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  • 8/12/2019 Os diferentes processos de encenao e as diferentes acepes do encenador osdiferentesprocessosdeencenacao

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    Os diferentes processos de

    encenao e as diferentesacepes do encenador

    Walter Lima Torres Neto1

    RESUMO:O presente artigo tem por objetivo colaborar comos estudos sobre a encenao teatral no Brasil e Portugal. Para

    tanto, ele procura demonstrar a relao entre as diversas

    modalidades de procedimentos acerca do trabalho do

    coordenador do espetculo teatral: ensaiador, diretor e encenador.

    Palavras-chave: ensaiador; diretor; encenador; dramaturgia; cena.

    RSUM:Le but de cet article est de contribuer pour les tudesde la mise en scne au Brsil et au Portugal. On cherche ici

    dmontrer les rapports entre les diverses modalits de

    procdures a propos du travail du coordenateur du spectacle

    theatral: reptiteur, directeur, metteur en scne.

    Mots-cls: reptiteur; directeur; metteur en scne; dramaturgie; scne.

    ABSTRACT:This article has the objective of colaborating with

    the studies about brazilian and portuguese art-directing. Thetext looks forword to demonstrate the relation between diferent

    modalities of directing: reptiteur, director, metteur en scne.

    Keywords: reptiteur; director; metteur en scne; play; dramaturgie.

    1Diretor e professor de Estudos Teatrais no Departamento de LetrasEstrangeiras Modernas e no Programa de Ps-Graduao em Letras daUFPR, em Curitiba.2 O trabalho da trupe do duque de Saxe-Meininger exemplar comocoletivo teatral que opera exatamente nessa fronteira entre o trabalho doensaiador e a passagem para o trabalho dentro dos princpios do que seimps mais tarde como moderno diretor teatral. Alm de precursoresdesse novo pensamento sobre os procedimentos de encenao de umtexto teatral, essa trupe tambm a prpria manifestao desse teatrodito pr-moderno. Consulte-se a esse respeito o trabalho de SIMON,

    Pablo Iglsias. Direo cnica e princpios estticos na companhia dosMeininger. Folhetim Teatro do Pequeno Gesto, Rio de Janeiro, n. 25,p. 06-31, jan.-jun. 2007. Ou, ainda, a j clssica coletnea de fragmentosde diversos diretores teatrais, organizada por COLE, Toby; CHINOY,Helen Krich. Directors on directing. Indianpolis: Bobbs-Merrill, 1963.

    1.

    No comeo do sculo XX, mais precisamentepor volta de 1903, no bojo do movimentoNaturalista, quando Andr Antoine formalizoualgumas idias a respeito da arte e da tcnica da

    encenao, estabeleceu-se o incio de uma rupturacom um modelo anterior de coordenao artsticae tcnica do espetculo teatral que eradesempenhado pela figura que, genericamente,podemos chamar de ensaiador dramtico.2

    De 1903 at os anos 1950 e 1960, se enraizoumuito fortemente na prtica teatral ocidental umatendncia na direo teatral que foi basicamentetextocntrica, isto , o diretor se comportava, namaioria das vezes, como o porta-voz do autor do

    texto dramtico. Do texto advinha todo o matiz dacena, sua textura e densidade. O texto seriaportador de uma essncia cuja cena deveria revel-

    la o mais fortemente possvel. A palavra do autorera transposta do literrio para o teatral. O trabalhoteatral do diretor primava ento por se associarintimamente palavra do autor. Trabalhava-se paraser seu melhor intrprete, seu melhor tradutor,formulando artisticamente o melhor complementoesttico para maior eficcia do texto teatral representao diante do espectador. Essa operaose fazia independente do estilo de cada diretor, datendncia natural de cada olhar para a cena.

    Ao contrrio, contemporaneamente, importamenos saber exatamente de quem a autoria daencenao, pois, como se pode deduzir, apesar dosentido advir de uma orientao do coordenador

    do espetculo ensaiador, diretor, encenador,performador , inerente criao teatral suacapacidade de sintetizar uma prtica expressiva que coletiva. Por vezes, contemporaneamente, osentido de autoria se perde devido s tnuesfronteiras entre os prprios agentes criativos queforjam os elementos que constituem a cena nomomento do processo de trabalho. Reside a o lugarda negociao criativa onde se busca uma direo,um sentido geral para a obra. E essa uma forte

    tendncia do momento presente.

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    2.

    importante considerar e no perder de vista

    que o trabalho de montagem de um espetculo

    cnico a possibilidade de se dizer alguma coisaque no se poderia dizer de outra maneira, em outro

    formato. A pertinncia da idia ou da questo

    reivindica a cena teatral, e no outro meio, como

    lugar artstico precpuo para a expresso dessa idia,

    desse problema que a se traduz de forma potica.

    No esqueamos de que cabe direo emitir

    um juzo. Um juzo esttico. Ter respostas poticas

    para a questo que lhe interessa. Dirigir opinar.

    dar opinio sobre um determinado tema, umacerta situao, uma determinada personagem, um

    problema social especfico, um fato poltico

    circunscrito no particular ou no geral de certa

    comunidade, etc. Dirigir a formulao de um

    juzo, mediao de idias. Dirigir igualmente

    coordenar a parte artstica e tcnica, conciliar o

    espiritual e o material de um espetculo. Se, porum lado, dirigir um espetculo dar sentido a uma

    questo, problematizando-a de forma potica, poroutro, conceber um espetculo trabalhar com

    problemas estticos e ticos submetido ao fracasso

    ou ao sucesso diante de um auditrio.

    3.

    Historicamente, quando o coordenador doespetculo teatral lia um texto teatral, eraimportante que aos poucos ele fizesse uma idia

    particular do que poderia vir a ser este mesmo texto,num espao determinado, dito por atoresdevidamente caracterizados, sob o efeito de certailuminao, acompanhado ou no de som,submetidos a uma dinmica e a um ritmo especficoe caracterstico, etc. Somente de posse desta suaviso que ele ento passava a dialogar com umaequipe de agentes criativos (atores, cengrafo,iluminador, sonoplasta, figurinista, etc.), no intuito

    de estabelecer o encaminhamento que sepretenderia dar quela obra na busca por uma

    concretude segundo as suas idias particulares, que

    agora seriam compartilhadas, discutidas, refutadas,

    aceitas e transformadas graas dinmica dos

    processos de ensaio junto a um coletivo de agentes

    criativos que fora previamente, na maioria das

    vezes, selecionado por ele prprio.

    Esse foi e continua sendo o perfil daquele que

    designamos como sendo o moderno diretor teatral.

    Esse diretor , assim, o articulador do texto

    dramtico que ganha a cena. Ele negocia, artstica

    e tecnicamente, a passagem de uma determinada

    escrita dramtica sua condio de escrita cnica

    por meio do conjunto do resultado artstico

    oferecido pelo trabalho criativo dos agentes

    envolvidos na criao que a ele cabe estimular. Ele

    os leva a forjar os elementos que engendram uma

    teatralidade, a identidade do espetculo. Essa

    concepo primeva, essa idia inicial com que o

    moderno diretor se faz necessariamente

    influenciada pelo trabalho criativo dos demais

    agentes criativos envolvidos na montagem. As

    influncias no processo de montagem so assim

    recprocas, formando uma espcie de vai-e-vem

    entre proposta, apresentao e estmulo, que acaba

    gerando um ciclo ativador da criao cnica.A dinmica da criao cnica est em parte

    resumida no trip proposta; apresentao;estmulo , isto vlido para todas as esferascriativas que vo fazendo avanar a criao cnica.Seja entre ator e diretor; cengrafo e figurinista;figurinista e ator; e todos os demais agentescriativos. Resumidamente, trata-se de estabelecerum espao para enunciao de propostas artsticas,as mais diversas, que traduzem visesinterpretativas capazes de coexistirem eestabelecerem um todo orgnico, que em seguidaso apresentadas. E, nesse sentido, cada agentecriativo se apresenta, e o resultado parcial do seutrabalho, segundo suas habilidades e competnciascnicas, uma vez que a apresentao se d noconjunto de agentes criativos, isto , os nossos

    prprios pares, atravs de comentrios, estimulama permanncia e sugerem as modificaes queadequam aquela proposta ao todo da obra. a

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    3Esta questo do poder e do jogo criativo na realizao cnica no sertratada aqui. Entretanto, nos parece importante no deixar de sinalizar aquesto que complexa e que at o presente momento no possuiestudos que a esclaream. Tratar dessa questo investigar, igualmente,os processos criativos dos prprios agenciadores ou realizadores dacena ensaiador, diretor, encenador, performador.4 Sobre a crtica, so bastante elucidativos os textos de Bernard Dort queabordam os conflitos entre mile Zola e Francisque Sarcey a propsitode uma nova concepo por uma crtica teatral. Consulte-se, portanto,DORT, Bernard. Um crtico novo: mile Zola. Trad. Fernando Peixoto,

    e ___.As duas crticas. In: O teatro e sua realidade. So Paulo: Perspectiva,1977. Atualmente o papel da crtica teatral est sob forte discusso devido busca por um outro lugar para o jornal como meio de comunicaodiante das novas possibilidades no campo comunicacional, sobretudo narea do jornalstico cultural, seja ele genrico ou especializado.

    que entram em jogo a noo de poder e suasrepresentaes no interior do processo criativo.3

    Quando se fala sobre a leitura de umdeterminado diretor acerca do texto de um autor,

    procura-se compreender a viso que teve o diretorda obra do autor visitado, visto que o diretor oresponsvel pela encenao e, por conseguinte, pelainduo do prazer ou desprazer do espectador dianteda linguagem engendrada por ele. A recentemontagem de Hamletpor Peter Brook, que visitou oBrasil, chocou certos puristas, pois no poderia umator negro interpretar o personagem do prncipe

    vingador! Independente deste juzo, a viso de Peter

    Brook sobre o texto de Shakespeare absolutamentediversa daquela verso encenada, por exemplo, porPatrice Chereau em 1989, com Gerard Dessarthe,cuja atuao no papel do herdeiro do trono daDinamarca enfatizava o aspecto cmico da suafigura. E ambas leituras destoam das idias quenortearam o projeto de Edward Gordon Craig eConstantin Stanislavski para o Teatro de Arte deMoscou no incio de nosso sculo. Recentemente, oator Diogo Vilella, dirigido por Marcus Alvisi,

    tambm deu sua contribuio ao mais importanterfo da histria do teatro ingls ao oferecer estemesmo texto numa montagem muito interessante.Entretanto, verificava-se a ausncia desse ponto de

    vista ou dessa subjetividade inerente ao olhar dodiretor acerca da concepo da cena. No assisti montagem de Aderbal Freire Filho que trouxe nopapel-ttulo do heri shakespeareano Wagner Moura,o Capito Nascimento do filme Tropa de elite. Porm,j a na escolha do ator, nota-se um critrioinquietante, independente do apelo miditico ligado associao Capito Nascimento-Hamlet.

