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JORGE BACELAR GOUVEIA Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Doutor em Direito Rua Duque de Palmela, nº 27, 5º Dto. 1250-097 Lisboa – Portugal Telefone +351213917057 – Fax +351213917003 – Email [email protected] 1 OS ANEXOS TÉCNICOS À CONVENÇÃO DE CHICAGO DE 1944 E A ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA * * * * * PARECER DE DIREITO

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OS ANEXOS TÉCNICOS À CONVENÇÃO DE CHICAGO

DE 1944 E A ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA

* * * * *

PARECER DE DIREITO

JORGE BACELAR GOUVEIA Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Doutor em Direito

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SUMÁRIO CONSULTA I – INTRODUÇÃO

1. O problema do presente parecer 2. As questões a considerar II – OS ANEXOS TÉCNICOS À CONVENÇÃO DE CHICAGO

DE 1944 NO SISTEMA DE FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL AÉREO

3. A importância da Convenção de Chicago de 1944 4. A Organização da Aviação Civil Internacional e o Direito

Internacional Aéreo 5. Os anexos técnicos previstos no art. 54º da Convenção de

Chicago de 1944

III – A VIA DA INCORPORAÇÃO INTERNA DOS ANEXOS TÉCNICOS COMO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO RECEBIDO PELO DIREITO PORTUGUÊS

6. A opção constitucional geral pela recepção do Direito

Internacional Público 7. A recepção automática do Direito Internacional Público Geral

ou Comum 8. A recepção condicionada do Direito Internacional Público

Convencional 9. A recepção automática do Direito Internacional Comunitário 10. A recepção plena do Direito Internacional Público 11. Os anexos técnicos à Convenção de Chicago como actos

internacionais de normatividade fraca e insuficiente para a sua recepção

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IV – A VIA DA INCORPORAÇÃO INTERNA DOS ANEXOS

TÉCNICOS PELA SUA TRANSFORMAÇÃO EM REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA DO SECTOR DA AVIAÇÃO CIVIL

12. A competência administrativa do Instituto Nacional da

Aviação Civil para a regulação do sector da aviação civil 13. A transformação dos anexos técnicos à Convenção de

Chicago em regulamentos administrativos da aviação civil por parte do Instituto Nacional da Aviação Civil

V – CONCLUSÕES 14. Enunciado das conclusões

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CONSULTA

1. O Instituto Nacional de Aviação Civil (INAC) é uma pessoa colectiva de Direito Público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio, que tem por finalidade a supervisão, a regulamentação e a inspecção do sector da aviação civil.

Este Instituto foi criado pelo Decreto-Lei nº 133/98, de 15 de Maio, diploma depois alterado pelo Decreto-Lei nº 145/2002, de 21 de Maio, sucedendo à Direcção-Geral da Aviação Civil (DGAC) nas atribuições e na titularidade de direitos e obrigações.

De acordo com o artigo 6º dos Estatutos do INAC, aprovados pelo mencionado decreto-lei, umas das atribuições do Instituto é “…colaborar na negociação de tratados e acordos internacionais e coordenar a respectiva execução” [alínea g)].

2. A Convenção sobre Aviação Civil Internacional constitui, ainda

actualmente, o principal instrumento de Direito Internacional Público que regula o tráfego e a navegação aérea internacionais, tendo sido assinada em Chicago, a 7 de Dezembro de 1944, aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 36 158, de 17 de Fevereiro de 1947, e depois ratificada por carta de ratificação de 28 de Abril de 1948.

Esta Convenção criou a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), que tem por objectivo principal a promoção e o desenvolvimento

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das matérias reguladas na própria Convenção, e que para o efeito é composta por órgãos com competências específicas.

Desses órgãos, destaca-se o Conselho que, no âmbito de poderes normativos e segundo um processo normativo específico, tem o dever de “…adoptar, de acordo com os termos do capítulo VI desta Convenção, as normas internacionais e as práticas recomendadas que serão, para maior conveniência, incorporadas pelo Conselho em anexos à presente Convenção” – artigo 54º, al. l) da Convenção.

3. Estas normas e práticas recomendadas constituem os anexos à

Convenção de Chicago, qualificáveis como o Direito derivado do sistema normativo instituído pela Convenção e que, conforme já se referiu, são adoptadas pelo Conselho, ao qual a Convenção conferiu expressamente essa competência.

A elaboração e a adopção dos anexos tem como objectivo a obtenção do mais alto grau de uniformização no que respeita às normas, regras, práticas e procedimentos relativos a aeronaves, pessoal, rotas aéreas e serviços auxiliares de navegação aérea, conforme dispõe o art. 37º da Convenção. A exigência de uniformização leva a que cada Estado contratante se comprometa a prestar o seu concurso na adopção destas normas internacionais e práticas recomendadas.

Não obstante, o art. 38º prevê a possibilidade de “derrogação” deste princípio de uniformização, conferindo uma certa flexibilidade à regra do art. 37º. Esta “derrogação” permite que um Estado que “se ache impossibilitado de aderir, em todos os pontos, às normas ou regras internacionais (…) deverá comunicar à ICAO as diferenças existentes” entre as normas divergentes que tenha adoptado no seu Direito nacional e as normas usadas internacionalmente.

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Nos termos do disposto no art. 90º da Convenção, a adopção dos anexos e respectivas emendas são da competência do Conselho, devendo ser aprovados, em reunião expressamente convocada para o efeito, por maioria de 2/3 dos seus membros. Posteriormente, são submetidos a cada Estado contratante, entrando em vigor três meses depois desta apresentação, ou em prazo mais lato se assim for designado pelo Conselho, excepto se a maioria dos Estados manifestarem a sua desaprovação. Decorrido este prazo, o Conselho notifica todos os Estados contratantes da entrada em vigor de qualquer anexo ou emenda a esse anexo.

Actualmente, encontram-se em vigor 18 anexos relativos às seguintes matérias:

A) Anexo 1 – Licenças de pessoal; B) Anexo 2 – Regras do ar; C) Anexo 3 – Serviço meteorológico para a navegação aérea

internacional; D) Anexo 4 – Cartas aeronáuticas; E) Anexo 5 – Unidades de medida utilizadas nas operações aéreas e

terrestres; F) Anexo 6 – Operações com aeronaves:

Parte I – Transporte aéreo comercial internacional – aviões; Parte II – Aviação geral internacional – aviões; Parte III – Operações internacionais – helicópteros;

G) Anexo 7 – Marcas de nacionalidade e de matrícula das aeronaves; H) Anexo 8 – Aeronavegabilidade; I) Anexo 9 – Facilitação; J) Anexo 10 – Telecomunicações aeronáuticas:

Volume I – Equipamento, sistemas e rádio-frequências; Volume II – Procedimentos de comunicações;

K) Anexo 11 – Serviços de tráfego aéreo;

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L) Anexo 12 – Busca e salvamento; M) Anexo 13 – Investigação de acidentes aéreos; N) Anexo 14 – Aeródromos:

Volume I – Aeródromos; Volume II – Heliportos;

O) Anexo 15 – Serviços de informação aeronáutica; P) Anexo 16 – Protecção ambiental:

Volume I – Ruído de aeronaves; Volume II – Emissão de gases dos motores das aeronaves;

Q) Anexo 17 – Segurança aérea – Protecção da aviação civil internacional contra os actos ilícitos contra as aeronaves;

R) Anexo 18 – Transporte de mercadorias perigosas. Os anexos contêm normas e práticas recomendadas, podendo esta

distinção, em termos de conteúdo, contribuir igualmente para o estudo que se pretende.

De referir que, em consequência do desenvolvimento da actividade de transporte aéreo e das inovações tecnológicas, os anexos têm vindo a ser alvo de sucessivas emendas.

4. A questão que se coloca e que se pretende ver tratada é a de saber

se os anexos adoptados pelo Conselho da ICAO gozam de aplicabilidade directa na Ordem Jurídica nacional, de acordo com o art. 8º, nº 3, da Constituição Portuguesa, tendo como pressuposto a resolução da questão da vinculação internacional do Estado Português, enquanto Estado contratante da Convenção: se, portanto, a entrada em vigor dos anexos, mencionada concretamente no art. 90º da Convenção, como apenas reportada à sua entrada em vigor na Ordem Internacional ou se a própria Convenção estipula, de alguma forma, a aplicabilidade directa em cada

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Estado contratante, vinculando, assim, os seus cidadãos, enquanto destinatários directos das normas internacionais contidas nos anexos.

Com relevância para o estudo pretendido destaca-se ainda a existência de um Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, o Parecer nº 30/90, homologado por Despacho do Secretário dos Transportes, de 5 de Dezembro de 1991, e publicado no Diário da República nº 111, II Série, de 14 de Maio de 1992.

Pretende-se, assim, a emissão de um parecer jurídico de modo a clarificar esta questão, mais concretamente saber se a Convenção de Chicago estabelece, conforme exigência do art. 8º, nº 3, da Constituição, a vigência ou a aplicabilidade directa – ou seja, sem necessidade de haver um acto de mediação ao nível do direito português, que transponha para a Ordem Jurídica interna as normas constantes dos anexos da ICAO.

