsionado pelos desejos, culturalmente adquiridos e culturalmente
recalcados.
Os resultados permitem constatar que, embora a maioria dos alunos
pesquisados admita a existência de diferentes tipos de violência, não
atribuem os atos criminais a diferentes classes sociais com a mesma
intensidade, ou seja, quase todos os alunos da série diurna acreditam que
isso pode acontecer, inversamente ao pensamento dos alunos da série
noturna, que aponta um índice de 41% para esta possibilidade.
19
Pressupondo que a atribuição de sentidos pelos alunos ao tema da
pesquisa possa corresponder à influência recebida do meio no qual
convive e atua, cabe referenciar Pêcheux (1988), ao afirmar que o
indivíduo não está livre para escolher deliberadamente, numa
determinada situação, o que falar. Isto porque seus sentidos foram se
construindo historicamente a partir da constelação das relações de poder,
assumidas ou não pelo sujeito, e dependem das posições discursivas que
este poderá ou não ocupar em função do funcionamento da ideologia.
Em compreensão similar, os resultados da pesquisa mostram que os
alunos da série diurna entendem que a violência depende do nível de
escolaridade, diferentemente da opinião dos alunos da série noturna.
Interessante observar que se trata de alunos com faixa etária similar e
com diferentes percepções acerca do mesmo assunto, considerando
apenas a característica das séries escolares freqüentadas.
Também aqui são pertinentes as colocações de Pêcheux (1969) ao
definir o discurso como efeito de sentidos entre interlocutores, lugar de
contato entre a língua e a ideologia. Sendo o discurso, portanto, a prática
social de produção de textos e que, por isto, todo discurso é uma
construção social, analisado em seu contexto histórico-social, suas
condições de produção; significa que o discurso reflete uma visão de
mundo determinada, vinculada aos seus autores e à sociedade em que
vivem.
Com relação a sofrerem violência na escola, o número de respostas
afirmativas é significativo nas duas séries pesquisadas, destacando-se
que as agressões a alunos ocorrem no interior da escola, quase sempre
no período de aula ou em seus intervalos, e caracteriza uma agressão
pessoal, de indivíduo para indivíduo, ou seja, o número de agressores
mais citado consiste de um agressor.
É o caso em que o discurso como palavra em movimento permite
observar o homem falando, fato que indica que a posição frente aos
conceitos fixos, imutáveis, deve ser diferenciada: a língua não é algo
pronto, à disposição dos falantes e o discurso não pode ser encarado
20
como mera mensagem, um simples esquema onde há emissor, receptor,
código, referente e mensagem (ORLANDI, 2005).
Fica claro que as agressões a alunos são corriqueiras, quando
grande parte dos alunos confirma que já agrediu alguém, por diferentes
motivos, sofrendo penalização por este fato.
Analisando os resultados quanto a sofrerem assalto, verifica-se que
alguns alunos reagiriam a este acontecimento, embora a maioria
decidisse por registrar a ocorrência e o seu inconformismo com o fato.
Apresentada a discussão dos resultados da pesquisa, conclui-se o estudo,
sendo que esse foi o primeiro aspecto a ser analisado no presente artigo.
3.3 MOMENTOS DE UMA PROPOSTA DISCURSIVA DE LEITURA:
Para trabalhar artigos jornalísticos que apresentam como tema a
violência com turmas de 3ª séries de Ensino Médio, apresentei aos alunos
os textos considerando o ato de ler como um processo discursivo no qual
tanto ELES (leitores) como os AUTORES (Huck – Ferrez), eram
produtores de sentido porque AMBOS são/estão sócio-historicamente
determinados e ideologicamente constituídos. E então propus,
inicialmente com o texto “Pensamentos quase póstumos” de Luciano
Huck e, posteriormente, com “Pensamentos de um Correria” de Ferréz
que os alunos respondessem questões de sentido amplo, tais como a)
quem eram e como estavam caracterizados os sujeitos; b) o que faziam e
diziam; como também questões de sentido mais amplo, c) como os
sujeitos eram significados ideologicamente e por quê, através de
perguntas como: interdiscursivamente, esse texto faz falar que discurso?
Esse discurso (Ferréz) é o MESMO/DIFERENTE do primeiro (Huck)?