    4.

    Durante muito tempo a coerncia da cena, isto, a sua concepo moda do ensaiador dramtico,esteve subordinada ao gnero dramtico ao qual otexto estava filiado. Isto quer dizer que o formatodo texto, seu gnero (quadro da vida militar, opereta,

    farsa, revista, burleta, drama de casaca, pea de capa eespada, vaudeville, grand-guignol, comdia, drama,etc.), deveria ter uma traduo especfica que

    refletisse exatamente esse formato literrio sobrea cena em termos de caracterizao dos espaos;

    visual dos personagens; gneros musicai sadequados, etc. Esse princpio era inclusive muito

    importante para que o espectador, ao pagar pelobilhete que lhe dava acesso ao teatro, tivesse acerteza do que iria ver e ouvir e, portanto, a suaexpectativa correspondida.

    Nesse sentido, a crtica jornalsticaespecializada foi um agente definitivo na defesade uma encenao que no desvirtuasse o teor dopensamento e da palavra do autor. Grandespolmicas se estabeleceram em tempos pretritos

    e ainda hoje, vez por outra, reacendida, entreagentes criativos e a crtica especializada. Apolmica entre agentes criativos e crticos se dquando os argumentos empregados pela crticareprovam substancialmente o que a encenao faza partir de um texto. Isto , quando a encenaono atende ao que seriam as prescries do autordramtico, traindo, por assim dizer, o seu esprito,a sua essncia.4

    Entretanto, como diz Jos Ortega y Gasset

    Todo dizer deficiente, diz menos do que quer.Todo dizer exuberante, d a entender mais doque se propem. Essa ambivalncia est na raizdo trabalho de exegese sobre um texto dramtico ed a dimenso hermenutica que estimula otrabalho teatral de maneira geral e a concepo eorganizao de uma linguagem teatral em particular.

    Apesar das modi ficaes da soci edadeocidental, das influncias de outras artes, do

    audiovisual e da mdia sobre o teatro, essa visodescrita acima sobre a concepo dos espetculos

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    vinculados a uma tipologia sobrevive ainda hoje,sobretudo naqueles espetculos explicitamenteanunciados como entretenimento, o que no umdemrito. guisa de exemplo, se poderia lembrar

    de ttulos de sucesso como O fantasma da pera,Ohomem de la Mancha, Choros Line,Evita,Os miserveis,Cats, entre outros espetculos que so montados,ou reproduzidos, mais ou menos em todo o mundo,da mesma maneira, segundo o mesmo padro, nomesmo formato que os originou, e isso muitomais forte, contemporaneamente, nos espetculosinseridos no mercado de produo cultural.Fazendo um paralelo com as novelas brasileiras,

    verifica-se que essa pertinncia ou fidelidade aognero mantm tensionado o fio da conveno quese perpetua no folhetim televisivo cujo princpioest nesse teatro de dramaturgia tipificada,auxiliada pelo emprego de atores-tipos pararepresentar papis-tipos.

    O problema do descompasso sociocultural seestabelece quando muitas das vezes no se temcontato com a arte do teatro, e considerando-se oenraizamento da televiso na comunidade

    brasileira, esta, por conseqncia, passa acondicionar a criao cnica, limitando-a aorealismo audiovisual, excluindo, sobretudo, a poesiae o poder da conveno teatral. Esse um fatoperceptvel quando se assiste a espetculos semi-amadores ou universitrios oriundos de regiesonde a cultura e a prtica teatral ainda no foramconsolidadas e de fato o paradigma da tele-dramaturgia, o jogo dos atores e a concepo dacena se deixam contaminar pela esttica da telinha.

    5.

    Nossa aula foi intitulada Os diferentesprocessos de encenao e as diferentes acepesdo encenador. Orientar uma aula prtica, crticae reflexiva na nossa rea no tarefa fcil. Aliadoao fato de que, pessoalmente, tenho certeza de que,como ministrante, no trago comigo um contedoespecfico ou uma substncia ideal que seja capaz

    de transformar ou preencher quem quer que seja.Nem imagino, to-pouco, que os senhores tenhamessa viso do conhecimento. Haveria assim uma

    espcie de manancial inicial cujo contedo, umasorte de essncia, nosotros, mestres, doutores,graas s nossas teses parciais e totais, teramosacesso. E em seguida derramaramos em belos

    cntaros o nctar de um conhecimento. Quantomais perto da fonte, da nascente, quanto maisprximo dessa essncia, maior seria nossadensidade. E assim, por meio de um fluxo contnuo,o conhecimento iria seguindo a sua trajetria. No!Essa uma noo por demais clssica para nodizer vetusta.

    A aula, portanto, eu dizia, ela se faz. Ela feitado encontro. Ela se d no espao do entre. A aula

    no dada. Ela feita. Feita pelo ministrante e pelosparticipantes. A aula deve ser basicamente encontro.No campo das artes, temos o papel precpuo

    de promover o interesse, estimular o movimentodo raciocnio, oferecer alguma experincia jadquirida, mas nunca partir movido por uma aoimpositiva. O difcil equilbrio entre o relativo e oobjetivo ou absoluto em nossa rea, onde a criaode subjetividades notria, o fiel da balana.

    Assim, penso que o conhecimento se constri

    e se conquista por um movimento do sujeito sobresi e sobre o mundo, como j nos mostrou PauloFreire. Ou como diria o prprio Stanislavski. Oator precisa trabalhar sobre si mesmo, isto conhecer-se. Ento o objeto da busca peloconhecimento estaria tanto dentro quanto fora desi. E isso na nossa rea uma recorrnciapermanente. Enquanto agente criativo eu necessitodeter conhecimento sobre a minha pessoa, minhas

    habilidades; e assimilar, igualmente, osconhecimentos que esto fora da minha pessoa,normalmente aquilo que chamamos de tcnica.No me refiro ao jogo. O jogo se d sempre noentre, no espao do inter.

    muito normal escutarmos numa conversaos atores dizendo:

    Descobri um professor timo de tcnica deAlexander!

    Nem te conto, estou fazendo capoeira de

    Angola e est sendo o mximo! E a professora de canto que me indicaram.

    Ferssima... Coloca a gente cantando em

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    quinze dias. Tenho uma amiga que j foi, ej est num musical que deu supercerto...

    Coisa incrvel, n? No currculo de umaantiga escola de teatro, num que obrigavam

    aos atores a fazer aula de esgrima? Que coisa mais velha! Obsoleta e ultrapassada!Atua lmente , vivemos uma permanente

    avalanche de tcnicas e vivncias que prometemperformances maravilhosas e de alto grau artstico.Isto uma caracterstica da prpria prtica teatralcujas razes encontram-se na vida real, no cotidiano.E nesse sentido natural que advenha essa

    diversidade de tcnicas e prticas para oenriquecimento do trabalho dos agentes criativosda cena contempornea.

    Apesar de bastante pueril o meu exemplo, ocaso que enquanto existir teatro e atores, oumelhor, enquanto houver atores e naturalmenteespectadores, haver teatro. Todo o resto parcialmente dispensvel e acessrio.

    Eu disse parcialmente. Pois todos sabemosque o teatro uma prtica social coletiva, como

    gostava sempre de repetir Jean Duvignaud. E quea presena dos demais ofcios ligados criao dacena s vm a contribuir para aperfeioar esta arteque de fato no tem como ser individual. Por maisque voc seja um one man show, haver semprealgum que antes do pano abrir ter olhado por

    voc, zelado para que sua atuao fosse bem-sucedida. Voc pode at ser uma pessoa pernstica,um artista exclusivista, um one man show

    reservadssimo, mas mesmo assim, ainda antes dopano subir e da luz acender, h algum que porzelar pelo prprio teatro se preocupou com voc.

    Apesar de voc ser maravilhoso, o teatro bemmaior do que voc e seu personagem.

    Mas, voltando ao meu dilogo pueril, queroreafirmar que h uma busca incessante por partedo ator em estar se aperfeioando por meio detcnicas corporais e vocais, permanentemente. Issodeve acontecer independente da rapidez com que

    essas diversas tcnicas corporais e vocais soanunciadas e que logo deixam de ser novidades.Ou, por vezes, a tcnica j at consagrada,

    entretanto aquele multiplicador, que vem no-laapresentar, no passa de um velhaco e oportunistaao se apropriar, inescrupulosamente, de legado tosagrado para outrem que a idealizou.

    E natural que seja essa a condio do ator, ada busca por um movimento perptuo, desuperao e aperfeioamento de seu corpo eesprito, pois ele o ator. Nosso ltimo xam, comodizia o falecido ator Rubens Correia; ou como bemdefiniu Guy Debord, no seu j clssico A sociedadedo espetculo, o profissional da exibio.

    H, portanto, esse conhecimento sobre si, quedizamos acima, e este outro que est fora e precisa

    ser assimilado. maneira dos enciclopedistas, nspoderamos pensar em valores primrios e emvalores secundrios. Isto , aquela categoria deconhecimento, e saber que gerado desde o interiordo sujeito (o que s vezes chama-se talento), eaquele propiciado pela cultura e prtica teatral quefloresce ao seu redor.

    E lamento dizer que, no caso do ator, issosempre foi assim desde os tempos primevos, desdeque aqueles que vieram antes de ns foram

    confrontados com a imperiosa necessidade derepetir a atuao, dia aps dia, de tablado emtablado, de feira em feira, de praa em praa. Como,portanto, instrumentalizar essa repetio?

