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  • Os Donos do Poder

    http://groups.google.com.br/group/digitalsource

    Outras obras do autor: Machado de Assis: A Pirmide e o Trapzio / Existe um Pensamento Poltico Brasileiro?

  • R a y m u n d o F a o r o

    Os D o n o s d o P o d e r

    F O R M A O D O P A T R O N A T O

    P O L T I C O B R A S I L E I R O

    3.a edio, revista, 2001

    GLOBO

  • Maria Pompa

  • Nicht nur der Vernunft von Jahrtausenden auch

    ihr Wahnsinn bricht an uns aus. Gefhrlich ist es, Erbe zu sein.

  • SUMR IO

    Prefcio Segunda Edio

    C a p t u l o I ORIGEM DO ESTADO PORTUGUS 1. A guerra, o fundamento da ascendncia dos reis. As bases da monarquia patrimonial; as contribuies e os concelhos 2. Os fundamentos ideolgicos da monarquia: o direito romano 3. O Estado patrimonial e o Estado feudal

    Captulo I I A REVOLUO PORTUGUESA 1. Preliminares da revoluo de 1383-85: a nobreza, a burguesia e dom Fernando 2. A Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a tutela do rei 3. O estamento: camada que comanda a economia, junto ao rei 4. Da aventura ultramarina ao capitalismo de Estado 5. A ideologia do estamento: mercantilismo, cincia e direito

    Captulo I I I

    O CONGELAMENTO DO ESTAMENTO BUROCRTICO

    1. A cidade comercial: a corte barroca e o funcionrio 2. O congelamento e a paralisia do Estado barroco 3. Elite e estamento

    C a p t u l o IV

    O BRASIL AT O GOVERNO-GERAL 1. A inveno ednica da Amrica 2. A integrao da conquista no comrcio europeu 3. Colonizao como prolongamento do sistema de feitorias 4. A colonizao: regime poltico e administrativo das capitanias. Vnculos da colnia com a metrpole

    5. A distribuio de terras: mudana do sentido da sesmaria, com o predomnio do contedo dominial sobre o administrativo

    6. O chamado feudalismo brasileiro

    C a p t u l o V A OBRA DA CENTRALIZAO COLONIAL 1. O governo-geral: causas de sua criao 2. Os municpios e a centralizao 3. Os colonos e os caudilhos: a conquista do serto

  • C a p t u l o VI TRAOS GERAIS DA ORGANIZAO ADMINISTRATIVA, SOCIAL, ECONMICA E FINANCEIRA DA COLNIA 1. A administrao e o cargo pblico 2 . O espectro poltico e administrativo da metrpole e da colnia 3. As classes: transformaes e conflitos 4. A apropriao de rendas: o pacto colonial, monoplios, privilgios

    e tributos

    Captulo V I I OS PRDROMOS DA INDEPENDNCIA I. A vida rural do comeo do sculo XIX: a autarquia agrcola 2. A transmigrao e a frustrada reorganizao poltica e administrativa

    3. O dissdio e a transao

    Captulo V I I I AS DIRETRIZES DA INDEPENDNCIA 1. A tentativa de reorganizao poltica do pas independente 2. O Poder Moderador e a luta parlamentar 3. O sistema poltico do 7 de abril 4. As reformas do 7 de abril: a descentralizao

    Cap tu l o IX A REAO CENTRALIZADORA E MONRQUICA 1. A reorganizao da autoridade: a conciliao geogrfica e a reao centralizadora

    2. As bases econmicas da centralizao 3. Os fundamentos legais da centralizao monrquica

    Cap tulo X O SISTEMA POLTICO DO SEGUNDO REINADO 1. O modelo francs e o ingls 2. O parlamentarismo e o Poder Moderador 3. A representao do povo: as eleies 4. O estamento burocrtico

    Cap tu lo XI A DIREO DA ECONOMICA NO SEGUNDO REINADO 1. Economia dependente, sob a orientao do Tesouro 2. O regime de terras, o agricultor e o comissrio 3. O centro estatal do crdito: o dinheiro e as emisses

    4. O poltico e o especulador

  • Captulo X I I O RENASCIMENTO LIBERAL E A REPBLICA 1. Do liberalismo propaganda republicana 2. A fazenda sem escravos e a Repblica 3. O Exrcito na monarquia e sua converso republicana

    C a p t u l o X I I I AS TENDNCIAS INTERNAS DA REPBLICA VELHA 1. Liberalismo econmico e diretrizes econmicas do perodo republicano

    2. O militar e o militarismo 3. A transio para o federalismo hegemnico: a poltica dos governadores

    C a p t u l o X I V

    REPBLICA VELHA: OS FUNDAMENTOS POLTICOS 1. A fora e a fragilidade da poltica dos governadores. O consulado de Pinheiro Machado

    2. A ordem e a contestao. O novo presidencialismo 3. O sistema coronelista

    C a p t u l o XV MUDANA E RENOVAO 1. O abalo ideolgico e as aspiraes difusas 2. A emergncia do Estado forte e o chefe ditatorial 3. Os novos rumos econmicos e sociais

    C a p t u l o f i n a l A VIAGEM REDONDA: DO PATRIMONIALISMO AO ESTAMENTO

    NOTAS

  • PREFCIO SEGUNDA EDIO

    MONTAIGNE, QUE NEGA AO AUTOR o direito de alterar o texto de um livro

    hipotecado ao pblico, justificou as suas infidelidades ao princpio, com

    este subterfgio resvaladio: J'adjouste, mais je ne corrige pas. Posso

    afirmar, sem receio ao olho malicioso e zombeteiro do francs

    quinhentista, que a tese deste ensaio a mesma de 1958, ntegra nas

    linhas fundamentais, invulnervel a treze anos de dvidas e meditao.

    A forma, todavia, est quase totalmente refundida, outra a disposio

    dos assuntos, adequado o estilo s minhas exigncias atuais. Houve o

    acrscimo de dois captulos e a adio de inmeras notas, ordenadas ao

    fim do volume, para orientar o leitor acerca das fontes do trabalho.

    Os conceitos bsicos patrimonialismo, estamento, feudalismo,

    entre outros esto fixados com maior clareza, indicada a prpria

    ambigidade que os distingue, na cincia poltica. A perplexidade que

    alguns leitores da primeira edio demonstraram, ante uma

    terminologia aparentemente bizarra, estar atenuada, neste novo

    lanamento. Advirta-se que este livro no segue, apesar de seu

    prximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. No raro,

    as sugestes weberianas seguem outro rumo, com novo contedo e

    diverso colorido. De outro lado, o ensaio se afasta do marxismo

    ortodoxo, sobretudo ao sustentar a autonomia de uma camada de

    poder, no diluda numa infra-estrutura esquemtica, que daria

    contedo econmico a fatores de outra ndole. Esto presentes, nas

    pginas que se seguem, os clssicos da cincia poltica, Maquiavel e

    Hobbes, Montesquieu e Rousseau, relidos num contexto dialtico. As

    hipteses e conjeturas, em aberta rebeldia aos padres consagrados,

    inspiram-se no propsito de abarcar, num lance geral, a complexa,

    ampla c contraditria realidade histrica. Um longo perodo, que vai do

    Mestre de Avis a Getlio Vargas, valoriza as razes portuguesas de nossa

    formao poltica, at agora desprezadas em favor do passado

    antropolgico e esquecidas pela influncia de correntes ideolgicas,

  • originrias da Frana, da Inglaterra e dos Estados Unidos, s

    traduzidas nos ltimos cento e cinqenta anos. Na evocao no se

    pode evitar o eu de um longnquo pesadelo, com certas "rabugens de

    pessimismo", como lembrou um amvel crtico, mais amigo do que

    crtico.

    Contra, na elaborao deste ensaio, nas suas duas feies,

    muitas dvidas, que no comprometem a responsabilidade dos

    credores. A maior de todas devo-a a Guilhermino Csar, que, ainda em

    Porto Alegre, no carinhoso convvio de muitos anos, discutiu as

    hipteses e suscitou questes novas, franqueando-me sua biblioteca

    para o estudo e a pesquisa. O prprio ttulo do livro, ao que apurei,

    saiu de uma de suas sbitas inspiraes. Augusto Meyer e Jorge

    Moreira leram os originais. Paulo Olinto Vianna e Slvio Duncan

    cuidaram da reviso, com pacincia e amor mincia. Arthur Cezar

    Ferreira Reis, no preparo desta edio, socorreu-me com preciosas

    indicaes bibliogrficas, acompanhadas do emprstimo do livro raro.

    Amandino Vasconcellos Beleza, com seu vigilante bom gosto, leu os

    originais, aparando erros e atalhando incongruncias. Genolino Amado

    incumbiu-se da reviso das provas tipogrficas, em testemunho de

    generosa amizade. No devo esquecer, neste elenco, o meu editor,

    representado por Jos Otvio Bertaso, que se decidiu aventura e ao

    risco, confiado apenas no mrito discutvel do livro, em homenagem a

    um autor que, sem conhec-lo, enviou-lhe os originais pelo correio

    "alma forte e corao sereno", como dele diria o maior de seus editados,

    Simes Lopes Neto.

    Rio de Janeiro, fevereiro de 1973.

    R. F.

  • C A P T U L O I

    ORIGEM DO ESTADO PORTUGUS

    1. A guerra, o fundamento da ascendncia dos reis. As

    bases da monarquia patrimonial: as contribuies e os

    concelhos

    2. Os fundamentos ideolgicos da monarquia: o direito

    romano

    3. O Estado patrimonial e o Estado feudal

  • 1

    A PENNSULA IBRICA formou, plasmou e constituiu a sociedade sob o

    imprio da guerra. Despertou, na histria, com as lutas contra o

    domnio romano, foi o teatro das investidas dos exrcitos de Anbal,

    viveu a ocupao germnica, contestada vitoriosamente pelos mouros.

    Duas civilizaes uma do ocidente remoto, outra do oriente prximo

    pelejaram rudemente dentro de suas fronteiras pela hegemonia da

    Europa. Das runas do imprio visigtico, disciplinado e enriquecido

    pela cultura dos vencidos, dilacerado em pequenos reinos, gerou-se um

    mundo novo e ardente, que transmitiu sua fisionomia aos tempos

    modernos. Do longo predomnio da espada, marcado de cicatrizes

    gloriosas, nasceu, em direo s praias do Atlntico, o reino de Portugal,

    filho da revoluo da independncia e da conquista. "O reino de

    Portugal" dir, j com anacrnica arrogncia, um annimo escritor do

    sculo XVII " to guerreiro, que nasceu com a espada na mo,

    armas lhe deram o primeiro bero, com as armas cresceu, delas vive, e

    vestido delas, como bom cavaleiro, h de ir para a cova no dia do juzo."

    Dos fins do sculo XI ao XIII, as batalhas, todos os dias empreendidas,

    sustentadas ao mesmo tempo contra o sarraceno e o espanhol,

    garantiram a existncia do condado convertido em reino, tenazmente. A

    amlgama dos dois fragmentos o leons e o sarraceno , ambos

    conquistados com esforada temeridade, criou a nova monarquia,

    arrancada, pedao a pedao, do caos. Do elemento leons lhe veio a

    armadura e a fisionomia, ao elemento sarraceno imps seu molde,

    recebendo, de seu lado, vestgios guardados no carter e no esprito.

