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OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE NA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE Artigos Versão Online ISBN 978-85-8015-080-3 Cadernos PDE I

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OS DESAFIOS DA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSENA PERSPECTIVA DO PROFESSOR PDE

Artigos

Versão Online ISBN 978-85-8015-080-3Cadernos PDE

I

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO

SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL

Fundação Universidade Estadual de Maringá

MATERIAL DIDÁTICO: ARTIGO CIENTÍFICO

ÁREA: Língua Portuguesa

NOME DO PROFESSOR PDE: Ana Alice Domingues dos Santos

NOME DA ORIENTADORA: Profª. Drª. Beatriz Moreira Anselmo

2016

1. IDENTIFICAÇÃO

1.1 ÁREA: Língua Portuguesa

1.2 PROFESSOR PDE: Ana Alice Domingues dos Santos

1.3 PROFESSORA ORIENTADORA: Profª Drª Beatriz Moreira Anselmo

1.4 IES VINCULADA: Universidade Estadual de Maringá

1.5 NRE: Cianorte

1.6 ESCOLA DE IMPLEMENTAÇÃO: Colégio Estadual Almirante Barroso - Ensino

Fundamental e Médio

1.7 PÚBLICO OBJETO DA INTERVENÇÃO: Alunos do 8o ano do Ensino Fundamental

1.8 PROJETO: PDE 2014

2. TEMA DE ESTUDO DA INTERVENÇÃO: O trabalho com a leitura e a escrita para

articulação de novas ideias.

3. TITULO: Crônica em sala de aula: uma reflexão a partir de elementos humorísticos.

4. MATERIAL DIDÁTICO SELECIONADO: Artigo Científico

CRÔNICA EM SALA DE AULA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE ELEMENTOS

HUMORÍSTICOS

Ana Alice Domingues dos Santos

1

Beatriz Moreira Anselmo2

RESUMO

O presente trabalho apresenta os resultados da intervenção realizada com alunos do 8º ano do Colégio

Estadual Almirante Barroso – Ensino Fundamental e Médio. O tema central é o trabalho com a leitura

e a escrita para articulação de novas ideias. Com o intuito de encaminhar os alunos à construção de seu

processo de escrita e ao desenvolvimento da compreensão do que leem, apresentamos práticas

pedagógicas que utilizavam os gêneros textuais, em especial a crônica. Na tentativa de aproximar os

alunos da leitura e fazê-los ter o hábito e o gosto por esta, trabalhamos crônicas, vídeos e tiras com

ênfase nos elementos humorísticos. As crônicas são de autoria de Luís Fernando Veríssimo, mestre de

expressões irônicas que fazem com que o leitor se delicie com sua literatura descontraída e ainda

reflita sobre problemas da atualidade. Para efetivar as ações foram realizadas sete oficinas utilizando

crônicas de Veríssimo e a Carta em que o escrivão Pero Vaz de Caminha descreve a chegada dos

portugueses ao Brasil com estratégias que foram norteadas pela concepção de linguagem como forma

de interação, de modo a ensinar a língua oral e escrita padrão partindo de situações de comunicação

reais e próximas do cotidiano do aluno. As atividades produzidas tiveram a finalidade de propiciar aos

alunos a participação em diferentes práticas sociais, utilizando-se da oralidade, da leitura e da escrita

atendendo ao que é solicitado nas Diretrizes Curriculares de Língua Portuguesa do Estado do Paraná.

Palavras-chave: gênero; crônica, humor; leitura; escrita, Luís Fernando Veríssimo.

1 Professora PDE/2014 SEED-PR

2 Professora Doutora do Departamento de Letras Modernas - DLM/UEM

Introdução

Este artigo apresenta os resultados da intervenção pedagógica que utiliza o gênero

crônica como suporte para a produção do texto escrito. Sabemos que são muitos os desafios

encontrados pelos professores de língua portuguesa, no que diz respeito a apropriação da

leitura e da escrita , por isso é imprescindível ampliar os conhecimentos linguísticos dos

alunos e levá-los a construir sua aprendizagem de forma efetiva, o que pode auxiliá-los a fazer

uso da escrita coerentemente e realizar a leitura e interpretação de textos.

Tendo em vista que a maior parte dos alunos do ensino fundamental terminam esse

ciclo sem apropriar-se adequadamente das habilidades de leitura e escrita, faz-se necessário

analisar práticas pedagógicas que minimizem as dificuldades de aprendizagem e ajudem os

alunos a progredirem em seus conhecimentos. Por isso, realizamos um estudo dos gêneros

textuais, em especial a crônica, para nortear as práticas pedagógicas descritas na unidade

didática e implementadas, uma vez que acreditamos que elas possam ser uma ferramenta de

trabalho que facilite o desenvolvimento das práticas de oralidade e escrita que os alunos

possuem e necessitam aprimorá-las a partir dos saberes escolares.

As Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná apontam que

O aprimoramento da competência linguística do aluno acontecerá com maior

propriedade se lhe for dado conhecer, nas práticas de leitura, escrita e oralidade, o

caráter dinâmico dos gêneros discursivos. O trânsito pelas diferentes esferas de

comunicação possibilitará ao educando uma inserção social mais produtiva no

sentido de poder formular seu próprio discurso e interferir na sociedade em que está

inserido (PARANÁ, 2008, p.53).

Considerando a relevância dos gêneros textuais para a articulação das práticas sociais

com as escolares, optamos por trabalhar com o gênero crônica. Tal escolha foi feita por

considerarmos esse gênero “uma narrativa curta, com riqueza de estrutura condicionada à

construção ágil, direta e um despojamento verbal intencionando eternizar um momento.”

(REDMOND, 2008, p.15).

Por ser um gênero de “uma linguagem que se aproxima do modo de ser mais natural

das pessoas” (REDMOND, 2008, p.21), sua leitura torna-se mais leve, mais dinâmica, tendo

por isso, uma maior propensão de despertar o interesse dos alunos pela leitura, aprofundando

assim seus conhecimentos.

O gênero crônica também foi o suporte utilizado para analisarmos a relação entre a

leitura e a escrita, pois trata-se de um gênero presente no cotidiano dos leitores e que pode

contribuir para o letramento dos alunos.

Tendo como fundamento o estudo sobre a concepção interacionista da linguagem e a

contribuição dos gêneros textuais para o ensino de língua portuguesa, procuramos com a

proposta desenvolvida contribuir para a formação escolar e social dos alunos envolvidos, bem

como incluir as atividades realizadas no planejamento escolar.