Considerando uma perspectiva discursiva de leitura, é válido dizer
que o texto não pode ser visto como mero produto lingüístico, mas como
instância de um processo discursivo do qual fazem parte memórias
discursivas e condições de produção (cf. Pêcheux, 1990). No caso da
prática de leitura desenvolvida em sala de aula, a partir da temática da
violência, julgamos válido considerar uma abordagem discursiva da
21
textualidade, considerando para tanto as condições de produção do
discurso, a relação dos sujeitos com a ideologia, a partir das
modalizações apreciativas na argumentação e dos modos de dizer e as
marcas de heterogeneidade presentes nos textos.
Para tanto, estamos levando em conta, conforme Orlandi (1993:11),
nessa prática de leitura com textos jornalísticos sobre um acontecimento
polêmico em torno da violência no Brasil a (im)possibilidade de pensar: (i)
um autor onipotente cujas intenções controlassem todo o processo de
significação; (ii) a transparência do texto que diria por si só uma
significação e (iii) um leitor onisciente que dominasse as múltiplas
determinações dos sentidos que jogam em um processo de leitura.
3.4 AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO
As condições de produção envolvem o contexto material e
institucional, além do imaginário dos interlocutores. As condições de
produção, como afirma Orlandi (2005), compreendem fundamentalmente
os sujeitos e a situação, bem como a memória que faz valer essas
condições de produção. Assim sendo, em uma prática de leitura, à luz da
AD, é importante considerar as circunstâncias de enunciação: o contexto
micro (imediato) o sujeito que assina o texto, o meio e o suporte em que a
reportagem está sendo veiculada e o contexto macro (sócio, histórico, e
ideológico mais amplo).
Neste caso, foi válido discutir com os alunos:
a) a imagem que o produtor do texto jornalístico faz de si: Luciano Huck-
Luciano se constrói discursivamente como vítima, como herói, como
pessoa especial que não mereceria ser assaltado.
b) a imagem que o produtor do texto faz do seu leitor (público-alvo):
Luciano Huck- um leitor que se identifica com um público construído
como cúmplice de suas reflexões e lamentações
c) a imagem a respeito da questão da violência:.a violência é tida como
problema nacional de resolução bastante difícil, o que se associa a uma
postura irônica do artista no final do texto.
22
Neste sentido, para que o dizer faça sentido, é necessário que este
esteja sustentado por um saber discursivo, um já dito, "aquele que fala
antes, em outro lugar independentemente", isto é, o interdiscurso, a
memória discursiva. Tudo o que já foi dito sobre o assunto em questão,
sobre a violência, sobre a diferença entre ricos e pobres, de algum modo
significa ali. "O dizer não é propriedade particular, as palavras não são só
nossas. Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro
lugar também significa em nossas palavras" (ORLANDI, 1999, p.32). Essa
relação do dizer com o já-dito é que torna possível na análise a
compreensão do funcionamento do discurso, a relação com os sujeitos e
com a ideologia.
À medida que o sujeito (que assinou o texto jornalístico) projeta
esta imagem de um leitor (cidadão comum preocupado consigo mesmo,
com sua família, com sua segurança), ele usa o mecanismo da
antecipação, ou seja, ele coloca-se no lugar de seu interlocutor prevendo
como seria sua reação diante de determinado discurso, com isso ele prevê
os efeitos de sentidos que podem ser produzidos, regulando seu discurso
de acordo com os efeitos de sentidos que deseja produzir em seu
interlocutor.
Há, portanto, aí um texto dirigido a um público imaginário, virtual
“aquele que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele se
dirige” (ORLANDI, 1987, p 09), quando o leitor real lê o texto, ele entra
em contato com o leitor imaginário a quem este texto se destina. Nesse
sentido, essa relação é crucial para o efeito de sentido que será
produzido: o de chocar o leitor, sensibilizá-lo frente a um fato vivenciado
pelo artista.
Foi válido, neste caso, contrapor as condições de produção do
discurso de Ferréz, conforme segue:
a) imagem que o produtor do texto jornalístico faz de si: Ferréz se
constrói discursivamente como sujeito que fala de um lugar social
relacionado à periferia que segue regras bem diferentes daquelas da
classe média.