    "Estes dois fatos pertencem histria do pas: constituem as fontes

    dessa civilizao."1 No topo da sociedade, um rei, o chefe da guerra,

    general em campanha, conduz um povo de guerreiros, soldados

    obedientes a uma misso e em busca de um destino.

    A singular histria portuguesa, sulcada interiormente com a

    marcha da supremacia do rei, fixou o leito e a moldura das relaes

    polticas, das relaes entre o rei e os sditos. Ao prncipe, afirma-o

  • prematuramente um documento de 1098, incumbe reinar (regnare), ao

    tempo que os senhores, sem a aurola feudal, apenas exercem o

    dominam, assenhoreando a terra sem govern-la.2 Ainda uma vez a

    guerra, a conquista e o alargamento do territrio que ela gerou,

    constitui a base real, fsica e tangvel, sobre que assenta o poder da

    Coroa. O rei, como senhor do reino, dispunha, instrumento de poder,

    da terra, num tempo em que as rendas eram predominantemente

    derivadas do solo. Predomnio, como se ver, no quer dizer

    exclusivismo, nem a sede dinmica, expressiva da economia. A Coroa

    conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imenso

    patrimnio rural (bens "requengos', "regalengos", "regoengos",

    "regeengos"), cuja propriedade se confundia com o domnio da casa

    real, aplicado o produto nas necessidades coletivas ou pessoais, sob as

    circunstncias que distinguiam mal o bem pblico do bem particular,

    privativo do prncipe. A conquista ao sarraceno ou ao inimigo se

    incorporava ao domnio do rei, ao reinado, se no apropriada a terra por

    legtimos ttulos prvios. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, no

    remoto ano de 1140, alude a "todo herdamento e vinhas, e almoinhas, e

    figueiras que para mim tomei nas cercanias de vora". Dom Dinis, em

    1308, lembrava ao concelho de Santarm ser o proprietrio das terras,

    visto que "El Rey Dom Affonso o primeiro Rey de Portugal, que filhou

    Santarm e Lisboa a Mouros, logo em comeo da povoana da terra as

    filhou assinadamente para sy, como filhou todollos outros Reguengos,

    e todallas outras cousas, que ha..."3 Acentue-se, por temor

    generalizao, que a obra de restaurao, j completa no sculo XIII,

    respeitou a propriedade individual. Os morabes, antigos cristos

    arabizados, os descendentes dos colonos africanos e asiticos, os

    sucessores dos sditos e vassalos dos reis de Oviedo e Leo tiveram

    seus bens reconhecidos. Sobravam, todavia, margem desses quistos,

    largos domnios para apropriar: as terras dos mouros, reduzidas, pelo

    extermnio ou pela batalha, a terras sem dono; as terras fiscais dos

    sarracenos, aquelas reservadas a empresas de colonizao ou a

    objetivos vinculados estrutura do Estado; as confiscadas aos

  • particulares, em represlia a crimes ou traies; as que caam sob o

    poder do rei em razo do direito de monhadego ou monaria, isto , o

    direito da Coroa de herdar os bens dos viles (vilani) que morriam sem

    prole.4 Do patrimnio do rei o mais vasto do reino, mais vasto que o

    do clero e, ainda no sculo XIV, trs vezes maior que o da nobreza5

    fluam rendas para sustentar os guerreiros, os delegados monrquicos

    espalhados no pas e o embrio dos servidores ministeriais, aglutinados

    na corte. Permitia, sobretudo, a dispensa de largas doaes rurais, em

    recompensa aos servios prestados pelos seus caudilhos, recrutados,

    alguns, entre aventureiros de toda a Europa.

    Os dois caracteres conjugados o rei senhor da guerra e o rei

    senhor de terras imensas imprimiram a feio indelvel histria do

    reino nascente. A crise de 1383-85, de onde nascer uma nova

    dinastia, a dinastia de Avis, dar a fisionomia definitiva aos elementos

    ainda dispersos, vagos, em crescimento. Um fato quantitativo, o rei

    como o maior proprietrio, ditar, em consonncia com a chefia da

    guerra, a ndole qualitativa, ainda mal colorida, da transformao do

    domnio na soberania do dominare ao regnare. O centro supremo das

    decises, das aes temerrias, cujo xito geraria um reino e cujo

    malogro lanaria misria um conde, impediu que, dispersando-se o

    poder real em domnios, se constitusse uma camada autnoma,

    formada de nobres proprietrios. Entre o rei e os sditos no h

    intermedirios: um comanda e todos obedecem. A recalcitrncia contra

    a palavra suprema se chamar traio, rebeldia vontade que toma as

    deliberaes superiores. O chefe da heterognea hoste combatente no

    admite aliados e scios: acima dele, s a Santa S, o papa e no o

    clero; abaixo dele, s h delegados sob suas ordens, sditos e

    subordinados.6 Excepcionalmente, em ateno ao costume dos

    soldados estrangeiros, vindos da Idade Mdia francesa, a concesso de

    terras acarretava, alm da propriedade, o gozo da soberania, trao de

    cunho feudal. O tempo, girando sob o tropismo da ndole geral do pas,

    se incumbiu de absorver e anular esses pontos extravagantes de direito

    estrangeiro. A independncia da nobreza territorial e do clero, com

  • lastro em seu domnio de terras, frustrou-se, historicamente

    condicionada e tolhida, enferma de uma fragilidade congnita. A

    concesso de senhorio ou de uma vila, filha da liberalidade do rei, no

    importava na atribuio de poder pblico, salvo em medida limitada. A

    Coroa separava nos nobres ricos-homens, infanes e cavaleiros a

    qualidade de funcionrio da qualidade de proprietrio. Seu poder, na

    verdade avultado, derivava da riqueza e no das funes pblicas. Nos

    tormentosos dois sculos iniciais do reino de Portugal traaram-se limites

    ntidos entre o exerccio de um cargo e a propriedade privilegiada. O

    pas se dividia em circunscries administrativas e militares, as

    "terras" ou "tenncias", cujo superior governo cabia a um chefe, o

    "tenens", dentro das quais se constituam distritos, os "prestamos",

    administrados por um prestameiro designado pelo rei. A funo pblica

    de primeiro nvel cabia ao nobre, senhor da terra ou alheio ao solo

    jurisdicionado. Igualmente, as circunscries judiciais (julgados) e as

    circunscries fiscais (almoxarifados) dependiam, no provimento dos

    cargos, da exclusiva escolha rgia. O corpo de funcionrios recebia a

    remunerao das rendas dos casais, aldeias e freguesias, dos

    estabelecimentos no beneficiados com a imunidade fiscal. Os cargos

    eram, dentro de tal sistema, dependentes do prncipe, de sua riqueza e

    de seus poderes. Extremava-se tal estrutura da existente na Europa

    contempornea, marcando um prematuro trao de modernidade.7 O

    rei, quando precisava do servio militar da nobreza territorial, pagava-a,

    como se paga a um funcionrio. As soldadas marcam o vnculo de

    subordinao, origem das futuras quantias, periodicamente

    distribudas, e que daro causa, no momento de apertura do tesouro

    real no sculo XIV, converso em terras, largamente doadas por um rei

    aparentemente prdigo.

    Entre o esquema, traado pela lgica da histria, e a realidade,

    convulsionada por foras em tumulto, h um salto e muitas

    discordncias. O lao de subordinao entre o rei e a nobreza territorial

    e o clero no se fixou sem muitas escaramuas e muitas resistncias. A

    fraqueza da classe territorial, derivada das fronteiras inscritas na

  • transferncia da terra, se robusteceu, em movimento paralelo

    expanso dos poderes rgios, com a explorao das imunidades dos

    domnios. Entre a Coroa e a nobreza trava-se, em direo oposta

    ordem esboada nos desgnios da realeza, uma longa e porfiada batalha

    da qual resulta a derrota das veleidades feudais. As doaes de terras,

    em retribuio a servios de guerra ou aos servios da estirpe,

    privilegiavam os nobres com a jurisdio privativa sobre os moradores e

    a completa iseno de tributo. Sob esta base, idntica da fidalguia

    encontrada pela dinastia borgonhesa ou afonsina, furtava-se a

    aristocracia do garrote da realeza.8 Enquanto a imunidade tributria

    permaneceu indisputada, no curso dos sculos, salvo com a sisa,

    fixada para todos no sculo XIV, a jurisdio privativa no gozou da

    mesma sorte. Percebeu bem a realeza que o poder de julgar envolve, em

    ltima anlise, o poder de sujeitar o homem a uma camada

    intermediria e autnoma. Sem a jurisdio, o sdito ficaria liberto da

    obedincia, preso apenas a uma lealdade de segundo grau, indireta,

    convertido o poder supremo em fico. Da a doutrina, j sustentada

    tenazmente no perodo da dinastia borgonhesa: "O direito e costume

    geral do reino, dizia el-rei dom Dinis em 1317, eram e tinham sido

    sempre que em todas as doaes rgias se entendesse reservada para a

    Coroa a justia maior, a suprema jurisdio, em reconhecimento ao

    maior senhorio".9 A medida que estendiam a atribuio jurisdicional, os

    reis conquistavam sditos, os quais, por um movimento convergente,

    procuravam fugir s prerrogativas da nobreza e do clero. Lavradores,

    artesos e mercadores despontavam como aliados da Coroa, reforados

    com a solidariedade da organizao municipal, os concelhos. O velho

    direito de Castela, consolidado no Fuero Viejo, vigente em Portugal,

    reservava ao rei, nas doaes ou nos senhorios, certas prerrogativas

    (justia, moeda, fossado ou jantar), tidas como inerentes sua

    preeminncia na sociedade poltica. Algumas vezes, verdade, margem

    dos padres gerais, premida pelos variados lances a que se expunha, a

    monarquia transigia em doaes peculiares, com o abandono de suas

    prerrogativas.

  • A exacerbao dos privilgios da nobreza territorial e do clero,

    responderam os reis com o incremento de uma instituio,

    pretensamente recebida da velha, e em alguns momentos influente,

    ordem romana. O municpio, arma comum estratgia poltica da

    realeza na Europa, mereceu especial estmulo, na mesma medida em

    que se ensoberbeciam os potentados rurais. Os concelhos, conservados

    tenuemente pela tradio, no incio desvinculados de carta de foral,

    pouco representavam, no curso dos dois primeiros sculos da

    monarquia portuguesa.10 Temerosa do domnio autnomo das

    camadas que a apoiavam o clero e a nobreza a realeza deslocou

    sua base de sustentao, criando as comunas e estimulando as

    existentes, no incremento da realidade capaz de lhe proporcionar

    suporte poltico, fiscal e militar. Buscava o trono a aliana, submissa e

    servil, do povo o terceiro estado. J Afonso II (f 1223), na luta contra

    o clero, pde bem avaliar a fora desse novo instrumento poltico, ao

    enfrentar, ajudado pela plebe furiosa, um poderoso bispo e seu cabido.

