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Os caes do sítio da Boavista no século XVIII: estudo arqueológico de estruturas portuárias Alexandra Isabel Almeida Gomes Outubro de 2014 Dissertação de Mestrado em Arqueologia

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Os caes do stio da Boavista no sculo XVIII: estudo arqueolgico de estruturas porturias

Alexandra Isabel Almeida Gomes

Outubro de 2014

Dissertao de Mestrado em Arqueologia

Declaro que esta Dissertao o resultado da minha investigao pessoal e

independente. O seu contedo original e todas as fontes consultadas esto devidamente

mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.

O candidato,

____________________

Lisboa, .... de ............... de ...............

Declaro que esta Dissertao se encontra em condies de ser apreciado pelo jri a

designar.

O orientador,

____________________

Lisboa, .... de ............... de ..............

Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno

do grau de Mestre em Arqueologia, realizada sob a orientao cientfica do

Professor Doutor Andr Pinto de Sousa Dias Teixeira, Professor Auxiliar do

Departamento de Histria da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas, e do Dr.

Jos Bettencourt, investigador do Centro de Histria dAqum e dAlm-Mar.

memria de Nelson Francisco Gomes.

AGRADECIMENTOS

A jornada da escrita de uma dissertao de mestrado inevitavelmente

solitria. No entanto o carinho e apoio de terceiros transformaram momentos de

angstia em motivao, pelo que uma simples palavra de agradecimento sabe a

pouco.

Antes de mais quero agradecer aos meus orientadores, pela apresentao e

fomentao da minha paixo pelo tema. Ao professor Doutor Andr Teixeira e ao Dr.

Jos Antnio Bettencourt o meu sincero obrigado pela disponibilidade demonstrada,

por todas as oportunidades oferecidas e pela motivao fornecida em momentos-

chave durante a realizao desta dissertao.

Ao Centro de Arqueologia de Lisboa e empresa ERA-Arqueologia S. A.,

representados pelo professor Doutor Rodrigo Banha da Silva e Alexandre Sarrazola

respectivamente, um muito obrigado. A realizao deste estudo no seria possvel sem

a disponibilidade dos materiais arqueolgicos bem como a documentao associada s

intervenes arqueolgicas em questo.

Por todos os ensinamentos e apoio um muito obrigada famlia arqueolgica

do Centro de Histria de Aqum e Alm-Mar. A sua prontido no auxlio e na formao

de uma mestranda personificam o trabalho de equipa essencial em Arqueologia. Um

especial obrigada ao Cristvo Fonseca pela pacincia e todos os ensinamentos

aquando a realizao de vectorizaes em Auto-CAD e Joana Torres por me contagiar

a sua paixo por materiais arqueolgicos e tornar o seu estudo suportvel.

Um especial obrigada minha colega de stio, Sara Ferreira, pelas longas

discusses arqueolgicas, pelos desabafos frustrantes e inevitavelmente motivao em

momentos desesperantes. Ctia Charters e Sandra Marques o meu sincero

obrigado, bem como as minhas desculpas, por experienciarem em primeira mo o meu

mau feitio e mesmo assim terem demonstrado um apoio e carinho incondicional no

primeiro ano desta dissertao.

A todos os meus amigos que de uma forma ou outra me confortaram e

apoiaram. Em especial Mnica Fagundes, Leila Monteiro e ao David Toste que

estiveram sempre presentes e ajudaram-me a relaxar em momentos cruciais.

Por ltimo, e no menos importante, minha famlia pelo apoio incondicional

na minha jornada no mundo da Arqueologia. minha me e ao irmo o meu sincero

obrigado pela sua luta diria, proporcionando-me as ferramentas necessrias ao meu

percurso acadmico bem como a oportunidade de prosseguir o meu sonho

arqueolgico.

Os caes do stio da Boavista no sculo XVIII: estudo arqueolgico de estruturas

porturias

Alexandra Isabel Almeida Gomes

RESUMO

PALAVRAS-CHAVE: Cais, Boavista, So Paulo, sculo XVIII.

A presente dissertao tem como principal objectivo a compreenso da dinmica porturia da Ribeira de Lisboa em poca moderna. Procura contribuir para a reconstruo da frente ribeirinha anterior ao terramoto de 1755, pouco conhecida a nvel histrico e arqueolgico. Ser baseada no estudo arqueolgico de duas estruturas porturias exumadas no stio da Boavista, antiga freguesia de S. Paulo. O seu cruzamento com dados historiogrficos, documentao histrica e iconografia pode proporcionar uma interpretao mais precisa destes locais de embarque e desembarque na Ribeira de Lisboa.

Outro objectivo da dissertao a pesquisa e caracterizao da forma, da funcionalidade e, se possvel, o conhecimento da toponmia das estruturas porturias em anlise, em articulao com os edifcios existentes na orla ribeirinha. Estudos como estes so escassos em Portugal e permitem compreender a dinmica martimo-porturia local, neste caso de Lisboa, de uma capital de um reino em expanso martima.

ABSTRACT

KEYWORDS: Wharves, Boavista, So Paulo, 18th century.

This dissertation aims to understand the port dynamic of Lisbon Ribeira in modern times. It seeks to contribute for the landscape reconstruction prior to the 1755 earthquake, which riverfront is little known historical and archeological. The dissertation will be based on the archeological study of two wharves exhumed in Boavista, former parish of St. Paul site. The intersection with historiography data, historical documentation and iconography will provide a more precise interpretation of the boarding in the Lisbon Ribeira.

Another purpose of the dissertation is the research and characterization of form, functionality and, if possible, to know the place names of wharves under analysis, in conjunction with existing buildings in the riverside area. Studies like these are scarce in Portugal and it will alow to understand the local sea-port dynamics, in this case of Lisbon, a capital of a kingdom in maritime expansion.

NDICE

1. Nota introdutria .. 1

2. A Praa D. Lus I

2.1. O Stio Arqueolgico ... 6

2.2. A Estrutura Porturia .. 14

2.3. Os Materiais Arqueolgicos .. 28

2.4. O Cais da Casa da Moeda . 37

3. O Mercado da Ribeira

3.1. O Stio Arqueolgico .. 46

3.2. A Estrutura Porturia .. 55

3.3. Os Materiais Arqueolgicos .. 64

3.4. O Cais da Ribeira Nova . 71

4. Dinmica porturia da Ribeira de Lisboa

4.1. A Ribeira de Lisboa 78

4.2. A Boavista ... 97

5. Consideraes finais ... 106

6. Fontes e Bibliografia

6.1. Fontes manuscritas .. 110

6.2. Fontes impressas ... 110

6.3. Fontes iconogrficas e cartogrficas .. 111

6.4. Bibliografia

.. 112

6.5. Webgrafia ... 120

Lista de figuras

Lista de grficos

Apndice A: Catlogo cermico da Praa D. Lus I

Apndice B: Catlogo cermico do Mercado da Ribeira

1

1. NOTA INTRODUTRIA

O traado urbano da orla fluvial lisboeta sofreu diversas modificaes nos

ltimos tempos. A procura, por parte da Cmara Municipal de Lisboa e de privados, da

manuteno, renovao e desenvolvimento do espao ribeirinho reflectiu-se em

inmeras obras realizadas no seu subsolo. A implantao do Plano de Director Municipal

de Lisboa em 1994 tornou toda a faixa ribeirinha numa rea de Potencial Arqueolgico

de nvel 21, significando que nestas zonas h a obrigatoriedade de acompanhamento

arqueolgico em todas as intervenes nestas zonas. Como tal, estas intervenes no

eixo ribeirinho lisboeta proliferaram nas duas ltimas dcadas, acompanhando aquela

multiplicao de obras pblicas e privadas2.

As evidncias arqueolgicas aqui analisadas surgem exactamente neste

contexto. As intervenes arqueolgicas no Mercado da Ribeira (2003) e na Praa D. Lus

I (2011) surgiram ambas em situaes de acompanhamento arqueolgico, devido

remodelao do Mercado da Ribeira e construo de um parque de estacionamento

subterrneo, respectivamente. Na interveno do Mercado da Ribeira a arqueolga

responsvel pelo projecto foi Ins Mendes da Silva, enquanto na Praa D. Lus I o

arqueolgo responsvel foi o Alexandre Sarrazola, ambos pertencentes empresa ERA-

Arqueologia S.A. No caso da Praa D. Lus I, dada a descoberta de achados de natureza

natica, houve a colaborao da unidade de arqueologia do Centro de Histria dAqum

e dAlm-Mar da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Aores.

Ambas as estruturas aqui estudadas possuem um carcter martimo, apesar de

terem sido registadas em meio terrestre. Dada a conquista de terra ao rio Tejo ao longo

dos tempos, muitas das zonas ribeirinhas de Lisboa Moderna encontram-se hoje a largos

metros da costa em ambientes terrestre ou hmido (como o caso do Mercado da

Ribeira e da Praa D. Lus I). So zonas de interface entre o meio terrestre e o aqutico,

tratando-se possivelmente de estruturas destinadas acostagem de embarcaes.

1 Jacinta Bugalho Lisboa Sempre Ribeirinha. In Al-Madan. II Srie. N13. Almada: Centro de Arqueologia de Almada, 2005, p. 151. 2 M Alexandra; Ana Maria Gomes; M Jos Sequeira; Rodrigo Silva Arqueologia urbana em Lisboa?. In Victor Oliveira Jorge (coord.) Actas do III Congresso de Arqueologia Peninsular: Terrenos da Arqueologia da Peninsula Ibrica. Vol. 8. Porto: ADECAP, 2000, p. 57.

2

Assim, sendo evidncias arqueolgicas terrestres, tm uma ligao inegvel ao meio

martimo e tornam-se a concretizao da arqueologia de interface.

Nas ltimas duas dcadas comearam a surgir em Portugal as primeiras reflexes

sobre a arqueologia de interface, atravs do contributo da investigadora Maria Lusa

Blot. A arqueologia de interface pressupe, antes de mais, o estudo de realidades

martimas em contextos hoje terrestres. Estes so indispensveis na anlise da uma

cidade costeira, pois alertam para as inmeras possibilidades que as evidncias

arqueolgicas, ou a falta das mesmas, nos podem oferecer. No caso lisboeta, a crescente

realizao de acompanhamentos arqueolgicos em reas ribeirinhas, bem como a

ateno especfica dada a evidncias arqueolgicas com particularidades martimas,

permitiu o grande contributo da arqueologia na reconstituio da orla costeira3.

No mbito europeu o estudo arqueolgico de estruturas porturias em

contextos urbanos desenvolveu-se a partir das dcadas de 70 e 80 e tornaram-se

rapidamente em estudos de referncia para a arqueologia de interface. A natureza das

descobertas lisboetas assemelhou-se a estes casos europeus, nomeadamente no Norte

da Europa e Reino Unido, pois foram os inmeros acompanhamentos arqueolgicos nas

suas orlas costeiras que proporcionaram os estudos arqueolgicos que lhes sucederam4.