23
b) a imagem que o produtor do texto faz do seu leitor (público-alvo):
Ferréz parte da imagem de um leitor que passe a olhar o problema de
outra perspectiva.
c) a imagem a respeito da questão da violência:.a violência é tida como
efeito de uma sociedade desigual, excludente e preconceituosa ou ainda
como única forma de sobrevivência daqueles que não têm com quem
contar.
O importante é frisar que o locutor “antecipa-se assim a seu
interlocutor quanto ao sentido que suas palavras produzem. Esse
mecanismo regula a argumentação, de tal forma que o sujeito, neste
caso, representado por Ferréz, dirá de um modo, ou de outro, segundo o
efeito que pensa produzir em seu ouvinte” (ORLANDI, 1999, p. 39), pois
o ouvinte/leitor participa do processo de produção de sentidos em
condições sócio-historicamente determinadas.
O modo como o sujeito irá ler depende de sua posição, seu lugar
social e sua relação com ele, esse sujeito interpelado pela ideologia
constituiu-se de diferentes formas em diferentes momentos históricos.
Esse aspecto é chamado relação de força, em que o sujeito que fala
exerce uma autoridade para fazê-lo, o sujeito fala de um lugar social que
lhe permite dizer e fazer sentido: o lugar do escritor da periferia. Não é
qualquer sujeito que fala, existem as formações imaginárias, é a imagem
que se faz dele e que permite que ele passe da posição empírica para a
posição discursiva, significando em relação ao contexto sócio-histórico e à
memória discursiva. Esse imaginário, segundo Orlandi (1999, p. 42),
"assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem na história e
são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder".
3.4.1 MODALIZAÇÃO APRECIATIVA NA ARGUMENTAÇÃO NO TEXTO:
“PENSAMENTOS QUASE PÓSTUMOS” DE HUCK
Com relação aos substantivos, adjetivos e advérbios na
argumentação do texto, podemos destacar algumas construções que nos
24
colocam diante de um sujeito que se constrói como vítima da violência,
tendo em vista uma dramatização do fato:
(1) “Uma jovem viúva”- cujo efeito de sentido aponta para a memória do sofrimento da
jovem esposa que perde prematuramente o esposo
(2) “Uma família destroçada”- mais uma vez o texto faz retornar o imaginário de família
que necessita do pai para se manter.
(3) “Um governador envergonhado”- a morte de um artista ou celebridade seria tratada
como grande acontecimento e afetaria a imagem do governador.
(4) “Dois pobres coitados”- a imagem dos assaltantes é construída a partir de uma
construção depreciativa.
Também podemos analisar os sentidos produzidos pelos verbos no
tocante à Modalização Apreciativa do Sujeito, ou seja, como o sujeito
mostra uma posição a partir do uso de uma expressão.
(5) “Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E, como resultado, depois do
cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa.”
(6) “Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como tentar fazer
este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido tem um trabalho sério e eficiente
em sua missão. Meu prazer passa pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas disso.”
(7) “Escrevo este texto não para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex, mas a
indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a
construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo e concluir
-com um 38 na testa- que o país está em diversas frentes caminhando nessa direção,
mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas quase "infantis" para uma
sociedade moderna e justa.”
Tendo-se em vista o uso dos verbos jurar, receber, passar e colocar,
podemos perceber que Huck projeta-se no discurso como sujeito rico e
generoso, responsável e ligado a causas sociais, o que ameniza uma certa
antipatia que poderia se produzir entre os menos favorecidos.
No fragmento 7, a repetição do advérvbio mais é preponderante na
instauração de sentidos para que compreendamos o quanto Huck se auto-
representa como herói ou como cidadão especial na medida em que seu
trabalho está pautado na construção de um cenário mais maduro, mais
equiblibrado, o que significa que Huck com suas ações está sempre
25
tornando as coisas melhores. Considerando uma memória de Brasil que
precisa sempre melhorar, crescer mais, ser mais justo, Huck assume este
papel de permitir ao país esta conquista. Se o advérbio mais exprime
sentido de intensidade, Huck se projeta como sujeito que intensifica a
transformação e a melhoria da sociedade brasileira.