    Os forais a carta de foral , pacto entre o rei e o povo, asseguravam

    o predomnio do soberano, o predomnio j em caminho do absolutismo,

    ao estipularem que a terra no teria outro senhor seno o rei. Com a

    instituio dos concelhos logrou a poltica medieval ferir a prepotncia

    eclesistica, num meio que levaria a subjugar a aristocracia. A esta

    razo se agregava outra, inspirada na ndole militar do pas, em

    estreita conexo com o fundamento poltico do alargamento da forma

    municipal. Decretada a criao do concelho, que deveria organizar

    uma povoao, reedific-la ou reanim-la, procurava o rei impor-lhe o

    dever de defend-la militarmente contra seus inimigos, os mouros ou

    os vizinhos estrangeiros. Criava-se, obediente monarquia, uma milcia

    gratuita, infensa s manipulaes da nobreza ou do clero batizados

    os antigos municeps e castellanus com o nome de alcaide, palavra

    sugerida pela invaso rabe. Abria-se, desta forma, um campo neutro

    aos privilgios aristocrticos, muitos deles os coutos e as honras

    isentos da prestao militar, paga pelo rei quando dela necessitava.

    Finalmente, os concelhos somavam renda do prncipe, oriunda de seu

  • patrimnio fundirio, largas contribuies. As imunidades da

    propriedade aristocrtica no permitiam que a casa real dela retirasse

    os avultados meios de que carecia, para as despesas da guerra e de

    seu incipiente corpo burocrtico. Este ltimo vnculo entre as

    contribuies e o tesouro rgio suscita a comercializao, a reduo

    em riqueza mvel, do patrimnio do soberano. Por a se canalizar o

    influxo, poderoso dentro de dois sculos, de carter patrimonial do

    Estado, indistinta a riqueza particular da pblica. Os mordomos, sob a

    chefia do almoxarife, todos incipientes funcionrios pblicos, proviam a

    casa real das arrecadaes nos mais distantes lugarejos. A concesso

    de forais permitiu melhor sistema de cobrana, com o arrendamento

    dos direitos aos concelhos, mais tarde substitudo pelo arrendamento

    a particulares. Facilitava-se com a medida, alm disso, o amoedamento

    das arrecadaes, numa prematura transformao da economia

    natural para a economia monetria. "Fundar uma vila ou povoao, ato

    de benemerncia rgia, era converter em moeda sonante o produto

    bruto da fazenda agrcola. Os impostos locais estabelecidos, as multas

    na quantidade dos delitos passveis dessa pena, a prestao ajustada

    pelos direitos de proprietrio abandonados, tudo isso constitua receita

    considervel. Em cada povoao os tabelies pagavam, pelo exerccio do

    cargo, uma anuidade. E no desdenhava o dador do foral pequenos

    mananciais de renda, alguns singulares. E destes a disposio no

    estatuto da Covilh, segundo o qual se cobrava das mulheres mundanas

    um soldo cada ms, pelo direito de exercerem a profisso"...11

    Guerra, ascendncia do rei com a rede de seus agentes cobrindo

    o pas, controlando-o e dirigindo-o, domesticao sem aniquilamento da

    nobreza so os traos que imprimem o carter sociedade nascente.

    Um brao, dia a dia mais vigoroso, completar o quadro, com a entrada

    do povo nos clculos polticos, amparado nos concelhos, sob o ditado da

    velha feio romana. Astcia e pacincia erguero, do desprezo e do

    alheamento, uma classe, com a qual o soberano dividir lucros e moeda:

    ter xito a caa ao tigre por meio da lebre.12 Os ingressos da Coroa

    levaro o sangue, o calor, o estmulo e a vida a todas as atividades,

  • agricultura, comrcio e indstria do reino. H um jogo de presses e

    influncias recprocas, que associam o predomnio do soberano nas

    rendas mais altas e nos misteres mais humildes. A propriedade do rei

    suas terras e seus tesouros se confunde nos seus aspectos

    pblico e particular. Rendas e despesas se aplicam, sem discriminao

    normativa prvia, nos gastos de famlia ou em obras e servios de

    utilidade geral.

    O rei, na verdade, era o senhor de tudo tudo hauria dele a

    legitimidade para existir , como expresso de sua autoridade

    incontestvel, bebida vorazmente da tradio visigtica e do sistema

    militar. Discernir e especificar a fonte dos ingressos da realeza ser

    trabalho de revelao da prpria estrutura econmica do reino.

    Mostrar a anlise a base do poder supremo, sua estrutura e

    profundidade, fonte das remuneraes aos guerreiros, funcionrios

    em embrio, homens da corte, letrados em flor. No h dvidas: a parte

    fixa, permanente, previsvel dos rendimentos do prncipe flui da

    propriedade fundiria (os bens reguengos, "regalengos", "regoengos",

    "regeengos"), senhorio territorial como outro qualquer, seja da nobreza

    ou do clero, singularizado com o fim de servir ao chefe do Estado e se

    destinar, eventualmente, a objetivos que hoje se diriam pblicos. Esta

    propriedade territorial sofria duas modalidades de explorao: a

    indireta e a direta. A explorao indireta, por sua vez, gerava duas

    espcies de rendas: uma que se aproxima da que caracteriza o moderno

    arrendamento, temporrio o cultivo da herdade; na outra, o lavrador

    detinha o domnio til do solo, transmissvel entre vivos e por herana,

    revertendo ao rei o foro. Na gesto direta do imvel, os colonos se

    obrigavam a prestar, gratuitamente, alguns dias de trabalho por ano,

    no excludo o salrio, em moeda ou in natura. Esta a explorao

    direta era a regra do trato da pecuria, adotada tambm, em menor

    parcela, nas culturas arvenses, vinhas e olivais.13 Dessa circunstncia

    o rei "principal lavrador da nao", com celeiros e adegas espalhados

    por todos os confins de seus domnios, atarefados os seus mordomos

    na cobrana de foros e rendas concluiu-se ser a monarquia

  • portuguesa uma "monarquia agrria".14 O fato, repita-se, no pode ser

    posto em dvida: as rendas do soberano, na parte mais considervel,

    fluam da terra. A concluso, todavia, aparentemente lgica, no se

    concilia com as demais caractersticas do reino, em que o soberano se

    confunde com o titular, pelo menos eventual ou sobreproprietrio, de

    toda a riqueza e de toda a economia. As garras reais, desde cedo, se

    estenderam ao comrcio, olhos cobiosos no comrcio martimo. J nos

    meados do sculo XIII, estimulado pela conquista de Lisboa em 1147,

    o comrcio martimo mostra os sinais do seu futuro prximo, ativo com

    as trocas dos produtos da Inglaterra, Flandres, Frana, Castela e

    Andaluzia.15 Dispunha o pas, para o trfico internacional, de

    assentada economia de sal, pescado, vinhos, azeite, frutas, couros,

    cortia produtos que lhe proporcionavam os txteis flamengos e

    italianos, o ferro da Biscaia, as madeiras do norte, a prata da Europa

    central e oriental, as especiarias, o acar.16 Portugal, alm disso,

    cobria-se de feiras, ardentes e ativas na promoo do comrcio interno,

    j vinculado navegao internacional. Tudo dependia, comrcio e

    indstria, das concesses rgias, das delegaes graciosas,

    arrendamentos onerosos, que, a qualquer momento, se poderiam

    substituir por empresas monrquicas. So os fermentos do

    mercantilismo lanados em cho frtil. Dos privilgios concedidos

    para exportar e para importar no se esquecia o prncipe de

    arrecadar sua parte, numa apropriao de renda que s

    analogicamente se compara aos modernos tributos. No fim do sculo

    XIV a sisa, devida ao tesouro pelos consumidores na compra e venda e

    na troca de mercadorias, ocupa o primeiro lugar no oramento,

    recaindo sobre toda a gente, nobres, eclesisticos e plebeus, com o

    rompimento do privilgio da imunidade. Era o comrcio, atestado num

    fato fiscal, atravessando, sob o patrocnio soberano, todas as camadas

    da populao, estimulado na organizao dos concelhos. Nas fendas da

    monarquia agrria, mais fico do que realidade, cresciam os outros

    rendimentos da Coroa. Da propriedade no fundiria do domnio

    eminente e no efetivo bem como do exerccio da soberania ainda mal

  • definida decorriam variadas, mltiplas, coloridas e pitorescas

    contribuies. Ligado s origens da monarquia destaca-se o quinto da

    guerra, institudo na luta contra os sarracenos, que se materializava na

    taxa de vinte por cento sobre os despojos tomados ao inimigo, fonte dos

    dispersos domnios reais em todo o territrio. Uma tentativa de

    classificao, sem desfigurar a realidade com padres conceituais

    modernos: "a) os rditos com origem na agricultura e no pastoreio

    cnones, pores, direituras e miunas dos herdamentos rgios,

    jugadas dos herdamentos dos herdadores pees, o montado pago sobre

    certas pastagens, as vendas da produo direta; b) rditos

    provenientes da circulao interna e do mercado portagens,

    aougagem, alcavalas; c) os rditos provenientes do comrcio externo

    dzimas, portagens; d) as multas judiciais, ou calnias e coutos; e)

    rditos provenientes da atividade industrial vieiros e minas, dzima

    do pescado, taxa de mesteres; f) servios prestados ao rei ou aos oficiais

    rgios geiras de malados jniores e outros, almocreverias e carretos,

    servio de remadores na frota real [...] ou suas compensaes

    monetrias; g) jantar ou colheita; h) emisses de moeda.

    Extraordinariamente, recorria-se ao pedido ou finta ou talha".17 No

    so de desdenhar, ainda, as rendas colhidas da dzima eclesistica, das

    penses de tabelionato e da justia civil. Dessa ampla rede vinham os

    tesouros rgios, moedas, ouro e prata, que avultam nos testamentos

    dos soberanos, numa indicao da nascente economia monetria. A

    simplificao da cobrana, j se notou, levou ao calculado incremento

    da ordem municipal. A Coroa criava rendas de seus bens, envolvia o

    patrimnio particular, manipulava o comrcio para sustentar o squito,

    garantia a segurana de seu predomnio.

    Este o primeiro ato do drama. O sdito o sdito qualificado, o

    nobre, j absorvido o clero nas malhas do poder supremo, e o sdito

    sem esporas no paga servios, tangveis ou abstratos, como o

    contribuinte moderno. Um poderoso scio, scio e patro, tosquia a

    melhor l, submetendo o proprietrio nominal obrigao de cuidar da

    ovelha. A nobreza, agarrada aos velhos privilgios, ainda se manter no

  • nvel de companheira do soberano. Um pouco mais e ela, j cercada,

    com as unhas embotadas, dividir, domesticada depois de uma

    revoluo, o segundo lugar com a burguesia. A ideologia completar a

    obra, vencendo as conscincias e roubando imaginao o estandarte

    da resistncia. O Estado patrimonial, implacvel nos seus passos, no

    respeitar o peso dos sculos, nem os privilgios da linhagem antiga.

