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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI CAMPUS DOM BOSCO CDB PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MAURO SÉRGIO DE CARVALHO TOMAZ ORTEGA Y GASSET E PAULO FREIRE: um diálogo entre educação e política SÃO JOÃO DEL-REI MG FEVEREIRO/2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI CAMPUS DOM BOSCO – CDB

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MAURO SÉRGIO DE CARVALHO TOMAZ

ORTEGA Y GASSET E PAULO FREIRE: um diálogo entre

educação e política

SÃO JOÃO DEL-REI – MG

FEVEREIRO/2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI CAMPUS DOM BOSCO – CDB

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MAURO SÉRGIO DE CARVALHO TOMAZ

ORTEGA Y GASSET E PAULO FREIRE: um diálogo entre

educação e política

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Educação da

Universidade Federal de São João del-Rei,

como requisito parcial para obtenção do grau de

Mestre.

Orientadora: Prof.ª. Dra. Bruna Sola da

Silva Ramos

SÃO JOÃO DEL-REI – MG

FEVEREIRO/2018

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, fonte magnífica de toda inteligência.

A minha esposa, Aline Enaile Tomaz, pela docilidade e paciência.

A meus pais e irmãs, pelo apoio sempre presente e as palavras de incentivo.

Ao meu querido professor, José Maurício de Carvalho, pelo exemplo valoroso.

A CAPES, pelo financiamento desta pesquisa.

A professora Bruna Sola, pela oportunidade e orientação.

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“καὶ γνώσεσθε τὴν ἀλήθειαν, καὶ ἡ ἀλήθεια ἐλευθερώσει ὑμᾶς”

(kai ginóskó ho alétheia, kai ho alétheia eleutheroó su)

“ E conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres”

Jo 8,32

“La verdad integral sólo se obtiene articulando lo que el prójimo ve con lo que yo

veo, y así sucesivamente. Cada individuo es un punto de vista esencial”

“Dios es también un punto de vista; pero no porque posea un mirador de fuera del

área humana que le haga ver directamente la realidad universal, como si fuera un viejo

racionalista. Dios no es racionalista. Su punto de vista es el de cada uno de nosotros: nuestra

verdad parcial es también verdad para Dios. […] Sólo que Dios, como dice el catecismo, está

en todas partes y por eso goza de todos los puntos de vista, y en su ilimitada vitalidad recoge

y armoniza todos nuestros horizontes”

Ortega y Gasset – El tema de nuestro tiempo

“Eu nada mais possuo a não ser o cotidiano do qual nunca sou afastado. [...] Não

conheço mais outra plenitude a não ser a plenitude da exigência e da responsabilidade de

cada hora mortal. [...] Não saberia dizer muito mais. Se isto for religião, então ela é

simplesmente tudo, o tudo singelo, vivido, na sua possibilidade do diálogo. [...] Desta

maneira, daqueles que dispensam os signos, dos que pronunciam as palavras na vida vivida,

dos deuses do momento, constitui-se para nós, por identidade, o Senhor da voz, o Único”

Martin Buber – Do diálogo e do dialógico

“A verdade não é o resultado de qualquer processo que o existente possa conduzir ou

executar. A verdade está presente no apelo, ela integra o chamado, está no ponto de partida,

não no de chegada. Para entender esse sentido de verdade deve-se ter presente que ela não é

algo já apreendido, pronto. Não há um ajuste perfeito entre pensamento e realidade, há o

apelo. A verdade está no principiar do pensamento como um convite e como um desafio.

Efetivamente é um chamamento nunca perfeitamente respondido, convite difícil de aceitar e

um desafio insuperável. A verdade é um estímulo que está na base dos problemas, que os

alimenta e que os nutre, mas apenas isso”

José Maurício de Carvalho – O Homem e a Filosofia

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Resumo: Nesta pesquisa, procuramos tecer um diálogo entre alguns aspectos específicos do

pensamento do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883 – 1955) e do educador brasileiro

Paulo Freire (1921 – 1997) no que diz respeito à relação entre educação e política. A

metodologia utilizada foi a bibliográfica com caráter dialógico. Compreendemos que as

diferenças no modo como ambos compreendem a sociedade de seu tempo são marcantes e

bastante nítidas, mas acreditamos que isso não impede o diálogo, pois é exatamente a diferença

e singularidade o terreno propício para o surgimento de novas perspectivas. Ao final da

pesquisa, pudemos perceber que existem quatro aspectos comuns em seu modo de ver a relação

educação e política. Aspectos estes que acreditamos ser importante ressaltar e atualizar para os

desafios que atualmente enfrentamos nestes campos. Há também outros dois aspectos que são

exclusivos de um e outro que parecem complementar os anteriores, de modo que nossa

perspectiva sobre os desafios da educação em nosso tempo não pode deixar de considerá-los.

Palavras-chave: José Ortega y Gasset – Paulo Freire – diálogo – educação – política

Abstract: In this work, we try to make a dialogue among specific aspects in the thought of the

Spanish philosopher José Ortega y Gasset (1883 – 1955) and the Brazilian educator Paulo Freire

(1921 – 1997) about the relation between education and politics. The methodology was the

bibliographical with some dialogical character. It’s understandable that the differences in the

way that both see the social fabric is very sharp, but we believe that it do not block the path to

try the dialogue, because is exactly the difference and singularity of point of views that make a

fertile terrain to create new perspectives. At last, we realized that there are four common aspects

in the relation between education and politics in the thought of both thinkers. These aspects, we

believe, must be updated and emphasized to correspond to our current challenges in these social

fields. There are, too, another two points that are exclusive of each author and that seems to

complement the four previous aspects, already mentioned. Thus, our perspective about the

challenges of education and politics in our time cannot give up of consider it.

Key words: José Ortega y Gasset – Paulo Freire – dialogue – education – politics

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SUMÁRIO

DIÁLOGO: INFINITIVO E GERÚNDIO ................................................................................. 9

CAPÍTULO 1 - BIOGRAFIA: SUPORTE DA BIBLIOGRAFIA .......................................... 33

1.1 Ortega y Gasset ................................................................................................................... 33

1.2 Paulo Freire ........................................................................................................................ 45

CAPÍTULO 2 - PROBLEMAS POLÍTICOS, INTERPRETAÇÕES EDUCATIVAS: A

MEDITAÇÃO DE JOSÉ ORTEGA Y GASSET .................................................................... 54

2.1 O fenômeno da crise: anatomia e fisiologia ....................................................................... 55

2.1.1 O problema político nacional .......................................................................................... 57

2.2 A crise se amplia................................................................................................................. 63

2.2.1 Segunda navegação e a significação sistematizada do conceito de “crise” ..................... 64

2.2.2 A crise adquire aspecto de ineditismo ............................................................................. 70

2.2.3 “Massa” e “minoria” ........................................................................................................ 71

2.2.4 Perfil do homem-massa ................................................................................................... 76

2. 3 Respondendo à crise: a universidade autêntica ................................................................. 82

CAPÍTULO 3 - EDUCAÇÃO E REVOLUÇÃO CULTURAL: LIBERTAÇÃO NO

ENGAJAMENTO POLÍTICO SEGUNDO PAULO FREIRE ................................................ 98

3.1 O problema nacional brasileiro: a “antinomia fundamental” ........................................... 103

3.1.2 Inexperiência democrática: o componente histórico da antinomia ............................... 105

3.2 A essência da revolução: uma pedagogia para o oprimido .............................................. 116

CAPÍTULO 4 - CONSCIENTIZAÇÃO: METODOLOGIA DE AÇÃO POLÍTICA JUNTO

ÀS MASSAS .......................................................................................................................... 124

4.1 Liderança social ................................................................................................................ 125

4.2 Esperança e fatalismo ....................................................................................................... 137

4.3 Definindo e analisando o conceito em Freire ................................................................... 138

4. 4 Aproximando o conceito em Ortega ................................................................................ 149

4.5 Apontando algumas relações ............................................................................................ 155

DIÁLOGO: PARTICÍPIO E GERÚNDIO ............................................................................ 171

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 177

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DIÁLOGO: INFINITIVO E GERÚNDIO

Nesse campo [o das questões dos seres humanos ativos]

o conhecimento da verdade por si só não basta; ao

contrário, tal conhecimento precisa ser constantemente

renovado com esforço incessante, se não se deseja perdê-

lo. Assemelha-se a uma estátua de mármore deixada no

deserto continuamente ameaçada de desaparecer sob a

areia inconstante. Mãos laboriosas devem sempre estar

ativas, para que o mármore continue eternamente a

brilhar ao sol. A essas mãos laboriosas pertencerão

também as minhas (EINSTEIN, 1983, p. 37).

Quando Aristóteles, na Metafísica, nos ensinava que o espanto (thaumazein) não só é a

origem do conhecimento, como também o responsável por mover nossa capacidade e inclinação

natural para o conhecer, não pretendia dizer nada diferente de “o novo nos atrai”. Mas para nos

atrair é necessário que o reconheçamos. Espantar-se diante do que existe é olhar com olhar

infantil, perguntar o que se acha que deve perguntar na inocência de um questionamento livre

de pudores da formalidade. Essa característica infantil do saber – infantil por ser inocente e

curiosa – muitas vezes se perde, tristemente, ao longo de nossa caminhada epistemológica vital.

Perdemos nossa capacidade de nos espantarmos, de nos assustarmos com o novo e, por isso, o

próprio novo desaparece, seja em novas significações, seja em novos sentidos. Há também

momentos em que o novo é temido por ser desconfortável e a ousadia da pergunta, do

questionamento e da dúvida se transforma no mais execrável pecado capital. O desaparecimento

do novo talvez seja alguma coisa da mais agressiva que nos tenha ocorrido, pois nos impede.

“Ver o novo” significa observar o antigo extraindo dele essências combináveis, voláteis,

fazendo-as entrelaçar-se em virginal frenesi. O conceito de novo, que utilizamos aqui, se refere

ao do sentido original de poesia, ou seja, a uma ideia de criação. De certa maneira, é o que

tentamos humildemente realizar neste trabalho. Apresentar uma nova perspectiva, que é a

nossa, jamais a única correta, de interpretação das ideias de dois autores que, nos parece, muito

nos têm a ensinar para superar desafios que ainda persistem. Entretanto, é preciso dizer já neste

primeiro parágrafo, são autores com pensamentos extremamente diferentes que só poderiam ser

aproximados a partir de um esforço intelectual que fosse despendido sem preconceitos. Algo

deste tipo é o que procuramos fazer e é, em poucas palavras, um resumo de tudo o que se pode

ler daqui em diante.

A trajetória de encontro com nosso primeiro autor de referência, José Ortega y Gasset,

se inicia em meados de 2013, nosso segundo ano na graduação em Filosofia na Universidade

Federal de São João del-Rei. Nesse ano, iniciou-se uma proposta de bolsa de Iniciação Científica

pela FAPEMIG cujo objetivo era estudar a concepção pedagógica do filósofo espanhol em questão.

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Periodista, o autor escrevia de maneira ensaística, o que torna a leitura agradável sem fugir de

reflexões profundas sobre a vida, seu grande problema. Estilo que desenvolveu devido às próprias

circunstâncias vitais que eram as suas, conforme procuraremos deixar indicado no item dedicado à

sua biografia. Nesse item, apontaremos também possíveis razões encontradas na trajetória vital do

autor que fazem com que o ensaio datado de 1930 e intitulado Misión de la Universidad - no qual

o autor faz afirmações a respeito do ensino superior, principalmente de que a universidade de sua

época, nos ambientes que conhecia e frequentava, fazia frutificar apenas uma ação aparentemente

falsa, inautêntica, de acordo com a significação do conceito que encontramos em sua filosofia - se

tornasse o capítulo central da discussão orteguiana sobre a educação.

Findo o período da iniciação científica, iniciamos um novo projeto também financiado

pela FAPEMIG a fim de estudar o diálogo que as ideias de Ortega y Gasset mantêm com a

fenomenologia, embora um dos objetivos continuasse a ser a compreensão do viés educativo

da obra orteguiana. Viés que foi confirmado algum tempo depois na leitura de Ortega y Gasset:

a aventura filosófica da educação, da filósofa portuguesa Margarida Amoedo. Obra que dedica

suas quase setecentas rigorosas páginas a demonstrar que toda a preocupação filosófica e

política de Ortega se resume a uma preocupação pedagógica e que foi de grande valia para a

presente proposta de pesquisa. Além disso, foi na tessitura deste diálogo com a fenomenologia

que encontramos algo de mais valioso para o pensamento educacional orteguiano e que

viríamos a nos dedicar mais tarde, juntamente com a pesquisa desenvolvida no mestrado, mas

que a transcende.

Destes dois anos de pesquisa e dos produtos que deles surgiram, propusemos

monografia intitulada Reforma da Universidade: Ortega y Gasset contra a crise de cultura, na

qual tratamos, na primeira parte, o reconhecimento orteguiano de uma crise de cultura na

primeira metade do século XX (como reconheceu também, dentre outros, Edmund Husserl) e,

na segunda parte, como o espanhol reconhece na instituição universitária reformada a resposta

para essa mesma crise (como reconheceram também, por exemplo, Fichte e Jaspers). A

continuidade e aprofundamento dessa pesquisa constitui o capítulo teórico dedicado ao

pensamento orteguiano presente neste trabalho.

Nesse momento, passamos a integrar o Grupo de Estudos Críticos do Discurso

Pedagógico (GECDiP), coordenado pela professora Bruna Sola da Silva Ramos. Nesse grupo

de pesquisa, dentre outros acontecimentos importantes, mantivemos contato mais próximo com

as obras de Paulo Freire.

Para nós, era patente nos escritos de Freire, uma certa semelhança com determinados

aspectos da filosofia orteguiana. O primeiro texto em que notamos alguns muito pontuais

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momentos de aproximação teórica foi O processo de alfabetização política. As leituras que se

seguiram, principalmente a de Educação e atualidade brasileira, trouxeram consigo o que a

nosso ver era uma possibilidade de diálogo concordante entre, repetimos, muito pontuais modos

de encarar um problema, que como procuraremos indicar, nos parecem guardar algum tipo de

semelhança, embora não deixemos de reconhecer a imensidão das diferenças. Assim, surgiu

para nós uma hipótese inicial: Freire talvez tivesse lido Ortega y Gasset em algum momento de

sua caminhada intelectual. Isso, nos parecia, era algo plausível, pelo menos inicialmente,

considerando o viés histórico, quer dizer, pelas datas mesmas de referência. O espanhol viveu

entre os anos de 1883 e 1955 e o brasileiro, de 1921 e 1997. Isso significa que quando Paulo

Freire escreve, em 1959, a tese que viria a se transformar quase 50 anos depois em Educação e

atualidade brasileira, Ortega já se encontrava no período de maturidade, já era

internacionalmente conhecido, principalmente em países como Portugal e Argentina.

Além disso, na página 34 do prefácio Aprender a dizer a sua palavra, de Ernani Maria

Fiori, encontramos menção a uma “sugestão de Ortega”, a saber, a passagem da vida como

biologia para vida como biografia, um dos conceitos que podemos encontrar no pensamento de

Freire. Já na sexagésima edição de Pedagogia do Oprimido, temos no Prefácio de Celso de Rui

Beisiegel, outro comentário envolvendo Ortega y Gasset. Ali Beisiegel nos diz que “Paulo

Freire viveu os primeiros tempos de sua formação em estreito contato com educadores e

intelectuais católicos” (FREIRE, 2016, p. 29) e, logo em seguida, menciona uma série de

pessoas e eventos que ele considera importantes nessa fase. Dentre elas está Ortega y Gasset.

Entretanto, devemos apontar já aqui que, embora Beisiegel reconheça a presença do

pensamento orteguiano nesse momento de desenvolvimento da reflexão de Freire, ele comete

um equívoco ao atribuir a Ortega o caráter de “intelectual católico”. O assunto transcende, aqui,

nosso objetivo, mas basta conferir as biografias de Julian Marías, o estudo de Margarida

Amoedo e o livro de introdução ao pensamento de Ortega do professor José Maurício de

Carvalho para compreender que Ortega estava longe de ser um pensador ligado a qualquer

corrente religiosa. Aliás, ele mesmo se dizia um “acatólico”.

A partir de então, decidimos que, antes de empreender a pesquisa que tínhamos em

mente, seria interessante saber se nossa hipótese inicial era verdadeira, se Paulo Freire havia,

de fato, tomado contato com as obras de Ortega. Não que essa informação fosse necessária, no

sentido filosófico do termo, para a existência da pesquisa. O fato de Ortega y Gasset ter feito

ou não parte da bibliografia freiriana apenas servia como saciedade de um questionamento

pessoal, embora, como veremos logo mais, pudéssemos retirar desta informação alguns

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aspectos que nos ajudariam na pesquisa. Então, a partir de uma insistente pesquisa, digamos,

preliminar, uma leva de informações foi encontrada apontando que essa intuição – a saber, a de

que Freire lera Ortega y Gasset - seguia um bom caminho. A primeira referência desse tipo foi

encontrada no livro Aquiles Côrtes Guimarães e os fundamentos da filosofia e da

fenomenologia jurídica que tive a oportunidade de ler, embora não pretendendo encontrar ali

nada referente à pesquisa. Nele encontramos o seguinte comentário das autoras:

a filosofia brasileira também recebe influência espanhola. O pensamento de Ortega y

Gasset (1883 – 1995 [sic]) ganhou destaque no Brasil, principalmente, a partir da

década de 30. (...) O culturalismo brasileiro teve suas raízes no neo-kantismo da

Escola de Baden. Mas é com Ortega y Gasset que esse culturalismo passa a se

desenvolver. [...] Algumas instituições surgiram no clima culturalista-existencialista,

como é o caso da fundação do Instituto Brasileiro de Filosofia, em São Paulo, e a

fundação da Revista Brasileira de Filosofia, em 1950, que se tornou o principal

veículo de divulgação do culturalismo brasileiro. Também a fundação do Instituto

Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), nos anos 50, foi pautada na ideia de

circunstância. Tal fato levou muitos de seus fundadores a pensar sobre a circunstância

brasileira como uma circunstância singular a ser analisada no contexto dos países

subdesenvolvidos. A pedagogia de Paulo Freire, elaborada com base nos debates dos

participantes do ISEB, recebe influência de Ortega y Gasset, principalmente, no que

se refere à circunstancialidade, ou seja, sua pedagogia é marcada por uma concepção

de pessoa humana situada em sua própria circunstância (PEREIRA; PEREIRA; 2015,

p. 86 – 87, itálicos no original)

Em relação a este comentário – embora cometa o equívoco de reduzir o pensamento

freiriano a apenas uma “pedagogia elaborada com base nos debates desenvolvidos no ISEB” –

é possível perceber que, ao menos indiretamente, era possível afirmar uma influência de Ortega

y Gasset no pensamento de Paulo Freire. Julgamos, contudo, que apenas esse fato era

insuficiente para solidificar a ideia, mesmo tendo pesquisado a respeito de outros autores do

período da escola culturalista no Brasil – pesquisa que acabou por se transformar em um dos

capítulos do livro Uma Filosofia da Cultura1. Esse estudo indicou, realmente, a influência

orteguiana nos filósofos do período, principalmente na meditação de Álvaro Vieira Pinto, autor

várias vezes referido por Paulo Freire em Educação e atualidade brasileira, Educação como

prática da liberdade e Pedagogia do oprimido. De modo que a influência orteguiana estava,

pelo menos indiretamente, bastante clara nesse momento. Isso, para nós, era insuficiente.

A partir daí, pesquisando palestras e aulas de Paulo Freire disponíveis na internet,

deparamo-nos com um vídeo intitulado A última entrevista de Paulo Freire, datado de 17 de

abril de 1997, 16 dias antes de seu falecimento. Na segunda parte do vídeo2, aos cinco minutos

e vinte e um segundos, Paulo Freire diz o seguinte:

1 TOMAZ, Mauro Sérgio de Carvalho; SILVA, Adelmo José da; ALMEIDA, Paulo Roberto Andrade de. Uma

Filosofia da Cultura: escritos em homenagem a José Maurício de Carvalho. São João del-Rei: UFSJ, 2016. 312

p. 2 https://www.youtube.com/watch?v=fBXFV4Jx6Y8

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[...] eu me lembro de uma... de uma frase, de uma das primeiras afirmações de um

livro de que eu li quando eu tinha 19 anos, de Miguel de Unamuno, o célebre filósofo,

amoroso também, espanhol, um livro que se chamou, que se chama “Ideias e Crenças”

em que ele começa dizendo: “as ideias se tem, nas crenças se está” (A última entrevista

de Paulo Freire, aos 5min e 21s)

O primeiro impacto que esse vídeo nos causou foi justamente estranheza, pois

ignorávamos que Unamuno tivesse escrito um livro com uma ideia, digamos, tão orteguiana.

Em seguida, demo-nos conta de que este era exatamente o título de um livro de Ortega y Gasset.

A utilização destes dois conceitos – ideias e crenças – é cara à filosofia orteguiana, o que

significa que em vários outros textos de Ortega, principalmente em Ni vitalismo, ni

racionalismo (1924), La razón histórica (1940) e Un capítulo sobre la cuestión de como muere

una creencia (1954), é possível perceber a utilização destes termos com o sentido apresentado

por Paulo Freire na entrevista. O livro em questão não é outro senão Ideas y creencias, presente

no tomo V das obras completas editadas pela Alianza. Nesse texto de 1940, na primeira página,

como subtítulo do primeiro capítulo intitulado Creer y pensar, pode-se ler exatamente o mesmo

que disse Paulo Freire na entrevista: “las ideas se tienen; en las creencias se está” (ORTEGA

Y GASSET, 1994c, p. 383). É, de fato, a primeira afirmação do livro.

Sendo assim, pudemos concluir que Paulo Freire não só leu Ortega y Gasset — ainda

que tenha confundido os nomes na entrevista - como o fez da fase de maturidade da filosofia

orteguiana (1932 em diante), principalmente se considerarmos que “[...] no artigo [sic] Ideas y

creencias a questão já está posta de forma amadurecida” (CARVALHO, 2016, p. 279). Além

disso, sendo o trecho acima transcrito retirado da última entrevista que Freire dá antes de

morrer, deduzimos também que a filosofia raciovitalista de Ortega, depois de conhecida pelo

brasileiro, quando contava então com 19 anos, segundo suas próprias palavras, não mais se

ausentou de sua reflexão. Fazer uma afirmação desse cariz requer um estudo minucioso, mas,

como dissemos, é apenas uma pesquisa preliminar nascida de uma curiosidade relativa à

pesquisa, mas que não influi diretamente naquilo a que nos propusemos fazer em relação ao

possível diálogo.

Ainda outro dado que julgamos de importante relevância encontra-se na primeira parte

de Educação e atualidade brasileira – que tem como objetivo a contextualização sócio-

histórica dessa primeira obra de Freire -, mais especificamente no Depoimento I, de Paulo

Rosas, intitulado Recife: cultura e participação (1950-64). Pouco adiante no texto, ao comentar

sobre o clima que impregnava o Recife a partir dos anos 1950 (criação do ISEB) e “sobretudo

a partir de 1955” (ROSAS, 2003, p. LIII) — coincidência ou não, data de morte de Ortega -,

Paulo Rosas diz o seguinte:

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Circulavam, então, entre os intelectuais dedicados às ciências humanas e à educação,

obras comuns aos de tendência conservadora ou aos que defendiam mudanças

profundas nas relações de poder entre as camadas sociais, tais como as de Gilberto

Freyre, Jacques e Raissa Maritain, Gabriel Marcel, Ortega y Gasset, John Dewey, Karl

Mannheim, padre Joseph Lebret, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Jorge

Amado, Graciliano Ramos, Jean-Paul Sartre... Naturalmente, eram obras lidas com

diferente olhar, de acordo com as posições ou inclinações ideológicas individuais.

Menciono alguns autores que me ocorrem e que me recordo serem frequentemente

citados e, presumivelmente, lidos, observação que não induz à suposição de que

constituíam uma espécie de biblioteca mínima universal... (ROSAS, 2003, p. LIV,

itálico e reticências no original).

Aparentemente como uma confirmação do que disse Rosas, encontramos nas referências

bibliográficas da tese de Freire, Educação e atualidade brasileira, sete dos treze autores

mencionados acima — Freyre, Maritain, Marcel, Dewey, Mannheim, Teixeira e Azevedo —

(FREIRE, 2003, p. 119 – 124).

Dessa maneira, mesmo tendo caminhado como ensinou Sir Arthur Conan Doyle na

busca por Ortega y Gasset na bibliografia de Freire, julgávamos ainda não haver evidência com

solidez suficiente para que nossa intuição se transformasse de fato em uma ideia e pudesse fazer

parte do repertório de ideias que procurávamos começar a construir. Foi então que, em uma das

reuniões do Grupo de Estudos Críticos do Discurso Pedagógico que tinha por objetivo ler e

discutir o livro Cartas a Cristina, encontramos, por assim dizer, a peça que faltava, elemento

que, em nossa perspectiva, fornecia a concretude necessária ao quebra-cabeças para que

pudéssemos enxergá-lo de outra maneira. Na nota 27 referente à décima carta da primeira

edição deste livro, Ana Maria Araújo Freire (Nita) diz o seguinte:

são dessa época e como resultado dessas rodas de intelectuais curiosos em torno dos

caixotes de livros importados, porque vinham trazendo ideias de “outros mundos” que

Freire começou a formar a sua biblioteca. No seu livro de anotações das obras

adquiridas, que ora consulto, que começa em 1942 e prossegue, pacientemente

anotados, autor, título, valor pago ou “oferta” e número de volumes de cada obra, ano

após ano, até 1955, encontro catalogadas obras de autores nacionais e de autores

estrangeiros [...]. Através desse registro, feito pelo próprio punho por Freire, de 572

livros, podemos observar que ele começou a ler obras em espanhol em 1943; em

francês, em 1944 e em inglês, em 1947, deduzindo-se que após as compras dos livros

ele os lia. Citaria, entre outros, estes autores estrangeiros constantes desse seu livro

de registro: Aguayo, Clarapède, Dewey, Lasky, Ingenieros, Maritain, Balmes, Taine,

Sforza, Snedden, Duquit, Kant, Ortega y Gasset, [...]. (FREIRE, 1994, p. 292, itálicos

nossos)

Portanto, essa informação que nos comprova que Paulo Freire anotara de próprio punho

o pertencimento de livros de Ortega y Gasset em sua biblioteca pessoal, aliada ao que diz o

depoimento de Paulo Rosas e aos outros acontecimentos expostos, fez-nos deduzir, com

pequena margem de erro, que Paulo Freire lera, de fato, José Ortega y Gasset.

Há algo ainda que precisa ser dito quanto a essa pesquisa inicial: mesmo que possamos

afirmar tal coisa a partir da investigação feita, em nenhuma das obras de Freire que contam com

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referências bibliográficas podemos encontrar menção a Ortega y Gasset, embora encontremos

na bibliografia de Educação e atualidade brasileira menção à Revista de Occidente que, como

sabemos, fora fundada e presidida pelo espanhol.

Essa afirmação, a saber, a de que Ortega pertencia à biblioteca de Freire, além de apenas

confirmar uma intuição pessoal, nos parece explicar algumas coisas: a raiz de determinados

conceitos utilizados pelo brasileiro. A metodologia de atuação conscientizadora junto às classes

populares é uma delas e tem importância neste trabalho por ser o foco central da pesquisa. Isso

significa que acreditamos que os textos do espanhol tenham servido, como de outros inúmeros

autores, na solidificação da concepção freiriana de política e de educação, bem como a do que

chamaremos neste trabalho de “metodologia de atuação política junto às massas”. Isso não

significa, obviamente, que afirmamos que Paulo Freire seja apenas um teórico. Não se pode

olvidar que ele (como também Ortega) dera muita importância às situações concretas da vida e

que delas parte para nelas chegar, residindo justamente nisso sua atualidade. Na Pedagogia do

oprimido pode-se ler:

as afirmações que fazemos neste ensaio não são, de um lado, fruto de devaneios

intelectuais nem, tampouco, de outro, resultam apenas de leituras, por mais

importantes que elas nos tenham sido. Estão sempre ancoradas, como sugerimos no

início destas páginas, em situações concretas (FREIRE, 2008, p. 25)

Mesmo que a teoria desenvolvida por Freire dê muita importância à prática política, não

poderia preocupar-se autenticamente com a situação concreta, como mostra a citação anterior,

sem seu amplo, diverso e exemplar arcabouço teórico. Poderíamos mesmo dizer que a

bibliografia de Paulo Freire é o esqueleto do corpo de seu trabalho, formado por ossos de ideias,

e a prática concreta são os músculos que o movimentam. Acreditamos que um componente –

não o fundamental, não o único – deste esqueleto é Ortega y Gasset. Assim, nossa intuição

inicial se transforma em ponto de partida para a pesquisa.

Por acreditar nisso, a proposta metodológica de um diálogo entre os dois pensadores nos

permite, em primeiro lugar, melhor compreender alguns conceitos utilizados pelo brasileiro,

além de permitir a melhor interpretação de determinadas propostas feitas pelo espanhol e que,

a nosso ver, podem encontrar certo detalhamento metodológico a partir da prática social

propugnada por Paulo Freire; em segundo lugar, essa afirmação de que Ortega estivesse

presente na bibliografia de Freire, embora não esteja diretamente relacionado à presente

pesquisa, permite perceber pelo menos uma das vertentes de influência do pensamento

orteguiano na constituição da filosofia brasileira, notadamente na Escola Culturalista dos anos

30, tema que nos parece ser pouquíssimo estudado, mas que já foi tratado por Antônio Paim; e

em terceiro lugar, e o que mais interessa nesse trabalho, permite perceber a importância que

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ambos os pensadores atribuíram a um movimento pedagógico que visava a formação do homem

em sua completude, inclusive na prática política, isto é, individual e socialmente; libertadora e,

portanto, transformadora da realidade com fins a uma sociedade mais culta e justa.

Especificamente sobre este trabalho que agora apresentamos, esse esclarecimento

nascido desta pesquisa preliminar, cujos passos procuramos apresentar, se torna relevante, pois

mostra que o diálogo realmente existiu. Em outras palavras, o fato de Freire ter lido Ortega

indica que ele dialogou, em algum momento, com as obras do espanhol, assim como fez com

outros autores (Marx, Barbu, Sartre, Buber, Fromm, Lukács, etc.). O próprio Freire nos motiva

a fazer essa afirmação ao dizer em Ação cultural para a liberdade e outros escritos que “o ato

de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra

nos temas de que ele trata” (FREIRE, 1981, p. 8).

De posse dessa informação, foi construída uma proposta de pesquisa a ser desenvolvida

no mestrado que visasse um possível diálogo entre os dois autores. Portanto, esse trabalho tem

como questão norteadora identificar e elucidar em que medida o diálogo entre algumas

ideias filosófico-pedagógicas de José Ortega y Gasset e do educador Paulo Freire, em suas

semelhanças e diferenças, pode contribuir para pensar o papel da educação na prática

política conscientizadora, libertadora, que não ignora a importância da formação do

indivíduo, nem seu caráter de ser histórico que se faz na sociedade. Em resumo, como é

possível pensar, a partir de ambos, uma metodologia de ação política junto às massas a

partir de um viés educativo?

Além disso, tem razão Danilo Streck quando diz que

hoje, mais do que nunca, nenhum educador pode dar-se por satisfeito em conhecer um

só autor ou uma teoria. As muitas facetas da vida individual e em sociedade exigem o

cotejamento de perspectivas que podem tanto funcionar como complementação

mútua, como iluminadoras de diferenças e de desafio para revisões e recriações

(STRECK, 2011, p. 4).

E conclui mais adiante, sobre a amplitude do escopo relacional da obra de Freire: “basta

ver a grande quantidade de aproximações que sua obra tem proporcionado, desde os clássicos

como John Locke e Rousseau até os autores atuais como Habermas, Enrique Dussel, entre

tantos outros” (Idem, p. 13). É justamente nesse “entre tantos outros” que localizamos a

possibilidade da tessitura de um diálogo humilde com Ortega y Gasset.

Um importante comentário, extraordinariamente sucinto e certeiro, que julgamos

necessário ressaltar sobre as influências filosóficas no pensamento de Freire é feito por Carlos

Alberto Torres no livro Diálogo e práxis educativa: uma leitura crítica de Paulo Freire. Com

ele concordamos e muitas das afirmações que faremos neste trabalho se baseiam

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especificamente no reconhecimento da presença destas influências como pano de fundo das

ideias de Paulo Freire. Assim ele o diz:

A filosofia subjacente do pensamento freiriano se configura, a partir de vertentes

filosóficas distintas, em um amálgama de envergadura, reunindo, em confluência, o

pensamento existencial (o homem como ser em construção), o pensamento da

fenomenologia (o homem constrói sua consciência enquanto intencionalidade), o

pensamento marxista (o homem vive no dramatismo do condicionamento econômico

da infraestrutura, e do condicionamento ideológico da superestrutura) e a dialética

hegeliana (o homem, como Autoconsciência, parte da experiência comum para elevar-

se à Ciência e, por meio do movimento do devir dialético, o que é em si passa a ser

em e para si). No marco desta confluência, a dialética hegeliana apresenta maior peso.

É uma antecipação histórica da “pedagogia dos oprimidos”. [...] Freire, procurando a

definição do homem em íntimo diálogo com Hegel e Marx, assume, com o primeiro

que o homem é consciência de si (e investigue a explicação fenomenológica deste

fato), mas é, também, consciência de outro, e introduz a dimensão da relação

“interpessoal” (a alteridade), retomando o fundamento da corrente personalista

segundo Mounier para, finalmente, aceitar, com Marx, que o homem é força de

trabalho, ainda que diga que só este atributo o define como ser genérico. Consciência

de si, alteridade e força de trabalho definirão o homem (TORRES, 2014, p. 38,

parênteses, aspas e itálico no original, negrito nosso).

Tendo dito isto, precisamos justificar a escolha deste tema e sua importância como

projeto de pesquisa. É patente que vivemos hoje no Brasil uma crise política e social. Crise que

acaba por se refletir em outros segmentos da sociedade e é justamente nesse momento de crise

que atualmente vivemos que acreditamos estar presente a gênese de nossa preocupação com

um tipo de educação que seja importante para a melhoria da sociedade, de engajamento político

consciente e crítico dos cidadãos e que se preocupe, a um só tempo, em tratar dos problemas e

desafios do ambiente coletivo em que nossa intersubjetividade se encontra no dia a dia e na

microgestão da existência, no coração da moral, na autonomia e na liberdade de decidir também

com consciência e crítica. Portanto, nos parece importante meditar sobre a educação com base

em dois pensadores que compreendem a necessidade de combater no processo educativo a falta

de crítica, a imoralidade, a inautenticidade. Acreditamos com otimismo que a educação pode

alterar a sociedade brasileira que julgamos “cancerosa”, ou, para falar como Clóvis de Barro

Filho e Mário Sérgio Cortella em Somos todos canalhas, imoral. Para tecer essa interpretação,

nos valemos dos dois pensadores anteriormente mencionados, direcionando a eles nossos

questionamentos em respeito não só ao leitor como também aos próprios autores e a nossa

própria ética de pesquisa.

O escritor tem esse poderoso privilégio de, realizando o sonho de Einstein, romper as

barreiras do espaço-tempo, para colocar lado a lado dois seres que já não se encontram,

impedidos pela infeliz física dessas linhas limítrofes e criar um ambiente propício, embora

virtual e fictício, para esse “diálogo infinito e inacabável em que nenhum sentido morre”

(BAKHTIN, 2011, p. 409) acontecer.

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Há, ainda, alguns comentários a serem feitos nestas considerações iniciais:

Primeiro: o diálogo que buscaremos encontrar não nos parece, a rigor, encontrável. Isso

significa que não basta ter lido os livros da bibliografia para que todas as aproximações e

distanciamentos que faremos sejam “observadas”. Pelo contrário, é a partir de uma perspectiva,

que é a nossa, é que essa relação dialógica se deixa ver e só existe na medida em que um terceiro

elemento, nesse caso, o pesquisador, coloca em relação estes dois pensadores de tempos e

histórias distintas, estes dois mundos em contradição na busca da síntese. Isso retira deste

trabalho qualquer pretensão de esgotar o assunto — o que não seria mesmo possível – e também

lhe dá o direito do equívoco, assim como lhe garante o privilégio da continuidade da dúvida.

Segundo: conforme é patente na leitura de ambos, existe uma essencial diferença entre

os dois pensadores e que se encontra principalmente na forma como encaram a organização

social. Embora ambos se considerassem adeptos do socialismo, Ortega y Gasset acreditava em

um socialismo liberal renovado e Paulo Freire cultivava um socialismo mais puro e com raízes

bem definidas. Com isso não queremos de maneira nenhuma esgotar a definição da simpatia

política de ambos os autores, mas apenas demarcar que essa diferença não nos é desconhecida,

nem ignorada, embora não seja nosso objetivo enveredar por este caminho. Apesar disso, essa

diferença na interpretação da organização social parece não nos impedir de nenhum modo. Pelo

contrário, enriquece o diálogo, o torna profícuo, pois, se bem sucedidos na empresa que

iniciamos, seremos capazes de perceber que ambos, mesmo com esta nítida diferença em

relação à organização da sociedade, que é pressuposto de seu pensamento, propõem uma

pedagogia, ou seja, um modo de formação humana e política que visa a autonomia, a

conscientização, a libertação e a realização de uma vocação ontológica individual. Os frutos

dessa realização podem ser vistos na melhoria da sociedade com vistas à possibilidade da

construção do futuro e da transformação da sociedade em um ambiente justo e saudável para

todos, onde cada um possa ser si mesmo e socializar-se livremente sem que isso incorra em

qualquer tipo de opressão.

Terceiro: é preciso dizer — para escopo deste trabalho, não trataremos de maneira

aprofundada estas questões — que a meditação e o posicionamento político de Ortega y Gasset

se estendem aproximadamente até 1932/1933, o que podemos considerar, com seus

comentadores atuais, como sendo a “primeira navegação” de sua filosofia. A partir daí,

entretanto, ao iniciar o que se classifica como “segunda navegação”, na qual a razão histórica

passa a ser o centro de sua meditação, o espanhol abandonará essa preocupação direta com a

política. A esse respeito, José Maurício de Carvalho na introdução do livro Ortega y Gasset e

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nosso tempo, nos ensina o seguinte: “nos primeiros anos de maturidade intelectual, de 1914 até

1932, Ortega acreditava na solução política para renovar a Espanha e a Europa, ou melhor, a

Espanha pela Europa, depois desistiu dessa estratégia” (CARVALHO, 2016, p. 21). Veremos

na sua biografia, que existem outros motivos mais práticos para este abandono, mas que, de

fato, ele é definitivo.