O Presidente do Conselho de Administração do Instituto Nacional de Aviação Civil

Luís A. Fonseca de Almeida

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I INTRODUÇÃO

1. O problema do presente parecer

I. A consulta que tivemos ocasião de transcrever delimita com total clareza o tema do pedido que foi formulado, qual seja o de saber se na Ordem Jurídica Portuguesa a categoria dos anexos técnicos à Convenção de Chicago sobre a Aviação Civil Internacional, de 7 de Dezembro de 19441, goza de aplicabilidade directa.

Essa é uma resposta que deve ser procurada, acima de tudo, compulsando o texto da Constituição da República Portuguesa2, de 2 de Abril de 1976 (CRP), uma vez que é à lei fundamental de qualquer Estado – e a lei fundamental do Estado Português não é excepção – que cabe decidir os termos da relevância interna das normas e dos princípios do Direito Internacional Público3.

Evidentemente que não será de desconsiderar, sempre que tal se coloque com a devida importância, o contributo que possa ser prestado por

1 Cfr. o respectivo texto em MANUEL DE ALMEIDA RIBEIRO E ANTÓNIO

VASCONCELOS SALDANHA, Textos de Direito Internacional Público – organizações internacionais, 2ª ed., Lisboa, 2003, pp. 493 e ss.

2 Cfr. o respectivo texto em JORGE BACELAR GOUVEIA, Legislação de Direito Constitucional, Coimbra, 2005, pp. 11 e ss.

3 Cfr. JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Constitucional, II, Coimbra, 2005, pp. 1195 e ss.

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outras fontes normativas que, no Direito Português, do mesmo modo permitam fazer luz sobre essa questão.

II. Este é bem o exemplo de como esta é uma matéria da máxima

relevância na intervenção do Estado Português no plano das organizações internacionais, demais a mais num sector altamente internacionalizado como é o da navegação aérea, por evidentes exigências de uniformidade e de segurança dos procedimentos.

Daí que este problema também se imponha numa reflexão de raiz prática, já que o mesmo envolve uma actividade que se tem mantido e em relação à qual o próprio Instituto Nacional da Aviação Civil (INAC) tem assumido as necessárias posições de regulamentação.

À relevância deste problema não escapa ainda a pertinência do mencionado Parecer nº 30/90 do Conselho Consultivo da Procuradoria- -Geral da República, que foi solicitado exactamente com o escopo de esclarecer o problema apresentado4.

Trata-se de um documento bem estruturado e bem pensado, no qual se apresentam respostas para o problema apresentado, ainda que nem sempre elas sejam de aceitar na sua totalidade.

Noutra perspectiva, não se pode esquecer que as conclusões que nesse parecer se apresentam são restritamente pertinentes, na medida em que o respectivo pedido se dirigiu à validade circunstancial de um dos anexos, em conexão com o problema do âmbito da investigação empreendida no contexto de um acidente ocorrido.

2. As questões a considerar

4 Publicado no Diário da República, II Série, nº 111, de 14 de Maio de 1992, pp.

2 e ss.

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A delimitação do tema do presente parecer aconselha-nos a explicitar os diversos momentos do fio condutor do nosso pensamento acerca do problema que foi devidamente formulado. É assim que se justifica a existência de três partes materiais no presente texto, o qual terminará com as conclusões que tiverem sido colhidas:

- uma Parte I, destinada a apresentar o sistema jurídico-internacional criado pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), nos termos do qual se inclui o tópico principal dos anexos técnicos, explicitando o seu modo de formação, bem como o dever que se impõe a cada Estado no tocante ao respectivo cumprimento; - uma Parte II, em que se explica o esquema geral de incorporação do Direito Internacional Público na Ordem Jurídica Portuguesa, tal como ele se mostra segundo a Constituição da República Portuguesa (CRP), vislumbrando-se aqui uma primeira alternativa de solução do problema formulado, segundo uma via internacional; - uma Parte III, momento em que se impõe esclarecer o papel regulamentar do INAC na produção de regulamentos administrativos atinentes ao sector da aviação civil, encarando-se aqui uma outra alternativa para a solução do problema apresentado, desta feita uma solução interna e não já internacional; - uma Parte IV, na qual, em jeito conclusivo, se apresentarão as conclusões que tiverem sido colhidas ao longos das páginas deste estudo.

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II OS ANEXOS TÉCNICOS À CONVENÇÃO DE CHICAGO

DE 1944 NO SISTEMA DE FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL AÉREO

3. A importância da Convenção de Chicago de 1944 I. A Convenção de Chicago de 7 de Dezembro de 1944 constituiu

um marco fundamental na evolução do Direito Internacional Aéreo, numa altura em que o mundo lentamente acordava do pesadelo da II Guerra Mundial.

Coube, assim, à Conferência de Chicago a tarefa de, em poucas semanas, de 1 de Novembro a 7 de Dezembro de 1944, estabelecer um novo esquema no tratamento jurídico-internacional da navegação aérea internacional, assim como as actividades conexas, inaugurando-se uma nova fase na evolução do Direito Internacional Aéreo, que ficaria conhecida precisamente por sistema de Chicago5.

Deste modo se entraria no 3º período de evolução do Direito Internacional Aéreo, marcado por uma forte internacionalização da navegação aérea, depois do 1º período – dos primórdios das primeiras legislações aéreas internas – e depois do 2º período – da

5 Sobre a Convenção de Chicago de 1944 em geral no novo Direito Internacional

Aéreo, v. LUIS TAPIA SALINAS, Derecho Aeronáutico, 2ª ed., Barcelona, 1993, pp. 42 e ss.; I. H. DIEDERIKS-VERSCHOOR, An Introduction to Air Law, 7ª ed., The Hague, London, New York, 2001, pp. 9 e ss.; GUALDINO RODRIGUES, As fontes internacionais do Direito Aéreo, Lisboa, 2003, pp. 45 e ss.

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internacionalização regional da navegação aérea através de algumas convenções internacionais.

II. A negociação e a redacção da Convenção de Chicago, não

obstante o clima de esperança com o fim da II Guerra Mundial, não corresponderia a qualquer unanimidade de pontos de vista, dentro de um quadro comum admitido de intensificação da navegação aérea internacional e da necessidade da respectiva regulação no plano do Direito Internacional Público.

São conhecidas as duas grandes orientações de política internacional aérea que se debateram nas sessões e nos corredores dessa conferência internacional:

- por um lado, a posição dos Estados Unidos da América, que pretendiam a implantação de um sistema de liberdade total na utilização do espaço aéreo;

- por outro lado, a posição do Reino Unido, bem como do Canadá, que defendiam a conveniência de limitar uma eventual liberdade excessiva, numa lógica de dirigismo económico à escala global.

O resultado final plasmado na Convenção de Chicago viria a ser próximo desta segunda posição, aceitando a liberdade de navegação, mas ao mesmo tempo submetendo-a a diversos limites – prevaleceu assim a tese da “liberdade controlada”.

III. A Convenção de Chicago, que entrou em vigor na ordem

internacional a 4 de Abril de 1947 e já com algumas revisões, tem um total de 96 artigos, os quais se distribuem por quatro partes, nos seguintes termos:

- Parte I – Navegação Aérea - Parte II – A Organização da Aviação Civil Internacional

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- Parte III – Transporte Aéreo Internacional - Parte IV – Disposições finais Mas a Convenção de Chicago não é apenas constituída por estes

artigos e inclui ainda acordos complementares, em matérias de índole específica, cuja natureza melhor aconselharia à sua autonomização documental, podendo assinalar-se dois, que integram o complexo do sistema normativo de Chicago:

- o Acordo Relativo ao Trânsito dos Serviços Aéreos Internacionais; e

- o Acordo sobre o Transporte Aéreo Internacional. 4. A Organização da Aviação Civil Internacional e o Direito

Internacional Aéreo I. Se a Convenção de Chicago de 1944 marcou uma nova fase na

evolução do Direito Internacional Aéreo, não é menos verdade que do mesmo passo inovou no plano institucional, com a concomitante criação da OACI, organização internacional que naquele tratado receberia o seu estatuto fundamental6.

É assim que o art. 44º, no respectivo proémio, da Convenção de Chicago define essa organização nos seguintes termos: “A Organização terá como objectivo aperfeiçoar os princípios e a técnica da navegação aérea internacional e estimular o estabelecimento e desenvolvimento dos transportes aéreos internacionais…”.

6 Sobre a Organização da Aviação Civil Internacional em geral, v. LUIS TAPIA SALINAS, Derecho Aeronáutico, pp. 69 e ss.; I. H. DIEDERIKS-VERSCHOOR, An Introduction to Air Law, p. 7; GUALDINO RODRIGUES, As fontes internacionais…, pp. 17 e ss., e pp. 63 e ss.

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Para o efeito, são várias as funções de que fica especificamente incumbida no tráfego aéreo internacional:

- a função legislativa: a produção normativa; - a função política: a preparação de tratados internacionais; - a função administrativa: a regulamentação técnica; e - a função judicial: a resolução de conflitos. II. A estrutura interna da OACI inclui os seguintes órgãos, com

competências diferenciadas: - a Assembleia; - o Conselho; - a Comissão de Navegação Aérea; - o Comité dos Transportes Aéreos; e - o Comité Jurídico. III. A actividade da OACI evidencia-se de muitos modos, tantos

quantos aqueles que se afirmam compatíveis com a sua posição de organização internacional para-universal, com fins especializados e integrada na família das Nações Unidas.