    2

    O CONTEDO DO ESTADO, capaz de ajustar juridicamente as relaes entre

    o soberano e os sditos, formou-se de muitos fragmentos, colhidos

    numa longa tradio. O ponto inicial, quanto ao carter poltico, pode

    ser situado na constituio de Diocleciano (285-305). O direito ser o

    de Justiniano (527-65), cujas codificaes se propagaram no ocidente,

    modelo indelvel do pensamento jurdico.

    Fixados os dois marcos a organizao poltica e o conjunto de

    regras jurdicas no se presume uma continuidade sem quebra, no

    curso de sete sculos. A seqncia se funda no aproveitamento, ao

    sabor das circunstncias sociais, de retalhos e restos vivos, conjugados

    para estruturar uma ideologia, s esta coerente. O trabalho de

    reconstruo espiritual deformar muitas realidades, roubadas de sua

    significao ntima, transfiguradas em corpos diferentes, de cor

    diversa, com outra fisionomia. H o trabalho surdo, em que as idias

    se filtram nos costumes, e o trabalho de criao consciente, ao modo de

    uma obra de arte, que a Escola de Bolonha (sculos XII e XIII)

    sistematizar. De uma e de outra fonte correro as guas para se

    encontrar no Estado moderno: o Estado que consagra a supremacia do

    prncipe, a unidade do reino e a submisso dos sditos a um poder

    mais alto e coordenador das vontades. No fundo, os sinos da catedral

    submersa, que os godos e os rabes no puderam calar.

    As colunas fundamentais, sobre as quais assentaria o Estado

    portugus, estavam presentes, plenamente elaboradas, no direito

  • romano. O prncipe, com a qualidade de senhor do Estado, proprietrio

    eminente ou virtual sobre todas as pessoas c bens, define-se, como idia

    dominante, na monarquia romana. O rei, supremo comandante militar,

    cuja autoridade se prolonga na administrao e na justia, encontra

    reconhecimento no perodo clssico da histria imperial.18 O racionalismo

    formal do direito, com os monumentos das codificaes, servir, de outro

    lado, para disciplinar a ao poltica, encaminhada ao constante rumo

    da ordem social, sob o comando e o magistrio da Coroa.

    O direito escrito dos visigodos se construiu sobre o direito romano

    e a influncia do clero, penetrada esta dos rasgos principais das antigas

    codificaes justinianas. Bem verdade que os costumes, alm do

    extenso territrio das prticas extralegais, conservaram carter godo,

    sobrepondo-se, em muitos assuntos, ordem jurdica formalizada. De

    outro lado, a disperso da autoridade, fenmeno geral na Idade Mdia,

    conspirava em favor do predomnio do direito costumeiro do costume

    da terra, rplica continental do Common Law. Sobre este manto de

    muitas cores e de muitos retalhos, o direito romano j se impe como o

    modelo do pensamento e o do ideal de justia uma ideologia ainda em

    formao, germinando obscuramente. No subsistiria se no a

    fecundasse o adubo dos interesses, que se aproveitam da armadura

    espiritual, conservando-a por fora e dilacerando-a na intimidade. O

    clero, desde o distante sculo VI, convertido o rei visigtico ao

    catolicismo, trabalhou para romanizar a sociedade. Serviu-se, para esta

    obra gigantesca, do direito romano, o qual justificava legalmente seus

    privilgios, revelando-se o instrumento ideal para cumprir uma misso e

    afirmar um predomnio. A Pennsula Ibrica, unida cabea papal,

    absorveu as lies dos clrigos-juristas, que se espalham pela Europa,

    sobretudo a partir dos sculos XI e XII. Culmina este movimento, j

    contestada a supremacia do clero, com as obras jurdicas e legislativas

    de Afonso X (1267-72), rei de Castela, autor do monumento das Siete

    partidas, e do rei portugus Afonso III (1246 ou 1248-79) com sua

    ordenao sistemtica sobre o processo.19

    O domnio do clero e da nobreza, empreendido pelo rei,

  • encontrou, nesse instrumento, os meios espirituais de justificao. A

    obra dos juristas e imperadores romanos serviu, v-se logo, a fins

    opostos aos previstos pelo clero, num movimento que d contedo novo

    s formaes ideolgicas. As duas fases dessa luta obedecem aos

    padres, acabados e perfeitos, do jurismo justinianeu. A primeira

    batalha, rijamente estimulada pelos soberanos portugueses, buscou

    nos municpios romanos a forma adequada instituio dos concelhos,

    de cujo expressivo papel histrico j se fez meno. Certo, uma viva

    polmica se instaurou, a este propsito, nas letras portuguesas e

    europias, com graves danos tese sustentada por Herculano e

    Gama Barros, que no hesitaram em ver na organizao municipal dos

    concelhos a face romana.20 No centro da divergncia h uma

    incompreenso: o municpio portugus se filia origem romana, mas

    sua feio ideolgica, no sua continuidade real. A forma, o modelo, a

    estrutura so romanos o contedo, os fins a que se destina, as

    funes que desempenha so modernos, e, em muitos pontos,

    incompatveis com o molde abstrato antigo. Este o sentido, de resto,

    da influncia romana. Por isso, os princpios justinianeus apareceram

    em certo momento, no momento de atuar, corrigir e dominar, e no em

    todos os tempos. A incorporao dos enxertos velhos se opera

    seletivamente, infundindo vida a um corpo apagado, sem alma prpria.

    No importa a observao em afirmar o papel passivo da ideologia: ela

    pressiona, se interpenetra, ou, em casos extremos, frustra a realidade.

    Impossvel ser, todavia, dissoci-la do sistema ou da estrutura social,

    dentro da qual vive e atua, perecendo se afastada do hmus que a

    tonifica. Igualmente, a segunda fase do movimento lanado para erguer

    o prncipe sobre as camadas que o querem tolher, dividindo com ele o

    poder, se apia sobre o direito romano. O primeiro passo ser o

    depuramento do direito romano do direito cannico21, dissonncia que

    traduz a discrdia entre o clero e a Coroa. Entram em cena, nesta luta,

    os letrados, filhos diretos ou indiretos da Escola de Bolonha (sculos XII

    e XIII) e das universidades europias, progressivamente implantadas.

    Define-se, a partir da corte, a distino entre o dominare, reservado

  • nobreza territorial, e o regnare, exclusivo do prncipe, embrio da

    futura doutrina da soberania, cujo proprietrio ser o rei. Refinado o

    pensamento, o conceito de propriedade do reino se elevar para

    reconhecer ao soberano a qualidade de defensor, administrador e

    acrescentador, teoria que assenta sobre o domnio eminente e no real.

    So as vsperas vsperas de alguns sculos do absolutismo. Ao

    tempo que combatia o particularismo da nobreza territorial, a recepo

    do direito romano no favorecia os interesses comerciais. Raciocnio

    simplificador poderia, ao situar uma face do problema, evocar a outra,

    como se, entre as duas, no se interpusesse, mais alto, o prncipe,

    titular de grandes, poderosos e extensos interesses econmicos. O

    comrcio j criara, no seio da Idade Mdia, o seu prprio direito,

    fundamento e origem do moderno direito comercial com suas

    sociedades comerciais e os ttulos de crdito. A Inglaterra, me do

    capitalismo moderno, pde desenvolver seus instrumentos legais de

    relaes econmicas, sem que o direito romano exercesse papel de

    relevo. A direo que suscitou o recebimento do direito romano ser de

    outra ndole: a disciplina dos servidores em referncia ao Estado, a

    expanso de um quadro de sditos ligados ao rei, sob o comando de

    regras racionais, racionais s no sentido formal. A calculabilidade do

    novo estilo de pensamento jurdico, reduzida ao aspecto formal, no

    exclui, na cpula, o comando irracional da tradio ou do capricho do

    prncipe, em procura da quebra aos vnculos das camadas nobres. No

    ganhou a justia foros de impessoalidade, assegurada nas garantias

    processuais isentas da interferncia arbitrria dos julgados. O cronista

    do sculo XV, Ferno Lopes, no consegue repudiar, embora no aprove

    no ntimo, os desvairados atos de justia de dom Pedro I (1367). Usou

    o desesperado amante de Ins de Castro "de justia sem afeio", sem

    que a igualdade de tratamento a todos os delinqentes traduzisse a

    moderna igualdade perante a lei. Graduava as penas de acordo coro

    seu enlouquecido juzo, sem obedincia a cnones pr-fixados. A um

    adltero mandou, em sua cmara, "cortar-lhe aqueles membros que os

    homens em maior apreo tm". Por sua prpria mo, meteu a tormento

  • um dos assassinos de Ins de Castro, sem poupar chicotadas aos

    criminosos. Justia salomnica, cuja caricatura fez do governador

    Sancho Pana o modelo dos juizes do caso a caso, espectro racional ao

    servio das decises arbitrrias. As instituies no gozam de campo

    prprio de atuao, visto que esto subordinadas ao poder do prncipe,

    capaz de decidir da vida e da morte, reminiscncia prxima do rei-

    general, competente para julgar todos os soldados. Verdade que, nos

    calcanhares, a nobreza territorial, dominada mas no domesticada,

    rosna ameaas rancorosas, espreita do momento de lanar-lhe os

    dentes, cautelosa.

    O renascimento jurdico romano, estimulado conscientemente

    para reforo do Estado patrimonial, serviu de estatuto ascenso do

    embrionrio quadro administrativo do soberano, grmen do

    ministerialismo. Ainda aqui, a tradio visigtica infiltrou, no reino

    recm-constitudo, os fluidos poderosos das idias e instituies

    romanas. As ondas da era de Diocleciano, contaminadas do

    orientalismo dos prncipes despticos, atingem o mundo novo,

    ditando-lhe, em acolhimento seletivo, a ordem antiga. Os funcionrios

    romanos se transmutaram na aristocracia goda, que se afastou da sua

    imagem original pela riqueza territorial. O papel da ltima, porm,

    sofreu limites severos na sua independncia ou autonomia, com a

    poltica real de agrupar, na corte, os nobres, atrelados a funes

    pblicas, que os amarravam ao poder do soberano. Por via do leito,

    cavado no sculo III, no lograram as impetuosas guas

    descentralizadoras apagar a organizao antiga. A Pennsula Ibrica

    teria sido conquistada, mas no germanizada, fiel a uma utopia perdida,

    atuante como uma viso potica, capaz de imantar as imaginaes, se

    os interesses a evocarem.22 O elemento catalisador das baronias

    territoriais foi o officium palatinum ou aula regia, criao de

    Diocleciano, composta dos principais oficiais da monarquia,

    magistrados superiores, civis e militares, rgo onde se fundiam a

    aristocracia burocrtica dos romanos e a militar dos godos. O

    recrutamento, condicionado pela tradio, obedecia liberdade do rei,

  • que nela inclua servos de sua casa, ao lado de senhores territoriais.

    Consultiva por natureza, pesava, sem embargo, nas decises da

    realeza, capaz at de depor um rei, condenado ao desterro aviltante

    como acontecera com o desventurado Vamba (672-80). Mais importante

    do que a aula regia e os conclios destitudos de atribuies diretas de

    comando, era o corpo ministerial, responsvel pelos negcios da Coroa,

    antecipao da organizao moderna, sem ntida separao de

    competncia, indistinto o patrimnio rgio do patrimnio da nao.