2 A trajetória da disciplina de Língua Portuguesa

O processo de ensino de Língua Portuguesa no Brasil iniciou-se com a educação

jesuítica, limitando o ensino de ler e escrever às escolas e a cursos chamados secundários.

Nesses cursos ministravam-se aulas de gramática latina, retórica e realizava-se o estudo de

grandes autores clássicos. No período colonial, a população, em sua maioria, se comunicava

utilizando a língua tupi. O português era utilizado apenas em transações comerciais e

documentos legais. Como meio de comunicação entre colonizados e colonizadores e modo

eficaz de dominação, constituiu-se uma Língua Geral, o Tupi-Guarani. Porém, em 1758, com

objetivo de unificar o idioma, sendo este fator de relevância, o Marquês de Pombal, por meio

de um decreto, torna a Língua Portuguesa o idioma oficial do Brasil e proíbe o uso da Língua

Geral (PARANÁ, 2008).

Esse processo de unificação da Língua Portuguesa foi denominada Reforma

Pombalina e a partir disso, os jesuítas foram expulsos e a organização jesuítica substituída por

aulas ministradas por profissionais de várias áreas nomeados por indicação política ou

religiosa. Tal educação atendia apenas uma parcela reduzida da elite colonial (PARANÁ,

2008).

Aos poucos o ensino passou a ser mantido pela Coroa Portuguesa a partir dos impostos

cobrados. O ensino público compreendia a alfabetização e também a catequese dos indígenas.

O objetivo da Coroa era tornar a escola laica, modernizá-la, de modo que essa atendesse aos

interesses da Coroa, facilitando ainda mais o processo de colonização (PARANÁ, 2008).

A disciplina de Língua Portuguesa passou a integrar os currículos escolares brasileiros

a partir das últimas décadas do século XIX. O ensino dessa disciplina fragmentava-se em

ensino de Gramática, Retórica e Poética. “O conteúdo gramatical ganhou a denominação de

Português em 1871, data em que foi criado no Brasil, o cargo de Professor de Português.

Contudo, a mudança de denominação não significou mudança de objetivo de ensino”

(PARANÁ, 2008 p. 42).

2.1 Concepções de linguagem

O ensino de Língua Portuguesa passou por diversas mudanças no decorrer dos tempos,

porém essas mudanças nem sempre propiciaram um maior nível de aprendizado dos alunos,

principalmente daqueles das classes menos abastadas da sociedade, que não tinham a escola

como um local de aprimoramento da linguagem e sim como lugar de apropriação da norma

culta, tão distante dos conhecimentos trazidos por esses alunos.

Na tentativa de aproximar os alunos da língua padrão, vários autores analisaram e

ainda analisam questões referentes às concepções de linguagem relacionadas ao ensino da

Língua Portuguesa. Desse modo, destacaram que a linguagem foi concebida em alguns

momentos como expressão do pensamento; em outros como instrumento de comunicação e

também como forma de interação. É essencial conhecermos e analisarmos essas mudanças de

pensamento e o que cada uma dessas concepções de linguagem agregou ao ensino de Língua

Portuguesa (PERFEITO, 2010).

A linguagem como expressão de pensamento “preconiza que a expressão é concebida

no interior da mente dos indivíduos. Assim a linguagem é considerada a tradução do

pensamento” (PERFEITO, 2010, p. 12).

Ao entender a linguagem dessa forma tende-se a supor que “as pessoas que não

conseguem se expressar não pensam” (GERALDI, 1984, p. 43). Tem-se nesse enfoque uma

linguagem normativa delimitada pelo certo e o errado, o que deixa de considerar a

heterogeneidade do leitor e falante de Língua Portuguesa.

Até o final da década de 1960 essa concepção de linguagem permeou o ensino de

língua materna no Brasil e até hoje ainda é utilizada em algumas salas de aula. As práticas de

gramática, leitura e produção textual seguiam as normas do bem falar e do bem escrever. Na

gramática o que prevaleciam eram os itens gramaticais, relacionados à fonética, à morfologia

e à sintaxe, sem vínculo com a leitura e produção textual (PERFEITO, 2010).

Quanto à leitura, levavam-se em conta os textos-modelo e a valorização da oratória. A

leitura era vista como ato mecânico. Sobre isso Perfeito salienta:

Assim, da Idade Média até o século XVI, a relação do leitor com os textos se

restringia aos livros sacros. A partir de século XVII, obras profanas começam a

atingir as camadas mais pobres da população. No século XVIII, aumenta

consideravelmente o número de bibliotecas particulares, surgem a formação da rede

pública escolar e uma literatura moralista e moralizadora junto à propagação do

romantismo (a literatura das “lágrimas”, paralelamente às exigências do cotidiano

moderno da vida) (2010, p. 14).

No que diz respeito à produção textual, a ênfase era em transpor as regras para o papel

seguindo os padrões da norma culta.

Na linguagem como instrumento de comunicação, a língua é vista como um

código capaz de transmitir uma mensagem, e passa a ser estudada a partir de seu

funcionamento interno, cuja organização recebe o nome de estrutura. Tem-se agora três

funções importantes da linguagem no ato da comunicação verbal: a mensagem, o canal e o

código. Na concepção de linguagem como instrumento de comunicação, a língua é entendida

como código (PERFEITO, 2010).

A gramática segundo essa abordagem é estudada por intermédio de exercícios

estruturais morfossintáticos. A leitura é vista como extração de sentidos do texto e no

momento da leitura, o leitor através de estratégias de seleção, antecipação, inferência e

verificação, atribui sentidos ao texto. Na produção textual o intuito era aumentar a fluência

dos escritores por intermédio de técnicas de redação, segundo a tipologia tradicional narração,

descrição e dissertação. Apesar de valorizar o texto, o fato de seguir estruturas modelares, faz

com que o aluno ainda tenha sua palavra anulada, faltando elementos para que este tenha

expectativas, ideias e produza seus textos com qualidade (PERFEITO, 2010).

Já a linguagem como forma de interação “é o local das relações sociais em que os

falantes atuam como sujeitos. O diálogo, assim, de forma ampla, é tomado como

caracterizador da linguagem” (PERFEITO, 2010 p. 22).