Estes estudos permitiram que, a partir da dcada de 90, houvesse uma especial

ateno aquando as intervenes arqueolgicas em zonas ribeirinhas portuguesas mais

constante nos ltimos dez anos, particularmente em Lisboa. As evidncias arqueolgicas

martimas de maior importncia identificadas em Lisboa foram: a cofragem de um aterro

porturio na Avenida D. Carlos I, a embarcao do sculo XV exumada no Cais do Sodr,

o estaleiro naval medieval do Largo do Municpio, elementos de embarcaes do sculo

XIV no Corpo Santo, o dique da Ribeira das Naus de finais sculo XVIII5, diversos vestgios

3 M Lusa Blot Arqueologia do meio aqutico e a problemtica porturia em arqueologia do meio hmido: um elo de ligao entre dois territrios de investigao. In Antnio Carvalho (coord.) Tempo resgatado ao mar. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia e Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2014, pp. 86-88. 4 G.L. Good; et. al. (ed.) - Waterfront archaeology: proceeding of the third Internatinal conference. Bristol 23-26 September 1988. CBA Research Report. Londres: Council for British Archaeology, 1991, n 74. 5 Csar Augusto Neves Acerca do Dique da Ribeira das Naus (Lisboa): vestgios identificados em acompanhamento arqueolgico. In Al-Madan Online. II Srie. N 18 (Tomo 1). Almada: Centro de Arqueologia de Almada, Julho de 2013, pp. 99-109. [Disponvel em: http://issuu.com/almadan/docs/maqueta18_1_online; consultado em Agosto de 2014].

http://issuu.com/almadan/docs/maqueta18_1_online

3

de ocupaes ribeirinhas desde a Idade do Ferro poca moderna no Ncleo

Arqueolgico da Rua dos Correeiros6, a grade de mar possivelmente do sculo XVII bem

como o fundeadouro romano na Praa D. Lus I e as embarcaes da Boavista7.

Especificamente, as estruturas porturias destinadas acostagem de embarcaes, para

alm das que so objectos de estudo desta dissertao, foram o Cais do Porto Franco do

sculo XIX (em Alcntara), um embarcadouro de madeira (do mesmo sculo) no Largo

Vitorino Damsio, o cais do sculo XVII situado no Terreiro do Pao e o possvel Cais da

Alfndega8.

A reconstituio de uma cidade, tendo em conta perodos histricos precisos,

no poder cingir-se apenas ao estudo da documentao histrica ou anlise de

evidncias arqueolgicas. fundamental a interdisciplinaridade na observao de uma

cidade dinmica costeira, que passou por diversos processos naturais e antrpicos ao

longo dos tempos. A tentativa de reconstituio da paisagem martima de uma cidade

pressupe o cruzamento da informao que a documentao escrita, a iconografia, a

cartografia, a arqueologia e a geomorfologia nos oferece9. Foi este princpio que

procuramos aplicar neste estudo embora conscientes das suas limitaes e do seu

pendor claramente arqueolgico. Assim, aps a compreenso da geomorfologia bsica

de Lisboa, propusemo-nos observar as evidncias arqueolgicas (a estratigrafia, as

estruturas e materiais associados). O levantamento da documentao e cartografia

histrica das zonas onde as evidncias arqueolgicas estavam inseridas permitiu

compreender as funcionalidades, a durabilidade e a importncia que estas estruturas

6 Jacinta Bugalho Op. cit. 2005, p. 153. 7 Alexandre Sarrazola; Jos Bettencourt; Andr Teixeira Lisboa, o Tejo e a expanso portuguesa.. In Antnio Carvalho; M Amlia Fernandes (coord.) Tempo resgatado ao mar. Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia e Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2014, pp. 111-116. 8 Jacinta Bugalho Op. cit. 2005, pp. 151-154; Csar A. Neves; Andrea Martins; Gonalo Lopes; M Lusa Blot Do Terreiro do Pao Praa do Comrcio (Lisboa): identificao de vestgios arqueolgicos de natureza porturia no subsolo urbano. In Andr Teixeira; Jos Antnio (coord.) Bettencourt - Velhos e Novos Mundos: Estudos de Arqueologia Moderna. Vol. 2. Lisboa: Centro de Histria Alm-Mar, 2012, pp. 613-626. e Tnia Falco; Srgio Antunes Empreitada de execuo dos acessos nascente e poente da Estao do Terreiro do Pao da linha azul do Metropolitano de Lisboa. Relatrio Final de Trabalhos Arqueolgicos. Alter do Cho: ArchoEstudos, 2005. 9 M Lusa Blot Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades martimas e flvio-martimas em Portugal. In Trabalhos de Arqueologia n28. Lisboa: Instituto Portugus de Arqueologia, 2003.

4

porturias de interface possuam, embora necessariamente com as limitaes de um

trabalho acadmico desta natureza.

Lisboa encontra-se inserida no esturio fluvial do rio Tejo e ter usufrudo da sua

litoralidade desde os tempos mais remotos at actualidade, o que lhe permitiu a

utilizao de vias martimo-fluviais para alm das vias terrestres no que toca a

actividades comerciais. Como a prpria arqueologia o comprova a antiga linha de costa

lisboeta era recuada em relao actual. O crescente assoreamento do rio Tejo,

agravado com a explorao agrcola moderna, e posteriormente os aterros realizados

em Lisboa nos sculos XVIII e XIX, so os principais motivos para o avano da orla

costeira10. Geologicamente, Lisboa apresenta uma histria muito variada com a

presena de formaes desde o Jurssico, como o caso do dorso da actual serra da

Arrbida e o Norte dos flancos da serra de Sintra. Estes terrenos mais antigos so

compostos por calcrios branco-acinzentados, compactos e duros e em seu redor

formaram-se plataformas calcrias cretcicas, como por exemplo o actual Monsanto. A

restante rea citadina foi formada durante o miocnico marinho, contendo calcrios

margosos, argilas e areias. O nordeste da cidade, porm, caracterizado por formaes

do manto basltico e as reas ribeirinhas por aluvies recentes11. A plancie aluvial do

Tejo, em especfico e onde se localizam os stios arqueolgicos em estudo (Praa D. Lus

e Mercado da Ribeira), foram reas formadas por diversos aluvies que

consequentemente escavaram rochas brandas dando origem a excelentes solos

agrcolas e aquferos12. Por sua vez, os aterros antrpicos de poca moderna e

contempornea no local so compostos por uma miscelnea de areias, cascalheira, siltes

e argilas13.

A acostagem de uma embarcao a terra poder acarretar diversos objectivos, e

consequentemente, pressupe processos muito especficos; as estruturas porturias

10 Maria Azevedo As mudanas de percurso do Tejo nos tempos modernos. Causas naturais e antrpicas. In Antnio Tavares; Maria Tavares; Joo Lus Cardoso Evoluo geohistrica do litoral portugus e fenmenos correlativos: Geologia, Histria, Arqueologia e Climatologia. Lisboa: Universidade Aberta, 2004, pp. 517-568. 11 Raquel Soeiro Brito Lisboa: esboo geogrfico in Separata do Boletim Cultural da Junta Distrital de Lisboa. III Srie, n 82. 1977, p. 13-15. 12 Ana Ramos Pereira Diversidade do meio fsico e recursos naturais. In A. H. de Oliveira Marques - Atlas da rea Metropolitana de Lisboa. Jos Antnio Tenedrio ed. Lisboa: A.M., 2003, p. 51-55. 13 Laboratrio Nacional de Energia e Geologia, I.P. Mapa geolgico, Boavista., 2010. [Disponvel em

http://geoportal.lneg.pt/geoportal/mapas/index.html; consultado a Fevereiro de 2014]

http://geoportal.lneg.pt/geoportal/mapas/index.html

5

adaptam-se, assim, s necessidades traduzindo-se em variadas morfologias, como cais

e pontes, rampas de lanamento, docas, diques, entre outros. Um cais tratava-se de uma

obra em madeira ou pedra com o objectivo de auxiliar o embarque e desembarque de

mercadorias e passageiros, para alm disso implica tambm a acostagem e possvel

atracagem de embarcaes prpria estrutura14. Deste modo, as evidncias

arqueolgicas desta natureza traduzem-se em estruturas de madeira e/ou pedra

consolidadas paralelas costa e, em alguns casos, com especificidades que auxiliam a

acostagem como argolas para amarrao ou escadaria. No decorrer de um estudo sobre

esta realidade, ao analisarmos a documentao escrita, surgem uma panplia de

denominaes para este tipo de estruturas, como cais, ponte ou ponte-cais. Contudo,

nem os dicionrios tcnicos nem a documentao especificam morfologias particulares

associadas a cada um destes termos, dificultando a correspondncia entre forma e

denominao especfica destas estruturas porturias.

14 Joo Pedro de Amorim Dicionrio de Marinha. Lisboa: Imprensa Nacional, 1841, p. 75.; Antnio M. Esparteiro Dicionrio ilustrado da Marinha. 2 Ed. Rev. pelo Comandante J. Martins e Silva. Lisboa: Clssica Editora, 2001, pp. 108 e 438. e Humberto Leito; Vicente Lopes Dicionrio da linguagem da marinha antiga e actual. 2 Ed. Lisboa: Centro de estudos histricos ultramarinos da Junta de investigaes cientficas do Ultramar, 1974, p. 126.

6

2. A PRAA D. LUS I

2.1. O STIO ARQUEOLGICO

A Praa D. Lus I situa-se actualmente na freguesia da Misericrdia (que anexou

a freguesia de So Paulo na reforma administrativa de 2012), de formato rectangular

esta praa limitada a Sul pela Avenida 24 de Julho e a Norte pela rua D. Lus I. Est

presente nas coordenadas 3842'26.46"N e 9 8'48.35"W, nas suas imediaes

localizam-se o Mercado da Ribeira, imediatamente a oriente, e o posto de Correios D.

Lus I, a Norte (Figura 1).

A interveno arqueolgica na Praa D. Lus I cingiu-se seco Norte da dita

praa. Esta surgiu aquando o acompanhamento arqueolgico associado construo de

um parque de estacionamento subterrneo no local, como anteriormente mencionado.

Numa fase inicial, durante o acompanhamento arqueolgico, os estratos mais recentes

foram intervencionados via escavao mecnica, nomeadamente a realidade

arqueolgica aqui analisada. Apenas aps a constatao do potencial arqueolgico do

stio, especificamente de caractr nutico, foi efectuada a escavao manual do stio

arqueolgico. O registo baseou-se nos princpios metodolgicos seguidos pela empresa

basearam-se nas propostas de Carandini, Harris e Barker, enquanto as cotas das

evidncias arqueolgicas registadas foram calculadas atravs do Datum do margrafo de

Figura 1 Localizao da Praa D. Lus I, realando a rea intervencionada. (Fonte: Google Earth, 28 de Janeiro de 2014)

7

Cascais15.