(8) “Juro que pago todos meus impostos”- Luciano Huck faz uso de um verbo de
sentido forte e categórico (juro), construindo uma imagem de sujeito
responsável, honesto e ético.
(9) “Quase recebo balas de chumbo na testa”- a posição de Huck aponta para sua
própria vitimização.
(10) “Meu prazer passa pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas disso.” –
novamente o artista se projeta como um sujeito especial, generoso que
não mereceria ser vítima da violência ou então causar revolta nos mais
pobres.
(11) “Escrevo este texto não para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex, mas a
indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a
construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo” – Huck
desloca o tempo todo a sua indignação pela perda material para enfatizar
não o problema da violência no Brasil, mas para exaltar o papel social por
ele desempenhado para a construção de um país mais justo.
Com relação à ocorrência de advérbios destaca-se o papel do
advérbio de negação “não”. Vale dizer que este é fundamental para a
produção do efeito de sentido de que Huck não teria dúvida, ou seja, está
certo, tem certeza de que ele somente se preocupa com seu
semelhante, com a coletividade. A negação serve como argumento de que
ele está convicto de sua "missão" de artista salvador da pátria, o que se
perfaz a partir do retorno de uma memória de que as pessoas generosas e
bondosas se preocupam o tempo todo com o próximo.
3.4.2 AS MARCAS DE HETEROGENEIDADE E INTERTEXTUALIDADE
NO TEXTO: “PENSAMENTOS DE UM CORRERIA” DE FERRÉZ
Em todo o texto, percebe-se a insistência de Ferréz em “dialogar”
com o artigo de Huck. E nesse ”diálogo”, é possível observar que no
26
espaço de significação produzido pelo texto de Ferréz vão se produzindo
sentidos que apontam para uma posição irônica de Ferréz em relação ao
uso de expressões cristalizadas, provenientes de senso comum, utilizadas
por Huck.
Enquanto Huck, a partir de PARÁFRASES, vai garantindo a
manutenção de um sentido já-dado, legitimado, ou seja, um “retorno aos
mesmos espaços do dizer”, nas palavras de Orlandi (1999, p. 36), Ferréz,
por sua vez, produz o deslocamento desses sentidos, isto é, a ruptura de
um processo de significação – POLISSEMIA, o que se relaciona ao fato de
que o sentido deriva para outros sítios de significação.
Também, podemos dizer que o sentido de uma palavra ou expressão
não está na letra, ou seja, “o sentido não existe em si, mas é
determinando pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo
histórico em que as palavras são produzidas” (ORLANDI, 1999, p. 42)
E é assim que vamos compreendendo que uma mesma palavra ou
expressão vão significando diferentemente, segundo as posições-sujeitos
daqueles que tomam a palavra, de um lugar social determinado. Neste
sentido, os sentidos de violência e de crime estão atrelados a diferentes
perspectivas, mobilizando memórias outras: de um lado, a violência e
crime são problemas sociais, o mal ou câncer de uma sociedade e de
outro, o crime é forma de sobrevivência ou uma missão.
Quanto às condições de produção, o artigo de Ferréz apresenta uma
situação de interlocução diferente de Huck; uma vez que Ferréz não
assume uma posição de superioridade em relação aos leitores e também
por se marcar ideologicamente como um sujeito da periferia.
(1) “se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada,
porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um
coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o
trânsito”.
A partir da análise do excerto acima, pode-se dizer que Férrez, ao
desprestigiar o discurso de Huck, estrategicamente, na enunciação,
coloca em cena justamente partes de seu artigo. Neste caso, Ferrez fala
em nome da periferia, fazendo retornar uma memória relacionada ao
espaço do cidadão comum que é anônimo, cuja vida não tem valor para o
27
restante da sociedade, contrapondo-se com a imagem inscrita no social
de que os artistas são homenageados quando morrem ou cuja vida tida
como heróica ou especial assume significado mais importante que a dos
sujeitos comuns, principalmente os mais pobres. Ironicamente, Ferrez
trabalha um espaço da identidade do sujeito da periferia que é
representado discursivamente por Huck como coitado, como sujeito
portando um capacete velho.
(2) “ Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. Selva de pedra criou suas leis,
vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus
problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir
dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.