Ora, isso em nada atrapalha o movimento que aqui propomos, pois esse abandono tem

a ver com uma sociedade estrangeira de outra época, muito diferente da nossa. Aliás, não há

nenhum tipo de implicação, logicamente falando, que ligue o fato de Ortega ter abandonado a

política à conclusão de que tenhamos nós também que seguir este caminho. A inovação que um

intérprete pode fazer da genialidade de um autor está relacionada à capacidade de

reconhecimento daquilo que é viável e do que não é em relação à sociedade própria do que

interpreta. O que claramente se aplica também a Freire. Se assim não fosse, só haveria repetição

ou criação. A primeira parece ser o cariz mais frequente dos estudos de nossos dias, a segunda

é, provavelmente, um dos trabalhos de Hércules, tanto no que diz respeito à dificuldade e

perigo, quanto no que tem de mitologia e intervenção divina. O que nos resta, o que poderia ser

considerado como algo possivelmente inovador, é apenas a perspectiva, o ponto de vista que

defendemos. Ademais, é justamente isso que nos ensina Ortega y Gasset:

1º O homem constantemente faz mundo, forja horizonte. 2º Toda mudança do mundo,

do horizonte, traz consigo uma mudança na estrutura do drama vital. O sujeito

psicofisiológico que vive, a alma e o corpo do homem podem não mudar; não

obstante, muda a sua vida, porque mudou o mundo. E o homem não é sua alma e seu

corpo, senão sua vida, a figura de seu problema vital” (ORTEGA Y GASSET, 1994c,

p. 34)

Paulo Freire também nos diz algo a esse respeito, já que ele entende de maneira

semelhante que o grande desafio humano da construção da história

é assumir o seu tempo, integrar-se, inserir-se no seu tempo. Para isso, porém, mais

uma vez, eu chamo a atenção dos moços para o fato de que a melhor maneira de

alguém assumir o seu tempo, e assumir também com lucidez, é entender a história

como possibilidade (FREIRE, 1991, p. 89).

A possibilidade, aqui, se descortina para nós como o possível diálogo entre os dois

pensadores.

Ao comentar sobre os três elementos que Freire destaca em A importância do ato de ler

(1982) — a saber, os signos gráficos, o contexto e a relevância do mundo do leitor na leitura —

Danilo Streck chama atenção para o caráter de um verdadeiro diálogo que muito nos importa

nesse trabalho, pois resume aquilo a que nos propomos fazer. Para ele, a importância deste

terceiro elemento

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significa entabular um diálogo franco com as palavras lidas a partir da própria

experiência como educador ou profissional de outra área. Significa permitir que as

palavras encontrem experiências nas quais possam ganhar corpo e concretude, o que

não implica necessária e automaticamente concordância com o texto lido, mas

abertura para a o diálogo. Assim também se pode compreender porque existem tantas

entradas para ler a obra de Paulo Freire ou de qualquer outro autor. Seria um equívoco

tentar estabelecer uma ordem de importância nas obras de Paulo Freire ou uma espécie

de “canon” das principais obras. A relevância e a significação serão dadas pelo

encontro entre o leitor e a obra (STRECK, 2011, p. 16, aspas no original).

De certa forma, isso nos lembra o que diz Ortega y Gasset na introdução de

Meditaciones del Quijote: “as coisas não nos interessam porque não acham em nós superfícies

favoráveis onde refratar-se, e é mister que multipliquemos as faces de nosso espírito a fim de

que temas inumeráveis cheguem a feri-lo” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 314).

Caminhos metodológicos da pesquisa empreendida

O caminho seguido por nós foi apresentar ao leitor nossos autores de referência para que

ele se familiarizasse com alguns aspectos de sua biografia que acreditamos serem importantes

para compreender elementos de sua bibliografia; se seguirão, então, dois capítulos em que

procuraremos apresentar as principais ideias dos autores, indicando já uma semelhança entre

ambos a partir da análise que tanto Ortega quanto Freire fazem da sociedade de seu tempo, dos

problemas políticos e nacionais e de como os dois enxergam na educação uma eficaz forma de

atuação nestes problemas. Em seguida, procuraremos apontar algumas semelhanças específicas

que servem ao objetivo do nosso trabalho, a saber, a de interpretar o que vimos chamando de

“metodologia de atuação política junto às massas” no pensamento dos autores e que significa

uma aliança entre educação e política com fins à transformação da sociedade.

Especificamente a respeito do método que escolhemos, procuramos mesclar aspectos da

pesquisa bibliográfica com a ideia da tessitura de um diálogo. Assim, procuramos atribuir à

metodologia caráter dialógico, estando de acordo com nossa questão orientadora, já

anteriormente apresentada. Para isso, partimos de dois pontos principais: a) em respeito e dando

seguimento à metodologia que vimos utilizando na pesquisa sobre o pensamento orteguiano

desde meados de 2013 e b) a partir das discussões e dos estudos, principalmente das obras de

Mikhail Bakhtin, no Grupo de Estudos Críticos do Discurso Pedagógico.

A revisão de literatura empreendida antes do início da pesquisa, em bibliotecas e na

internet, apontou a quase inexistência de trabalhos em que se analisassem a proposta destes dois

autores em conjunto. A única pesquisa encontrada a esse respeito foi um trabalho de conclusão

do curso de especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea da UFJF, intitulado

Oprimido, homem-massa e o medo da liberdade, que foi redigido por Maria Carolina Figueira

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Neves dos Santos Vilela no ano de 2013 e orientado pelo professor Juarez Sofiste, cuja presença

em nossa banca de qualificação e defesa muito nos honra. Essa dificuldade em encontrar textos

que relacionassem as perspectivas destes autores se transformou, para nós, de um lado, em

dificuldade, mas, de outro, em possibilidade. Assim, a hipótese nasce da revisão de literatura,

bem como da própria pesquisa bibliográfica realizada em pesquisas anteriores.

Nota-se, então, que o primeiro aspecto de nossa pesquisa é o bibliográfico. Segundo Eva

Maria Lakatos e Marina de Andrade Marconi em seu clássico Metodologia do Trabalho

Científico, a pesquisa bibliográfica se caracteriza como “levantamento de toda a bibliografia já

publicada [...]. Sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo aquilo que

foi escrito sobre determinado assunto [...]” (LAKATOS, MARCONI, 1991, p. 43). Esse contato

nos foi de vital importância para que pudéssemos formular a hipótese de maneira consistente,

como lembra outro clássico da metodologia A construção do saber: manual de metodologia

científica em ciências humanas de Christian Laville e Jean Dionne. As hipóteses de que

partimos tem uma natureza aberta, de questionamento e dúvida, mas de dúvida refletida, séria

e longamente aprofundada, escolhida na constelação de outras dúvidas que poderiam nortear

esta pesquisa. O que fazemos, neste momento, é, aproveitar uma sugestão kantiana, tecer um

juízo hipotético, condicional. Desse modo, diante da imensa quantidade de hipóteses possíveis,

o pesquisador “retém a que lhe parece ser a melhor, a que lhe parece suficiente para progredir

em direção à compreensão do problema e à sua eventual solução” (LAVILLE, DIONNE, 1999,

p. 45). O que nos lembra também o que disse Descartes na parte terceira do Discurso do Método:

Imitava nisso os viajantes que, estando perdidos em uma floresta, não devem ficar

dando voltas, ora para um lado, ora para outro, menos ainda permanecer em um local,

mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por

quaisquer motivos, ainda que no início só o acaso talvez haja definido sua escolha:

pois, por este método, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão a

algum lugar onde provavelmente estarão melhor do que no meio de uma floresta

(DESCARTES, 2001, p. 29).

Nessa alegoria cartesiana, nossa hipótese de trabalho é o caminho que nos leva para

algum lugar, ainda que não o conheçamos. Este algum lugar será o resultado de nossa pesquisa

e a confirmação ou exclusão de nossa hipótese fundamental, portanto, uma resposta. A ideia da

resposta é (e deve ser) considerada, pois, seja ela positiva ou negativa, tem importância

fundamental no movimento da pesquisa. Respeitando a dialogicidade do método, de que logo

trataremos, é da resposta vislumbrada que vão surgir novas perguntas, alimentando assim o

muito fértil movimento dialético. Desse modo, ainda que a hipótese formulada, ao final da

pesquisa, não se apresente como verdadeira, é importante reconhecer que o esforço da pesquisa

não é um trabalho em vão, pois “os sistemas passam, mas o esclarecimento que eles possibilitam

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pelo aprofundamento dos problemas permanece como conquista da razão” (CARVALHO,

SOUZA, 2016, p. 46).

O segundo aspecto da pesquisa que procuramos desenvolver é o que apresentamos como

sendo um método dialógico e que procuramos seguir a partir das discussões realizadas no Grupo

de Estudos liderado pela orientadora. Esse método procura considerar o que disse Mikhail

Bakhtin em Metodologia das ciências humanas, quando propõe que “o objeto das ciências

humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é

inesgotável em seu sentido e significado” (BAKHTIN, 2011, p. 395, itálico no original). Dessa

forma, nossa pesquisa se fundamenta nos textos de Ortega e Freire, nas ideias e conceitos

acessíveis através dos livros, procurando respeitá-los como uma espécie de expressividade post-

mortem que nos permite continuar a extrair e forjar3 significados, já que “o ser da expressão é

bilateral: só se realiza na interação de duas consciências [...]” (Ibidem). Uma síntese desse

pensamento podemos encontrar no prefácio de Ernani Maria Fiori para a 47ª edição da

Pedagogia do oprimido, notadamente embebido do pensamento freiriano. Para ele, “os

dialogantes ‘admiram’ um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele coincidem; nele põem-se

e opõem-se” (FIORI, p. 16 in FREIRE, 2008, aspas no original).

Portanto, o que nos propomos a fazer é colocar dois pensadores em diálogo, fazê-los

habitar o mesmo mundo, para que possamos extrair novos sentidos, como um alquimista

experimentaria dois ingredientes para criar uma nova poção. Nesse sentido é que Bakhtin nos

pede cautela, pois “se transformarmos o diálogo em um texto contínuo, isto é, se apagarmos as

divisões das vozes (a alternância de sujeitos falantes), [...] o sentido profundo (infinito)

desaparecerá (bateremos contra o fundo, poremos um ponto morto) (BAKHTIN, 2011, p. 401,

parênteses no original). Por isso, procuraremos amiúde nos valer de citações, deixando que os

autores “falem por si” e que, a partir dessa fala, possamos nós perceber os sentidos através de

uma perspectiva que não é neutra, mas axiológica. Para que essa valoração seja eticamente

responsável, traremos também outros dialogantes, comentadores de ambos os autores, que nos

darão aporte necessário para essa interpretação axiológica, além, é claro, de inserirmo-nos nós

mesmos nela.

A ideia do elemento valorativo compõe o processo de compreensão como um dos atos

particulares que a meditação bakhtiniana observa nesse processo. Sua classificação apresenta-

se da seguinte maneira:

3 Utilizamos o verbo “forjar”, tendo em mente “lugar onde se trabalha o metal”, do francês Forge, ou ainda

“oficina”, “ofício” ou “arte”, do latim fabrica (CUNHA, 2007, p. 364).

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1) A percepção psicofisiológica do signo físico (palavra, cor, forma espacial). 2) Seu

reconhecimento (como conhecido ou desconhecido). A compreensão de seu

significado reprodutível (geral) na língua. 3) A compreensão de seu significado em

dado contexto (mais próximo e mais distante). 4) A compreensão ativo-dialógica

(discussão-concordância). A inserção no contexto dialógico. O elemento valorativo

na compreensão e seu grau de profundidade e de universalidade (BAKHTIN, 2011, p.

398, parênteses no original).

Dessa forma, se nos ancorarmos em sua reflexão antes de propriamente sairmos a

navegar, podemos apresentar de maneira consistente o que a proposta de um método dialógico

nos permite fazer: compreender ativamente aquilo que nos foi apresentado através da pesquisa

bibliográfica, além de inserir os dados em um contexto dialógico, ou seja, fazendo com que as

ideias dos sujeitos de nossa pesquisa – expressivos e falantes — façam parte de um mesmo

“espaço”, de um mesmo contexto, realizando o entrechoque de ambas, e, como em um

acelerador de partículas, observar nascer novamente o universo. A partir disso, acreditamos na

possibilidade de apontar qual é o grau de profundidade desse diálogo, pois é a partir dessa

profundidade que seremos capazes de forjar novos sentidos. Em outras palavras, a dialogicidade

do método que consideramos nessa pesquisa, pode ser identificado como o ativismo dialógico

propugnado por Bakhtin na obra anteriormente mencionada (Idem, p. 400).

Ao propor tal metodologia, não temos a pretensão de apresentar um método inovador

de pesquisa. Parece-nos necessário reconhecer que, a rigor, toda pesquisa bibliográfica,

principalmente no campo da Filosofia e disciplinas afins, vale-se desse método dialógico, ainda

que ele não seja apresentado explicitamente, seja na comparação de conceitos de autores

distintos – que é o caso aqui – seja na dissecação esmiuçada dos conceitos de um mesmo autor,

no qual o próprio analista que disseca, dialoga ao escolher este ou aquele ponto de maior ou

menor importância. Isso, de certa forma, nos aproxima mais do método fenomenológico, pois,

ainda que parta de perspectiva singular, procura reduzir quaisquer ruídos que sejam

pontualmente pessoais, procurando fazer da pesquisa um movimento suficientemente rigoroso

para que possa servir, se for o caso, a outras perspectivas.

Os temas que estão propostos para o diálogo de nossos autores, temas que surgiram da

pesquisa bibliográfica, dizem respeito à compreensão de ambos em relação a determinados

assuntos. Neste momento, analisamos a perspectiva pedagógica e política e a relação que ambas

mantém no ponto de vista dos nossos autores. A nosso ver, estes são dois aspectos de contato

em que o diálogo é ponte, alegoria que emprestamos de Bakhtin, em que podemos notar um

caminho que liga duas pessoas que se expressam. Entretanto, a arena discursiva, também

alegoria bakhtiniana, nos ensina que não há apenas concordância no diálogo e que fazemos

alianças e inimigos ali.

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Nosso movimento de pesquisa seguiu este caminho: no início, realizamos a revisão de

literatura das obras de Ortega e Freire. Desta revisão, reduzimos as obras fundamentais de

ambos que utilizaríamos como base de pesquisa. Em Ortega, selecionamos España

Invertebrada, La rebelión de las masas e Misión de la Universidad. Estes três textos estão

compreendidos no que se considera, unanimemente entre os comentadores orteguianos, ser a

primeira fase de seu pensamento intitulada “primeira navegação” e que se estende até os escritos

de 1932. Entretanto, a partir de uma leitura sistematizada e completa da obra orteguiana, feita

por diversos autores, em especial Margarida Amoedo em Portugal e José Maurício de Carvalho

no Brasil, entende-se que Misión de la Universidad já começa, pelos aspectos contidos no texto,

a tratar de assuntos característicos da “segunda navegação”. O que estes dois comentadores

concordam, no entanto, é que não há, propriamente, um rompimento das duas fases da

meditação orteguiana. Há apenas uma mudança de perspectiva que traz uma nova interpretação

sem, em nenhum momento, negar, alterar ou excluir a que foi feita anteriormente. O que

acontece é uma complementação das ideias a partir de um novo ponto de observação.

Trataremos desse assunto com mais cuidado no próximo capítulo.

Em Freire, elegemos Educação e atualidade brasileira, Educação como prática da

liberdade e Pedagogia do oprimido. Isso não significa que tenhamos deixado de lado outras

obras dos autores, mas que partimos destas obras como pilares seguros de interpretação por

julgarmos que elas são as mais representativas do pensamento de ambos. Especificamente em

relação ao brasileiro, por considerar como verdadeiro o que disse Afonso Celso Scocuglia em

A construção da história das ideias de Paulo Freire, isto é, de que existem “‘vários’ Paulo

Freire” (SCOCUGLIA, 1999, p. 31, aspas no original), foi preciso fazer essa delimitação para

não cometermos nenhum equívoco interpretativo, de modo que nossa proposta de pesquisa se

concentrará principalmente nas ideias que encontramos nestas três obras mencionadas.

Em segundo momento, partimos para a pesquisa bibliográfica sobre a vida dos autores,

pois acreditamos, já nos baseando em nosso referencial teórico, que é indispensável conhecer

alguns aspectos do movimento vital em que viveram para compreendermos determinados

conceitos e ideias que forjaram. Nesse sentido, a literatura sobre Freire foi abundante e de fácil

acesso. O mesmo não ocorreu com Ortega y Gasset. Os trabalhos que tratam da vida de Dom

José são bastante escassos no Brasil e de difícil aquisição.

Em terceiro momento, passamos propriamente a tratar de aspectos específicos, iniciando

pela leitura das obras de Ortega y Gasset selecionadas anteriormente. É preciso dizer que toda

a bibliografia de autoria de Ortega utilizada neste trabalho foi retirada da biblioteca da UFSJ e

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que só se encontra disponível em espanhol nos 12 tomos que compõem as Obras Completas

editada pela Alianza (antigamente) e pela Taurus (atualmente). Como não existe essa coleção

traduzida para o português, todas as citações de autoria de Ortega que utilizarmos estão sendo

por nós traduzidas com cuidado e seriedade. No momento final de pesquisa, levado por

considerações da banca de qualificação, fomos tentados a reverter as citações no original em

espanhol. Entretanto, devido ao pouco tempo restante, decidimos, ao menos desta vez, por

manter nossa tradução.

Dando seguimento, utilizamos as três obras basilares que selecionáramos, bem como de

outros textos do próprio autor e de comentadores reconhecidos, a fim de apresentar ao leitor,

de maneira geral, como se configura o pensamento do autor, pois acreditamos ser impossível

conhecer o pensamento orteguiano solidamente com a leitura destas poucas obras a que

recorremos. Levamos em consideração a advertência de Margarida Amoedo: “assinalamos a

dificuldade que decorre de ser preciso percorrer a obra inteira de Ortega para dela termos um

mínimo de compreensão [...]” (AMOEDO, 2002, p. 28).

O mesmo procedimento foi realizado com a bibliografia de Paulo Freire, guardando,

contudo, algumas diferenças estruturais, pois, como a leitura de Ortega y Gasset já nos era

conhecida há algum tempo e a de Freire menos, refizemos várias vezes a leitura das três obras

escolhidas, já que sentimos a necessidade de voltar com mais vagar para melhor compreender

este ou aquele conceito ou pensamento. Mais especificamente, empreendemos quatro vezes a

leitura de Educação e atualidade brasileira, três vezes a de Educação como prática da

liberdade e cinco vezes a de Pedagogia do oprimido, sendo que esta última, a partir da segunda

leitura, foi feita de trás para frente, ou seja, partindo do quarto capítulo em direção ao primeiro.

Expliquemos esta nossa escolha.

O quarto capítulo de Pedagogia do oprimido, intitulado A teoria da ação antidialógica

nos parece ser o ponto fundamental de toda obra, de modo que, em nossa perspectiva, todo o

livro deve ser lido com vistas ao que ali é dito e afirmado. Além disso, vários conceitos só são

explicados neste último capítulo, o que nos parece causar certo embaraço em uma compreensão

mais concreta deles quando aparecem pela primeira vez. Não queremos dizer, obviamente, que

o autor tenha se equivocado na escolha da ordem de apresentação dos capítulos, mas apenas

que, para nós, a leitura assim realizada nos permitiu melhor compreender a ideia principal do

livro, a saber, a de se configurar - como afirmado pelo próprio autor na obra ao lembrar uma

afirmação de Lênin (FREIRE, 2016, p. 196) - como teoria revolucionária. Assim, se

considerarmos que o quarto capítulo trata das teorias de ação dialógica e antidialógica, temos

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uma definição primeira e completa destes conceitos que permeiam toda a obra. Em seguida, se

passamos a leitura do terceiro capítulo, A dialogicidade: essência da educação como prática

da liberdade, além de melhor compreendermos a significação do título, percebemos que a

preocupação do autor é demonstrar como a teoria da ação dialógica (tema do quarto capítulo)

deve ser aplicada na prática. É neste capítulo que tomamos contato com o método dos temas

geradores e temas dobradiça, bem como a diferença entre círculos de cultura e círculos de

investigação temática. No segundo capítulo, A concepção “bancária” da educação como

instrumento de opressão. Seus pressupostos, sua crítica, apresenta ao leitor o perigo do

“bancarismo”, melhor compreendido após a definição da “teoria da ação antidialógica”. Na

verdade, este segundo capítulo, como o terceiro, se configura como uma demonstração de como

a teoria da ação antidialógica (esclarecida completamente no quarto capítulo) se manifesta na

prática. Por fim, o primeiro capítulo, Justificativa da Pedagogia do oprimido, nos parece se

adequar melhor como última leitura, já que o leitor se encontra realmente preparado para

compreender a “justificação” que Freire empreende. Neste capítulo, o autor apresenta uma série

de afirmações que só fazem sentido se o leitor já fez uma leitura de reconhecimento do livro ou

se ele é lido do modo como estamos propondo. Assim é, porque, em nosso olhar, o recifense

não procura explicar suas afirmações nesse momento, o que só é feito no último capítulo.

Finalmente, acreditamos que é preciso ler a Pedagogia do oprimido na estrutura em que se

apresenta, mas refazer a leitura invertendo a posição dos capítulos, pois assim se esclarece

perfeitamente o objetivo freiriano presente no livro: a de tecer pormenorizadamente e com

aparente sistematização conceitual uma teoria que sirva, como toda teoria, a uma prática

revolucionária.

No quarto momento da pesquisa, tendo sido realizada a apresentação dos principais

conceitos e ideias dos autores, partimos para a categoria aproximativa que elegemos para tratar

de determinados aspectos que eram possíveis de serem relacionados, dentre tantas diferenças

encontradas, nos modos de pensar de Ortega y Gasset e Paulo Freire, para que pudéssemos nos

fundamentar nessa análise e tecer uma interpretação de determinados problemas recorrentes na

sociedade – como por exemplo a inexperiência política e a incultura. Essa categoria vimos

chamando de metodologia de ação política junto às massas ou conscientização. A conjunção

coordenativa “ou” que utilizamos aqui, indica “conscientização” como uma alternativa, pois

compreendemos que os elementos que compõem a metodologia de ação política são os mesmo

que encontramos no conceito de “conscientização” na obra de Freire, conforme apresentaremos

adiante. Aliás, ao alternar entre os conceitos, já podemos entrever no título uma possível

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semelhança. Para a redação deste capítulo, recorremos aos textos em que Ortega y Gasset trata

mais detidamente de política, já que, ao contrário de Freire, encontramos uma divisão bastante

demarcada na obra de Ortega em relação à prática política, conforme explicaremos no próximo

capítulo, que ele abandona de uma vez por todas após desistir de seu cargo de deputado em

1932. Para este estudo, portanto, nos valemos de dois textos fundamentais, mas não os únicos,

em relação à concepção política do espanhol, que são Prospecto de la “Liga de Educación

Política Española” e Vieja y nueva política, ambos de 1914, momento em que vivia na Espanha

uma geração de intelectuais preocupados com o futuro político do país, cujo líder era Ortega y

Gasset. Nossa proposta, neste capítulo, foi a de apresentar como a forma de atuação política

que ambos acreditam ser a mais eficaz para fazer frutificar no povo o interesse pelos debates

sobre os problemas nacionais se assemelham.

Procuramos, em seguida, fazer uma breve incursão pela vida de nossos autores, a fim

de apresentar ao leitor em que consistia sua circunstância social e histórica, pois acreditamos,

e nisso também temos seu respaldo, que a vida é sempre datada e contextualizada, embora seja

preciso olhar com cuidado para qual fato vital é de fato relevante para esse tipo de reflexão.

Isso nos encaminhou para um capítulo em que foi evidenciado um aspecto do pensamento de

José Ortega y Gasset, a saber, o reconhecimento de uma crise, inédita na história, ocorrida na

primeira metade do século XX, cujo protagonista é denominado pelo espanhol “homem-

massa”. Este indivíduo é um parasita social, agindo como criança mimada, bárbaro

especializado e senhorio satisfeito. Em uma palavra, é a encarnação da incultura. O combate a

essa parasita, para o espanhol, encontra-se na atuação da instituição universitária desde que sua

missão esteja devidamente esclarecida. Esta missão é a de transmitir a cultura, além de ensinar

ao homem técnicas profissionais e fazer frutificar sua vocação científica.

Fizemos o mesmo com a leitura de Freire e o estudo de sua concepção político-

pedagógica que perpassa pela compreensão dos níveis da consciência e sua relação necessária

com a industrialização do país que ocorria na época em que ele refletia pela primeira vez sobre

o problema, embora, como veremos, essa concepção da consciência tenha acompanhado suas

ideias ao longo de sua vida. O avanço da consciência precisa do trabalho educativo constante

para transitivar-se criticamente, o que significa a compreensão do homem no mundo, social e

historicamente. A finalidade da transitivação da consciência encontramos em Pedagogia do

oprimido, obra na qual compreendemos que a conscientização deve visar a libertação do homem

da opressão, de superação da alienação através da revolução cultural.

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No último capítulo, o leitor poderá encontrar um ensaio de aproximação entre ideias

muito específicas dos dois pensadores no que diz respeito à conscientização, à ação política

com vistas à libertação do homem e sua relação com a educação, que é o que temos chamado

de “metodologia de ação política junto às massas”. Neste momento, procuramos argumentar no

sentido de apresentar ao leitor que é possível tecer algumas relações e no que consistem estas

aproximações. Além disso, evidenciamos também as diferenças ou pontos de afastamento das

duas perspectivas e como, a partir deste reconhecimento, elas se configuram como modos de

pensar próprios de sua época e sua circunstância. Ao final deste último capítulo, apresentamos

brevemente, na tentativa modesta de um “ir além”, uma proposta de aliança entre educação e

política que englobe os quatro pontos de semelhança que encontramos neste trabalho,

juntamente com outros dois que são específicos de cada autor, mas que podem complementar-

se.

Assim é, pois acreditamos que ao iniciar uma conversa com um desconhecido, é muito

pouco provável que comecemos por dizer nossa data de nascimento, quando entramos na

Universidade ou o ano em que nos casamos. O mais comum é que, para nos definirmos,

venhamos a destacar algo que fizemos ou fazemos — como dizer que cursamos Filosofia ou

que tocamos bombardino na banda municipal -, destacar dificuldades que enfrentamos,

situações inusitadas que vivemos. Mencionar a atividade da qual nos ocupamos (como o

trabalho) dá a nosso interlocutor uma primeira ideia de certas características que podem

encontrar em nós — além de nos lembrar que as mudanças ocorridas nos transformaram no que

somos hoje. Em contrapartida, é comum encontrarmos, quando conhecemos pela primeira vez

um autor, uma lista de datas seguidas de acontecimentos considerados importantes, como seu

nascimento, o detalhamento anual da redação de suas principais obras e sua morte.

Esse tipo de biografia parece ser incapaz de fornecer ao leitor as informações necessárias

para que ele venha a compreender muitos detalhes importantes da obra que seriam mais

facilmente observados a partir de uma certa intimidade com a vida do autor. Ora, como entender

que um rebento de família tão rigorosamente religiosa como Nietzsche diga que a modernidade

matou Deus apenas tendo observado o ano de redação de Gaia Ciência e Assim falava

Zaratustra? Como explicar a importância do midle Wittgenstein para a compreensão do early e

late Wittgenstein? Como entender a literatura filosófico-religiosa de C. S. Lewis sem ter se

emocionado com a vibrante história de sua conversão em Surpreendido pela alegria? Esse tipo

de metodologia é utilizada também por Margarida Amoedo em seu estudo sobre a biografia

orteguiana. Seguindo a proposta de Emiliano Aguado, ela classifica dois tipos de biografia: a

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“biografia essencial” – o desenvolvimento da personalidade relacionada à busca de uma ideia

– e a “biografia de pormenores” – uma biografia de contingências, focada nos acontecimentos

vitais que não guardam, propriamente, ligação com as ideias, com os conceitos. Diz a autora,

que é preciso “interrogar a gênese das teses orteguianas na relação indelével e intencional que

têm com a vida do seu autor” (AMOEDO, 2002, p. 30). É o que procuraremos fazer com nossos

autores de referência ainda que acreditemos, com Ortega, que “[...] toda vida é segredo e

hieróglifo” (ORTEGA Y GASSET, 1993b, p. 343).

Isso não significa que as datas não sejam importantes. Obviamente um pensador do

século XIX diz coisas muito diferentes de um pensador do século XX, da mesma maneira que

um físico do século XVI não pode pensar do mesmo modo que pensa um físico do nosso século.

Da mesma maneira, dizer que Sartre tenha vivido em anos de grande tribulação no mundo –

período da Segunda Grande Guerra – já nos permite compreender, em certa medida, do que

trata sua filosofia, mas não tanto quanto a leitura do autobiográfico As Palavras. O que acontece

é que esse primeiro conhecimento que nos é fornecido pelas datas, nesse quase trabalho de

historiador, é simplesmente insuficiente, assim como um pequeno copo de água é pouco para

quem tem muita sede. Marc Bloch nos ensinou muito sobre isso:

Nenhum historiador [...] se contentará em constatar que César levou oito anos para

conquistar a Gália e que foram necessários quinze anos a Lutero para que, do ortodoxo

noviço de Erfurt, saísse o reformador de Wittenberg. Importa-lhe muito mais atribuir

à conquista da Gália seu exato lugar cronológico nas vicissitudes das sociedades

europeias; e, sem absolutamente negar o que uma crise espiritual como a de irmão

Martinho continha de eterno, só julgará ter prestado contas disso depois de ter fixado,

com precisão, seu momento na curva dos destinos tanto do homem que foi seu herói

como da civilização que teve como atmosfera (BLOCH, 2002, p. 41).

Por isso, optamos por apresentar nossos autores de referência, o filósofo espanhol José

Ortega y Gasset e o educador brasileiro Paulo Freire, de modo que fique evidenciado, ainda que

de maneira sucinta, pois este não é o objetivo deste trabalho, a importância que certos

acontecimentos vividos tiveram em sua vida, como é o caso do exílio, experiência pela qual

ambos se (auto) submeteram por motivos bastante semelhantes. Além disso, a própria forma de

pensar o ser humano que ambos partilham nos leva a fazer um trabalho desse tipo, já que para

eles o homem é inseparável de seu meio, de seu momento histórico, da localização espaço-

temporal em que se encontra. Essa forma de apresentação dos dialogantes que aqui serão

ouvidos é a que mais se ajusta à pesquisa que este trabalho empreende. É quase que, sentados

ali, ao redor da mesa, diante de nós que os ouvimos, eles comentassem um pouco da sua história,

de sua vida mesma, para esclarecer um pouco mais um conceito-chave de seu pensamento.

Ademais, isso parte de uma compreensão da vida como fazer contínuo, como disse o professor

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José Maurício de Carvalho em Vivendo o sentido: “tratar a vida como processo significa que

para entendermos uma pessoa precisamos conhecer sua história” (CARVALHO, 2017, p. 4).

Sobre a importância de utilizar fatos da própria vida para explicar sua reflexão sobre a

educação, Freire comenta direta e humildemente: “não quer dizer que eu ache que a minha vida

é tão importante que eu deva falar dela. Ela porém é tão importante quanto a de qualquer pessoa

compreendida em um contexto social” (FREIRE, GUIMARÃES, 2011, p. 120). Do mesmo

modo, Ortega y Gasset nos ensina em Pasado y porvenir para el hombre actual, além de muitos

outros textos, que o homem “em vez de natureza tem história” (ORTEGA Y GASSET, 1997b, p.

646), o que significa que o movimento feito pelas ideias e crenças e pela própria cultura nos adverte

que não basta estudar o homem no presente, mas, para conhecê-lo, para saber porque pensa como

pensa, é preciso estudar a sua história, conhecer seu passado. Isso quer dizer que “homem” não é

um conceito abstrato, mas um ser de carne e osso, com desejos, alegrias e frustrações

peculiaríssimos. Dessa maneira, na equação que permite conhecer a realidade primária do homem,

que é sua vida, o passado tem fundamental importância por ser o único termo fixo nela, como disse

Ortega, permitindo partir de uma base sólida de interpretação. O espanhol diz ainda que “minha

obra é, por essência e presença, circunstancial. Com isto quero dizer que o é deliberadamente [...]”

(ORTEGA Y GASSET, 1993b, p. 347). Para além disso, acreditamos ser de grande importância

considerar o seguinte comentário de Margarida Amoedo:

É [...] legítima a conclusão de que o entendimento adequado da filosofia orteguiana

depende de um conhecimento suficiente de quem era o seu autor, em particular, de

qual era a circunstância deste a que, em cada momento, aquela ia correspondendo

concretamente. Na verdade, se é importante no estudo de qualquer obra a investigação

sobre a biografia do seu autor, no caso de Ortega torna-se indispensável, por força de

sua doutrina primordial, conhecer as suas circunstâncias geográfica e temporal, os

acontecimentos que foram motivando a sua interpretação (salvação), em suma, o que

interpelou aquele homem de carne e osso e foi condição de possibilidade de todos os

seus gestos e opções, incluindo a sua peculiar reflexão filosófica (AMOEDO, 2002,

p. 225, parênteses e itálicos no original).

Se quiséssemos justificar essa proposta de uma terceira maneira, isto é, com um terceiro

autor, poderíamos evocar o que diz Bakhtin em Metodologia das ciências humanas: “a interpretação

autêntica em literatura e nos estudos literários sempre é histórica e personalizada” (BAKHTIN,

2011, p 402).

A respeito dos textos biográficos consultados, Paulo Freire praticamente nos presenteia

com sua biografia, além de obras conceituais, como é o caso de Educação e atualidade

brasileira (1959), Pedagogia do oprimido (1970) e Pedagogia da autonomia (1996), dedica-se

também a obras autobiográficas, algumas “epistolares”, que nos dão detalhes sobre sua vida e

sobre a escrita daquelas, como é o caso de Pedagogia da esperança (1992), Cartas a Cristina

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(1994), Aprendendo com a própria história I (1987), Aprendendo com a própria história II

(2000) e Cartas à Guiné-Bissau (1977), por exemplo.

Em relação a Ortega y Gasset há alguns problemas nesse sentido, dos quais a dificuldade

de encontrar no Brasil obras suas e sobre ele e a de, mesmo diante da vastidão de sua obra, não

haver um trabalho autobiográfico, a não ser um breve comentário que faz Ortega a uma edição

de suas obras completas no ano de 1932 pela Espasa-Calpe, são os principais. Para ter o que

chamamos aqui de intimidade com o autor, tivemos de recorrer principalmente à Revista de

Estúdios Orteguianos da Fundação Ortega y Gasset/Gregorio Marañon de Madri, notadamente

a mais importante e fidedigna instituição/revista sobre Ortega y Gasset na atualidade — que

traz sempre uma seção de documentos de archivo e itinerario biográfico — e ao sítio da mesma

fundação na internet. Além dessa dificuldade inicial, temos ainda de garimpar em seu anterior

os artigos que falam especificamente sobre a vida de Ortega. Alguns exemplos são Ortega y la

educación: perfiles de una trayectoria e Ortega y Gasset como representante de la

preocupación social de una generación. Vieja y nueva política (2001), El Ortega que conocí e

Benítez, Ortega y la fundación de la Facultad de Estudios Generales de la Universidad de

Puerto Rico (2010). Um auxílio indispensável na pesquisa sobre Ortega y Gasset foram os dois

mais importantes livros sobre a obra do espanhol no Brasil, Introdução à filosofia da razão vital

de Ortega y Gasset (2002) e Ortega y Gasset e o nosso tempo (2016), ambos do professor José

Maurício de Carvalho que nos forneceu não somente as obras descritas mas também se manteve

aberto de boa vontade para dialogar sobre o tema e esclarecer nossas muitas dúvidas. Outra

fonte que tivemos a felicidade de encontrar foi a – no Brasil - raríssima obra Cartas de un joven

español, uma compilação das cartas enviadas por Ortega y Gasset entre os anos de 1891 a 1908

(período que se estende de seus oito anos até seu vigésimo quinto aniversário) para seus pais,

sua noiva e outros correspondentes, totalizando duzentas epístolas. A obra de quase oitocentas

páginas foi compilada por sua filha Soledad Ortega e nos custou pouco mais de um ano de

buscas e pesquisas frequentes para encontrá-la.

Finalmente, os acontecimentos que elencamos a seguir para apresentar nossos autores

foram os que consideramos mais exemplificadores da relação entre a experiência vivida e a

significação de sua prática intelectual com vistas à proposta de um diálogo entre ambos. Isso

significa que as ocorrências mencionadas são as que livremente julgamos as mais importantes,

embora possam não o ser objetivamente. Além disso, interrompemos esta narrativa no momento

mesmo em que atingimos a data de redação da última de nossas obras de referência, pois o

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tempo é escasso e nosso trabalho não tem preocupação propriamente biográfica, apresentando

somente um breve relato da continuidade da vida destes autores.

Isso que denominamos de intimidade com a vida do autor só nos importa na medida em

que é interpretado em seu sentido original — “fazer penetrar em” – de modo a nos permitir a

interpretação coerente de seu pensamento, suas ideias, na busca das raízes vitais de suas

reflexões. Em outras palavras, importa-nos mais a relação que os fatos mantêm, ou podem

manter, com esta ou aquela forma de pensar, do que os fatos neles mesmos. Essa forma de

interpretação é, nada mais, que encarar os acontecimentos que elegemos sob uma perspectiva

reflexiva e crítica, nunca levianamente, transformando o ocorrido no que não é, tendo em mente

a importância da pergunta proposta por Sérgio Guimarães em Aprendendo com a própria

história: “Até que ponto a relembrança de fatos da vida de Paulo Freire pode nos interessar em

uma reflexão sobre problemas de educação?” (FREIRE, GUIMARÃES, 2011, p. 119). Dessa

maneira, a intimidade que aqui buscamos é muito diferente da revelada por Nita Freire no livro

Nós dois (São Paulo: Paz e Terra, 2013). A diferença que se demarca do feito pela viúva de

Freire se dá no fato de que ela apresenta a relação amorosa (conjugal) que mantinha com o

marido de maneira bastante íntima – essas, sim, intimidades no sentido de não-privacidade, de

exposição (do vocábulo latino expositus, que significa, dentre outras coisas, pôr fora, oferecer,

narrar) – tais como cartas românticas trocadas, bilhetes amorosos, fotos informais e crônicas

detalhadas sobre os mais variados temas que não nos importam nesse trabalho, mas que podem

ser, talvez de alguma maneira, relevante de outras perspectivas. Além disso, em primeiro lugar

como dissemos, nosso trabalho não é biográfico e depende de pouquíssimas citações nesse

sentido; em segundo lugar, acreditamos que um breve comentário, nada mais, parece suficiente

para a tarefa de apresentação de nossos autores. É quase como se tivéssemos nos encontrado,

eles e nós, em uma esquina qualquer e fôssemos seguir, durante um breve tempo, pelo mesmo

caminho, sem esquecer o alerta feito por Martin Buber em Eu e Tu: “quando, seguindo nosso

caminho, encontramos um homem que, seguindo seu caminho, vem ao nosso encontro, temos

conhecimento somente de nossa parte do caminho, e não da sua, pois esta vivenciamos somente

no encontro” (BUBER, 2006, p. 102). Delimitar esse encontro e o que aprendemos dele é o

objetivo deste trabalho.

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CAPÍTULO 1 - BIOGRAFIA: SUPORTE DA BIBLIOGRAFIA

O texto só tem vida contatando com outro texto

(contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a

luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente,

iniciando dado texto no diálogo (BAKHTIN, 2011, p.

401, parênteses no original).