    Sem remontar aos Mestres Farsantes dos scs.XVI e XVII; aos Cmicos dellArte quemambembaram por toda a Europa; a O paradoxodo comediante de Diderot, que encantou tantosatores; ao prprio Stanislavski, esse sol que no se

    cansa de iluminar as nossas investigaes, as maisemergentes, e de arrojadas teorias, temos queobservar que a cada poca se reinventam astcnicas e procedimentos em acordo ou rupturacom uma tradio. Um substrato que subjaz e por

    vezes nem nos damos conta de que fazemos algoque j foi feito h alguns sculos. Esta espcie demovncia dos conceitos que d lugar ao novodificilmente nos traz, para dentro do campo daprtica artstica, uma novidade definitiva. O

    efmero e o provisrio no esto somente noespetculo que aps uma temporada acaba sedispersando, mas tambm esto presentes o

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    5HODGE, Francis. Play directing: analysis, communication, and style. FourthEdition. New Jersey: Prentice Hall, 1994. A primeira edio desta obra de1971. Desde ento ela editada recorrentemente, tendo em vista que umexemplar precioso sobre assunto onde h poucas obras do gnero.

    efmero e o provisrio na prpria dinmica damatria viva, matria que alimenta e engendra essemesmo espetculo.

    Trat a- se sempre de uma complexa

    reelaborao de formas e procedimentos a dar aperceber o papel do Eu criativo e os fundamentosque orientam esse movimento, ou esse sopro vindoda alma, a expresso artstica. Em outras palavras,aquilo que defino como sendo no uma teoria,certamente, mas a delimitao de um campo doconhecimento que envolve a cultura e a prticateatral. Isto , o conjunto de princpios,condicionamentos e regras; tcnicas e

    procedimentos artsticos em permanente atrito comconcepes estticas e ticas objetivando arepresentao cnica de uma obra ficcional.

    6.

    Mas at agora s lhes falei de forma muitoimprecisa e precria sobre a condio do ator dianteda necessidade de conscincia sobre si e sobre astcnicas formativas que lhe so fundamentais. Esseaspecto formativo parece-me muito visvel do pontode vista da formao do ator, encontrando, inclusive,grande bibliografia consolidada sobre o assunto.

    Entretanto, fato que meu foco aqui deve serOs diferentes processos de encenao e asdiferentes acepes do encenador, conformeanunciaram na engenhosa formulao do ttulo denosso encontro, hoje.

    Devo lhes precisar, entretempo, o local deonde elaborei o que se seguir, daqui a diante.

    Instado a lecionar num curso de formao dediretores teatrais, eu, que fora habilitado eminterpretao e direo pela Unirio, escola queherdou uma forte mentalidade gerada no antigoConservatrio Nacional de Teatro da Praia

    Vermelha, no Rio de Janeiro, no me sentia l muitoseguro e at mesmo convencido de que seriapossvel ensinar direo, ou, corrigindo-me,mobilizar e estimular os aspirantes carreira dediretores teatrais.

    De onde partir? Por onde comear? Qual ocontedo? Meus colegas nesse curso apresentaram-me um cardpio pronto, preciso e objetivo, que

    muito me surpreendera, pois at ento ignorava quetais obras pudessem existir.

    Era uma espcie de manual do tipo faa vocmesmo bem ao gosto dos anglo-saxes.5Ou, olhe

    veja como j pavimentamos para sua trajetria?Observe os modelos e agora faa voc a sua parte.Motivao, causa, efeito e conseqncia, tudo jformulado de tal maneira a nos dar conforto esegurana para nossas prprias experincias.

    Esses livros, de fato, ainda so muito teis,interessantes, ilustrativos e possuem a qualidadede serem muito decentes e corretos. At porque hneles uma sinceridade de propsitos com o fito

    sempre audacioso de ensinar que os aproxima demaneira indelvel dessas publicaes dirigidas scrianas onde h jogos, passatempos, exercciospara colorir, copiar, recortar e colar... No h aquinenhuma crtica pejorativa, o teatro tambm aarte do jogo de armar. Teatro jogo. H de se versim que essas publicaes refletem uma culturaparticular, um pensamento prprio que se queraplicativo com resultados calculados e imediatos.Essas publicaes, no deixam dvidas, so um

    excelente ponto de partida para o jovem aspirante carreira de diretor teatral. Na verdade, essabibliografia apresenta, por meio de exercciosinclusive muito elucidativos, tcnicas de anlise eabordagem do texto teatral; sugestes decomposies para cena; emprego da luz; escolhade figurino; aplicaes da sonoplastia; materiais,etc. Trata-se, portanto, de um conhecimentosistematizado que visa antes de mais nada umaeducao esttica para o teatro. Porm, como todasistematizao, bom ficar vigilante e olh-la deforma crtica.

    Evidentemente que aceitei a proposta de meuscolegas no sem uma certa reserva, at porque, paraquem no tinha a mnima idia de por ondecomear, essa era uma excelente dica... Li diversaspartes e inclusive constatei que aquilo que meusmestres na antiga Escola de Teatro na Unirio

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    6Refiro-me aqui ao trabalho do saudoso Yan Michalski, professor e crticoteatral, que traduziu partes significativas desta mesma obra de Francis Hodgepara seus alunos do Curso de Direo Teatral e Teoria do Teatro na Escolade Teatro da Unirio. A traduo se transformou na Apostilha de DireoTeatral e encontrava-se disponvel no Banco de Peas Teatrais da Escola deTeatro. Provavelmente muitos alunos formaram-se tendo, unicamente, comofundamento sobre direo cnica essa apostilha organizada por Yan Michalski.Somente no incio da dcada de 1980 que o livro de ROUBINE, J-J.Linguagem da encenao teatral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982,fora traduzido pelo prprio Yan Michalski.7A proliferao do dito teatro em arena nas universidades americanasdeveu-se, alm das questes de custo e benefcio para sua implantao,tambm ao trabalho de JONES, Margo. Theatre-in-the-round . NewYork, Toronto: Reinchart & Company Inc., 1951.

    haviam me oferecido como subsdio em algumasaulas de direo teatral j era, em parte, a traduode diversas passagens dessas obras.6

    Por um lado, essas publicaes possuem

    grandes mritos, tendo em vista a naturalsistematizao, aliado ao fato de que elasdesmistificam os meandros da criao artstica edemocratizam, ao divulgar, a possibilidade de seconhecer um campo do saber que possui autonomiaem relao aos demais campos do saber, detentorde suas prprias regras e procedimentos. Esse um aspecto muito positivo que no pode seresquecido. Por outro lado, haveria, segundo essas

    obras, uma orientao exata e precisa acerca daconcepo da cena teatral. Essas obras so muitoeficazes, certamente, para o trabalho com peasrealistas, de fundo psicolgico bem definido, talcomo os exemplos retirados da literatura dramticados realistas europeus e a escola realista norte-americana. O pensamento a enunciado se adequamuito bem tambm aos gneros musicais, sobretudoos modernos.

    Sobressai da leitura desses textos uma

    percepo de que em algum momento no mbitodo ensino superior estadunidense foi estimuladoesse tipo de obra, bem como foi vulgarizado euniformizado pelas universidades o teatro de arena.Graas ao seu baixo custo e alto retorno em termosde benefcio tanto no tocante construo quanto manuteno. Junte-se a isso uma influnciadecisiva do prprio mercado cultural doentretenimento da Amrica do Norte, que levou a

    academia americana, ao padronizar o espao derepresentao, a assegurar, minimamente, atransmisso de uma tcnica para direo teatral.

    Ao mesmo tempo, a Academia procurava facilitara circulao de conjuntos teatrais universitriossem a preocupao de gerar grandes nus commodificaes, em termos de produo, visando aadequao das montagens ao espao teatral doteatro de arena.7

    Diante da leitura dessas obras, pude distinguir

    trs aspectos fascinantes: O primeiro que seuscontedos se adequavam perfeitamente ao teatrode fundo realista e naturalista psicolgico, aquele

    que considera o personagem uma pessoa; o segundo que fica destacada a condio da funo queconhecemos como moderno diretor teatral naposio de porta-voz do autor, ao mesmo tempo

    em que procura acrescentar algo de uma leiturapessoal encenao. Isto , haveria uma nfase nafigura do diretor como um agente criativo que sabeadequar os elementos da cena ao que poderamoschamar de esprito da obra do autor, como disseantes, ou o que o velho Stanislavski chamou desuperobjetivo. E por terceiro, elas so capazes deoferecer uma muito satisfatria introduo ao queeu chamaria de educao esttica dos sentidos para

    a cena. E isso no pouco para quem quer encenarum texto teatral.O caso que, nesse comeo dos anos 1990,

    na escola onde estava lecionando, uma obra dessanatureza parecia no dar conta da inquietao edo inconformismo dos alunos-diretores em relaoao teatro que idealizavam fazer. Os alunosdiretores traziam, para sala de aula, a novidadesurpreendente de que no queriam mais montartextos teatrais convencionais. Isto , o ponto de

    partida para montagem teatral na cabea daquelesjovens, aspirantes carreira de diretor teatral, noadvinha mais do texto dramtico como fora aindapara minha gerao. O foco tinha se deslocado.

    Isso era uma batalha para ns professores, poisno havia mais uma regra e o que prevalecia era aexceo sempre. Dois aspectos se aliavam e sesobrepunham para essa situao. O primeiro quede fato tratava-se de uma gerao, talvez a primeira,

    que podia ser considerada como formada, na suaquase totalidade, base de imagens. A imagem era

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    8 Digamos que a redescoberta de uma lngua afeita ao espetculo,portadora de certa teatralidade, fora do registro da lngua do colonizadorportugus, pode ser hoje verificada em importantes estudos de cunhoetnocenolgico. Consulte-se a esse respeito os anais do V ColquioInternacional de Etnocenologia (org. de Armindo Jorge de Carvalho

    Bio), UFBA, PPGAC-GIPE-CIT, Salvador, 2007.9UBERSFELD, Anne. O homem do julgamento. Trad. Walter Lima TorresNeto. (Lart du thtre. Actes Sud/ Thatre National de Chaillot, hiver 1985. /Printemps, 1986, n 6, p. 73-74). http://www.estudosteatrais.blogspot.com/.

    a referncia mais forte para eles. E em segundo, ofato da reviravolta do prprio teatro que apresentavauma cena, cuja tendncia, cada vez mais, sinalizavasua emancipao do texto teatral por criadores do

    nvel de um Bob Wilson, Franois Tanguy, RobertLepage, Pina Bausch, Tadeuz Kantor, RichardForeman e tantos outros. Vamos e venhamos queh uma enorme distncia, para no dizer um abismo,entre a excelncia artstica e a maturidade de vidadesses criadores da cena contempornea e um jovemaspirante carreira de diretor teatral. Porm, quandosomos jovens, o que no nos falta pretenso. Eisso muito saudvel, sempre.