O discurso, o gênero e o texto passam a ser considerados e dá-se maior importância à

linguagem. O texto torna-se essencial, tanto quanto o leitor e sua análise, pois de acordo com

a visão dialógica de Bakhtin, é a partir da interação com o sujeito e com outros textos que a

palavra torna-se real, tem sentidos, significados (PERFEITO, 2010).

No que concerne à leitura e à produção textual, a teoria interacionista valoriza o

trabalho com os gêneros e busca o conhecimento de seu conteúdo temático, a construção

composicional e o estilo, tanto para entender o assunto do gênero, sua forma de organização

textual e os recursos linguísticos-expressivos mobilizados pelo enunciador, quanto para

contextualizá-lo e compreender/interpretar o assunto abordado. A análise linguística, modo

como é denominado o estudo dos aspectos gramaticais, tem por finalidade levar o leitor a

refletir sobre a linguagem, a encontrar marcas linguísticas que apontem para determinadas

interpretações.

Na teoria interacionista os gêneros trabalhados precisam levar em conta a esfera social

em que o texto se localiza e a finalidade do suporte material em que esse gênero está inserido,

para que o leitor entenda o contexto de produção do gênero e consiga, assim, interpretá-lo.

A leitura do texto é realizada pelo leitor que mobiliza seus conhecimentos prévios

linguísticos, textuais e de mundo e preenche as lacunas do texto a partir das informações

interpretativas deixadas pelo autor. Vale lembrar que tais pistas dão sentido ao texto,

encaminhando o leitor a interpretações coerentes.

É importante ressaltar que segundo a teoria interacionista, a reescrita do texto é

visualizada como uma maneira eficaz do professor auxiliar o aluno no processo de construção

textual.

Com ênfase na preocupação de refletir sobre as causas e consequências das

dificuldades de escrita dos alunos em seu processo de aprendizagem, este projeto está

fundamentado em teorias de autores que abordam a problemática da dificuldade da escrita e

sugerem o ensino de língua portuguesa a partir dos gêneros textuais.

2.2 A importância do texto para o ensino de Língua Portuguesa

Ao pensar no trabalho do professor de Língua Portuguesa é possível verificar a

existência de falhas no processo de ensino-aprendizagem e uma prática sem grande sucesso

com os alunos. As causas e os problemas apontados não são poucos. Alguns maus resultados

sinalizam o docente e sua desqualificação como centro da problemática, outros indicam a

fraqueza de métodos utilizados no ambiente escolar.

É importante analisar essas questões, uma vez que no decorrer da história, o professor

foi perdendo sua real função, deixando de ser produtor de conhecimento e passando a

transmissor. Tal mudança trouxe prejuízos significativos para o professor que perdeu sua

autonomia quanto ao fato de decidir o que deveria ser ensinado. Em decorrência disso, a

Educação vem se debilitando e até mesmo se confundindo com materiais didáticos e

metodológicos.

Nessa perspectiva, é imprescindível a busca por práticas pedagógicas que auxiliem no

desenvolvimento de atividades que contribuam para que o professor conduza o aluno a

avançar em sua compreensão do conteúdo sistematizado, levando os agentes dessa ação a

identificarem-se como indivíduos capazes de produzir conhecimentos. Desse modo, nas aulas

de Língua Portuguesa o conteúdo abordado em sala passa a ser de suma importância, com

vistas aos resultados que se deseja obter e à autonomia que se pretende atribuir ao processo de

ensino e aprendizagem.

Destaca-se aqui, a relevância da presença do texto em sala de aula e do trabalho com

este, que de acordo com Geraldi (2002, p. 113) seria capaz de construir-se como possibilidade

de reapropriação, pelo professor e pelos alunos, de seu papel produtivo.

O texto passa a ser um suporte capaz de encaminhar o trabalho do professor de língua

portuguesa, favorecendo no alcance dos objetivos desta disciplina que é o ensino da leitura e

da produção escrita:

a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e ponto de chegada)

de todo processo de ensino/aprendizagem da língua. E isto não apenas por

inspiração ideológica de devolução do direito à palavra às classes desprivilegiadas,

para delas ouvirmos a história, contida e não contada, da grande maioria que hoje

ocupa os bancos escolares. Sobretudo, é porque no texto que a língua – objeto de

estudos – se revela em sua totalidade quer enquanto conjunto de formas e de seu

reaparecimento, quer enquanto discurso que remete a uma relação intersubjetiva

constituída no próprio processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas

dimensões (GERALDI, 2002, p. 135).

Encontra-se, portanto, uma unidade de ensino, o texto escrito e falado caracterizado

pela ampla significação e sugerido por vários recursos estilísticos. Por intermédio do texto, é

possível realizar o trabalho com a leitura, a escrita e os aspectos linguísticos, relacionando-os

para que a aprendizagem de um complemente a do outro. O trabalho com o texto, nesse

projeto, estará pautado na concepção de linguagem como forma de interação.

Brait em seus estudos aponta que Bakhtin trata o texto não apenas como unidade do

processo de criação estética, mas, sobretudo, como objeto privilegiado da investigação no

amplo campo das ciências humanas. Enquanto objeto, ela define o texto como:

a) objeto significante ou de significação, isto é, o texto significa;

b) produto de criação ideológica ou de uma enunciação, com tudo o que está aí

subtendido: contexto histórico, social, cultural etc. (em outras palavras, o texto

não existe fora da sociedade, só existe nela e para ela e não pode ser reduzido à

sua materialidade linguística [empirismo objetivo] ou dissolvido nos estados

psíquicos daqueles que o produzem ou interpretam [empirismo subjetivo]);

c) dialógico: já como consequência das duas características anteriores o texto é,

para o autor, constitutivamente dialógico; define-se pelo diálogo com outros

textos;

d) único, não-reproduzível: os traços mencionados fazem do texto um objeto

único, não-reiterável ou repetível ( BRAIT, 2005, p. 26).

À vista disso, na escola, precisamos considerar o texto a partir de uma perspectiva

discursiva, identificando suas especificidades, sua dependência com os acontecimentos da

sociedade e seu diálogo com outros textos, analisando-o nas dimensões histórica, social,

política e cultural, examinando o suporte que está inserido e as condições sociais em que foi

realizada sua produção.