O substrato geolgico da escavao arqueolgica em questo foi registado sob

um fundeadouro romano localizado na rea Noroeste do empreendimento. Esta

evidncia arqueolgica ocupava uma rea de 254 m, com uma miscelnea de artefactos

arqueolgicos, entre os 3,60 m e 3,85 m abaixo do nvel mdio das guas, sendo que a

rea mais concentrada se estendia de Nordeste para Sudoeste. O conjunto era composto

por nforas, cermica fina, cermica comum, toros de madeira e pinhas. As nforas

foram na sua maioria classificadas como produes locais (cerca de 64% de um nmero

mnimo de indivduos de 44), do perodo republicano. Porm, foram tambm

identificadas importaes africanas e bticas. O conjunto de cermica fina corresponde

principalmente ao perodo cronolgico do alto-imprio, incluindo materiais oriundos do

Sul da Glia e da Btica. A terra sigillata registada foi identificada como baixo-imperial

(meados do sculo II 1 metade do sculo III d.C.), de origem africana, tendo tambm

sido identificadas produes hispnicas e itlicas, localizadas num intervalo cronolgico

do I sculo d.C. ao II sculo d.C. Por ltimo, a cermica comum de produo local inclua

cerca de 54 indivduos16.

Dos quatro toros de madeira registados, apenas um apresentava entalhes e

mechas. Este tinha 9 m de comprimento e uma orientao Nordeste-Sudoeste. Devido

ao seu sistema de fixao, foi classificado como um fragmento de uma tbua de forro

longitudinal de uma quilha de navio romano, com um processo construtivo de shell

first. O facto de terem sido registadas incrustaes calcrias nas peas, bem como de

colonizao por teredo navalis, levanta a hiptese de estes elementos se integrarem

num contexto em ambiente hmido e, como tal, um possvel fundeadouro romano17.

A praia fluvial do sculo XVI/XVII e um possvel varadouro foram observados no

lado ocidental e oriental do empreendimento. Esta evidncia arqueolgica marcava um

15 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola - Parque de Estacionamento da Praa D. Lus I. Lisboa : ERA - Arqueologia, S. A., 2012, p. 15. 16 Jorge Parreira; Marta Lacasta Macedo O fundeadouro da Praa D. Lus I. In Jos Morais Arnaud; Andrea Martins; Csar Neves (coord.) Arqueologia em Portugal: 150 anos. Lisboa: AAP, 2013, pp. 748-749. 17 Cristvo Fonseca; Jos Bettencourt; Teresa Quilh Entalhes, mechas e cavilhas: evidncias de um navio romano na Praa D. Lus I (Lisboa). In Jos Morais Arnaud; Andrea Martins; Csar Neves (coord.) Arqueologia em Portugal: 150 anos. Lisboa : AAP, 2013, pp. 1185-1191.

8

dos momentos mais recuados da ocupao dentro na poca moderna. A sua

interpretao foi efectuada atravs da observao de variadas manchas de matria

orgnica vegetal, bem como de alguns depsitos argilosos, com o aparecimento de areia,

fauna malacolgica e seixos negros de rio. Esta hiptese parece tambm ser suportada

atravs do aparecimento de toros de madeira rolados, cermica, pontas de cabos,

possivelmente restos de lastro (blocos ptreos irregulares de calcrio) e algumas hastes

e fornilhos de cachimbos de caulino sem decorao, datados do sculo XVII18. Entre a

cermica encontra-se um fragmento de parede de majlica (com um elemento vegetal

a verde sobre fundo branco) do sculo XVI, fragmentos diversos de faiana da primeira

metade do sculo XVII e um fragmento de pcaro/copo de pasta branca dos sculos XVI-

XVII 19.

Parte da orla fluvial e do antigo varadouro foram desactivados para a construo

de uma grade de mar entre a segunda metade do sculo XVII e a primeira metade do

sculo XVIII (Figura 2). Esta estrutura encontrava-se entre os 1,42 m e os 2 m abaixo do

nvel mdio das guas do mar, no lado ocidental da obra, e ocupava uma rea com 315

m, que se desenvolvia de Norte para Sul. A grande estrutura compunha-se por trs

camadas de toros de madeira pequenos (cerca de 300) que formavam um padro

ortogonal. A fixao da grade de mar era efectuada atravs de pregaduras de metal e

entalhes, aproveitando diversos elementos nuticos disponveis na rea (mais de 70

peas reaproveitadas)20. Os depsitos em seu redor eram ricos em fragmentos de

madeiras e fauna malacolgica, tendo sido tambm registados pequenos seixos de rio e

uma ncora de ferro (com 3,90 m de comprimento). Nos intervalos da grade de mar,

entre camadas de argila, o material cermico registado inclua fragmentos de faiana do

sculo XVII, inclusive um fragmento com braso, cermica malagueira e um fragmento

de majlica com decoraes a azul-escuro sobre esmalte azul do sculo XVI. Surgiram

tambm alguns fragmentos de cachimbos em caulino com e sem decorao,registados

como pertencentes dos sculos XVII e XVIII21. Esta estrutura foi interpretada como sendo

18 Alexandre Sarrazola; Jos Bettencourt; Andr Teixeira Op. cit, 2014, p. 111. 19 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p.18. 20 Alexandre Sarrazola; Jos Bettencourt; Andr Teixeira Lisboa Ribeirinha: evidncias arqueolgicas de uma vocao martima milenar. Revista Patrimnio. 1 Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 2013. pp. 144. 21 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, . 60-62.

9

possivelmente uma grade de mar, na qual os navios atracavam para efeitos de

manuteno, havendo paralelos de rampas para reparaes de navios em Amesterdo22.

Ainda da poca moderna, foi identificada uma estrutura em madeira e alvenaria

do sculo XVII, no canto Nordeste da obra. O topo desta estrutura encontra-se

sensivelmente entre 1 m a 1,60 m abaixo do nvel mdio das guas do mar e

apresentava-se como uma estrutura em L (sendo que a seco maior desenvolvia-se

de Noroeste para Sudeste), constituda por lajes de calcrio e algumas margas verdes

sobre troncos de madeira dispostos ortogonalmente23. A estrutura assenta directamente

sobre a orla fluvial, tendo sido observados entre os seus sedimentos apenas fragmentos

de uma tigela em loia malagueira do sculo XVI, bem como porcelanas muito

fragmentadas, o que impossibilita a sua datao. Para alm destes elementos foi

identificado um fragmento de cachimbo de caulino datado do sculo XVII24.

Ao longo da interveno foram tambm registadas trs estruturas de madeira em

paliada possivelmente do sculo XVII, quer na zona central quer na zona ocidental do

empreendimento, sendo que uma destas se encontrava sobre a grade de mar (Figura

22 Alexandre Sarrazola; Jos Bettencourt; Andr Teixeira Op. Cit., 2013, p. 144. 23 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 21. 24 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 51-62.

Figura 2 Registo fotogrfico da grade de mar (Fonte: ERA-Arqueologia S.A.)

10

3). A informao arqueolgica oferecida por estas estruturas reduzida, devido sua

escavao mecnica. Porm, de um modo geral, estas localizavam-se a cotas

compreendidas entre os 0,1 m e 0,43 m abaixo do nvel mdio das guas do mar.

Estruturalmente tratam-se de trs conjuntos de estacas alinhadas com diferentes

orientaes: Norte-Sul e Este-Oeste. Em seu redor foram identificados ncleos de

matria orgnica vegetal, fauna mamalgica, solas de sapatos, hastes de cachimbos de

caulino sem decorao e faianas muito fragmentadas25.

Datada do sculo XVII, uma estrutura de conteno de terras foi encontrada no

canto Nordeste da frente da interveno arqueolgica. Esta detm uma orientao

Noroeste-Sudeste e encontra-se entre os 0,6 m acima e os 0,45 m abaixo do nvel mdio

das guas do mar. Estruturalmente tratava-se de um alinhamento de toros de madeira

oblquos, travados por duas traves horizontais justapostas na seco Norte. O material

arqueolgico registado sob a estrutura inclui apenas alguns fragmentos de faiana com

25 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 29-30.

Figura 3 - Registo fotogrfico de uma das paliadas (Fonte: ERA-

Arqueologia S.A.)

11

contornos a mangans, da segunda metade do sculo XVII26.

Analisando a matriz estratigrfica, esta estrutura de conteno de terras tem

ligao com um conjunto de elementos identificados como restos do Forte de S. Paulo,

encontrando-se imediatamente sob este (Figura 4)27. Os vestgios foram observados na

zona Nordeste da obra a cotas compreendidas entre 1,40 m aos 2,50 m acima do nvel

mdio das guas do mar, incluindo diversos ncleos: dois paredes em blocos calcrios

e margas perpendiculares com uma planta em L, desenvolvendo-se de Noroeste para

Sudeste, e resqucios de pavimento e de uma escadaria (possivelmente para o acesso

praia fluvial) 28. Aps observao das ortofotografias verificmos j no decorrer deste

trabalho este conjunto se encontra numa cota imediatamente acima da estrutura em L

de madeira e alvenaria encontrada nesta zona do empreendimento, e qual j fizemos

referncia. Esta ser provavelmente a base do forte, erguido no sculo XVII, sofrendo

diversas alteraes at ao sculo XIX29. No miolo do paredo Nordeste-Sudoeste (UE

5016) foi identificado um fragmento de faiana com decorao em mangans da

segunda metade do sculo XVII e sob o pavimento do forte registou-se um fragmento de

azulejo do sculo XVII e um de faiana com decorao em mangans da segunda metade

do sculo XVII, enquanto no seu topo foram registados azulejos e cermica comum do

sculo XVII30.

26 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 33. 27 Est a ser desenvolvido o estudo desta realidade arqueolgica no mbito da dissertao e mestrado da aluna Sara Ferreira, em Arqueologia "Forte de So Paulo (Lisboa): um estudo de Arqueologia militar de poca moderna", na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas (U.N.L.). 28 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 34-35. 29 Filipe Folque - Planta topogrfica da cidade de Lisboa. Lisboa: 1871. (Museu da Cidade de Lisboa, Coleco Cartografia, MC.GRA.480). 30 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 55-56.

12

Tambm associada ao Forte de S. Paulo estava uma estrutura nutica que surgiu

no canto Nordeste da interveno, interpretada como sendo o cais da Casa da Moeda

devido sua profundidade e sua localizao na cidade de Lisboa. Com uma orientao

nordeste-sudeste, parte do ncleo ptreo desta estrutura nutica, nomeadamente a sua

seco Sudeste, contacta directamente com forte de S. Paulo. Para alm disso, a base

desta estrutura encontrava-se sobre algumas das paliadas registadas, sugerindo a

desactivao das mesmas para a construo do cais. O cais foi identificado entre os 2,50

m e os 1,40 m acima do nvel mdio das guas do mar. A estrutura era composta por

uma jangada de madeira rectangular, apresentando um padro reticulado com uma

orientao Noroeste-sudeste. O seu preenchimento foi efectuado com sedimentos e

blocos ptreos mdios de calcrio e margas A cultura material encontrada foi observada

essencialmente sobre o cais e consistia em fragmentos de azulejo e pesos em metal, com

cronologias entre os sculos XVII/XVIII e a segunda metade do sculo XIX. Na sua base

foram tambm registados fragmentos de hastes de cachimbo de caulino sem qualquer

Figura 4 Registo fotogrfico do Forte de So Paulo na Praa D. Lus I, na fase de

acompanhamento arqueolgico (Fonte: ERA-Arqueologia S.A.).

13

decorao, por isso de cronologia indeterminada31. Quer a cultura material associada,

quer a estrutura em questo, sero analisadas com pormenor adiante, j que constituem

um dos elementos deste trabalho.