1.1 Ortega y Gasset

José Ortega y Gasset nasceu no dia 9 de maio de 1883; filho de José Ortega Munnila e

de Dolores Gasset Chinchilla. Sua família fazia parte do que Margarida Amoedo considera

como de “média burguesia madrilena” (AMOEDO, 2002, p. 37). Seu pai, embora tenha se

obtido seu bachillerato – que na Espanha significa “o término do segundo grau” - em Artes e

cursado Direito na Universidad Central de Madri, seguiu a carreira de seu pai, isto é, do avô

de Ortega y Gasset, José Ortega Zapata, advogado, mas que obteve destaque na sociedade

espanhola como jornalista. Zapata, devido a seu talento jornalístico, foi admitido como redator

de um dos mais famosos jornais da Espanha daquela época: o El Imparcial, fundado em 1867

pelo homem que seria, mais tarde, o avô paterno de Ortega y Gasset, Eduardo Gasset y Artime.

O jornal recebia contribuições de diversas personalidades que eram ou que viriam a ser

importantes no país, de modo que a casa de Ortega y Gasset recebia frequentemente reuniões

de políticos, artistas e literatos.

Com estes poucos dados bibliográficos, já podemos perceber o quanto o ambiente em

que nasce o espanhol tem influência em sua obra, principalmente no estilo de escrita que nosso

autor viria a desenvolver: a maioria de seus escritos são relativamente pequenos, contam com

poucas páginas, já que eram destinados, em sua maioria, a periódicos espanhóis (esse ambiente

contagiou também os filhos de Ortega, notadamente a José Ortega Spottorno, fundador do

jornal El País, diário de maior tiragem na Espanha atualmente). Algumas das obras mais

extensas que encontramos em sua bibliografia são, geralmente, compilações de lições

ministradas por ele sobre determinado tema para seus alunos na universidade ou mesmo nos

teatros de Madri que se enchiam de pessoas para ouvir o orador excepcional que era Ortega y

Gasset. Ele próprio afirmou no seu inacabado Prólogo para alemanes que “meus livros [...]

propriamente não são livros” (ORTEGA Y GASSET, 1994d, p. 20). Sobre isso, comenta

Margarida Amoedo, uma das principais estudiosas, senão o principal nome relativo ao estudo

da obra de Ortega y Gasset em Portugal:

De fato, do ponto de vista formal nenhuma das obras orteguiana nasceu como livro.

Em grande parte dos casos elas tiveram a sua origem em séries de artigos publicados

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na imprensa, em estudos de temas abordados na sua cátedra universitária, em ensaios

suscitados por efemérides ou por uma atração especial por certos autores (AMOEDO,

2002, p. 28, itálico no original).

Em contradição a isso, podemos perceber na primeira parte do livro Cartas de um joven

español que trata das correspondências de Ortega y Gasset a seus pais em sua primeira viagem

à Alemanha, que ele sentia, o que confessa em diversas cartas desse período, “repugnância a

escrever” (ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 264) para os periódicos naquele momento (como

veremos adiante, Ortega tem ligação muito próxima a jornais e jornalistas espanhóis daquela

época). Acreditamos que essa resistência tenha ligação com o ambiente que frequentava

naquele momento, a saber, a Escola de Marburgo, na qual Hermann Cohen, seu professor e

iniciador do neokantismo, fazia um retorno às teses de Kant voltado exclusivamente para o

problema das ciências humanas que despontavam naquele início de século XX. É o que parece

dizer Ortega a seu pai: “creio que é para mim questão importantíssima não escrever nos

periódicos senão fazer trabalho objetivo científico em livros” (Ibidem, Carta 85). Ora,

Margarida Amoedo não está equivocada no comentário que transcrevemos anteriormente, pois

sabemos que Ortega y Gasset se afasta do neokantismo como proposto por Cohen e Nartorp e

se aproxima da Escola de Baden e da fenomenologia, e, além disso, que sua produção em

periódicos é gigantesca, principalmente a partir da década de 1910. A explicação para esta

escolha encontramos em A una edición de sus obras (1932). Nesse texto Ortega nos explica o

motivo de ter escolhido o periódico:

Em nosso país, nem a cátedra nem o livro tinham eficiência social. Nosso povo não

admite o distanciado e solene. Reina nele o cotidiano e vulgar. As formas do

aristocratismo “à parte” tem sido sempre estéreis nesta península. Quem quer criar

algo – e toda criação é aristocracia – tem que aceitar ser aristocrata na praça pública

[en la plazuela]. Eis aqui porque, dócil à circunstância, fiz que minha obra brote na

praça intelectual que é o periódico (ORTEGA Y GASSET, 1993b, p. 352, aspas no

original).

Na infância, Ortega e seu irmão mais velho, Eduardo, frequentavam, no verão, uma casa

arrendada do governo por seus pais e que era conhecida como El Escorial. Ali, anos mais tarde,

com a estadia de um Ortega mais maduro, foi gestada e dada à luz a primeira obra orteguiana,

Meditaciones del Quijote, que dedica belíssimas palavras ao ambiente da casa e seus arredores,

notadamente o bosque, no qual passa as tardes a meditar, influenciado por sua leitura da

fenomenologia. Dois de seus professores da infância, principalmente Don Manuel Martínez

(que os ensinou a ler e que já reconhecia a inteligência precoce do pequeno Pepe, ou Pepito,

como era apelidado na infância e ao longo da vida pelos mais íntimos) e Don Ramón Minguella

(clérigo que os acompanhava como preceptor) também são apontados por Margarida Amoedo

e por Eduardo Ortega y Gasset, autor de Mi hermano José: recuerdos de infancia y mocedad –

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que, diga-se de passagem, lamentamos muito não ter conseguido acesso, devido à riqueza de

detalhes encontrada ali sobre a vida do autor, como relata Amoedo – como marcas indeléveis

de sua personalidade, principalmente em relação ao ensino humanista e prazeroso que deles

recebiam e que culminaria em seus estudos, ainda em formação básica, com os jesuítas do

Colegio de San Estanislao de Kostka, em Córdoba, onde Ortega aprendeu a língua grega ainda

adolescente. De fato, nas vésperas de comemorar doze anos de idade, em carta a seus pais,

Pepito faz o seguinte pedido: “[...] se estão em casa os autores gregos enviem-me as fábulas de

Esopo e alguns outros que a ti pareçam como Tucidides se está aí, Euripides etc.” (ORTEGA

Y GASSET, 1991, p. 59, Carta 8).

Vale a pena salientar o comentário da compiladora das cartas, Soledad Ortega, sua filha,

sobre o conteúdo desta última (Carta 8). Diz ele em nota de rodapé que “aqui se documenta

pela primeira o que será uma nota constante das cartas de Ortega durante toda a sua vida: pedir

que lhe enviem livros”. Para completar, citamos também o comentário de Margarida Amoedo

que, a título de curiosidade, nos revela os interesses de leitura que tinham o jovem espanhol:

“Entre as primeiras leituras contaram-se Jules Verne, Conan Doyle, Gaston Leroux e Galdós,

Balzac e o palpitar das experiências dos seus personagens [...], Juan Valera, Dickens,

Shakespeare e, em geral, os grandes nomes da literatura estrangeira e espanhola [...], juntamente

com obras de referência de História e de Arte que sempre interessaram a Ortega y Gasset”

(AMOEDO, 2002, p. 40). Outro fato importante que podemos perceber nesta carta é justamente

o relato que faz Ortega de dores na cabeça e no estômago. Esta última recorrente em toda a sua

vida e, inclusive, causa de sua morte.

Após o término de seus estudos básicos, Ortega ingressa (1898) na Universidad de

Deusto, em Bilbau, para cursar simultaneamente Filosofía y Letras e Direito, mas abandona

seus estudos ao final do primeiro ano. No ano seguinte, ingressa, seguindo os caminhos do pai,

na Universidad Central de Madri como candidato aos mesmos cursos. Embora tenha

abandonado o Direito pouco tempo depois, licenciou-se em 1902 e em 1904. Recebe, então,

com apenas 21 anos de idade, o título de doutor após defender a tese Los terrores del año mil.

Crítica de una leyenda. Para Margarida Amoedo, estas primeiras experiências universitárias,

principalmente a que se deu na Universidad de Deusto, são fundamentais para a compreensão

de um dos textos que escolhemos como base deste trabalho: Misión de la Universidad. Embora

não tenhamos encontrado um relato pormenorizado das razões que o fizeram abandonar aquela

universidade, podemos inferir a partir da leitura deste texto mencionado, que, provavelmente

ele tenha encontrado ali uma instituição que ele julgaria mais tarde inautêntica. O mesmo

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ocorreria com sua saída para Alemanha, nascida da necessidade que sentia de ampliar sua

formação e mesmo da saturação da cultura francesa que a Espanha vivia nessa época, embora

sua perspectiva do ensino alemão tenha sido diferente. Nessa mesma obra, Misión de la

universidad, Ortega nos diz que, apesar de frequentar a fina flor da pesquisa europeia, na

Alemanha ele não encontrou um único bom professor.

Além disso, o próprio momento vivido pela Espanha naquela época, principalmente em

finais do século XIX, momento da juventude de Ortega, fez com que o ensino no país sofresse

uma grande lufada de motivação por parte dos professores universitários através da atuação

bem sucedida da Instituición Libre de Enseñanza. Essa instituição foi constituída em 1876 e

influenciada pela representação krausista difundida no país por um antigo catedrático da

faculdade de Filosofia da Universidad Central de Madri, Julián Sanz del Río e, mais tarde, de

Francisco Giner de los Ríos, que empolgava a todos à renovação educativa do país através “da

arte do diálogo que converteu num sacerdócio” (AMOEDO, 2002, p. 50). Desse modo, pode-

se notar que a proposta orteguiana de reforma, tanto da universidade como da própria Espanha,

está profundamente arraigada aos problemas de seu tempo e não é um reconhecimento isolado,

criado ex nihilo. Para não fugirmos do tema deste tópico, citaremos três exemplos retirados da

obra citada de Margarida Amoedo que demonstram o sucesso desse movimento que,

poderíamos dizer, ganhou com Ortega y Gasset um novo combatente: a declaração da

neutralidade política e religiosa da universidade (1881), a reforma do ensino elementar e a

criação do Museo Pedagógico (1882) e a fundação em Barcelona do Seminario de Pedagogía

(1899). Estas três instituições se consolidaram como órgãos focados em oferecer ao ensino

espanhol uma dimensão menos tradicionalista e mais condizente com a configuração dos novos

tempos. Para a autora, “encontramos na Espanha, na transição para o nosso século [século XX],

uma tendência comum a todos os movimentos de ideias [...] para considerar a Educação o

objetivo prioritário de todas as reformas” (Idem, p. 51). Miguel de Unamuno e Joaquín Costa

foram os primeiros representantes de uma forma de analisar a Espanha que Ortega viria a

desenvolver mais tarde, a saber, a de que era necessário um renascimento do povo espanhol, o

que leva a importância dada a educação naquele momento. É nesse ambiente que nosso autor

irá tecer sua filosofia, sua forma de encarar a sociedade espanhola e, principalmente, o que

decididamente nos importa neste trabalho, a ideia de uma reforma educacional para atingir um

novo estágio nacional através da renovação cultural do homem.

É interpretação comum entre os comentaristas da obra de Ortega y Gasset que sua

primeira ida à Alemanha em 1905 é de fundamental importância para a compreensão das raízes

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teóricas e reflexivas das principais ideias que desenvolverá em sua meditação. Nesse período,

que se estende até 1908, Ortega frequenta a Universidade de Leipzig, a Universidade de

Humboldt e a Universidade de Marburgo. Nesta última encontrará despontando Herman Cohen

e Paul Nartorp, principais representantes da escola neokantiana que ficou conhecida como

Escola de Marburgo. Sabemos que a filosofia que ali se cultivou exerceu fundamental influência

no culturalismo, inclusive na Escola Culturalista no Brasil dos anos 1930 e que se encontra hoje

em sua terceira geração de pensadores, conforme se lê:

Antônio Paim considera que o Culturalismo possui três gerações: a primeira, o início

da meditação culturalista com especificidade nacional, tem como principais

representantes Tobias Barreto e Alcides Bezerra; a segunda se configura na reflexão

de Miguel Reale, Djacir de Menezes e do próprio Antônio Paim. E a terceira geração

incluiria Ricardo Vélez Rodríguez e José Maurício de Carvalho (TOMAZ, 2016, p.

120).

No convívio com Cohen e Nartorp, Ortega toma contato com a importante meditação

que era feita sobre Platão, Descartes e Leibniz, mas principalmente sobre Kant, reinterpretadas

sobre o criticismo característico daquela escola. Em uma carta deste mesmo ano (1905)

endereçada a seu pai, já podemos perceber o jovem Ortega – que contava então com 22 anos –

se preocupando com a construção de um pensamento que fosse sistemático. Nela lemos que ele

não tinha “outro ideal que imitar ao honrado molusco que segrega sua própria concha e viver

segregando uma teoria o mais sólida possível” (ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 147).

Ao voltar para a Espanha, contando então com 25 anos, nosso autor passa a integrar o

importante grupo de redatores de El Imparcial. Após o retorno, presta também dois concursos,

nos quais é bem-sucedido. O primeiro ainda em 1908 para a cátedra de Psicologia, Lógica y

Ética da Escuela Superior de Magisterio, que vai se estender até 1910 e o segundo para o cargo

de professor de metafísica da Universidad Central de Madri, devido ao falecimento de Nicolás

Salmerón y Alonso, que ocupava o cargo desde 1869. Salmerón era considerado “um dos mais

eminentes professores de filosofia” (AMOEDO, 2002, p. 43) da Espanha daquela época, além

de ter sido presidente na I República Espanhola (1873). Fato que, segundo Margarida Amoedo,

já demonstrava o reconhecimento que Ortega y Gasset viria a adquirir no futuro e que

demarcava o início do entrelace da figura do filósofo com a de homem público. Em relação a

ocupar um cargo de professor de Psicologia, podemos dizer que a disciplina havia se

estabelecido há pouco tempo como ciência independente (finais do século XIX) e ele acreditava

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que faltava nela algo de filosófico, já que o que se procurava por parte dos teóricos da psicologia

nesse momento era um afastamento da Filosofia4.

Contudo, um fato deste período que nos importa mais de perto é a aproximação que

Ortega faz, em seu retorno à Espanha, do socialismo espanhol; aproximação que rendeu

profícua polêmica entre ele e seu amigo Ramiro de Maeztu (integrante da importantíssima

“geração de 98”) e que lhe avizinhou da opção política do maior pensador espanhol de seu

tempo, que também pertenceu àquela geração, a quem Ortega mantinha uma relação ao mesmo

tempo de admiração e desencanto: Miguel de Unamuno, na época, reitor da Universidad de

Salamanca. “[...] ao regressar a Espanha”, diz Amoedo, “aumenta a aproximação de Ortega ao

socialismo espanhol, cuja evolução viria a acompanhar, assistindo a diversas sessões dos

Congressos do Partido Socialista Obrero Español (PSOE) [...]” (AMOEDO, 2002, p. 56), sem,

contudo, filiar-se a esse partido em razão de acreditar ser o socialismo marxista, base ideológica

do PSOE, demasiadamente dogmático. Para nós, este fato tem relevância, pois nos permitirá

entender no momento oportuno as raízes da atuação do movimento liderado pelo espanhol em

1914, conhecido como Liga de Educação Política Espanhola.

É também neste período de sua primeira viagem à Alemanha, notadamente no ano de

1906, que vislumbramos o nascimento da preocupação orteguiana quanto aos rumos políticos

de seu país. Em uma carta a seu pai datada de 23 de dezembro de 1906, Ortega diz: “eu começo

agora a estudar a sério o problema de nosso porvir político: vou vendo grandes, imensas

claridades. O que sai disso, não sei, mas algo tem que sair: disso estou certo” (ORTEGA Y

GASSET, 1991, p. 270, Carta 87). Pouco antes ele havia reconhecido que “se não estivamos a

corveta de nossa vida com algum emprego além do momentâneo [sobremomentáneo], a corveta

se inundará de pessimismo” (ibidem).

Uma bolsa de estudos fornecida pelo governo leva-o a uma segunda estadia na

Alemanha, entre janeiro e dezembro de 1911, já casado com Rosa Spottorno y Topete. É

interessante notar o que diz o filósofo mais tarde, em 1934, sobre essa necessidade de voltar a

das Land der Dichter und Denker:

Não imagine, pois o leitor, minha viagem para a Alemanha como a viagem de um

devoto que vai beijar em Roma o pé do Santo Padre. Ao contrário. Era o veloz voo

predatório, a descida de flecha que faz o jovem açor faminto sobre algo vivo, carnudo,

que seu olho redondo e alerta descobre na campina. [...] Eu ia à Alemanha para atrair

ao canto da ruína a cultura alemã e devorá-la (ORTEGA Y GASSET, 1994d, p. 24).

4 Para um comentário aprofundado a este respeito, conferir nosso artigo Ciências interdependentes: o problema

da verdade no Sistema de la psicología de Ortega y Gasset.

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Pouco antes, neste mesmo texto, Ortega havia dito que estava demasiadamente

mergulhado, não só ele, mas a própria Espanha, na cultura francesa e que era necessário buscar

na Alemanha uma nova cultura da qual se tinha ali muito pouco contato. Desse modo, podemos

perceber que a motivação que o leva até o país “dos poetas e pensadores” é, por um lado, íntima,

aquilo que, mais tarde, o próprio Ortega intitulará de vocação (termo que analisaremos no

próximo capítulo) e, por outro, cultural, no sentido de que ele se preocupava com a evidente

saturação da cultura francesa na Espanha, muito influenciado pelas análises feitas por Unamuno

e pelo desejo de renovação que povoava o ideário dos intelectuais espanhóis da época, como já

dissemos. Para Margarida Amoedo (2002, p. 68), essa segunda viagem para Marburgo demarca

para o próprio Ortega y Gasset a importância dessa cidade, das conversas ali estabelecidas, das

discussões empreendidas com os neokantianos em sua meditação filosófica. Ela lembra o que

ele diz sobre essa experiência, anos mais tarde no Prólogo para alemanes: “o precipitado que

os anos de estudo na Alemanha deixaram em mim foi a decisão de aceitar íntegro e sem reservas

meu destino espanhol” (ORTEGA Y GASSET, 1994d, p. 55).

Essa aceitação irá se traduzir, a longo prazo, no próprio cariz da filosofia orteguiana,

mas em curto prazo, é encontrada na atuação política de um grupo de intelectuais liderados por

Ortega y Gasset, responsáveis pela criação de um movimento de caráter liberal, apartidário e

socialista não dogmático (que, para ele, significa não-marxista), em outras palavras, um

liberalismo renovado, intitulado Liga de Educación Política Española, fundada em 23 de março

de 1914, cuja conferência inaugural se intitula Vieja y nueva política. Sobre a atuação política

da Liga falaremos adiante, pois é um dos tópicos de nossa análise. Basta dizer aqui que através

deste órgão, Ortega conseguiu opor ao reinante pessimismo na Espanha daquela época –

representado magistralmente na redação de Do sentimento trágico da vida, de Miguel de

Unamuno - um otimismo esperançoso na reforma do país através da mobilização de outros

setores da sociedade que não diziam respeito propriamente aos setores governativos e/ou

eleitorais. Em termos orteguianos, a ideia era fazer oposição à “Espanha oficial” através da

“Espanha vital”, aumentar seu “pulso vital”, “sua vitalidade” como lembra Amoedo (2002, p.

73). Ora, sua posição liberal levava essa metodologia na busca por “suscitar, estruturar e

aumentar a vida nacional no que é independente do Estado” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p.

277). Neste mesmo ano temos a redação do que é considerado o primeiro livro de Ortega:

Meditaciones del Quijote, no qual, segundo Amoedo, já “encontramos em embrião o essencial

de sua filosofia” (AMOEDO, 2002, p. 72).

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Em 1916, Ortega deixa de lado o semanário que criara um ano antes, intitulado España.

Semanario de la Vida Nacional, que tinha por objetivo a continuação da discussão e análise dos

problemas de seu país. Essa desistência tem a ver com as mudanças que a Primeira Guerra

Mundial trouxe à Europa e à Espanha, ainda que esta tenha se mantido neutra no conflito. Nesse

mesmo ano, anuncia ele outro meio de publicação de seus escritos que tem capital importância

para o desenvolvimento e amadurecimento de seu pensamento e para a compreensão de sua

filosofia: o periódico de frequência irregular El Espectador, que se encontra integralmente

compilado (todos os oito volumes) no tomo segundo das Obras Completas publicadas pela

Alianza. Nestas publicações, contrariamente ao que tinha feito o já reconhecido professor e

filósofo, vê-se um aspecto mais intimista, mais pessoal de seu olhar frente aos problemas de

seu tempo. Em seu próprio linguajar, poderíamos dizer que é um momento de ensimesmamento.

O objetivo, segundo Amoedo, era a busca da verdade na política (AMOEDO, 2002, p. 80), o

firme estabelecimento de uma base sólida que pudesse guiar suas ações públicas. Essa

moderação chegará ao ápice em 1932, ano no qual uma série de acontecimentos políticos –

dentre os quais estão o fracasso da implantação da segunda república espanhola, principalmente

a forte repressão aos opositores e a situação de anarquia generalizada - levam Ortega a

abandonar para sempre sua atuação política.

Façamos um breve parêntese nesse momento para dizer que já em 1906 Ortega

reconhecia que, devido à falta de uma teoria política que desse sustentação à prática, o que,

segundo ele, era característico do povo espanhol de sua época, seria insensatez esperar um

futuro frutífero para a República. Ele se refere, claro está, à Primeira República Espanhola que

durou de fevereiro de 1873 a dezembro de 1874, mas seu comentário pode servir também para

interpretar o fracasso da segunda tentativa em 1931. Vejamos o que diz ele em carta a seu pai

sobre essa ausência de teoria política: “[...] no dia seguinte de ter tomado o poder, se

encontraram os republicanos sem saber o que fazer, e isso porque ninguém lhes resistia

seriamente. É que não ocorreu a eles pensar em que coisa era república, é que não tinham a

teoria da República Espanhola (ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 271, Carta 87). E completa

dizendo: “eu vou, pois, construindo minhas teorias [...]” (Ibidem). Todavia, sabemos que suas

teorias políticas não frutificaram, o que o faz abandonar de uma vez por todas o campo político.

Não que Ortega estivesse errado sobre a relação teoria-prática - que encontramos brevemente

descrita nessa carta e sobre a qual falaremos no momento oportuno -, mas porque ele estava

pensando em educação, em pedagogia, não propriamente em ação política. Em outras palavras,

as teorias que ele dizia estar construindo eram, na verdade, teorias filosófico-pedagógicas,

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inadvertidamente aplicadas ao campo político. Talvez tenha sido exatamente a tomada de

consciência deste equívoco, juntamente com o reconhecimento de seu papel como intelectual e

não como homem da ação (que é como ele conceituava alguém da política) o motivo que o

levou a abandonar não só a carreira, mas a própria reflexão com finalidade política. A esse

respeito, diz Margarida Amoedo:

[...] Ortega nunca foi propriamente um político: todas as suas intervenções a que

podemos associar um cariz político foram sempre, acima de tudo, actos de um

filósofo, que procurou por todos os meios pôr à prova as suas concepções sobre a

sociedade (espanhola, umas vezes; europeia, outras; em geral, outras ainda),

concepções forjadas com uma preocupação essencialmente pedagógica” (AMOEDO,

2002, p. 128, grifo nosso).

Voltando à nossa descrição bibliográfica, em 1921, Ortega dará um passo

importantíssimo em sua análise da nacionalidade problemática da Espanha de seu tempo: ele

publicará España invertebrada, texto no qual aparece já de forma bastante sistematizada a

reflexão iniciada no Prospecto de la Liga de Educación Política Española e que será

desenvolvida mais tarde em seu livro mais famoso La rebelión de las masas. Essa reflexão

culmina no reconhecimento de uma organização social formada por minorias e massas,

conforme explicaremos adiante. Já adiantamos que estes termos não se referem a nenhum tipo

de classe social, mas uma classificação individual que diz respeito às suas motivações mais ou

menos excelentes para realizar determinada tarefa e ao reconhecimento de sua limitação em

tratar de outras. Em resumo, na obra do início dos anos 20 (España invertebrada), o espanhol

já havia se convencido que seu país padecia de uma doença incomum: a decadência do próprio

povo, sua incapacidade de encarar os desafios da vida, em uma palavra, em sua incultura. É aí

que Margarida Amoedo já começa a identificar a força da educação no pensamento orteguiano.

Para ela, nas “propostas expressas com a força de imperativos assoma o filósofo da vida que vê

na educação o caminho para a autenticidade de cada ser humano e, ao mesmo tempo, para a

saúde, da convivência social” (AMOEDO, 2002, p. 88, itálico no original). Ela se refere mais

especificamente a uma afirmação encontrada em Espãna invertebrada, na qual Ortega diz que

não basta, aos problemas de seu país, uma solução política, “há que colocar-se a forjar um novo

tipo de homem espanhol” (ORTEGA Y GASSET, 1994a, p. 128) e, talvez, também ao que diz

em La redención de las provincias y la decencia nacional: “[...] é importante deslizar no

caldeirão ditatorial uma voz tênue de pedagogo político” (ORTEGA Y GASSET, 1998b, p.

175).

Toda a movimentação política da década de 20, para Margarida Amoedo, contribui para

a construção de um pensamento filosófico que coloca a vida humana no centro das

preocupações como realidade radical, pois suas intervenções sociais são “[...] um exemplo

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concreto de compreensão vital que as suas circunstâncias lhe impunham, enquanto espanhol

pertencente a um contexto histórico determinado” (AMOEDO, 2002, p. 97).

Em 1929, devido às frequentes e incisivas repreensões que o ditador Primo de Rivera

endereçava à universidade, uma greve geral de estudantes foi convocada. A resposta do governo

foi o fechamento da Universidade de Madri. Ortega, que ali ministrava nessa época seu

famosíssimo curso intitulado ¿Que és Filosofia? (tornado obra póstuma em 1957), renuncia à

sua cátedra de metafísica juntamente a outros colegas professores, visando demonstrar sua

repulsa à ditadura de Rivera. A partir de então, devido aos esforços da FUE (Federación

Universitaria Escolar) foi constituída nas dependências da Revista de Occidente (que sabemos

ter sido fundada e dirigida por Ortega) o que Margarida Amoedo chama de “uma espécie de

Universidade Livre” (AMOEDO, 2002, p. 101).

No próximo ano, 1930, Ortega dará à luz sua obra mais famosa, responsável por estender

seu nome para além das fronteiras hispânicas. Esta obra é La rebelión de las masas, que só pode

ser inteiramente compreendida tendo por base o momento político vivido por Ortega – que

vimos apresentando até o momento – e o prévio conhecimento de, pelo menos, as seguintes

obras: Vieja y nueva política e España invertebrada, que também analisaremos adiante. Em

resumo, já que trataremos detidamente da meditação orteguiana nessa obra de 1930 no

momento oportuno, podemos invocar as palavras que Margarida Amoedo retirada da obra para

apontar de modo certeiro o ponto central da preocupação orteguiana nesse momento. Para ela

(AMOEDO, 2002, p. 103), não há possibilidade de compreender o que significa “rebelião das

massas” se se considerar os termos “‘rebelião”, ‘massas’, ‘poderio social’, etc. um significado

exclusiva ou primariamente político. A vida pública não é somente política, senão, de modo

semelhante e ainda antes, intelectual, moral, econômica, religiosa; compreende todos os usos

coletivos [...]” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 143). Amoedo ainda alerta para o fato de que,

para Ortega, “[...] quando se esquece o caráter secundário da política e esta aparece como a

atividade mais elevada, ou única, seja num indivíduo, seja numa nação, ela se transforma em

uma doença preocupante [...]” (AMOEDO, 2002, p. 128, itálico no original). Aqui podemos

compreender um dos aspectos que leva Ortega a se distanciar de muitas propostas políticas de

sua época, inclusive do marxismo ortodoxo, como ele próprio comenta.

Ainda em 1930, no dia 28 de janeiro, a ditadura de Primo de Rivera chega ao fim e o

responsável pelo novo governo, Dámaso Berenguer, retoma a posição dos catedráticos que

foram destituídos, quer pela força ditatorial, quer por motivação pessoal em reprovação a

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Rivera. Desse modo, tanto Unamuno, que retorna em triunfo de seu exílio, quanto Ortega y

Gasset voltam a seus respectivos lugares nas universidades.

Mesmo com a mudança de governo, a FUE continua sua intervenção de

descontentamento e, agora, convida Ortega para ministrar um pronunciamento sobre o

espinhoso e interessante tema: reforma universitária. Margarida Amoedo comenta que Ortega

assumiu a tarefa de meditar sobre o problema com muito entusiasmo, mas sem muita fé, isto é,

sem muita segurança na empreitada que a FUE e ele mesmo tinham pela frente. Isso não impede

que ele reconheça que essa atitude, a de reformar o ensino universitário da Espanha de sua

época, havia se transformado em um imperativo social para o bem da vitalidade nacional, do

desenvolvimento, digamos com ele, saudável, “vertebrado” da sociedade. Logicamente, sua

meditação continuará nos caminhos que vinha assumindo desde seus primeiros artigos nos

periódicos sobre os quais comentamos. Note-se que é justamente tal coerência reflexiva que faz

de Ortega um verdadeiro filósofo, construtor de um sistema filosófico. Essa conferência, que

ficou conhecida depois como Misión de la Universidad é a grande contribuição filosófica,

pedagógica e política de Ortega para a educação e pode ser considerada o texto central dos

estudos que procuramos desenvolver nesse trabalho. Como já dissemos, os comentadores atuais

de Ortega insistem na interpretação conjunta de España invertebrada, La rebelión de las masas

e Misión de la Universidad como forma de compreender a perspectiva orteguiana do

reconhecimento de um problema inicialmente espanhol, que evoluiu para uma questão

ocidental e como - isso quem nos mostra com maestria é Margarida Amoedo em sua obra -

Ortega reconhece na educação uma forma eficaz de tratar o problema.

A redação de Misión de la Universidad deve ser considerada, como dissemos em uma

coluna da revista portuguesa Nova Águia, como pertencente a

um período que antecipa profundas transformações sociais na Espanha, como a queda

da ditadura de Primo de Rivera que culminará em curto prazo na fuga do rei Alfonso

XIII e no conseqüente estabelecimento da Segunda República (1931) e em longo

prazo na Guerra Civil (1936-1939) que culminaria com o surgimento do governo

franquista. Ortega y Gasset como homem à altura de seu tempo, não deixou de se

manifestar a respeito destas mudanças e não as fez somente no campo da educação.

Entretanto, como se pode perceber nas ideias que defende nesta obra, era de capital

importância uma reforma que atingisse também as instituições universitárias, pois seu

ponto principal, a transmissão da cultura, influenciaria grandemente na vida dos

homens e poderia, talvez não por si só, mas com o seu auxílio, transformar a nação

que atravessava “uma época de terrível incultura” (p. 344). Isso não quer dizer que

fosse exclusivamente culpa do ensino o fato de que a nação se encontrasse daquela

maneira, inculta (CARVALHO; TOMAZ, 2014, p. 257).

Finalmente, poderíamos invocar aqui o balanço feito pelo próprio Ortega y Gasset no

texto A una edición de sus obras (1932) e que, melhor do que qualquer análise feita por qualquer

comentarista, resume a vida do autor:

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Minha vocação era o pensamento, o afán de claridade sobre as coisas. Acaso este

fervor congênito me vez logo ver que um dos traços característicos de minha

circunstância espanhola era a deficiência disso mesmo que eu tinha que ser por íntima

necessidade. E desde logo se fundiram em mim a inclinação pessoal para o exercício

pensativo e a convicção de que era isso, ademais, um serviço a meu país. Por isso toda

minha obra e toda minha vida tem sido serviço para a Espanha. [...] Pensamento

propriamente tal não há mais que um: o filosófico (ORTEGA Y GASSET, 1993b, p.

350).

Obviamente um retrato biográfico de uma figura tão importante no século XX como a

de Ortega y Gasset deveria considerar uma imensidão de outros aspectos relevantes para

compreender as ideias e conceitos que nos foram legados nos doze volumes das Obras

Completas, cada um deles com mais de setecentas páginas e também em outros excertos que a

Revista de Estúdios Orteguianos traz à tona a cada semestre. Entretanto, como delimitamos

nosso campo de estudo nas três obras já mencionadas e que compreendem os primeiros

conceitos da meditação orteguiana até o início do que seus comentadores têm intitulado

“segunda navegação”, cuja data aproximada é 1932, mas que já começa a despontar nos escritos

de 1930, acreditamos bastarem os exemplos que vimos apresentando até aqui para que

possamos reconhecer o subsolo histórico em que a meditação orteguiana se dá e se desenvolve.

Resta fazer apenas um breve relato do seguimento da vida do espanhol: com a

declaração da Segunda República em 1931, Ortega é eleito deputado pela Conjunción

Republicano-Socialista, embora continuasse a acreditar ser um intelectual e não um homem de

ação política, como inúmeras vezes explicou em seus escritos. Poucos meses depois começou

a perceber que o entusiasmo republicano espanhol inicial já fenecia e, em finais de 1932, Ortega

se retira do cenário político, ao qual voltará somente mais três vezes, através de artigos em

periódicos, sendo o último publicado em 1933. Em 1936, ano que marca o início da Guerra

Civil Espanhola, marca também a primeira etapa de seu exílio voluntário na França como forma

de fugir das perseguições políticas quer da esquerda (que fuzilava os não apoiadores), quer da

direita (contrária à república que ele ajudara a estabelecer). A segunda etapa, já no início da II

Guerra Mundial, começa quando Ortega viaja à Argentina, permanecendo aí até 1942. Após

esse período, ele se muda para Portugal visando maior tranquilidade, já que Franco e Salazar

mantinham um acordo de paz desde o final da Guerra Civil Espanhola (1939). Ortega y Gasset

volta à sua pátria em 1945, embora continue a manter sua casa “oficial” no número dez, da

Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, até o fim da vida. Na década de 50, Ortega percorre a Europa

convidado por uma série de instituições inglesas, italianas, francesas, suíças e alemãs que

tinham como objetivo homenageá-lo. Em 1951 recebe o título de doutor honoris causa das

universidades de Glasgow e Marburgo. Ao retornar a Madri em 1955, seu próprio filho, Miguel

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Ortega, médico gastroenterologista, lhe diagnostica um tumor no estômago. O mais genial

orador e filósofo da península ibérica do século XX falece em sua residência no dia 18 de

outubro desse mesmo ano, aos 72 anos de idade. No Brasil, sua morte foi documentada nos

jornais O Diário de Belo Horizonte por J. C. de Oliveira Torres e Amaro Xisto de Queiroz e

Diário de Notícias de São Paulo por Tristão de Athayde. Nossa pesquisa nos possibilitou

conseguir os recortes originais destas notícias.

Trataremos agora, de modo semelhante, de nosso outro interlocutor.

1.2 Paulo Freire

Paulo Reglus Neves Freire nasceu no Recife a 29 de setembro de 1921. É filho de

capitão da Polícia Civil e de dona de casa de uma família de classe média do Recife. Em 1929,

sua família, como muitas outras, passou a sentir os efeitos da crise oriunda dos Estados Unidos.

Contribuindo para essa dificuldade, em 1934 seu pai foi reformado (termo antiquado para

designar afastamento de atividades profissionais) por motivos de saúde, aposentando-se. Esses

motivos fazem com que Paulo Freire descreva uma infância e adolescência difícil de pobreza,

na qual, segundo ele, o real problema que os afligia era a fome (FREIRE, 1994, p. 33). Fome,

comenta, que o impedia mesmo de fazer seus deveres de casa, embora a fome e a pobreza não

fossem extremas. Reconhece ele que “participando do mundo dos que comiam, mesmo que

comêssemos pouco, participávamos também dos que não comiam” (FREIRE, 1994, p. 39). Mas

há algo que nos chama atenção nesse período e que parece guardar estreita relação com o modo

de pensar o mundo que Paulo Freire desenvolveria mais tarde. Vejamos o que diz o autor:

em nossa casa havia um piano alemão em que Lourdes, uma de nossas tias, tocava

Chopin, Beethoven, Mozart. Bastava o piano para nos distinguir, como classe (...). O

piano, em nossa casa, era como a gravata no pescoço de meu pai. Nem a casa se desfez

do piano nem meu pai da gravata, apesar das dificuldades que tivemos. O piano e a

gravata eram, no fundo, símbolos que nos ajudavam a nos manter na classe social a

que pertencíamos. Implicavam um certo estilo de vida, uma certa forma de ser, uma

certa linguagem (...). E tudo isso, expressões de classe. Tudo isso sendo defendido

pela família como condição indispensável de sua sobrevivência. Nem o piano era

somente um instrumento para o deleite artístico de Lourdes nem a gravata de meu pai

era apenas uma exigência da moda masculina, pois que ambos, o deleite artístico e a

moda, tinham a sua marca classista. Perdê-los poderia ter significado perder também

a “solidariedade” dos membros da classe e marchar, de degrau em degrau, até o

mocambo dos córregos ou dos morros de onde dificilmente poderíamos ter voltado.

Preservá-los, por isso mesmo, foi algo de necessário para que a família atravessasse a

crise mantendo a sua posição de classe (FREIRE, 1994, p. 40, itálico nosso).

Além dos possíveis juízos de valor que poderíamos fazer sobre a atitude do capitão

Temístocles de não se desfazer do piano para amainar a fome dos filhos — e que, aqui, pouco

importa -, podemos perceber como, ainda menino, Paulo Freire, muito mais que conhece, vê

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muito de perto o que uma sociedade dividida e organizada em classes significa. Essa

manutenção da posição de classe impede, inclusive, que Freire possa vir a trabalhar para ajudar

no sustento da família: “assim como meu pai não podia prescindir da gravata (...), não podia

permitir que eu, por exemplo, trabalhasse na feira semanal” (Idem, p. 38).

Muitos fatos importantes, além desses, levaram Paulo Freire a aprender no seio de sua

família, como indica o artigo Memórias de Paulo Freire: a síntese do menino e do homem no

intelectual de Franciele Peloso e Ercília Paulo, da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Entretanto, dois deles nos importam mais de perto: de um lado, o fato de seu pai ser adepto do

espiritismo e sua mãe do catolicismo e, de outro, as conversas sobre política que ouvia de seu

pai, principalmente com seu tio João Monteiro. Sobre o primeiro, o autor comenta que seu pai

era

afetivo, inteligente, aberto, jamais se negou a ouvir-nos em nossa curiosidade. Fazia,

com minha mãe, um casal harmonioso (...). O testemunho que nos deram foi sempre

o da compreensão, jamais o da intolerância. Católica ela, espírita ele, respeitaram-se

em suas opções. Com eles aprendi, desde cedo, o diálogo. (Idem, p. 49).

Comenta também que “as experiências democráticas, no seio de minha família (...)

constituíam na verdade, uma contradição ao autoritarismo que se assentara a sociedade

brasileira” (Idem, p. 118). A importância dessa vivência democrática e dialógica já em tenra

idade pode ser vista aqui e acolá nos escritos de Freire. Seja no seu método de alfabetização,

seja em sua experiência no SESI, seja na interpretação da sociedade como uma luta constante

entre oprimidos e opressores. A ideia da “quietude” parece ser, para Freire, o método de

“tortura” mais comum utilizado pelo opressor. Do mesmo modo que o direito à voz que tem o

oprimido, um passo importante de sua libertação. É o que fica claro na leitura de Educação e

atualidade brasileira e, principalmente, de Pedagogia do oprimido.