    Eu dizia que a culpada disso tudo, pois eranecessrio encontrar um responsvel, era a nossaprpria madrasta, dentro de casa mesmo, a lnguabrasileira. Ela no teria nos legado uma dramaturgiabastante forte e interessante como elementofundante de uma cultura teatral que gerasse umalngua portuguesa teatralizada. Vamos e venhamos,mas ningum se acha l muito influenciado por Gil

    Vicente ou por Cames. O teatro do primeiro nofaz parte do nosso imaginrio, a obra do segundo

    linda, porm no teatro. Esse descompasso entrenossa matriz dramatrgica, a de vertenteportuguesa, em relao ao grau derepresentatividade equivalente - inglesa, francesa,espanhola, alem nos colocou numa situaosubalterna que desde o sculo XIX estamostentando reverter. O que seria at natural para umaex-colnia. Evidentemente, essa situao foiadensada pelas caractersticas regionais do pascontinental onde vivemos; seu hibridismo e tantosoutros fatores que no me cabe aqui enumer-los.8

    Conjuntamente, dois outros fatoresadensavam nosso dia-a-dia na condio deprofessor de direo teatral em termos deencaminhamentos para uma orientao. A presenaquase que massiva da influncia do dito teatroantropolgico de Eugnio Barba e todos os seusmulos surgidos aqui no Brasil, nas ltimas dcadas.Em nome do Terceiro Teatro ecoava a palavra

    mgica treinamento. Presumo que nunca setreinou tanto para se fazer um espetculo, nestasltimas trs dcadas do final do sculo XX. A noo

    do treino, para aqueles alunos-atores, era muitofugidia e acreditava-se que de tanto treinar e dominarcerta tcnica corporal ou vocal o espetculoaconteceria. O que um equvoco. O treinamento

    um procedimento tcnico, no um procedimentoesttico ou potico, apesar de poder haver poesiaem certos exerccios vocais e corporais.

    Associava-se agora, ao treinamento do ator, aexpresso-chave que parecia ser capaz de abrir todosos caminhos da criao e justificaria qualquercronograma de montagem. E era muito bom, poisnaquela altura ningum definia muito bem, pois definirmuito poderia inclusive revelar a fragilidade das

    iniciativas dos jovens aspirantes carreira de diretor.A expresso-chave era processo colaborativo.Os procedimentos criativos, apesar de

    inovadores, requerem, para sua efetiva eficcia,maturidade, permanncia e experincia de vidaartstica. Stanislavski dizia que com o passar dosanos o ator melhorava naturalmente sua capacidadeatuacional pelo simples fato de ter assimilado ummaior conjunto de experincias humanas capazesde serem agora reinventadas por ele, melhores

    destiladas em seu esprito. O mesmo no pareceser to relativo quanto ao trabalho do diretor, cujofim de sua ao criativa outra, o plano de suaao no intelecto. O campo de ao docoordenador do espetculo o campo dacapacidade de selecionar e julgar, como bemobservou Anne Ubersfeld.9Enquanto que, dentrode certas concepes de direo, a atuao do ator derivativa desta conceitualizao estabelecidapelo prprio diretor.

    Antes de continuar, preciso enfatizar que nosou contra o teatro antropolgico, a criaocoletiva, o treinamento do ator, ou o processocolaborativo, ao contrrio, sou muito favorvel a

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    10Pouco se tem trabalhado sobre a figura do ensaiador dramtico. Apesar dehaver ainda muito a ser feito sobre este perfil do coordenador do espetculoteatral em perodo pr-moderno, indicamos alguns resultados expressospor ns em: Entre tcnica e arte: o trabalho teatral do ensaiador na virada dosculo XIX/XX. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM ARTES CNICAS, 2, 2001, Salvador.Anais...Salvador:UFBA/ Abrace, 2001. p. 272-278. (Memria Abrace, V); Introduo histrica:o ensaiador, o diretor e o encenador. Folhetim, Rio de Janeiro: Teatro doPequeno Gesto, n. 9, p. 60-71, 2001; Entre tcnica e arte: introduo prticateatral do ensaiador 1890-1954. Sala Preta, So Paulo: Departamento deArtes Cnicas/ECA/USP, n. 3, p. 164-173, 2003; O que direo teatral.Urdimento, Florianpolis Programa de Ps-Graduao em Teatro daUdesc, n. 09, dez. 2007. Ressaltem-se ainda as importantes contribuiessobre a condio do ensaiador dramtico com os atores e as injunes dacategoria autor-ensaiador consultando-se: REIS, ngela. Cinira Polnio adivette carioca. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001; e CHIARADIA,Filomena. Em revista o teatro ligeiro: os autores ensaiadores e o teatro porsesses, na Companhia do Teatro So Jos. Sala Preta, So Paulo:Departamento de Artes Cnicas/ECA/USP, n. 03, p. 153-163, 2003.

    isso tudo. No sou favorvel ao dogmatismosuscitado por essas correntes e procedimentos,sobretudo no mbito da formao de jovensaspirantes carreira de Artes Cnicas.

    O caso era que eu me encontrava na condiode jovem professor diante de um currculo econtedos por vezes questionveis e vianitidamente que essas novidades em termos deprocedimento inquietavam, ao mesmo tempo emque atropelavam os alunos. O resultado dostrabalhos dos estudantes era sempre muito bonitoem termos visuais, muito conceitual em termosprogramticos e bem apresentado em matria de

    produto cultural, pois, a essa altura, j havia muitotempo que a expresso produto cultural j faziaparte do jargo teatral. E apesar de todo essecapricho por parte dos alunos e nossos esforos deorientadores, os espetculos, em sua maioria, nose sustentavam. Havia expresso demais ecomunicao de menos.

    Diante deste quadro de problemas que fuiencontrando, graas inquietao e mobilizaodos prprios alunos-diretores, como que at ento

    o ofcio do diretor teatral vinha sendo entendidoe, sobretudo, como seu perfil vinha sendoreinventado ou transmitido no Brasil.

    A situao se adensava, pois a relao do teatrocom a televiso, ao menos no ambiente criativo doRio de Janeiro, ainda muito forte. Visto que, desdesua criao, a televiso, ao deixar de ser um meroaparelho da famlia do telefone, isto , da condiode transmissor da informao, passou a ser meio de

    divertimento e simulacro da realidade. Em rpidaspalavras, o meio promotor da cultura de massa. Enesse movimento, cada vez mais, para se perpetuarna atualidade, ao menos no mbito de sua produoficcional, o sistema televisivo foi cooptando osagentes criativos. Primeiro aqueles do rdio,naturalmente, depois do teatro, e por fim do cinemae da informtica. Apesar de subordinada a umacorrente realista convencional e segura, as narrativastelevisivas apareciam sempre como um objeto de

    referncia e de debate entre muitos alunos.Ao encaminhar essa investigao, acabei

    denominando de matrizes do agenciamento da cena

    teatral os trs comportamentos ou perfis destesagentes criativos que denominamos genericamentede diretor teatral. Esses trs comportamentos estoidentificados pelos seguintes nomes: o ensaiador;

    o diretor e o encenador.10

    7.

    J faz um tempo que me dediquei nas horasmortas ou quem sabe perdidas a pensar um caminhorelativamente lgico para demonstrar aos alunos-diretores que esse coordenador do espetculo teatralreflete em primeiro lugar aquilo que de maneira geraldenominamos de o esprito de seu tempo. Trata-

    se na verdade de uma mentalidade possvel de sermanifesta graas s injunes cognitivas e sconvenes socioculturais celebradas pela prpriacomunidade na qual esse agente criativo se encontra.

    No obstante, em primeiro lugar, a aparenteclassificao entre essas trs figuras no devedespertar nenhum sentimento de hierarquizao ousubalternidade. Em segundo lugar, essas so matrizesde agentes criativos ideais, isto , que no existem,tal e qual, na natureza do teatro. So categorias ideaisestabelecidas no intuito de colaborar no exercciodo entendimento dos processos de configurao dacena como obra de arte.

    Como veremos, os trs comportamentosdiante da concepo da cena (atuao, espao, luz,som, cor, textura, forma, tempo, etc.), apesar depoderem ser localizados cronologicamente dentrode nossa cultura e prtica teatral, com maior ou

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    11ROUBINE, J.-J.A linguagem da encenao teatral. Trad. Yan Michalski.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 14.

    menor intensidade de atuao, no desaparecerampor efeito deste mesmo tempo. Ao contrrio, elesse justapem e esto presentes, ainda hoje, nasrealizaes teatrais. Basta que nos esforcemos um

    pouco para detect-los. mais gratificante aindaconstatar as intercesses possveis de seremfiguradas na diversidade do repertrio atualmenteoferecido ao espectador.

    Tenho que observar a facilidade legada pelaprpria lngua portuguesa, que na suagenerosidade nos oferece essas trs denominaes

    ensaiador, diretor, encenador. Normalmente,diretor e encenador so sinnimos e empregados

    com o mesmo objetivo, resultando em idnticosignificado. Entretanto, quando da traduo deA linguagem da encenao teatral, de J-J. Roubine porYan Michalski, em 1982, o historiador e crticoteatral afirmava, na sua Apresentao inicialdesta obra, que seria melhor, naquela altura,empregar encenao no lugar de direo, pois,dizia ele, a nossa direo, alm de possuir umaconotao potencialmente autoritria contrria aoesprito que prevalece na obra, refere-se mais de

    perto ao processo executivo de uma realizaoteatral, enquanto na palavra encenao vejoimplcito, com maior fora sugestiva, o resultadoda elaborao criativa de uma linguagemexpressiva e autnoma.11

    De fato, o problema no est na riqueza dalngua portuguesa, mas talvez na exclusividade doemprego do termo mise en scneem francs, que anica palavra para designar a encenao do

    espetculo teatral, e, por derivao, a palavrametteur en scnepara diretor ou encenador, apesar daressalva de Yan Michalski.