Evidentemente que a própria Convenção de Chicago de 1944 representa a mais relevante manifestação desse Direito Internacional Aéreo produzido no âmbito do sistema de Chicago, uma vez que é possível descobrir inúmeras orientações jurídicas que dela se desprendem, que podem ser sintetizadas pelas cinco liberdades do ar, tal como elas se têm apresentando7:

- a liberdade de sobrevoo; - a liberdade de escala; - a liberdade de desembarque de pessoas, correio e mercadoria;

7 Cfr. os arts. 5º e ss. da Convenção de Chicago de 1944.

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- a liberdade de embarque de pessoas, correio e mercadoria; - a liberdade de trânsito. IV. Mas essa não vem a ser a única manifestação de Direito

Internacional Aéreo no contexto do sistema de Chicago, ao abrigo de uma concepção universalista, porquanto a OACI – no âmbito da actividade estabelecida naquela Convenção – pode, por sua vez, produzir outro nível desse mesmo Direito Internacional Aéreo, conhecido como Direito derivado, e não já primário ou originário como o estabelecido na Convenção de Chicago.

Esta função jurídica-normativa da OACI tem vindo a revelar-se, de resto, da máxima importância, já que é uma instituição que como poucas está em boa posição de afinar e densificar o Direito Internacional Aéreo.

Noutra perspectiva, não se pode descurar o forte pendor técnico de muitas das regulações que são levadas a cabo pela OACI, o que aconselha à sua posição especial de poder emitir orientações normativas dotadas de maior tecnicidade.

V. A apresentação das diversas fontes internacionais do Direito

Aéreo permite ainda a respectiva identificação pela indicação dos princípios gerais que o caracterizam8:

- o princípio da soberania do espaço aéreo nacional; - o princípio da internacionalidade do espaço aéreo internacional; - o princípio da nacionalidade e da propriedade das aeronaves; - o princípio da responsabilidade civil; - o princípio da segurança; - o princípio do uso pacífico;

8 Quanto aos princípios gerais do Direito Internacional Aéreo, v., por todos, I. H.

DIEDERIKS-VERSCHOOR, An Introduction to Air Law, pp. 12 e ss.

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- o princípio da protecção ambiental. 5. Os anexos técnicos previstos no art. 54º da Convenção de

Chicago de 1944 I. É neste contexto do Direito Internacional Aéreo derivado do

sistema de Chicago que interessa versar os anexos técnicos previstos no art. 54º da Convenção, no qual se afirma o seguinte: incumbe ao Conselho “Adoptar, de acordo com os termos do capítulo VI desta Convenção, as normas internacionais e as práticas recomendadas, que serão, para maior conveniência, incorporadas pelo Conselho em anexos à presente Convenção; participar a todos os Estados contratantes as providências tomadas neste sentido”.

Trata-se de um conjunto de normas técnicas, que se justificam no sentido de levar por diante as atribuições da OACI no âmbito da navegação internacional9, cabendo-lhe um conhecimento afinado e pormenorizado das exigências de segurança da navegação aérea internacional.

II. O procedimento de elaboração dos anexos técnicos está previsto

no Capítulo XX da Convenção de Chicago, no seu único art. 90º, no qual se esclarecem duas orientações essenciais:

“a) Os anexos mencionados no artigo 54º, alínea l), serão aprovados pelo Conselho, por maioria de dois terços, em reunião convocada para esse fim, sendo depois submetidos pelo Conselho a cada Estado contratante. Os anexos ou as emendas às disposições

9 Sobre os anexos técnicos à Convenção de Chicago, v. LUIS TAPIA SALINAS,

Derecho Aeronáutico, pp. 76 e ss.; GUALDINO RODRIGUES, As fontes internacionais…, pp. 105 e ss.

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entrarão em vigor três meses após a sua apresentação aos Estados contratantes ou no fim de um prazo maior fixado pelo Conselho, a menos que nesse intervalo de tempo a maioria dos Estados contratantes notifique a sua desaprovação ao Conselho”.

“b) O Conselho notificará imediatamente todos os Estados contratantes da entrada em vigor de qualquer emenda a esse anexo”. III. Este art. 90º da Convenção de Chicago estabelece um

procedimento de elaboração dos anexos que se reparte por três momentos distintos:

- primo, a votação no Conselho, através de maioria agravada de dois terços, devendo a reunião ter esse ponto na sua ordem de trabalhos;

- secundo, a necessidade da aprovação por parte dos Estados, a quem o conteúdo de cada anexo é comunicado, expressa ou tacitamente, através da maioria simples, dentro do prazo estabelecido até à sua entrada em vigor;

- tertio, a entrada em vigor do anexo, depois de três meses, ou num momento posterior, se o prazo for superior, dada aquela aprovação.

IV. Os efeitos dos anexos técnicos à Convenção de Chicago, assim

formados, encontram-se delimitados no Capítulo VI, sob a epígrafe “Normas internacionais e práticas recomendadas”, no qual se afirma a possibilidade de adoptar anexos – típicos para os anexos já mencionados10 e atípicos para os anexos a criar no futuro – em múltiplas matérias “…sempre que tal uniformidade facilite e contribua para o aperfeiçoamento da navegação aérea”11.

10 Como os do art. 37º, nas suas alíneas, da Convenção de Chicago de 1944. 11 Art. 37º, § 1º, in fine, da Convenção de Chicago de 1944.

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A vinculação geral a que os Estados se comprometem no seio da Convenção de Chicago é a obrigação de se empenharem na uniformização das normas internacionais e das práticas internacionais, dever de empenho ou de meios que se estabelece não apenas na sua actuação dentro da Organização, assim como no momento da transposição dessas normas e práticas para as respectivas ordens jurídicas.

Mas trata-se apenas de um dever jurídico “fraco” porque que tem por conteúdo, no caso de incumprimento, uma mera notificação dos desvios existentes, bem como da respectiva justificação: “Qualquer Estado que se ache impossibilitado de aderir, em todos os pontos, a tais normas ou regras internacionais ou de modificar os próprios regulamentos ou regras internacionais, de forma a harmonizá-los com as novas normas ou regras internacionais que forem adoptadas ou que ache necessário adoptar regulamentos ou regras divergentes, em qualquer ponto, das normas internacionais, deverá comunicar imediatamente à Organização da Aviação Civil Internacional as diferenças existentes entre essas normas e as usadas internacionalmente”12.

Quer isto dizer que se trata de um dever apenas procedimental, que obriga o Estado a tomar uma atitude de notificação internacional, com um acervo de fundamentação, muito longe estando sequer de uma qualquer obrigação material de adoptar, no plano interno, as correspondentes normas e práticas.

O sentido da entrada em vigor dos anexos, previsto no art. 90º da Convenção de Chicago, poderia dar a entender coisa diversa: contudo, a entrada em vigor para os Estados significa somente que é a partir desse momento que nasce o dever internacional de notificar eventuais desvios na aplicação dessas normas e práticas, os mesmos devendo ser devidamente justificados. Só isso e nada mais do que isso do ponto de vista jurídico.

12 Cfr. o art. 38º, primeira parte, da Convenção de Chicago de 1944.

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Como escreve LUÍS TAPIA SALINAS, “Existe, pois, a possibilidade do não cumprimento, por parte de um Estado, de um determinado Anexo ou emenda, mas não bastando a simples desconformidade manifestada no prazo de três meses, sem que seja necessário uma notificação expressa da não aceitação ratificando a anterior, depois da sua entrada em vigor…”13.

V. De um modo geral, a matéria dos anexos aos tratados

internacionais não é desconhecida da doutrina do Direito Internacional Público, que normalmente identifica com precisão o seu valor jurídico, levando em consideração a sua razão de ser. E nem sequer é raro encontrar no corpus de um tratado internacional a existência de anexos, os quais preencham múltiplas funções14: - uma função técnica, contendo normas técnicas; - uma função administrativa, contendo indicações de natureza burocrática; - uma função geográfica, contendo mapas ou outras indicações de localização geográfica. Em qualquer dos casos, a existência de anexos justifica-se pela impertinência da informação que contêm para efeito de constar do texto articulado dos tratados internacionais, ora porque não se submetem à lógica dos preceitos articulados, ora porque a sua presença desequilibraria o sentido geral do articulado. VI. Problema diverso é o da sua força jurídica, que os anexos obtêm na exacta medida em que ela lhes é comunicada pelo articulado respectivo, ficando a comungar da mesma força jurídica daquele.

13 LUIS TAPIA SALINAS, Derecho Aeronáutico, p. 79. 14 Sobre os anexos aos tratados internacionais em geral, v. JORGE BACELAR

GOUVEIA, Manual de Direito Internacional Público, 2ª ed., Coimbra, 2004, p. 225.

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Evidentemente que se deve sempre salvaguardar qualquer indicação em contrário ou quando um sentido diverso resulte da natureza substantiva de cada anexo em apreço. Mas em geral os anexos aos articulados dos tratados internacionais beneficiam da força jurídica destes, que assim se lhes transmite. Esse, porém, não é o caso dos anexos técnicos à Convenção de Chicago, uma vez que fogem desta teorização geral e sobre os mesmos é aquela mesma Convenção a estabelecer a sua específica natureza jurídica, que tivemos ocasião de explicitar.