Sobre o segundo fato que elencamos, Freire diz que de seu pai recebeu “as primeiras

informações sobre a política brasileira de então” (Idem, p. 65). E continua:

me lembro de como o desrespeito às liberdades, o abuso do poder, a arrogância dos

dominadores, o silêncio a que se submetia o povo, o desrespeito à coisa pública, a

corrupção, que ele chamava de “ladroeira desenfreada”, eram referidos em suas

conversas, seus comentários. (Idem, p. 65, aspas no original).

Além disso, comenta ainda que

meu pai e meu tio Monteiro estariam hoje, como ontem estiveram, contra a opressão

das classes trabalhadoras, em defesa dos fracos, contra a arrogância dos poderosos,

pasmos diante de sua insensibilidade, lutando ao lado de milhões de brasileiros e

brasileiras que repetem, ao longo de nossa história, a sua repulsa ao arbítrio. Estariam

hoje contra os que consideram que as greves dos trabalhadores são a expressão de

gosto subversivo de eternos insatisfeitos que procuram desestabilizar o governo (...).

(Idem, p. 70).

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O que podemos perceber é que, ainda que o capitão Temístocles não tenha tido

“nenhuma forma de participação sistemática de caráter partidário” (Idem, p. 65), sentia-se

bastante inclinado, por suas próprias ideias, pelo que poderíamos chamar de movimento de

esquerda. Esse fato também nos chama atenção em dois pontos: o primeiro é que, tendo já o

capitão Temístocles essa perspectiva social, nos parece contraditório a manutenção de sua

postura de classe exemplificada na manutenção do “piano e da gravata”. O segundo aspecto,

tem importância pois pode vir a explicar, e isso é apenas uma conjectura, a aparente influência

marxista no pensamento de Paulo Freire, presente, principalmente, na redação de sua obra mais

conhecida, Pedagogia do oprimido, embora possamos identificar essa influência mesmo em

Educação e atualidade brasileira, conforme apontaremos adiante.

Ainda em Cartas a Cristina, Freire nos dirá que “minha experiência pessoal, em casa,

nas relações com meus pais e meus irmãos, [...], me havia tocado fortemente por seu caráter

democrático” (Idem, p. 118). Ao dizer que “em tenra idade, já pensava que o mundo teria de

ser mudado. Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar” (Idem, p.

31), podemos perceber que, por um lado, a influência da posição política do pai pode vir a

explicar esse pensamento precoce, ou, por outro, pôde dar a ele uma sustentação necessária,

juntamente com sua experiência no SESI, para que viesse a se desenvolver como se

desenvolveu. Poderíamos ousar ir mais longe, afirmando que “é possível que o contexto da

educação experienciado em sua infância o tenha influenciado, de forma significativa e

particular, durante toda a sua vida” (PELOSO, PAULO, s/d, p. 6).

Pelas dificuldades vividas, a família é levada a se mudar de Recife para Jaboatão dos

Guararapes, pequena cidade localizada a menos de vinte quilômetros da capital. Hoje, ao

contrário, Jaboatão tem cerca de 691.125 mil habitantes, segundo censo do IBGE de 2015. A

mudança, diz o autor, foi dramática, fazendo-o sentir “como se estivesse sendo expelido, jogado

fora de minha própria segurança. Sentia um medo diferente, até então não experimentado, me

envolver. Era como se estivesse morrendo um pouco” (FREIRE, 1994, p. 58). Isso se torna

mais evidente no breve relato que faz o autor da importância da casa que abandonava em sua

vida: “a velha casa, seus quartos, seu corredor, suas salas, seu terraço estreito, o quintal

arborizado em que se achava, tudo isso foi o mundo de minhas primeiras experiências. Nele

aprendi a andar e a falar” (Idem, p. 45). Esse sentimento parece nos mostrar o quanto, mais

tarde, o exílio se tornaria para Freire uma experiência dolorosa, embora ele tenha tido o poder

da escolha.

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Outra experiência que pode ser importante para compreender algumas das principais

ideias de Freire – e, ao nos referirmos às ideias de Freire, nos referimos aos conceitos que ele

desenvolve em Pedagogia do oprimido, que, a nosso ver, é o momento em que são condensados

de modo sistemático todo o seu pensamento, tanto anterior a essa obra, quanto o posterior a ela

– é sua participação em Pernambuco, por dez anos (1947 a 1957) no Serviço Social da Indústria

(SESI), órgão criado pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra em 25 de junho de 1946,

através da lei 9.403. O relato sobre essa participação pode ser encontrado em Pedagogia da

esperança (pp. 15 – 24, 36, 53, 109) e também na décima primeira carta do livro Cartas à

Cristina.

Paulo Freire considera o trabalho no SESI como seu “reencontro, realmente marcante,

com a classe trabalhadora” (Idem, p. 109), encontro que ele considera tendo ocorrido em

primícias em sua infância e sua adolescência em Jaboatão. Nesse ponto, dois aspectos

acreditamos de relevância para nosso trabalho: o primeiro se refere ao aprendizado que Freire

estabelece ao perceber mais claramente a dicotomia entre as classes sociais; e o segundo,

estritamente ligado a este e de essencial importância em sua pedagogia, de sua concepção de

que teoria e prática são lados de uma mesma moeda.

Em relação ao primeiro ponto, nas Cartas a Cristina, destaca ele: “foi exatamente no

Sesi [...] que vim aprendendo, mesmo quando ainda pouco falasse em classes sociais, que elas

existem em relação contraditória. Que experimentam conflitos de interesses e que são

permeadas por ideologias diferentes, antagônicas” (Idem, p. 112). Ora, o desenvolvimento de

sua meditação a respeito dessa forma de encarar a sociedade é o cerne não só de sua obra mais

importante, a Pedagogia do oprimido, como também de toda a sua proposta pedagógica, que,

após o exílio adquire caráter estritamente político. Além disso, a ideia de que na sociedade

existe opressão de umas classes sobre outras, é uma crença que fundamenta toda a proposta

política de Paulo Freire e que ele não abandona em toda sua vida. Um dos diversos exemplos

que poderíamos citar a esse respeito encontra-se no livro Aprendendo com a própria história

II, onde ele comenta, no auge de seus 71 anos, que “o papel fundamental da ideologia dominante

é ocultar verdades que, desveladas, desnudas, criam dificuldades às classes dominantes”

(FREIRE, GUIMARÃES, 2002, p. 36).

Em relação ao segundo aspecto, ao comentar a respeito da tensão entre teoria e prática

e sobre como a experiência no Sesi se torna importante para aprender a lidar com essa tensão,

Freire nos aponta uma possível demarcação do início de seu contato com o conceito de práxis

que permeia toda a Pedagogia do oprimido e também, nosso estudo indica isso, sua proposta

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político-pedagógica em diversos níveis. Isso significa, nossa pesquisa parece clara a esse

aspecto, que ao contrário do que se imagina, a perspectiva social que Freire desenvolveria mais

tarde já estava presente em seu pensamento desde suas origens. Parece-nos importante para esse

entendimento relembrar como foi originalmente definido esse conceito que é central na obra do

brasileiro:

A expressão práxis refere-se, em geral, à ação, à atividade, e, no sentido que lhe atribui

Marx, à atividade livre, universal, criativa e auto criativa, por meio da qual o homem

cria (faz, produz), e transforma (conforma) seu mundo humano e histórico e a si

mesmo; atividade específica ao homem, que o torna basicamente diferente de todos

os outros seres. Nesse sentido, o homem pode ser considerado um ser da práxis,

entendida a expressão como o conceito central do marxismo, e este como a “filosofia”

(ou melhor, pensamento) da “práxis” (BOTTOMORE, 2012, p. 460).

Assim como essa ideia que fazia parte de seu repertório, seu envolvimento com os

problemas individuais e coletivos dos trabalhadores do SESI fizeram com que Freire refletisse,

abandonando umas, conservando ou atualizando outras, muitas teorias que jaziam inertes na

gaveta de sua escrivaninha. Diz ele que

foi procurando a razão de ser do saber que a prática me dava, que procedi ao longo

dos anos em que me experimentei no Sesi. Daí que submetesse sempre a prática de

que participava e a de outros a uma indagação que não me satisfazia com as primeiras

respostas. A um questionamento severo, metodicamente rigoroso. Por isso é que, a

muitas leituras que fiz à época, fui trazido pela prática. [...] Leituras de textos que me

ofereciam fundamentos para, de um lado, continuar a leitura do contexto; de outro,

para nele intervir. Aprendi, na minha passagem pelo Sesi, para nunca mais esquecer,

a lidar com a tensa relação entre prática e teoria (Idem, p. 140).

Em Educação e atualidade brasileira, tese redigida para concorrer ao concurso de

professor de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes em Pernambuco em

19595, Freire “refletia o quanto me vinha marcando a experiência do Sesi, submetida à profunda

reflexão crítica e a que se juntava uma não menos crítica e extensa literatura de fundamental

bibliografia” (Idem, p. 117). Portanto, podemos observar o quanto a experiência no Sesi foi

importante por levar Freire a buscar teorias que lhe permitissem melhor encarar a prática que

desenvolvia. Essas “muitas leituras” acreditamos estarem listadas, em sua maioria, ainda que

não em sua totalidade, nas referências bibliográficas do livro supracitado6.

Além disso, o Sesi foi também de grande valia para o fortalecimento da importância que

o diálogo assume na obra de Freire. É em Educação e atualidade brasileira que Freire nos diz

que é justamente por reconhecer que “na verdade, quanto mais deixemos o nosso homem mudo

5 Sobre o assunto conferir o capítulo de Educação e atualidade brasileira de José Eustáquio Romão intitulado

Paulo Freire e o Pacto Populista. 6 Para um estudo mais detalhado, conferir a comunicação apresentada por Maria da Conceição Silva para o VIII

Colóquio Internacional Paulo Freire, ocorrido em Pernambuco entre 19 e 21 de setembro de 2013, intitulada Paulo

Freire no SESI: uma década marcada por reencontros, experiências vividas e construção de novos conhecimentos.

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e quieto, fora do ritmo de nosso desenvolvimento a que se liga estreitamente a nossa

democratização, tanto mais obstaremos o desenvolvimento e a democratização” (FREIRE,

2003, p. 17), o motivo pelo qual “toda a ênfase de nossa experiência à frente do Sesi ter recaído

no chamamento do operário ao debate [...] (Ibidem).

A atuação de Freire no Rio Grande do Norte em 1963 foi tão importante que ficou

conhecida como a Revolução de Angicos, cidade na qual o recifense, integrando um grupo de

universitários, tinha como tarefa a alfabetização de jovens e adultos, o que se deu em apenas 40

horas, segundo a divulgação que ocorrera naquela época e fato que Paulo Freire não nega,

embora diga que se tenha dado importância demasiada ao tempo. Essa experiência se inicia

quando o então ministro da Educação do governo Goulart, Darcy Ribeiro, convida o educador

para representar o governo federal junto à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste

(Sudene). Nesse cargo, o secretário de Educação do governo de Aluísio Alves, no Rio Grande

do Norte, Calazans Fernandes, que, segundo o próprio Freire (FREIRE, GUIMARÃES, 2011,

p. 43), já tomava conhecimento do “método Paulo Freire”, convidou-o a participar de uma

“experiência” educacional na cidade de Angicos. Freire, depois de fazer uma série de

exigências, dentre as quais a de que se firmasse um acordo com o Serviço de Extensão Cultural

da Universidade do Recife, aceitou a proposta.

Entretanto, o que mais nos importa na experiência de Angicos se relaciona à

consolidação do que Freire vai apresentar de modo sistemático somente em 1967 com a

publicação de Educação como prática da liberdade e que é, propriamente, o que já começava,

naquela época, a ser conhecido como Método Paulo Freire. Não pretendemos, aqui, dar uma

explicação detalhada, apenas comentar a respeito. Esse modo de alfabetizar retira do contexto

vital do próprio educando, que não sabe ler nem escrever, as palavras que serão ensinadas a ele.

A esse tipo de alfabetização, será acrescentado, mais tarde, um método que Freire entende, em

Pedagogia do oprimido, como sendo o que ele denomina de pós-alfabetização e que consiste

na utilização de Temas Geradores. Em breves palavras, através dos temas geradores, o

educador, adentrando o universo vital do educando, faz não só com que ele aprenda a ler e a

escrever, mas o faça de modo crítico, encarando reflexivamente o contexto social em que se

encontra e agindo sobre ele. A isso Freire chamará de “conscientização”. Os objetivos tanto da

alfabetização quanto da pós-alfabetização são esclarecidos pelo autor no quarto capítulo de

Pedagogia do oprimido. É ali que compreendemos que estes dois momentos, ou de modo mais

geral, toda a educação, deve visar a “revolução cultural”, termo que ele empresta de Mao Tsé-

Tung como a “mais genial deste século” (FREIRE, p. 79, in TORRES, 2014).

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Paulo Freire foi preso no Recife em 16 de junho de 19647 por poucos meses (as razões

para a prisão são explicadas por Nita Freire na nota 27, página 224, do livro Pedagogia da

Esperança.). Ao ser liberado, foi convocado a responder ao Inquérito Policial-Militar que corria

contra ele. O responsável pelo inquérito solicitou a presença de Freire no Rio de Janeiro, onde

foi informado de que seria preso novamente. Já com a aprendizagem da vivência do cárcere,

exilou-se na embaixada da Bolívia. “Da embaixada saí um mês e pouco depois para La Paz (...).

Mas quinze dias depois da minha chegada a La Paz houve um golpe de Estado contra o

presidente Paz Estenssoro. Foi quando me retirei da Bolívia e fui para o Chile (...)” (Idem, p.

83) em novembro do mesmo ano.

“O exílio (...) é altamente pedagógico, pois a gente se transplanta e é reeducado quando

sai do contexto original em que se achava” (Idem, p. 120) diz Paulo Freire, que contava então

com 43 anos. Ao contrário do que comumente se encontra em algumas bibliografias a respeito

da vida do autor, nas quais parece haver sobre o exílio um sentimento depressivo e de crueldade,

parece ser importante considerar o que o próprio Freire diz a respeito: “Bem, a dureza do meu

exílio foi apenas a de estar longe do Brasil, da minha família, dos meus amigos, do povo

brasileiro, do gosto da comida brasileira. Mas, em certo sentido, a minha experiência não foi

tão difícil” (Idem, p. 120). Mais adiante, comenta que a maior dificuldade enfrentada após

começar a trabalhar “foi a de resolver problemas legais: papéis, regularização da minha estada

no Chile, etc.” (Idem, p. 122). O próprio fato de encontrar emprego não ofereceu dificuldade,

como se nota:

Cheguei e comecei a trabalhar imediatamente. O contexto do exílio até me deu uma

possibilidade enorme de aprender mais e de aprofundar as coisas que já vinha fazendo

no Brasil. (...) E o salário com que comecei a trabalhar superava tudo o que estava

ganhando antes de sair do Brasil, como professor da Faculdade de Educação da

Universidade de Pernambuco, e como diretor do Serviço de Extensão Cultural da

Universidade (Idem, p. 121).

De qualquer modo, uma das aprendizagens mais importantes do exílio, talvez, tenha

sido fazer com que ele percebesse que o problema da relação opressor/oprimido não era

exclusividade da sociedade brasileira – ele chega mesmo a utilizar com camponeses do Chile

os mesmos slides feitos sob medida para camponeses brasileiros (Idem, 124) - como resquício

de uma história patriarcalista/assistencialista. Suas impressões ao sair do país causaram nele

“um impacto cuja força me chamava a atenção para os problemas das diferenças sociais e

7 Conferir a nota 27 de Nita Freire em Pedagogia da Esperança (FREIRE, 2006, p. 224), que explica as razões do

pedido de prisão.

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culturais, todos eles cortados pela dimensão da situação de classe. Era algo que eu já

compreendera no Brasil, mas que uma realidade diferente acentuou” (Idem, p. 110).

Aliás, de certa forma, é possível perceber exatamente essa mudança de pensamento –

em primeiro momento, restrito a circunstâncias sócio-históricas, geográficas e econômicas

específicas do Brasil, mas, posteriormente, alargado de modo a responder a circunstâncias da

própria organização social capitalista – na leitura cronologicamente sequenciada de suas obras.

Assim, podemos observar que Educação e atualidade brasileira (1959) concentra-se

exclusivamente em tratar da realidade que Paulo Freire identificara no Brasil. Embora essa obra

só viesse a ser publicada mais tarde, é sabido que Freire não autorizou que o livro fosse

publicado por acreditar que o contexto brasileiro havia mudado, como de fato sabemos que

aconteceu. Por isso, a obra de 1959 virá à tona somente em 2001, quatro anos após sua morte.

Educação como prática da liberdade (1967), o primeiro livro efetivamente publicado por

Freire, parece já demarcar uma cisão, pois a primeira metade da obra reatualiza os conceitos de

Educação e atualidade brasileira sem isolá-los da circunstância nacional, mas apresenta

também, na segunda metade, uma faceta do método Paulo Freire: as palavras geradoras. O

conceito, ou a ideia do método, é independente de uma circunstância específica, embora não

possa ser independente das circunstâncias. Ainda assim, esse primeiro livro não teve grande

repercussão. Já em Pedagogia do oprimido (1970), Paulo Freire pouco ou nada menciona a

respeito da realidade brasileira, apresentando, de um lado, um novo cariz do método, os temas

geradores, e, de outro, uma análise da educação na sociedade capitalista em geral, o que faz do

livro, nesse sentido, como dissemos, independente de uma circunstância específica. Este parece

ser o motivo que faz com que Pedagogia do oprimido seja considerado seu livro mais

importante, tendo dado a ele visibilidade mundial, a saber: não se restringe somente à realidade

brasileira.

Poderíamos, então, dizer que se não fosse o exílio, talvez a Pedagogia do oprimido

não tivesse nascido. E não tivesse nascido pelo fato de que, antes dessa experiência, Paulo Freire

não tinha da educação uma visão política formada, como ele mesmo afirma:

(...) havia muita ingenuidade minha também, que, em certo sentido, está mais ou

menos clara no meu primeiro livro, Educação como prática da liberdade. Era a

ingenuidade de me compreender como um educador e não como um político. Naquela

época ainda não percebera o que chamo de politicidade da educação. (Idem, p. 30,

itálicos no original)

E mais adiante concluirá que a Pedagogia do oprimido nasce, porque “minha prática de

exílio me politizou intensamente” (Idem, p. 31).

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A rica e dolorosa vivência do exílio traz a Freire também uma experiência dialética

interessante — bem aos moldes daquela de sua infância, que o fazia transitar entre os que muito

comiam e os que nada comiam — e que é sintetizada por ele com maestria: “de um lado, ele [o

exilado] não pode tentar esquecer, afogar a falta de seu contexto de origem, e, de outro, não

pode rejeitar o novo contexto, o de empréstimo. Ele tem exatamente que conseguir viver a

tensão entre os dois contextos, combinar o que ele traz e a novidade” (Idem, p. 184).

Depois de alguns anos trabalhando no Chile como educador com Jacques Chonchol no

Instituto de Desarollo Agropecuário, no qual, ele nos conta, mantinha contato com movimentos

de esquerda radicais, Paulo Freire começou a ser alvo de denúncias ao governo chileno por

parte da “ala conservadora” chilena. Essas denúncias, além do fato de que ser expulso de seu

primeiro país de exílio poderia complicar-lhe o restante da vida de exilado, juntamente com os

convites que ele estava a receber de universidades norte americanas que conheceram seu

trabalho em Angicos, contribuíram para que ele decidisse por se mudar para os Estados Unidos

em 1969, onde veio a publicar, pela primeira vez, a Pedagogia do oprimido (1970), cujo

detalhamento completo e pormenorizado encontramos em Pedagogia da esperança.

Após a redação dessa obra, Paulo Freire torna-se mundialmente conhecido, se estabelece

na Suíça através da intervenção do Conselho Mundial de Igrejas – descrito por Balduíno A.

Andreola e Mário Bueno Ribeiro no artigo Paulo Freire no Conselho Mundial de Igrejas em

Genebra -, passa a trabalhar como consultor da UNESCO, instituição que o homenageia com o

prêmio Educação para a Paz em 1986, faz viagens recorrentes à África, da qual podemos

destacar sua atuação junto a Guiné-Bissau, volta ao Brasil em 1980, filiando-se ao Partido dos

Trabalhadores (PT) nesse mesmo ano e recebendo expressivos 29 títulos de Doutor honoris

causa em universidades europeias e americanas. Freire faleceu em São Paulo, em 02 de maio

de 1997, às 5h 30 da manhã, em decorrência de um ataque cardíaco, conforme documentou o

jornal O Povo (Fortaleza) neste mesmo dia. Em 13 de abril de 2012, a lei 12.612 assinada no

primeiro mandato de Dilma Roussef, declara-o Patrono da Educação Brasileira.

Há, obviamente, uma grande quantidade de fatos que deixamos de fora dessa análise e

que não são menos importantes que os que foram acima apresentados. Entretanto, como

decidimos por tratar das obras de Freire que se estendem somente até a publicação de

Pedagogia do oprimido, procuramos salientar alguns aspectos que julgamos fundamentais para

a compreensão da origem de determinadas ideias e crenças que se solidificarão em conceitos

até esse momento. Tais conceitos, acreditamos, embora continuem a preencher as obras do

recifense têm sua origem na obra de 1970.

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CAPÍTULO 2 - PROBLEMAS POLÍTICOS, INTERPRETAÇÕES EDUCATIVAS: A

MEDITAÇÃO DE JOSÉ ORTEGA Y GASSET

Porque, como al principio os decía, y luego he insistido

en decir y ahora reitero, se trata de un instante crítico, en

que las fórmulas recibidas y gritadas públicamente no

satisfacen íntegramente a nadie y urge renovar los

principios mismos de toda la batalla política, tejer nuevas

banderas, modular nuevos himnos y forjar nuevas

interjecciones políticas que no se pierdan en el aire, como

meros sonidos, que acierten a poner tensión duradera en

los músculos de legiones de brazos (ORTEGA Y

GASSET, 1993a, p. 285)

Muitos pensadores identificam uma crise de cultura na primeira metade do século XX.

O mais célebre e conhecido comentário a respeito talvez seja o de Edmund Husserl em A Crise

da humanidade europeia e a Filosofia. José Ortega y Gasset também se debruça sobre o tema,

mas de maneira distinta da de Husserl. A identificação dessa crise se inicia logo em seus

primeiros escritos de 1914, como é o caso de Meditaciones del Quijote e Vieja y nueva política

e é sistematizado em España Invertebrada (1921), embora ainda não se configurasse como crise

de cultura, conforme correrá mais tarde. Na verdade, mais corretamente seria dizer que nesse

primeiro momento há a identificação de um problema político nacional e não propriamente uma

crise, pois o conceito de “crise” na filosofia orteguiana, conforme se observará, está ligado não

só ao conceito de “cultura” como também ao de “crença”, termos que se tornarão o núcleo de

seu pensamento a partir da importância dada ao raciovitalismo, isto é, após o movimento que

seus comentadores têm denominado de “segunda navegação”. A partir desta época,

aproximadamente 1932, Ortega abandona definitivamente sua preocupação com a política e sua

filosofia passa a adquirir um forte aspecto metafísico.

Nesse capítulo, procuraremos apresentar ao leitor, de modo generalizado e sucinto, os

conceitos principais da filosofia orteguiana, sem os quais, julgamos, é impossível compreender

seu pensamento. E compreender seu pensamento é importante para nós, pois é a partir desse

entendimento, juntamente com o entendimento do pensamento freiriano, que veremos em

seguida, que procuraremos tecer nossa análise sobre a importância de uma metodologia de ação

política junto às massas.

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2.1 O fenômeno da crise: anatomia e fisiologia

Ortega refere-se, em um primeiro momento, à configuração social espanhola, mas

depois (1930 e anos seguintes) identifica que o problema é maior do que imaginava,

estendendo-se a toda Europa, ao Ocidente, admitindo então a significação de “crise”. Isso assim

se configura, pois, ainda que a relação entre España Invertebrada e La rebelión de las masas

seja explicitada pelo autor, as duas obras pertencem a fases distintas do pensamento de Ortega,

algo no que concordam seus principais comentaristas. O método de divisão da obra orteguiana

não segue um padrão único, havendo três delas que são as mais comuns: a de Ferrater Mora –

fase objetivista (1902 a 1914), fase perspectivista (1914 a 1923) e fase raciovitalista (1924 a

1955) -, de Morón Arroyo – reflexo neokantiano e influência de Cohen (1907 a 1914),

aproximação da teoria dos valores de Scheler (1914 a 1920), antropocentrismo biologista que

aproxima as ideias de Scheler e Spengler (1920 a 1927), influência da leitura de Sein und Zeit

de Heidegger, momento em que Ortega dá maior importância aos termos “vida” e “razão vital

e histórica” relacionando-os a um sentido biográfico (1928 a 1955) – e a de Cerezo Galán, que

é considerado “preferível” por Margarida Amoedo – Galán parte do binômio cultura/vida, mas

reconhece que depois de 1930 essa relação é aprofundada e se revela em uma dialética na qual

a liberdade tem fundamental importância tanto no culturalismo, quanto no vitalismo

(AMOEDO, 2002, p. 186 ss).

Além do texto de 1921 (España invertebrada), Ortega tratou do assunto em 1926 em

um artigo intitulado Masas e em 1928 em duas conferências proferidas em Buenos Aires. Por

volta de 1930, no período que já inicia a “segunda navegação”, principalmente em La rebelión

de las masas, Dom José faz uma verdadeira anatomia da crise identificada naquele momento,

delineando o perfil de um tipo específico de homem que ele denomina “homem-massa”. Esse

indivíduo apresenta uma falha moral que é raiz de uma vida inautêntica. Deficiência que

inviabiliza o enfrentamento eficiente dos problemas da sociedade de seu tempo.

Como proposta de interpretação eficaz dessa inautenticidade, que se reflete em todas as

escolhas do homem-massa, Ortega propõe uma nova forma de organizar a educação,

principalmente o ensino superior. Para ele, a universidade tem um papel social importante: a

responsabilidade de fornecer cultura ao homem médio – definição que, como veremos, não é

pejorativa. Essa forma de encarar a situação guarda semelhança com o propugnado por filósofos

alemães conhecidos, como Johan Fichte e Karl Jaspers (influência que Ortega pode ter sofrido

nos anos em que estudou na Alemanha). Sendo assim, ao propor uma reforma universitária que

visasse responder à crise identificada, Ortega nos diz que a Universidade tem a missão

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(efetividade da vocação) de criar circunstâncias favoráveis para que o homem possa viver

autenticamente, ou seja, à altura de seu tempo, respeitando o compromisso moral que tem

consigo mesmo de viver com excelência. Portanto, delega à instituição universitária um papel

de imensa importância, pois sua missão influi não só na vida da sociedade, mas também na dos

indivíduos, permitindo formação ampla para viver a sua vocação individual e também à altura

dos desafios do seu tempo, o que se traduz, conforme veremos adiante, na preocupação com a

cultura. A universidade inautêntica, ignorante de sua missão, é uma instituição falsa, que não

serve nem à sociedade, nem aos universitários, portanto, que serve a objetivos torpes.

Tal proposta está formulada no ensaio Misión de la Universidad (1930), que os

comentadores da obra orteguiana, como já dissemos, costumam interpretar justamente como

uma resposta aos problemas identificados em La rebelión de las masas. Embora aquela obra

volte-se à discussão sobre a reforma universitária que Ortega desejava ver realizada, Margarida

Amoedo dedica as quase 700 páginas de sua tese de doutoramento, sobre a qual já comentamos,

intitulada José Ortega y Gasset: a aventura filosófica da educação, a mostrar que a

preocupação com uma educação ampla e de grande alcance sempre esteve presente na obra do

filósofo espanhol, algo que podemos notar mesmo em seus primeiros escritos. No vocabulário

orteguiano, diríamos que uma nova proposta de educação se faz necessária para permitir ao

homem contemporâneo enfrentar os desafios de seu tempo. Proposta que pode encontrar em

Ortega y Gasset fundamento sólido de interpretação e reflexão para os problemas existentes

naqueles dias, dos quais alguns parecem perdurar até hoje. O que não significa que não seja

preciso fazer uma poda, isto é, que hoje se faz necessário interpretar algumas afirmações

orteguianas (assim como a de qualquer outro autor) sem esquecer que o espaço-tempo, por

assim dizer, é outro e que os conhecimentos que possuímos do mundo se alteraram radicalmente

daqueles que Ortega possuía. Algumas das afirmações feitas podem parecer-nos e de fato serão

ingênuas se olharmos para elas sem considerar o momento em que foram escritas, assim como

encontramos ingenuidade entre os gregos e sua busca pelo El dorado das essências.

Como foi dito, para identificar a importância que Ortega y Gasset credita à educação,

principalmente à universidade enquanto instituição social, partiremos de uma pesquisa

bibliográfica das obras do autor e de seus comentadores mais importantes, como já dissemos, a

fim de deixar indicado que a presença do homem-massa está na raiz da crise de cultura

identificada naqueles dias. Em outras palavras, que o problema identificado por Ortega em sua

época está na vida individual de cada sujeito e que esta espécie de deformação vital é, a um só

tempo, causa e consequência da crise que identificava naqueles dias. Além disso, procuraremos

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evidenciar como a solução apresentada por Ortega no ensaio Misión de la Universidad faz notar

que a existência do homem-massa está intrinsecamente relacionada à crise de cultura e à

insuficiente atuação da Universidade de sua época. Isso significa que a educação se apresenta

como um modo eficaz de tratamento dos problemas, perspectiva que Paulo Freire também

adota. Por fim, indicaremos que tal discussão está, para Ortega, indissociada, de um lado, do

papel social da instituição de ensino superior, cuja atribuição é a formação de minorias

responsáveis e, de outro, da consolidação das bases de uma vida autêntica, ou seja, do

compromisso moral que cada qual guarda consigo mesmo de viver com excelência.

2.1.1 O problema político nacional

“A Espanha é, pois, um problema” (ORTEGA Y

GASSET, 1993a, p. 505).

A proposta de analisar, refletir e discutir a circunstância espanhola nas primeiras

décadas do século XX se fundamenta na convicção que Ortega y Gasset guarda do homem

como ser relacional, histórico, que vive sempre em uma circunstância determinada. Além disso,

o autor acreditava que o homem, como construtor e beneficiário da cultura, não pode se eximir

da responsabilidade da escolha existencial e que, justamente por não ser um indivíduo solitário,

precisa pautar suas escolhas ao mesmo tempo na fidelidade a si e a seu tempo. Estas duas faces

da vida humana quando vividas em harmonia e sinceridade, fazem do homem um ser autêntico.

É a busca por essa autenticidade de si e dos outros que motivará Ortega y Gasset a liderar um

grupo de intelectuais que ficou conhecido como “geração de 1914”, grupo que acreditava na

política reformista como o melhor caminho para a solução dos problemas espanhois. Estavam

também convencidos de que a situação do país à época se configurava como um momento de

crise de ideologia política. O governo daqueles dias era considerado por eles como incapaz de

sustentar a si mesmo, como adiante veremos.

Sobre a importância da meditação orteguiana para a constituição dessa geração, Juan

Ernesto P. Samper em seu texto La generación política de 1914 diz o seguinte: “o fato em torno

do qual se agrupam os membros dessa geração é duplo. Por um lado, temos a publicação do

livro Las meditaciones del Quijote de Ortega y Gasset em 1914, e por outro, a conferência que

o autor do livro deu no Teatro de la Comedia, em 23 de março de 1914, e que leva por título

“Vieja y nueva política”. O livro teve “enorme ressonância e despertou grande interesse entre

os grupos intelectuais do momento, sobretudo entre os jovens universitários” (SAMPER, 2001,

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p. 184, aspas no original). Dentre esses jovens universitários podemos destacar o teórico da

educação Lorenzo Luzuriaga8.

Na verdade, já podemos encontrar indícios do problema identificado pelo autor em seu

país muito antes dessa data. Em 13 de agosto de 1907, ao remeter a seu pai uma carta da

Alemanha, Ortega anexa um texto para ser publicado em El Imparcial (o que nunca ocorreu)

sob o sugestivo título Anarquía gubernamental, no qual analisa a propositura de leis na Espanha

e seu deliberado descumprimento. Ali lemos o seguinte:

O caso da Espanha é muito mais triste [em relação aos modos de governo que ele

considera uma arquia, isto é, no qual existem leis]: não seria pior por que governam

uns poucos, senão porque ninguém governa. Não existe lei; sobre a triste terra que

parece herdar uma divina maldição se cerne só o capricho. Não existe arquia, não há

princípio nem norma de legislação. A forma de governo na Espanha é o atropelo da

lei. Isto é anarquia? Não, não: é ainda pior. A anarquia pretende organizar-se sem lei:

entre nós é necessário que haja um fantasma de lei para faltar com ela. Não só sem lei

somos, mas contra a lei, não anarquistas, antiarquistas. Algo assim como os

românticos diabólicos do século passado que criam em Deus para blasfemar contra

ele. A tal paradoxo político não se pode senão dar um nome paradoxal: anarquismo

governamental (ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 290, itálico no original, Carta 95).

Podemos, então, perceber que já em sua mocidade o problema espanhol era muito caro

a Ortega, já lhe rendia momentos de meditação. Ora, perceberemos adiante que essa reflexão

se amplia, se desdobra em outra forma de atuação que não a política, mas guarda no essencial

esse reconhecimento. Dessa maneira, compreendemos que o momento de crise identificado por

Ortega em La rebelión de las masas, obra na qual o problema é concretamente sistematizado,

tem raízes longínquas, quando era reconhecida como um problema nacional (conforme o

próprio autor comenta em 1934 no prólogo da quarta edição de La rebelión de las masas). Em

España Invertebrada, ao meditar a relação entre minorias e maiorias, Ortega concebe duas

respostas ao problema: uma moral (relação com a autenticidade, ou seja, ao que ele chama de

núcleo insubornável de cada pessoa) e outra política (reestruturar o Estado para que interfira na

sociedade). Tanto uma como outra são importantes para uma perspectiva educacional presente

na filosofia orteguiana, pelo menos em sua reflexão nas duas primeiras décadas do século XX,

já que essa perspectiva norteia não só a atuação da Liga de Educação Política Espanhola, como

também permeia o texto fundacional do movimento, a conferência Vieja y nueva política.

Isso significa que desde muito cedo a preocupação orteguiana com a política, ou com a

crise política que identificava primeiramente como problema nacional, já se ligava a uma

preocupação pedagógica, que continuará a se desenvolver mais tarde, embora sem dedicar à

8 Sobre a influência de Ortega no pensamento do educador, conferir o artigo Uma vida dedicada à escola pública:

trajetória sócio-profissional de Lorenzo Luzuriaga (1914 – 1959) de Norberto Dallabrida (Educ. Púb. Cuiabá:

UFMT, v. 24, n. 57, p. 661 – 675, 2015).

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política o papel que a ela atribuía nesse momento. É justamente isso que procuramos apontar

ao longo deste capítulo: que a educação, ou a cultura, é o fim que pode ser alcançado por um

modo específico de agir político, embora ele abandone essa perspectiva após desiludir-se com

a política no início dos anos 30. Para compreender como, nesse primeiro momento, o filósofo

espanhol interpreta essa relação, apontaremos para o que entende ele por “pedagogia social”.

Ortega define o termo “política” como o instrumento para transformar a realidade social

circundante (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 507). Porém, ele reconhece no texto supracitado

que existe outra série de atos humanos que também visam essa transformação, isso já nos

aponta, e isso é importante, que, contrariamente a outros pensadores, Ortega não entende que

toda e qualquer relação social se resume à prática política. Para ele, “a esta ação de tirar uma

coisa de outra, de converter uma coisa menos boa em outra melhor, chamavam os latinos

eductio, educativo” (idem, p. 508, itálicos no original). Para o espanhol, a pedagogia, enquanto

ciência, tem um duplo dever: por um lado, precisa, como as outras ciências, pensar o seu próprio

tempo, ser responsável pelo atual, evitar o anacronismo; por outro, trabalha sempre com uma

perspectiva futura, pois procura formar o educando tendo como guia um ponto no horizonte,

uma finalidade almejada, uma transformação a realizar-se que sabemos não ser outra que a fazer

dele um ser moral, que, em seu modo de ver, é estar de acordo com sua vocação (íntima) e à

altura de seu tempo (social). Disso surge também um duplo problema: o primeiro diz respeito

a esse modelo visado na prática pedagógica, isto é, a pergunta pelo que o homem deve ser, pelo

que fazer dele, ou, menos pretensiosamente, pelo que lutar para que ele seja; o segundo, é o

modo de fazer isso, de realizar a transformação a que se propôs. Ambas as dualidades se

unificam justamente, para Ortega, no objeto pelo qual e para o qual a pedagogia existe: para

proporcionar a cada um as condições de resolver os desafios da vida humana que é singular,

que é minha vida, e não para o “homem” como conceito abstrato e tão fugaz quanto o aroma

do pólen em dia de ventania; mas não só para isso, pois esse homem precisa interferir na

sociedade, fazendo dela um ambiente coletivo saudável. Daí a contundente pergunta de Ortega:

“que ideia do homem terá o homem que vai humanizar vossos filhos?” (idem, p. 510). Tratará

ele dos educandos como aos cavalos, como argumentava Platão, quer dizer, como indivíduos

biológicos apenas? Se assim for, estará ignorando a humanidade do homem, seu interior, que

pensa, que sente e que quer. O que Ortega sugere é a passagem da vida como biologia para a

vida como biografia.

Não se pode ignorar, portanto, que “ao entrar o pedagogo em relação educativa com seu

aluno, se ache frente a um tecido social, não frente ao indivíduo” (idem, p. 513), principalmente

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por que Ortega está convencido de que “o indivíduo humano, separado da sociedade [...] não

existe, é uma abstração” (Ibidem). O que não significa que o educando não tenha

individualidade, mas que traz consigo os traços sociais do ambiente em que se move, em que

vive. Traços estes que são, como explicou Durkheim, lógica e cronologicamente anteriores ao

indivíduo, que antecedem e que definem a individualidade, ainda que o filósofo espanhol

compreenda que o social não é mais que os esforços individuais combinados para realizar uma

obra comum. É uma questão de ponto de vista. Ao invés de se questionar sobre a significância

de uma gota de água no oceano, ele prefere pensar que o oceano não é senão uma imensidão de

gotas d’água. A sociedade é o cérebro, os indivíduos são os neurônios e suas ações as sinapses.

Um exemplo melhor que podemos emprestar da Filosofia da Linguagem para compreender essa

compreensão orteguiana entre sociedade e indivíduos é imaginarmo-nos diante de uma

orquestra e nos perguntar onde ela está, já que o que vemos, na verdade, são os instrumentistas

e seus instrumentos. Ortega o fez também em Meditaciones del Quijote, ao refletir sobre o

bosque que via do alto de uma janela em El Escorial.