A desactivao do Forte de So Paulo e da estrutura porturia deu-se devido

implantao de um aterro bem como de diversas estruturas de poca contempornea.

O Aterro da Boavista, realizado no local em 1864, se sobreps a estruturas arqueolgicas

contemporneas (de difcil interpretao) observadas na rea central Norte e no canto

Nordeste da interveno. Entre estas foi identificada uma grande caleira constituda de

pequenos blocos de calcrio e margas, com ligante em argamassa rosa claro, que

detinha uma orientao Este-Oeste32. Os materiais arqueolgicos exumados e

preliminarmente analisados correspondem a fragmentos de cermica vidrada e faiana,

com cronologias entre os sculos XVII e a segunda metade do sculo XIX33.

Na seco Nordeste do empreendimento, foram identificadas diversas estruturas

que assentavam directamente sobre o aterro da Boavista e sobre alguns elementos da

estrutura porturia em estudo. Estas encontravam-se a cotas compreendidas entre 3,06

m e 2 m acima do nvel mdio das guas do mar e eram compostas por vrios fornos de

plantas rectangulares, com as suas extremidades arredondadas. Os fornos foram

construdos em alvenaria de tijolo burro, mas tinham as bases dos em metal, tendo sido

colmatadas em algumas seces por cimento34. A anlise artefactual preliminar desta

fase permitiu identificar faianas e cermica comum vidrada, pesos metlicos,

fragmentos de faiana em p de pedra e um fragmento de faiana esponjada (sculo

XIX), materiais que se situam num intervalo cronolgico entre os sculos XVIII e XIX35.

O ltimo momento de ocupao da rea corresponde implantao da Praa D.

Lus I, no sculo XIX, tendo sido registadas as suas fundaes, as estruturas de

saneamento bsico e o pavimento.

A interveno arqueolgica que decorreu na Praa D. Lus I tornou-se um grande

marco na arqueologia portuguesa, devido aos elementos arqueolgicos que revelou.

31 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 57-60. 32 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 42-43. 33 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 57. 34 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 43. 35 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p. 57-58.

14

Quer o fundeadouro romano, quer a grade de mar, o cais da Casa da Moeda ou o Forte

de S. Paulo, so evidncias arqueolgicas que nos permitem reconstituir uma parte da

orla ribeirinha de Lisboa desde tempos recuados. Dos navios romanos que atracavam ao

largo de Olissipo aos navios reparados na praia e na grade de mar em S. Paulo.

2.2. A ESTRUTURA PORTURIA

Durante o acompanhamento arqueolgico realizado na Praa D. Lus I foi

detectada uma estrutura de carcter porturio, possivelmente um cais. Este ocupava

parte da zona Nordeste do empreendimento e encontrava-se em associao com uma

estrutura antes identificada, interpretada como o Forte de So Paulo (Figura 5). A

estrutura porturia no se encontrava completa, pois desenvolvia-se desde o limite da

interveno at ao alado do forte, no sentido Noroeste-Sudeste. Estas duas estruturas

encontravam-se perfeitamente alinhadas e detinham a mesma orientao, sugerindo

uma possvel associao36.

O topo da evidncia arqueolgica em estudo encontrava-se entre os 2,84 m e os

0,28 m acima do nvel mdio das guas. As cotas mais elevadas foram registadas na

seco Noroeste e tendiam a diminuir em direco a Sudeste, ou seja de encontro ao

rio.

A anlise dimensional da estrutura poder ser realizada de duas formas:

individualmente ou considerando a continuidade para o Forte de So Paulo. Contudo,

necessrio ter em ateno a considervel degradao da estrutura arqueolgica

aquando desta anlise. Ela conservava um alinhamento considervel do seu

aparelhamento, contabilizando um comprimento de 23,10 m e uma largura mnima de

0,46 m e mxima de 3,86 m. Ao considerar tambm o Forte de So Paulo, ambas as

estruturas detinham um comprimento mximo de 40,39 m. Como j referido, possvel

observar a possvel continuidade do cais em direco estrutura militar, aglutinando-a

ou simplesmente complementando-a (Figura 6). A anlise destas duas estruturas

associadas permite a compreenso da relao ntima e da coexistncia de estruturas

martimas e militares.

36 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, pp. 34-35.

15

Figu

ra 5

D

esen

ho

arq

ueo

lgi

co d

a es

tru

tura

po

rtu

ria

e d

o F

ort

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e S

o P

aulo

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uad

os

na

Pra

a D

. Lu

s I.

(A

uto

ria

de

Ale

xan

dra

Go

me

s e

Sara

Fer

reir

a)

16

A estrutura porturia era composta por um aparelhamento de blocos ptreos de

calcrio rectangulares e de superfcies bem afeioadas sobre uma base reticulada de

madeira. O calcrio utilizado era possivelmente lioz, um subtipo ptreo muito

caracterstico da regio de Lisboa presente em diversas construes desta mesma

cidade. A sua explorao em Pro Pinheiro, na regio Norte de Lisboa, era realizada

desde a poca romana, todavia foi a partir do sculo XVIII com a reconstruo lisboeta

no ps-terramoto que esta aumentou exponencialmente37. O estado de conservao do

aparelhado ptreo era precrio, preservando-se contudo a trs fiadas de blocos de

mdia dimenso, contabilizando no seu total sensivelmente vinte elementos (Figura 7).

No enchimento foram registados sedimentos e blocos mdios de calcrio e margas.

37 Jorge Carvalho; Cristina Carvalho; Jos Lisboa; Antnio Moura; Mrio Leite Portuguese ornamental stones. In Global Stone Congress 2012, Borba, Portugal, 16-20 Julho 2012, p. 6. [Disponvel em http://hdl.handle.net/10400.9/1826,consultado em Agosto de 2014].

Figura 6 Registo fotogrfico do Forte de S. Paulo, na fase de acompanhamento arqueolgico. (Fonte: ERA Arqueologia S.A.)

17

O Forte de So Paulo desenvolvia-se para Sudeste desta estrutura apresentando

um aparelhamento heterogneo, quer nos tipos ptreos, quer nas suas dimenses, e

uma pequena escadaria, de seis degraus, em direco antiga linha de costa. Era

composto por dois paredes com sentidos Nordeste-Sudoeste e Noroeste-Sudeste em

silhares de calcrio rectangulares, contendo um enchimento de blocos de margas e

argamassa semelhana da estrutura porturia (Figura 8)38.

38 Alexandre Sarrazola; Jos Bettencourt; Andr Teixeira Op. cit. 2014, p. 113.

Figura 7 Vista de Noroeste do aparelhamento ptreo da estrutura porturia (Fonte: ERA-

Arqueologia S. A.)

Figura 8 Vista Sudeste da escadaria do Forte de So Paulo (Fonte: ERA-Arqueologia S. A.)

18

A relao comprimento/largura destes componentes era relativamente

heterognea, apresentando um comprimento compreendido entre os 20 cm e os 70 cm.

Em relao sua largura denota-se, ainda, uma maior discrepncia, situando-se entre

os 40 cm e os 160 cm. Observa-se uma certa uniformidade em dez destes elementos, no

que respeita ao seu comprimento, mantendo-se entre os 20 cm e 50 cm. As excepes

identificadas so residuais, resumindo-se apenas a quatro elementos, trs dos quais

apresentavam valores elevados no seu comprimento e largura e um com largura

reduzida, em relao ao conjunto. Dos trs elementos que apresentam dimenses

maiores destacava-se um que apresenta 1,5 m de largura e 1,45 m de comprimento,

sensivelmente; enquanto os restantes apresentavam um comprimento mdio de 40 cm

e uma largura mdia de 1,50 a 1,70 m. Relativamente ao bloco ptreo de pequenas

dimenses, comparativamente ao conjunto, este registava um comprimento de

sensivelmente 20 cm e uma largura de 0,45 cm (Grfico 1).

O aparelho ptreo do cais encontrava-se sobre uma base reticulada em madeira

apoiada numa rede de estacaria vertical no mesmo material (Figura 9). Por sua vez, esta

estrutura de madeira era preenchida por blocos mdios, colocados sobre uma base de

argamassa e cobertos por uma fina camada de argila localizada entre os 0,12 m e os 0,14

m abaixo do nvel mdio da gua do mar39.

39 Alexandre Sarrazola; Jos Bettencourt; Andr Teixeira Op. cit. 2014, p. 112.

0

0,2

0,4

0,6

0,8

1

1,2

1,4

1,6

0 0,5 1 1,5 2

CO

MP

RIM

ENTO

(m

)

LARGURA (m)

Grfico 1 - Relao entre o comprimento e a largura dos blocos ptreos.

19

Preservavam-se ainda quatro fiadas de toros dispostos horizontalmente no

sentido Noroeste-Sudeste, associados a sete toros na perpendicular (sentido Nordeste-

Sudoeste), formando deste modo o reticulado. Em ambos os casos tratavam-se de toros

que incorporavam ainda as formas originais da rvore, na sua grande maioria,

apresentando por isso um corte transversal circular com dimetros mdios que

variavam entre os 13 e os 23 cm (Figura 10).

Figura 9 Registo fotogrfico da base de madeira da estrutura

porturia na Praa D. Lus I (Fonte: ERA-Arqueologia S.A.).

20

Figu

ra 1

0 -

De

sen

ho

arq

ueo

lgi

co d

a b

ase

de

mad

eira

me

do

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na

Pra

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s I.

Iden

tifi

ca

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um

ric

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os

ele

men

tos

qu

e o

co

mp

e

m.

21

Em algumas situaes foram observados toros afeioados na face de contacto,

de modo a facilitar a sua ligao no seio da estrutura com pregos em ferro (Figura 11).

No existia, contudo, nenhuma lgica no afeioamento dos toros, que mostravam uma

construo simples e pouco cuidada, mas suficiente para a funo que assumiam. Todas

peas que compem esta estrutura no tinham sinais de utilizao anterior, pois todos

os toros de madeira, assim como as peas de estacaria, no apresentavam nenhumas

marcas de talhe que no correspondessem sua utilizao na base do cais. As peas

estavam apenas propositadamente, e rudemente, descascadas, possivelmente comum

machado40.

A composio das fiadas de toros dispostas no sentido Noroeste-Sudeste era

heterognea. Na seco Norte registaram-se elementos individuais (n 1 e n 2),

talhados num s tronco, enquanto as restantes as fiadas eram constitudas por duas

peas devidamente ligadas entre si (n 3 e n4). Esta ligao era realizada atravs de um

talhe oblquo em ambas as peas, que permitia o seu encaixe e a ligao de uma cavilha

de ferro (Figura 8). No obstante esta heterogeneidade, todos eles apresentavam-se

40 Atravs do registo fotogrfico e da documentao de campo disponvel no possvel averiguar se estavam presentes algumas marcas de serralharia ou de carpintaria.

Figura 11 - Pormenor dos entalhes e pregos presentes na base de madeira da estrutura porturia

na Praa D. Lus I (Fonte: ERA-Arqueologia S.A.).

22

ocos no seu interior, segundo o corte abrupto na seco sudeste da base reticulada, o

que ter a ver com processos ps-deposicionais (Figura 12).