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III A VIA DA INCORPORAÇÃO INTERNA DOS ANEXOS TÉCNICOS

COMO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO RECEBIDO PELO DIREITO PORTUGUÊS

6. A opção constitucional geral pela recepção do Direito

Internacional Público

I. Num Globo cada vez mais pequeno e próximo, o papel do Direito

Internacional Público, no estabelecimento de relações jurídicas entre os Estados e outros sujeitos internacionais admitidos à convivência internacional, intensifica-se progressivamente, o que se pode, aliás, comprovar pelo número e pela abrangência de domínios que se submetem às suas normas e princípios.

Nenhuma Constituição poderia ignorar, por isso mesmo, a necessidade de prever mecanismos que transportem para dentro do seu Ordenamento Jurídico as normas e os princípios internacionais aos quais o respectivo Estado se encontra vinculado.

Dando-se conta dessa necessidade, a CRP não fugiu ao problema e contemplou a questão da inserção das fontes e das normas do Direito Internacional Público no seu Ordenamento Jurídico15, o que não quer dizer

15 Quanto à relevância do Direito Internacional no Direito Português, v. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, O Direito Internacional na Constituição, in AAVV, Estudos sobre a Constituição, I, Lisboa, 1977, pp. 37 e ss.; JORGE MIRANDA, A Constituição de 1976 – formação, estrutura, princípios fundamentais, Lisboa, 1978, pp. 298 e ss., As

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actuais normas internacionais e o Direito Internacional, in Nação e Defesa, n.° 36, Outubro-Dezembro de 1985, pp. 3 e ss., As relações entre ordem internacional e ordem interna na actual Constituição Portuguesa, in AAVV, Ab Uno ad Omnes – 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 275 e ss., e Curso de Direito Internacional Público, 2ª ed., Lisboa, 2004, pp. 148 e ss.; NUNO A. BESSA LOPES, A Constituição e o Direito Internacional, Vila do Conde, 1979, pp. 95 e ss.; RUI M. MOURA RAMOS, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem – sua posição face ao ordenamento jurídico português, in Documentação e Direito Comparado, n.° 5, 1981, pp. 26 e ss., e Relações entre a ordem interna e o Direito Internacional e Comunitário, in Da Comunidade Internacional e do seu Direito, Coimbra, 1996, pp. 265 e ss.; JOÃO MOTA DE CAMPOS, A Ordem Constitucional Portuguesa e o Direito Comunitário, Braga, 1981, pp. 147 e ss.; ANTÓNIO BARBOSA DE MELO, A preferência de lei posterior em conflito com normas convencionais recebidas na ordem interna ao abrigo do n.° 2 do art. 8.° da Constituição da República (a propósito do art. 4.° do Decreto-Lei n.° 262/83, de 16 de Junho), in Colectânea de Jurisprudência, IX, 1984, tomo 4, pp. 11 e ss.; AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, A hierarquia das normas de Direito Administrativo Português, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1985, pp. 6 e ss.; PAULO OTERO, A autoridade internacional dos fundos marinhos, Lisboa, 1988, pp. 176 e ss.; ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições de Direito Internacional Público, 4ª ed., Coimbra, 1987, pp. 80 e ss.; PEDRO ROMANO MARTINEZ, Relações entre o Direito Internacional e o Direito Interno, in Direito e Justiça, IV, 1989/1990, pp. 169 e ss.; RUI MEDEIROS, Relações entre normas constantes de convenções internacionais e normas legislativas na Constituição de 1976, in O Direito, ano 122.°, II, Abril-Junho de 1990, pp. 355 e ss.; NUNO PIÇARRA, O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias como juiz legal e o processo do artigo 177.° do Tratado CEE – as relações entre a ordem jurídica comunitária e as ordens jurídicas dos Estados membros na perspectiva dos tribunais constitucionais, Lisboa, 1991, pp. 77 e ss.; NUNO E SOUSA, Curso de Direito Internacional Público, Coimbra, 1990, pp. 86 e ss.; ARMANDO M. MARQUES GUEDES, Direito Internacional Público, Lisboa, 1992, pp. 125 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 82 e ss.; ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual de Direito Internacional Público, 3ª ed., Coimbra, 1993, pp. 107 e ss.; ANTÓNIO VITORINO, Protecção constitucional e protecção internacional dos direitos do homem: concorrência ou complementaridade?, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, XXXIV, 1993, pp. 136 e 137; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, Lisboa, 1985, pp. 338 e ss., e Manual de Direito Internacional…, pp. 365 e ss.; EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito Internacional Público, I, Coimbra, 1998, pp. 427 e ss.; JÓNATAS E. M. MACHADO, Direito Internacional, 2ª ed., Coimbra, 2003, pp. 110 e ss.; WLADIMIR BRITO, Direito Internacional Público, Braga, 2003, pp. 84 e ss.; JOAQUIM DA SILVA CUNHA e MARIA DA ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA, Manual de Direito Internacional Público, 2ª ed., Coimbra, 2003, pp. 111 e ss.

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que o tivesse sempre feito bem, até nalguns casos merecendo pesada censura científica.

II. O preceito constitucional que se apresenta da maior relevância para este esforço vem a ser o do art. 8.° da CRP, que importa transcrever, tendo como epígrafe “Direito Internacional”:

“1. As normas e os princípios de Direito Internacional geral ou comum fazem parte integrante do Direito português.

“2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.

“3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.

“4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático.16”

III. Este não vem a ser o único preceito que na CRP especificamente

se cuida da problemática da incorporação do Direito Internacional Público. Outras disposições concitam atenção, sob pena de não termos um

retrato completo dos elementos que podemos colher do Direito

16 Este último número acrescentado pela VI Revisão Constitucional, aprovada

pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24 de Julho.

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Constitucional Positivo, assim ficando melhor habilitados para tomar uma posição mais segura:

- a alusão que a CRP faz aos princípios fundamentais que devem reger as relações internacionais, em preceito exactamente com esta epígrafe17;

- a recepção da Declaração Universal dos Direitos do Homem para efeitos de interpretação e integração do sistema constitucional de direitos fundamentais: “Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem”18;

- a recepção dos direitos fundamentais atípicos, para além dos direitos fundamentais já constitucionalmente tipificados, incluindo os provenientes do Direito Internacional Público: “Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes de leis e das regras aplicáveis de Direito Internacional”19;

- a relevância constitucional dos crimes internacionais comuns para efeitos de derrogação do princípio da retroactividade da lei penal: “O disposto no número anterior não impede a punição, nos limites da lei interna, por acção ou omissão que no momento da sua prática seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de Direito Internacional comummente reconhecidos”20.

IV. Perante esse panorama de múltiplas alusões a normas, princípios e fontes do Direito Internacional Público, que conclusão é possível obter quanto aos termos da sua incorporação no Direito Português?

17 Cfr. o extenso art. 7.° da CRP, nos seus sete números. 18 Art. 16.°, n.° 2, da CRP. 19 Art. 16.°, n.° 1, da CRP. 20 Art. 29.°, n.° 2, da CRP.

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Certamente que essa incorporação não é feita sempre do mesmo modo, pelo que se justifica que, em relação a certos sectores, se faça o respectivo estudo, já a seguir.

Nesta sede geral e prévia, impõe-se desde já que se conclua pela genérica adopção do modelo da recepção porque as normas e as fontes internacionais não se adulteram, na sua natureza, quando saem da órbita internacional e ingressam na esfera interna.

O Direito Internacional Público que é objecto de incorporação vale internamente como Direito Internacional Público, mantendo esse mesmo título, com tudo quanto isso significa ao nível das operações de interpretação, integração e aplicação, não se desfigurando em Direito Interno, sendo possível avançar com dois grupos de argumentos que apontam iniludivelmente nesse sentido:

- em muitos lugares da CRP, fala-se sempre de Direito Internacional Público, cuja terminologia directamente comunica com os outros actos jurídico-públicos, pelo que aquele ordenamento é assumido na sua natureza originária;

- nos mecanismos de incorporação que estão previstos, não se detecta a presença de actos internos capazes de transfigurarem o Direito Internacional Público, ora porque eles nem existem, ora porque, existindo, não têm essa capacidade.

V. O estudo das outras cláusulas que limitadamente se referem a certos sectores do Direito Internacional Público corroboram tudo quanto se acaba de dizer a respeito da escolha do modelo da recepção para incorporar o Direito Internacional Público.

Em qualquer das situações referidas, essa integração nunca é feita à custa da adulteração das fontes e das normas que nele se estabelecem,

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assim passando a valer no Direito Português, subsistindo na sua feição original.

Obviamente que esta constatação é também relevante para afirmar, neste aspecto, a unidade lógico-sistemática do texto constitucional, que não poderia dizer algo num preceito e dizer o seu contrário noutro lugar.