O texto precisa ganhar, nesse sentido, uma posição central nas atividades escolares nas

aulas de língua, pois é a partir dele que outras atividades ganharão sentido, serão efetivadas,

podendo assim ser compreendidas, produzidas ou representadas, permitindo ao aluno que

comece a realmente ler e usar as informações que cada novo texto traz, fazendo uso desse

saber não só nas disciplinas do currículo escolar, mas também em seu cotidiano, onde está

exposto a textos verbais e não-verbais que veiculam diferentes ideias e ideologias.

2.3 Os gêneros do discurso e sua contribuição para o ensino da língua

Sendo o texto o conteúdo principal das aulas de língua portuguesa, a leitura e a escrita

precisam ser trabalhadas em demasia, haja vista que estas ocupam espaço relevante quando se

fala em desenvolver habilidades para o bom uso da língua materna. Decorre disto, a

importância do trabalho com os gêneros textuais, uma vez que para realizar um trabalho

voltado ao estudo da língua e do texto, é necessário conhecê-los, como confirma Bakhtin:

O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de gêneros dos

enunciados nos diversos campos da atividade humana é de enorme importância para

quase todos os campos da linguística e da filologia. Porque todo trabalho de

investigação de um material linguístico concreto – seja de história da língua, de

gramática normativa, de confecção de toda espécie de dicionários ou de estilística da

língua, etc. – opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos ou orais)

relacionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicação – anais,

tratados, textos de leis, documentos de escritórios e outros, diversos gêneros

literários, científicos, publicísticos, cartas oficiais e comuns, réplicas do diálogo

cotidiano (em todas as suas diversas modalidades), etc. de onde os pesquisadores

haurem os fatos linguísticos de que necessitam (BAKHTIN, 2011, p. 264).

Levando em conta a citação acima é possível enxergar a existência de vários gêneros

textuais e compreender que concepções de gênero não são estáticas. Tal qual outro produto

social, os gêneros estão sujeitos a mudanças decorrentes das transformações sociais e de

novos procedimentos de organização e acabamento da arquitetura verbal (KOCH, 2003).

Koch ainda afirma que em termos bakthinianos, um gênero pode ser assim

caracterizado:

são tipos relativamente estáveis de enunciados presentes em cada esfera de

troca: os gêneros possuem uma forma de composição, um plano composicional;

além do plano composicional, distinguem-se pelo conteúdo temático e pelo

estilo;

trata-se de entidades escolhidas tendo em vista as esferas de necessidade

temática, o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do

locutor (KOCH, 2003, p. 54).

Também é importante salientar que:

O ensino dos gêneros seria, pois, uma forma concreta de dar poder de atuação aos

educadores e, por decorrência, aos seus educandos. Isto porque a maestria textual

requer – muito mais que os outros tipos de maestria – a intervenção ativa de

formadores e o desenvolvimento de uma didática específica (KOCH, 2003, p. 55).

Com isso, entendemos que por intermédio dos gêneros textuais – instrumentos de

ensino/aprendizagem e ferramentas de comunicação – é possível formar no ambiente escolar

indivíduos mais atuantes, produtores de seu conhecimento e não apenas meros reprodutores

de conteúdos planejados por outros.

Schneuwly & Dolz (2004) desenvolvem a ideia de que o gênero é utilizado como meio

de articulação entre as práticas sociais e os objetos escolares, principalmente no que diz

respeito à compreensão de textos orais e escritos e sua produção. Seus estudos partem da

hipótese que é ”através do gênero que as práticas de linguagem materializam-se nas atividades

do aprendiz” (2004, p. 74), pois, esse seria um referencial essencial para que o aluno pudesse

apropriar-se dos conhecimentos linguísticos e, a partir disso, adquirir a técnica da escrita.

Os gêneros, de acordo com Koch (2003), tornam-se um suporte eficaz para o

desenvolvimento da linguagem e podem conduzir os alunos a conhecê-lo, compreendê-lo e

produzi-lo dentro ou fora da escola. Tornando possível o desenvolvimento de capacidades que

os façam ter conhecimento de outros gêneros e atribuírem significados a estes.

2.4 A leitura e a produção escrita

O contato com diversos gêneros que fazem parte da vida cotidiana pode contribuir

para que os alunos adquiram a habilidade de produzir textos na escola e também fora dela. Em

relação à produção textual, Geraldi diz ser preciso que

a) se tenha o que dizer;

b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;

c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;

d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que diz para quem

diz (ou, na imagem wittgensteiniana, seja um jogador no jogo);

e) se escolham estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d) (GERALDI, 2002, p.

137).

O autor ressalta a necessidade de tomar cada uma das práticas como tópicos do

processo de ensino/aprendizagem, ampliando as perspectivas trazidas pelos alunos e ofertando

novos conceitos/assuntos, a fim de que a produção textual possa ser realizada.

Também faz-se necessário lembrar que ao longo da história, em função das

concepções de linguagem, algumas concepções de escrita foram delimitadas, quatro dessas

são: escrita com foco na língua; escrita como dom/inspiração; escrita como consequência;

escrita como trabalho (MENEGASSI, 2010).

Neste projeto, a concepção que será considerada para a produção escrita é a da escrita

como trabalho, que apresenta reais necessidades para o aluno produzir, considerando a

finalidade, o interlocutor, a organização composicional e o estilo do gênero.

Porém, para que se estabeleça de forma eficaz o processo de produção escrita é

necessário que o professor

Conheça bem as relações entre o sistema fonológico e o sistema ortográfico,

compreenda a escrita como representação e não como transcrição da língua oral, seja

capaz de identificar a variedade linguística falada pela criança e, assim, não só

prever os problemas que essa criança enfrentará, [...] mas também compreender

esses problemas e [...] saber discuti-los com a criança. [...] compreenda o aspecto

linguístico e psicolinguístico de aprendizagem da língua escrita [...] tenha

compreendido e assumido uma concepção de língua como discurso, de língua escrita

como atividade enunciativa (SOARES, apud MENEGASSI, 2010, p. 15).

Se para ocorrer a produção é preciso que se tenha o que dizer, a leitura pode tornar-se

um mecanismo para apropriação de ideias que poderão ser colocadas no texto, tal como

afirma Geraldi,

a leitura incide sobre “o que se tem a dizer” porque lendo a palavra do outro, posso

descobrir nela outras formas de pensar que, contrapostas às minhas, poderão me

levar à construção de novas formas, e assim sucessivamente (GERALDI, 2002, p.

17).