A anlise das dimenses dos toros sugere que a largura ter sido um factor

determinante na sua seleco, pois todos apresentam uma dimenso semelhante, entre

os 0,26 m e os 0,3 m (Grfico 2). O comprimento dos toros horizontais, por sua vez, no

homogneo pois apresenta diferenas entre os 6 m e os 9,5 m, embora esta possa

estar relacionada com o estado de conservao da estrutura arqueolgica, que no se

apresenta completa.

Figura 12 Pormenor dos toros de madeira ocos presentes na base de madeira da

estrutura porturia na Praa D. Lus I (Fonte: ERA-Arqueologia S.A.).

Grfico 2 - Relao entre o comprimento e a largura dos toros de madeira dispostos no sentido Noroeste-Sudeste.

0,26

0,265

0,27

0,275

0,28

0,285

0,29

0,295

0,3

0,305

5 5,5 6 6,5 7 7,5 8 8,5 9 9,5 10 10,5 11 11,5 12

LAR

GU

RA

(m)

COMPRIMENTO (m)

1 2 3 4

23

Os restantes toros (do n 5 ao n 11), nomeadamente os dispostos no sentido

Nordeste-Sudoeste, apresentam uma maior homogeneidade. Os comprimentos

registados nestes casos variam entre os 0,96 m e os 2,15 m, mas as oscilaes verificadas

esto relacionadas com o estado de conservao desta parte da estrutura (Grfico 3).

Por sua vez, as larguras que destes toros so muito semelhantes, entre os 0,19 m e os

0,25 m. Existe, no entanto, a excepo do toro disposto mais Noroeste que apresenta

uma maior largura, 0,33 m. A homogeneidade registada aquando a anlise dimensional

do reticulado de madeira poder indicar que a largura mxima da evidncia

arqueolgica estaria entre os 2,20 m e os 2,50.

A distncia entre os toros no seio da estrutura era relativamente semelhante. A

disposio entre os toros n 2 e o n 3 (de 28 a 15 cm) ou entre o n 3 e o n 4 (de 35 a

20 cm) ia diminuindo de Noroeste para Sudeste, acompanhando o desenvolvimento da

estrutura neste sentido. A distncia assinalada entre o toro n 1 e o n 2 no registava

qualquer oscilao, mantendo-se entre 29 a 30 cm ao longo de toda a evidncia

arqueolgica. Os toros de madeira dispostos no sentido Nordeste-Sudoeste

apresentavam uma mdia de distncias entre si de 75 cm a 1 m (Figura 13). Contudo,

possivelmente estas distncias no obedecem a nenhum critrio especfico,

contrariamente ao que se verifica na disposio dos toros n 1, 2, 3 e 4, mas a amostra

demasiado pequena para se tirarem concluses. A anlise dos comprimentos bem

como das distncias entre os toros no proporcionaram muita mais informao do que

0,15

0,201

0,252

0,303

0,85 1,1 1,35 1,6 1,85 2,1 2,35

LAR

GU

RA

(m)

COMPRIMENTO (m)

5 6 7 8 9 10 11

Grfico 3 - Relao entre o comprimento e a largura dos toros de madeira dispostos no sentido Nordeste-Sudoeste.

24

a apesentada, pois possivelmente esta evidncia arqueolgica desenvolver-se-ia em

sentido Sudeste, o que no pde ser confirmado no registo arqueolgico.

O aparelho ptreo bem como a base em madeira eram suportados por uma rede

de estacaria, tambm em madeira, entre os 0, 88 m e 1, 13 m abaixo do nvel mdio das

guas. No total contabilizaram-se 23 peas, meticulosamente distribudas com o

objectivo de travar a grade e suportar todo o peso da estrutura. Cada elemento era

talhado, apresentando uma seco semi-circular na parte superior e uma ponta

piramidal na sua parte inferior, de modo a que a sua cravao no solo fosse facilitada

(Figura 14).

Estas estacas possuam dimetros que variavam entre os 13 cm, no mnimo, e os

22 cm, no mximo, e comprimentos que variavam entre os 55 cm e os 60 cm41. A sua

distribuio e as diferenas nas dimenses indicam que no existiu qualquer norma na

sua colocao, j que no se vislumbra qualquer padro de distribuio relacionado com

esta mtrica.

41 Apenas foi possvel discernir os comprimentos de duas estacas atravs do desenho geo-refernciado.

Figura 13 - Disposio da estacaria ao longo da estrutura. (Fonte: ERA-Arqueologia S.A.)

25

A sua localizao na estrutura obedecia, contudo, a determinados critrios: antes

de mais, as estacas eram dispostas sempre junto aos toros de madeira de sentido

Nordeste-Sudoeste42, por norma trs estacas por fiada. A colocao destes elementos

junto aos toros tinha como objectivo evitar deslocamentos horizontais da grade pelo

que nos extremos Nordeste e Sudoeste foram colocadas duas estacas de um lado e outra

do lado contrrio. tambm possvel observar que a maioria dos conjuntos de trs

estacas tm um maior reforo (presena de duas estacas) na sua seco Sudeste,

contrariamente seco Noroeste com apenas uma estaca (Figura 14). So cerca de

cinco conjuntos que tm esta disposio, face aos dois que apresentam a ordenao

inversa, localizados a Noroeste. O facto da estacaria oferecer um maior nmero de

estacas na seco Sudeste da estrutura poder estar intimamente relacionado com a

aproximao da linha de costa e com a necessria resistncia a grandes mars.

O cruzamento desta anlise com outros estudos arqueolgicos sobre estruturas

martimas permitiu-nos principalmente compreender a sua natureza porturia. A sua

datao com base nestas comparaes no contudo uma metodologia segura, devido

ao carcter mutvel que estas estruturas podem sofrer em pequenos perodos de

tempo.

42 Correspondem aos toros de madeira n 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 (Ver Figura 10).

Figura 14 Registo fotogrfico de uma as estacas (Fonte: ERA-Arqueologia S.A.)

26

A comparao com outros exemplos internacionais, nomeadamente europeus,

demonstrou a vasta utilizao de madeira na construo de estruturas porturias (de

um modo geral, mas maioritariamente na sua base), generalizada pelo menos durante

a poca medieval. A madeira tornava possvel a preservao e a resistncia a factores

costeiros durante um perodo de tempo mais longo. So inmeros os exemplares

passveis de referncia, nomeadamente na cidade de Bergen (no Noroeste da Noruega),

onde vrias escavaes arqueolgicas realizadas demonstraram uma srie de

construes martimas at ao sculo XVII43. A grande semelhana entre este caso e a

estrutura porturia exumada na Praa D. Lus I o reticulado de madeira, utilizado como

suporte s estruturas costeiras. Em Bergen, com alis na maior parte dos casos no Norte

e Noroeste da Europa, no foram registadas construes em alvenaria durante a poca

moderna. Porm, verifica-se a construo de bases atravs da sobreposio de toros de

madeira, com um sistema de fixao com entalhes sobre uma rede de estacaria44.

Os melhores paralelos para a estrutura porturia exumada na Praa D. Lus I

surgem, contudo, em Lisboa, nomeadamente no Terreiro do Pao (sculo XVII), um dos

casos melhor estudados no territrio portugus. Para alm da importncia cientfica de

um estudo desta natureza em Portugal, este stio torna-se ainda mais relevante devido

s suas similaridades com a estrutura porturia identificada na Praa D. Lus I, registando

um melhor estado de conservao. O cais exumado no Terreiro do Pao em 2009 era

uma estrutura porturia em alvenaria sobre uma base de madeira, associada ao paredo

integrado no baluarte do Terreiro do Pao, portanto com uma lgica construtiva

semelhante Praa D. Lus I45.

O cais do Terreiro do Pao apresenta uma alvenaria de silhares de calcrio

rectangulares, em particular lioz, reforada com ligantes em argamassa. A sua estrutura

ptrea, para alm de assentar directamente sobre um plano de toros de madeira

dispostos de forma a criar um reticulado, tambm sem indcios de preparao prvia,

43 G.L. Good; et. al. (ed.) - Waterfront archaeology: proceeding of the third Internatinal conference. Bristol 23-26 September 1988. CBA Research Report. N 74. Londres: Council for British Archaeology, 1991. 44 A. E. Herteig The medieval harbour of Bergen. In Gustav Milne; Brian Hobley Waterfront archaeology in Britain and Northern Europe. CBA Research Report n 41. London: The Council for British Archaeology, 1981, pp. 80-87. 45 M Lusa Blot; Csar Augusto Neves; Ana Filipa Rodrigues O cais dos sonhos: Terreiro do Pao. In National Geographic Portugal. Agosto de 2009. s.l.: s. e. pp. 18-25.

27

utilizava entalhes em ferro para a sua fixao ao madeirame. semelhana da estrutura

porturia em estudo, esta base era fixa atravs de uma rede de estacaria de pinho

afeioada numa das pontas, facilitando a sua cravao no lodo. Apesar disto,

encontram-se tambm algumas diferenas em relao ao caso aqui analisado. O cais do

Terreiro do Pao exibe uma morfologia quadrangular e consequentemente uma base de

madeira mais coesa do que a observada na Praa D. Lus I46. A utilizao de madeira nas

bases de estruturas costeiras comum e est documentada. Por exemplo, no caso da

construo do Cais de Belm, foi exigido pela Cmara Municipal de Lisboa que se

utilizasse madeira e pedra calcria para a construo deste47, pressupondo desta forma

uma composio semelhante estrutura porturia da Praa D. Lus I.

A anlise comparativa destas duas estruturas foi fundamental para

compreendermos que a estrutura porturia estudada nesta dissertao realmente um

cais. No Terreiro do Pao o cais estava integrado no paredo do baluarte. Cremos que o

mesmo aconteceu na Praa D. Lus I, ou seja, tratava-se de um paredo que funcionava

tambm como um cais para o embarque e desembarque de mercadorias. A dupla

funcionalidade de paredes desta natureza era comum na Ribeira de Lisboa e estava

directamente relacionada com uma poupana de recursos e/ou espao48. H tambm a

hiptese deste se tratar de um cais coberto. Na cidade de Oslo (na Noruega), o Exeter

Quay um bom exemplar de um cais, desta natureza, integrado num edifcio, apesar de

se tratar de uma estrutura totalmente em madeira de finais do sculo XVII49.

O estudo desta estrutura tambm importante porque a conservao da sua

base em madeira um caso pouco comum na arqueologia portuguesa, s possvel

devido a condies de deposio favorveis, num contexto hmido onde a preservao

integral de orgnicos possvel. A estrutura presente na Praa D. Lus efectivamente

46 Csar Augusto Neves; Andrea Martins; Gonalo Lopes; M Lusa Blot Do Terreiro do Pao Praa do Comrcio (Lisboa): identificao de vestgios arqueolgicos de natureza porturia no subsolo urbano. In Andr Teixeira; Jos Antnio Bettencourt (coord.) - Velhos e novos mundos: estudos de arqueologia moderna. ArqueoArte, n1. Vol. 2. Lisboa: Centro de Histria Alm-Mar, 2012, pp. 613-626. 47 Referncias Histricas do Porto de Lisboa. Lisboa, Administrao do Porto de Lisboa, 1991. pp. 140-141. 48 Referncias Histricas do Porto de Lisboa. Lisboa, Administrao do Porto de Lisboa, 1991, p. 42. 49 Petter B. Molaug Kings Quay and Bishops Quay The harbor of medieval Oslo. In Jay Bill; Birthe L. Clausen (ed.) Maritime topography and the medieval town: Papers from the 5th International Conference on Waterfront Archaeology in Copenhagen, 14-16 May 1998. Studies in Archaeology & History. Vol. 4. Copenhagen: Publications from The National Museum, 1999, pp. 169-178.