    Incluam-se nesse conselho: "o comus thesaurorum, a um tempo

    almoxarife e ministrio da fazenda; o comus patrimoniorum, uma espcie

    de ministro do imprio; o comus notoriorum, semelhante a um

    procurador-geral da Coroa; o comus spathiorum, general-em-chefe das

    guardas do rei (cousa diversa do exrcito, que ento se formava com os

    contingentes da nobreza e dos concelhos); o comus scanciorum, mordomo-

    mor; o comus cubiculi, camareiro-mor; o comus stabuli, estribeiro-mor; e,

    finalmente, o comus exercitus, ministro da guerra".23 Esta ordem

    poltica, com a conquista sarracena, se desintegrou desintegrou-se

    mas no se perdeu, conservada na tradio. A reconquista a

    revalorizou, nico padro espiritualmente mantido no renovo do poder

    real. O baro no se extremou, nem se estereotipou no feudalismo: as

    populaes s aceitam, hipnotizadas por um estilo antigo, a nica

    predominncia do rei, chefe dos exrcitos. O baro define sua

    sobranceria como funcionrio e no como senhor os agrupamentos de

    moradores, as behetrias, reivindicam autonomia, s obediente ao chefe

    supremo.24 H um trao do feudalismo mas no o feudalismo como

    instituio. O direito pblico que define as relaes entre o rei e os

    sditos continua visigtico25, assegurando as prerrogativas

    intangveis do rei. No sculo XV, esta linha de pensamento levaria um

    rei a se reconhecer titular do poder absoluto. A organizao ministerial

    renasceu, ela tambm, dos escombros da monarquia visigtica, por

    sua vez impregnada de romanismo. O mais elevado cargo, exercido sob o

    direto comando do rei, modifica-se, quanto preeminncia, tal como

    na ordem visigtica, de acordo com as condies do reino. Sob as

  • aperturas da guerra de reconquista e de definio do pas, a principal

    funo caber ao comandante do exrcito, comandante superior na

    ausncia do rei o alferes-mor (signifer). Esta funo, simbolizada na

    competncia para levar o pendo do rei, cabia, em tempo de paz, a um

    escudeiro. No sculo XIII, os personagens mais importantes do reino, os

    que mais assiduamente freqentavam o rei, eram os guardas dos livros

    dos rditos da Coroa (recabedo regni): o alferes, o mordomo e o

    chanceler. O chefe da administrao civil, equiparado ao alferes, era o

    mordomo da corte (mordomus curiae). Sob a influncia inglesa, em 1382,

    criaram-se os postos de condestvel e marechal da hoste, cabendo ao

    primeiro superintender o exrcito e tomar-lhe a vanguarda, cargo que,

    como o de maior honra do reino, coube a Nuno Alvares, durante a crise

    de 1383-85.26 Ao marechal da hoste se atribuam as funes de

    primeiro auxiliar do condestvel, com as funes de chefe dos rgos

    judicirios em campanha.27 indistino das atribuies, sucede, sob

    a presso dos juristas, uma organizao de competncias cada vez

    mais fixas. H, portanto, uma linha ideolgica contnua entre o imprio

    de Diocleciano e o reinado da reconquista: linha cortada de muitos

    acidentes, reconstituda pelos letrados, no limiar da Renascena. "Para

    acabar de destruir a preponderncia e at o equilbrio dos elementos

    polticos a pena do jurista, mais pesada que o montante do soldado,

    porque representava a inteligncia, achava-se na balana ao lado do

    cetro. Educados na admirao da sociedade romana na poca do

    imprio, deslumbrados pela indubitvel superioridade das suas

    instituies civis sobre as rudes e incompletas usanas tradicionais da

    idade mdia, os letrados acolhiam com o mesmo culto supersticioso as

    mximas da poltica desptica dos csares." (O monge de Cister, cap.

    XVII.) No antecipemos, porm, a hora do absolutismo, nem a hora

    singular de Joo das Regras, capaz de formar, com suas mos cultas e

    astutas, uma nova dinastia, sada da espada da nao popular.

  • 3

    Os MENCIONADOS FUNDAMENTOS SOCIAIS e espirituais renem-se para formar

    o Estado patrimonial. A realidade econmica, com o advento da

    economia monetria e a ascendncia do mercado nas relaes de troca,

    dar a expresso completa a este fenmeno, j latente nas navegaes

    comerciais da Idade Mdia. A moeda padro de todas as coisas,

    medida de todos os valores, poder sobre os poderes torna este

    mundo novo aberto ao progresso do comrcio, com a renovao das

    bases de estrutura social, poltica e econmica. A cidade toma o lugar

    do campo. A emancipao da moeda circulante, atravessando pases e

    economias at ento fechadas, prepara o caminho de uma nova ordem

    social, o capitalismo comercial e monrquico, com a presena de uma

    oligarquia governante de outro estilo, audaz, empreendedora, liberta de

    vnculos conservadores.28 Torna-se possvel ao prncipe e ao seu estado-

    maior organizar o Estado como se fosse uma obra de arte, criao

    calculada e consciente. As colunas tradicionais, posto que no

    anuladas ou destrudas, graas aos ingressos monetrios, ao exrcito

    livremente recrutado e aos letrados funcionrios da Coroa, permitem a

    construo de formas mais flexveis de ao poltica, sem rgidos

    impedimentos ou fronteiras estveis.29 o Estado moderno, precedendo

    ao capitalismo industrial, que se projeta sobre o ocidente.

    Na aparente seqncia sem acidentes, que parte da guerra e

    amadurece no comrcio, com o prncipe senhor da espada e das trocas,

    h um srio problema histrico. Seria a nova construo poltica um

    acontecimento s possvel depois da runa do feudalismo ou teria ele

    uma linha prpria de crescimento, sem vnculo necessrio com o

    sistema reinante na Europa central? A questo, de feitio

    enganadoramente terico, tem largo alcance no tempo: ser uma das

    determinantes que explicar a histria da sociedade brasileira. Sua

    ressonncia alcanar o sculo XX, envolvendo apaixonada polmica,

    ditando a interpretao histrica da estrutura econmica vigente. No

    bojo da tese central h outras duas: o feudalismo na Pennsula Ibrica

  • e em Portugal e o feudalismo no Brasil.

    H um dogma, frio, penetrante, expansivo, que pretende

    comandar a interpretao histrica. A sociedade capitalista, no

    ocidente, se gerou das runas da sociedade feudal. A era capitalista,

    caracterizada pela propriedade da burguesia dos meios de produo e

    da explorao do trabalho assalariado, teria seu ponto de partida no

    sculo XVI. Os acontecimentos singulares dessa poca as navegaes

    e os descobrimentos, as colnias e os novos mercados aceleraram

    uma transformao fundamental da histria, convertida, pelo seu

    volume, de quantitativa em qualitativa, segundo o enunciado de uma

    lei da dialtica. A produo da economia natural, com trocas apenas do

    suprfluo, cedeu o lugar s manufaturas, iniciando o irreversvel e fatal

    movimento da acumulao do capital, que expropriou as terras dos

    produtores, separando-os, tambm na produo artesanal, dos meios

    de produo. Rompe-se, com estas alavancas, o mundo feudal,

    substitudo pelo mundo capitalista, este aniquila o primeiro, com armas

    que, um dia, se voltaro contra o novo sistema.30 O feudalismo, fase

    necessria no ocidente europeu, seria um momento da diviso do

    trabalho, que se projeta em formas diversas de propriedade. Sucedeu

    ao primeiro estgio, o tribal, o perodo estatal e comunal, alcanando o

    sistema feudal, preldio da era capitalista. Cidade e campo,

    polarizados com a propriedade territorial e corporativa,

    respectivamente, se identificam numa ordem patriarcal e hierrquica.31

    Feudalismo e economia natural seriam termos correlatos.32 O ponto

    importante, que caracteriza a economia da Idade Mdia, identificada em

    bloco com o feudalismo, reside na propriedade dos meios de produo.

    Regia, antes do advento do capitalismo, a pequena indstria, calcada

    na propriedade do arteso sobre os meios produtivos, e, no campo, a

    agricultura de lavradores limitados a plantar para as suas

    necessidades, ou pouco mais. "Os meios de trabalho a terra, os

    implementos agrcolas, a oficina, as ferramentas eram meios de

    trabalho dos indivduos, destinados to-s ao uso individual, e,

    portanto, necessariamente pequenos, minsculos, limitados. Por isso

  • mesmo pertenciam, em regra, ao prprio produtor."33 O tear individual

    cedeu lugar ao tear coletivo, a roca foi substituda pela mquina de fiar

    a produo perde o carter individual, entregue a foras coletivas,

    que convertem o trabalho em mercadoria, degradando-o condio de

    coisa, perdida a identidade do homem na ndole annima de seus

    produtos. Inegvel, no quadro medieval, alm da feio idealizadora, a

    cor idlica, adequada para se opor ao negro painel do capitalismo.

    Idade Mdia e feudalismo, reduzido este, fundamentalmente, a uma

    forma de trabalho, se confundem. Dela e s dela, imperativamente

    brota o capitalismo, filho das contradies aninhadas no seu seio:

    uma classe oprimida, a burguesia das cidades, se ergue contra os

    nobres, esmagando-os, primeiro no campo econmico e depois na

    arena poltica. Outra conseqncia do modelo marxista: o capitalismo,

    responsvel pela runa feudal, o capitalismo das manufaturas, fase

    primeira do capitalismo industrial. Isto no exclui, verdade, que, a

    seu servio, em pases diferentes, ele se projete no capitalismo

    comercial, caracterizado na troca de produtos manufaturados alheios,

    por mercadorias arrancadas do prprio solo, do mar ou das

    navegaes. O contexto da nova poca ter carter universal,

    arrastando, nas suas guas, as naes que trabalham nas usinas, as

    naes inertes e as naes que buscam, na aventura, a riqueza e a

    opulncia. Ainda uma observao. As pocas econmicas do mundo

    asitico, antigo e feudal so fases, encadeadas sob o vnculo

    progressivo e ascendente, que culminou na poca moderna.34 A histria

    segue um curso linear embora reconhea a doutrina a ausncia de

    feudalismo nos Estados Unidos e a no peculiaridade de certas relaes

    sociais tidas como especficas da Idade Mdia.35

    Esta doutrina, construda sobre uma tradio histrica, recebida

    sem exame crtico de profundidade, infiltrou-se na teoria, ganhando o

    prestgio dos lugares-comuns. Ela contaminou os estudos do sculo

    XX, empenhada em, por toda parte, sobretudo nos pases

    subdesenvolvidos, descobrir a "estrutura feudal", os "restos feudais",

    perdidos no mundo universal do capitalismo. Os estudos do sculo XIX,

  • sobre os quais brotou a tese marxista, pareciam apoi-la, com raros

    dissidentes. A Europa seria, sem maiores dvidas, um universo feudal

    desmoronado, no sculo XV, sob o peso das manufaturas e das

    monarquias. Os movimentos anteriores polticos e sociais seriam,

    quando existentes, antecipaes de um curso histrico geral.36 O

    problema no seria pertinente a este ensaio se o feudalismo no

    houvesse deixado, no seu cortejo funerrio, vivo e persistente legado,

    capaz de prefixar os rumos do Estado moderno. Patrimonial e no

    feudal o mundo portugus, cujos ecos soam no mundo brasileiro

    atual, as relaes entre o homem e o poder so de outra feio, bem

    como de outra ndole a natureza da ordem econmica, ainda hoje

    persistente, obstinadamente persistente. Na sua falta, o soberano e o

    sdito no se sentem vinculados noo de relaes contratuais,

    que ditam limites ao prncipe e, no outro lado, asseguram o direito de

    resistncia, se ultrapassadas as fronteiras de comando.37 Dominante

    o patrimonialismo, uma ordem burocrtica, com o soberano

    sobreposto ao cidado, na qualidade de chefe para funcionrio, tomar

    relevo a expresso.38 Alm disso, o capitalismo, dirigido pelo Estado,

    impedindo a autonomia da empresa, ganhar substncia, anulando a

    esfera das liberdades pblicas, fundadas sobre as liberdades

    econmicas, de livre contrato, livre concorrncia, livre profisso,

    opostas, todas, aos monoplios e concesses reais.