Porém, vale lembrar que o trabalho com a leitura não precisa necessariamente estar

atrelado a um resultado na escrita. Como afirma Jauss (2003), a leitura pode e precisa também

ser um ato de fruição de qualquer categoria de obra de arte, de modo a desenvolver no aluno o

hábito, o gosto e ampliar seus conhecimentos fazendo com que o leitor adquira maiores

habilidades interpretativas e de escrita, fazendo com que esta prática se estenda em sua vida,

em seu dia-a-dia e o permita compreender com maior facilidade tudo que o cerca.

A leitura é completada pelo leitor, que não é apenas mero receptor de textos, mas é ele

que faz o texto funcionar, ganhar sentido. “O leitor, nesse contexto, ganha o mesmo estatuto

do autor e do texto e a leitura passa a ser instauradora de diálogos na dimensão

espaciotemporal, propiciando diferentes formas de ver, de avaliar o mundo e de (re)conhecer

o outro” (PERFEITO, 2010, p. 26).

Entretanto, realizar a integração das atividades de leitura e escrita é uma possibilidade

importante e eficaz, pois a leitura servirá de fonte de conhecimento do gênero e será uma a

maneira de atrair a atenção dos alunos no que diz respeito aos aspectos essenciais à produção

escrita.

2.5 O gênero crônica

A escolha do gênero, é, pois, uma decisão estratégica, que envolve uma

confrontação entre valores atribuídos pelo agente produtor aos parâmetros da

situação (mundos físico e sociossubjetivo) e os usos atribuídos aos gêneros do

intertexto. A escolha do gênero deverá, como foi dito, levar em conta os objetivos

visados, o lugar social e os papéis dos participantes. Além disso, o agente deverá

adaptar o modelo do gênero a seus valores particulares, adotando um estilo próprio,

ou mesmo contribuindo para a constante transformação dos modelos (KOCH, 2003,

p. 55).

Nesse projeto, o gênero crônica dará suporte às atividades de leitura e produção

escrita, por isso, há necessidade de aprofundar os conhecimentos sobre o gênero trabalhado.

De acordo com Redmond, o vocábulo “crônica” vem de Chronos, senhor do tempo, o

deus grego devorador da vida, definindo esse gênero como um registro de um aspecto

qualquer da existência. Desde seu surgimento a crônica era considerada um texto histórico,

registros do passado (REDMOND, 2008).

Referindo-se ao termo original de crônica, Massaud Moisés diz que ele surgiu:

Do grego chronikós, relativo a tempo (chrónos), pelo latim chrônica, o vocábulo

“crônica” designava, no inicio da era cristã, uma lista ou relação de acontecimentos

ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, em sequência cronológica. Situada

entre os anais e a história, limitava-se a registrar eventos sem aprofundar-lhes as

causas ou tentar interpretá-los. Em tal acepção, a crônica atingiu o ápice depois do

século XII. Nessa altura, porém, acercou-se francamente do pólo histórico, o que

determinou uma distinção: as obras que narravam acontecimentos com abundância

de pormenores e algo de exegese, ou situavam-se numa perspectiva individual da

história, recebiam o tradicional apelativo de “crônica”, como as obras de Fernão

Lopes (séc. XIV). Em contrapartida, a simples e impessoais notações de efemérides,

ou “crônicas breves”, passaram a denominar-se “cronicões”. A partir do

Renascimento (séc. XVI), o termo “crônica” começou a ser substituído por

“História” (MOISÉS, 2004, p. 110-111).

A narração histórica feita na primeira Carta de Pero Vaz de Caminha é um exemplo

claro de crônica. Nela, o escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral narra em detalhes a

chegada dos portugueses ao Brasil em 1500. Por esse motivo, a narração feita por Caminha

em sua carta ao Rei Dom Manuel passa a ser considerada por alguns críticos literários e

historiadores como marco inicial da crônica no Brasil (REDMOND, 2008).

Sobre a Carta de Pero Vaz de Caminha, Sá relata que

Se a carta inaugura o nosso processo literário é bastante discutível, mas sua

importância histórica e sua presença constante até mesmo nos modernos poemas e

narrativas parodísticos atestam que, pelo menos, ela é o começo de estruturação. É o

marco inicial de uma busca que, inevitavelmente, começaria na linguagem dos

“descobridores” que chegavam À Terra de Vera Cruz, até que um natural dos

trópicos fosse capaz de pensar a realidade brasileira pelo ângulo brasileiro,

recriando-a através de uma linguagem livre dos padrões lusitanos (SÁ, 1992, p. 5).

O autor ainda acrescenta que “a história da nossa literatura se inicia, pois, com a

circunstância de um descobrimento: oficialmente, a Literatura Brasileira nasceu da crônica”

(SÁ, 1992, p. 7).

Do relato histórico esse gênero passou a ser utilizado com uma composição

diferenciada ligada à literatura e publicada nos jornais.

A crônica contemporânea brasileira, também voltada para o registro jornalístico do

cotidiano, surgiu por volta do século XIX, com a expansão dos jornais no país.

Nessa época, importantes escritores, como José de Alencar e Machado de Assis,

começam a usar as crônicas para registrar de modo ora mais literário, ora mais

jornalístico, os fatos corriqueiros de seu tempo. É interessante observar que as

primeiras crônicas brasileiras são dirigidas as mulheres e publicadas como folhetins,

em geral na parte inferior da página de um jornal (LAGINESTRA; PEREIRA,

2014, p. 20).

Inicialmente, essa narrativa ocupava quase metade da página de um jornal e

retratava vários assuntos. Com o tempo, seu espaço foi tornando-se cada vez menor e o

assunto único.

Por ser publicada em jornais e em livros, esse gênero pode ser denominado híbrido,

uma mistura de literatura e jornalismo. No jornal, a crônica mostra seu lado transitório de

texto que será lido e esquecido. Nos livros “a crônica assume uma certa reelaboração na

medida em que é escolhida pelo autor. Ela se torna mais duradoura, porque os textos que

envelheceram devido à sua excessiva circunstancialidade não entram na seleção” (SÁ, 1992,

p. 83).

A crônica moderna definiu-se e foi consolidada como gênero textual brasileiro por

volta de 1930. Grandes mestres da literatura se firmaram como cronistas, dentre eles Clarice

Lispector, que se destacou de maneira exclusiva nesse gênero.