Essa ideia encontramos também no livro El hombre y la gente, no qual Ortega reconhece

que a vida do outro é sempre uma vida suposta, em contradição à realidade radical que é minha

vida. O conhecimento de meu mundo e de tudo o que o compõe tenho-o “de dentro”, já o

conhecimento que possuo do outro se dá exclusivamente “de fora”, através do que ele

externaliza: seus gestos. Sua realidade é, portanto, secundária: um alter ego, onde este ego

distingue-se do ego que utilizo para se referir a mim. Ortega diz ainda que a relação que existe

entre “eu” e “outro” é uma relação ativa: ambos se influenciam mútua e constantemente.

Portanto, é a sociedade entre ambos, “eu” e “outro”, que faz com que partilhem um mundo

comum. Essa inter-ação, reciprocidade ou abertura ativa ao outro, melhor representada na fala,

na linguagem, é o fundamento inexorável da relação social. Viver é, portanto, conviver. A

elevação do nível de proximidade na convivência é denominada “intimidade”. Na intimidade,

o outro torna-se único e inconfundível: “tu”. Essa classificação do outro como “tu” tem

importância especial para a consciência subjetiva, pois é a partir dele (do “tu”, deste “outro”)

que as arestas do “eu” são conhecidas. Assim, o “eu” se torna complexo, pois, ao contrário do

que parece, ele é porção ínfima do mundo, que tem infinitos outros e “tus”. Esta é também a

interpretação profunda, não literal e superficial, do famoso texto de Gênesis 2, 23.

Com base nestas ideias, que, embora tenham se desenvolvido mais tarde (1934) já se

encontravam presentes, de certa forma, nos textos da década de 1910, pois já então Ortega nos

ensinava que empreender uma pedagogia individual é um erro e um projeto estéril (idem, p.

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515) e deve ser substituída pela pedagogia social. Isso significa que Ortega acredita que a

mudança deve focar-se, primeiramente, no social, somente como meio ou instrumento de se

atingir o individual, pois as conquistas almejadas através da ciência, da moral e da arte, por

exemplo, são conquistas que se tornam supra individuais, ou melhor, culturais. Este novo tipo

de educação deve visar a sociedade para atingir o indivíduo e não o contrário, pois Ortega

entende, como Platão o fazia, que a escola, ou o que chamamos de “educação formal”, é

apenas um momento da educação, indissociada da sociedade onde se encontra. Sendo assim,

“teremos que a pedagogia é a ciência de transformar sociedades. Antes chamamos a isto

política: eis aqui, pois, que a política se fez para nós pedagogia social e o problema espanhol

um problema pedagógico” (idem, p. 515).

É importante ressaltar que isso não significa necessariamente uma inversão ou uma

contradição do modo como Ortega entende o problema. Já dissemos que a preocupação

orteguiana é primariamente individual, embora ele reconheça que o indivíduo se faz a partir de

um todo social que é maior, anterior e mais “forte” que ele, conforme lemos em El hombre y la

gente, sua obra magna de reflexão sociológica. A ideia que apresentamos de que a “pedagogia

individual é um erro” está calcada nessa concepção e não na que faria de um coletivo abstrato

o objetivo da atuação da educação (pedagogia). O seu objetivo, poderíamos dizer, é duplo e se

dá de maneira dialética, inseparável, na medida em que visa a ação social para atingir o

indivíduo e fazer dele um homem culto. A partir daí, o homem seria capaz de contribuir para o

ambiente coletivo das intersubjetividades que chamamos “cultura”, âmbito de todas as ações

humanas, conforme já nos ensinara o filósofo: “[...] a sociedade é a única educadora, como é a

sociedade o único fim da educação [...]” (idem, p. 519). A ação política – que aqui Ortega tem

atribuído como sinônimo de “pedagogia social” - é, claro está, o meio que acredita, nesse

momento, ser o mais eficaz para atingir esse objetivo dual, sem nos esquecermos que ele

abandona essa perspectiva anos mais tarde, sem, contudo, deixar de lado a preocupação com o

social. O que acontece, nos parece, é que, como dissemos, Ortega acredita que tenha sido

ingênuo ao acreditar que política e educação fossem sinônimos.

Sendo assim, a pedagogia social passa a compreender o homem como construtor de

cultura, daí que seu valor ético esteja justamente no fato de fazer com que o todos os homens,

o trabalhador, inclusive, tenha consciência cultural, quer dizer, que se reconheça na tarefa que

realiza como parte de um grupo que partilha o esforço por tal tarefa. Nesse momento, Ortega

entende “cultura” como “magnífica tarefa humana” que “abarca tudo, desde cavar a terra até

compor versos” (idem, p. 517), o que está em consonância com o que diria mais tarde na quinta

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lição de El tema de nuestro tiempo. Ali Ortega nos diz que a cultura jamais pode ser separada

da vida, que é biológica, mas que tem exatamente na cultura sua função espiritual, o que se

resume em um duplo imperativo: “a vida deve ser culta, mas a cultura tem que ser vital”

(ORTEGA Y GASSET, 1937, p. 35). É justamente nesse movimento dialético que percebemos

o desenvolvimento do raciovitalismo orteguiano como crítica e superação — termo que na

filosofia de Ortega significa “ir além, mas trazendo o passado consigo9” — ao idealismo, ao

subjetivismo, ao racionalismo, ao ceticismo e mesmo à fenomenologia (inicial, que era a que

Ortega conhecia) de Husserl. Sendo assim, podemos dizer que a pedagogia social tem a

sociedade como fim, se e somente se estiver para nós claro que, para Ortega, esse termo

(“sociedade”) significa simplesmente a colaboração dos diversos indivíduos envolvidos em

uma tarefa comum (cooperação) que é a construção da nação cívica, somente possível se não

ignora os interesses pessoais (vocação). Em outras palavras, a nação ou sociedade é o conjunto

dos esforços interessados e individuais comum dos homens. Por isso, ela exige a socialização

da educação e da escola, a constante correlação entre o indivíduo e a sociedade que deve ser

laica, no sentido etimológico (do grego laos: povo e laicos: popular).

Dessa maneira, podemos perceber que a preocupação orteguiana em Vieja y nueva

política e no Prospecto de la “Liga de Educación Política Española”, textos em que podemos

observar uma metodologia de ação política que será analisada em capítulo ulterior, é pautada

por uma concepção pedagógica que privilegia o indivíduo frente a sociedade para fortalecê-la,

o que evita que se estabeleça qualquer tipo de proposta totalitária. Pelo contrário, quando se

parte da política, ou da pedagogia social, para atingir o indivíduo se está professando a fé na

capacidade que cada um tem de aprender e de retirar do ambiente cultural e coletivo os

princípios para nortear sua conduta. Sendo construtor da cultura, ele não só contribui para esse

espaço cultural e coletivo, como também, e justamente por isso, preocupa-se com a formação

individual de si e dos outros, já que é desse tesouro da herança cultural que ele saca valores

coletivos cristalizados e deposita valores individuais que podem se solidificar. Dessa maneira,

um ambiente cultural saudável tende a permitir um desenvolvimento individual salutar e essa

individualidade sadia terá como tarefa principal contribuir para que esse ambiente continue a

existir, para que o círculo não seja rompido. Nos dizeres de José Maurício de Carvalho no livro

O Homem e a Filosofia: pequenas meditações sobre Existência e Cultura, “vivemos uma

9 Como se observa em ¿Qué es Filosofía?: “[...] toda superação é conservação” (ORTEGA Y GASSET, 1958, p

212) e “superar é herdar e adicionar” (Idem, p. 241).

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subjetivação e uma objetivação que tem como resultado a cultura, mas o fazemos como

existências singulares” (CARVALHO, 2007, p. 40, itálico no original).

Essa meditação nos é apresentada em El hombre y la gente (de 1934, mas publicado

postumamente em 1957) de modo muito mais maduro e já com a nova perspectiva orteguiana

sobre a política. Nesse texto, Ortega reflete acerca dos conceitos “ensimesmamento” e

“alteração”, como também fizera, entre outros textos, em Socialización del hombre, pequeno

ensaio de agosto de 1930, atribuindo à força individual a importância que naquele momento -

primeiras duas décadas do século XX - ainda não havia atribuído. Para o filósofo, ao longo da

história houve um equilíbrio entre esses dois aspectos — mergulhar-se em si mesmo e voltar-

se para fora – cuja alternância permite ao homem viver de maneira autêntica. Quando se

considera a ação, ela só é verdadeira se nasce do pensamento autêntico. O pensamento, por seu

turno, só é autêntico quando direcionado para a ação, estabelecendo-se um vínculo entre

ensimesmamento e alteração, teoria e prática, reflexão e ação. Segundo o filósofo, não se vive

para pensar, mas pensa-se para viver. Há épocas, contudo, em que a alteração é mais valorizada

que o ensimesmamento, perdendo-se o equilíbrio entre os dois momentos. Estas são épocas

denominadas de desencadeamento, ou seja, de insensatez encadeada, que é o modo como

Ortega pensa o seu tempo. Essa forma de encarar a ação humana como construtora, ao mesmo

tempo, de cultura e da individualidade, nos parece, está ligada à sua formação em Marburgo

com os neo-kantianos; escola da qual surgirá o culturalismo.

A reflexão de Ortega y Gasset a esse respeito amadurecerá com o passar do tempo e será

solidificada dezesseis anos mais tarde em La rebelión de las masas. Entretanto, notamos que

embora o problema político nacional se transforme em crise de cultura e transcenda as fronteiras

espanholas, sua configuração de problema social que deve ser atingido na individualidade

através da prática educativa permanece praticamente inalterável. Com diz Taltavull, referindo-

se à meditação orteguiana daquela época, “política e educação são [...] duas faces de uma

mesma moeda: a nação cívica” (TALTAVULL, 2015, p. 149).

2.2 A crise se amplia

Em España Invertebrada, Ortega y Gasset começa a classificar o problema político que

vem identificando em seu país por quase uma década como sendo uma crise de grandes

consequências: “[...] a mais grave talvez das mais graves, quando menos, que recorda a história”

(ORTEGA Y GASSET, 1994a, p. 238). Já em El tema de nuestro tiempo, ele dirá que a Europa,

significando o Ocidente, conseguiu a façanha de dissociar cultura e espontaneidade (ORTEGA

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Y GASSET, 1937, p. 41) e identifica nessa dissociação o maior problema de sua época, reflexão

que também encontramos em Meditación de la técnica, texto em que Ortega identifica o

problema europeu/ocidental principalmente na fé inabalável que a técnica de sua época

mantinha nas descobertas científicas e no especialismo que disso decorria e decorreria. Ao

analisar as circunstâncias daquele momento, Ortega encontra um quadro inédito: já não havia

mais sérios empecilhos nem graves preocupações. A humanidade via-se como uma família de

irmãos libertos e iguais. Esse arranjo circunstancial, para ele, só foi possível por causa de três

fatores: a) a democracia liberal, b) a experimentação científica e c) o industrialismo. Estes dois

últimos, para o autor, são justamente aquilo que chamamos de “técnica”.

Entretanto, é preciso aprofundar o que Ortega y Gasset entende por “crise”, para mostrar

que, embora tenha havido períodos de crise na história, a identificada nesse tempo em particular

é excepcional10.

2.2.1 Segunda navegação e a significação sistematizada do conceito de “crise”

Para tratar da concepção orteguiana de crise é necessário começar pelo que seus

comentaristas atuais têm classificado como “segunda navegação”, identificada nos textos de

1932 em diante. O termo, atualizado de Platão (Fédon) está presente na última linha de um texto

deste mesmo ano intitulado A una edición de sus obras e se refere ao movimento que Ortega

vê necessário realizar devido ao destaque internacional do qual gozava naquele momento, em

grande medida pela reflexão que fizera dois antes anos em La rebelión de las masas. Entretanto,

ainda que os comentaristas tenham dito que 1932 é uma data aproximativa de seu início, La

rebelión de las masas e Misión de la Universidad – ambos de 1930 – já inauguram essa nova

fase do pensamento do autor. Nesse período, a meditação de Ortega assume determinadas

características que, embora não signifiquem um rompimento com o tema anterior, adotam como

tema central de seu pensamento os conceitos de “cultura”, “crise”, “crença” e “razão histórica”.

Portanto, nessa fase, contrariamente ao enfoque de seus escritos anteriores, a meditação

de Ortega assume como tema fundamental a razão vital, o que significa, por exemplo, que

Ortega passa a conceber o conceito de “cultura” como inseparável do movimento da história.

Em O progresso segundo Ortega y Gasset: o movimento da razão vital, compreedemos que a

segunda navegação se caracteriza pela “experiência temporal como parte essencial da

racionalidade” (CARVALHO, 2015, p. 47), demarcando a posição contrária de Ortega em

10 Para um estudo mais detalhado sobre o tema, conferir o artigo Ortega y Gasset: crise da Espanha e problemas

políticos de José Maurício de Carvalho.

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relação as perspectivas de Hegel e Comte, nas quais haveria uma espécie de razão extra-

histórica. Nessa “segunda navegação”, Ortega não perde de vista a ideia de que a vida é a

realidade fundamental, atribuindo a ela um caráter histórico naquilo que veio a ser conhecido

como razão vital e histórica ou raciovitalismo. José Maurício de Carvalho no artigo El problema

del conocimiento en El Espectador de Ortega y Gasset, dá-nos uma consistente descrição desse

fenômeno:

O que se entende como segunda navegação é o aprofundamento das teses orteguianas

na direção da razão vital e questões culturais. Trata-se, disse Lluís X. Álvarez no

proêmio de La última filosofia de Ortega y Gasset, da explicitação de suas ideias em

comparação com as que eram mais próximas como a escolástica católica e o

ontologismo de Martin Heidegger. Entendo que se trata também de dar uma resposta

mais adequada às dificuldades do neokantismo alemão. Com o estudo sobre as

mudanças na forma de pensar das gerações, Ortega y Gasset incorpora o

reconhecimento de que a consciência humana é histórica. O que o singulariza nesta

conclusão é pensar a historicidade da consciência no âmbito de uma teoria da distância

dos objetos, como procuramos deixar indicado. Ortega y Gasset chama esta inserção

da teoria dos objetos na dinâmica da vida de razão vital, ainda que não chegue a

reconhecer uma especificidade dos objetos culturais, o que alteraria sua teoria.

(CARVALHO, 2014, p. 112, grifos no original)

Esses termos, já presentes nas duas obras mencionadas de 1930, são as bases conceituais

da conferência de 1933 pronunciada por Ortega na Universidad Central, organizada em doze

lições e compiladas no livro intitulado En torno a Galileo. Nele, Ortega esclarece que “a crise

é uma peculiar variação histórica” (ORTEGA Y GASSET, 1994c, p. 69). A crise histórica

refere-se não à mudança normal do mundo, que é sempre precedida por uma nova forma de

encarar a circunstância, mas “quando a variação do mundo que se produz consiste em que ao

mundo ou sistema de convicções da geração anterior sucede um estado vital em que o homem

encontra-se sem aquelas convicções, portanto, sem mundo” (Ibidem). Essa definição de crise

nos apresenta o que há de catastrófico: fica o homem despregado de tudo, como náufrago, sem

poder agarrar-se a nada para viver, pois “o sistema de convicções de uma geração”, ou seja, as

crenças sobre as quais uma geração vive já não oferecem sustentáculo ao homem, pois foram

colocadas em dúvida para deixar lugar ao que Ortega chama de “crenças negativas” (Idem,

p.70).

A importância das crenças na vida do homem é elucidada no texto Un capítulo sobre la

cuestión de cómo muere una creencia, quando o autor diz que crenças “não são ideias que

temos, senão ideias que somos. [...] Se confundem para nós com a realidade mesma” (ORTEGA

Y GASSET, 1997b, p. 721) e completa no parágrafo 30 de La idea de principio en Leibniz y la

evolución de la teoria deductiva: “a forma de consciência que em nós tem as ‘crenças’, não é

um ‘dar-se conta’, uma noésis, senão um simples e direto ‘contar com’” (ORTEGA Y GASSET,

1994d, p. 288, aspas e grifos no original).

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Explicitemos ainda um pouco mais a diferença entre “ideia” e “crença”: “dar-se conta

de uma coisa sem contar com ela [...] isso é uma ‘ideia’. Contar com uma coisa sem pensar

nela, sem dar-se conta dela – como nos passa a solidez da terra sobre a qual daremos o próximo

passo [...] -, isso é uma ‘crença’” (ibidem, aspas no original). No mesmo texto, no parágrafo

26, Ortega nos apresenta outra diferença. Chama ele as ideias de “ideoma”: “pura possibilidade

mental, que não tem realidade humana” (Idem, p. 258). Já as ideias que se efetivam na vida são

denominadas “draoma”: “uma ação vivente ou ingrediente invisível dela” (Idem, p. 259). Ideias

tornam-se crenças, na medida em que ideomas tornam-se draomas. É essa diferença que

reconhece Paulo Freire em sua última entrevista, sobre a qual comentamos na introdução deste

trabalho.

Sendo assim, nossas ideias, aquilo a que, vez ou outra, nos detemos para analisar

racionalmente, tem muito menos peso em nossa constituição do que as crenças. Sobre estas não

nos detemos, não pensamos, assim como não paramos para analisar a solidez do chão que

ordinariamente pisamos. Na verdade, já dizia Einstein, “raramente refletimos o quão pequena

é a influência de nosso pensamento consciente sobre nossa conduta e convicções quando

comparada à poderosa influência da tradição” (EINSTEIN, 1983, p. 117). José Maurício de

Carvalho, no artigo O progresso segundo Ortega y Gasset, detalha a importância das crenças

na vida do homem ao dizer que elas “estão na raiz dos movimentos da consciência”

(CARVALHO, 2015, p. 41). Encontramos essa forma de compreender a diferença entre ideias

e crenças também na literatura: “Convence-te de uma ideia, e morrerás por ela” (ASSIS, 1977,

p. 119) escrevera Aires no Memorial, como nos conta Machado de Assis em Esaú e Jacó.

Esse período de crise inicia-se, segundo Ortega em En torno a Galileo, quando existe

uma “fé confusa” (ORTEGA Y GASSET, 1994c, p. 71) em outras coisas. Em La idea de

principio en Leibniz, o autor nos explica melhor o que isso significa:

somente quando o homem se dá conta de que frente a suas próprias crenças existem

outras, que uma vez advertidas lhe parecem a ele mesmo pouco mais ou menos tão

dignas de crédito como as suas, é quando no homem surge uma nova necessidade: a

de poder discernir qual entre os dois convolutos de crenças é que ultimamente merece

ser acreditado. (ORTEGA Y GASSET, 1994d, p. 288, grifo no original).

Em Idea del Teatro, Ortega, para diferenciar crenças mortas de crenças vivas, utiliza as

nomenclaturas “ser em forma” e “ser em ruína”, apresentando a ideia de que a história é uma

sucessão destas duas etapas. Mas esse conceito de “fé confusa” é melhor elucidado no exemplo

de que se vale o filósofo em El tema de nuestro tiempo:

Imagine-se um momento de transição durante o qual as grandes metas que ontem

davam uma clara arquitetura a nossa paisagem perderam seu brilho, seu poder atrativo,

sua autoridade sobre nós, sem que, todavia, tenham alcançado completa evidência e

vigor suficientes as que vão substituí-las. Na ocasião, parece a paisagem desarticular-

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se, vacilar, estremecer-se entorno ao sujeito; os passos deste serão também vacilantes,

posto que oscilam e se apagam os pontos cardeais e as rotas mesmas se esquivam

ondulantes como fugindo do plano (ORTEGA Y GASSET, 1937, p. 65).

Nesse tempo de fé confusa em que as crenças estabelecidas não respondem mais aos

desafios impostos pelas circunstâncias, o homem é obrigado a criar novas ideias para que possa

viver. Mas essa obrigação, nos esclarece Ortega em ¿Qué es Filosofía?, se assemelha mais à

do esportista que à do trabalhador, quer dizer, parte de um esforço que “não nos é imposto, nem

é utilitário nem é remunerado, senão um esforço espontâneo, luxuoso, que fazemos por gosto

de fazê-lo, que se compraz em si mesmo” (ORTEGA Y GASSET, 1958, p. 130). Algumas

dessas ideias cristalizar-se-ão em novas crenças. O que caracteriza esse período é, assim, a

autenticidade, ou melhor, a autêntica necessidade, já que o homem é levado por uma exigência

interior, desportiva, a criar uma nova forma de encarar o mundo. “A cultura”, diz-nos Dom

José, “brota e vive, floresce e frutifica em ânimo espiritual bem-humorado – na jovialidade”

(Ibidem). No visar de Ortega, é justamente por também entender assim que Platão em seus

últimos escritos joga ironicamente com os termos (cultura, formação) e (jogo,

jovialidade). Em contrapartida, o homem que não toma contato com o drama recorrente da vida,

que não atenta aos problemas radicais da existência,

vive sobre um estrado de cultura que lhe vem de fora, sobre um sistema de opiniões

alheias, de outros eus, do que está na atmosfera, na “época”, no “espírito dos tempos”

em suma, de um eu coletivo, convencional, irresponsável, que não sabe porque pensa

o que pensa, nem quer o que quer (ORTEGA Y GASSET, 1994c, p. 78, aspas no

original).

Em outras palavras, o homem se perde na circunstância, se perde na cultura herdada,

inautêntica, alheia aos problemas que enfrenta ele mesmo, que não é propriamente “dele”. “Sua

vida vai sendo cada vez menos sua e sendo cada vez mais coletiva” (Ibidem, grifo no original).

A esse fenômeno Ortega chama de “socialización del hombre”; termo utilizado em diversos

textos, dentre os quais destacamos La rebelión de las masas, Socializón del hombre, En torno

a Galileo e El hombre y la gente. Essa socialização retira do homem uma característica

fundamental de seu modo de ser, a qual deveria fazer um contrapeso à socialização para manter

o equilíbrio do homem. Essa característica é o ensimesmamento, conforme já explicamos. Em

El hombre y la gente, Ortega define “ensimesmamento” como “o poder que o homem tem de

retirar-se virtual e provisoriamente do mundo, de meter-se dentro de si” (ORTEGA Y GASSET,

1997a, p. 84). A importância dessa prática, o autor nos ensina em Socialización del hombre:

A solidão, de hora em hora, gotejando sobre a alma, faz faina de forjador sobre ela. A

solidão tem algo de ferreiro transcendente que faz a nossa pessoa compacta e a repuxa.

Sob seu tratamento, o homem consolida seu destino individual e pode sair

impunemente à rua sem contaminar-se por completo do público, monstrengo,

endêmico. No isolamento se produz de maneira automática um crivo e discriminação

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de nossas ideias, afãs, fervores, e aprendemos os que são de verdade nossos e os que

são anônimos, ambientes, caídos sobre nós como o rebuliço do caminho” (ORTEGA

Y GASSET, 1998a, p. 744).

O mestre espanhol já havia chamado atenção quase uma década antes em El tema de

nuestro tiempo para a dificuldade dessa tarefa, ao dizer: “nada menos habitual, em efeito, que

essa torção da mente para dentro de si mesma. O homem se formou na luta com o exterior e só

lhe é fácil discernir as coisas que estão fora. Ao olhar dentro de si se obnubila a vista e padece

vertigens” (ORTEGA Y GASSET, 1937, p. 19).

Percebemos então que o momento de crise é aquele em que o homem é levado a deixar

para trás o conjunto de crenças ultrapassadas, ou seja, a cultura objetivada que não mais

responde aos desafios que a circunstância impõe, para criar, autenticamente, ideias que

responderão a estes novos desafios. Algumas dessas ideias vão se solidificar, tornando-se uma

herança para as futuras gerações e se sedimentarão em forma de crenças, constituindo o tecido

da nova cultura.

José Maurício de Carvalho, no artigo El problema del conocimiento em El Espectador

de Ortega y Gasset, nos diz que

o conceito de crença desenvolvido nos últimos trabalhos orteguianos aprofunda a

noção de contar com o modo como as coisas são, que já estudava em El Espectador.

Naqueles ensaios também se explicita a noção de vida real e autêntica, assim como

outros aspectos fundamentais de sua meditação epistemológica sobre os objetos e a

presença destes na consciência. A relação entre conhecimento e vida, ideias e crenças,

ganham forma definitiva em Ensimesmamiento y alteración (1939), Ideas y creencias

(1940), Sobre la razón histórica (1940), La idea de principio en Leibniz y la evolución

de la teoria deductiva (1947) y El hombre y la gente (1949). Isto se comprova pelo

sentido de continuidade e semelhança das posições expostas nas últimas obras

mencionadas com a relação às que propôs em El Espectador (CARVALHO, 2014, p.

113, grifos no original).

Contudo, o homem “que vive de uma cultura já falsa, necessita absolutamente de... outra

cultura, quer dizer, de uma cultura autêntica” (ORTEGA Y GASSET, 1994c, p. 79). Em uma

palavra, a cultura é a localização espaço-temporal do homem no mundo como conjunto de

ideias que permitem a ele planejar e interpretar a vida em sua urgência. Se as crenças são as

bases históricas onde o homem se estabelece e vive – por definição, escolhe — não são, elas

mesmas, racionais. É, portanto, justamente ao serem colocadas as crenças sob o olhar

implacável e sincero da razão, quando a dúvida paira sobre sua função de bases interpretativas

do mundo é que a crise se estabelece. Em Un capítulo sobre la cuestión de cómo muere una

creencia, ao reconhecer as três fases de uma crença, “quando é fé viva, quando é fé inerte ou

‘morta’ e quando é dúvida” (ORTEGA Y GASSET, 1997b, p. 721, aspas no original), Ortega

nos diz que é nesse terceiro momento em que surge a crise. Em La idea de principio em Leibniz

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nos esclarece ainda que “a dúvida é a irmã vesga que tem a crença” (ORTEGA Y GASSET,

1994d, p. 291).

No texto Sistema de la Psicología, Ortega comenta que o termo “crise” “não significa

nada pejorativo, não implica mingua nem perigo” (ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 436) “senão

alteração intensa e funda” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 100), completa ele em pequeno

ensaio datado de 16 de novembro de 1930 e publicado no periódico argentino La nación

intitulado ¿Por qué se vuelve a la filosofia?. É exatamente “quando mudam as circunstâncias

da vida e a perspectiva com a qual se enxerga os problemas, [que] muitas crenças são colocadas

sob suspeição e isso provoca um mal-estar que pede novas ideias ou explicações. Temos então

uma crise” (CARVALHO, 2015, p. 43).

Partindo da ideia resumida em Pasado y porvenir para el hombre actual, que nos diz

que o homem tem história ao invés de uma essência natural (ORTEGA Y GASSET, 1997b, p.

646), o movimento feito pelas ideias, crenças e culturas, nos adverte que não basta estudar o

homem no presente, mas, para conhecê-lo, para saber porque pensa como pensa, é preciso

estudar a sua história, conhecer seu passado. Devido à essa essencial mutabilidade, o homem

tem que se fazer, tem que decidir por si mesmo o que fará e o que será no futuro, principalmente

nos momentos em que se vê obrigado a deixar de lado a cultura desgastada. Isso quer dizer que

ele não é um conceito abstrato, mas um ser de carne e osso, com desejos, alegrias e frustrações

individuais. Por isso, para Ortega, o passado tem fundamental importância para compreender a

vida do homem, pois é a única coisa fixa nela.

Com estas ideias, Ortega antecipa pensamentos que virão após o seu, como quando diz

que 13 anos antes (idem, p. 654) de Heidegger, ou seja, em 1914 em Meditaciones del Quijote,

já havia dito o que o alemão diria em 1927. Quanto a Sartre a precedência é óbvia e a

semelhança com o pensamento de Ortega impressiona, como se pode ver na seguinte citação

do espanhol: “é livre o homem... à força. Não é livre de não ser livre” (Idem, p. 647). Ortega

aperfeiçoa e se diferencia da perspectiva existencialista francesa quando se exime de reduzir a

vida do homem à pura angústia, como se percebe na seguinte citação: “A vida é precisamente

a unidade radical e antagónica dessas duas dimensões entitativas: morte e constante ressureição

ou vontade de existir malgré tout, perigo e jovial desafio, ‘desespero’ e festa, em suma,

‘angústia’ e ‘esporte’” (ORTEGA Y GASSET, 1994d, p. 293, grifos no original).

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2.2.2 A crise adquire aspecto de ineditismo

Escreve o filósofo no livro En torno a Galileo que momentos de crise são comuns na

história: do mito ao logos, do paganismo ao cristianismo (estabelecimento da hegemonia do

Império Romano), do cristianismo ao racionalismo, do medievo ao Renascimento e à

modernidade, pormenorizadamente explicados na obra. Entretanto, a crise que Ortega identifica

em sua época, tem a peculiaridade de, em resumo, não contar com o esforço dos homens de

transformar a herança cultural recebida. Em outras palavras, os homens vão se tornando cada

vez mais cultos, cada vez mais socializados, alterados, e perdem, a conta-gotas, a intimidade

com seu interior, o que lhe impede de agir de maneira autêntica. Nas palavras do filósofo, “o

homem que sabe muitas coisas, o homem culto, corre o risco de perder-se no pântano de seus

próprios saberes e acaba por não saber qual é seu autêntico saber. Não temos que buscar longe:

este é o caso do homem médio atual” (ORTEGA Y GASSET, 1994c, p. 87). Para melhor

elucidar esse aspecto inédito da história, estudemos as características únicas que esse período

traz consigo.

Reconhece o espanhol que o momento é, de fato, estranhíssimo. Em Un capítulo sobre

la cuestión de cómo muere una creencia, diz que “[...] isso que chamamos crise atual, para si

quiseram quase todos os séculos do passado. Nossa penúria lhes pareceria abundância e delícia”

(ORTEGA Y GASSET, 1997b, p. 721). Nesse momento – lemos em Pasado y porvenir para

el hombre actual — “o homem se sente relativamente tranquilo ante ao porvir porque se sente

herdeiro de um magnífico passado” (idem, p. 658, grifos do autor), pois – completa em La

rebelión de las masas — “jamais em toda a história seria colocado o homem em uma

circunstância ou contorno vital que se parecesse nem de longe ao que essas condições

determinam” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 406). Contudo, o surgimento do século XX faz

com que “problemas até agora desconhecidos em sua profundidade e amplitude emerjam no

horizonte como constelações ameaçadoras e antes nunca vistas” (ORTEGA Y GASSET, 1997b,

p. 660). A segurança que acreditava existir se espedaça diante dos novos desafios e a

humanidade é incapaz de resolvê-los. Eis, dessa forma, o primeiro aspecto da crise: radical

insegurança. É o que encontramos confirmado em Meditación de la técnica: “todas essas

seguranças são as que precisamente estão fazendo periclitar a cultura europeia” (ORTEGA Y

GASSET, 1994c, p. 332).

Assim, as crenças em que o homem se baseava para viver, para tomar decisões — ou

seja, sua cultura -, mostravam-se insuficientes para responder aos novos problemas que

eclodiam por toda parte. Há, contudo, outro aspecto essencial para a compreensão da crise

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identificada e que está intrinsecamente relacionado à outra característica já mencionada. Refere-

se ele a este momento histórico ser um tempo de massas. Conforme lembra o professor José

Maurício de Carvalho em Introdução à Filosofia da razão vital de Ortega y Gasset, “para

Ortega, a razão da crise tinha uma raiz social e política, nascia do tipo de homem que a

sociedade da abundância havia criado na Europa” (CARVALHO, 2002, p. 416). Isso significa

que as circunstâncias que se consolidaram ao longo do século XIX, fazendo com que o homem

acreditasse em uma falsa ideia de progresso inexorável, fizeram com que os homens

desenvolvessem um tipo especialíssimo. Mas antes de nos referirmos aos elementos

constituintes desse tipo de homem, precisemos inicialmente o que Ortega y Gasset entende ao

utilizar o termo “massa”.

2.2.3 “Massa” e “minoria”

Em España Invertebrada, o autor entende que “uma nação é uma massa humana

organizada, estruturada por uma minoria de indivíduos seletos” (ORTEGA Y GASSET, 1994a,

p. 93) e que isso “se trata de uma iniludível lei natural, que representa na biologia das sociedades

um papel semelhante ao da lei das densidades na física” (Ibidem), pois – ele parece completar

em La rebelión de las masas — “a sociedade é sempre uma unidade dinâmica de dois fatores:

minorias e massas” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 377) e em El tema de nuestro tempo

classifica essa organização como uma “comunidade básica entre os indivíduos superiores e a

multidão vulgar (ORTEGA Y GASSET, 1937, p. 9). Nesta mesma obra, o filósofo espanhol

nos diz que essa dualidade é essencial ao processo histórico e que “a humanidade, em todos os

estágios de sua evolução, tem sido sempre uma estrutura funcional em que os homens mais

enérgicos – qualquer que seja a forma desta energia – operaram sobre as massas dando-lhes

uma determinada configuração” (Ibidem). Portanto, chamar a crise de “tempo das massas” não

é associá-la a um momento no qual elas simplesmente existem ou aumentam vertiginosamente

de tamanho, isso, de certa forma, sempre ocorreu.

Todavia, a compreensão que tem Ortega dos conceitos de “massa” e “minoria” é distinta

da que comumente se encontra. Podemos dizer que essa perspectiva sociológica parece ter sido

grandemente influenciada pela leitura de duas obras específicas em 1902: uma de Juan Izoulet,

publicada em 1894, cujo título é La ciudad moderna y la metafísica de la sociologia e outra de

Jaime Novicow, intitulada Conciencia y voluntad sociales (1897)11. Ainda em El tema de

11 Cf. ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 95.

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nuestro tempo, Ortega explica que “as minorias são indivíduos ou grupos de indivíduos

especialmente qualificados” (Ibidem). Formam-se quando homens se afastam da multidão por

razões especiais, estritamente individuais, ou seja, para que um integrante da massa se torne

minoria é preciso que dela se destaque, que se qualifique. Em uma palavra, os integrantes da

minoria são aqueles mais disciplinados, que exigem mais de si mesmos. Por sua vez, “a massa

é o conjunto de pessoas não especialmente qualificadas [...] é o homem enquanto não se

diferencia de outros homens, senão que repete em si um tipo genérico” (Ibidem). Em outro texto

de 1930 intitulado Socialización del hombre, Ortega define os integrantes da massa como

aqueles que “sentem uma luxuriosa fruição em deixar de ser indivíduos e dissolver-se no

coletivo. Há uma delícia epidêmica em sentir-se massa, em não ter destino exclusivo”

(ORTEGA Y GASSET, 1998a, p. 745). O que significa – e isto é importante – que os conceitos

de “massa” e “minoria” nada têm a ver com uma delimitação de classes sociais, nem com

propriedade privada possuída, com bens, em suma, com a quantidade de capital monetário

possuído por alguém. Ser integrante da minoria, para Ortega y Gasset, tem a ver com um tipo

de ser homem: “chamemos massa a este modo de ser homem – não tanto porque seja

multitudinário, quanto porque é inerte” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 413). É o que explica

Margarida Amoedo, ao dizer que “[...] todo aquele que não exige de si algo de especial, que

não procura aperfeiçoar-se e que se limita a andar à deriva é o homem médio, o homem-massa,

qualquer que seja o grupo social ou profissional a que pertença [...]” (AMOEDO, 2002, p.

103, itálicos no original, negrito nosso).

Dessa forma, quando Ortega refere-se ao tempo das massas está chamando atenção para

a catastrófica inversão do equilíbrio social, como explica em España Invertebrada: “quando

em uma nação a massa se nega a ser massa – isto é, a seguir uma minoria diretora, a nação se

desfaz, a sociedade se desmembra e sobrevém o caos social” (ORTEGA Y GASSET, 1994a, p.

93). Nesse texto de 1921, ele denominava tal ocorrência de “invertebración histórica” (Ibidem),

mas em 1930 chamou-o de “rebelión de las masas” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 375). A

época das massas refere-se, assim, ao movimento feito pela massa para tomar o poder,

subjugando as minorias e desestabilizando o equilíbrio existente entre massa dirigida e minorias

dirigentes, que é o que acredita Ortega ser a lei “natural” da sociedade. O catastrófico surge do

fato de que “onde não há uma minoria que atua sobre uma massa coletiva, e uma massa que

sabe aceitar o influxo de uma minoria, não há sociedade” (ORTEGA Y GASSET, 1994a, p.

95), explicado em España Invertebrada e também no ensaio No ser hombre exemplar (1924),

no qual relembrando os conceitos de “exemplaridade” e “docilidade” desenvolvidos em España

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Invertebrada, medita sobre a diferença entre o homem verdadeiramente exemplar e aquele que

finge sê-lo.

Essa época de rebeldia, para o filósofo, está no cerne dos governos totalitários que

surgiram na primeira metade do século XX, como explica José Carlos Rothen em seu artigo A

universidade e sua missão segundo José Ortega y Gasset. Ali, ele diz que a análise de Ortega

sobre as massas surge de seu objetivo de “compreender a implantação de um governo fascista

na Espanha” (ROTHEN, 2011, p. 67), pois elas, as massas, são “a sustentação social dessa

forma de governo” (Ibidem), defendendo, em contrapartida, “a instalação de uma democracia

liberal” (Ibidem) cuja sustentação fosse a cultura.

Carvalho e Bessa, em Totalitarismo e ética em Ortega y Gasset, afirmam que “é a massa

que, colocando o Estado a serviço de seu estilo, permite o aparecimento do sistema totalitário”

(CARVALHO; BESSA, 2012, p. 106) e que uma característica comum dos movimentos

totalitários que os relaciona ao tempo das massas é o “empobrecimento da consciência

histórica” (Idem, p. 114). Aqui podemos perceber que, contrariamente às infundadas críticas

que lhe foram endereçadas de patrocinar uma ideologia fascista, a filosofia orteguiana é

totalmente o contrário de um governo totalitário, pois preocupa-se justamente em fazer não só

com que o indivíduo tenha consciência de si, de seu íntimo, como também de seu tempo, ou

seja, do momento em que se encontra na história para poder contribuir com a herança cultural

que recebeu. Além, é claro, de desenvolver uma ideia sociológica que se baseia no fato de evitar

que o indivíduo se dilua na multidão, se torne irresponsável.

Nestes tempos perigosos, a massa acredita-se no direito de impor sua opinião – e mais

ainda, que sua própria vulgaridade é um direito — em todos os lugares, inclusive nas funções

sociais especiais que requerem pessoas com dotes também especiais para executá-las. Embora

seja algo de grande obviedade, talvez seja preciso destacar, para evitar equívocos de

interpretação, que ao se referir a “pessoas especiais”, Ortega não está significando nenhum tipo

de predestinação, eleição divina, pertencimento a uma aristocracia social ou a dotes herdados

no nascimento. Como já foi dito, “pessoas especiais” significa, na sua filosofia, indivíduos que

escolheram afastar-se da massa, isto é, da multidão, assumir sua individualidade e a

responsabilidade por suas escolhas. Em linguajar kantiano, poderíamos dizer que estas tal

“pessoas especiais” são aquelas que tiveram coragem de se servir de seu próprio entendimento.

Ao final, Ortega não está dizendo nada diferente de: ousadia, crítica, responsabilidade,

moralidade, libertação e autonomia.

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Em outros tempos, continua Ortega e, La rebelión de las masas a partir de seus estudos

históricos, quando a massa queria tornar-se minoria diretora “se dava conta de que se queria

intervir teria congruentemente que adquirir esses dotes especiais e deixar de ser massa.

Conhecia seu papel na saudável dinâmica social” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 379).