7. A recepção automática do Direito Internacional Público Geral ou Comum

I. Se a observação do citado art. 8.° da CRP nos permite dizer que se escolheu o esquema da recepção – e não o da transformação – para se efectuar a inserção do Direito Internacional Público no Direito Português21, não é menos verdade que se experimenta um sistema específico de recepção, que é o da recepção automática, quando se pensa numa das categorias de Direito Internacional Público que vem a ser aí referido, exactamente no seu n.° 1: o Direito Internacional Público Geral ou Comum.

A recepção é automática porque a parcela do Direito Internacional Público ali abrangida vale no Direito Português com independência de qualquer outra formalidade, bastando que obtenha relevância na esfera jurídico-internacional.

21 Assim, defendendo o modelo da recepção automática, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA, O Direito Internacional na..., p. 39; MARCELO REBELO DE SOUSA, A integração de Portugal na CEE e o Direito Constitucional vigente, in Democracia e Liberdade, n.° 9, Fevereiro de 1979, pp. 25 e ss.; ADRIANO MOREIRA, Direito Internacional Público, Lisboa, 1983, p. 192; ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., p. 80; ARMANDO M. MARQUES GUEDES, Direito..., pp. 125 e 126; ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual..., pp. 108 e ss.; FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Internacional Público, Coimbra, 2003, pp. 69 e ss.; JORGE MIRANDA, Curso..., pp. 149 e ss.

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Mesmo que nada se faça, ainda que no Direito Português até se desconheça a sua existência, hipótese que está longe do absurdo, aquela é uma parte do Direito Internacional Público que passa a integrá-lo necessariamente.

II. Mais espinhosa vem a ser a demarcação do sector do Direito Internacional Público que beneficia desta cláusula de recepção automática, que tem a já mencionada designação de Direito Internacional Público Geral ou Comum, com a qual já se contactou a propósito do estudo das várias divisões internas do Direito Internacional Público22.

Este preceito esteia-se no critério do âmbito subjectivo de aplicação das respectivas normas, com uma eficácia universal ou para-universal. São assim recebidas as normas e os princípios de Direito Internacional Público que tenham esse largo campo de aplicação e independentemente da qualidade das fontes de onde brotem.

Só que a delimitação normativa da recepção desse sector do Direito Internacional Público que se localiza neste art. 8.°, n.° 1, da CRP está longe de se afigurar inequívoca, havendo algumas dificuldades que levanta ao intérprete.

III. Uma dessas dificuldades reside no facto de a base de delimitação não ser exactamente a mesma da que preside ao recorte constante do art. 8.°, n.° 2, da CRP, uma vez que ali se refere o ordenamento e aqui uma das suas fontes, os tratados internacionais:

- no preceito sobre o Direito Internacional Público Geral ou Comum, fala-se de normas e de princípios;

- no preceito sobre o Direito Internacional Público Convencional, fala-se de convenções internacionais.

22 Cfr. supra n.° 3.

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Na medida em que os critérios não são uniformes, acontece que pode haver zonas de sobreposição: as convenções internacionais que sejam universais ou para-universais na sua aplicação subjectiva.

Levantando-se um conflito positivo de títulos para o reconhecimento do Direito Internacional Público Geral Convencional no Direito Português, títulos que estabelecem regimes diversos, qual deles deve considerar-se aplicável?

Estamos em crer que é a recepção especificamente concebida para o Direito Convencional, dada o seu particularismo e dado que a sua natureza é apropriada mais à recepção condicionada e menos à recepção automática, que se preferiu para o Direito Internacional Público Geral ou Comum não Convencional.

IV. Outra dificuldade reside no facto de a recepção automática que se opera não ser das fontes do Direito Internacional Público, mas ser antes uma recepção das normas e dos princípios de certa parte do Direito Internacional Público.

É interessante verificar a amplitude com que o texto constitucional refere este Direito Internacional Geral ou Comum, incluindo as normas e também os princípios. Eis aqui outro argumento para confirmar o nosso entendimento de não considerar os princípios verdadeira fonte, sendo eles próprios componentes do Direito Internacional Público23.

Só que essa larga abrangência acaba por se revelar mais aparente do que real porque os princípios e as normas se devem restringir aos que não derivem das convenções internacionais, já que para estes se estabelece um regime diverso no art. 8.°, n.° 2, da CRP.

23 Cfr. JORGE BACELAR GOUVEIA, Manual de Direito Internacional…, pp. 151 e

ss.

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V. Por causa das características deste Direito Internacional Geral ou Comum, bem como levando em consideração o automatismo da respectiva recepção, julga-se que esta recepção assume os seguintes contornos:

- é do ordenamento, não das respectivas fontes; - é formal, e não material. Sendo uma recepção do ordenamento, e não das suas fontes, isso

quer dizer que é o próprio conteúdo normativo que conta, não cuidando o Direito Português de eventuais problemas que pudessem surgir na elaboração dessas mesmas fontes.

Sendo uma recepção formal, isso implica que as normas e os princípios têm a sua dinâmica própria, não se cristalizando no acolhimento à solução estabelecida quando da entrada em vigor da CRP, antes essa recepção estando sempre aberta e alterando-se continuamente, à medida que as normas e os princípios vão sendo modificados ao sabor das circunstâncias e das mudanças ocorridas nas respectivas fontes internacionais.

8. A recepção condicionada do Direito Internacional Público Convencional

I. A recepção do Direito Internacional Público já é, diferentemente, não automática, mas antes condicionada24, na situação prevista no n.° 2 do art. 8.° da CRP, que se aplica às convenções internacionais.

24 Assim, ADRIANO MOREIRA, Direito..., pp. 192 e 193; ALBINO DE AZEVEDO

SOARES, Lições..., pp. 86 e 87; ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual..., p. 110; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição..., p. 84; FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito..., pp. 74 e ss.; JORGE MIRANDA, Curso..., pp. 150 e 151.

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Assim é porque a relevância das convenções internacionais no Direito Português fica dependente de algumas condições que são indispensáveis para se conferir eficácia interna às respectivas normas.

Não obstante o cumprimento deste procedimento interno, a incorporação desta parcela do Direito Internacional Público não é nunca uma incorporação por transformação, não havendo actos legislativos e, pelo contrário, aparecendo somente actos políticos25, estes não adulterando a respectiva natureza jurídico-internacional.

II. Os requisitos que se colocam à recepção na ordem interna destas convenções internacionais são três26:

- em primeiro lugar, impõe-se que sejam regularmente ratificadas ou aprovadas, sendo aqui o padrão aferidor dessa regularidade simultaneamente internacional – maxime pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados, de 23 de Maio de 1969 – e interno – à luz das disposições constitucionais aplicáveis;

- em segundo lugar, é necessário que se dê a sua antecipada publicação no jornal oficial de Portugal, que é o Diário da República;

- em terceiro lugar, exige-se que as normas constantes dessas convenções já vinculem internacionalmente o Estado Português, sendo certo que os momentos de vigência internacional e interna não têm de coincidir sempre.

Como se vê, a incorporação desta fonte está dependente da verificação destas três condições, que pressupõem sempre, pelo menos, em duas delas, a manifestação de vontade do Estado Português no momento da

25 Cfr. as explicações, para antes e para depois da revisão constitucional de 1982,

de ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., pp. 83 e ss. 26 Cfr. ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., pp. 87 e ss.; WLADIMIR BRITO,

Direito..., pp. 85 e 86.

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ratificação ou aprovação, que se faz por acto político e não por acto legislativo.

III. Atendendo ao carácter geral da expressão “convenções internacionais” que aí se emprega, é de presumir que se utilizou o vocábulo com o seu sentido mais amplo:

- amplo quanto às espécies por que se distribui, incluindo tanto os tratados solenes como os acordos simplificados; e

- amplo quanto à natureza das normas que pode originar, Direito Internacional Geral e Direito Internacional Particular, Direito Internacional Objectivo e Direito Internacional Subjectivo.

Igual entendimento amplo deve adoptar-se quanto ao produto das convenções internacionais em causa, não sendo apenas as normas, mas podendo abranger os princípios que delas se possam retirar.

9. A recepção automática do Direito Internacional Comunitário

I. Para o Direito Internacional Comunitário referido no n.° 3 do

mesmo art. 8.° da CRP27, este preceito de novo a adopta o esquema da

27 Acerca das fontes comunitárias aplicáveis no ordenamento jurídico português

ex vi art. 8.°, n.° 3, da CRP, v. PAULO DE PITTA E CUNHA, O Tratado de Adesão e o Direito Comunitário Derivado – Sumários, in AAVV, A Feitura das Leis – como fazer leis, II, Oeiras, 1986, pp. 397 e ss.; JOÃO CAUPERS, Introdução ao Direito Comunitário, Lisboa, 1988, pp. 170 e 171; ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., pp. 89 e ss.; NUNO PIÇARRA, O Tribunal de Justiça…, pp. 84 e ss.; MARIA LUÍSA DUARTE, A liberdade de circulação de pessoas no Direito Comunitário, Coimbra, 1992, pp. 86 e ss.; NUNO E SOUSA, Curso..., pp. 101 e ss.; CARLOS BOTELHO MONIZ e PAULO MOURA PINHEIRO, As relações da ordem jurídica portuguesa com a ordem jurídica comunitária – algumas reflexões, in Legislação-Cadernos de Ciência da Legislação, n.°s 4/5, Abril-Dezembro de 1992, pp. 135 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição…, pp.