A crônica brasileira explora uma linguagem lírica, irônica, casual, ora precisa, ora

vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro. Registra o circunstancial e o

efêmero; o real é recriado com engenho e arte. Cultiva a função poética da

linguagem, imprime leveza ao discurso, revela e valoriza, na visão do autor, a crítica

de um momento histórico, atenuando o vínculo de temporalidade que eterniza o

texto (REDMOND, 2008, p. 21).

Quanto à sua estrutura, este é um texto essencialmente narrativo, cujo ambiente é

qualquer lugar onde possa ocorrer a aventura do cotidiano e o tempo das ações é variável, mas

geralmente rápido. Em relação às personagens, verifica-se que cada um de nós pode se

identificar como figura de alguma crônica, uma vez que são sobretudo as pessoas comuns que

se tornam personagens desses textos.

O assunto desse tipo de narração se desenvolve a partir de uma situação comum do

cotidiano e ganhará a expressão do literário. A vida na cidade, sua facilidade ou complicação,

é um dos aspectos que caracterizam a crônica brasileira.

Antonio Cândido (1992) estudou a crônica com o propósito de estabelecer uma

especificação para o gênero, indicando quatro tipos: crônica diálogo, que é uma conversa do

cronista com seu interlocutor imaginário, ou uma conversa entre os personagens; crônica

narrativa, que se aproxima do conto, apresenta histórias curtas, diálogos ágeis, de final

imprevisto e surpreendente, possui unidade de ação, tempo e espaço, personagem e situações

ficcionais. Encontramos exemplos desse tipo de texto no livro O Analista de Bagé de Luís

Fernando Veríssimo, como a crônica Brincadeira, em que há diálogos dinâmicos que levam a

um final inusitado. Crônica exposição poética, que é a divagação, de forma lírica, sobre um

fato ou personagem e a crônica biográfica lírica que narra, de modo poético, a vida de alguém.

Em Estorinha de Rubem Braga de Sant’Anna vemos um modo dos autores prestarem uma

homenagem a seus colegas, a partir do relato sobre o autor (REDMOND, 2008, p. 13).

Por ser composta de uma linguagem leve e branda, o leitor pode começar a refletir

sobre a leitura de uma crônica sem mesmo perceber a total crítica que o escritor pretendia

realizar.

É possível constatar que a crônica é um gênero de grande proximidade do leitor e seu

universo, por ser um texto curto, redigido numa linguagem informal e simples, entretanto,

ainda de difícil conceituação. Mesmo assim, é importante assinalar que embora haja uma

linguagem clara, existem elementos que fazem com que a crônica tenha riqueza em seus

temas e um certo lirismo “que não é a simples expressão de uma dor-de-cotovelo, mas acima

de tudo um repensar constante pelas vias da emoção aliada à razão” (SÁ, 1992, p. 13), que

possibilita a reflexão do leitor sobre a narrativa lida.

2.6 O cronista Luís Fernando Veríssimo

Nascido em Porto Alegre, em 26 de setembro de 1936, Luís Fernando Veríssimo é um

escritor brasileiro muito conhecido por suas crônicas e textos de humor e precisamente por

suas sátiras de costumes, publicadas diariamente em jornais brasileiros, entre eles o “Estado

de São Paulo” e o “Zero Hora”.

Foi tradutor, além de roteirista de televisão, autor de teatro, romancista publicitário,

copy desk de jornal e músico – saxofonista em algumas bandas. Em 1973 lançou, pela Editora

José Olympio, O Popular, com subtítulo “crônica ou coisa parecida”.

Além das crônicas publicadas em jornais, tem importantes publicações em livros como

O Nariz & Outras Crônicas (2004), O Analista de Bagé (1992) e Comédias para se Ler na

Escola (2001) e criou personagens que se eternizaram como o Analista de Bagé, Ed Mort e A

Velhinha de Taubaté.

Luís Fernando Veríssimo tem grande versatilidade artística, pois além de escritor é

desenhista de As Cobras (1975), uma série de tirinhas publicadas em jornais. Sua crônica é

um misto de crônica diálogo com crônica narrativa. O autor desenvolve seus textos utilizando

a comédia como ponto central, para que o leitor alcance a reflexão. Utiliza em seus escritos

expressões irônicas, que fazem com que o leitor se delicie com sua literatura descontraída e

ainda reflita sobre os problemas atuais apontados.

Ana Maria Machado (2005, p. 14) ressalta que o autor conta com um magistral

domínio da linguagem e do ritmo da narração. Em suas obras encontra-se uma “admirável

economia no uso das palavras, tudo é enxuto, nada sobra. Seus diálogos dão até a impressão

de que saíram de uma fita gravada”. Levando em conta essas considerações, destacamos que

Veríssimo trata de temas do cotidiano com humor e ironia enfocando valores sociais, a visão

de mundo, os conceitos e preconceitos existentes na sociedade.

No que concerne ao humor, Moisés (2004) diz não serem muitos os conceitos e

recorre aos apontamentos de Swiff “O humor é estranho, é grotesco, selvagem; somente

estragado pela afetação; nunca é adquirido pela invenção; os homens o têm quando não sabem

que o têm” (SWIFF, 1961, apud MOISÉS, 2004, p. 112). Apesar de esclarecer que a maioria

dos escritores preferem comentar a conceituar o humor em razão das suas várias facetas, o

autor define o humor como o sentimento do contrário e ainda acrescenta que a tendência é

para considerar o humor uma categoria estética indefinível, em razão das suas implicações e

dos liames com a ironia, com o riso e com o cômico.

Tendo em vista, a ligação que a ironia estabelece com o humor é essencial defini-la,

para isso recorremos a Muecke (1995) que apresenta um conceito atual.

A ironia neste último sentido é a forma da escritura destinada a deixar aberta a

questão do que pode significar o significado literal: há um perpétuo diferimento de

significância. A velha definição de ironia – dizer uma coisa e dar a entender o

contrário – é substituída; a ironia é dizer alguma coisa de uma forma que ative não

uma, mas uma série infindável de interpretações subversivas (MUECKE, 1995 apud

REDMOND, 2008, p. 63).

Nas crônicas “Sexa”, “Pá, Pá, Pá”, “Defenestração”; “Tintim”, “Papos”, “O Jargão”,

“Pudor” e “Palavreado” do livro Comédias para se ler na escola (2001), encontramos

exemplos de expressões irônicas que transmitem algo, ativando muitas interpretações.