Portanto, “a rebelião das massas” ocorre quando “a massa, que, sem deixar de sê-lo, suplanta

as minorias” (Ibidem). Em outras palavras, é quando, sem qualificar-se para determinada tarefa,

um integrante da massa (que por isso mesmo integra este grupo) acredita que sua opinião valha

mais do que aquele que se qualificou (integrante da minoria). Em parte, isso acontece por causa

da exacerbação do liberalismo, que fez com que a democracia, antes intrinsecamente ligada às

leis, se transformasse no que Ortega chama, em texto homônimo de 1917 de “democracia

morbosa” (ORTEGA Y GASSET, 1998a, p. 135) ou, mais tarde, em La rebelión de las masas,

de “hiperdemocracia” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 379). Estes termos referem-se a uma

exigência nociva de democracia — originada do ressentimento da massa em ser o que é — que

se caracteriza por influir em outros campos além do direito político. A seguinte citação de

Democracia Morbosa explicita o dito: “quem se irrita ao ver tratados desigualmente aos iguais,

mas não se imuta ao ver tratados igualmente os desiguais não é democrata, é plebeu” (ORTEGA

Y GASSET, 1998a, p. 138). Dessa maneira, o termo “plebeísmo” de 1917 já parece ser

sinônimo precursor do conceito de “massa”.

Essa “aristofobia” (ORTEGA Y GASSET, 1994a, p. 108), ou ódio aos melhores,

mencionada por Ortega em España Invertebrada, é causada também pela estranha e

irresponsável ausência das minorias, que se eximem de dirigir a massa, tema de meditação do

penúltimo capítulo — La ausencia de los mejores – dessa obra de 1921. Aí Ortega nos diz que

“a ausência do ‘melhores’ criou na massa, no ‘povo’, uma cegueira para distinguir o homem

melhor do homem pior” (Idem, p. 121, aspas no original). Acumulada, a ausência do que Ortega

chama também de homem exemplar em España Invertebrada — e, três anos mais tarde, em No

ser hombre ejemplar — faz com que a massa paulatinamente perca a rigorosidade no pensar,

tornando-se incapaz de resolver novos desafios propostos pela variação ininterrupta das

circunstâncias que compõem a vida. Essa constante mudança e alteração das circunstâncias da

vida é espetacularmente exemplificada no clássico Modern Times, no qual Charles Chaplin e

Paulette Goddard enfrentam uma série de desventuras que o impedem de ter uma vida “normal”.

O homem irresponsável de Ortega, diante do perigo de viver, agiria exatamente como a

personagem de Goddard: se sentaria, choraria e diria “What’s the use of trying?”. Em

contrapartida, a última cena do filme, o seu “final feliz”, é justamente o continuar caminhando,

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a ação no gerúndio, um final “finalizando” em uma estrada que leva – em uma linda metáfora

dos cumes e vales que temos de atravessar na aventura de viver — a um horizonte montanhoso.

Esta cena exemplifica com maestria a mais famosa frase de Ortega: para salvar a circunstância

e a si mesmo, para continuar a vida em sua plenitude, o homem precisa continuar caminhando

e encontrar a alegria nesse caminhar. Como Chaplin, que antes de seguir adiante se detém para

colocar um sorriso nos lábios de sua companheira.

Sobre à questão das minorias irresponsáveis, Raymond Aron escreve no artigo Una

lectura crítica de La rebelión de las masas um resumo dessa ideia orteguiana ao dizer que “a

rebelião das massas pode entender-se como a deserção das elites” (ARON, 2006, p. 232). Neste

artigo, o autor tece ainda um comentário a respeito de La rebelión de las masas, visando

combater algumas críticas que Ortega sofrera. Ele o faz contrapondo a posição liberal de Ortega,

avessa ao partidismo vulgar e aos ditos “revolucionários”, a interpretações que relacionariam a

concepção “elitista” (aristocrática) de Ortega como possível influência ideológica na ascensão

do nazismo. Além disso, o autor compara a filosofia das elites de Ortega com outros pensadores,

como Vilfredo Pareto, Benedeto Croce e Herbert Marcuse.

A aristofobia é a atitude desastrosa que culmina, segundo Ortega, em “uma raça

entontecida, intelectualmente degenerada” (ORTEGA Y GASSET, 1994a, p. 107), ou seja, em

um povo inculto. Algo que ele já identificava desde 1910 em La pedagogía social como

programa político e que, como procuramos deixar indicado, norteava a atuação política dos

movimentos de que participava nessa época, principalmente em 1914, mas que abandonará a

partir da década de 30. A incultura, é, portanto, outro aspecto da crise que estudamos.

Em resumo: a) a crise identificada por Ortega tinha o aspecto de insegurança, devido à

interrogação imposta à crença na confiança. Essa interrogação foi estabelecida pela

incapacidade do homem em responder aos novos desafios da vida. b) A crise configura-se

também na ação rebelde das massas e na irresponsável ausência das minorias diretoras,

perturbando o equilíbrio social que Ortega acredita existir. Resta, agora, precisar como os dois

aspectos estão intrinsecamente relacionados para que possamos compreender as razões que

tornaram o homem incapaz de apresentar novas ideias que substituíssem as crenças em falência

e os motivos, identificados por Ortega y Gasset, que fizeram com que as massas e minorias

agissem tão estranhamente. Para isso, é necessário tratar, finalmente, do perfil do elemento

celular da crise. Esse perfil é delineado de maneira minuciosa em La rebelión de las masas e se

refere à raiz do tumor maligno que ele diagnostica. Diagnosticado, portanto, o câncer, vamos

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compreender o que fez com que protooncogenes se transformassem em oncogenes, a célula

doentia que é o homem-massa.

2.2.4 Perfil do homem-massa

Esse homem peculiar nasce do arranjo circunstancial em que estava inserido. O mesmo

arranjo circunstancial que identificamos anteriormente e que forneceu ao homem a falsa e

inédita sensação de segurança. É, também, a mesma configuração que Ortega reconhecia em

seus escritos da década de 1910 quando propugnava a pedagogia social como uma das propostas

de correção ao problema político espanhol: de um ambiente cultural coletivo doentio surge uma

individualidade também doentia, que contribui com o social de maneira deturpada,

transformando o problema em algo catastrófico. Entretanto, naquela época, Ortega ainda não

havia chegado à conclusão de que o modo de vida constituído ao longo do século XIX era um

dos fatores determinantes desse problema como o faz em La rebelión de las masas: “não há

exagero nenhum em dizer que o homem engendrado pelo século XIX é, para os efeitos de vida

pública, um homem à parte de todos os demais homens” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p.

407). Na dissecação desse tipo de homem, encontraremos algumas características marcantes.

Elas nos são importantíssimas, pois, de posse delas, poderemos compreender os dois aspectos

da crise que mencionamos acima, além de perceber a radical singularidade que existe neste

período da história e porque a crise identificada agora como problema de grande amplitude

parece ser atual e ainda oferece perigo para a humanidade. Ideia que o professor José Maurício

de Carvalho defende na segunda parte do livro Ética.

O desejo pelo gregarismo é o aspecto principal do homem-massa e se desdobra em

características específicas que veremos logo adiante. Já se nota a meditação orteguiana sobre

esse problema em 1921, em España Invertebrada, e em 1929, durante o curso intitulado Qué

es filosofia? e que dá nome também a uma obra póstuma. Nesse curso, ao perguntar-se, na

última lição do livro, sobre as causas que levaram o público a assisti-lo, ele descobre duas

principais: uma preocupação — entendendo o termo no sentido orteguiano, de pré-ocuparse, de

ocupar-se previamente do viver mesmo, do que se vai ser no instante seguinte — e a

despreocupação. Aos que ele considera “despreocupados”, assim se dirige:

Mas então, se não vieram aqui por uma razão própria e especial, preocupados, por que

vieram aqui? A resposta é inevitável: porque outros vieram. Eis aqui todo o segredo

da despreocupação. Quando acreditamos não nos preocuparmos em nossa vida, em

cada instante dela a deixamos flutuar à deriva, como uma boia sem amarras, que vai

e vem empurrada pelas correntes sociais. E isto é o que faz o homem médio e a mulher

medíocre, quer dizer, a imensa maioria das criaturas humanas (ORTEGA Y GASSET,

1958, p. 263).

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E continua mais adiante:

Sob a aparente indiferença da despreocupação bate sempre um secreto pavor de ter

que resolver por si mesmo, originariamente, os atos, as ações, as emoções – um

humilde afán de ser como os demais, de renunciar à responsabilidade ante o próprio

destino, dissolvendo-se entre a multidão; é o ideal eterno do débil: fazer o que faz todo

mundo é sua preocupação. [...] Isso, precisamente, é o que pretende fazer o

despreocupado: suplantar-se a si mesmo. Disto se preocupa (Idem, p. 264).

Acreditamos poder ver esse desejo pelo gregarismo também no que diz respeito às

ideias. A nosso ver – e não temos a pretensão de apresentar provas, mas apenas de sugerir à

consciência do leitor um modo de encarar a situação que ele pode submeter à própria reflexão

para concordar ou discordar - que na maioria dos casos o que acontece é apenas uma adequação

da forma de pensar à forma de pensar comum. Isso parece levar, mesmo em debates no ambiente

universitário, a uma infindável repetição das mesmas ideias que não podem ser autenticamente

refletidas porque foram somente adquiridas, assimiladas de boca em boca, sem crítica, sem

meditação. Assim como o filhote do pássaro não caça a apetitosa lagarta que se arrasta sobre as

folhas e não enfrenta os perigos da natureza, do gavião que o observa de olhos semicerrados do

alto de um galho seco, e que não é capaz nem mesmo de mastigar a comida, pois precisa que

seus pais o façam por ele para que ele não morra de indigestão.

A primeira característica desse tipo de homem, que é o homem-massa, é a de ser e agir

como uma criança mimada. “Mimar é não limitar os desejos, dar a impressão a um ser de que

tudo lhe está permitido e a nada está obrigado” (Idem, p. 408). Isso significa que o homem-

massa quer gozar a vida de maneira desmedida, ou seja, dar livre vazão a todos os seus desejos

vitais, sem importar-se com limites individuais e sociais. Por definição, mimar uma criança é

criar um canalha. A imagem que nos vem à mente nesse momento é a do 3º líder “supremo”

da República Popular Democrática da Coreia (do Norte), Kim Jong-Un, que recentemente tem

desfilado com seus “brinquedos” de guerra. É impossível não relacionar a parada militar do dia

15 de abril de 2017 em Pyongyang, já considerado o maior da história do país, que se iniciou

com o hasteamento da bandeira do Partido dos Trabalhadores da Coreia (PTC) ao som da

Internacional, com o desfile militar no 6º Congresso Nacional do Partido Nazista em

Nuremberg (1934). Também nos lembramos de seu “rival”, Donald Trump, que também parece

agir como criança mimada sem se preocupar com as consequências de seus comentários

ofensivos e provocantes. Ortega y Gasset diria que esses comportamentos são típicos do

homem-massa. Veja-se, então, que consideramos, na perspectiva orteguiana, que o presidente

dos Estados Unidos pode ser integrante da massa quando tem ações deste tipo, o que reforça a

ideia de que ser minoria, ou elite, e massa no linguajar orteguiano, repetimos, não diz respeito

ao cargo que se ocupa, com os bens que se possui ou à classe social a que se pertence.

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Ortega diria, inclusive, mais: que “essas massas mimadas são bastante pouco

inteligentes para acreditar que essa organização material e social, posta a sua disposição como

o ar, é de sua mesma origem” (Ibidem), ou seja, o homem-massa não compreende que foi

necessário um contínuo esforço para que ele desfrutasse de tudo o que possui, do entorno social

em que vive e de todos os seus benefícios, esquecendo, claro está, de que eles necessitam ser

mantidos. Não poderia haver melhor explicação do que a que Ortega nos dá: “nos motins que a

escassez provoca, costumam as massas populares buscar pão, e o meio que empregam costuma

destruir as padarias” (Idem, p. 409). Como veremos no próximo capítulo, isto é um exemplo

perfeito do que Paulo Freire denomina de “inexperiência democrática”.

Portanto, ao homem-massa — cujo principal e maior erro é o de pleitear dirigir a

sociedade enquanto integrante da massa — não interessam os princípios da civilização, o que

faz dele um primitivo: “o civilizado é o mundo, mas seu habitante não o é: nem sequer vê nele

a civilização, senão que usa dela como se fosse natureza” (Idem, p. 424). Esse homem primitivo

é “um ‘invasor vertical’” (Idem, p. 427, aspas e itálico no original), como se costuma dizer,

“cai de paraquedas”, significando que invade a civilização onde nasceu sem preocupar-se com

o arranjo social estabelecido, muito menos com sua história, o que é agressivo para a filosofia

orteguiana, pois ela compreende o passado como algo a ser digerido, não combatido:

“necessitamos da história íntegra para ver se conseguimos escapar dela, não recair nela” (Idem,

p. 433). Percebe-se, dessa maneira, o perigo que o homem-massa representa à civilização.

Albert Einstein, no texto The common language of Science, apresentado inicialmente em um

programa de rádio12 para a London’s Science Conference em 02 de outubro de 1941 e

posteriormente publicado em Ideas and opinions, parece intuir algo parecido quando diz que

“a perfeição dos meios e a confusão dos objetivos parecem – na minha opinião – caracterizar a

nossa época” (EINSTEIN, 1960, p. 337). Esse retrocesso ao primitivismo e à ingenuidade é o

que Ortega chama de barbárie. Portanto, ser um bárbaro é a segunda característica do homem-

massa.

Ortega reconhece uma nuance interessantíssima dessa característica: a de ser o homem-

massa um bárbaro especializado. Isso deriva unicamente do avanço da ciência experimental, e,

principalmente, do prestígio social alcançado pela Física, o que é apontado por Ortega, no

ensaio Imperialismo de la Física publicado no periódico argentino El Sol em 1930, presente na

obra Por qué se vuelve a la filosofía?, ao usar a expressão “terrorismo de los laboratorios”

12 A gravação pode ser ouvida neste link: https://www.youtube.com/watch?v=e3B5BC4rhAU. Em português,

encontramos o texto no livro Pensamento político e últimas conclusões (São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 101).

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(ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 98) para se referir à petulância e agressividade dos cientistas

que ele identificava naquela época. Para esse progresso, os homens de ciência necessitaram se

especializar, aumentar cada vez mais seu conhecimento sobre uma parcela cada vez menor do

universo. Para Ortega, “resulta que o homem de ciência atual é o protótipo do homem-massa

[...] senão porque a ciência mesma [...] o converte automaticamente no homem-massa; quer

dizer, faz dele um primitivo, um bárbaro moderno” (Idem, p. 442). Esse efeito colateral da

ciência se dá pelo fato de que a especialização ocupa no homem o espaço que deveria ser

reservado àqueles saberes tão necessários para que possa interpretar a vida em sua urgência e

que sabemos ser a cultura. Um náufrago – condição do homem na vida, segundo Ortega – não

pode aguardar as estatísticas de um experimento científico. É interessante ainda notar que entre

as duas classes de homens que sempre existiram na história – os sábios e os ignorantes – esse

novo bárbaro compõe uma categoria intermediária: é um sábio-ignorante. Isso faz com que ele

opine nas áreas que não domina sem admitir que haja alguém nelas que saiba mais do que ele.

Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo também faz menção a esse tipo

estranho ao considerar certos homens de ciência “especialistas sem espírito” (WEBER, 1989,

p. 86). Reformulando, então, na segunda característica do homem massa, tem-se que ele é um

bárbaro especializado, conforme Ortega já apresentara em 1915 em seu curso Sistema de la

Psicología (ORTEGA Y GASSET, 2007, p. 453).

A terceira e última característica desse tipo perigoso de homem é o que Ortega chama

de “señorito satisfecho” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 437). A expressão designa a atitude

de um filho de família que é mimado, como vimos, que pode cometer qualquer tipo de delito

na sociedade, pois será tratado como o seria em sua própria casa, no meio dos seus: impune.

Ele age na rua como agiria em casa, acreditando que nada é irremediável. Explica o autor: “o

‘senhorio satisfeito’ se caracteriza por ‘saber’ que certas coisas não podem ser e, sem embargo,

e por isso mesmo, fingir com seus atos e palavras a convicção contrária” (Idem, p. 439, grifos

no original). Essa atitude origina-se do fato de que o “senhorio satisfeito” não acredita que a

tragédia seja efetiva no mundo civilizado. Pudera: foi preparado para isso, nasceu nesse arranjo

circunstancial, nessa armadilha forjada pela falsa crença na segurança, o que o torna incapaz de

criar ideias para solucionar novos desafios. É o produto do ápice de uma época que Ortega

chama em El ocaso de las revoluciones de “[...] centúrias de dilapidação orgânica bêbadas de

confiança, de segurança em si mesmas, grandes bebedoras de utopia e ilusão” (ORTEGA Y

GASSET, 1937, p. 95). Mais uma vez, recentemente podemos encontrar esse tipo de atitudes

nos líderes da Coreia do Norte e dos Estados Unidos.

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No livro Pensamento político e últimas conclusões, Albert Einstein, também

reconhecendo a crise daqueles dias – não esqueçamos que são pensadores contemporâneos e

que tiveram a oportunidade de debater nas tertúlias mantidas por Ortega na sede da Revista de

Occidente -, identifica, como fez o espanhol, o caráter dialético do problema, ao mesmo tempo

individual e social, ou melhor, cultural. Em texto intitulado Por que o socialismo?, encontramos

a seguinte citação que, após termos entendido como o madrileno compreende a circunstância

problemática de sua época, nos permite uma aproximação. Assim diz Einstein:

[...] posso indicar sucintamente o que para mim constitui a essência da crise de nossa

época. Diz respeito ao relacionamento do indivíduo com a sociedade. O indivíduo

tornou-se mais consciente do que nunca de sua dependência da sociedade. Mas ele

não experimenta essa dependência como uma qualidade positiva, como uma ligação

orgânica, como uma força protetora, e sim como ameaça a seus direitos naturais, ou

até a sua existência econômica. Além do mais, sua posição na sociedade é tal que os

impulsos egoístas de sua constituição estão constantemente sendo acentuados, ao

passo que seus impulsos sociais, que são mais fracos por natureza, deterioram-se

progressivamente. Todos os seres humanos, qualquer que seja sua posição na

sociedade, estão sofrendo desse processo de deterioração. Prisioneiros, sem o saber,

de seu próprio egocentrismo, sentem-se inseguros, solitários e desprovidos do

ingênuo, simples e despojado prazer de viver. O homem pode encontrar significado

na vida, curta e perigosa como é, somente através de seu devotamento à sociedade

(EINSTEIN, 1983, p. 112).

E continua, apresentando a perspectiva que guarda do problema: “[...] a personagem que

finalmente emerge é amplamente formada pelo ambiente em que o homem se encontra durante

o seu desenvolvimento, pela estrutura da sociedade em que ele cresce, pela tradição dessa

sociedade e pelo apreço dessa sociedade por determinados tipos de comportamento” (idem, p.

111). Podemos perceber que esta forma de encarar o seu tempo é bastante semelhante ao que

Ortega y Gasset nos ensina, provavelmente uma consequência dos debates empreendidos na

Espanha. Trata-se de uma nova forma de encarar a vida humana em sua iniludível relação com

a sociedade que surge da tentativa de superação do neokantismo da Escola de Marburgo por

Heinrich Rickert e Wilhelm Windelband e que teve grande presença na Alemanha em inícios

do século XX. Essa perspectiva intitulada “culturalista” – de grande influência no pensamento

brasileiro da década de 1930, notadamente em Miguel Reale e Antônio Paim — compreende a

vida humana como a dialética entre existência e cultura, subjetivação e objetivação de valores,

que empresta de Ortega sua forma mais evoluída, pois o espanhol vai além ao criticar a

concepção dos integrantes da Escola de Baden, conhecidos por serem também culturalistas,

mas criticados justamente por acreditar que a vida estaria submetida à cultura. Para Dom José,

nem a vida está submetida à cultura, nem a cultura à vida, mas ambas são potências de igual

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intensidade13. Entretanto, há uma ligeira, mas importante, diferença a ressaltar: como vimos,

Ortega y Gasset entende que o homem-massa (ao mesmo tempo, causa e consequência da crise)

surge do arranjo circunstancial em que se desenvolveu o século XIX (democracia liberal,

experimentação científica e industrialismo) e sua crença inabalável no progresso; para Albert

Einstein, essa deturpação dos indivíduos tem causas político-econômicas, o que significa que

suas raízes encontram-se no avanço da sociedade capitalista, embora ele não fosse um adepto

do socialismo radical e exacerbado.

A existência de um novo homem-massa é justificada por José Maurício de Carvalho no

oitavo capítulo do livro Ética, que ele menciona também no artigo Totalitarismo e ética em

Ortega y Gasset. Sem deixar de apontar que as circunstâncias de nosso tempo são outras,

caracteriza a nova versão do homem decadente identificado por Ortega como um hedonista

ansioso, “como seu antecessor despreocupado de suas obrigações” (CARVALHO; BESSA,

2012, p. 123). Segundo Carvalho, o homem-massa atual “[...] não é apenas o medíocre

pretensioso como o caracteriza Ortega y Gasset. Ele se tornou o consumista compulsivo,

sorvendo tudo o que dá prazer imediato” (CARVALHO, 2010, p. 163) e ainda mais distante do

compromisso com a excelência que tipifica a vida autêntica. “Também não foi alterada a

barbárie da especialização” (CARVALHO; BESSA, 2012, p. 123), diz também mais tarde. No

artigo mencionado, Carvalho e Bessa nos apresentam uma definição importante que podemos

evocar como síntese do que foi dito até agora: “sua característica mais marcante é a

irresponsabilidade em viver sua vocação, acompanhada da falta de compreensão das

dificuldades de vida” (Idem, p. 118).

Margarida Amoedo resume a concepção orteguiana de parasita social: “[...] surdo a

qualquer imperativo de autenticidade, cego em relação aos próprios limites, é um ser prisioneiro

do seu hermetismo: sente-se perfeito, não aspira a nada, não quer conhecer-se, nem respeitar

normas” (AMOEDO, 2002, p. 105) e continua mais adiante, relembrando algo de imensa

importância para a compreensão do pensar orteguiano: “[...] massa não designa uma classe

social, mas um modo deficiente de ser homem que se encontra em todas as classes” (Idem, p.

107, itálico no original).

O fato de o homem-massa não agir de acordo com a própria vocação, de não aceitar seu

destino e de ser inerte, é caracterizado por Ortega como o mal radical em No ser hombre de

partido (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 79), texto publicado em 15 de maio de 1930 no

periódico argentino La Nación, em uma clara referência ao mal radical de Kant em A religião

13 Cf. El tema de nuestro tiempo, pp. 41 a 47 (Lição VI).

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nos limites da simples razão. Segundo Felipe Ledesma, sobre essa característica do homem-

massa: “sua propensão à inércia é o mal radical” (LEDESMA, 2001, p. 134).

Como na crise que Ortega identifica no seu tempo, acreditamos que o atual homem-

massa, com seu ódio pela autenticidade — sua e dos outros -, está na raiz de diversos problemas

atuais. A Universidade, acreditava Ortega — refletindo na direção seguida também por outros

pensadores — pode ser uma resposta para combater o domínio do homem-massa,

principalmente do bárbaro especializado, importância que faz a ineficácia da instituição algo

desastroso. Essa nova forma de pensar a educação surge principalmente como resquício de sua

desilusão e consequente abandono da política que ele apontava na década de 1910 como solução

para o problema espanhol através da pedagogia social. Após sua longa experiência no campo

político, ele chega à conclusão de que dali nada sairia de profícuo para o objetivo que almejava.

A educação, contudo, continua a ser compreendida como uma resposta possível, como comabte

a esse tipo doentio de homem, embora ganhando novos aspectos e mantendo determinadas

características.

Tendo, portanto, apresentado ao leitor em linhas gerais o problema que Ortega identifica

naquele momento, procuraremos indicar como ele entende que a atuação da instituição

universitária é a principal responsável no enfrentamento deste período problemático.

2. 3 Respondendo à crise: a universidade autêntica

Ninguém nos disse o que é estudar, como devemos

estudar, para que estudamos. Ninguém nos disse para que

vale a Universidade. E já estamos seguros de que vale

muito pouco, e de que é necessário transformá-la muito.

Mas ninguém nos disse como, ninguém defende que nós

somos a base da Universidade. Há muitos anos Ortega y

Gasset contestou estas perguntas, deu satisfação a estas

nossas exigências. Sua obra de filósofo universal, não

desdenha uma preocupação por nós. Nos estuda, nos

analisa, nos compreende (ABELLÁN, p. 60 apud

ROMERO, 2001, p. 122).

Se acreditamos que ainda existe a atuação do homem-massa, podemos vê-lo amiúde na

política, nas igrejas, nas escolas, nas universidades, na sociedade como um todo. Qualquer que

seja o integrante de classe diretora que legitime seu mando na mera possibilidade de mandar

está subvertendo a organização social. É massa que ocupa o lugar que deveria ser ocupado por

uma minoria que se tornou irresponsável e ausente. Ele também pode ser visto no espelho do

guarda-roupa: somos massa quando acreditamos que nossa opinião deve prevalecer em assuntos

que não dominamos. Não sejamos cínicos em acreditar que integramos mais que pouquíssimas

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minorias, nem mesmo covardes ao camuflar que frequentemente opinamos como massa.

Sejamos sinceros: em nossas relações, amiúde acreditamos ter a mais sensata – quase ascética

– visão de mundo que se poderia ter. Humildade, nos pede Ortega, não só porque isso faz bem

ao espírito, mas também por que é saudável à sociedade.

Estaríamos, portanto, fadados a contemplar o domínio e predomínio das massas e a

decadência das minorias? Pereceremos contaminados pela prepotência viral do homem-massa?

Ortega y Gasset, nosso interlocutor neste capítulo, dirá, olhando-nos com seus olhos

penetrantes, com aquele tão característico sorriso arrogante de quem já sabe o que estamos

pensando antes de pensarmos, que há uma saída. Dolorosa, exigente, quimioterápica, mas com

chances possíveis de melhora.

A resposta que o pensador espanhol oferece aos problemas identificados, principalmente

em La rebelión de las masas, está sistematizada no ensaio também de 1930 intitulado Misión

de la Universidad. No diálogo profícuo que os textos mantêm entre si14, percebemos a inteireza

do pensamento orteguiano que alia o problema político a uma resposta pedagógica, o que é

observável ao longo de toda a sua obra, como reconhece Amoedo em seu extenso trabalho

outrora mencionado: “os passos da vida e da obra do autor relacionam-se todos, de alguma

maneira, com problemas educativos” (AMOEDO, 2002, p. 615).

Neste item, exporemos o modo como as propostas apresentadas em Misión de la

Universidad são uma resposta direta ao problema, permitindo uma forma de viver que pode

ajudar o homem-massa a deixar de sê-lo. Portanto, a preocupação de Ortega não é senão criar

as condições necessárias para que o homem possa viver autenticamente, o que culminará na

preparação de minorias aptas a dirigir a massa inautêntica e rebelde, de acordo com seu modo

de enxergar o tecido social. Isso nos leva a refletir sobre a importância do papel da instituição

universitária na sociedade, além de nos fazer notar que os abusos do ensino superior brasileiro

atual são catastróficos para o futuro da nação. Talvez os brasileiros tenhamos, como Ortega

lembra em texto de 1931 intitulado ¿Instituciones?, “perdido já a fé nas instituições. Nestas e

naquelas e em todas. Essa falta de fé em nenhuma lhes faz decidir-se por qualquer uma”

(ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 362). Talvez isso explique o motivo pelo qual alguns

professores falsifiquem a atividade docente e alguns alunos a atividade discente. Mais uma vez

uma afirmação que não tem pretensão de dizer a Verdade, nem mesmo de provar nada, apenas

de sugerir ao leitor uma perspectiva singular.

14 Cf. Idea y reforma de la Universidad: José Ortega y Gasset, Manuel García Morente y Jaime Benítez de José

Enguita (ENGUITA, 2015, p. 137).

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Perguntar-se, como faz Ortega, sobre a missão da universidade é já a identificação de

algo problemático, porquanto permaneça sua missão obscura, toda ação tomada na instituição

será uma falsidade. Sem o objetivo claro da ação, tem-se uma prática isolada da reflexão e que

se transforma em agir puro e despropositado. Dessa maneira, estabelecer a verdadeira missão

da Universidade é, para Ortega, o passo fundamental a ser dado, pois, conforme esclarece o

autor em La pedagogía social como programa político, “a ciência pedagógica tem que começar

por ser a determinação científica do ideal pedagógico, dos fins educativos” (ORTEGA Y

GASSET, 1993a, p. 508) e completa mais adiante ao dizer que “a pedagogia antecipa o que o

homem deve ser e depois busca os instrumentos para fazer com que o homem chegue a ser o

que deve” (Idem, p. 509). Tal é a metodologia utilizada por Ortega em sua meditação sobre a

educação, mesmo que sua forma de encarar o problema, inclusive a educação, tenha mudado a

partir dos anos 30. Essa forma de encarar o problema parece ser influenciada pela formação

alemã de Ortega, pois sabemos ter sido uso comum de outros filósofos alemães interpretar a

instituição universitária como solução de problemas sociais. A título de exemplo, poderíamos

citar Johan Fichte em Por uma universidade orgânica, que chama atenção para a reflexão sobre

o processo de conhecimento, e Karl Jaspers, que, conforme aponta José Maurício de Carvalho

em O espírito vivente, a universidade segundo Karl Jaspers, trata do tema nos textos The idea

of the University (1946), Renovação da Universidade (1945), O vivente espírito da

Universidade (1946) e Filosofia e Ciência (1948). Entretanto, a meditação orteguiana sobre a

universidade é distinta de ambos, pois apoia-se em sua reflexão metafísica e, principalmente,

na forma de pensar que o filósofo assumiu na “segunda navegação”, a saber, que a razão tem

caráter histórico, conforme explicamos no item anterior.

A Universidade está aí — existe — para formar o que Ortega chama de homem médio

(ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 326), oferecer-lhe uma formação superior, pois, diz ele no

ensaio Misión de la Universidad: “se só houvesse criaturas extraordinárias, é muito provável

que não houvesse instituições [...] pedagógicas” (Ibidem). Isso quer dizer que o homem-médio

é a unidade de medida da universidade: a instituição é necessária para ele e só faz sentido se

ele existir. Margarida Amoedo esclarece que ao utilizar este termo para se referir ao homem

como objeto de estudo, Ortega pretende estabelecer uma “idealização admissível, impedindo

metas ilusórias na formação de um homem irreal e irrealizável” (AMOEDO, 2002, p. 538).

Portanto, não é um termo depreciativo. Não é preciso ofender-se com ele.

Essa ideia orteguiana chama atenção para o fato de que, entre os três componentes do

ensino – o educando, o educador e o conteúdo –, o foco deve ser sempre no primeiro, pois “a

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universidade tem que ser a projeção institucional do estudante” (ORTEGA Y GASSET, 1994b,

p. 332), sem olvidar o que diz o autor em La pedagogía del paisaje: “as duas grandes virtudes

que tem de formar no homem a pedagogia são a sinceridade e a serenidade” (ORTEGA Y

GASSET, 1993a, p. 56).

Isso faz com que o olhar perscrutador do filósofo corra pelas instituições universitárias

de seu tempo, procurando nelas as causas de sua insuficiência, pois, como lembra Amoedo, a

leitura que faz Ortega “do homem-massa representa uma acusação de fracasso educativo”

(AMOEDO, 2002, p. 540). O filósofo percebe, então, que a instituição universitária sobre a

qual refletia se estruturava em duas tarefas básicas: o profissionalismo e a investigação, que

eram permeadas, de modo quase invisível, por um resíduo, um ruído de tipo distinto

denominado “cultura geral”. Ortega espanta-se com o absurdo da expressão, pois, em sua

interpretação o significado de “cultura” não pode ser senão geral. Não se é culto em Literatura

africana ou Astrofísica ou ainda em Biologia Molecular. Para ele: “ao usar essa expressão

‘cultura geral’ se declara a intenção de que o estudante receba algum conhecimento ornamental

e vagamente educativo de seu caráter ou de sua inteligência” (ORTEGA Y GASSET, 1994b,

p. 320, aspas no original).

Portanto, a busca pela missão da universidade que possa fundamentar uma reforma

eficaz deve partir já daí: ao invés de compreender a cultura como um conhecimento meramente

ornamental, compreendê-la como o conjunto de ideias e repertório de convicções que permite

ao homem salvar-se da condição de náufrago em que se encontra na vida, capacitando-o para

escolher, responsável e autenticamente, diante da condição de suas escolhas como vitalícia

encruzilhada. A cultura “é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são

um atributo do homem” (Idem, p. 344), o que completa o que fora dito em La pedagogía social

como programa político e que já dissemos anteriormente, mas não é demais repetir: “socializar

o homem é fazer dele um trabalhador na magnífica tarefa humana, na cultura, donde cultura

abarca tudo, desde cavar a terra até compor versos” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 517). A

cultura apresenta-se assim, como a localização espaço-temporal do homem no mundo e não

pode, de maneira nenhuma, ser transformada em um conhecimento meramente decorativo, pois,

justamente o contrário, é essencial para que o homem possa viver sua vida, interpretá-la em sua

urgência. Assim, no pensamento orteguiano, a difusão da cultura assume o papel de tarefa

fundamental da universidade, tornando-se combatente contra a epidemia representada pelo

homem-massa, justamente – nos diz o filósofo em El tema de nuestro tiempo — porque “a

cultura só sobrevive enquanto segue recebendo constante fluxo vital dos sujeitos. Quando essa

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transfusão se interrompe, e a cultura se distancia, não tarda em secar-se e hieratizar-se”

(ORTEGA Y GASSET, 1937, p. 40). O mesmo ocorre com o herdeiro que não investe sua

herança ou com o empregado que enterra seus “talentos”, incapaz de fazê-los frutificar: a este

Jesus diz, no evangelho de Mateus, “e quanto a este servo inútil, lançai-o fora, nas trevas. Ali

haverá choro e ranger de dentes!” (Mt 25: 30). A semelhança entre os dois é que nem o

empregado inútil, nem o homem que não contribui para a cultura podem salvar-se.

Para resolver a questão, Ortega propõe a criação de uma Faculdade de Cultura que se

responsabilizaria pelo que ele chama de “grandes disciplinas culturais” (ORTEGA Y GASSET,

1994b, p. 335), que, parafraseando-o, são: a) a imagem física do mundo (Física), b) os temas

fundamentais da vida orgânica (Biologia), c) o processo histórico da espécie humana (História),

d) a estrutura e o funcionamento da vida social (Sociologia) e e) o plano do Universo (Filosofia).

Os nomes das disciplinas são colocados entre parênteses, pois referem-se às ciências mesmas,

enquanto sua descrição se refere aos usos não científicos que delas são feitos. O que significa

que há diferença, por exemplo, em ser médico e ser fisiólogo. Conforme veremos em breve, jaz

aí a origem de todos os abusos cometidos pela universidade de seu tempo: a confusão feita entre

“três coisas que são de sobra diferentes: cultura, ciência e profissionalismo” (idem, p. 336).

Refletindo dessa maneira, Ortega pode construir uma proposta de reforma universitária que

estabeleça, primeiramente, suas tarefas básicas da seguinte forma: a) transmissão de cultura, b)

ensino profissional e c) investigação científica (a utilização, aqui, do verbo “transmitir” se

encontra no original e nossa preocupação não se estende a fazer uma discussão sobre ele nem

sobre a significação pejorativa que ele supostamente possui atualmente).

Estabelecidas as tarefas básicas, organizadas hierarquicamente e estabelecido o foco no

estudante, Ortega começa a desenvolver sua reforma universitária, tendo como objetivo fazer

dela uma instituição autêntica, legitimando sua exigência de autenticidade para com os

estudantes e, assim, combater o perigo do homem-massa, corroborando o que disse em 1906

em La pedagogía del paisaje, texto no qual, conforme já dissemos anteriormente, afirma que

as duas maiores virtudes que a pedagogia pode fornecer ao homem são a sinceridade e a

serenidade. Para isso, segundo o filósofo, é preciso aplicar o princípio da economia no ensino.

O que quer dizer que, em primeiro lugar, estabelecer-se-á aqueles conhecimentos que são

estritamente necessários aos desafios propostos pelas circunstâncias vividas pelo estudante, e,

em segundo lugar, a partir desta seleção, fazer ainda uma redução àquilo que o estudante pode

de fato aprender, dado sua “capacidad limitadísima” (Idem, p. 330) para tal, o que justifica a

ideia de “princípio da economia”. Ortega esclarece que a aplicação deste princípio da economia

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no ensino é necessária devido à imensa quantidade de saberes que existem e que discrepam

relativamente à capacidade limitada de aprendizagem do estudante (leia-se do ser-humano

normal) para aprender. A aplicação do princípio não era necessária, por exemplo, em épocas

primitivas, como se pode observar na seguinte citação de Misión de la Universidad:

[...] há ensino apenas nas épocas primitivas. [...] Sobra capacidade. Só há alguns

saberes: certas receitas mágicas e rituais para fabricar os mais difíceis utensílios [...].

Mas precisamente porque é tão pouco, qualquer um, sem mais, sem aplicável esforço,

o aprenderia. [...] A função de ensinar consiste [...] em ocultar. (idem, p. 331, grifo no

original)

Apenas com o que foi dito até aqui já nos é possível enxergar claramente como Misión

de la Universidad visa combater a crise de cultura que Ortega reconhece em seu tempo.

Demonstra Margarita Padorno no artigo La misión de la Universidad al servivio de la necesidad

pública, que aquela obra, em sua publicação original feita em levas no diário argentino El Sol,

marca pela primeira vez a posição política republicana de Ortega no momento em que “a

atualidade política e social na Espanha arde sob o estertor de uma ditadura, a de Berenguer”

(PADORNO, 2001, p. 193).

Com a reforma proposta por Ortega, percebemos que podem ser combatidos o

primitivismo e a barbárie do especialismo que caracterizam o homem-massa, pois permite a ele

ter um conhecimento amplo do seu mundo. Aqui podemos perceber o otimismo orteguiano em

acreditar que, ao reconhecer a extrema superficialidade de seus conhecimentos em detrimento

da do especialista, o homem-médio humildemente se reconheceria como massa e respeitaria a

minoria. O que Ortega acredita que a universidade seja capaz de fazer é permitir ao homem, ao

mesmo tempo, as condições de ocupar a minoria com legitimidade e a massa com humildade.

Com isso, ele deixaria de ser um “infrahombre” (Idem, p. 343) – ou “subhombre” (idem, p.

518) — e passaria a ser um homem à altura de seu tempo, o que é entendido na filosofia

orteguiana como um homem culto, sem esquecer-se de seu íntimo, de sua vocação. Escusado

atentar para a atualidade do pensamento orteguiano, principalmente para a sociedade e para a

organização universitária brasileiras. Resta-nos, contudo, percorrer ainda as outras tarefas

básicas da universidade, a saber, ensino profissional e investigação científica, nas quais

poderemos entender a importância da instituição na preparação de cidadãos e de minorias

dirigentes e como a inautenticidade da instituição universitária pode acarretar a inautenticidade

do estudante.

Conforme mencionado, a problemática instituição universitária do tempo de Ortega

confundiu as tarefas básicas da Universidade e, por isso, não tinha clara qual era a sua missão.