(3) “Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais,”
(4) “Ainda menino, quando assistia às propagandas, entendia que ou você tem ou você
não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém do que morrer velho como
ninguém.”
(5) Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia
respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e
pronto.
(6) Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar
perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo.
(7) Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi
justo pra ambas as partes.
Em relação ao papel dos substantivos, adjetivos e advérbios, em
termos de modalizações apreciativas, pode-se dizer que os substantivos
fome, selva de pedra, malandros, kit pobreza, lixo vão construindo uma
representação dominante de sujeito da periferia que tem uma realidade
dura e bastante problemática.
Também, em termos de adjetivação, os adjetivos escuro, justo e
indefensável produzem um efeito-verdade para o texto, na medida em que
apontam uma justificativa para o roubo.
Os advérbios de negação assumem papel preponderante no texto:
na construção “o vidro escuro não deixa mostrar nada”, tem-se a dupla
negação produzida pelos advérbios não e nada, que participam da
construção de uma representação de individualismo total na sociedade,
visto que não há preocupação ou sentimentalismo com o próximo.
Também a conjunção dos advérbios na expressão nada demais no item 3
28
contribui para que a identidade da periferia esteja circunscrita na idéia
de essencial, de básico, de prioritário.
Ainda sobre os advérbios de freqüência, vale destacar o papel da
forma nunca em “nunca gostou do super-homem” e a forma do sempre no
excerto “pensou que (...) não fazia parte dele, não era o lixo” também
contribuem para a construção de uma identidade para o sujeito da
periferia na/pela linguagem. Uma identidade que assume posições
radicais, extremistas entre o tudo e o nada, entre o sempre e o nunca,
sempre sim e o não.
(8) “Leu em algum lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o que
queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra. Não acreditava em heróis,
isso não!
(9) Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante
milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as
dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso
Ao tomar a palavra, o sujeito inscreve seu dizer em uma formação
discursiva e não outra para que seu dizer faça sentido. A partir da
posição ideológica da periferia, do lugar do sujeito menos favorecido,
Férrez apresenta posições bastantes categóricas: o fato de o sujeito
descrito em seu texto não acreditar em heróis é um dizer que se relaciona
a outros dizeres. Com efeito, o dizer de Férrez se contrapõe a um
imaginário discursivo que consagra a alguns sujeitos (geralmente ligados
à mídia) o lugar de herói.
Neste caso, o sujeito se filia a uma rede de sentidos em que ele
nega o exterior, o diferente. E o tom irônico se produz, tendo-se em vista
a negação do outro. Na medida em que Ferrez utiliza como artimanha
lingüístico-discursiva a ironia, ele sinaliza ao leitor possibilidades de
leitura, verdadeiros caminhos para que se entenda o discurso.
De fato, o uso da ironia é uma estratégia discursiva que busca
apresentar um contra-argumento que foi se construindo discursivamente.
Percebe-se que a ironia aqui encaminha o leitor ao desvelamento, pois se
intenções de Huck são mascaradas, seja pelo tom apelativo de seu texto,
seja pelo funcionamento da televisão que pretende mostrar que ajuda
29
quem precisa, Ferrez procura revelar, descortinar o que ficou
“mascarado” no discurso de Huck.
Ferrez desprestigia a figura do outro, de Huck, para produzir
sentidos sobre sua própria subjetividade de cidadão que tem origem
humilde. Marcando forte posição contra o outro. O sujeito-enunciador
também nega o fato de que participaria do programa do artista para
conseguir algum prêmio “para pagar dívidas”. Neste sentido, a imagem
que o sujeito-enunciador constrói sobre si mesmo é a de um homem de
verdade, o que se opõe à imagem de sujeito que se humilha por dinheiro.
Dessa forma, no caso de Huck, esse é representado como apresentador
de programa que se beneficia dos problemas financeiros alheios para ter
audiência ou promover momentos de emoção e espetáculo pela TV.
(10) “A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava como
alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. “
Esta frase, amplamente questionada pela mídia, mostra o “lugar”
que Ferrez ocupa para ser sujeito do que está sendo dito. Como não há
discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia (Orlandi, 1999),
constata-se que é na materialidade do que está sendo dito que se
escancara a articulação da língua com a História.