Vejamos um trecho da crônica “Pá, Pá, Pá”, em que uma americana que residia há pouco

tempo no Brasil queria aprender o português depressa, mas confundia-se com algumas gírias e

expressões utilizadas pelos brasileiros.

_ Qual o significado exato de “pá, pá, pá”.

_ Como é?

_ “Pá, pá, pá”.

_ “Pá” é pá. “Shovel”. Aquele negócio que a gente pega assim e...

_ “Pá” eu sei o que é. Mas “pá” três vezes?

_ Onde foi que você ouviu isso? (VERÍSSIMO, 2001, p. 55).

No decorrer dessa crônica, o brasileiro vai apontando inúmeras definições para a

americana, como possível tradução de “pá, pá, pá”, porém não consegue fazê-la compreender

por também não ter exata noção da significação do termo. Dessa forma, o cronista mostra ao

leitor a riqueza e a complexidade da linguagem utilizada pelos brasileiros, nem sempre

compreendida até mesmo por quem faz uso dela.

Machado, no prefácio do livro Comédias para se ler na escola, salienta que o tema

não é o mais importante nas obras desse autor, pois

Sobre qualquer assunto e a qualquer pretexto, o autor revela suas obsessões, fala das

mesmas coisas, preocupa-se com o social e o ético, despreza solenemente o

econômico... e encontra sempre uma maneira nova de fazer isso, como se nunca o

tivesse feito antes. As situações podem ser quotidianas, mas os ângulos geralmente

são insólitos e inesperados. Ou então, reforçam o já esperado, mas com tão exatas

pitadas de exagero que a caricatura até parece um retrato realista pelo avesso, em

que o lado cômico é revelado em sua verdadeira grandeza e o sentido profundo

aparece com nitidez (2001, p. 14).

Como consequência da reflexão, o humor e a ironia empregados nas crônicas de

Veríssimo podem levar ao riso, à medida em que o leitor vai descobrindo as surpresas do

texto e consegue perceber a comicidade nele existente.

Segundo Bergson, “o cômico exige qualquer coisa como uma anestesia para o coração

para produzir todo o seu efeito”, já o riso “surge como um corretivo que reprime a

excentricidade, mantém em contato as inteligências e as atividades, torna flexíveis os

movimentos mecânicos e inertes visíveis na superfície do sistema social (BERGSON, 2001

apud D’ANGELI & PADUANO, 2007, p. 276).

Ainda sobre as crônicas do autor nota-se que elas

são marcadas pela polifonia, uma vez que ele explora o discurso polifônico para

registrar, por intermédio das personagens, o falar e o pensar de uma sociedade. A

polifonia é um dos recursos mais usados para tornar o texto irônico. As vozes

contidas no texto são responsáveis pela autenticidade da intenção do autor

(REDMOND, 2008, p. 89).

O autor usa a polifonia de forma hábil e requintada fazendo com que seus textos

estejam carregados de vozes de diferentes enunciadores, o que reforça ainda mais o humor.

Koch, Bentes e Cavalcante apresentam um conceito de polifonia, tal como elaborado

por Ducrot (1980), a partir da obra de Bakhtin (1929), no livro Intertextualidade: diálogos

possíveis.

Denomina de polifônico o romance de Dostoievski, que exige apenas que se

representem, encenem (no sentido teatral), em dado texto, perspectivas ou pontos de

vistas de enunciadores (reais ou virtuais) diferentes – daí a metáfora do “coro de

vozes”, ligada, de certa forma, ao sentido primeiro que o termo tem na música, de

onde se origina. Isto é, “encenam-se” no interior do discurso do locutor perspectivas

ou pontos de vistas diferentes, sem que se trate, necessariamente, de textos

efetivamente existentes (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007 apud

REDMOND, 2008, p. 89).

A crônica “Champignons recheados” é um exemplo de polifonia, que aparece

claramente no discurso indireto. Por meio dela o locutor incorpora a fala da personagem na

sua, tomando posse do discurso do outro.

Foi numa dessas conversas civilizadas que a Helena, depois de hesitar e pedir para

ele não estranhar o pedido, disse que iria receber umas amigas em casa para jantar

na noite seguinte e perguntou se Marcelo faria os seus champignons recheados para

ela servir às convidadas (VERÍSSIMO, 2004, p. 16).

Nos textos de Veríssimo é possível notar o recurso da intertextualidade, designada por

Jenny (1979), como um “trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado

por um texto centralizador, que detém o comando do sentido” (JENNY, 1979, apud

REDMOND, 2008, p. 96).

A paráfrase, um tipo de intertextualidade “que se estabelece entre dois tipos de textos:

o texto matriz e o texto derivado, conservando-se as ideias originais” (REDMOND, 2008,

p.99), faz parte também dos textos de Veríssimo incrementando e dando ênfase às críticas e

reflexões que o autor aborda em suas crônicas.

“Detalhes” é uma crônica que apresenta intertextualidade com o conto de fadas

“Cinderela”. Na narrativa, o autor nomeia os personagens de Helmuth e Helga, nomes

alemães, fazendo referência aos Irmãos Grimm. O personagem Helmuth narra os

acontecimentos do baile a sua esposa Helga, que acredita até determinado ponto no que ele

lhe conta. A intertextualidade estimula a reflexão e a interpretação de dados do texto, quando

tais elementos do passado se relacionam com acontecimentos atuais.

Assim é possível afirmar que este autor utiliza em suas crônicas o recurso retórico da

ironia, por vezes capaz de proporcionar ao leitor diversão e também reflexão. Suas crônicas

são relatos do cotidiano, dos pequenos acontecimentos que buscam explorar o lado engraçado

das coisas e despertar a essência humana. Na construção de seus textos o autor apresenta

personagens com atitudes típicas de um cidadão comum, características do seu leitor,

reconstruindo desse modo, a realidade a partir de seus conhecimentos, suas ideologias e

posicionando-se ironicamente diante dos acontecimentos. São pontos fortes das crônicas de

Veríssimo os questionamentos sobre a vida humana e as intensas reflexões a que pode levar o

leitor (REDMOND, 2008).

3 Dados da implementação

Para alcançar os objetivos propostos no projeto e na unidade didática, realizamos a sua

implementação com alunos do 8º ano do Colégio Estadual Almirante Barroso – Ensino

Fundamental e Médio, localizado no município de Rondon, pertencente ao Núcleo Regional

de Educação de Cianorte, a partir de estratégias norteadas pela concepção de linguagem como

forma de interação, de modo a ensinar a língua oral e escrita padrão partindo de situações de

comunicação reais e próximas do cotidiano do aluno.