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recepção automática28, desta feita não se coibindo o próprio texto constitucional de o afirmar com toda a veemência.

Trata-se de uma disposição, aditada na revisão constitucional de 1982, que visou enfrentar a previsível adesão de Portugal às Comunidades Europeias, o que efectivamente veio a acontecer em 1 de Janeiro de 1986.

Com este preceito, pretendeu-se acolher o Direito Comunitário derivado, ou seja, o Direito Objectivo segregado pelos órgãos da União Europeia a que Portugal pertence, vigorando um regime de aplicabilidade directa do mesmo.

II. A fraseologia do preceito em questão não é globalmente esclarecedora quanto ao âmbito desse Direito Comunitário derivado que vem a ser abrangido.

No caso da União Europeia, é isso o que inequivocamente sucede com os regulamentos comunitários29, sendo bastante discutível que possa suceder com as directivas30, até porque, com a revisão constitucional de

89 e ss.; ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual..., pp. 112 e ss.; RUI MOURA RAMOS, Relações entre..., pp. 274 e ss.; MARIA HELENA BRITO, Relações entre a Ordem Jurídica Comunitária e a Ordem Jurídica Nacional: desenvolvimentos recentes em Direito Português, in AAVV, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, 2003, pp. 301 e ss.; WLADIMIR BRITO, Direito..., pp. 87 e 88; JORGE MIRANDA, Curso..., pp. 160 e ss.

28 Assim, JOÃO CAUPERS, Introdução..., p. 170; ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., pp. 89 e ss.; CARLOS BOTELHO MONIZ, A Constituição da República Portuguesa e a participação de Portugal na União Europeia, in AAVV, Juris et de Jure – Nos vinte anos da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa – Porto, Porto, 1998, pp. 1241 e ss.; FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito..., pp. 76 e ss.

29 Sobre a caracterização dos regulamentos no contexto das fontes de Direito Comunitário, v. JOÃO CAUPERS, Introdução..., pp. 73 e ss.; ANTÓNIO BRAZ TEIXEIRA, Direito Comunitário, Lisboa, 1989, pp. 74 e 75.

30 Assim, ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., p. 91.

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199731, ficaram expressamente dependentes de acto interno de transposição.

O efeito da recepção automática que afirmamos existir liga-se ao facto de se dizer que essas normas “...vigoram directamente na ordem interna...”, nada sendo preciso fazer – nomeadamente, uma qualquer interpositio legislatoris – por parte do Estado Português para que tal consequência ocorra.

III. A preocupação com a imperfeição do art. 8.°, n.° 3, da CRP tem sido bem posta em evidência, não primando muito essa disposição pela boa técnica jurídica, bastando atentar nas críticas que lhe são dirigidas pela doutrina, encimadas por ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA E FAUSTO DE

QUADROS32. Uma delas respeita mesmo ao facto de nesse preceito apenas se

referir as normas, sendo certo que haveria outros actos que, à luz do Direito Comunitário, também teriam efeito directo, como as decisões.

Simplesmente, o preceito constitucional coloca-se no plano das fontes normativas, não no plano dos efeitos individuais e concretos, onde aquelas decisões parecem situar-se.

Este porventura é um caso em que o texto constitucional não tem de prever a aplicabilidade directa, tal decorrendo do Direito Comunitário originário, como sucede com outros ordenamentos.

IV. Ainda que a occasio legis esteja indelevelmente associada à integração de Portugal na actual União Europeia, nada impede que tal

31 Contra, a título exemplificativo, dizendo que também as directivas são

invocáveis, CARLOS BOTELHO MONIZ, A Constituição..., p. 1243. 32 Cfr. ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, Manual..., pp. 113

e ss.

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preceito venha a ser utilizado para a incorporação automática de ordenamentos internos de outras organizações internacionais.

A perspectiva abstracta e geral do comando não vai determinar coisa diversa, embora não se consiga visualizar neste momento em relação a que outra organização internacional essa possibilidade seja de discutir.

Até parece difícil que isso venha a suceder porque são raras as instituições que, estatutariamente, prevêem a emissão de normas destinadas a vigorar directamente no ordenamento jurídico dos Estados membros.

10. A recepção plena do Direito Internacional Público

I. Pergunta que ainda se deve fazer é a de saber se esta recepção do Direito Internacional Público, visto este na sua globalidade e não levando em consideração as cláusulas específicas do art. 8.° da CRP, se afigura plena – no sentido de ser recebido todo o Direito Internacional Público existente – ou limitada – não contemplando todos os seus recantos.

A cabal resposta a esta pergunta, só possível após a avaliação de cada uma das parcelas que nos mereceram um tratamento específico, pressupõe a delimitação prévia dos respectivos sectores.

Três são os aspectos que não foram directamente contemplados naquelas diversas cláusulas que tivemos ocasião de analisar:

- os costumes internacionais regionais e locais, que não são literalmente abrangidos pelo Direito Internacional Geral ou Comum previsto no art. 8.°, n.° 1, da CRP;

- os actos unilaterais dos Estados que sejam normativos, os quais não estão incluídos em nenhum dos preceitos do art. 8.° da CRP; e

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- os actos unilaterais das organizações internacionais que não se incluam no Direito Comunitário derivado, previsto no art. 8.°, n.° 3, da CRP.

II. O problema da consideração dos costumes regionais e locais prende-se com o facto de tais fontes, nas modalidades por que as mesmas nos aparecem, serem inaptas à revelação de normas internacionais universais, pelo que nunca poderiam integrar o conceito de Direito Internacional Geral ou Comum: aqueles só vinculam um grupo restrito de sujeitos, nos quais naturalmente se incluindo Portugal, não fazendo sentido discutir a questão para costumes regionais e locais não vinculativos de Portugal, em qualquer caso não se tratando de normas gerais ou comuns33.

Noutra perspectiva, também não é possível que os costumes regionais e locais possam ser relevantes em sede de outras cláusulas de incorporação porque não configuram o Direito Internacional Convencional, nem representam o Direito Comunitário Derivado.

Em face da conveniência de o texto constitucional integrar este sector do Direito Internacional Público, que igualmente vincula Portugal na esfera externa, a doutrina tem ensaiado alguns caminhos, quase todos convergindo no sentido da sua recepção automática34, como:

- a via da interpretação extensiva35; e

33 Assim, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito..., pp. 73 e 74; JOAQUIM

DA SILVA CUNHA e MARIA DA ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA, Manual..., p. 114. 34 Aceitando a inclusão do costume regional e local, embora sem tomar posição

quanto ao esquema a adoptar para o justificar, ARMANDO M. MARQUES GUEDES, Direito..., pp. 130 e 135; JORGE MIRANDA, Curso..., p. 150.

35 Assim, RUI MOURA RAMOS, A Convenção..., p. 126; ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., pp. 82 e 83; NUNO E SOUSA, Curso..., p. 90; FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito..., p. 73.

ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS (Manual..., p. 110), versando o assunto mais desenvolvidamente, adoptam a interpretação extensiva: “Somos da opinião de que o artigo 8.°, n.° 1, ao afirmar a prevalência do Direito

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- a via da identidade de razão36. Outra corrente considera, pelo contrário, que o texto constitucional

não autoriza, perante aquela omissão, o acrescento de novas normas de recepção de fontes internacionais não previstas, não tendo havido qualquer revisão constitucional nesse sentido e pertencendo à CRP a opção de acolher ou não o Direito Internacional Público, em nome da soberania nacional37.

Haveria que optar por um destes dois resultados, com consequências bem distintas no acolhimento dos costumes regionais e locais:

- ou não serem, simplesmente, recebidos; - ou serem recebidos através de um esquema de transformação,

convertendo aquelas fontes em actos legislativos internos. Quer parecer-nos que a melhor solução é aceitar os costumes

regionais e locais no âmbito de uma recepção automática. Quanto ao esquema, é de trilhar o caminho da integração analógica, de acordo com o mesmo método da recepção automática, obviamente apenas para os costumes que vinculam Portugal. Mas nunca encarando este Direito Internacional como Geral ou Comum porque isso seria sempre adulterar a sua natureza38, que é a de Direito Internacional Particular.

consuetudinário sobre o Direito Interno, não quis excluir, se não na sua letra pelo menos no seu espírito, o Direito consuetudinário particular”.

36 Cfr. EDUARDO CORREIA BAPTISTA, Direito Internacional..., I, p. 428. 37 É o caso de JOAQUIM DA SILVA CUNHA e MARIA DA ASSUNÇÃO DO VALE

PEREIRA (Manual..., p. 113), que escrevem: “É que as suas normas, cuja vigência se admite em Portugal, constituem um elemento estranho no contexto do sistema jurídico nacional e, por isso, o seu elenco é constituído apenas pelas normas que expressamente o legislador constitucional menciona”.

38 Não podendo nós, assim, concordar com ALBINO DE AZEVEDO SOARES, Lições..., pp. 82 e 83. E como tivemos ocasião de escrever noutro lugar (JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atípicos, p. 362): “O nosso ponto de vista parte da necessidade de se prever a incorporação das normas costumeiras e, na ausência de uma norma constitucional com essa função, de se realizar o preenchimento dessa lacuna. Se por diversas vezes a CRP se refere ao Direito Internacional no seu conjunto e

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III. A incorporação dos actos jurídicos unilaterais dos Estados

suscita maiores dificuldades porque não se aproximam minimamente de nenhuma das cláusulas contempladas no art. 8.° da CRP, seja de recepção automática, seja de recepção condicionada.