28

um cais, que estaria possivelmente associado a um paredo, podendo ser coberto ou

no.

2.3. OS MATERIAIS ARQUEOLGICOS

Ao longo de toda a interveno arqueolgica da Praa D. Lus I foi registado um

esplio cronologicamente vasto, desde a poca romana contempornea50.

Abordaram-se aqui apenas os materiais cermicos associados estrutura em questo;

bem como os sedimentos que se lhe sobrepunham ou que eram sobrepostos por ela.

Anterior construo da estrutura porturia, ou seja sob o cais, encontravam-se as

paliadas, possivelmente, do sculo XVII51. A destruio do cais, por sua vez, est

relacionada com a implementao de diversas estruturas de poca contempornea,

nomeadamente do sculo XIX52. No total contabilizaram-se 198 fragmentos, dos quais

61 foram seleccionados para inventrio53.

Os materiais cermicos relacionados com as paliadas do sculo XVII

forneceram um considervel nmero de fragmentos e, consequentemente, de peas

com a possibilidade de atribuio de cronologias54.

O nico cntaro identificado nesta coleco, sendo apenas um fragmento de

fundo (PDLI11/12-5085-051), no apresenta qualquer indcio de tratamento de

50 Alexandre Sarrazola; Jos Bettencourt; Andr Teixeira Op. cit, 2013, pp. 142146. 51 Associadas a estas estruturas encontram-se as seguintes unidades estratigrficas: 5081; 5082; 5085; 5088; 6020; 6026; 6029 e 6023/6022. 52 Associadas a estas estruturas encontram-se as seguintes unidades estratigrficas: 5019; 5040; 5043; 5047 e 5015. 53 O estudo do esplio obedeceu a uma metodologia que contemplou a lavagem e secagem do material devidamente identificado e a sua posterior organizao. Esta organizao foi realizada por unidade estratigrfica e por tipologia (porcelana, cermica esmaltada, vidrada ou comum), facilitando desta forma a colagem de fragmentos dentro das unidades estratigrficas ou entre estas. A inventariao do esplio foi realizada atravs da seleco de peas que permitisse uma datao o mais precisa possvel. A marcao das mesmas, por sua vez, foi executava atravs da aplicao de verniz no fragmento e a escrita, a tinta permanente, do nmero de inventrio: incluindo a sigla do stio arqueolgico (PDLI), a data de escavao/acompanhamento arqueolgico (11/12), a unidade estratigrfica (por exemplo: 5082) e por fim o nmero individual atribudo . Todas as peas inventariadas foram devidamente descritas e registadas fotograficamente. Sempre que possvel, realizou-se tambm o desenho arqueolgico das mesmas com o principal objectivo de extrapolar a sua forma. Os desenhos foram posteriormente vectorizados no Adobe Illustrator. 54 Peas inventariadas da unidade estratigrfica 5085: PDLI11/12-5085-001; PDLI11/12-5085-002; PDLI11/12-5085-003; PDLI11/12-5085-004; PDLI11/12-5085-005; PDLI11/12-5085-006; PDLI11/12-5085-010; PDLI11/12-5085-024; PDLI11/12-5085-029; PDLI11/12-5085-030; PDLI11/12-5085-035; PDLI11/12-5085-037; PDLI11/12-5085-041; PDLI11/12-5085-044; PDLI11/12-5085-045; PDLI11/12-5085-049; PDLI11/12-5085-051; PDLI11/12-5085-053; PDLI11/12-5085-057; PDLI11/12-5085-058; PDLI11/12-5085-059; PDLI11/12-5085-061 e PDLI11/12-5085-062 (Ver catlogo).

29

superfcie e possui caractersticas que o permitem datar entre os sculos XVI e XVII.

Porm, devido sua forma comum, a sua cronologia poder estender-se s centrias

seguintes. Exemplares semelhantes foram identificados na casa setecentista do Martim

Moniz (ESA/02.Q22/23.62.414), bem como na Casa do Infante no Porto, sendo que

ambas as peas foram atribudas essencialmente ao sculo XVII55.

O fragmento de bordo de caoila PDLI11/12-5082-019 apresenta, segundo o seu

paralelo, uma cronologia perfeitamente enquadrada no seio da poca moderna. Trata-

se de um fragmento muito concrecionado e, como tal, a observao da existncia de

tratamento de superfcie ou marcas de fogo dificultada. Contudo, a nvel formal, esta

pea tem como paralelo um fragmento exumado na Rua Augusto Cardoso em Palmela,

datado do sculo XVI. Porm, tendo em conta o carcter utilitrio deste tipo de

cermica, possvel que esta datao se alargue para as centrias seguintes56.

As peas PDLI11/12-5082-021 e PDLI11/12-5082-025 so similares, excepo

da sua pasta. Tratam-se de duas covilhetes em faiana com uma decorao de linhas

concntricas no fundo e no bordo, com cronologias que se situam entre a segunda

metade do sculo XVI e a primeira metade do sculo XVIII57. Encontrou-se um paralelo

entre os materiais recuperados numa habitao do sculo XVIII no Martim Moniz

(ESA.02.R20.65.46), todavia esta tipologia de faiana comum em contextos

modernos58.

Outra tipologia nica, nesta coleco, uma escudela de grandes dimenses com

uma decorao de linhas concntricas em azul no fundo e no bordo. Contudo, o seu

vidrado estanfero branco encontra-se muito danificado (PDLI11/12-5082-027).

Segundo um paralelo formal exumado na Casa do Infante no Porto, esta pea apresenta

uma cronologia entre os sculos XVI e XVII59.

O prato PDLI11/12-5088-036 no apresenta qualquer motivo decorativo e como

tratamento de superfcie foi aplicado apenas um engobe de colorao bege. Como tal,

55 Tnia Casimiro Op. cit. 2011. p. 710 e Paula Barreira; Paulo Dordio; Ricardo Teixeira Op. cit. 1995, p. 168 (Figura 40). 56 Isabel Cristina Fernandes; A. Rafael Carvalho Op. cit. 1995, pp. 218 e 236. (Pea n 27) 57 Lus Sebastian; Ana Sampaio e Castro Op. cit. 2008. p. 27. 58 Tnia Casimiro Op. cit. 2011, p. 92. 59 Paula Barreira; Paulo Dordio; Ricardo Teixeira Op. cit. 1995, p. 153. (Figura 14)

30

a atribuio de paralelos a este tipo de pea foi efectuada apenas com base na sua

forma. Segundo um fragmento identificado no Beco dos Invlidos em Cascais, que

apresenta um formato idntico, esta pea poder datar de finais do sculo XVI, com a

possibilidade de se estender para a centria seguinte60.

O fragmento de bordo de prato PDLI11/12-5085-041, apesar da sua pequena

dimenso, a sua decorao na superfcie interna permite a localizao cronolgica entre

finais do sculo XVII e finais da centria seguinte (segundo diversos especialistas em

faiana portuguesa)61. Em contextos arqueolgicos, este tipo de decorao est

registada em diversas tijelas ou pratos, seja na superfcie interna ou externa, como se

pode observar numa habitao moderna no Martim Moniz (ESA/02.S21.65.220)62 e no

Convento dos Capuchos em Palmela.63 Contudo, ambos os paralelos apontam para

dataes do sculo XVII, no obstante o possvel alargamento para o sculo seguinte.

A pea PDLI11/12-5085-004, um fragmento de fundo de um fogareiro, outrora

possivelmente com um vidrado plumbfero64. A identificao deste fragmento como

parte integrante de um fogareiro feita com base apenas na sua forma, dada a

inexistncia de marcas de fogo nas suas superfcies. Esta pea apresenta uma cronologia

entre a ltima metade do sculo XVII e sculo XVIII, de acordo com peas da mesma

natureza recuperadas n uma habitao na rea do Martim Moniz, Lisboa

(nomeadamente ESA02.S21.65.262)65, e na interveno arqueolgica da Rua lvaro

Casteles (Pea n 11), em Setbal66. De mesmo modo, o fragmento de bordo de

alguidar PDLI11/12-5085-006 apresenta caractersticas que o situam entre os sculos

60 Guilherme Cardoso; Severino Rodrigues Tipologia e cronologia de cermicas dos sculos XVI, XVII e XIX encontradas em Cascais. In Arqueologia Medieval. N 6. Mrtola: Edies Afrontamento, 1999. (Pea n25) 61 Tnia Casimiro Op. cit. 2011, p. 588. 62 Tnia Casimiro Op. cit. 2011, p. 95. 63 Isabel Cristina Fernandes; A. Rafael Carvalho Op. cit. 1995, pp. 219 e 240. (Pea n 47) 64 Verificou-se na maioria do esplio modificaes ps-deposicionais devido, como anteriormente mencionado, realizao da interveno arqueolgica na Praa D. Lus I em contexto hmido com o auxlio de bombas para a extraco da gua. 65 Tnia Casimiro Estudo do esplio de habitao setecentista em Lisboa. In O Arqueolgo Portugus. Srie V, 1. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2011, p. 715. 66 Susana Duarte; Joaquina Soares; Carlos Tavares da Silva Interveno arqueolgica na Rua lvaro Casteles n 38 e 40 (Setbal) e sismo de 1755. In Setbal Arqueolgica. Vol. 15. Setbal: MAEDS, 2014, p. 356 (Figura 23).

31

XVII e XVIII, atravs de paralelos encontrados em Lisboa ou na Casa do Infante, na cidade

do Porto67.

O fragmento da poro de bordo da tijela PDLI11/12-5085-024 detm um motivo

decorativo de contas na sua superfcie exterior muito caracterstico entre finais do

sculo XVII e incios do sculo XVIII68. Analisando este motivo decorativo, bem como a

forma hemisfrica e o bordo simples exvertido da pea, possvel encontrar dois

paralelos (a nvel decorativo e formal): um fragmento exumado numa habitao

setecentista no Martim Moniz (ESA.Q2.R21.65.51)69 e outro no convento da ordem de

Santiago em Palmela70; e dois fragmentos com a forma idntica na Rua lvaro Casteles,

em Setbal71.

Tambm em porcelana chinesa, foi inventariado um fragmento de parede de um

pote (PDLI11/12-5085-060). A seleco desta pea deveu-se decorao presente: uma

flor de ltus em azul cobalto sobre vidrado estanfero branco. Diversos potes com a

mesma decorao foram registados e analisados na coleco de porcelana chinesa do

Palcio de Queluz, aos quais foram atribudas cronologias do perodo Kangxi (1662-

1722) da Dinastia Qing72.