A produção didático-pedagógica foi organizada em sete oficinas. Iniciamos a

implementação apresentando aos alunos o projeto, para que eles pudessem compreender que

iríamos trabalhar com o gênero crônica, com o autor Luís Fernando Veríssimo e assim

tivessem conhecimento sobre o objetivo das atividades propostas.

Realizamos a leitura de trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha em uma

apresentação na plataforma do prezi e discutimos a linguagem do texto, a distância dessa

linguagem da atual e as dificuldades encontradas para compreender esse texto. Foi possível

que os alunos percebessem que com o passar do tempo, a língua sofre modificações e que a

crônica teve como primeiro formato narrativas históricas.

Passamos depois para a 2ª oficina que tratava da estrutura e características do gênero

crônica. Nesse momento foi utilizada uma apresentação de slides e um vídeo sobre o conteúdo

estudado. Durante as apresentações levantamos questionamentos e esclarecemos dúvidas que

foram surgindo. Após essa etapa os alunos puderam realizar a leitura de textos de gêneros

diversos, podendo assim identificar o gênero crônica a partir das características estudadas.

Durante a oficina 3, pudemos conhecer a biografia do autor Luís Fernando Veríssimo,

assistir a uma entrevista do autor concedida ao “Programa Sempre um Papo” e verificar

aspectos do humor, que foram apresentados a partir das tiras “As Cobras” produzidas por

Veríssimo. Os alunos realizaram a leitura da história do surgimento das tiras e analisaram-nas,

identificando e compreendendo o recurso estilístico da ironia, muito utilizado pelo autor.

Para um melhor esclarecimento sobre as definições de humor, os alunos assistiram a

um vídeo com situações cômicas e foram encaminhados a pesquisar textos, cartuns ou vídeos

com aspectos humorísticos. Na finalização da oficina assistiram a um vídeo da crônica “A

brincadeira” e fizeram uma análise desse texto. A maioria dos alunos compreenderam que o

humor nem sempre provoca riso e que em muitos casos procura ativar outras interpretações.

Prosseguindo com o andamento do projeto passamos para a 4ª oficina, nesta foi

apresentado aos alunos as crônicas “Pneu furado”, “A bola” e “Ela”, para que fosse realizada

a análise. Durante a análise das duas primeiras crônicas, os alunos conseguiram realizar as

atividades interpretativas e identificaram os aspectos de humor utilizados. Foi trabalhado com

os alunos o uso dos discursos direto e indireto e os tempos verbais: presente, pretérito perfeito

e pretérito imperfeito. Esses conteúdos foram trabalhados por notarmos que seriam

necessários no momento da construção dos textos. Percebemos que os alunos compreenderam

o uso dos discursos, dos tempos verbais e passaram a observar com maior atenção o

vocabulário utilizado nos textos lidos, verificando a importância de conhecê-lo para bem

interpretar.

Na crônica “Ela” precisamos fazer uma contextualização dos programas de televisão

das décadas de 60 e 70, citados no texto, com o intuito de que os alunos tivessem subsídios

para entender a leitura e resolver as atividades. Apesar da crônica ser mais longa que as outras

trabalhadas, os alunos não tiveram dificuldades na leitura e compreensão. É necessário

ressaltar que foi feita uma primeira leitura silenciosa e depois uma outra dramatizada pelos

alunos, o que auxiliou na interpretação. A figura de linguagem personificação foi enfatizada

durante o estudo por produzir um efeito de sentido importante para a crônica, demonstrando

um caráter crítico do humor.

Ao término da oficina de estudo das crônicas, partimos para a 5. Nessas aulas

realizamos, em duplas, a produção de desfechos das crônicas “Daphne” e “Critérios”. Após

leitura e análise os alunos discutiram sobre possibilidades de acontecimentos e produziram

possíveis finais para elas. Ao término dessa atividade foi possível perceber o quanto a leitura,

entendimento do vocabulário dos textos, de sua estrutura e compreensão do assunto são

essenciais para que o aluno possa realizar a produção.

Para completar a atividade de produção, fizemos um breve estudo do gênero entrevista

e em duplas os alunos produziram questões para entrevistar um familiar e assim obter assunto

para a produção escrita. Após o registro da entrevista, alguns alunos produziram suas

crônicas. Na oficina 6 fizemos a correção e reescrita dos textos observando a adequação do

vocabulário, ortografia, acentuação e pontuação e analisando as marcas de autoria e

progressão dos textos. Na oficina 7 foi efetuada a dramatização e filmagem de algumas das

crônicas produzidas.

Uma das grandes dificuldades encontradas na implementação foi manter a assiduidade

dos alunos, pois é complicado realizar atividades em turno diferente ao frequentado pelo

aluno. Foi necessário dar uma maior ênfase na oficina 7, de dramatização e filmagem, para

que eles tivessem mais motivação para participar, mesmo assim, conseguimos cumprir os

objetivos propostos pelo trabalho.

4 Considerações finais

Com o trabalho realizado pudemos constatar a aplicabilidade do material didático

produzido durante o PDE e verificarmos a viabilidade de intervir na realidade escolar, de

modo a contribuir para o aprendizado efetivo dos alunos. No decorrer da implementação

foram feitas atividades de oralidade, leitura, escrita e análise linguística, o que auxiliou na

compreensão dos textos estudados e levou os alunos a apropriarem-se do vocabulário

apresentado.

Em relação à questão da leitura, confirmou-se o fato de precisarmos ler e

compreender o que lemos para assim termos condições de produzir textos coerentes e com

conteúdo, uma vez que a falta de vocabulário tende a ser um dos grandes problemas

encontrados pelos alunos no momento da produção. Quando propiciamos aos alunos as

crônicas do autor Luís Fernando Veríssimo, tivemos a oportunidade de fazer com que eles

conhecessem aspectos críticos, a partir do humor e da ironia apresentados nos textos,

aumentando assim, a qualidade da produção textual. Entretanto, sabemos que, somente com a

unidade didática implementada, não é possível modificar a realidade do contexto escolar,

porém visualizamos na proposta, uma forma de melhorar os índices educacionais e fazer com

que os alunos apropriem-se do conhecimento.

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