    Ainda seguindo a pista deixada por YanMichalski sobre esse carter autoritrio docoordenador do espetculo teatral, bom lembrarque o falecido crtico parecia ter em mente,naquela altura dos acontecimentos, a noo dediretor associada queles espetculos que eramdesignados como espetculo de diretor l pela

    dcada de 1980 e 1990. importanteespecificarmos, ento, essas trs figuras aindapouco enunciadas.

    8.

    Em termos cronolgicos, podemos localizar,em primeiro lugar, o trabalho teatral do ensaiador

    dramtico. Ele seria o agenciador do espetculoteatral num perodo dito pr-moderno; j a figurado diretor teatral estaria associada criao da cenana sua fase moderna de nossa cultura e prticateatral ocidental; restando ao que chamamos deencenador o papel de criador da cena em temposditos ps-modernos.

    Antes de descrever as caractersticas das trsfiguras em termos de procedimento de trabalho e

    concepo cnica, seria desejvel sinalizar, aindaque precariamente, essas faixas temporais.

    Apesar de no se r nossa nfase aqui, necessrio lembrar que uma periodicidade no podedeixar de estar associada s questes sociais emormente de ordem econmica dentro de umasociologia do teatro. H uma dinmica na vidasocial e econmica que condiciona movimentos deinterao entre os perfis apontados. Ainda no nosdetivemos com a ateno que a questo necessita,acerca da definio dessas faixas cronolgicas, poisnos parece que estas distines, em termos demeios de produo, apresentam-se complexas tendoem vista a superposio de tempos distintosdependendo do local de onde emana essa produoartstica. Apesar de nossa conscincia, essa questoda periodicidade ainda no foi satisfatoriamenteenfrentada e resolvida.

    Entretanto, entendemos ento que, de uma

    maneira geral, o legado que constitui o conjuntode tcnicas e procedimentos de trabalho atribudoao ensaiador dramtico remontaria aoRenascimento. Desde o surgimento da perspectivalinear; o acabamento da caixa de iluso da cenafrontal com sua moldura e o arco do proscnio; e,sobretudo, com a fixao de um repertrio degneros claramente definidos, herdeiro do sculoXVII; estabeleceram-se tratados e teorias sobre

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    12 O Renascimento foi prdigo na produo de tratados de cenografia.Observe-se, por exemplo, que desde 1486, que uma espcie de ponto departida para toda reflexo dos decoradores e arquitetos devido ao fato dese ter redescoberto os escritos Marco Vitrvio Pollione. Sua obra Dearchiteturafavoreceu o desenvolvimento, a divulgao e a aplicao dastcnicas arquiteturais e igualmente influenciou a composio da cena e adisposio do edifcio teatral. Em 1545, por exemplo, foi o arquitetoSebastiano Serlio quem publicou o seu O segundo livro de perspectiva,editado em Paris, no qual abordava a arquitetura teatral. Acreditava-se queteria sido ele quem havia configurado os trs cenrios (teles) comdia,

    tragdia e stira (pastoral). O arquiteto Andra Palladio deu incio construo do teatro de Vicenza (1580 projeto e incio) e Vicenzo Scamozzio termina, em 1585, cuja inaugurao se deu com a encenao de diporei. Em 1638, teve-se a publicao de Prtica de fabricar cenas e mquinade teatro, de Niccola Sabbattini.13 Note-se que, nesse sentido, o movimento de incentivo dos estadosnacionais europeus na reconstruo de sua identidade foi largamenteauxiliado pelos ditos teatros pblicos. Constata-se, inclusive hoje, queaps estas instituies terem desempenhado o papel de indutores doressurgimento da arte teatral, inclusive como agente de prontorestabelecimento das naes europias, na atualidade desempenham afuno de catalisadores da integrao europia. Desde 1990, graas aoempenho e iniciativa do ento ministro da cultura da Frana, Jack Lang,e de Giorgio Strehler, foi se articulando um movimento, entre os paseseuropeus que j dispunham dessa rede de teatros pblicos, para se

    estabelecer uma integrao no nvel cultural entre as diferentes regiesda Europa, com a finalidade de integrar e garantir a consolidao cadavez mais firme do estabele cimento da Unio Europia. Consul tar oendereo eletrnico http://www.ute-net.org/ ou Ubu: Revista do TeatroEuropeu, em http://www.ubu-apite.org/fr/magazine/.

    a concepo do olhar e a racionalizao do espaoda cena dita frontal italiana.12

    Mesmo sabendo da flexibilidade de concepesacerca dessas faixas temporais, procuramos localizar o

    ensaiador dramtico nessa extenso, que remonta aoRenascimento, devido ao fato de que, enquanto o tempoavana, sua funo ora foi desempenhada por ummsico, um cengrafo, um ator, um autor; e somentena segunda metade do sculo XIX teve-se notcia deque ele se dedicava, exclusivamente, coordenao daparte artstica e material da cena, representao, vezpor outra atuando tambm como ator.

    O sculo XIX por assim dizer o momento

    culminante de seu trabalho, visto a proliferao deteatros e o crescimento de uma demanda deentretenimento nas principais cidades europias eamericanas. Junte-se a isso a ecloso dosmovimentos Naturalista e Simbolista nas artes demaneira geral e no teatro de forma particular. Foi oensaiador dramtico o homem de confiana dediversos autores que com suas peas quiseramchamar ateno para os novos fundamentos de umaarte que buscava refletir o real de forma exata,

    expondo a misria dos ambientes e daspersonagens, rompendo uma vez por todas com aidealizao do comportamento ficcional quereinava desde o classicismo.

    Pouco a pouco, no bojo do movimentoNaturalista/Simbolista no sculo XIX, se delineouo segundo perfil. O perfil do moderno diretorteatral encontra nas figuras paradigmticas de

    Andr Antoine e de Constantin Stanislavski suas

    matrizes comportamentais. E da em diante,coloca-se em movimento a noo de um diretorteatral que, ao se considerar como porta-voz doautor dramtico, tambm se v diante daresponsabilidade e da necessidade de criar umacamada sgnica que refletisse a sua interpretaopessoal de certa obra dramtica. O estabelecendouma camada de subjetividade que plasma sobrea cena especialmente concebida para ela aafirmao de uma teatralidade, identidade do

    espetculo. o primado das diversas e possveisverses de montagens de um mesmo texto porvrios diretores diferentes que propem ao texto

    as mais distintas vises para glria da dramaturgiae sucesso da encenao. Este novo princpio detrabalho estipulava, por exemplo, a leitura de mesacomo procedimento obrigatrio a toda equipe de

    criao envolvida com a montagem, assim como aleitura da totalidade do texto por todo o conjuntode atores para melhor conhecimento do todo,independente das suas partes. a idia de que huma organicidade na operao do texto cena eum melhor entendimento das partes se d peloconhecimento do todo tanto da escrita dramtica(o texto) quanto da escrita cnica (a encenao).

    9.

    Quando da reconstruo da Europa, duranteo ps-guerra, foi a noo de Teatro de Arte13quese imps para colaborar no reerguimento dasidentidades nacionais. Essa tendncia teatral tinhafortes contornos humansticos e clssicos. Diga-sede passagem que foi essa concepo, similar quelada virada do sculo XIX para o XX, agoraatualizada aps 1945, que levou Bertolt Brecht eHelene Weigel a se instalarem em Berlim Leste ecriarem o Berliner Ensemble em 1949. Em Milo,

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    14O cartel foi integrado pelos diretores: Louis Jouvet; Gaston Baty;Charles Dullin e Georges Pitof. Tratava-se de uma associao colaborativainformal onde esses homens de teatro que comungavam dos mesmosprincpios referentes a uma cultura e prtica teatral comum ajudavam-semutuamente na realizao de seus espetculos e projetos. Associa-se aesses criadores o estabelecimento de uma sistemtica na direo daconsolidao de um teatro de arte nas dcadas de 1940-1950, na Frana.15 Consultem-se a este respeito os trabalhos de: GIANELLA, Maria deLourdes Rabetti. Contribuio para o estudo do moderno teatrobrasileiro: a presena italiana. So Paulo: Departamento de Histria daFFCHL/USP, 1988; RAULINO, Berenice. Ruggero Jacobbi: presenaitaliana no teatro brasileiro. So Paulo: Perspectiva, 2002, e VANUCCI,Alessandra. Crtica da razo teatral: o teatro no Brasil visto por RuggeroJacobbi. So Paulo: Perspectiva, 2005.16

    Consulte-se sobre essa noo o trabalho exemplar de anlise de trsespetculos especficos do ento criador cnico Gerald Thomas. In:FERNANDES, Silvia. Memria e inveno: Gerald Thomas em cena. SoPaulo: Perspectiva, 1996. Ou ainda a seguinte obra: GALIZIA, Luiz Roberto.Os processos criativos de Robert Wilson. So Paulo: Perspectiva, 1986.

    Paolo Grassi e Giorgio Strehler construram seuedifcio para o Piccolo Teatro de Milano, inauguradoem 1947. Na Frana, o TNP passou a ser dirigidopor Jean Vilar em 1951, aps convite feito pelo

    governo. Entretanto, j desde 1947 esse diretorvinha trabalhando em prol da descentralizao emfuno do Festival de Arte Dramtica de Avignon,que ele prprio criara. Na Inglaterra, cujo teatrosempre teve uma tendncia fortemente ligada aoentretenimento comercial, estabeleceu-se de prontoa valorizao de um repertrio que retomava osgrandes clssicos elisabetanos. Tratava-se de ummovimento geral tanto a leste quanto a oeste deBerlin. Com essa cidade passando a ser uma espciede ponto de equilbrio entre as naes europiasaps o fim do conflito e o restabelecimento dasfronteiras. Nesse ambiente de um Teatro de Arte,foi o diretor teatral o agente de uma pactuao coma sociedade na busca por uma modernizao dacena, ao mesmo tempo em que a obra teatral seapresenta como uma obra de arte.