Só que não se vê como desconsiderar tais fontes, uma vez que a sua rejeição implicaria a impossibilidade da convivência internacional do Estado Português.

Julgamos como melhor a sua incorporação automática, utilizando o caminho do art. 8.°, n.° 1, da CRP, na medida em que para Portugal esses actos funcionam como Direito Internacional Público genericamente relevante, em cuja formação Portugal não participou porque actos unilaterais de outros Estados, mas que nos interessam directamente, mesmo a título regional ou local.

A via a percorrer é semelhante à da integração analógica que se fez com os costumes regionais e locais, porquanto aqueles actos unilaterais se fundam num princípio geral de vinculação aos respectivos efeitos, relevante para o Direito Internacional Geral ou Comum.

IV. A integração dos actos unilaterais das organizações internacionais de que Portugal faça parte, com eficácia normativa externa, ou mesmo sem essa eficácia normativa, desde que não sejam provenientes de organizações supranacionais, não está directamente prevista.

Como não aceitar a sua incorporação quando ela pressuponha, directa ou indirectamente, a sua integração automática no Direito

se os costumes regionais ou locais são, na verdade, espécies importantes da fonte costumeira dentro dessa ordem jurídica, então é porque para a CRP essa parcela do Direito Internacional também se afigura relevante. O art. 8.°, n.° 1, é lacunoso quanto a este ponto e a respectiva integração faz-se através da sua incorporação nos mesmos moldes em que se dá a incorporação do costume geral”.

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Português, utilizando-se um argumento de maioria de razão para com as organizações internacionais supranacionais?

Mesmo que aqui não se encontrasse um arrimo seguro, sempre restaria a integração da própria convenção internacional instituidora da organização para justificar tal entendimento, que a não ser aceite poria em causa, em última instância, a vinculação de Portugal à organização em questão.

V. Depois de tudo quanto acabámos de dizer, estamos agora em posição de concluir que o Direito Português operou uma recepção plena do Direito Internacional Público, ainda que multifacetada nas diversas modalidades previstas:

- plena porque nenhuma fonte do Direito Internacional Público fica excluída da inserção no Direito Português;

- multifacetada porque se adopta tanto o modelo da recepção automática quanto o modelo da recepção condicionada.

11. Os anexos técnicos à Convenção de Chicago como actos internacionais de normatividade fraca e insuficiente para a sua recepção

I. Feita a apresentação dos esquemas de incorporação do Direito

Internacional Público no Direito Português, de acordo com as opções constitucionais que são feitas desde a entrada em vigor da CRP, é a altura de se perguntar até que ponto se justifica invocar a aplicabilidade directa dos anexos técnicos à Convenção de Chicago nessa mesma ordem jurídica interna.

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Dada a dupla possibilidade que foi aberta no art. 8º da CRP, é de visualizar as duas vias possíveis:

- a via da recepção automática, esquema em que as normas internacionais se incorporam sem qualquer intervenção, mesmo meramente burocrática, do Estado Português; e

- a via da recepção condicionada, esquema em que as normas internacionais são recebidas através de uma intervenção político-formnal dos órgãos constitucionais competentes, que assim expressam o seu consentimento.

II. Mas nem sequer é preciso explicitar cada uma dessas

possibilidades porque a natureza dos anexos técnicos à Convenção de Chicago nos impede logo de preencher o requisito mínimo essencial para se falar de recepção de Direito Internacional Público: é que esses anexos técnicos não consubstanciam quaisquer normas jurídico-internacionais plenas que, como tal, atinjam um patamar suficiente de juridicidade para se mostrarem como normas cogentes do ponto de vista dos Estados e das suas Ordens Jurídicas.

Efectivamente, tal como a Convenção de Chicago lateralmente desvenda, os anexos técnicos contêm normas e práticas recomendadas, os quais não implicam, por si só, uma normatividade directa e própria, dado que os Estados não ficam obrigados a cumprir as respectivas determinações, ainda que deles se retire uma certa normatividade39.

39 Diversa é a posição assumida pelo Parecer nº 30/90 do Conselho Consultivo

da Procuradoria-Geral da República, na qual se afirma o seguinte: “As normas e as práticas recomendadas, elaboradas no exercício do poder normativo da Organização da Aviação Civil Internacional, que integram os anexos à Convenção e que se revelam como regulamentação de carácter técnico sobre a navegação aérea internacional, não constituem segundo a doutrina dominante, porém, mais que simples recomendações que os Estados se comprometem a respeitar a aplicar”. Cfr. Parecer nº 30/90 do Conselho

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A força jurídico-normativa dos anexos técnicos é apenas reduzida, unicamente do ponto de vista da notificação dos Estados no sentido da detecção de desvios na transposição de tais anexos nas ordens jurídicas internas dos Estados40.

III. Ora, se a natureza dos anexos técnicos não é a de serem actos

jurídico-internacionais derivados, mas apenas impondo obrigações de notificação aos Estados, não possuem, concomitantemente, a suficiente eficácia normativa para poderem almejar uma incorporação, por eles mesmos, na Ordem Jurídica Portuguesa.

É que a obrigação de notificação internacional dos desvios à aplicação dos anexos técnicos, além de fraca, é por si incapaz de assumir a potencialidade de integrar a ordem jurídica de cada Estado.

Por outra parte, cumpre dizer que o dever de notificação internacional, bem como a respectiva fundamentação, se situa apenas na relação inter-subjectiva entre os Estados e a OACI, sem qualquer virtualidade de poderem ostentar um efeito directo para outros destinatários da comunidade política de cada Estado.

IV. Se bem se reparar na sua natureza, os anexos técnicos não têm a pretensão de vir a constituir uma fonte de Direito dentro dos Estados e que os Estados devessem, simplesmente, fazer incorporar através de um mecanismo de recepção.

Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 7 de Novembro de 1991, in Diário da República, II série, nº 111, de 14 de Maio de 1992, p. 4286(6).

40 Com essa opinião, GUALDINO RODRIGUES, As fontes internacionais…, pp. 133 e 134, dizendo o seguinte: “Finalmente, a natureza jurídica das disposições normativas dos Anexos, umas vinculativas e outras meramente recomendatórias, bem como a complexidade dos seus textos e a variedade de elementos que os compõem, a necessidade do seu enquadramento jurídico com o sistema jurídico de cada Estado contratante, tornam os Anexos inexequíveis”.

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Bem ao contrário: a normatividade dos anexos técnicos está estritamente dependente da actividade colaborante dos Estados, para quem a própria Convenção de Chicago remete a solução jurídica de se conseguir a harmonização da regulamentação técnica internacional.

A este mesmo resultado chega o Parecer nº 30/90 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República: “As disposições emanadas no seio da Organização da Aviação Civil Internacional, assim, necessitarão de regulamentação interna concordante com a sua própria regulamentação para que o sistema instituído se revele eficaz e aplicável: as especificações da Organização da Aviação Civil Internacional não são, de acordo com este sector doutrinal, ipso facto, aplicáveis no território dos Estados contratantes”41.

41 Parecer nº 30/90 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República,

de 7 de Novembro de 1991, in Diário da República, II série, nº 111, de 14 de Maio de 1992, p. 4286 (6).

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IV A VIA DA INCORPORAÇÃO INTERNA DOS ANEXOS TÉCNICOS

PELA SUA TRANSFORMAÇÃO EM REGULAÇÃO ADMINISTRATIVA DO SECTOR DA AVIAÇÃO CIVIL

12. A competência administrativa do Instituto Nacional da Aviação Civil para a regulação do sector da aviação civil

I. Gorada a via da recepção internacional dos anexos técnicos à Convenção de Chicago, pelas razões que ficaram expostas, cumpre reflectir sobre um outro caminho, precisamente apontado na legislação portuguesa que estrutura o Instituto Nacional de Aviação Civil (INAC). Como se explicitou na Consulta, o INAC, criado pelo Decreto-Lei nº 133/98, de 15 de Maio, diploma revisto pelo Decreto-Lei nº 145/2002, de 21 de Maio, é uma entidade de regulação, sucedendo em novos moldes à antiga Direcção-Geral da Aviação Civil e tem por “...finalidade a supervisão, a regulamentação e a inspecção do sector da aviação civil”, conforme se prescreve na parte final do art. 1º, nº 2, dos respectivos Estatutos, aprovados pelo art. 1º, nº 1, do Decreto-Lei nº 133/98, de 15 de Maio. Para o efeito, o INAC dispõe de múltiplas atribuições e competências, tendo uma estrutura decisória apropriada, contando ainda com diversos serviços nas suas diversas áreas de intervenção.