(11) “Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O
cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que
sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa.”
Ferrez vai construindo a crítica, primeiro ao sistema capitalista em
que o “ter” é o que faz o sujeito se sentir gente e, ao mesmo tempo,
critica ironizando Huck cujo programa também apela para a exploração
do corpo da mulher pela TV. Neste sentido, percebemos que o texto de
Férrez descontrói a figura de Huck a partir de uma abordagem de
problemáticas que desqualificam o oponente e seu programa na TV.
Em termos de trabalho de interpretação e leitura, em termos de
mobilização da subjetividade dos alunos, vale assinalar que a maioria dos
alunos se identificaram com a posição de Ferrez e só alguns
(pouquíssmos) com Huck. De fato, é salutar considerar, do ponto de vista
da AD, a história das leituras dos alunos e o modo como a história dos
sentidos os afeta. Em virtude de serem alunos da periferia, de uma escola
30
carente, esses alunos identificam-se com um saber discursivo ou uma
memória que vem à tona no texto de Ferrez, memória marcada pela
dificuldade, pela carência e por uma certa antipatia pelos chamados
boyzinhos.
Também, em relação ao título, poucos alunos, em termos de
compreensibilidade, ou seja, capacidade de leitura, conseguiram
apreender a relação intertextual que existe entre o título do texto de
Huck “Pensamentos quase póstumos” e a obra de Machado de Assis,
Memórias póstumas de Brás Cubas.
Em termos de resultados e considerações positivas do trabalho,
destaca-se a relevância de mobilizar os alunos para uma leitura crítica na
medida em que eles passaram a questionar a premissa de que não há
dizer que seja apolítico ou neutro. Outrossim, os alunos, nas práticas de
leitura, vão se sensibilizando em relação ao fato de que os textos são
objetos incompletos, que não se pode dizer tudo e que sempre há um não-
dito que poderia ter sido dito e não foi, numa dada situação. Por fim, os
alunos também estão mais atentos ao papel do retorno dos dizeres em um
texto, da relação entre o que um texto diz e o outro resignifica, o que
para AD constitui a linguagem e a produção dos sentidos.
3.5 DIÁLOGO INTERSEMIÓTICO:
A fim de tornar a experiência com a linguagem e com sentidos
sobre a violência ainda mais rica, foram apresentados filmes que
tematizem a questão, considerando-se a imbricação da linguagem visual
com a verbal, a partir da materialidade do filme.
Inicialmente, a sala foi dividida em grupos e cada grupo assistiu a
um dos seguintes filmes: O bandido da luz vermelha , O assalto ao trem
pagador, Lúcio Flávio – o passageiro da agonia, Cidade de Deus,
Carandiru e Cidades dos homens. Essa primeira etapa levou três
semanas. Quando eles eram levados para a sala de vídeo, era entregues a
eles a seguinte pergunta: Sob qual ponto de vista a história é narrada?
Na quarta semana, foi realizada uma mesa redonda e cada grupo fez um
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breve resumo do filme e respondeu à questão. Foi pedido que cada grupo
apresentasse através da TV pendrive uma cena do filme que justificasse a
resposta.
Na quinta semana, os alunos assistiram ao filme “Tropa de Elite” e
depois foi organizado um debate no qual mesma pergunta foi feita: Sob
qual ponto de vista é narrada a história? Muitos se manisfestaram,
outros muitos constataram que o cinema brasileiro vinha apresentando o
bandido como mocinho e que em Tropa de Elite ocorria o contrário e
então propus uma produção textual (argumentativo-dissertativo) sobre o
tema: Como a violência está sendo vista pelos brasileiros?
4. CONCLUSÃO
No estudo realizado com as 3ª séries do diurno e do noturno do
Colégio Estadual Carlos Gomes, localizado no município de Pato Branco,
Paraná, buscou-se apontar os efeitos de sentidos produzidos nos leitores
a respeito da violência. Primeiro, propusemos a aplicação de um
questionário, de modo que, a partir dos resultados, apreendeu-se que a
violência faz parte de um discurso conhecido no cotidiano dos alunos,
vivenciado no ambiente familiar, refletido por meio de atos de violência
cometidos por familiares, bem como no ambiente da escola cometido por
colegas e por eles mesmos; admitem conhecer atos de violência e suas
conseqüências, incluindo as penalidades sobre os mesmos: “Há 30 anos,
por morte” (N7).