    Dessa dcada de 1950 em diante, ainda nos anos1970 e 1980 se afirmava o primado do diretor,

    conforme Anne Ubersfeld gosta de cham-lo, comoaquele diretor demiurgo e por vezes irascvel naimposio de suas idias. So os descendentes de B.Brecht pelo vis alemo e os descendentes de J.Copeau por conta do cartel, e mais tardiamente osherdeiros de V. Meyerhold e dos simbolistas russos.Para esses diretores, o influxo da cena estaria centradono texto ainda que se divirja sobre o tratamento a serministrado. O texto ainda estava circulando entre aperiferia e o centro da criao cnica.

    A experincia do cartel na Frana,14 duranteas dcadas de 1940 e 1950, foi o exemplo maisbem acabado dessa proposta de viso de trabalhoteatral junto aos elementos da cena realizados pelodiretor teatral, que condicionado ao texto nodeixava de expressar um pensamento de juzo sobreesse mesmo texto. Para exemplificar, no casobrasileiro, podemos lembrar das experincias dosdiretores italianos que tanto colaboraram com o

    Tea tr o Bras il ei ro de Comdia (TBC) e queencarnam exatamente esse perfil que estamosdescrevendo Luciano Salce, Ruggero Jacobbi,

    Adolfo Celi, Roberto DAversa, Gianni Ratto.15

    Da dcada de 1980 para a de 1990, aqui noBrasil, houve um adensamento em torno da figurado coordenador do espetculo teatral bastantenotrio, e inclusive verificado na prpria imprensa

    especializada. Sinalizava-se o dissolvimento dosgrupos de criao coletiva e afirmava-se apreponderncia dos espetculos de diretores.

    Verif icava- se , da em dian te , uma s ri e denovidades em termos processuais que alterariam apromoo, exibio e recepo de uma narrativacnica procedimentos de explorao da cena porconta de novos recursos tecnolgicos;realinhamento da chamada direo dos atores

    propondo-se uma nova situao para o ator nointerior do espetculo; uma nova aplicao daexpresso oral e corporal; o estremecimento dasfrmulas at ento consagradas no emprego doselementos da cena que so subordinados, no maisquela idia detectvel ou lida no resduodramtico, no texto teatral tradicional; etc.

    A cena agora estava definitivamente livre daliteratura dramtica ou de um ncleo ficcional quegerasse uma essncia, para estar subordinada a uma

    idia autnoma que se tornava encenao.16Da apercepo de que esse encenador teatral, mais doque encenar uma histria ou uma narrativa oriundade uma matriz dramtica ou dramatrgica, servir-se-ia de outras fontes possveis. Colocava-se emcena uma idia; um problema; uma questo; ou atmesmo a prpria memria desse realizador cnico.Poderia-se dizer que, em certa medida, o trabalho

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    teatral desse coordenador contemporneo doespetculo teatral estaria intimamente associado aotrabalho criativo daqueles cineastas que forjaram oque vulgarmente chamamos de cinema de autor.

    Linguagem e contedo foram sintetizados em proldessa criao cnica que estaria desobrigada derevelar uma dramaturgia convencional. Dissolve-se,nesse sentido, a figura do autor teatral stricto sensu.

    A prpria noo de dramaturgia se modificavadiante dessa nova engrenagem. Se,etimologicamente, drama oriundo do grego esignifica ao, dramaturgia, em si, seria pordefinio particular a arte ou a tcnica da

    composio dramtica. Mas qual composiodramtica seria possvel em tempospredominantemente ps-dramticos?

    Dizia Pirandello que a trama de uma pea era arazo de ser do personagem. O caso que hoje anoo de dramaturgia e conjuntamente aquela depersonagem extrapolam os limites daquilo queoutrora fora a composio de peas teatrais.Contemporaneamente, encontram-se espetculos dediversos coletivos teatrais ou de criadores cnicos

    que afirmam desenvolver uma dramaturgia prpriaou uma dramaturgia corporal sem necessariamentese ater composio de um personagem; ou aindatrabalhos que repousam sobre uma dramaturgia doator, que exploram a sua prpria biografia comoresduo para cena; com encenaes que soelaboradas segundo uma dramaturgia oriunda deprocesso colaborativo, entre outras denominaes.

    Naturalmente, estes so desdobramentos que

    possuem sua origem histrica e esttica no trabalhoteatral de um V. Meyerhold, apesar de que, porvezes, essa matriz paradigmtica seja atribuda sexperincias de B. Brecht, autor e diretor de seusprprios espetculos. O fato que, na atualidade,a discusso sobre a construo de uma dramaturgiase afirma por conta de um processo criativo hbrido,onde a noo de autoria no se apresenta maiscomo era no passado. A noo de autoria hoje nomnimo flutuante diante dos diversos

    procedimentos e determinismos vivenciados pelocoletivo teatral. E esse dissolvimento da figura doautor dramtico tradicional acaba se refletindo no

    trabalho teatral desse agente criativo que estamoschamando de encenador.

    guisa de concluso, estabelecemos umquadro sintico17 sobre estes trs perfis

    mencionados e que deve colaborar no intuito deser um indutor dos estudos dos processos criativosdos comportamentos destes agentes criativos dianteda produo daquilo que costumamos chamargenericamente de encenao teatral. Trata-se deum quadro exclusivamente idealizado para finsdidticos. Portanto, toda cautela acerca degeneralizaes importante para sua leitura.

    17Este quadro um ponto de partida e no est fechado, ao contrrio,ele deve provocar uma abertura para discusses sobre a coordenaoe realizao do trabalho criativo do responsvel pela encenao teatral.Os perfis estabelecidos no devem ser entendidos como classificatriose reducionistas. So tipos ideais para facilitar o estudo da cultura e daprtica teatral. No devemos interpretar um perfil como superior, maisdesenvolvido, ou melhor, do que o outro. O que est em questo a

    dinmica do trabalho imaginrio engendrado pelos criadores cnicoscom o intuito de estabelecer uma interface com a sociedade e seusmodos de apreenso do espetculo. Este quadro, na data de hoje, j estsuperado, pois no contempla o perfil do performador teatral.

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    Perfil /

    Trabalho

    Teatral

    Ensaiador / Repetidor Diretor / Regente Encenador / Coregrafo

    Concepo dacena

    Pr-moderna. Localizada desde a sadada I. M. Renascimento, sculos XVI,XVII, XVIII, XIX. Cengrafo, autor,msico, ator e empresrio podemdesempenhar essa funo.

    Moderna. Verificada desde o final dosc. XIX, j ao longo da segundametade deste mesmo sculo. Funoassumida por algum que se colocafora da cena. Como verdadeiromediador.

    Ps-moderna. Agregando manifestaeshbridas como o teatro dana, herdeiro dasvanguardas, das experincias da Bauhaus, daarte coreogrfica, em dilogo com os processocriativos das vanguardas histricas (a escritaem viglia e o processo associativo...) Seleo;colagem e montagem. Presena do cinema. Orealizador.

    Disciplinas deapoio

    Histria, Humanidades, Retrica.Histria, Cincias Sociais (Sociologia,Psicologia, Antropologia e Poltica).

    Histria, Cincias Sociais (Sociologia,Psicologia, Antropologia, Poltica), Esttica,Filosofia, Psicanlise. Holstica.

    Autoria dovestgioficcional.A fbula

    Autor dramtico(ficcional)

    Autor dramtico(atrito entre real e ficcional)

    Autor-encenador ou em processocolaborativo com o encenador e equipe deagentes criativos. Biogrfico e ficcional aomesmo tempo.

    Texto

    Textocntrico; gneros fixos, com anecessidade de adequar a dramaturgiacom a cena. Autoria marcada pelafigura do autor dramtico.

    Textocntrico; produo desubjetividade; interpreta ao mesmotempo em que se diz porta-voz doautor. Herdeiro de um projetohumanista e da tradio.

    Cenocntrico; negao da dramaturgiaconvencional como base de trabalho,repensando-se o processo de criao cnica.Herdeiro das vanguardas. A personagemficcional subtrada.

    Atuao Ator-tipo Ator de composioAtor-bailarino; ator-colaborador; ator-autor;dramaturgia do ator; dramaturgia do corpo.So diversas as denominaes.

    Espao

    Frontalidade sem outra possibilidadede espao dedicado a reproduzirtipologias reconhecveis de imediatopelo espectador.

    Inicia-se na frontalidade, mas rompecom a caixa de iluses na busca porespaos no convencionais. Sugesto eabstrao. Ganha inclusive o espao darua.

    Espao conceitual; um outro espao baseadona frontalidade ou no. Espao flutuante.Espao ficcional e espao real confrontados econfundidos.

    Aspectossonoro-visuais

    Pr-codificados Criados especificamente Elementos da linguagem cnica

    Espectador/Pblico

    Pblico indistinto. Diversos segmentossocioculturais associados ehierarquizados dentro da sala de

    espetculo.

    Pblico de diletantes. Especialista.Herdeiro do gosto de uma certa elitecultural. O espectador que conhece a

    obra apresentada. Teatro dito de arte.

    Segmentado e dirigido. Grupos deespectadores. Segmentao no mais na sala,mas por conta da temtica; ou projeto de

    montagem.

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    Educao Somtica: seus princpios

    e possveis desdobramentosMarcia Strazzacappa1

    RESUMO: Seria a Educao Somtica um mtodo dereabilitao corporal? Ou trata-se de uma terapia corporal? AEducao Somtica tem apenas fins teraputicos e corretivos outambm pode ser usada com fins profilticos e preventivos?Poderia a Educao Somtica ser empregada para a criaocoreogrfica cnica? Essas so algumas das questes quenortearam minha pesquisa de doutorado e conduziram a uma

    investigao anterior sobre a gnese dessas tcnicas e suaspossveis aplicaes. No presente artigo, compartilho com oleitor resultados do estudo, no qual so apontados os conceitosfundadores da Educao Somtica.