A pea PDLI11/12-5082-014 trata-se de um fundo plano de um prato de faiana

portuguesa com decorao fitomrfica. Analisando apenas esta decorao, devido

inviabilidade de anlise da sua forma, foi possvel situ-lo no ltimo quartel do sculo

XVII, pois pertence ao grupo A3.1.2 definido por Lus Sebastian. Deste modo, o paralelo

67 Paula Barreira; Paulo Dordio; Ricardo Teixeira Op. cit. 1995, p. 122. e Raquel Henriques da Silva; Isabel Maria Fernandes; Rodrigo Banha da Silva Op. cit. 2003, p. 167 (figura 37). 68 Tnia Casimiro Faiana portuguesa nas ilhas Britnicas: dos finais do sculo XVI aos incios do sculo XVIII. Dissertao de Doutoramento em Histria, especialidade de Arqueologia. Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas (U.N.L.), 2010, p. 588. 69 Tnia Casimiro Op. cit. 2011, p. 703. 70 Isabel Cristina Fernandes O ltimo convento da Ordem de Santiago em Palmela: dados arqueolgicos da interveno no ptio fronteiro igreja. In Andr Teixeira; Jos Antnio Bettencourt (coord.) - Velhos e novos mundos: estudos de arqueologia moderna. Vol. 1. Lisboa: Centro de Histria Alm-Mar, 2012, p. 514 (Figura 25). 71 Susana Duarte; Joaquina Soares; Carlos Tavares da Silva Op. cit. 2014, p. 357 (Figura 26). 72 Ins Ferro; Ana Flores (coord.) Inventrio do Palcio de Queluz: coleco de cermica. Lisboa: Instituto Portugus do Patrimnio Arquitectnico, 2002, pp. 40-41. (Pea n 8, 9 e 10)

32

arqueolgico mais prximo para a pea PDLI11/12-5082-014 originrio do Mosteiro

de S. Joo de Tarouca, em Viseu73.

A pea inventariada PDLI11/18-5082-018 corresponde um fragmento de bordo

de um prato em faiana com decorao, na sua superfcie interna, em meia-luas

encadeadas a azul. Este fragmento foi datado do ltimo quartel do sculo XVII a meados

do sculo XVIII, segundo um paralelo decorativo exumado no Bairro da Estrela em

Lisboa. Tratava-se de um contexto selado na Rua de Buenos Aires, composto por duas

fossas repletas de materiais cermicos da poca moderna74.

No seio das peas inventariadas desta coleco registou-se tambm a presena

de uma covilhete (PDLI11/12-5082-026) em faiana. Sem qualquer decorao, o

fragmento mantm o perfil completo e apresenta uma forma troncocnica com um p

em anel baixo. Este tipo de peas tem uma datao situada entre os sculos XVII e o

XVIII, segundo os paralelos arqueolgicos e museolgicos identificados. Por exemplo,

um destes estava presente na interveno arqueolgica da rua de Buenos Aires75 em

Lisboa, enquanto o outro se encontra nas coleces do Museu de vora76.

O testo PDLI11/12-5082-032 de vidrado estanfero branco, apenas na sua

superfcie interior, tinha com um fundo convexo; a sua forma recorrente em contextos

modernos. A datao para esta pea encontra-se entre o sculo XVII e XVIII, segundo

dois paralelos presentes no Museu de vora77.

73 Lus Sebastian; Ana Sampaio e Castro A faiana portuguesa no Mosteiro de S. Joo de Tarouca: metodologia e resultados preliminares. Al-madan Online. II Srie, n16. Almada: Centro de Arqueologia de Almada, 2008, p. 27 [Disponvel em http://www.almadan.publ.pt, consultado em Julho de 2014] 74 Lusa Batalha; Andreia Campa; Guilherme Cardoso; Nuno Neto; Paulo Rebelo; Raquel Santos Vestgios de um centro produtor de faiana dos sculos XVII e XVIII: dados de uma interveno arqueolgica na rua de Buenos Aires, n10, Lisboa. In Andr Teixeira; Jos Antnio Bettencourt (coord.) - Velhos e novos mundos: estudos de arqueologia moderna. Vol. 2. Lisboa: Centro de Histria Alm-Mar, 2012, p. 957. 75 Lusa Batalha; Andreia Campa; Guilherme Cardoso; Nuno Neto; Paulo Rebelo; Raquel Santos Op. cit. 2012, p. 959. (Pea n47) 76 Museu de vora (MatrizNet). [Disponvel em http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=22924, consultado em Julho de 2014] 77Museu de vora (MatrizNet). [Disponvel em http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=22926 e http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=22925, consultado em Julho de 2014).

http://www.almadan.publ.pt/http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=22924http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=22926http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=22925

33

Entre os raros fragmentos desta coleco que oferecem um perfil completo, e

que por isso permitem o conhecimento da forma total da pea, destaca-se uma caoila

de formato troncocnico (PDLI11/12-5085-037). Peas com caractersticas similares,

excepo da superfcie interior vidrada, foram exumadas no Castelo de Palmela (pea

n 122) sendo datadas entre os sculos XVII e XVIII78.

A porcelana PDLI11/12-5085-058, um fragmento de fundo de prato, apresenta

uma datao relativamente precisa. Este fragmento tinha um desenho inciso sobre o

vidrado de um ramo (possivelmente uma penea) atado com uma fita; possvel que

este desenho tivesse uma pintura que se no se conservou at aos dias de hoje. Este

motivo decorativo comum na porcelana de famlia rosa produzida durante o reinado

de Qianlong (1770-1785), na dinastia Qing. possvel observarmos uma pea similar na

coleco do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa79.

A pea PDLI11/12-5085-059 permitiu tambm uma datao relativamente

precisa, esta corresponde a um fragmento de bordo de uma tijela em porcelana,

possivelmente de origem chinesa. O elemento decorativo presente consistia numa

pintura castanha (sem qualquer motivo decorativo) em poro do bordo. Porcelanas

similares foram exumadas do galeo espanhol El Infante, naufragado na costa da Florida

(Florida Keys) em 1733 e cuja carga continha diversas peas de porcelana da Dinastia

Qing (sculo XVIII), algumas com paralelos tigela da Praa D. Lus I no Museu de Histria

Natural da Florida80.

A pea PDLI11/12-5082-009 trata-se de um fragmento com poro do bordo de

um prato cvo, sem qualquer decorao, cuja datao se situa por volta da primeira

metade do sculo XVIII. Contudo, existe a possibilidade de se ter iniciado num perodo

anterior e que tenha tambm uma continuao posterior. Arqueologicamente,

78 Isabel Cristina Fernandes; A. Rafael Carvalho Conjuntos cermicos ps-medievais de Palmela. Actas das II Jornadas de cermica medieval e ps-medieval: mtodos e resultados para o seu estudo. Tondela: Cmara Municipal de Tondela, 1995, pp. 226 e 247. 79 Maria Antnia Matos Porcelanas de encomenda: histria de um intercmbio cultural entre Portugal e China. In Oceanos: Porcelana e mares da China. N 14. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, Junho de 1993, p. 55. (N de inventrio: 2039) 80 Florida Museum of Natural History, Historical archaeology type collection (n 61, 62, 63 e 64). [Disponvel em https://www.flmnh.ufl.edu/histarch/gallery_types/individual_display.asp?PhotoID=4., consultado em Maio de 2014] (Peas n 61, 62, 63 e 64)

https://www.flmnh.ufl.edu/histarch/gallery_types/individual_display.asp?PhotoID=4

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encontrou-se um paralelo formal bastante prximo no Convento de So Francisco em

Lisboa (CSF/Lx.93/157), tambm atribudo ao sculo XVIII81.

O fragmento de testo PDLI11/12-5082-013 apresenta uma forma caracterstica

do sculo XVIII. O estado de conservao desta pea muito precrio, pelo que apenas

se observam alguns vestgios de vidrado estanfero branco, impossibilitando a

caracterizao da sua decorao. A nvel formal, foi identificado um paralelo na

interveno da Casa do Infante, no Porto. Este detinha as mesmas caractersticas

formais, tornando possvel situar a sua datao no sculo XVIII82.

O fragmento de fundo, em p anelar, de prato de grandes dimenses

(PDLI11/12-5082-016) e com duas linhas concntricas azuis a demarcar o fundo,

apresenta uma cronologia do sculo XVIII. A sua forma, bem como a decorao,

encontram paralelo no Convento de So Francisco de Lisboa

(CSF/Lx.93/169+170+171+172). Contudo, este exemplo contm uma linha concntrica a

mais em comparao pea inventariada. A pea exumada na interveno do Convento

de So Francisco detm uma cronologia que se situa na primeira metade do sculo

XVIII.83

A pea PDLI11/12-5088-063, aba de um prato cvo, dos poucos, seno o nico,

fragmento de importao registado nesta coleco. Trata-se de uma pea com um

tratamento de superfcie em vidrado de sal e uma decorao de motivos ondulares em

relevo tpico da produo inglesa Cream ware, do sculo XVIII, fabricada entre 1720 e

1770.84 possvel encontrar diversos paralelos para este tipo de cermica em museus

81 Joana Bento Torres Quotidianos no Convento de So Francisco de Lisboa: uma anlise da cermica vidrada, faiana portuguesa e porcelana chinesa. Dissertao de Mestrado de Arqueologia. Lisboa: Faculdade de Cincias Sociais e Humanas (U.N.L.), 2011, p. 252. 82 Paula Barreira; Paulo Dordio; Ricardo Teixeira Op. cit. 1995, p. 158. (Figura 23). 83 Joana Bento Torres Op. cit. 2011, p. 256. 84 Ian Freestone; David Gamister Pottery in making: world ceramic traditions. London: British Museum Press, 1997. pp. 200-205.

35

internacionais: Museu de Histria Natural da Florida85 ou Philadelphia Museum of Art,

por exemplo86.

Associado a este momento foi tambm exumado um fragmento de uma possvel

bacia (PDLI11/12-5085-010) de grandes dimenses, com uma decorao muito

caracterstica: um festo curvilneo a amarelo abaixo da seco do bordo que estava

demarcado por duas linhas concntricas (uma a castanho e outra a amarelo). Este

motivo decorativo distinto tpico da Fbrica da Viva Antunes, mais conhecida como

Fbrica de Estremoz, que iniciou a sua produo no ltimo quartel do sculo XVIII87.

Peas semelhantes esto hoje em dia apresentadas em diversas coleces particulares,

como a de Silvestre Gibert Correia88, ou no Museu de Alberto Sampaio, ambas com

cronologias do final do sculo XVIII a incios do sculo XIX89.

A anlise deste momento torna-se fundamental aquando o estudo do cais em

questo devido possibilidade de datao do momento precedente sua construo, e

permite consequentemente formar uma cronologia mnima para esta estrutura

porturia. As paliadas tinham sido classificadas como estruturas do sculo XVII. De

acordo com a anlise dos materiais disponvel as dataes que dispomos so

correspondentes ao sculo XVII, mas sobretudo do sculo XVIII. Tendo em conta que a

colmatao de estruturas normalmente realizada atravs de aterros possvel que

estas paliadas sejam efectivamente do sculo XVII. Este factor corrobora tambm a

presena da pea PDLI11/12-5085-010 de produo fabril, da Fbrica da Viva Antunes,

que contm uma datao precisa para o incio desta produo: ltimo quartel do sculo

XVIII.