Em relação à proposta de leitura elaborada sob o ponto de vista da
Análise do discurso, procurou-se trabalhar a discursividade dos textos e
discutir com os alunos a construção de sentidos a partir da relação de
marcas formais e as posições-sujeito postas em cena na enunciação.
Tanto no levantamento realizado a partir das histórias de leitura
dos alunos em relação à violência quanto na prática de leitura na qual
buscamos contrapor posições ideológicas distintas, pudemos trabalhar
com a memória do dizer, com a incompletude do texto e com a ideologia
que se materializa na linguagem.
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Ao final deste trabalho de pesquisa, podemos dizer que a proposta
discursiva nos permite compreender o texto não como mera construção
formal, mas sim como parte de um processo discursivo mais amplo. Dessa
forma, advogamos aqui a necessidade de que, na escola, as aulas de
leitura estejam voltadas para o exame das condições de produção dos
textos, bem como para as posições dos sujeitos no discurso, a partir de
lugares sociais reconhecidos. o texto deve ser entendido como uma
articulação entre materialidade lingüística e discursiva, o que põe em
jogo memórias, ideologias e imagens discursivamente construídas no
texto. Assim sendo, ressalva-se que não houve a pretensão de esgotar o
assunto, mas sim a de apresentar uma proposta que não tem o caráter de
receita, mas o de promover um ensino de leitura em que o texto seja
trabalhado não como um fim em si mesmo, mas a partir dos efeitos que
produz e das memórias que esse textualiza. .
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ANEXOS
Anexo 1 – QuestionárioQuestionário sobre Violência para “medir” se “A violência
é = a Interesse de Iguais ou = a Interesse de Diferentes
Idade: _________________
Sexo: ( ) Feminino ( ) Masculino
1- Você já sofreu algum tipo de violência?( ) Sim ( ) Não2- Caso sim, que tipo de violência?( ) Verbal( ) Física( ) Ameaça de Morte( ) Ameaça Velada( )Censura( ) Detenção arbitrária( ) Assédio( ) Outra. Qual? _________________________________________________3- Você apresentou denúncia a algum órgão governamental?( ) Sim ( ) Não4- Alguém da sua família responde ou já foi condenado?( ) Sim ( ) Não5- Caso tenha sido condenado, informa que tipo de punição, se já recorreu, e se já houve julgamento de recurso._______________________________________________________________________________6- Existem tipos diferentes de violência?( ) Sim ( ) Não7- Você acha que os crimes são diferentes dependendo da classe social?( ) Sim ( ) Não8- A violência depende do nível de escolaridade?( ) Sim ( ) Não9- Você já presenciou alguma ocorrência em que um colega te4nha sofrido violência?( ) Sim ( ) Não10) Você acredita que o lçevantamento dos dados sobre violência popde contribuir para a diminuição dela?( ) Sim ( ) Não11- Já foi vítima de algum tipo de agressão dentro da Escola?( ) Sim ( ) Não12) Se respondeu Sim, Em que local?
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( ) Pátio( ) Salas de Aula( ) Corredores( ) Refeitório( ) Banheiros( ) Quadra esportiva13- A que horas?( ) 8:00 às 12:00( ) 12h15min às 14h15min( ) 14h15min às 18:00( ) Depois das 18:0014- Qual o número de agressores?( ) 1( ) 2( ) 3( ) 4( ) mais de 415- Qual o motivo da agressão? ___________________________________________16) Você já agrediu alguém?( ) Sim ( ) Não17- Caso respondeu Sim: Por qual motivo?