    Palavras-chave: educao somtica; gnese; criao coreogrfica;tcnicas corporais.

    Somatic Education: its principles and possible developments

    ABSTRACT: Would Somatic Education be a method ofrehabilitation? Or is it a body therapy? Has Somatic Educationonly corrective or therapeutic purposes or can it also be usedwith prophylactic and preventive purposes? Could Somatic

    Education be used to create choreographies? These are some ofthe questions that guided my doctoral studies and led to aprevious research on the genesis of these techniques and theirpossible applications. This article shows the study results aboutthe founding concepts of Somatic Education.

    Keywords: somatic education; genesis; choreographic creation;body technique.

    A expresso Educao Somtica j faz parte dovocabulrio nacional. Em diferentes espaos, tantoeducacionais quanto teraputicos, como escolas de

    dana, academias, estdios privados, centros defisioterapia, cursos universitrios, ouve-se essaexpresso. Porm, na mesma medida em que o termo difundido e utilizado, acaba sendo vtima de muitosequvocos e confuses. A Educao Somtica poderiaenglobar todas as tcnicas corporais desde quepraticadas de forma consciente? Seria a EducaoSomtica um mtodo de reabilitao corporal? Outrata-se de uma terapia corporal? A EducaoSomtica tem apenas fins teraputicos e corretivos

    ou tambm pode ser usada com fins profilticos epreventivos? A Educao Somtica pode serempregada para a criao coreogrfica? Essas

    1Marcia Strazzacappa, artista da dana e pedagoga. Doutora em Artes pela

    Universidade de Paris, Frana. Professora da Faculdade de Educao da

    Unicamp. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq.

    2

    A tese intitulada Fondements et enseignements des techniquescorporelles des artistes de la scne dans ltat de So Paulo, au

    XXme sicle, Universidade de Paris, Frana, 2000, encontra-se em sua

    ntegra disponvel on-line. Sua traduo e adaptao foram concludas

    e a publicao em lngua portuguesa est no prelo pela Summus.

    questes, dentre outras que nortearam minhapesquisa, conduziram a uma investigao anteriorsobre a gnese dessas tcnicas e suas possveisaplicaes. Como a Educao Somtica chegou cena? Que tipo de emprego se faz da EducaoSomtica nos pases da Europa e da Amrica doNorte, onde ela mais difundida? E aqui no Brasil?

    O presente texto apresenta uma sntese do

    ltimo captulo de minha tese de doutorado2, no qualso feitas reflexes com o objetivo de esclareceralguns conceitos fundadores da Educao Somtica.O texto apresenta igualmente uma discusso sobrea prtica da Educao Somtica no pas, dandodestaque aos educadores somticos nacionais.

    A histria de um termo

    A Educao Somtica j est presente em

    territrio nacional h, pelo menos, quatro dcadas,porm mais conhecida sob outros ttulos, comotcnicas corporais alternativas, tcnicas de release, tcnicasde conscincia corporal. Sabemos que a expressoEducaoSomticafoi definida pela primeira vez porThomas Hanna em 1983, num artigo publicado narevista Somatics. O referido artigo afirmava que aEducao Somtica eraa arte e a cincia de umprocesso relacional interno entre a conscincia, obiolgico e o meio-ambiente. Estes trs fatores vistos

    como um todo agindo em sinergia (HANNA,1983, p. 7).Segundo Sylvie Fortin, professora daUniversidade de Quebec, Canad, aps a realizaodo primeiro simpsio bianual Science and Somaticsfor Dance, em 1989, o termo passou a ser

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    3A expresso reformador do movimento (reformateur du mouvement) estar

    sendo empregada no presente texto diante da falta de uma outra que

    melhor traduza nossa idia (pensadores do movimento?! Tericos do

    movimento?!).

    gradualmente consolidado, o que se verifica depoisda formao do International Somatic MovementEducation and Therapy Association, nos EstadosUnidos, e do Regroupement pour lEducation

    Somatique, no Quebec. No Brasil, vimos oreconhecimento dos trabalhos de Klauss e Angel

    Vianna, de Jos Antonio Lima, de instrutores dediferentes tcnicas que se disseminaram pelo pas,alm da abertura de cursos superiores em dana comabordagens somticas (Faculdade Angel Vianna no Rio de Janeiro; Anhembi-Morumbi, em So Paulo,para citar alguns), alm de cursos de ps-graduao

    especializao.

    Para Fortin (1999), em seu artigo intituladoEducao somtica, novo ingrediente da aula de dana, aeducao somticaengloba uma diversidade deconhecimentos onde os domnios sensorial,cognitivo, motor, afetivo e espiritual se misturamcom nfases diferentes. Assim, temos as tcnicasde Alexander, Feldenkrais, Bartenieff, a Ideokinesis,o Body-Mind Centering, entre outras.

    Nos estudos de doutoramento realizados sobrea gnese das chamadas tcnicas de Educao

    Somtica e numa anlise comparativa eaprofundada sobre aquelas que chegaram e soutilizadas em territrio nacional, pude observaralguns pontos em comum no que concerne a seusprincpios fundadores, quais sejam:1. as tcnicas de Educao Somtica estudadas

    tiveram um ponto de partida comum: uma lesosria, uma doena crnica ou uma molstia;

    2. as tcnicas de Educao Somtica colocaramem questo a medicina normalmente praticada

    nos pases ocidentais;3 . as tcnicas de Educao Somt ica

    percorreram uma trajetria similar,essencialmente emprica, que ia da prtica teorizao;

    4. as tcnicas de Educao Somtica apresentamcomo pensamento fundador a unificaocorpo/esprito do indivduo.

    Um princpio comum

    Os reformadores do movimento estudadosdefiniram suas tcnicas a partir de problemas

    vividos. Intitulo como reformadores do movimento3ospioneiros no desenvolvimento e na codificao detcnicas corporais especficas que tinham comopreocupao o movimento (ou a recuperao do

    movimento) do homem e da mulhercontemporneos. Os reformadores se diferenciamde coregrafos, bailarinos e diretores teatraisporque as tcnicas que idealizaram noapresentavam, a priori, fins estticos. Sabe-se quea codificao de muitas tcnicas corporais efetivadapor artistas tinha como objetivo a adequao domovimento dos intrpretes sua concepo pessoalde movimento. Ao praticar a tcnica desenvolvida

    pelo coregrafo, os danarinos tornam-se maisaptos para executar com maior perfeio as idiasde movimento por ele concebidas. Assim foi com

    vrias escolas de dana moderna como MarthaGraham, Jos Limon, Merce Cunnighan, entreoutros. O intuito do desenvolvimento de suastcnicas de dana era esttico-criativo. Oscoregrafos no estavam necessariamentepreocupados com o corpo, nem com aindividualidade de cada danarino. Ao contrrio, o

    danarino dever-se-ia colocar disposio docoregrafo, anulando, se preciso (e possvel) fosse,suas caractersticas pessoais. Padres demovimento e ideais de corpo so idealizados esolicitados por cada escola. O danarino , assim,um instrumento (uma massa de modelar) a serviode uma esttica.

    Diferentemente dos coregrafos, osreformadores do movimento no pensavam na

    padronizao de corpos, nem tinham uma pr-concepo esttica. O desenvolvimento de suastcnicas, embora tenham surgido da necessidadede solucionar problemas especficos e mesmopessoais, tinha como objetivo exatamente o oposto:resgatar a unidade e identidade do ser humano.Estas tcnicas partiam do princpio de que nenhumser humano igual ao outro e de que estasdiferenas deveriam ser respeitadas e mantidas. Os

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    estariam a procura, exatamente, da possibilidade de noserem normatizados. (LIMA, 1994, p. 16)

    dentro deste esprito que as tcnicascorporais encontraram um reconhecimento, um

    status no mundo teraputico dito alternativo,mesmo sem ser esta sua vocao primeira. Estasprticas, ainda que sem o rtulo de mdicas, trazembenefcios aos indivduos que as praticam,oferecendo-lhes exatamente aquilo que procuramna medicina tradicional, mas que raramenteencontram: a ateno sua integridade.

    No entanto, no podemos confundir. Sabe-seque todo e qualquer trabalho corporal, seja ele

    esportivo, ritualstico ou artstico, seja a dana, oteatro, a acrobacia, entre outros, toca o indivduocomo um todo. No h a dicotomia corpo/esprito,tudo o que toca o corpo, o corao registra. Tudoque falado ao corao, mesmo que em segredo, ocorpo escuta (STRAZZACAPPA, 1994, s/p). No este fato em si que ir implicar ou garantir ocarter teraputico destas atividades.

    A relao entre teoria e prtica

    O terceiro ponto em comum entre as tcnicasde Educao Somtica estudadas se encontra narelao entre a prtica e a teorizao desta prtica.

    Todos os reformadores partiram do vivido, doconcreto, de suas experincias sensoriais, de suas

    vivncias. Desenvolveram pesquisas fundamentalmenteempricas. A teorizao foi posterior. Dizemosteorizao e no teoria, porque esta ltima estpresente a todo instante. No acreditamos na

    dicotomia teoria/prtica, como defendem algunspensadores. A teoria e a prtica caminham lado alado e alimentam-se mutuamente. A teorizao compreendida como a reflexo profunda esistemtica sobre dados empricos, alimentada pordados intuitivos e cientficos posteriores experimentao.

    No caso da Educao Somtica, vimos quemuitos reformadores partiram da intuio e daexperimentao. Mabel Todd um exemplo

    concreto. Ela seguia apenas sua intuio. No inciode suas investigaes costumava dizer a seusalunos: pode soar tolo, mas funciona (TODD,

    1937/1997, p. 216). A teoria sobre seu trabalhosurgiu quando ela passou a ter uma mdica entreseus estudantes, Dra. Lulu Sweigard, que terminouficando mais conhecida que a prpria mestra ao

    realizar uma pesquisa que acabou por sistematizarum trabalho corporal baseado na comprovaocientfica do trabalho de Todd.