    O feudalismo no cria, no sentido moderno, um Estado.

    Corporifica um conjunto de poderes polticos, divididos entre a cabea e

    os membros, separados de acordo com o objeto do domnio, sem atentar

    para as funes diversas e privativas, fixadas em competncias

    estanques. Desconhece a unidade de comando grmen da soberania

    , que atrai os fatores dispersos, integrando-os; apenas concilia, na

    realizao da homogeneidade nacional, os privilgios, contratualmente

    reconhecidos, de uma camada autnoma de senhores territoriais.

    No h feudalismo sem a superposio de uma camada de

    populao sobre outra, dotada uma de cultura diversa. O ajuste, a

    adaptao das duas estruturas se processa, num momento sobretudo

  • (no necessariamente) de economia natural e de trnsito precrio,

    tornando difcil ou impossvel a troca de mercadorias. O feudalismo,

    fenmeno no somente europeu, significa, portanto, um acidente, um

    desvio na formao da nao politicamente organizada. No se

    apresenta ele no mundo grego ou no mundo romano, onde uma linha

    sem interrupo se fixou, desde a tribo at ao Estado universal. H

    insupervel incompatibilidade do sistema feudal com a apropriao, pelo

    prncipe, dos recursos militares e fiscais fatores que levam a

    intensificar e racionalizar o Estado, capaz, com o suporte econmico,

    de se emancipar, como realidade eminente, das foras descentralizadas

    que o dispersam, dividem e anulam. Mesmo nos pases de tradio

    feudal, a emergncia desses elementos golpeou o desenvolvimento de

    suas expresses caracterizadoras.39 O incremento do comrcio, de outro

    lado, acelera o aparecimento do sistema patrimonial, contrrio ordem

    feudal.40 O feudalismo, realidade histrica e sistema social, no se

    constri, desta sorte, mediante modelos arbitrrios, esquematicamente

    simplificados. Ele h de se retratar num tipo ideal, capaz de, fielmente,

    reconstruir um momento histrico, em traos simultneos, que,

    reunidos, formam o conceito da realidade. O sistema se compe de

    elementos militares, econmico-sociais e polticos; a identificao de um

    carter disperso no o caracteriza lembra aspectos feudais, que,

    como tais, so o oposto do feudalismo. O chamado feudalismo

    portugus e brasileiro no , na verdade, outra coisa do que a

    valorizao autnoma, truncada, de reminiscncias histricas, colhidas,

    por falsa analogia, de naes de outra ndole, sujeitas a outros

    acontecimentos, teatro de outras lutas e diferentes tradies. De outro

    lado, o feudalismo suporta diversas bases, em que predominam um e

    outro fator essencial, sem a excluso de seus elementos fundamentais.

    O elemento militar do regime feudal caracteriza a situao de uma

    camada (estamento v. adiante) vinculada ao soberano por um

    contrato um contrato de status, calcado na lealdade, sem

    subordinao incondicional. Sob o aspecto econmico-social, aos

    senhores est reservada uma renda, resultante da explorao da terra.

  • Politicamente, a camada dominante, associada ao rei por convvio

    fraternal e de irmandade, dispe de poderes administrativos e de

    comando, os quais, para se atrelarem ao rei, dependem de negociaes

    e entendimentos. Dos trs elementos, que somente reunidos

    constituem o feudalismo, resulta, com respeito ao soberano, a

    imunidade armada, capaz de se extremar na resistncia, elevada

    categoria de um direito. O servio ao rei e o servio aos senhores, por

    meio do conceito de vassalagem, no constitui uma obrigao ou um

    dever forma um apoio livre, suscetvel de ser retirado em qualquer

    tempo.41

    Situado terica e historicamente o contedo do sistema feudal,

    ressalta do enunciado a sua incompatibilidade com o mundo

    portugus, desde os primeiros atos do drama da independncia e da

    reconquista. A velha tese de Alexandre Herculano, sustentada com

    paixo, est hoje consagrada, sem embargo das isoladas resistncias:

    Portugal no conheceu o feudalismo.42 No se vislumbra, por mais

    esforos que se faam para desfigurar a histria, uma camada, entre o

    rei e o vassalo, de senhores, dotados de autonomia poltica. O

    feudalismo, acidente poltico e de direito pblico, no se configura,

    historicamente, sem que rena os elementos que o fazem um regime

    social. O argumento de que se deve procurar-lhe o cerne no sistema

    econmico, no enquadramento das foras de produo, peca por uma

    fraqueza fundamental. Se ele no logrou provocar, na superfcie, as

    floraes sociais, jurdicas e institucionais as chamadas

    superestruturas , essa incapacidade denuncia a prpria incerteza da

    infra-estrutura, da base. Quer, todavia, como regime econmico, por

    emprstimo ou como fenmeno comum europeu, quer como realidade

    social, militar e poltica, esteve ele ausente de Portugal, salvo, como

    assinalado, em algumas ilhas francesas, logo absorvidas no contexto

    nacional. A persistncia, no curso da histria, de magnatas territoriais,

    no os extrema, apesar dos poderes decorrentes da riqueza e das

    dependncias que ela gera, na caracterizao de um sistema que, para se

    aperfeioar, exige o conjunto de outras atribuies, imunidades e

  • competncias de ordem pblica. A terra obedecia a um regime

    patrimonial, doada sem obrigao de servio ao rei, no raro concedida

    com a expressa faculdade de alien-la. O servio militar, prestado em

    favor do rei, era pago. O domnio no compreendia, no seu titular,

    autoridade pblica, monoplio real ou eminente do soberano.

    Estado patrimonial, portanto, e no feudal, o de Portugal

    medievo. Estado patrimonial j com direo pr-traada, afeioado pelo

    direito romano, bebido na tradio e nas fontes eclesisticas, renovado

    com os juristas filhos da Escola de Bolonha. A velha lio de Maquiavel,

    que reconhece dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial, visto,

    o ltimo, nas suas relaes com o quadro administrativo, no perdeu o

    relevo e a significao.43 Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre

    todos os sditos, senhor da riqueza territorial, dono do comrcio o

    reino tem um dominus, um titular da riqueza eminente e perptua,

    capaz de gerir as maiores propriedades do pas, dirigir o comrcio,

    conduzir a economia como se fosse empresa sua.44 O sistema

    patrimonial, ao contrrio dos direitos, privilgios e obrigaes fixamente

    determinados do feudalismo, prende os servidores numa rede

    patriarcal, na qual eles representam a extenso da casa do soberano.

    Mais um passo, e a categoria dos auxiliares do prncipe compor uma

    nobreza prpria, ao lado e, muitas vezes, superior nobreza territorial.

    Outro passo ainda e os legistas, doutores e letrados, conservando os

    fumos aristocrticos, sero sepultados na vala comum dos

    funcionrios, onde a vontade do soberano os ressuscita para as

    grandezas ou lhes vota o esquecimento aniquilador. A economia e a

    administrao se conjugam para a conservao da estrutura, velando

    contra as foras desagregadoras, situadas na propriedade territorial,

    ansiosas de se emanciparem das rdeas tirnicas que lhes impedem a

    marcha desenvolta. H, em todos os tempos e com maior veemncia

    num contexto feudal de vizinhana, o impulso do domnio territorial de

    se projetar numa nobreza, cuja forma de preponderar ser o

    aprisionamento do prncipe num sistema feudal. Enquanto o mundo

    no est dominado, em toda a sua extenso, pelo capitalismo

  • industrial, o risco de um feudalismo importado est sempre presente.

    Ele no pde, incontestavelmente, se fixar no reino portugus, voltado,

    desde o bero, para um destino patrimonial, de preponderncia

    comercial. Nem por isso deixaram de rondar perigos prximos, sagazmente

    combatidos e anulados em todo o tempo, pela ordem em ascenso,

    comandada pelo rei, com os prstimos dos comerciantes, letrados e

    militares, grupos interessados na incolumidade do tesouro real, forte e

    centralizador, rico e generoso.

    Uma nao se projeta, gerada sob a presso de foras

    singulares, na Idade Moderna, antecipando um desenvolvimento que s

    amadureceria dois sculos depois na Europa. A monarquia agrria,

    hiptese de trabalho carinhosamente cultivada pela historiografia

    portuguesa45, no passou de um esboo, varrido da terra com a

    abertura de Lisboa ao oceano. O comrcio definiu o destino do reino,

    meio natural do financiamento da obra da reconquista e da

    independncia. De tal maneira o trfico se converteu no modo prprio

    de expandir suas atividades que Portugal, embriagado de imprevidncia,

    abandonou a cultura do trigo, para adquiri-lo em mercados

    estrangeiros, a melhor preo do que o produzido em seus vales.46 Uma

    trajetria sem interrupo, iniciada com as exportaes para Flandres,

    Inglaterra e Mediterrneo, culmina nas grandes navegaes. "A maior

    parte da populao portuguesa na Idade Mdia vivia da agricultura.