18- Você já foi penalizado (a)?( ) Sim ( ) Não19- Se você estivesse na rua (parado(a), andando, dentro do carro...) e alguém, montado em uma moto, assaltasse você e levasse alguma coisa sua (anel, corrente, celular, carteira, bolsa...), o que você faria?( ) reagiria( ) ficaria tão assustado (a) que nada faria( ) registraria e comentaria com todo mundo seu inconformismo( ) não registraria a ocorrência, mas comentaria com todo mundo seu inconformismo( ) não reagiria a ocorrência, mas escreveria um artigo contando o que aconteceu20- O que você acha da legalização das drogas ilícitas?( ) concordo( ) não concordo( ) não sei
Anexo 2 – Texto de Luciano HuckPensamentos quase póstumos
Luciano Huck foi assassinado. Manchete do "Jornal Nacional" de ontem. E eu, algumas páginas à frente neste diário, provavelmente no caderno policial. E, quem sabe, uma homenagem póstuma no caderno de cultura. Não veria meu segundo filho. Deixaria órfã uma inocente criança. Uma jovem viúva. Uma família destroçada. Uma multidão bastante triste. Um governador envergonhado. Um presidente em silêncio. Por quê? Por causa de um relógio. Como brasileiro, tenho até pena dos dois pobres coitados montados naquela moto com um par de capacetes velhos e um 38 bem carregado. Provavelmente não tiveram infância e educação, muito menos oportunidades. O que não justifica ficar tentando matar as pessoas em plena luz do dia. O lugar deles é na cadeia. Agora, como cidadão paulistano, fico revoltado. Juro que pago todos os meus impostos, uma fortuna. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa.
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(...)Onde está a polícia? Onde está a "Elite da Tropa"? Quem sabe até a "Tropa de Elite"! Chamem o comandante Nascimento! Está na hora de discutirmos segurança pública de verdade. Tenho certeza de que esse tipo de assalto ao transeunte, ao motorista, não leva mais do que 30 dias para ser extinto. Dois ladrões a bordo de uma moto, com uma coleção de relógios e pertences alheios na mochila e um par de armas de fogo não se teletransportam da rua Renato Paes de Barros para o infinito. Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como tentar fazer este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido tem um trabalho sério e eficiente em sua missão. Meu prazer passa pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas disso. (...)Escrevo este texto não para colocar a revolta de alguém que perdeu o rolex, mas a indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo e concluir --com um 38 na testa-- que o país está em diversas frentes caminhando nessa direção, mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas quase "infantis" para uma sociedade moderna e justa. De um lado, a pujança do Brasil. Mas, do outro, crianças sendo assassinadas a golpes de estilete na periferia, assaltos a mão armada sendo executados em série nos bairros ricos, corruptos notórios e comprovados mantendo-se no governo. Nem Bogotá é mais aqui. Onde estão os projetos? Onde estão as políticas públicas de segurança? Onde está a polícia? Quem compra as centenas de relógios roubados? Onde vende? Não acredito que a polícia não saiba. Finge não saber. Alguém consegue explicar um assassino condenado que passa final de semana em casa!? Qual é a lógica disso? Ou um par de "extraterrestres" fortemente armado desfilando pelos bairros nobres de São Paulo? Estou à procura de um salvador da pátria. Pensei que poderia ser o Mano Brown, mas, no "Roda Vida" da última segunda-feira, descobri que ele não é nem quer ser o tal. Pensei no comandante Nascimento, mas descobri que, na verdade, "Tropa de Elite" é uma obra de ficção e que aquele na tela é o Wagner Moura, o Olavo da novela. Pensei no presidente, mas não sei no que ele está pensando. Enfim, pensei, pensei, pensei. Enquanto isso, João Dória Jr. grita: "Cansei". O Lobão canta: "Peidei". Pensando, cansado ou peidando, hoje posso dizer que sou parte das estatísticas da violência em São Paulo. E, se você ainda não tem um assalto para chamar de seu, não se preocupe: a sua hora vai chegar. Desculpem o desabafo, mas, hoje amanheci um cidadão envergonhado de ser paulistano, um brasileiro humilhado por um calibre 38 e um homem que correu o risco de não ver os seus filhos crescerem por causa de um relógio. Isso não está certo.
Anexo 3 – Texto de FerrézPensamentos de um “correria
Ele me olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto.Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem
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gerar impostos. Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36 prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que estão vivos e num país legal.Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito.Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber. (...)Ainda menino, quando assistia às propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém do que morrer velho como ninguém.Leu em algum lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra. Não acreditava em heróis, isso não! Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto. (...)Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso. (...)A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa.Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio. Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.
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