    A teorizao tem sua riqueza como memria.A memria que permite ao outro comear umtrabalho a partir do ponto onde o primeiro parou.Esta arte efmera que a arte do movimento podeencontrar sua eternidade nesta memria, nosprincpios e fundamentos perpetuados em registros.

    Foi assim que Delsarte pde ser ressuscitado 60anos aps sua morte. As universidades tm umpapel importante na preservao desta memria.Cabe lembrar que muitos reformadores, sobretudoos brasileiros, encontraram nas instnciasuniversitrias o respaldo financeiro e logstico parapoder teorizar seus trabalhos. Foi assim com Klauss

    Vianna e Jos Antonio Lima, dentre outros.

    A relao dicotmica corpo/esprito

    As tcnicas desenvolvidas pelos reformadoresdo movimento tiveram uma noo fundadoracomum: a afirmao da unidade do ser humano,quer dizer, a convico da unificao corpo/esprito. Embora isso parea ser, a princpio, umponto comum, este pensamento contm um longoe difcil debate. Todos afirmam categoricamenteque o Homem a unificao do corpo e do esprito.Mas de que corpo eles falam? De que esprito? No

    tratarei aqui desta problemtica imensa quemereceria ser objeto de uma outra tese, mas gostariade indicar alguns pontos para nossa discusso.

    A afirmao da unidade corpo/espri to defendida ao longo dos discursos de certosreformadores que tendem a manter em suasretricas a utilizao do duplo conceito corpo/esprito. Ora, se o Homem uma unidade, porque, ento, continuar a acentuar o dualismo?Outros reformadores esto convencidos da

    unidade, mas, em suas prticas, acentuam umelemento em relao a outro. Mais uma vez, se oHomem uma unidade, possvel haver a

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    supremacia de uma parte em relao outra? Assim,poderamos dividir os reformadores em doisgrupos: o primeiro, que acentua a ao dopensamento sobre o corpo, e o segundo, que

    acredita que o corpo tem uma ao mais efetivasobre o pensamento. Embora fique claro quenenhum dos dois grupos nega a existncia destesdois fatores como elementos edificantes de umaunidade do indivduo.

    Os reformadores nascidos de uma linha naqual a imagem e a visualizao tm importantespapis no desenvolvimento de suas tcnicas, comoas tcnicas de Alexander, a Ideokinesis e seus

    discpulos (Todd, Sweigard, Clark, Dowd,Bernard), acentuam a ao do pensamento, nocomo princpio da metodologia, mas comoferramenta para o sucesso de seu mtodo. J otrabalho de Bartenieff, Baindbrigde-Cohen,Feldenkrais, Struyf-Denys, Gerda Alexander,

    Vianna e Lima so mais voltados nfase do corpoe do movimento.

    Buscando clarear equvocos

    Nesses anos de estudo e pesquisa sobreEducao Somtica no pas, tenho constatadoalgumas confuses e outros equvocos quanto denominao de certas atividades corporais e suasaplicaes como pertencentes a este campo doconhecimento. Embora trabalhos srios deEducao Somtica j sejam realizados no Brasilh mais de quatro dcadas por inmerosprofissionais formados em diferentes linhas, a

    Educao Somtica, vitimada por um modismo(como tantos outros que j presenciamos no pas),passou a ser vista como um selo de garantia ouum certificado de qualidade das tcnicascorporais. Isso levou a uma tentativa desenfreadade intitular trabalhos corporais como pertencentes gama de tcnicas de Educao Somtica. Sobesse ponto de vista, professores das mais variadastcnicas corporais se auto-intitularam educadoressomticos ou, ainda, passaram a chamar e divulgar

    suas atividades como Educao Somtica, nointuito de aumentar a clientela e o valor bruto desua hora de trabalho.

    O equvoco de nomear trabalhos tcnicoscorporais como Educao Somtica no parteapenas de professores e instrutores. Por vezes, oprprio praticante comea a realizar treinamentos

    somticos cotidianos [sic] por meio da execuode prticas de qualquer natureza, independente deseu fim especfico. Dentro desse terreno recm-batizado (que gera, inclusive, um incmodo ao sejuntar as expresses treinamento e somtico),incluem-se tcnicas de dana, de luta, capoeira,yoga, Pilates, para citar algumas.

    Baseando-nos apenas nos elementosapresentados nesse texto, j se podem descartar

    algumas tentativas de incluir ou classificar tcnicasde dana que so notoriamente com fim estticoe/ou cultural (como bal clssico e dana modernaou ainda manifestaes populares como as danasreligiosas, as danas de rua, a capoeira, etc.), eoutras tcnicas com fins de combate (lutatailandesa, tai-kon-do, entre outras), como tcnicasde Educao Somtica, quando realizadas dandonfase conscincia corporal. Mesmo que umprofissional do universo da arte busque praticar

    essas tcnicas de dana ou de luta com umainteno diferenciada, isto , com o objetivo deaprimorar seu trabalho corporal, desenvolver maiorflexibilidade e adquirir maior conscincia corporal,ainda assim no estar praticando EducaoSomtica. Trata-se de um equvoco. O que permitea uma determinada tcnica ser considerada comoEducao Somtica no o fato de ser realizadacom maior preocupao e ateno com o corpo, e

    sim, como vimos no presente texto, sua gnese,seus fundamentos, suas metas e as metodologiasempregadas para chegar a esses objetivos.

    Mas poder-se-ia perguntar: por que anecessidade de qualificar toda e qualquer tcnicacorporal como sendo Educao Somtica? Seria issoapenas fruto do modismo? Qual a finalidade declassificar e de criar categorias para determinadasatividades? Verifica-se um uso perverso daclassificao quando, de fins didticos e

    informativos, passa-se a um uso discriminatrio, aose criar concomitantemente uma ordem hierrquica,com a valorizao de uns em detrimento a outros.

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    4 Vide artigo publicado na revista Pro-posies, 1998.

    Ora, as tcnicas de dana, de luta, de alongamento,de condicionamento corporal, como as acimaelencadas, quando praticadas de forma conscientee com a mediao de um bom professor, instrutor

    e/ou mestre, representam trabalhos tcnicosaltamente qualificados, o que bom e desejvel,independente de terem o selo de EducaoSomtica. Alis, ser efetivamente um trabalho deEducao Somtica no garantia de qualidade, poisj presenciei atividades notoriamente de uma linhaespecfica de Educao Somtica sendo realizadasde qualquer forma, sem nenhuma orientaoadequada. Ou seja, o crdito no est na tcnica em

    si, e sim em quem a ministra e orienta.Desdobramentos possveis e/ou

    aproximaes desejveis

    H alguns exemplos de trabalhos que associamatividades tcnicas convencionais (tcnica dedana clssica, moderna, luta, capoeira, entreoutras) com tcnicas de Educao Somtica(Alexander, Feldenkrais, Ideokinesis, BartenieffFundamentals, Body-Mind-Centering) que podemsurtir efeitos muito positivos.

    Sylvie Fortin realizou um estudo com trsdanarinas profissionais com o objetivo de analisaros efeitos da Educao Somtica sobre o trabalhoprofissional enquanto danarinas, professoras ecoregrafas. Nesse estudo,4 evidenciou-se que aEducao Somtica, como instrumento paraprofessores e coregrafos, pode mudar a qualidadedo trabalho em sala. A educao somtica no estmais sendo oferecida simplesmente como umtreinamento complementar, nem para o estudo datcnica; cada vez mais, ela est sendo integrada prpria aula tcnica (FORTIN, 1998, p. 64).

    A in fluncia das tcnicas de EducaoSomtica nos cursos de dana comeou a mudar aestrutura de funcionamento dos cursos. Antes,como nos indica Fortin, eram os prprioscoregrafos que impulsionavam a evoluo,introduzindo suas estticas e suas ideologias decorpo nas aulas de dana e no trabalho detreinamento fsico. Atualmente, a EducaoSomtica ocupa um espao importante ao lado decoregrafos e diretores teatrais, concluindo que a

    percepo do papel da Educao Somtica podermudar assim que sua prtica estiver incorporadaem grande escala nas aulas tcnicas de dana.

    Caminhando para concluir areflexo

    Caminhando para a concluso, no da discusso,mas do presente texto, destaco que na atualidadetemos em territrio nacional uma gama de tcnicassomticas sendo praticadas e ensinadas e um nmeroconsidervel de profissionais atuando nos campos daarte, da sade e da educao, formando, inclusive,praticantes e outros profissionais. J h nos cursos

    superiores de dana brasileiros pessoas que trabalhamna interface entre dana e Educao Somtica. Higualmente cursos de ps-graduao (especializao)sobre a temtica e ps-graduandos em diferentesprogramas (educao, sade e arte) desenvolvendopesquisas sobre Educao Somtica.

    Nos diferentes espaos nos quais atuo e noscursos que ministro, sejam eles acadmicos ou deeducao no-formal, tenho disseminado os

    resultados dessa minha pesquisa terica e,sobretudo, destacado a prata da casa, isto , otrabalho dos reformadores do movimento nacionais,como Klauss e Angel Vianna e Jos Antonio Lima.

    Da mesma forma como Paulo Freire, no campoda educao, e Augusto Boal, no campo do teatro,tornaram-se referncias internacionais, por vezes maisconhecidos e difundidos no exterior que no prpriopas, identifico no trabalho dos Vianna e de Jos

    Antonio Lima, quanto no trabalho de seus discpulos

    de primeira e segunda gerao, princpios inovadorese resultados surpreendentes no que tange a essecampo do conhecimento, com as mais variadasaplicaes e possibilidades. Aqueles que tiveram aoportunidade de estudar com esses verdadeirosmestres, em seus distintos momentos, compreendemo que falo. Caberia talvez ainda, num exercciohercleo e enquanto ainda possvel beber na prpriafonte (no que toca a Angel e Lima), produzir mais

    estudos e pesquisas sobre o trabalho desses pioneiros

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    tupiniquins, cujos trabalhostm a somar no campo daEducao Somtica e, semdvida, iro continuar a

    influenciar no apenas oensino da dana, mas asdemais reas nas quais aeducao corporal estejapresente.

    Referncias

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    STRAZZACAPPA, Mrcia. Fondements et enseignements

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    ltat de So Paulo, au XXme sicle.Tese (Doutorado)

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