    Exato. No obstante, o trao caracterstico da vida econmica no dado

    pela explorao do solo. A atividade comercial e martima que resultou

    da modalidade do povoamento da costa e da explorao do mar que

    representa o elemento decisivo que define o gnero de vida nacional

    portugus baseado na pesca, na salinao e nas trocas dos produtos

    comerciveis da terra. Graas ao desenvolvimento do trfico ocenico,

    os mercadores portugueses puderam desde muito cedo estabelecer

    estreitas e cordiais relaes com a Flandres."47 Entre o comrcio

    medieval, de trocas costeiras, e o comrcio moderno, com as navegaes

    longas, h o aparecimento da burguesia desvinculada da terra, capaz

    de financiar a mercancia. H, sobretudo, o aparecimento de um rgo

  • centralizador, dirigente, que conduz as operaes comerciais, como

    empresa sua: o prncipe. Nenhuma explorao industrial e comercial

    est isenta de seu controle guarda, todavia, para seu comando

    imediato os setores mais lucrativos, que concede, privilegia e autoriza

    burguesia nascente, presa, desde o bero, s rdeas douradas da

    Coroa. As outorgas de atividades, dispersas e tmidas, ganham relevo

    com as grandes viagens, com os reis senhores incontestveis dos mares

    e das rotas abertas na frica, sia e Amrica. O Estado torna-se uma

    empresa do prncipe, que intervm em tudo, empresrio audacioso,

    exposto a muitos riscos por amor riqueza e glria: empresa de paz e

    empresa de guerra.48 Esto lanadas as bases do capitalismo de Estado,

    politicamente condicionado, que floresceria ideologicamente no

    mercantilismo, doutrina, em Portugal, s reconhecida por emprstimo,

    sufocada a burguesia, na sua armadura mental, pela supremacia da

    Coroa. A camada dirigente, com o rei no primeiro plano, o futuro rgio

    mercador da pimenta, dever ao comrcio seu papel de comando, sua

    supremacia, sua grandeza. A estrutura patrimonial levar, porm,

    estabilizao da economia, embora com maior flexibilidade do que o

    feudalismo. Ela permitir a expanso do capitalismo comercial, far do

    Estado uma gigantesca empresa de trfico, mas impedir o capitalismo

    industrial.49 Quando o capitalismo brotar, quebrando com violncia a

    casca exterior do feudalismo, que o prepara no artesanato, no

    encontrar, no patrimonialismo, as condies propcias de

    desenvolvimento. O trnsito, a compra e venda, o transporte, o

    financiamento ensejaro o gigantismo dos rgos de troca, com o

    precrio enriquecimento da burguesia, reduzida ao papel de

    intermediria entre as outras naes. A atividade industrial, quando

    emerge, decorre de estmulos, favores, privilgios, sem que a empresa

    individual, baseada racionalmente no clculo, inclume s

    intervenes governamentais, ganhe incremento autnomo. Comanda-

    a um impulso comercial e uma finalidade especulativa, alheadores das

    liberdades econmicas, sobre as quais assenta a revoluo industrial.

    Da se geram conseqncias econmicas e efeitos polticos, que se

  • prolongam no sculo XX, nos nossos dias. Os pases revolvidos pelo

    feudalismo, s eles, na Europa e na sia, expandiram uma economia

    capitalista, de molde industrial. A Inglaterra, com seus prolongamentos

    dos Estados Unidos, Canad e Austrlia, a Frana, a Alemanha e o

    Japo lograram, por caminhos diferentes, mas sob o mesmo

    fundamento, desenvolver e adotar o sistema capitalista, integrando

    nele a sociedade e o Estado. A Pennsula Ibrica, com suas floraes

    coloniais, os demais pases desprovidos de razes feudais, inclusive os

    do mundo antigo, no conheceram as relaes capitalistas, na sua

    expresso industrial, ntegra. A coincidncia flagrante e, vista da

    perspectiva desta ltima metade do sculo XX, ser capaz de provocar a

    reviso da tese de Max Weber, que vinculou o esprito capitalista tica

    calvinista.50 Entre coincidncia e causalidade h, certo, um caminho

    a percorrer, longo caminho de muitas pesquisas, laboriosas

    investigaes e hipteses ousadas.

    Guerra, quadro administrativo, comrcio, a supremacia do

    prncipe quatro elementos da moldura do mundo social e poltico de

    Portugal. Dentro do quadro, h um drama que precipitar a emergncia

    de uma estrutura permanente, viva no Brasil, fixada na queda de uma

    dinastia, consolidada numa batalha, amadurecida com a expedio de

    Ceuta (1415).

  • C A P T U L O I I

    A REVOLUO PORTUGUESA

    1. Preliminares da revoluo de 1383-85: a nobreza, a

    burguesia e dom Fernando

    2. A Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a

    tutela do rei

    3. O estamento: camada que comanda a economia,

    junto ao rei

    4. Da aventura ultramarina ao capitalismo de Estado

    5. A ideologia do estamento: mercantilismo, cincia e

    direito

  • 1

    A OBRA DA CONSOLIDAO da monarquia portuguesa, condicionada pelo

    capitalismo poltico1, chegar ao seu ponto culminante por meio de uma

    revoluo, a mais profunda e a mais permanente de todas as revolues

    que varreram a histria do pequeno reino. Preparam-na causas

    remotas e acidentes prximos, todos conjugados para a abertura de

    uma nova idade, a stima idade "na qual se levantou outro mundo

    novo, e nova gerao de gentes", na palavra proftica do cronista.2 Na

    segunda metade do sculo XIV, uma velha camada, a aristocracia

    territorial, subitamente fortalecida, procurava afirmar, com

    exclusividade, seu domnio poltico. De outro lado, a categoria mais

    rica, a burguesia comercial, longamente associada Coroa, sabia que

    sua hora havia soado, a hora de juntar riqueza o poder poltico. O

    dilaceramento das duas faces, ao ameaar a prpria existncia da

    nao, provocou uma guerra externa, expresso de uma tenaz, porfiada

    e autntica luta intestina. Perece uma dinastia, a dinastia afonsina,

    filha da infncia do reino; em seu lugar, ergue-se a gloriosa dinastia de

    Avis (1385-1580), plataforma social e poltica da conquista do mundo

    desconhecido pelas audaciosas naus de Vasco da Gama. Nasce,

    assistida pela violncia, pelo dissdio, pela guerra, a nao pica de Os

    Lusadas, sonho de curta durao, meterico, que deixou, na sua cauda

    de luz, uma constelao ainda ntegra.

    As bases da revoluo comearam a ser lanadas com o

    movimento que aproxima, uma de outras, as populaes do litoral, com

    a abertura do comrcio martimo, primeiro com produtos agrcolas,

    depois com a pesca e o sal. H, nessa caminhada, uma longa histria, j

    ardente no domnio dos sarracenos na Pennsula os portugueses

    sucederam ao comrcio rabe, que j havia definido a vocao

    martima do pas, vocao geograficamente condicionada na

    convergncia atlntica da terra. Morabes e muulmanos preparam,

    com o trfico pelo mar, a jornada ultramarina e a grandeza de uma

    camada popular, a burguesia comercial. Documentos do sculo XII

  • demonstram que, na concesso de privilgios para os oficiais de navios e

    nas mercadorias reexportadas, persistia uma atividade antiga,

    rapidamente em expanso aps a reconquista. Em consonncia com a

    realidade econmica, as instituies se renovam, permitindo o

    florescimento das suas virtualidades. s camadas privilegiadas

    nobreza e clero se contrape a ascenso popular, protegida pelas

    comunas, que crescem, na Europa medieval, dentro de um contexto

    geral, s ideologicamente filiado s tradies romanas. A fixao da

    monarquia portuguesa, contemporaneamente revoluo comunal

    europia, teve efeito acelerador nas garantias e privilgios dos

    concelhos no princpio ilhas de liberdade dentro da armadura

    aristocrtica. "Ao findar o sculo XIII, malgrado as discrdias das

    classes, mal sujeitas a um cetro ainda vacilante, sente-se que a nao

    est de p. Fica povoada a costa de norte a sul e formado o gnero de

    vida nacional pelo comrcio martimo com base na agricultura. Os

    homens bons e a arraia-mida dos concelhos, a peonagem que to

    brilhantes provas deu nas Novas de Tolosa, formam ao lado do

    monarca, ao qual apiam nas tentativas de unificar as classes, sob o

    imprio da mesma lei. A prpria lngua portuguesa, o rude mas

    saboroso romance medieval, por influncia dessas classes urbanas, sai

    definitivamente do latim e balbucia, atravs dos documentos oficiais, a

    soberania e a unificao da grei. E j nas guas da beira-mar, nas

    viagens de pesca ao longo dos litorais ou de longo curso a pases

    distantes, uma gente nova e audaz ala sobre as esbeltas caravelas a

    rmige das latinas."3 O Porto, que busca o lugar de metrpole social do

    reino, por meio de um burgus, ousa firmar o primeiro tratado de

    comrcio com a Inglaterra, em nome dos mercadores, marinheiros e

    pescadores.4 E o litoral, so as cidades que anseiam pelo comando da

    poltica comercial, modificando, com a presena de suas instituies, as

    relaes sociais do campo. O comrcio de trnsito, abraando a Europa,

    est prximo da plena maturidade. Lisboa seria o teatro da nova era,

    projetada sobre o mar e sobre o mundo.

    Nos meados do sculo XIV entram a ferver as causas prximas da

  • grande revoluo, da gloriosa revoluo que completou e aperfeioou o

    reino. Um acidente prepara-lhe o nimo popular, conturbado com as

    conseqncias sociais e econmicas da grande peste de 1348.

    Provavelmente pereceu um tero da populao, atingida sem nenhum

    meio de defesa, seno a splica ao cu.5 No campo, alteraram-se, de

    imediato, as relaes de trabalho e de riqueza: ao lado da escassez de

    servidores, os jornaleiros, dizimados em maior nmero pelo flagelo, as

    heranas, avolumando-se em poucas mos, em virtude de muitos

    proprietrios desaparecidos, enriqueceram pessoas que, desse modo,

    aumentaram seu patrimnio ou abandonaram a condio servil. A no-

    breza, assentada sobre os bens rsticos, encontrou-se sem

    trabalhadores, ao tempo que novos proprietrios, at ento jornaleiros,

    pretendiam a ela se equiparar na ociosidade, padro visvel do alto

    estado. "O leitor de agora, conhecedor da lei que relaciona os preos

    com a intensidade da oferta e da procura, prev facilmente o que veio a

    dar-se: uma revoluo nos salrios. Faltavam obreiros para o trafegar

    das glebas, e fugia-se a servir pela paga antiga. De a se origina o

    conflito econmico entre a classe dos empregadores e a dos jornaleiros

    estes exigindo maior estipndio, ou buscando profisso de seu maior

    agrado, aqueles esforando-se por obrigar os 'vis' a servirem por soldada

    que lhes impunha a lei."6 Afonso IV, para remediar os graves

    inconvenientes do conflito, que percutiam imediatamente na produo

    agrcola, expediu aos concelhos a circular de 3 de julho de 1349.

    Justificou a medida com o conhecimento da denncia, chegada aos

    seus reais ouvidos, de que homens que antes da peste se ocupavam no

    servio alheio, agora, convertidos em herdeiros, se tinham em to

    grande conta, ao ponto de abandonar e desprezar a vida antiga. Outros,

    explica o monarca, empregados no trabalho rural, exigiam, fiados na

    escassez de mo-de-obra, tal preo para seus servios que os

    proprietrios, vergados com tais despesas, abandonam as culturas e os

    rebanhos. Ordena que os concelhos nomeiem dois rbitros, escolhidos

    entre os homens bons, burgueses aliados aos nobres, no momento, em

    conseqncia de interesses comuns, para que arrolem as pessoas

  • capazes de exercer algum ofcio ou em condies de trabalhar para

    outrem, com a incluso daqueles que, antes do flagelo, estavam nesses

    casos e agora se recusavam a prestar seu trabalho. Todas as pessoas

    cadastradas seriam obrigadas a continuar nos seus misteres ou noutros

    em que o concelho lhes reconhecesse capacidade, mediante o salrio

    que lhes taxasse. A excluso do arrolamento se poderia fazer, mediante

    prova da qualidade da pessoa e do valor dos bens, circunstncias que,

    reconhecidas, permitiam o emprego no trato da mercancia, lavoura ou

    outra ocupao mais nobre. Aos recalcitrantes sobravam aoites, multas

    e degredo, penas impostas pelos juizes municipais, prevista uma

    recompensa aos acusadores. Conquistava a burguesia urbana, com a

    lei draconiana, um poderoso aliado no campo, at ento fechado

    solidariedade. O povo mido do interior, amargurado e ressentido,

    transformado em servo da gleba, estaria, da por diante, espera de

    um aceno para vingar o agravo imposto no muramento ascenso

    econmica e social. A nobreza e os demais proprietrios rurais,

    apertando rudemente a tampa da panela, acumulavam o vapor da

    exploso. O bloco rural, soldado pela tradio secular, abria a primeira

    fenda por onde se infiltraria o predomnio da burguesia urbana, sob o

    futuro estandarte do Mestre de Avis.