Já estabelecemos que a difusão da cultura tem tamanha importância que Ortega sugere a criação

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de uma Faculdade de Cultura que seja o centro da instituição. Mas como não confundir ensino

profissional com investigação científica? No visar do filósofo, “em seu próprio e autêntico

sentido, ciência é só investigação: apresentar-se problemas, trabalhar em resolvê-los e chegar a

uma solução [...]. Por isso não é ciência aprender uma ciência nem ensiná-la, como não é usá-

la nem aplicá-la” (idem, 1994b, p. 336, grifos no original). Dessa maneira, “a ciência, ao entrar

na profissão, tem que desarticular-se como ciência, para organizar-se, segundo outro centro e

princípio, como técnica profissional” (Idem, p. 341).

Eis aí, portanto, a primeira distinção entre ciência e profissão. O professor, ou melhor,

o profissional, pode não ter as mesmas motivações que tem o cientista e não pode agir do mesmo

jeito que age aquele. Este trabalha, como diz Ortega, fundamentalmente com problemas, aquele

baseia-se nas soluções propostas pelo cientista para poder trabalhar e ensinar. Além do mais, o

cientista produz o conteúdo, o profissional o estuda. Este sabe, aquele investiga. Portanto, “o

que tem vocação de médico e nada mais, que não flerte com a ciência: só fará ciência medíocre.

Já é muito, já é tudo, se é bom médico” (Idem, p. 338). Como lembra Rothen, ao tratar do ensino

das profissões, Ortega não se refere apenas “à especialização técnica, pois, além do exercício

da atividade profissional, o estudante também deverá saber mandar, isto é, exercer a autoridade”

(ROTHEN, 2011, p. 68) no campo específico em que atua como minoria. Isso equivale a dizer

que cabe à universidade a formação das elites, ou seja, das minorias diretoras sobre a qual já

falamos. Outro aspecto em que a universidade autêntica se torna de extrema importância para

o funcionamento da sociedade: ao assumir sua responsabilidade social, as minorias se

transformam em forças-tarefa contra os avanços desmedidos das massas que, apontamos, é o

grande problema daquele tempo, desde que se compreenda “massas” com a significação que

guarda na filosofia orteguiana.

Além disso, diz Ortega, a sociedade precisa muito mais de bons profissionais que de

bons cientistas, o que, de certa forma, nos causa um imenso alívio, pois ser cientista requer uma

vocação especialíssima encontrada em pouquíssimas pessoas (acrescentaríamos, contudo, que

ser professor – verdadeiramente — é uma vocação tão ou mais especial que a de ser cientista).

Em En torno a Galileo, encontramos uma explicação para essa forma de pensar. Diz Ortega

que

uma solução só é autenticamente na medida que seja autêntico o problema; quero

dizer, em que nos sintamos efetivamente angustiados por ele. Quando, por um ou

outro motivo, o problema deixa de ser efetivamente sentido por nós, a solução, por

mais certeira que seja, perde vigor ante nosso espírito, isto é, deixa de cumprir seu

papel de solução, se converte em uma ideia morta (ORTEGA Y GASSET, 1994c, p.

24).

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Dito isso, podemos perceber que a universidade, após preocupar-se em fazer do homem

médio um homem culto, deve preocupar-se imediatamente em fazer dele um bom profissional

que supra necessidades sociais. Isso quer dizer que o profissional, como o professor, não pode

ser um cientista? Obviamente não. Isso quer dizer que a universidade não deve dar falsas

esperanças ao aluno, fazendo com que ele acredite que a instituição universitária infundirá nele,

como que por encanto, uma vocação científica. Ortega dedica um capítulo inteiro para fazer

esta distinção entre ciência e cultura. Entretanto, como aqui não nos importa fundamentalmente,

decidimos por suprimi-lo. Acreditamos ser suficiente apresentar a seguinte citação para que a

diferença entre ambas se explicite inequivocamente:

Há pedaços inteiros da ciência que não são cultura, senão pura técnica científica. Vice-

versa: a cultura necessita – forçosamente, queira-se ou não – possuir uma ideia

completa do mundo e do homem; não lhe é dado deter-se, como a ciência, ali onde os

métodos do absoluto rigor teórico casualmente terminam. [...] O atributo mais

essencial da existência é a peremptoriedade: a vida é sempre urgente. [...] A vida nos

é disparada à queima-roupa. Já a cultura, que não é senão sua interpretação, não pode

tampouco esperar. (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 343, grifos no original).

Atualmente, a cultura alimenta-se da ciência, mas isso é uma contingência trazida pela

configuração circunstancial de nosso tempo.

Percebe-se, então, que Ortega preocupa-se, ao mesmo tempo, com o coletivo e com o

individual, pois, como já dissemos, ele afirma em La pedagogía social como programa político,

uma pedagogia que se importe apenas com o individual “será um erro e um projeto estéril”

(ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 515).

Isso nos leva a discutir brevemente um tema de extrema importância não só para o

diálogo que estamos empreendendo aqui, mas para a própria sobrevivência da universidade: a

atuação do professor universitário. Quando Ortega propõe a aplicação do princípio da economia

do ensino, propõe não só redução na quantidade de conteúdo com vistas à capacidade de

aprendizagem limitada do aluno, mas também um método engenhoso de pedagogia

universitária que consiga, na prática do ensino, economizar esforços visando uma aprendizagem

eficaz, ideia que já aparecera muito antes, em 1907 (cf. ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 293,

Carta 95). O que significa que deve haver uma simplificação das ciências não só por causa do

estudante, mas para a manutenção da própria ciência, já que sem essa facilitação ela dificilmente

atrairá novos cientistas: “é preciso que o homem de ciência deixe de ser o que hoje é com

deplorável frequência: um bárbaro que sabe muito de uma coisa” (ORTEGA Y GASSET,

1994b, p. 347). Diz-nos ainda Ortega: “se não se fomenta esse gênero de trabalho intelectual,

dedicado não tanto a aumentar a ciência no sentido habitual da investigação quanto a simplificá-

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la e produzir nela sínteses quintessenciadas, sem perda de substância e qualidade, o porvir da

ciência mesma seria desastroso” (Idem, 346).

Nas entrelinhas da distinção que fizemos entre ensino profissional e investigação

científica já era possível identificar esse pensamento, mas devemos agora explicitá-lo sem

meias palavras. É necessário que o professor seja um tipo diferente de cientista especializado

em construir uma totalidade que possa ser ensinada, assimilada pelos alunos, na Faculdade de

Cultura, na qual se encontra o estudante médio. Esse tipo peculiar de cientista possui o que

Ortega chama de “talento integrador” (Idem, 348). Para o filósofo, “homens dotados deste

genuíno talento andam mais acerca de ser bons professores que os submergidos na habitual

investigação [...] os quais são sempre péssimos professores” (Ibidem, p. 348). Como comenta

Amoedo, Ortega parece que “interpela o nosso presente” (AMOEDO, 2002, p. 529).

Essa confusão traz prejuízos principalmente para o estudante, pois, por ser um bárbaro

especializado, ou seja, inculto, o cientista que se mete a ser professor não é capaz de trabalhar

na Faculdade de Cultura, também não é capaz de ensinar uma profissão, pois não tem

conhecimento prático dela. E, como se não bastasse, tenta fazer dos estudantes médios,

cientistas, o que é desastroso também para a ciência. Além do mais, essa confusão sobrecarrega

a atuação docente, transformando-se em uma fonte inesgotável de males ao professor.

Acreditamos que essa inautenticidade apontada por Ortega incorre na indisciplina — de

discentes e docentes — que preenche atualmente o ensino superior, transformando o trabalho

universitário em nada mais que mera falsidade, muito distante do ideal de sinceridade proposto

pelo autor já em 1906 e que seria querido também hoje.

Feitas estas brevíssimas considerações, ao questionamento feito pelo autor logo no

início de Misión de la Universidad — “[...] ¿para qué existe, está ahi y tiene que estar la

Universidad?” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 315) – estamos aptos a responder, como ele

o faz, que a missão da Universidade consiste em a) ensinar o homem médio a ser culto e bom

profissional, b) não falsificar exigências feitas aos estudantes, c) não falsear nos estudantes

expectativas de que serão cientistas sem que primeiro essa necessidade parta do próprio

estudante, d) ensinar as disciplinas culturais e as técnicas profissionais, não à moda científica,

mas de maneira “pedagogicamente racionalizada” (Idem, p. 349), e) eleger o professor por suas

qualidades para sê-lo e não pela capacidade científica que possui e f) fazer autênticas

exigências aos seus alunos, pois é para ele que a instituição existe e dele necessita para

sobreviver. Este é, para o filósofo espanhol, o minimum da universidade, aquilo que ela deve

ser basicamente, fundamentalmente: a missão que deve nortear sua conduta. Para uma resposta

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completa, que abrange tudo o que dissemos, podemos citar a conclusão de Amoedo em Ortega

y Gasset: a aventura filosófica da educação: “a missão da Universidade na sua designação mais

fiel e abrangente é uma missão cultural” (AMOEDO, 2002, p. 541, grifos no original). Ora,

agora estamos munidos o suficiente para compreender em que medida a instituição universitária

se apresenta como o campo privilegiado de combate contra a incultura característica do modo

de ser do homem-massa.

É necessário fazer apenas um esclarecimento a respeito da expressão “maneira

pedagogicamente racionalizada” utilizada acima: em La pedagogía social como programa

político, de 1910, encontramos menção a essa expressão quando o autor diz que há que se “achar

os meios intelectuais, morais e estéticos pelos quais se consiga polarizar o educando na direção

daquele ideal” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 509). Tal ideal, como comentamos

anteriormente, refere-se ao fundamento estabelecido pela pedagogia antes de começar a agir

sobre o indivíduo.

O último capítulo de Misión de la Universidad, vem para nos dizer “lo que a

Universidad tiene que ser ‘además’” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 349, aspas no original).

Amoedo — com a não rara sagacidade intelectual presente em sua forma de interpretação da

filosofia orteguiana — nota que as aspas no advérbio referem-se a algo sutil: “o dicionário

regista – embora com a indicação de pouco usado – um outro significado: com demasia ou em

excesso” (AMOEDO, 2002, p. 534, grifos no original). Portanto, o que Ortega deixa para nos

apresentar ao fim de seu ensaio não é, nem de longe, de menor importância. De fato, somente

após estabelecer seguramente o que a universidade tem de ser fundamentalmente ele se sente

confortável e seguro para dizer aquilo que ela deve ser essencialmente e que não é outra coisa

senão uma instituição na qual se produza ciência.

“É preciso”, diz ele, “que ao redor da universidade mínima estabeleçam seus

acampamentos as ciências – laboratórios, seminários, centros de discussão. Elas tem de

construir o húmus donde o ensino superior tenha fincadas suas raízes vorazes” (ORTEGA Y

GASSET, 1994b, p. 351, itálico no original). Assim, tanto a propagação da cultura quanto o

ensino profissional devem beber da fonte que é a ciência, sem a qual padecem, sem a qual a

universidade como a discutimos até aqui deixa de existir. “A ciência é [...] a alma da

Universidade, o princípio mesmo que a nutre de vida e impede que seja só um vil mecanismo”

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(Idem, p. 352, grifo no original)15. É aí que o cientista especializado em reconstruir a totalidade

— o professor — buscará os conhecimentos necessários para sua prática sublime.

Assim, ao fazer da ciência a essência da universidade e colocando-a lateralmente à

missão fundamental da instituição universitária, Ortega permite que aqueles estudantes que se

sentem vocacionados ao trabalho científico, ou, como diz Amoedo “os estudantes superiores

ao tipo médio” (AMOEDO, 2002, p. 535, grifos no original) se desloquem para esses

acampamentos de produção científica juntamente com os professores que também se sintam

vocacionados para além de seu trabalho docente no ensino. Como nos diz o filósofo espanhol

em El silencio, gran Brahmán, é a acumulação dos diferentes pontos de vista sobre o mesmo

foco que permite à ciência sua plena fecundidade e desenvolvimento (ORTEGA Y GASSET,

1998a, p. 629). A existência desses locais, além de manter viva a universidade, permite aos

estudantes médios nutrirem-se constantemente, motivados pelo próprio interesse, portanto,

autenticamente, sinceramente. “O que não é admissível — lembra o filósofo — é que se

confunda o centro da Universidade com essa zona circular das investigações que deve rodeá-

la” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 351). Algo que parece ocorrer hoje com a universidade

brasileira, na qual os professores têm de multiplicar-se para atender ao ensino, à pesquisa e à

extensão sob o peso das avaliações de órgãos governamentais.

Essa organização da ciência na instituição universitária leva Margarida Amoedo a

comentar em El papel de la Universidad contra la barbárie. Pensar con Ortega, setenta años

después que as propostas de Misión de la Universidad focam-se em solucionar o problema do

especialismo (AMOEDO, 2001, p. 112), já que Ortega reconhecera que o homem-massa é

produto do fracasso do ensino e tem seu protótipo no homem de ciência. Em outras palavras, a

universidade que continue a confundir suas tarefas básicas só faz perpetuar a manutenção do

inculto e perigoso homem-massa. Portanto, se reconhecemos que esta vertente específica do

homem-massa que é o bárbaro especializado ainda existe, devemos voltar nossos olhares para

a instituição universitária atual a fim de avaliar se ela é, como propunha Ortega, inautêntica,

ignorante de sua missão. Assim, ela seria ineficaz na solução deste problema, já que a

inautenticidade da instituição amiúde incorre na inautenticidade do estudante, pois inverte a

lógica social. Isso faz com que o processo de ensino-aprendizagem se transforme em uma

falsidade, como se observa na seguinte citação de La pedagogía social como programa político:

Quão mínimo o influxo do mestre sobre o discípulo! Vive junto a ele umas horas,

horas que [...] considera heterogêneas à integridade de sua vida, frias horas

15 A Filosofia — que enquanto ciência deve ser feita nestes acampamentos laterais da universidade — tem

importância singular na meditação orteguiana. Tratamos do assunto em Ciências interdependentes: o problema da

verdade no Sistema de la Psicología de Ortega y Gasset e em Ortega y Gasset: Filosofia na Universidade.

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inorgânicas que ele vê como buracos vazios recortados sobre o tapiz sugestivo de sua

vida espontânea” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 515)

Uma questão que pode ter se tornado um problema a partir do que foi dito até aqui é a

de que, aparentemente, Ortega seria contrário à especialização. A isso respondemos afirmativa

e negativamente, pois o filósofo espanhol critica ferozmente o especialismo, mas somente na

medida em que ele ocupa no homem todo o “espaço” de seu horizonte vital, em outras palavras,

somente quando se substitui a parcela que deveria ser ocupada pela cultura. Mas obviamente

Ortega não ignora que não há possibilidade de fazer ciência no mundo contemporâneo sem a

especialização, isso já o dissemos. O especialista inculto é o grande problema.

Podemos encontrar as raízes deste pensamento na juventude orteguiana, notadamente

no período de sua primeira viagem à Alemanha. Em carta endereçada a seu pai em agosto de

1907, o filósofo envia em anexo um texto para ser publicado no periódico paterno intitulado

Anarquía gubernamental, sobre o qual já tivemos oportunidade de comentar. Nesse texto, ele

se vale do exemplo da Escuela Superior de Magisterio para justificar o tema de sua reflexão, a

saber, da falta de respeito às leis que ele reconhecia na Espanha de sua época. No comentário

que tece a respeito dessa escola preparatória de docentes para o ensino superior, podemos

observar algumas relações com o que seria dito muito mais tarde, em 1930, no ensaio Misión

de la Universidad que ora analisamos. Vejamos o que diz ele no texto inédito:

A Escola Superior do Magistério poderia ter significado uma melhora decisiva:

selecionados os mestre superiores a sua entrada na escola, submetidos a dois ou três

anos a uma pressão enérgica de cultura, postos em contato com uma pedagogia

científica das raças europeias, educados em uma visão geral, filosófica dos problemas

humanos, livres de especializar-se superficialmente em alguma disciplina científica –

poderiam os alunos ao terminar este curso superior ocupar as cátedras das Normais

em condições incomparáveis à maioria de seus atuais possuidores (ORTEGA Y

GASSET, 1991, p. 292, Carta 95).

E continua mais adiante:

Mas uma Escola Superior do Magistério não é de modo algum um laboratório de

ciência: se não fosse excessiva a expressão diria que é todo o contrário [...]. Não é

como a Universidade uma manufatura de ciência, uma introdução à investigação, à

ciência por fazer senão precisamente lugar donde se transmite reduzida a sua essência

a ciência clássica, já realizada, fundamentadora da vida contemporânea ao mestre

(Idem, p. 294, itálicos no original).

Podemos, então, perceber que este aspecto central do ensaio de 1930, a saber, o da

diferenciação entre o caráter e a importância das esferas profissional, científica e cultural em

relação a uma instituição de ensino superior, já povoava sua meditação juvenil da primeira

década do século XX, quando estava ainda em processo de formação na Alemanha.

As propostas de Ortega presentes em Misión de la Universidad foram colocadas em

prática em Porto Rico (1942), Madri (1948 – 1950) e no Canadá (ainda em 2001 era possível

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perceber as raízes no pensamento orteguiano)16. A eficácia demonstrada por este tipo de

organização universitária nos locais onde foi aplicada nos faz refletir sobre as causas de ser

ainda relativamente desconhecida – como o é a própria filosofia orteguiana, principalmente no

Brasil, onde a instituição universitária nos parece ainda cometer alguns destes “abusos” – termo

que Ortega utiliza para se referir a “mau uso”. Nossa instituição de ensino superior nos parece

ser fragmentada não em pedaços, mas em partidos. Foca-se tão obcecadamente no conteúdo,

que obriga profissionais a se ausentarem de ambiente tão nocivo, para cuidar da saúde em outro

lugar. Parece uma instituição de tamanha vaidade que um sobrenome se torna adjetivo. Além

do mais, se a universidade tem, como queria Ortega, de assumir seu verdadeiro papel diante da

sociedade, não acreditamos que isso tenha ocorrido no Brasil, seja por motivos internos, seja

por externos (como bem mostram os dados e as argumentações de Valdemar Sguissardi no livro

Universidade brasileira no século XXI).

Acreditamos — e isso é o que nos parece mais atual no pensamento educativo

orteguiano — que, em grande medida, a inautenticidade da universidade acarreta a

inautenticidade do estudante e a perpetuação do parasita social que é o homem-massa, assim

como em qualquer outra instituição social que pretenda ensinar por palavras e não por

exemplos, fazendo com que o processo de ensino-aprendizagem seja nada mais que falsidade,

contribuindo assim para a catástrofe social que Ortega, interpretando seu tempo e seu país,

acreditava ser a inversão dos papeis de massa e minoria. Já assinalamos que a rebelião das

massas se dá não só pelo rebelde desejo das massas em dirigir, mas pela ausência da minoria

diretora cuja função é ensiná-las seu lugar e garantir que ali permaneçam. Insistimos em dizer,

com Raymond Aron em seu texto já mencionado, que a postura de Ortega y Gasset nada tem a

ver com a defesa de uma aristocracia burguesa ou de uma forma de governo totalitária, pois,

como explicamos anteriormente, “massa” não se refere a classes sociais, mas a tipos de homens.

É preciso insistir nesse aspecto, pois parece ser o que mais incomoda, justamente por ser o que

menos se entende na filosofia orteguiana. Sem autenticidade, a função da Universidade de

fabricar essas minorias diretoras, ao invés de ajudar a solucionar o problema, só o piora.

Cremos que isso guarde alguma relação com a atual situação sócio-política brasileira.

Sendo assim, ao estudarmos o problema da inautenticidade da instituição universitária – que se

revela, a nosso ver, sob o nome mais comum de indisciplina — sem olvidar seu importante

16 Como se pode ver em Ortega y Gasset: a aventura filosófica da educação (2002) e El papel de la Universidade

contra la barbárie (2001) ambos de Margarida Amoedo; também em Benítez, Ortega y la fundación de la Facultad

de Esudios Generales de la Universidad de Puerto Rico de Jorge Rodríguez Beruff (2010) e em El Ortega que

conocí de Jaime Benítez (2010). Os dois últimos presentes na Revista de Estudios Orteguianos, n. 21.

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papel social, acreditamos poder esclarecer como a universidade inautêntica tem contribuído de

maneira decisiva para a piora do quadro nacional. Não, claro está, como única ou mesmo maior

responsável, mas, de um lado, pelo fato de que a confusão entre suas tarefas básicas perpetua a

existência do bárbaro especialista e, de outro, por despreocupar-se com a inautenticidade de

seus estudantes e a sua própria. Claro está também que este tipo de crítica não pode ser

comprovada com dados e estatísticas: o problema se apresenta como qualitativo e não

quantitativo. A questão que se apresenta aqui é um ponto de vista nascido da perspectiva do

pesquisador enquanto assíduo frequentador do ambiente universitário e pesquisador do tema.

A crítica que se faz não tem a menor pretensão de enunciar uma verdade transcendental, apenas

de sugerir ao leitor uma forma legítima e justificada de enxergar o problema que pode ter em

sua justificação erros e acertos.

Por fim, podemos perceber que a importância da atuação da instituição universitária

como combate à crise encontra-se em seu poder de formação do homem. No caso das

licenciaturas isso fica mais evidente, já que os profissionais formados ali serão preparadores de

uma nova geração e educadores de uma nova leva de homens. Como já adianta Ortega no texto

¿Instituciones?, em uma genialmente velada crítica aos marxismos que se apresentam como

doutrinação dogmático-religiosa, problema que o incomodava na sociedade ocidental de sua

época,

a solução virá, como vem sempre na história, de uma maneira muito simples: pela

simples presença de uma nova geração que se declarará mais além do politicismo e

do economismo, que se negará a anular sua vida colocando-a em sua raiz a serviço de

dois problemas insolúveis. Política e economia [...] (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p.

364).

Em resumo, neste capítulo, procuramos deixar indicado que ao reconhecer, na primeira

metade do século XX, uma crise de cultura com reflexos na vida pessoal, o filósofo espanhol

José Ortega y Gasset propõe como explicação dessa crise a emergência histórica de um tipo

específico de homem com características especialíssimas: o homem-massa. Esse conceito não

se refere ao pertencimento a uma classe social ocupada pelos indivíduos, mas sim à forma como

ele conduz sua vida, como ele se move na existência e na coexistência, que é radicalmente

inautêntica, ou seja, surda ao núcleo insubornável de cada qual – sua vocação – e aos desafios

que o tempo impõe aos homens de todas as épocas. Procuramos demonstrar que esse tipo de

homem perde-se na circunstância, na cultura, tornando-se cego à sua vocação, entendida como

uma inclinação pessoal, e aos problemas da sociedade. Para Ortega, esse homem inautêntico

era incapaz de perceber que as crenças sobre a qual desenvolvia sua vida já não mais atendiam

às circunstâncias impostas pela história, já que o filósofo considera que o que sustenta o homem

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são suas crenças e que elas são invalidadas, de tempos em tempos pelos movimentos próprios

da sociedade. Assim, cabe ao homem reconstruir as crenças sobre as quais se estrutura a vida

cultural e individual. Esse indivíduo, incapaz de realizar essa tarefa, é considerado por Ortega

e seus comentadores como uma criança mimada, senhorio satisfeito e bárbaro especializado.

Tendo, pois, identificado a crise daqueles dias, procuramos explicar que, acompanhando a

análise de José Maurício de Carvalho no livro Ética, essa crise de cultura ainda permanece e o

homem-massa continua a ser o protagonista do cenário social, ainda que apresente novas

características além daquelas identificadas por Ortega y Gasset no século passado.

Como proposta de combate à essa crise, Ortega y Gasset propõe que a instituição

universitária assuma um papel social específico após ser reformada. Essa reforma tem como

ponto de partida o reconhecimento de sua missão cultural. Esse modo de interpretação que

identificamos como influência de seus estudos na Alemanha e de uma profunda e longíngua

meditação sobre os problemas de seu país, coloca a instituição de ensino superior como

responsável pela criação de minorias dirigentes, responsáveis e moralmente exemplares, com a

tarefa de orientar a massa. Apontamos ainda que o problema mais visível a ser enfrentado por

esta instituição seja o da barbárie do especialismo, isto é, uma formação que se resume em

oferecer um conhecimento técnico de uma única área da ciência, problema que, a nosso ver,

ainda pode ser encontrado nas universidades quando essas não são encaradas como instituições

de propagação de cultura e de formação profissional, sendo o homem de ciência nesses moldes,

conforme diz Ortega, um protótipo de homem-massa.

Dessa maneira, acreditamos ter pontuado que a meditação orteguiana responde a

problemas sociais, políticos e educacionais que enfrentamos ainda hoje, pois, como dissemos,

acreditamos estar diante de uma segunda geração do homem-massa. Isso significa que a

universidade não conseguiu caminhar para ser aquilo que Ortega classificava como uma

instituição de cultura. Dessa forma, a meditação orteguiana, embora pouco comentada em nosso

meio, é fecunda como base teórica de interpretação para pensar as dificuldades da universidade

brasileira atual.

Outra forma de interpretação educacional que pode servir para a melhoria da sociedade

encontramos nas três primeiras obras de Paulo Freire. Ali, após ser realizada uma pesquisa

cuidadosa e apesar das essenciais diferenças entre as duas formas de pensar, sua reflexão parece

guardar algumas semelhanças muito pontuais com o que Ortega nos propôs ao longo destas

páginas. Antes que apresentemos no que estas escassas semelhanças consistem procuraremos

apresentar, também em linhas gerais, as principais ideias presentes nas primeiras e, julgamos

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assim, fundamentais obras freirianas. Vejamos como Paulo Freire identifica uma crise no seu

tempo e como encontra na educação uma combatente à altura.

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CAPÍTULO 3 - EDUCAÇÃO E REVOLUÇÃO CULTURAL: LIBERTAÇÃO NO

ENGAJAMENTO POLÍTICO SEGUNDO PAULO FREIRE

Uma verdadeira filosofia da educação não poderá fundar-

se apenas em ideias. Tem de identificar-se com o

contexto a que vai se aplicar seu agir educativo. Tem de

ter consciência crítica do contexto – dos seus valores em

transição -, somente como pode interferir neste contexto,

para que dele também não seja uma escrava. [...] É esta

identificação que a faz autêntica. E é a sua autenticidade

que a faz instrumental (FREIRE, 2003, p. 56).

Logo nas primeiras páginas de Educação e atualidade brasileira, considerada primeira

obra de Paulo Freire, é possível perceber que o autor compreende a necessidade do

reconhecimento dos problemas do Brasil de sua época e a tomada de uma postura crítica diante

deles, algo que também marcará grande parte de Educação como prática da liberdade, que

apresenta, de modo sucinto, a redação daquela. Um dos problemas que mais o incomoda é,

como não poderia deixar de ser, o problema da educação. Para ele, o processo educativo precisa

tornar-se não só força estabilizadora, isto é, uma ação que vise interromper a prejudicial

instabilidade social e política que ele identifica na época e que ainda hoje parece existir, mas

também, por mais paradoxal que possa parecer, fator de mudança (FREIRE, 2003, p. 10). O

que ele parece propor é que, sendo a instabilidade um fluxo contínuo de mudanças caóticas e,

por isso mesmo, imprevisíveis, o processo educativo deve contribuir como uma nova forma de

estabilidade social. Para isso, precisa a educação ser repensada, sistematizada, organizada não

em si mesma, como processo social isolado, mas inserida na sociedade da qual faz parte, da

qual é construtora e beneficiária. Dessa maneira, Paulo Freire credita à educação um caráter

instrumental – como mostra a epígrafe escolhida para este capítulo -, o que significa que o

objetivo, a finalidade almejada por Freire é de caráter político e, ao mesmo tempo, estritamente

pedagógico. Sem isso, sem levar em consideração o seu entorno, o processo educativo

dificilmente conseguirá alcançar qualquer objetivo louvável, moralmente responsável,

eticamente fundamentado, pois é inautêntico, não se coloca em organicidade, em relação vital

com a sociedade (Ibidem). É exatamente este pensamento e, diríamos, esse apelo, que

encontramos também no quarto capítulo de Pedagogia do oprimido. Diz Freire em Educação

e atualidade brasileira:

Não há, portanto, como admitirmos a existência de um homem totalmente

comprometido diante de sua “circunstância”. É condição de sua própria existência o

seu compromisso com essa “circunstância” em que inegavelmente aprofunda suas

raízes e de que também inegavelmente se recebe cores diferentes. É neste sentido que

se pode afirmar que o homem não vive autenticamente enquanto não se acha integrado

com sua realidade. Criticamente integrado com ela. E que vive vida inautêntica

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enquanto se sente estrangeiro na sua realidade. Dolorosamente desintegrado dela.

Alienado de sua cultura (FREIRE, 2003, p. 11, aspas no original).

Chamamos atenção para o fato de que o autor nos diz que não basta estar inserido na

circunstância, nem mesmo reconhecer-se inserido nela. Mas faz-se necessário que a consciência

de si dentro deste contexto se configure como consciência crítica, ativo-reflexiva, que se veja

como parte integrante e inexorável do processo, do mesmo modo que a hipófise não pode se

eximir de avaliar sua produção de hormônios gonadotrópicos detidamente,

pormenorizadamente, a fim de proporcionar desenvolvimento humano estável. Assim como

essa glândula pituitária que tem o tamanho de uma ervilha, Paulo Freire acredita que o homem,

ainda que possa ser considerado ínfima parte da sociedade, é regulador dela através de suas

ações, pois vive em organicidade com ela. Em um organismo, cada pequena variação contribui

para o todo, para sua disfunção ou para sua normalidade. É o que o autor nos diz em Educação

e atualidade brasileira: “realmente, sem consciência de nossa realidade, sem apropriação de

suas dimensões, de que nos tornemos íntimos, sem ocuparmos, com relação a ela, uma posição

de que a sua visão parta de dentro dela mesma, não será possível nenhum verdadeiro diagnóstico

dos seus problemas” (FREIRE, 2003, p. 56) e também em Pedagogia do oprimido: “Os homens

são porque estão em situação. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente sobre sua

forma de estar, mas criticamente atuem sobre a situação em que estão” (FREIRE, 2016, p. 168,

itálicos no original).

O processo educativo, um dos sistemas do organismo, é, para Freire, importante na

medida em que pode proporcionar o bem político, ou seja, que pode proporcionar ao homem as

qualidades necessárias para o desenvolvimento saudável da sociedade revolucionária que

almeja e também para que ele possa integrar-se espaço temporalmente a seu ambiente social

para cumprir aquelas duas funções, ou seja, para estabilizar e também, este é o caso para Freire,

para alterar, transformar. “Sem essa integração o processo se faz inorgânico, superposto e

inoperante” (FREIRE, 2003, p. 11). Portanto, o método de atuação que Freire nos propõe em

Educação e atualidade brasileira e também em Educação como prática da liberdade é a busca

pela compreensão desse ambiente social que ele entende desestabilizado. Nele, o educador

reconhece a presença de uma antinomia fundamental – inserção do povo na vida pública e

inexperiência democrática – que, na sua forma de encarar o problema, deve ser atacada antes

de partir para uma reformulação do processo educativo, pois este tem como função unicamente

desarticular e exterminar essa antinomia. Para Freire, a inexperiência democrática é

“responsável por tantas manifestações de nosso comportamento, como a matiz desta educação

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desvinculada da vida, autoritariamente verbal e falsamente humanista, em que nos desnutrimos”

(FREIRE, 2003, p. 12).

Ao ser incapaz de cumprir esta tarefa, diríamos, essa sua missão, a escola, como

ambiente formal de educação, embora Freire não se refira a esse tipo de educação o tempo todo,

se faz inorgânica e ineficiente. Por isto, o autor dedica uma crítica veemente ao modo de

educação de seu tempo (o que mais tarde ele chamará de “educação bancária”) e propõe uma

nova forma de educação libertadora que se baseará inicialmente no método subdividido em

palavras geradoras (Educação como prática da liberdade) e temas geradores (Pedagogia do

oprimido), cujo objetivo, como anteriormente argumentamos, encontra-se no quarto capítulo

desta obra e consiste na revolução do oprimido contra a “desumanidade” do opressor. Para ele,

o problema da escola é ser “bacharelescamente antidemocrática, em uma fase eminentemente

democrática de nossa história” (idem, p. 96). Em outras palavras, significa que essa instituição

de ensino não acompanha o trânsito de democratização que o autor acredita estar vivendo o país

de sua época (início dos anos 60, considerando que a redação da obra é datada de 1959).

Problema que também se estende, no seu visar, às escolas de formação de professores, que, para

ele, enfatizam a posição dogmática do professor e não reconhecem a verdadeira importância,

ou melhor, sequer acreditam existir a importância da “experiência do debate, da discussão em

grupo, das soluções cooperativas” (idem, p. 100). Na verdade, em Pedagogia do oprimido se

observa a visão pessimista que Freire guarda da chamada educação formal, como a escola e a

universidade, considerando o que é dito no segundo capítulo — “temos afirmado que a

educação reflete a estrutura do poder” (FREIRE, 2016, p. 110) – e, principalmente, o que lemos

no quarto:

É que, indiscutivelmente, os profissionais, de formação universitária ou não, de

quaisquer especialidades, são homens que estiveram sobre a “sobredeterminação” de

uma cultura de dominação, que os constitui como seres duais. Poderiam, inclusive, ter

vindo das classes populares, e a deformação, no fundo, seria a mesma, se não pior.

Estes profissionais, contudo, são necessários à reorganização da nova sociedade. E,

como grande número entre eles, mesmo tocados do “medo da liberdade” e relutando

em aderir a uma ação libertadora, em verdade são mais equivocados que outra coisa,

nos parece que não só poderiam, mas deveriam ser reeducados pela revolução (idem,

p. 243, aspas no original, itálico nosso).

E também o que lemos em Educação e atualidade brasileira, a respeito do ensino

superior:

Distante de nossos problemas, de que às vezes timidamente se aproxima, apaixonada

por inócua, quando não comprometedora sabedoria nocional, seu grande e incontido

gosto ainda é o da palavra. Vazia, muitas vezes, ou quase sempre. É o dos esquemas

a que se pretende reduzir a realidade. É o das exclusivas preleções teóricas. O seu

grande desdém é o dos contatos com os fatos (FREIRE, 2003, p. 109).

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Dessa maneira, percebemos que a mudança do sistema educacional, ou da prática

educativa, está diretamente relacionada, se não submetida, ao processo de mudança política que

ele identifica naquele momento. Indicando, mais uma vez, a preocupação eminentemente

política e, por isso mesmo, pedagógica de Paulo Freire. Ainda sobre a citação, é necessário

esclarecer o que entende Freire por “revolução” para evitar equívocos futuros. Eis o que diz ele

a esse respeito:

Não há nada, contudo, de mais concreto e real do que os homens no mundo e com o

mundo. Os homens com os homens, enquanto classes que oprimem e classes

oprimidas. O que pretende a revolução autêntica é transformar a realidade que

propicia este estado de coisas, desumanizante dos homens (FREIRE, 2016, p. 203).

Nota-se, então, sem nenhum problema, que a “revolução” para Freire é transformar essa

realidade que ele identifica na relação existente entre classes que oprimem e classes que são

oprimidas. Atente-se também para o fato de que Freire não se vale de uma nomenclatura

individual. Ele não diz “homem que oprime” ou “indivíduo que oprime”, e, mesmo que o nome

da obra seja Pedagogia do oprimido a preocupação do autor é tratar da classe oprimida

enquanto tal e não a dos indivíduos isoladamente, ainda que isto seja inerente à prática que ele

propõe. Em suma, o conceito de “revolução” para Freire parece significar uma superação da

luta de classes para o estabelecimento de uma sociedade sem classes, portanto, estabelece-se

como uma preocupação com o coletivo e com o social. Podemos encontrar exemplos disso em

Educação e atualidade brasileira (FREIRE, 2003, pp. 28, 30 (nota de rodapé), 31, 32, 33 (nota

de rodapé), 36, 41, 42, 47, 54, 63, 67, 68, 73, 79, 85 e 101) e também em Pedagogia do

oprimido. Por considerarmos esta a obra-prima do autor, portanto, a que melhor acolhe a

sistematização de ideias, citamos alguns exemplos:

Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais

estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma

em “seres para outro”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se”, em “incorporar-

se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se

“seres para si” (FREIRE, 2016, p. 109, aspas e itálico no original).

Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desaparecimento

da opressão desumanizante, é imprescindível [...] (Idem, p. 158, itálico nosso).

Este [“inserção crítica na realidade dos oprimidos como classe”] é outro conceito que

aos opressores faz mal, ainda que, a si mesmos, se considerem como classe, não

opressora, obviamente, mas “produtora”. Não podendo negar, mesmo que o tentem, a

existências das classes sociais, em relação dialética umas com as outras, em seus

conflitos, falam na necessidade de compreensão, de harmonia, entre os que comparam

e os que são obrigados a vender o seu trabalho. Harmonia, no fundo, impossível pelo

antagonismo indisfarçável que há entre uma classe e outra (Idem, p. 222, aspas no

original).

A união dos oprimidos é um quefazer que se dá no domínio do humano e não no das

coisas. Verifica-se, por isto mesmo, na realidade, que só estará sendo autenticamente

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compreendida quando captada na dialeticidade entre a infra e superestrutura (Idem, p.

269).

A organização das massas populares em classe é o processo no qual a liderança

revolucionária, tão proibida quanto estas, de dizer sua palavra, instaura o aprendizado

da pronúncia do mundo, aprendizado verdadeiro, por isto, dialógico (Idem, p. 274,

itálicos no original, negrito nosso).

Dessa maneira, o processo educativo parece ter dupla função no pensamento de Freire:

a preparação técnica e científica, que é uma exigência do país naquele momento; e da criação

ou formação de “disposições mentais” (FREIRE, 2003, p. 20) que seriam responsáveis por criar

no homem a consciência do desenvolvimento industrial da época, sua aceitação e os problemas

que dele decorrem. Essas novas disposições mentais se traduziriam, para o autor, em um “clima

cultural novo” (Idem), no qual o homem se reconheça, através do estudo e da aceitação da

importância de seu caráter histórico, de ator e não mero espectador. Essa proposta parece revelar

uma parcela de influência que acreditamos exercer o culturalismo brasileiro sobre o

pensamento, pelo menos “inicial”, de Freire e que pode ser notado com clareza no último

capítulo de Extensão ou comunicação? (originalmente publicado em espanhol em 1969 e em

português sua primeira edição data de 1971).

A preocupação freiriana nesse momento – e, ousamos afirmar, de toda sua prática

político-pedagógica –, baseando-se na proposta de Álvaro Vieira Pinto, isebiano que ele mais

admirava, é a da educação das massas (idem, p. 21), preocupação que encontramos fortemente

destacada em Educação como prática da liberdade e mesmo na Pedagogia do oprimido. Para

Freire, o problema político nacional, a antinomia, se torna educativo à medida que adquire

necessidade de transitividade da consciência de ingênua à crítica. Essa mudança só pode ser

feita, diz ele, pela educação, por aquilo que ele denomina de “ideologia de desenvolvimento”

(idem, p. 30). Esse pensamento pode ser identificado no seguinte trecho, que acreditamos

sintetizar toda a argumentação de Educação e atualidade brasileira:

[...] se faltaram condições no nosso passado histórico-cultural, que nos tivessem dado,

como a outros povos, uma constante de hábitos solidaristas, política e socialmente,

que nos fizessem autênticos dentro da moldura Estado-nação em que vivemos, da

forma democrática de governo, resta-nos, então, aproveitando as condições do novo

clima cultural, eminentemente propícias à democratização, apelar para a educação

como ação social, através de que incorporemos ao brasileiro estes hábitos (idem, p.