85 Florida Museum of Natural History, Historical archaeology type collection (n 102). [Disponvel em https://www.flmnh.ufl.edu/histarch/gallery_types/individual_display.asp?PhotoID=93, consultado em Julho de 2014] 86 Philadelphia Museum of Art. [Disponvel em http://www.philamuseum.org/collections/permanent/84614.html?mulR=297663871|296, consultado em Julho de 2014] 87 Jos Queirs Cermica portuguesa e outros estudos. Jos Manuel Garcia; Orlando da Rocha Pinto (coord.), 4 Edio. Lisboa: Editorial Presena, 2002, pp. 174-175. 88 Arthur Sando Faiana portuguesa: sculos XVIII e XIX. Porto: Civilizao Editora, 1988, pp. 164-167 89 Museu de Alberto Sampaio (MatrizNet) [Disponvel em http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=5529, consultado em Julho de 2014].

https://www.flmnh.ufl.edu/histarch/gallery_types/individual_display.asp?PhotoID=93http://www.philamuseum.org/collections/permanent/84614.html?mulR=297663871|296

36

Associadas s estruturas de poca contempornea, dispostas sobre o cais foram

inventariadas oito peas90 pertencentes s diversas unidades estratigrficas j referidas.

Neste contexto foram identificados alguns fragmentos de cermica de construo, cuja

atribuio de paralelos no foi possvel, o que impossibilitou a sua datao.

Um pequeno fragmento de fundo de prato de porcelana (PDLI11/12-5047-055),

apresentava uma decorao que se estende por vrias centrias, desde o final do sculo

XVI at ao sculo XVIII. Esta corresponde a um elo de cercaduras delimitado por duas

linhas concntricas a azul. Este tipo de decorao encontra-se em vrios pratos

pertencente coleco da Casa-Museu Dr. Anastcio Gonalves, o que a situa no

terceiro quartel do sculo XVI (Dinastia Ming).91 Tambm possvel encontrar um

paralelo no Museu de Histria Natural da Florida pertencente Lister type collection92.

Neste momento foram identificados dois fragmentos de alguidar de pasta laranja

e bege que apresentavam um tratamento de superfcie com um vidrado plumbfero

laranja e amarelo (PDLI11/12-5019-007 e PDLI11/12-5040-034). A utilizao destas

peas comum ao longo de toda a poca moderna e como tal estes artefactos so

facilmente observados em diversas escavaes arqueolgicas em Portugal ou em

contextos portugueses. Ambas as peas apresentavam uma forma idntica, apontando

para cronologias situadas entre sculo XVI e XVIII.93 Todavia, o vidrado plumbfero

aplicado na pea PDLI11/12-5040-034 poder situ-la apenas entre os sculos XVII e

XVIII94.

O esplio exumado correspondente s estruturas contemporneas forneceram

cronologias entre o sculo XVI e o XVIII. A maioria do material cermico analisado,

relacionado com este momento, trata-se de tipologias cermicas utilitrias e como tal

90 Peas inventariadas: PDLI11/12-5019-007; PDLI11/12-5019-020; PDLI11/12-5040-034; PDLI11/12-5019-046; PDLI11/12-5019-047; PDLI11/12-5040-048; PDLI11/12-5040-052 e PDLI11/12-5047-055 (Ver catlogo). 91 M Antnio Pinto de Matos A Casa das Porcelanas. Cermica chinesa da Casa-Museu Dr. Anastcio Gonalves. Lisboa: Instituto Portugus de Museus e Philip Wilson Publishers, 1996, pp. 60-61 e 94-94. 92 Florida Museum of Natural History, Lister type collection (n2561). [Disponvel em https://www.flmnh.ufl.edu/histarch/gallery_types/individual_display.asp?PhotoID=2561., consultado em Maio de 2014] (Pea n 2561) 93 Paula Barreira; Paulo Dordio; Ricardo Teixeira 200 anos de cermica na Casa do Infante do sculo XVI a meados do sculo XVIII. In Actas das II Jornadas de cermica medieval e ps-medieval: mtodos e resultados para o seu estudo. Tondela: Cmara Municipal de Tondela, 1995, p. 167. (Figura 37). 94 Raquel Henriques da Silva; Isabel Maria Fernandes; Rodrigo Banha da Silva Olaria portuguesa: do fazer ao usar. Lisboa: Assrio & Alvim, 2003, p. 122.

https://www.flmnh.ufl.edu/histarch/gallery_types/individual_display.asp?PhotoID=2561

37

apresentam cronologias que abrangem toda a poca moderna. Contudo, dada a

proximidade desta estrutura, ao analisarmos a sequncia estratigrfica, da construo

da Praa D. Lus I, acreditamos que apesar destas cronologias estamos perante

estruturas do sculo XIX95. Como tal, a estrutura porturia em estudo sem dvida

anterior ao sculo XIX, possivelmente tratar-se- de uma construo do sculo XVIII.

2.4. O CAIS DA CASA DA MOEDA

O carcter porturio da estrutura exumada na Praa D. Lus I, e estudada nesta

dissertao, irrefutvel. Tratava-se de facto de uma evidncia que detinha um

contacto directo com o Rio Tejo durante um determinado perodo de tempo na poca

moderna. A componente construtiva presente era comum a diversas construes

costeiras, maioritariamente portuguesas mas tambm europeias.

A evidncia arqueolgica em anlise tratar-se- muito possivelmente de uma

parte do paredo do Ptio da Casa da Moeda, que teria tambm a funcionalidade de um

cais96. De acordo com a anlise realizada no 2.2., os seus princpios construtivos

assemelham-se a diversas estruturas arqueolgicas martimas com o mesmo efeito. A

utilizao de madeira bem como a alvenaria em calcrio fornecia estrutura a

resistncia necessria aos avanos do rio, ao mesmo tempo que permitia a sua

conservao sobre a gua durante um grande perodo de tempo.

O intervalo cronolgico que as evidncias arqueolgicas circundantes

apresentam refora a afirmao que este seria o Cais da Casa da Moeda de incios do

sculo XVIII. Dada a impossibilidade de anlise dos materiais directamente relacionados

com a estrutura porturia, efectuou-se, por sua vez, o estudo das realidades materiais

situadas acima e abaixo do cais. A cronologia oferecida atravs dos materiais presentes

sob o cais localiza-se entre os sculos XVII e XVIII, com a ressalva de que a sua maioria

pertencia aos incios do sculo XVIII. Os materiais arqueolgicos correspondentes s

estruturas de poca contempornea apresentam tambm cronologias do sculo XVIII.

95 Analisado no ponto 2.1. desta dissertao. 96 possvel observar esta correspondncia atravs da anlise da cartografia lisboeta geo-refernciada presente no Lisboa interactiva da Cmara Municipal de Lisboa [Disponvel em http://lxi.cm-lisboa.pt/lxi/, consultado em Fevereiro de 2014]

http://lxi.cm-lisboa.pt/lxi/http://lxi.cm-lisboa.pt/lxi/

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Contudo, para alm de assentar directamente sobre parte do cais, esta evidncia

arqueolgica assenta tambm sobre nveis do aterro da Boavista97, o que poder

significar que estes materiais pertencem a nveis de aterro e, portanto, podero

apresentar cronologias relativamente abrangentes.

A sua posio em relao ao rio revela-nos, uma vez mais, o seu carcter

martimo. A estrutura apresentava uma ligeira inclinao no sentido Noroeste-Sudeste,

em direco ao rio Tejo. Por outro lado, a sua posio vertical da estrutura arqueolgica

(da qual apenas conhecemos a sua base e possivelmente se desenvolveria na vertical)

coincide com o nvel mdio das guas (calculado atravs do Datum do margrafo de

Cascais), sendo que estes valores se alteraram ligeiramente desde a poca moderna at

actualidade. A ttulo de exemplo, entre meados do sculo XIX e o incio do sculo XXI

houve uma subida do nvel mdio das guas de 0,20 m98.

No temos dados que permitem reconstituir a cota junto ao cais durante a sua

utilizao e, consequentemente, definir o calado mximo dos navios que ali podiam

acostar. No entanto, a documentao disponvel interessante, revelando problemas

frequentes de assoreamento ao longo das margens do Tejo. Por exemplo, em 1742 o

Secretrio de Estado dos Negcios da Marinha e Ultramar revelou a sua preocupao

relativamente ao embarque e desembarque nos cais da cidade. Notava-se que, tal como

em muitos outros locais de Lisboa, no stio da Boavista apenas era possvel proceder-se

ao embarque e desembarque durante a preia-mar, devido acumulao de lixos e,

consequentemente, de lamaal99.

O local onde se encontra a Casa da Moeda teve um carcter martimo antes da

poca moderna. No sculo XVI e na primeira metade do sculo XVII a rea seria ocupada

por uma praia fluvial, identificada arqueologicamente atravs de sedimentos fluviais e

artefactos associados100. A praia da Boavista ainda referida na documentao de finais

97 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. Cit. 2012, pp. 57-58. 98 Alexandre Sarrazola A ERA Arqueologia e as mais recentes descobertas na Orla Ribeirinha de Lisboa. Comunicao integrada no ciclo de conferncias Lisboa subterrnea: trajectos na arqueologia lisboeta contempornea, a 30 de Junho de 2014. 99 Carta do Secretario de Estado dos Negcios da Marinha e Ultramar, Antnio Guedes Pereira ao vereador da Cmara Municipal de Lisboa, Gaspar Ferreira Aranha, 9 de Outubro de 1742. Publicado por Eduardo de Oliveira Elementos para a Histria do Municpio de Lisboa. Vol. XIV. Lisboa: Typographia Universal, 1904, pp 104-108. 100 Marta Lacasta Macedo; Alexandre Sarrazola Op. cit. 2012, p.18.

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do sculo XVI e incios do sculo XVII101, sendo ainda representada iconograficamente

por diversos autores da poca, como Geogios Braunio, Pierre Aveline e Rombout van

den Hoeye.

A estrutura identificada como grade de mar na Praa D. Lus I foi observada a

cotas estratigrficas inferiores estrutura porturia em estudo, revelando deste modo

a sua pr-existncia. Os materiais que lhe esto associados apontam para a segunda

metade do sculo XVII e primeira metade da centria seguinte, o que corresponde

existncia no mesmo local da Junta da Companhia Geral do Comrcio do Brasil102. Este

edifcio, bem como os adjacentes, foi erguido em 1649 na freguesia de So Paulo, onde

permaneceu at 1720103.

A Junta Geral do Comrcio do Brasil ficava encarregue de todas as embarcaes

que faziam o trajecto de e para o Brasil e, como tal, tratava-se possivelmente de um

complexo repleto de prdios, armazns, barraces, tabernas e cais com serventia

exclusiva.104. A nvel iconogrfico, a principal evidncia desta estrutura pode ser

observada na panormica de Lisboa, em azulejo, anterior ao terramoto de 1755 (Figura

15). Este painel permite observar