    Na confluncia destes caudais, alimentados de velhas guas e de

    guas novas, guas turvas e guas claras, sobe ao trono dom Fernando

    I (1367-83). A obra do aperfeioamento do reino, todavia, comeada

    com o primeiro rei, se completar sob a vigilncia de outras mos, mais

    astutas, destras c enrgicas. A poltica do ltimo rei da dinastia

    fundadora da monarquia, dilacerada numa crise que ameaava

    sepultar a prpria independncia, no chegou a corporificar uma

    doutrina de transao. Retrata-se na atarefada preocupao de atender

    reivindicaes contrrias, cada uma medida da presso, da burguesia

    e da nobreza. O "mancebo valente, ledo, enamorado, amador de

    mulheres e muito amigo de se chegar a elas" no encontrou uma

    sociedade unida. O setor rural vivia a guerra civil latente,

    perigosamente aprestada para o desenlace sangrento. No obstante, tal

  • a vivacidade da economia comercial, nenhum rei antes dele foi mais

    rico, tamanhos os tesouros que seus pais e avs juntaram. Os direitos

    reais, que definem a apropriao de renda dos negcios, enchiam as

    arcas, fluindo das alfndegas. O chefe do Estado desempenhava as

    funes de banqueiro da nao, scio e animador das exportaes. "E

    no vos admireis" adverte o cronista "de isto ser assim e muito

    mais, porque os reis antes de ele tinham tal procedimento com o povo,

    sentindo-o por seu servio e proveito, que era foroso serem todos ricos

    e os reis terem grandes e grossas rendas. Porque eles emprestavam

    sobre fiana dinheiro aos que queriam carregar, e tinham, duas vezes

    no ano, dzima do retorno que lhes vinha; e visto o que cada um

    ganhava, deixava logo a dzima do ganho em comeo de pagamento. E

    assim, sem sentirem, pagavam a pouco e pouco e eles ficavam ricos e

    el-rei recuperava todo o seu.

    "Havia tambm em Lisboa residentes de muitas terras, no em

    uma s casa, mas em muitas casas cada uma de sua nao, assim como

    genoveses e prazentins e lombardos e catales de Arago e de Meiorca e

    milaneses e corsins e biscainhos e outros de outras naes a quem os

    reis davam privilgios e liberdades, sentindo-o de seu servio e proveito.

    Estes faziam vir e expediam do reino grandes e grossas mercadorias, a

    ponto que, fora as outras cousas que nesta cidade podiam

    abundantemente carregar, s de vinhos achando-se um ano em que se

    carregaram doze mil tonis, alm dos que levaram depois os navios no

    segundo carregamento de maro. E para tanto vinham de diversas

    partes muitos navios a Lisboa, de guisa que, contando aqueles que

    vinham de fora e os que havia no reino, jaziam muitas vezes diante da

    cidade quatrocentos e quinhentos navios de carga, e estavam carga no

    rio de Sacavm, e na ponte de Montijo, da parte do Ribatejo, sessenta e

    setenta navios em cada lugar, carregando sal e vinhos. [...] El-rei D.

    Fernando no comprava para carregar nenhuma daquelas cousas que os

    mercadores compram, e de que habitualmente vivem, s possuindo as

    que auferia dos seus direitos reais. E se alguns mercadores queriam

    encarregar-se de lhe trazer de fora de seus reinos as cousas de que

  • precisava para seus armazns, no carregava ele prprio nenhuma delas,

    dizendo que o seu desejo era que os mercadores de sua terra fossem ricos

    e abastados, e no fazer-lhes cousas que fosse em seu prejuzo e

    abaixamento de sua honra. E por isso mandava que nenhum residente

    estrangeiro comprasse por si nem por outrem, fora da cidade de Lisboa,

    nenhum haver, grande nem pequeno, a no ser para seu prprio

    mantimento, exceto vinhos, fruta e sal. Mas nos mercados da cidade

    podiam comprar livremente, para carregar, quaisquer mercadorias.

    "A nenhum senhor, nem fidalgo, nem clrigo, nem outra pessoa

    poderosa, consentia que comprasse qualquer mercadoria para

    revender, porquanto tirariam dessa forma o modo de vida aos

    mercadores da sua terra, dizendo que parecia contra razo que tais

    pessoas tivessem atividades que lhes eram pouco prprias, tanto mais

    que isso lhes era proibido por direito." (Crnica de el-rei dom Fernando.)

    O jovem rei encontrava um pas rico e, na rea mais ativa, prspero,

    embora minado no campo. O cronista d relevo ao comrcio de

    produtos nativos vinhos, sal e frutas indicando palidamente o

    comrcio de trnsito, perceptvel na presena de numerosas naus e de

    muitos estrangeiros.

    O caminho da poltica nacional estaria esboado, se um soberano

    pudesse conduzi-la livremente. Pelo incremento do comrcio alcanaria

    o reino a prosperidade, suplantando as dificuldades agrcolas. As guerras

    com Castela, tradicionalmente sustentadas pelos squitos militares da

    nobreza, fortaleceram esta camada, que urgia por pagamentos e

    dinheiro para a empresa, vista como obra insensata pela opinio

    pblica, opinio pblica j ntida e predominantemente de cor

    burguesa. Duas correntes opostas mostram-se at nos conselhos do

    rei, depois de percorrerem as praas e os solares. "Uma, a pre-

    dominante porque era a que se conformava mais com o gnio

    extravagante, verstil e descuidado do rei, impelia s cegas o governo do

    pas, para o caminho das aventuras; a outra, pelo contrrio, quando o

    soberano ou os conselheiros mais aceitos no lhe embargavam o curso,

    introduzia leis que deviam favorecer o comrcio, reprimir a insolncia

  • dos poderosos, prover sobre o desenvolvimento da agricultura, ou

    produzir outros benefcios. Mas os desatinos do soberano anulavam em

    grande parte o que havia de bom nessas reformas."7

    Atrs das medidas legislativas, das censuras da opinio e dos

    conselhos polticos, havia a causa do mal-estar do reino, corporificada

    no poderio crescente da nobreza. A turbulenta poltica exterior levou ao

    dramtico e sbito esgotamento do outrora opulento tesouro real. A

    penria sugeriu ao rei, mais imprevidente que prdigo, a doao

    nobreza em ressarcimento s quantias atrasadas de terras da

    Coroa. O reino na concepo patrimonialista do Estado terra do

    rei, que a podia doar apesar das resistncias, ainda difusas, de diversa

    doutrina, empenhada em preservar a incolumidade da riqueza

    monrquica. De outro lado, ferido com a malquerena da burguesia, o

    soberano ainda mais se extremava nas simpatias nobreza, desejoso de

    lhe ganhar o apoio e a adeso. Sob a presso deste impulso o

    reequilbrio de uma aliana tradicionalmente comprometida as

    doaes de vilas e herdades passaram a se fazer com a transferncia da

    jurisdio, em recuo a uma trilha j consagrada. O povo a burguesia

    comercial reclamava, nas Cortes (1372), contra a poltica retrgrada:

    queria que a "justia no tivesse senhores", que o monarca reservasse,

    para si, "a maior justia".8 Temia-se sempre o mesmo receio o

    retorno a normas de cunho feudal, tidas como definitivamente

    afastadas. A outra corrente, antiaristocrtica, permaneceu coesa,

    capaz de levar o rei, joguete merc de abalos contrrios, ao

    estabelecimento de regras e normas, convenientes ao comrcio. A

    aguda crise agrria, que no amainou com as drsticas medidas de

    Afonso IV, inspirou a Fernando a clebre Lei das Sesmarias

    (possivelmente de 1375), ditada pela sugesto das Cortes, nas quais era

    saliente a influncia burguesa. Diga-se, em parntese, que a

    burguesia, assenhoreando-se da administrao municipal,

    preponderante sobretudo em Lisboa e no Porto, tinha voz nas Cortes, s

    quais concorriam seus delegados e procuradores. A lei, depois

    incorporada s Ordenaes Afonsinas, guarda, na verdade, matiz duplo,

  • nem burgus nem aristocrtico. Ser, ao no aderir aos interesses do

    proprietrio agrcola, uma vitria burguesa, sem representar um

    desprestgio da nobreza. Lei de compromisso inexeqvel seno com

    um governo novo, liberto dos impedimentos das travas de uma faco a

    outra. Somente depois da revoluo de 1383-85, tentou-se execut-la,

    claudicantemente, agora na sua feio antiaristocrtica. A escassez de

    mantimentos, sobretudo de trigo e cevada, levou aos dois meios para

    alcanar o objetivo: obrigando ao cultivo das terras e constrangendo os

    lavradores ao trabalho agrcola dupla coao, que atingia, numa

    ponta, o proprietrio. "Mandou que todos os que tivessem herdades

    prprias e emprazadas ou por outro qualquer ttulo, fossem constrangi-

    dos a lavr-las e seme-las. [...] E que fosse fixado tempo conveniente,

    aos que houvessem de lavrar, para comearem a aproveitar as terras,

    debaixo de certas penas. E quando os donos das herdades as no

    aproveitassem nem dessem a aproveitar, a justia as entregasse por

    certa importncia a quem as lavrasse, deixando o seu dono de receber

    a respectiva renda, que deveria ser despendida em proveito comum da

    terra onde estivessem essas herdades. [...] E que todos os que eram ou

    costumavam ser lavradores, assim como os filhos e netos de

    lavradores, e quaisquer outros que em vilas ou cidades ou fora delas

    morassem, usando de ofcio que no fosse to proveitoso ao bem

    comum como era o ofcio da lavra, fossem constrangidos a lavrar, salvo

    se tivessem de seu valor quinhentas libras, que seriam umas cem

    dobras. E se no possussem herdades suas, lhes fizessem dar das

    outras para se aproveitarem, ou vivessem por soldadas com os que

    houvessem de lavrar, fixando-se-lhes soldada justa. [...] Outrossim

    mandava que todos os que se achassem a vadiar, intitulando-se

    escudeiros e moos de el-rei ou da rainha e dos infantes e de quaisquer

    outros senhores e no fossem notoriamente conhecidos como tai