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II. No seio dessas múltiplas competências do INAC, em correspondência directa com as atribuições que desenvolve, evidencia-se para o tema do presente parecer a competência de regulação, que foi recentemente redesenhada pelo Decreto-Lei nº 145/2002, de 21 de Maio, divergindo um pouco da solução originalmente consagrada aquando da criação do INAC. Pela sua importância, vale a pena transcrever aquele novo art. 8º dos Estatutos do INAC:

“1 – Os regulamentos do INAC devem observar os princípios da legalidade, da necessidade, da clareza e da publicidade.

“2 - Compete ao INAC definir, através de regulamento, os requisitos e pressupostos técnicos de que depende a concessão das licenças, certificações, autorizações ou a homologação referidas no artigo anterior.

“3 - Compete igualmente ao INAC definir, através de regulamento, as regras necessárias à aplicação de normas, recomendações e outras disposições emanadas da Organização da Aviação Civil Internacional e de outros organismos internacionais de normalização técnica, no âmbito da aviação civil.

“4 - As normas regulamentares a que se referem os números anteriores serão publicadas na 2.ª série do Diário da República, entrando em vigor na data neles referida ou cinco dias após a sua publicação.

“5 - Os regulamentos do INAC que apenas visem regular procedimentos de carácter interno de uma ou mais categorias de entidades sujeitas à sua supervisão denominam-se «instruções», não são publicados nos termos do número anterior, são notificados aos respectivos destinatários e entram em vigor cinco dias após a notificação ou na data neles referida”.

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III. De acordo com esta importante alteração que foi feita nos Estatutos do INAC, este organismo passou a dispor de poderes de natureza regulamentar no sector da aviação civil, nos termos condicionados em que aquele preceito refere. Este vem a ser outro caminho a trilhar na tentativa de solução do problema que foi equacionado na consulta, o qual consiste na possibilidade de o INAC ser o interlocutor interno do Estado Português no objectivo de efectuar a incorporação dos anexos técnicos produzidos ao abrigo da Convenção de Chicago. É isso mesmo o que se refere no nº 4 do novo art. 8º dos Estatutos do INAC, o qual alude “…à aplicação de normas, recomendações e outras disposições emanadas da Organização da Aviação Civil Internacional e de outros organismos internacionais de normalização técnica, no âmbito da aviação civil”. IV. Esta alteração legislativa de 2002 foi, de resto, inteiramente assumida como tal, uma vez que se apresentam as orientações gerais a que devem obedecer os regulamentos, assim como a necessidade da sua publicação no Diário da República. Todavia, é evidente que esta via interna para solucionar o problema da vinculação de Portugal aos anexos técnicos à Convenção de Chicago enfrenta também as suas questões, as quais se apresentam em termos de saber da constitucionalidade deste poder regulamentar, tal como ele se encontra definido, que naturalmente comporta alguns limites.

V. No elenco dos diversos actos jurídico-públicos, a função

administrativa reúne um desses grupos de actos, os quais se definem em razão das necessidades colectivas de segurança, cultura e bem-estar.

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Mas para a certificação da constitucionalidade dos regulamentos de aplicação dos anexos técnicos à Convenção de Chicago não basta genericamente admitir a possibilidade de as autoridades administrativas portuguesas poderem produzir regulamentos, nas suas diversas modalidades.

É que essa análise está ainda estritamente dependente das específicas condições em que o art. 8º dos Estatutos do INAC admite a produção dos respectivos regulamentos para a normalização técnica do sector da aviação civil, assim como da natureza concreta das matérias abrangidas por cada um dos regulamentos produzidos.

VI. Uma dessas preocupações é de natureza material e destina-se a

saber se as matérias que são abrangidas por estes regulamentos administrativos do INAC respeitam a CRP na divisão de tarefas que esta empreende entre a função legislativa e a função administrativa. É verdade que não há uma delimitação geral e fixa entre aquelas duas funções, mas um dado seguro é fornecido pela ideia de que tudo aquilo que estiver submetido à função legislativa não pode ser tratado ao nível dos regulamentos do INAC, óbvia expressão da função administrativa. A resposta deve ser dada através da leitura das disposições constitucionais que cuidam da função legislativa, quer definindo as matérias de reserva de lei, quer apontando para o domínio da lei e não de outros actos jurídico-públicos. A força deste esquema radica na circunstância de os regulamentos do INAC não poderem incidir sobre matéria pertença do domínio da lei, tipificada na CRP ou que dela se deduza como matéria reservada à lei. A título de exemplo, os regulamentos do INAC não podem incidir sobre matérias que para a CRP só podem ser disciplinadas por actos

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legislativos, como inequivocamente sucede com a limitação de direitos, liberdades e garantias ou a imposição de crimes e de penas de prisão.

13. A transformação dos anexos técnicos à Convenção de Chicago em regulamentos administrativos da aviação civil por parte do Instituto Nacional da Aviação Civil

I. Se a aceitação, por parte do INAC, da competência regulamentar,

nos termos que ficaram balizados, não é questionável à luz da CRP, o mesmo também se pode dizer da sua capacidade de transformar os anexos técnicos à Convenção de Chicago em Direito Interno, numa resposta que, uma vez mais, só pode ser dada indicando modalidades de regulamentos administrativos. O uso da expressão “transformação” dos anexos técnicos à Convenção de Chicago – e a rejeição do uso da expressão “recepção” – significa que estes regulamentos administrativos, tal como eles se concebem no plano legislativo, têm assim a virtualidade de serem o mecanismo interno de incorporação de Direito Internacional Público, mas usando um outro caminho: o da transformação, e não o da recepção. II. A ideia central que agora se discute é esta: saber se os regulamentos administrativos que o INAC pode legalmente produzir no âmbito da normalização técnica do sector da aviação civil têm a capacidade de reproduzirem – nesta fonte interna portuguesa que é o regulamento – os mencionados anexos técnicos à Convenção de Chicago. Se a resposta for positiva, está resolvido o problema colocado pelo facto de os anexos não serem directamente aplicáveis através da via da

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recepção do Direito Internacional Público, ao mesmo tempo não se carecendo de uma intervenção política por parte dos órgãos de soberania de Portugal. Se a resposta for negativa, a intervenção daqueles órgãos mantém-se como necessária e única via possível para a vinculação interna de Portugal àqueles referidos anexos à Convenção de Chicago. III. Não deixa de ser emblemática a liberdade de organização que, neste aspecto, a Convenção de Chicago atribui aos Estados que à mesma se vinculam, tendo precisamente noção da diversidade de sistemas político- -legislativos internos e apenas se preocupando com o essencial, que é o resultado final de os conteúdos dos anexos técnicos integrarem o Direito Interno dos Estados membros. Como se compreende bem, para a Convenção de Chicago, é indiferente o procedimento interno que seja adoptado para se atingir esse resultado, deste que este seja integralmente respeitador do sentido normativo dos anexos técnicos estabelecidos, dentro do desejo geral de aperfeiçoar a navegação aérea internacional. Daí que a eventual dificuldade de os regulamentos administrativos internos não traduzirem o conteúdo dos anexos técnicos não seja das opções da Convenção de Chicago, mas de cada sistema constitucional dos Estados membros. IV. Quer isso dizer que o problema se transfere para cada Ordem Constitucional e assim cumpre perguntar à CRP se aceita que os regulamentos administrativos do INAC possam desenvolver essa função. A resposta é afirmativa se pensarmos no papel estritamente regulamentar que aqueles regulamentos vão desempenhar, no exacto

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quadro das competências normativas regulamentares estabelecidas nos Estatutos do INAC. A avaliação geral do teor dos regulamentos que têm sido produzidos, fundando-se directamente na lei que estabelece as respectivas condições subjectivas e objectivas de produção, não se vislumbrando, por outra parte, a interferência na esfera de competência legislativa ou da função legislativa, leva-nos a pensar que não se pode questionar a respectiva constitucionalidade e que assumem a virtualidade de transformarem em Direito Interno os anexos técnicos produzidos no âmbito da Convenção de Chicago.

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V CONCLUSÕES

14. Enunciado das conclusões

Do exposto, é possível chegar às seguintes conclusões: a) Os anexos técnicos à Convenção de Chicago de 1944, previstos

no respectivo art. 54º, apresentam-se com uma função uniformizadora e de aperfeiçoamento da regulação jurídica da navegação aérea internacional, incluindo normas e práticas recomendadas;

b) Uma primeira via para se proceder à sua inserção no Direito Português seria a da recepção do Direito Internacional Público, mercê da sua qualidade de pertença de um tratado internacional, mas esse é um resultado que não se afigura possível porque a sua normatividade intrínseca não o permite, pois que só vinculam procedimentalmente os Estados, devendo estes proceder, por sua conta, à respectiva integração interna, não se destinando tais anexos, por si próprios, a possuir qualquer potencialidade de efeito directo no Direito Interno dos Estados;

c) Outra solução conjecturável seria a da transformação dos anexos técnicos à Convenção de Chicago em actos jurídicos de Direito Interno, reproduzindo os regulamentos administrativos o

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conteúdo daqueles, hipótese que parece constitucionalmente adequada e que está mesmo consagrada como competência do INAC, ainda que deva respeitar os limites constitucionalmente estabelecidos ao uso do poder regulamentar por parte de autoridades administrativas.

Este é, salvo melhor opinião, o parecer de JORGE BACELAR GOUVEIA

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Doutor em Direito Jurisconsulto

Lisboa, 25 de Novembro de 2005.