86).

Até aqui procuramos apresentar ao leitor uma introdução ao modo como Freire enxerga

um problema na sociedade de seu tempo e como, de modo geral, esse problema se configura.

A partir de agora, faremos um estudo mais aprofundado da percepção freiriana desse momento

problemático que encontra no Brasil de sua época, percepção que encontramos explicada nos

livros Educação e atualidade brasileira e Educação como prática da liberdade. Depois,

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procuraremos apresentar ao leitor a maneira como essa percepção evolui para a compreensão

de desafios que transcendem a esfera nacional e que, segundo o autor, aplicam-se de maneira

universal, isto é, em qualquer sociedade que se possa identificar a ação opressora. Esta proposta

de uma pedagogia que vai além dos limites geográficos começa a despontar no capítulo quatro

de Educação como prática da liberdade, mas se apresenta, a nosso ver, de modo completo em

Pedagogia do oprimido, obra que tem sua importância justamente por ser aplicável

praticamente de maneira indefinida. Isso significa que entendemos que esta obra específica de

Freire pode ser aplicada a qualquer sociedade em que que se encontrem opressores e oprimidos,

considerando que o mundo atual tem visto cada vez mais relações deste tipo. Por fim,

indicaremos que tanto na primeira fase de reconhecimento de problemas, como na segunda, a

educação se apresenta para Freire como instrumento de mudança social, visando uma sociedade

livre e democrática, mas só pode se constituir como esse meio se quem a faz tem como

pressuposto a transformação radical da sociedade.

3.1 O problema nacional brasileiro: a “antinomia fundamental”

Ao olhar para a sociedade brasileira de seu tempo, Paulo Freire identifica um problema

nacional. A esse problema, que, no seu modo de ver é basilar, denomina “antinomia

fundamental”. Essa antinomia se define pelo que ele entende como sendo uma contradição, um

“jogo de dois polos – de um lado, a ‘inexperiência democrática’, formada e desenvolvida nas

linhas típicas de nossa colonização e, de outro, a ‘emersão do povo na vida pública nacional’,

provocada pela industrialização do país” (idem, p. 26, itálico e aspas no original). Juntamente

a essa crescente participação do povo na vida pública, gerada, segundo Freire, pelo

desenvolvimento industrial, está, reconhece ele, um sentimento também crescente de

autoaprovação nacional (idem, p. 54) que surgiria como resposta à inautenticidade que o país

reconhecia devido à sua formação colonial e da inautenticidade decorrida da alienação dessa

condição (Idem, p.55).

Ao citar o livro A redução sociológica de Guerreiro Ramos, Paulo Freire nos explica o

que significa o clima de industrialização do país: “transformações da infraestrutura que levam

o país à superação do caráter reflexo de sua economia” (RAMOS, 1958, p. 20 apud FREIRE,

2003, p. 79). Podemos perceber em determinados trechos da obra de Freire que ora analisamos,

o quanto ele concorda com a assertiva de Guerreiro Ramos. A título de exemplo, citamos os

seguintes: “nos conservamos mudos e quietos até quando começaram a surgir as primeiras

alterações substanciais na nossa infraestrutura, de que começou a decorrer uma nova posição

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de nossa economia” (FREIRE, 2003, p. 28) e também: “as novas condições culturais que foram

inauguradas no país, com as alterações infraestruturais, queiram ou não queiram os retrógrados,

estão alterando os quadros nacionais” (idem, p. 101). Ele reconhece essa mudança econômica

surgindo no início do século XIX, quando com a proibição do tráfico de escravos o capital que

seria investido ficou estagnado, de modo que se passou a investi-lo nas indústrias. Além disso,

como veremos, Freire reconhece que a promoção da consciência de ingênua para crítica só se

dá por e através desta mudança na infraestrutura econômica (idem, p. 30).

Portanto, no momento, o que preocupa o recifense é o fato de que com a industrialização

emergente no Brasil de sua época, o povo começa adentrar na esfera da vida pública e, portanto,

a tomar parte nas decisões políticas, embora seja inexperiente para opinar, para apresentar suas

ideias sobre este ou aquele tema a que é levado a debater. Mais que isso: Freire entende que

essa inexperiência se reflete nos casos de abuso de poder, de passividade diante da autoridade,

de desconhecimentos de direitos e de deveres, de desinteresse pela coisa pública, no odioso

“jeitinho” brasileiro, no voto por “gratidão”, no que ele chama de “inconsistência ideológica”

(idem, p. 27), de coação e de fraude. Dessa maneira, não é errôneo afirmar que a

industrialização, para Freire, implica na participação do povo na vida pública nacional, isto é,

age diretamente sobre ele requisitando sua participação, ainda que, como reconhece Francisco

Weffort na introdução de Educação como prática da liberdade, de modo passivo.

Em outras palavras, o autor entende que estas formas de agir estão de acordo com o que

ele chama de “disposições mentais”. Este termo, que amiúde aparece no primeiro capítulo de

Educação e atualidade brasileira, é importante, pois revela um certo modo de agir comum,

uma cultura, um modus vivendi que exemplifica o problema que ele identifica e o tipo de

sociedade em que esse problema acontece. Para Freire, “estas disposições mentais nascem e se

desenvolvem dentro de um clima cultural específico. E foi este clima cultural que nos faltou na

elaboração de nossa história” (idem, p. 28). Ele se refere justamente à história do Brasil, desde

a chegada dos portugueses, e vai encontrando nos acontecimentos históricos constitutivos da

nação justificativas e explicações para essas disposições mentais, que, a seu ver, culminam na

inexperiência democrática do povo brasileiro. Sem o “clima cultural” de democracia, nos diz,

“não será possível um trabalho educativo democrático verdadeiro” (idem, p. 60).

Nesta análise histórica - que faz no segundo capítulo desta mesma obra - Freire nos

apresenta detalhadamente aquilo que considera como sendo as raízes do quietismo e da

assistencialização, características que ele percebe em sua época e reforça sua esperança de que

o novo clima cultural brasileiro de industrialização irá, aos poucos, iniciar a resolução deste

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problema que é a antinomia. O que o move a refletir sobre os problemas nacionais em

Educação e atualidade brasileira e Educação como prática da liberdade se esclarece no trecho

que segue:

Acreditamos [...] na diluição da nossa ostensiva “inexperiência democrática”, a pouco

e pouco abalada pela força das novas condições faseológicas brasileiras, inauguradas

com os primeiros surtos de industrialização do país e que vem implicando a

substituição de nossas estruturas coloniais. “Inexperiência” que será substituída por

outra forma de experiência – a da “dialogação”, a da “parlamentarização”, em

consonância com o clima cultural novo, que vem ampliando incoercivelmente as áreas

de participação do povo (idem, p. 77, itálicos nossos).

Ao fazer esta reflexão, o autor encontra certos elementos, “ingredientes” constituintes

deste fenômeno que é a antinomia. Trataremos, agora, de cada um em particular.

3.1.2 Inexperiência democrática: o componente histórico da antinomia

A inexperiência democrática que Paulo Freire acreditava ser um dos polos do que

denominou de antinomia fundamental, acreditamos poder ser dividida em quatro componentes

constitutivos: a assistencialização, a transitivação da consciência, o desequilíbrio entre a

autoridade externa e a interna e o centralismo asfixiante. Todos estes componentes, nos diz o

autor, deitam raízes em nossa formação histórica que ele considera patriarcal, burocrática e

autoritária. Tratemos de cada um destes aspectos em separado, para que possamos compreender

melhor a dimensão dos problemas que ele identifica na sua época.

O primeiro deles é o que ele denomina “assistencialização” (idem, p. 28). O termo é

assim definido:

A “assistencialização” é o máximo de passividade do homem diante dos

acontecimentos que o envolvem. Opõe-se ao conceito de “dialogação” [...]. Enquanto

na “assistencialização” o homem queda mudo e quieto, na “dialogação” [...] o homem

rejeita posições quietistas e se faz participante. Interferente (idem, p. 28, aspas no

original).

Outra definição encontramos mais adiante neste mesmo texto: “[...] ‘assistencialização’

– máximo de apatia, braços cruzados, com relação à vida pública [...]” (idem, p. 71, aspas no

original) e ainda: a “demissão que o educando sofre do processo de sua educação” (idem, p.

100). Percebemos, então, que a “assistencialização” pode ser interpretada como a falta de

autonomia e de liberdade que é, ao mesmo tempo, imposta de fora e desejada por dentro. Algo

parecido com o que Kant já chamava de “preguiça” e “covardia” em seu magnífico texto

Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?.

Paulo Freire identifica que esse gosto pela transferência da autoridade surge ainda no

início da colonização do país pelos portugueses, na divisão das capitanias hereditárias e a

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consequente necessidade que o trabalhador da terra encontrava de ser dependente do capitão

donatário. Para Freire, “aí se encontram, realmente, as primeiras condições culturológicas em

que nasceu e se desenvolveu no homem brasileiro o gosto, a um tempo de mandonismo e de

dependência, de ‘protecionismo’ [...]” (idem, p. 64, aspas no original), das “soluções

paternalistas” (Ibidem), que ele identifica ainda em sua época como uma constante e poderosa

oposição à criação de um clima cultural democrático que exige exatamente o contrário: a

participação responsável e livre do povo, sua autonomia. Dessa maneira, pode concluir ele que

“[...] com essa política de colonização, com seus moldes exageradamente tutelares, não

poderíamos ter tido experiências democráticas” (idem, p. 70).

O segundo aspecto é a necessária – devido à industrialização do país como “imperativo

existencial” (idem, p. 26) – passagem da autoridade externa, “verticalmente autoritária e

ajustada ao clima cultural do patriarcalismo” (idem, p. 44) para a autoridade interna,

“permeável, crítica e flexível, ajustada ao clima cultural da democratização” (idem, p. 45).

Clima cultural que Freire identifica como sendo a principal característica do Brasil no estudo

que faz da história do país no segundo capítulo de Educação e atualidade brasileira e suprimido

em Educação como prática da liberdade.

A problemática dessa passagem, que ele chega a chamar de “crise de autoridade”

(Ibidem) – além de considerá-lo como “local” no qual os “descompassos de nossa vida

democrática ainda estão [...]” (idem, p. 78) — se dá também no encontro do equilíbrio entre

conceder poder total à autoridade externa (patriarcalismo) e exterminá-la de uma vez por todas

(anarquia). Para Freire, a autoridade interna depende da externa, de modo que é preciso que ela

seja exercida de maneira crítica, libertadora e não autoritária. A bem da verdade, essa autoridade

externa precisa ser introjetada (ibidem) para, segundo Freire, “darmos nascimento à autoridade

interna, à razão ou à consciência transitivo-crítica [...]” (Ibidem).

Portanto, percebemos que, ao contrário do que se imagina, o autor não propõe a “terra

sem amos” do famoso refrão, mas reconhece que a liderança social, desde que democrática e

libertadora, é indispensável para uma sólida organização da sociedade. Acreditamos que essa

maneira de entender o papel da liderança está presente em todo o pensamento que Freire vai

desenvolver ao longo de suas obras mais famosas, sobretudo na Pedagogia do oprimido,

principalmente no quarto capítulo. Iremos tratar deste assunto com mais vagar no próximo

capítulo, mas podemos citar agora como exemplo da importância da liderança e da autoridade

o seguinte trecho de Educação e atualidade brasileira:

A solução está, antes, no exercício de uma autoridade democrática, respeitosa da

liberdade do educando que, possibilitando a este condições em que experimente sua

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liberdade, leve-o à consciência da autoridade. É o célebre caminho que se percorre da

heteronomia para a autonomia (idem, p. 45).

O terceiro aspecto que Paulo Freire identifica pertencer ao que ele chama de

inexperiência democrática e que a compõe juntamente com a assistencialização e o

desequilíbrio entre a autoridade externa e interna é uma condição individual, é um modo de ser

singular do humano. O autor nos diz que é possível fazer uma classificação da consciência em

dois tipos: consciência intransitiva e consciência transitiva. Esta última é subdividida em

transitivo ingênua e transitivo crítica. Embora a importância desta distinção possa parecer

antiquada ou obsoleta no pensamento de Freire, podemos encontrar aqui e ali em seus escritos,

menção a este pensamento. Um exemplo que poderíamos citar é o texto Conscientizar para

libertar, publicado no México pela primeira vez em 1971, ou seja, após a redação e publicação

de Pedagogia do oprimido, que parece ser a obra que sistematiza suas ideias sobre educação e

política, de modo que a presença desta distinção como fundamento ou pressuposto de outras

ideais parece ainda estar presente. Além disso, em um livro publicado originalmente nos

Estados Unidos em 1985, sob o título The politics in education - cuja versão que tivemos acesso

é espanhola, La naturaleza politica de la educación (Barcelona, 1990), mas que desconhecemos

se existe versão em português, embora, em certa medida, seja uma discussão muito parecida da

feita nos livros Política e Educação (1993) e Ação cultural para a liberdade (1976) – retoma a

discussão a respeito dos níveis de consciência com grandes detalhes e de modo mais

sistemático, contudo, menos detalhado, motivo que nos levou a preferir a apresentação realizada

em Educação e atualidade brasileira.

Antes, contudo, de apresentarmos pormenorizadamente o que o autor entende por cada

uma das parcelas desta distinção e qual é a relação que ele enxerga entre os níveis de consciência

e o problema que ele identifica na sociedade, é preciso dizer que não julgamos nem acreditamos

que o pensamento freiriano se reduza a essa compreensão da consciência admitida por ele em

sua primeira obra. Entretanto, não acreditamos ser insignificante essa compreensão para o

melhor entendimento de seu pensamento posterior, principalmente o de Pedagogia do oprimido

e, por isso, damos a ele destaque. Tendo feito este esclarecimento, passemos à explicação dos

níveis da consciência admitidos por Freire.

A intransitividade de consciência é uma postura predominantemente vegetativa ou

biológica do homem. Isso significa que nesse estágio o indivíduo não se preocupa com nada

que não diga respeito estritamente à sua vida cotidiana, corporal, física, biológica. Nesse

aspecto, ele se encontra muito próximo do homem primitivo, que se preocupa apenas com suas

necessidades básicas, como a manutenção da alimentação e o estabelecimento de uma moradia.

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Segundo Freire, nesse estágio “suas preocupações se cingem mais ao que há nele de vital,

biologicamente falando. Falta-lhe historicidade, ou, mais exatamente, teor de vida em plano

mais histórico” (FREIRE, 2003, p. 32). Esse tipo de consciência, para o autor, assim como os

outros tipos que logo veremos, se relacionam com o estado de desenvolvimento de uma

determinada região, o que significa que podemos entender que é possível fazer uma

demarcação, digamos, regional, da predominância deste ou daquele tipo de consciência. Neste

caso, a consciência intransitiva, ele nos diz, é “a consciência de homens de zonas pouco ou nada

desenvolvidas do país” (Ibidem). Dessa maneira, já podemos perceber que, para Freire, o tipo

ou a condição da consciência está ligada ao desenvolvimento econômico do ambiente social

onde ela se encontra, de modo que voltamos a ressaltar a frase de Guerreiro Ramos comentada

acima. É o que se pode notar também em Educação como prática da liberdade, no momento

em que Freire comenta sobre seus, então, quinze anos de experiência na educação. Trecho no

qual é reforçada a ideia de que a transitivação da consciência está, necessariamente, relacionada

à industrialização: “surpreendêramos a apetência educativa das populações urbanas, associada

diretamente à transitividade de sua consciência, e certa inapetência das rurais, ligada à

intransitividade de sua consciência” (FREIRE, 2014, p. 133).

O próximo degrau, ou nível, da consciência, para Paulo Freire, é a consciência transitiva,

que “corresponde às zonas de desenvolvimento econômico mais forte” (FREIRE, 2003, p. 32).

Ela se caracteriza não só pelo aumento das preocupações do indivíduo, como pela sofisticação

destas preocupações. Nas palavras do autor, “[...] o homem alarga seus horizontes. Vê mais

longe” (idem, p. 32).

Em uma longa nota de rodapé na página 32 de Educação e atualidade brasileira, Paulo

Freire aponta que sua forma de encarar o problema da consciência ingênua/crítica difere do

modo com que os isebianos, notadamente Vieira Pinto, Guerreiro Ramos e Roland Corbisier,

tratavam a questão. O recifense entende que não há, necessariamente, uma mudança direta de

uma consciência para outra, mas que ela percorre estágios: o de intransitividade, sobre o qual

comentamos, e o de transitividade que se divide em transitividade ingênua e transitividade

crítica. Além disso, Freire diferencia a consciência transitivo ingênua da intransitiva, algo que

aqueles mestres do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, no olhar do autor, não haviam

feito. O educador acredita também não ser possível determinar um tipo exclusivo de consciência

que caracterizaria um povo. O mais correto, no seu modo de ver, seria falar de uma marca, de

um signo que não é exclusivo, mas predominante, como é o caso do Brasil de sua época. Para

ele, há no país predominância da consciência ingênua, primeiro estágio da consciência

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transitiva. Este é também o nível de consciência que ele reconhece presente no “analfabeto

político” (idem, p. 73) que ele analisa em O processo de alfabetização política. Esse tipo de

consciência se caracteriza

pela simplicidade na interpretação dos problemas. Pela tendência a julgar que o tempo

melhor foi o tempo passado. Pela transferência da responsabilidade e da autoridade,

em vez de sua delegação apenas. Pela subestimação do homem comum. Por uma forte

inclinação ao “gregarismo”, característico da massificação. Pela impermeabilidade à

investigação, a que corresponde um gosto acentuado pelas explicações fabulosas. Pela

fragilidade da argumentação. Por forte teor de emocionalidade. Pela desconfiança de

tudo o que é novo. Pelo gosto não propriamente do debate, mas da polêmica. Pelas

explicações mágicas. Pela tendência ao conformismo (idem, p. 34, aspas no original)

Decidimos apresentar a caracterização do modo como faz o próprio autor, pois, além de

ser perfeitamente didática, explicativa e sucinta, é muito adequada para a compreensão da

exposição que Freire faz das características da transitividade crítica, opondo cada um dos

aspectos daquela aos que ele reconhece nesta. Em Extensão ou comunicação?, ele assemelha a

ingenuidade de consciência ao domínio da doxa, “no qual os homens, repitamos, se dão conta

ingenuamente da presença das coisas, dos objetos, a percepção dessa presença não significa o

‘adentramento’ neles, de que resultaria a percepção crítica dos mesmos” (FREIRE, 1983, p. 17,

aspas no original). Essa percepção crítica se dá justamente na passagem da consciência ingênua

para a crítica, que é o segundo estágio da consciência transitiva, caracterizando-se

pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações

mágicas por princípios causais. Por procurar testar os “achados” e se dispor sempre a

revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas. Na sua

apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência da

responsabilidade. Pela recusa de posições quietistas. Pela aceitação da massificação

como um fato, esforçando-se, porém, pela humanização do homem. Por segurança na

argumentação. Pelo gosto do debate. Por maior dose de racionalidade. Ela apreensão

e receptividade a tudo o que é novo. Por se inclinar sempre a arguições (idem, p. 34,

aspas no original).

Se na intransitividade a consciência era incapaz de captar as questões e desafios que a

vida constantemente apresenta ao homem, sua transitivação parte da ampliação desta

capacidade, permitindo a ele encarar sua circunstância individual e social, e não somente

biológica, como uma questão inerentemente problemática. Nas palavras de Freire, “essa

transitividade da consciência permeabiliza o homem. Faz dele um ser mais vibrátil” (idem, p.

34). Isso significa que a consciência transitiva é uma consciência do diálogo do homem consigo

mesmo e com seu entorno, diríamos, com sua circunstância, com sua história. Dessa maneira,

por não transcender aquilo que possui de biologicamente vital, a consciência intransitiva é

considerada por Freire como a-histórica. Aqui percebemos a tal “sugestão de Ortega”, que é a

passagem da vida como biologia para vida como biografia, sugerida por Ernani Maria Fiori, na

página 34 do prefácio Aprender a dizer a sua palavra.

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Ao fazer uma comparação entre a transitividade ingênua da consciência e a

intransitividade, Freire acredita que aquela – a ingênua — se apresenta ao mesmo tempo como

evolução e perigo. Como evolução, pois é o movimento que leva o homem, ainda que

inicialmente, a recusar e renunciar às antigas posições em que substituía sua responsabilidade

delegando-a a outrem e a se envolver diretamente com os problemas. Como perigo, pois Freire

nos diz que a consciência transitivamente ingênua, nesse instante de transição da

intransitividade, está passível de sofrer distorções e deturpações que, devido à sua ingenuidade

característica, levaria o homem à massificação, a ser um “quase homem massa” (idem, p. 35).

Para ele, em Extensão e comunicação?, na consciência ingênua estão “formas desarmadas de

conhecimento pré-científico” (FREIRE, 1983, p. 20).

Freire entende que a ideia de massificação também está relacionada à de

industrialização: “criaremos circunstâncias capazes de nos resguardar dos perigos da

massificação, ou da mentalidade das massas, associada à industrialização” (FREIRE, 2003, p.

17), diz ele. Vimos que é a ingenuidade da consciência transitivo-ingênua que, deturpada, ou

seja, distorcido seu caminho para a transitividade crítica, leva o homem à massificação e a um

estágio mais perigoso que o de intransitividade. Diz o autor que este tipo de consciência é “um

alongamento distorcido da consciência ingênua” (idem, p. 38). Para ele, a massificação se

caracteriza como “uma forma de vida de tal maneira rígida, passional, impermeável, que se fará

impossível a dialogação democrática” (idem, p. 41) e ainda como “um estado no qual o homem,

ainda que pense o contrário, não decide” (FREIRE, 1983, p. 27).

Desse modo, a consciência transitivamente ingênua é característica de momentos

autoritários, antidemocráticos e antidialógicos. Ela é também um aspecto marcante da

sociedade brasileira de sua época. Para o autor, a emergente industrialização do país, embora

permita a transitividade da consciência, gera também um comportamento ingênuo e

domesticado, principalmente por causa do especialismo e da suposta “acriticidade” presentes

na produção em série. É o que lemos na seguinte citação:

“Voz” que o povo inexperimentado dela só consegue quando novas condições

faseológicas vão surgindo e propiciando a ele os primeiros ensaios de “dialogação”.

[...] É o que vem acontecendo entre nós, repitamos, com o impacto da industrialização,

no momento atual da vida brasileira (FREIRE, 2003, p. 71, aspas no original).

A estes problemas Freire apontará como proposta de combate uma espécie de política

empresarial de participação democrática que visaria impedir a alienação (idem, p. 42 e p. 81) –

algo que, pudemos ver, ele tentou aplicar no Serviço Social da Indústria (SESI) nos dez anos

em que lá esteve -, pois somente a democracia, e as condições para que ela exista, pode servir

ao homem nessa passagem com fins de criticidade. É o que ele afirma neste trecho:

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A democracia, que antes de ser forma política é forma de vida, [...] se caracteriza

sobretudo por forte dose de transitividade da consciência no comportamento do

homem. Transitividade que não nasce nem se desenvolve a não ser dentro de certas

condições em que o homem seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e

dos problemas comuns. Em que o homem participe (idem, p. 76).

Podemos, aqui, perceber, como em várias outras passagens de Educação e atualidade

brasileira, o quanto Paulo Freire parece ter sido influenciado pelo modo de pensar que ficaria

conhecido como “culturalista”, o que nos parece confirmado pela citação que Freire faz nessa

mesma página de Zevedel Barbu. Nascido na Escola de Baden e desenvolvido no Brasil a partir

da década de 30, o culturalismo surge como proposta de superação do neo-kantismo da Escola

de Marburgo, como já tivemos oportunidade de indicar, valorizando a objetivação dos valores

em movimento dialético com a sua subjetivação. Esse movimento é responsável, a um tempo,

pela construção de um ambiente cultural coletivo e também da subjetividade. No caso do trecho

destacado acima, Freire acredita que a democracia contribui para a passagem para a criticidade,

mas para isso necessita de um “ambiente”, por sua vez, democrático.

Dessa maneira, Freire entende que a passagem da consciência intransitiva para a

transitivo-ingênua é automática, e obedece à “promoção dos padrões econômicos da

comunidade” (idem, p. 36). Eis como o diz:

Para nós, estas transformações de nossa infraestrutura, que vêm promovendo nosso

homem de padrões de vida a-históricas ou de ‘existência bruta’, para padrões de vida

histórica ou de teor de vida mais espiritual e histórica, trazem e vêm trazendo consigo

promoção automática da consciência de um estágio chamado por nós de intransitivo

ou de consciência predominantemente intransitiva para outro, chamado por nós, de

consciência transitivo-ingênua ou predominantemente transitivo-ingênua (idem, p.

33, aspas no original, itálico nosso).

Neste acontecimento Freire enxergará mais tarde, em Extensão ou comunicação? algo

que não enxergava em Educação e atualidade brasileira (1959), a saber, que “estas

circunstâncias condicionam o fenômeno do populismo, que se vai construindo como resposta à

emersão das massas” (FREIRE, 1983, p. 27). Contudo, essa “promoção automática” não

acontece na passagem para a transitivo-crítica, ponto este que também demarca a diferença

entre a proposta freiriana e a de seus mestres isebianos. “[...] nem automática nem mecânica”

(FREIRE, 1978, p. 12), dirá ele anos mais tarde em Os cristãos e a libertação dos oprimidos,

reconhecendo que “[...] a modernização tecnológica não dá necessariamente a consciência

crítica às massas populares [...]” (idem, p. 31). Portanto, em seu modo de ver, a passagem da

consciência ingênua para a crítica não se dá de modo automático e determinado pela economia

(industrialização); ela deve ser causada, deve configurar-se como ação: ação propriamente

educativa. É o que ele reconheceria muito mais tarde, em texto de 1974, publicado em 1976

como parte do livro Ação cultural para a libertade, intitulado O processo de alfabetização

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política, embora, nesse momento, a perspectiva que ele atribua à passagem da ingenuidade para

a crítica esteja sob o olhar do pensamento desenvolvido anos antes em Pedagogia do oprimido,

o que significa que agora seu pensamento fenomenológico ou, diríamos, ontológico, no que diz

respeito à ação da consciência está fundamentado por uma reflexão estritamente política, a qual

transcende o conceito de “consciência de” para o de “conscientização”, conforme se lê: “eu

bem sei que a passagem de uma concepção ingênua da realidade para uma percepção crítica

não é por si mesma suficiente para a libertação do homem. Sei muito bem que o caráter

teológico de conscientização apela para uma práxis real” (FREIRE, 1981, p. 79).

Portanto, a educação deve servir como instrumento de transformação social que permita

ao homem sair da ingenuidade de sua consciência e habitar a criticidade, embora não de uma

maneira salvacionista, isto é, como se a educação resolvesse todos os problemas de uma vez

por todas. Freire reconhece que é preciso renovar o processo educativo em voga, pois é oco e

impermeável, mas reconhece também que o problema não é “puro e simples problema de

educação” (FREIRE, 2003, p. 60), o que reforça a ideia de que a preocupação de Freire é

política, embora não signifique que não seja pedagógica, como ele mesmo nos diz:

O problema é de educação, porém de educação orgânica. Isto é, de educação, mais

“condições institucionais”. Não será excessivo repetirmos serem essas “condições

institucionais” que propiciam o agir para a mudança, que caracterizam a

instrumentalidade do processo educativo. Sem essas condições ele se faz inoperante

e as suas linhas se situam dentro daquele sentido que conforma as posições

simplesmente idealistas, sem suportes na realidade. Não nos será possível, por

exemplo, projeto de educação democrática, com o qual nos opuséssemos ou nos

pretendêssemos opor à marcante e sempre presente “inexperiência democrática”

brasileira, se nos faltassem condições favoráveis em nosso acontecer histórico atual

(idem, p. 60).

Essa ideia é admitida também pelos organizadores no texto de introdução do livro Paulo

Freire: ética, utopia e educação. Para os autores, “[...] ele [Paulo Freire] coloca a necessidade

de um comprometimento apaixonado por parte dos educadores e os intelectuais em tornar o

político mais pedagógico como partes fundamentais de um projeto social para humanizar a

própria vida, onde todos sejam incluídos” (STRECK, et al., 1999, p. 13, itálico nosso). Percebe-

se que a preocupação, segundo os autores, não está em tornar o pedagógico mais político, mas

o contrário. Se assim não fosse, isto é, se a preocupação fosse politizar a pedagogia, a prática

política ficaria restrita aos ambientes formais de educação; no entanto, como a preocupação é a

de “pedagogicizar” a política, como diz Streck, a prática educativa com estes fins políticos bem

demarcados está livre para se estabelecer em qualquer ambiente, adquirindo a significação mais

ampla de “formação”, no sentido de paideia. Ainda sobre essa questão, salientamos o dito por

Afonso Scocuglia no texto A construção da história das ideias de Paulo Freire, no qual defende

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– como também nós indicamos acima - que essa mudança começa a ocorrer a partir do último

capítulo de Pedagogia do oprimido. Diz ele: “nesse sentido, com a política sendo ‘substantiva’

e a pedagogia ‘adjetiva’, a concepção inicial de uma educação para a mudança ‘interna’ do ser

humano, via conscientização de âmbito psicopedagógico e que implicaria a transformação de

toda a sociedade, é virada de ponta cabeça [...] (SCOCUGLIA, 1999, p. 45, aspas no original).

Com o comentário destes estudiosos reconhecidos de Freire, nos quais nos baseamos,

nota-se que Paulo Freire é alguém preocupado com a educação e com a política e que com isso

não queremos dizer que são coisas isoladas, mas apenas que são coisas distintas e que existem

modos diferentes de agir. Se assim não fosse, não faria sentido dedicar uma vida a combater o

bancarismo, que é o mau uso feito da educação. Ao interpretar assim suas ideias, invertendo a

nomenclatura como propuseram os estudiosos que apresentamos acima, queremos dizer

simplesmente que a preocupação de Freire é política e que a sua pedagogia (do oprimido) se

configura como o modus operandi estritamente necessário à realização deste objetivo. De modo

que é possível reconhecer que existe uma separação apenas didática e explicativa, pois o próprio

Freire reconhece do alto de sua espantosa compreensão dos conceitos filosóficos “substância”

e “qualidade”, em citação que veremos adiante, que “a prática educativa é política em si

mesma”. É o que podemos perceber também no que diz o recifense em A importância do ato

de ler. Sabendo que ele trabalhava como acessor do governo de São Tomé e Príncipe, lemos

que “[...] o assessor (ou assessora) é um político e sua prática, não importa no campo em que

se dê, é política também” (FREIRE, 1989, p. 22). Por assim compreender sua atuação é que

fizemos a proposta de leitura de Pedagogia do oprimido em ordem invertida, de trás para

frente, ou seja, do quarto capítulo para o primeiro.

Voltando à questão das consciências, percebemos, então, que é necessária uma mudança

de linguagem (que se traduz como a preocupação de uma ação verdadeiramente educativa) para

que a passagem da consciência transitivamente ingênua para a crítica possa ocorrer. Algo que

podemos observar também em Extensão ou comunicação?, texto no qual lemos que

a substituição de procedimentos mágicos por técnicas “elaboradas”17 [característicos

da consciência ingênua], envolve o cultural, os níveis de percepção que se constituem

na estrutura social; envolve problemas de linguagem que não podem ser dissociados

do pensamento, como ambos, linguagem e pensamento, não podem sê-lo da estrutura”

(FREIRE, 1983, p. 20, aspas no original).

Entretanto, essa passagem da ingenuidade para a criticidade não significa que ela esteja

livre de todos os males. Poderíamos interpretar, erroneamente, a partir da definição que outrora

citamos, que a “assistencialização”, devido a seu caráter “quietista” – ou de manutenção do

17 Técnicas elaboradas são aquelas condicionadas histórico-socialmente (FREIRE, 1983, p. 21).

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“quietismo”, já que se opõe à “dialogação” – estaria presente somente nas consciências

intransitiva e transitivo-ingênua, mas que seria eliminada no trabalho educativo a ser realizado

na passagem para a criticidade. Entretanto, o autor nos diz que a assistencialização também está

presente na educação. Essa presença é a raiz da crítica que ele tece à escola no terceiro capítulo

de Educação e atualidade brasileira, presente também em Educação como prática da liberdade

e que permeia toda a argumentação da Pedagogia do oprimido, principalmente o segundo

capítulo.

Dessa maneira, Freire considera que mesmo populações cuja consciência esteja

enquadrada na “transitividade crítica” podem ser desvirtuadas se a assistencialização continuar

a incidir sobre elas, intensificando a massificação (FREIRE, 2003, p. 51). Portanto, podemos

inferir disso que Paulo Freire não considera que ao atingir um grau de transitividade crítica da

consciência o problema esteja resolvido de uma vez por todas. Se a incidência da

assistencialização sobre essas populações de consciência crítica pode conduzi-las à

massificação, percebemos então que a solução não está propriamente na criticidade dessa

consciência, mas no trabalho educativo constante, na luta incessante contra a assistencialização

que é uma espécie de autoritarismo velado. Mesmo após uma suposta instauração de uma

“realidade revolucionária”, diz Freire em La naturaleza política de la educación, “a

conscientização continua sendo indispensável” (FREIRE, 1990, p. 105).

Ainda uma palavra sobre a transitividade da consciência: segundo Rosa María Torres

no livro Educación popular: un encuentro con Paulo Freire, o brasileiro reconhece que nesse

momento em que refletia sobre a transitividade das consciências, ele cometeu um erro

fundamental, que foi o de acreditar que somente ao atingir a consciência transitivo-crítica, o

homem já se sentiria impelido a transformar sua realidade (TORRES, p. 1986, p. 37).

Entretanto, após o período de exílio e, principalmente, da redação de Pedagogia do oprimido,

Freire passa a perceber o problema como uma questão de engajamento na “luta pela libertação”.

Eis o comentário do próprio educador em entrevista que encontramos na segunda parte do livro

de Torres:

o Paulo Freire de ontem, um ontem que eu situaria entre os anos 50 e início dos 60,

não via com clareza algo que o Paulo Freire de hoje vê com muita clareza. E é o que

hoje denomino “politicidade da educação”. Isto é, a qualidade que tem a educação de

ser política. Porque a natureza da prática educativa é política em si mesma, e por isso

não é possível falar sequer de uma dimensão política da educação, pois toda ela é

política. Por isso mesmo o Paulo Freire de hoje – e situo este hoje desde fins dos anos

60 e início dos 70 – vê claramente a questão das classes sociais. Por isso é que, para

o Paulo Freire de hoje, a educação popular, qualquer que seja a sociedade em que se

dê, reflete os níveis da luta de classes dessa sociedade (Idem, p. 38, aspas no original).

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Acreditamos que o seguinte trecho de Extensão ou comunicação? é a mais clara

exemplificação de que Freire corrigiu o equívoco por ele mesmo mencionado: “[...] se bem que

todo desenvolvimento seja modernização, nem toda modernização é desenvolvimento”

(FREIRE, 1983, p. 38). Percebemos como o pensamento desenvolvido nessa frase é contrário

ao defendido em Educação e atualidade brasileira no que diz respeito à industrialização do

país que naquela época acontecia.

O quarto e último aspecto da inexperiência democrática que aparece como ramificação

dela é o que Freire chama de “centralismo asfixiante” (FREIRE, 2003, p. 52). Com esse termo,

ele se refere justamente a uma centralização da administração pública federal que ignora as

especificidades circunstanciais das regiões geridas. Problema identificado também por seus

mestres isebianos, como por exemplo, Anísio Teixeira em Educação não é privilégio (1957) e

Álvaro Vieira Pinto em Ideologia e desenvolvimento nacional (1956). Para Freire, existe um ar

de infalibilidade e messianismo (idem, p. 52) atrelado a essa ideia de centralização que contribui

para a manutenção e crescimento da assistencialização e, consequentemente, de todos os

problemas dela decorrentes. O centralismo, em seu modo de ver, por ignorar a

circunstancialidade, impõe “soluções” ignorantes dos problemas regionais e específicos.

Podemos identificar que Freire já começa a refletir nesse seu primeiro trabalho sobre a

importância do agir com e não de e sobre, que terá grande importância em seus escritos

ulteriores, como é o caso de Pedagogia do oprimido. Um exemplo da continuidade dessa

preocupação é o trecho que segue, retirado do quarto capítulo da obra mencionada, e que,

embora não se refira propriamente à expressão “centralismo asfixiante”, aborda exatamente este

assunto:

Não é possível o desenvolvimento de sociedades duais, reflexas, invadidas,

dependentes da sociedade metropolitana, pois que são sociedades alienadas, cujos

pontos de decisão política, econômica e cultural se encontra fora delas – na sociedade

metropolitana. Esta é que decide dos destinos, em última análise, daquelas, que apenas

se transformam (FREIRE, 2016, p. 248).

É justamente com a evolução da transitividade da consciência e de sua criticidade, que,

segundo o autor, o centralismo será superado, já que ele parte do pressuposto de que “é

precisamente a criticidade a nota fundamental da mentalidade democrática” (FREIRE, 2003, p.

88).

Freire observa ainda que o centralismo guarda dois pontos de contato com a

inexperiência democrática: a impermeabilidade, devido ao que comentamos acima, e o

“paternalismo burocrático”, termo que ele empresta de Aderbal Jurema e que significa

subordinar a periferia ao centro (idem, p. 54). Ambos são resquícios da formação colonial do

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país e da inautenticidade decorrente da alienação que nutria aquela formação. A superação do

centralismo, além de servir à democracia, permitiria, para Freire, o nacionalismo verdadeiro, “a

corporificação desta posição de autenticidade nacional, ou melhor, de procura desta

autenticidade” (idem, p. 55). Essa busca por autenticidade está intrinsecamente relacionada à

maturidade do cidadão que se opõe à inexperiência democrática. Aliás, Freire nos diz que essa

busca é justamente o que propicia “maior abertura de consciência a alguns dos importantes e

atuais problemas nacionais” (idem, p. 55, itálico no original).

Em resumo, apresentamos os quatro aspectos que inferimos como componentes do que

o autor denomina antinomia fundamental, isto é, a estranha relação existente entre inexperiência

democrática e a emersão do povo na vida pública nacional. Ao fazer isso, apontamos as

principais características do problema da autoridade, do centralismo asfixiante, da

transitividade/intransitividade da consciência e do perigoso fenômeno da assistencialização.

Enquanto isso, procuramos compreender que o problema que Freire percebe na sociedade de

sua época tomará um caráter mais amplo, sendo que a Pedagogia do oprimido vai além dos

limites nacionais, de modo que o proposto ali serve também ao Brasil mas não só a ele, sendo

aplicável a qualquer sociedade em que a relação opressor/oprimido se faça presente. Resta agora

procurarmos compreender o modo como Freire credita à educação o papel de meio

indispensável de combate a estes problemas sociais e políticos nascidos de uma situação de

opressão. Entretanto, como apontamos anteriormente, a educação se nos apresenta na redação

freiriana como método, ao mesmo tempo, de libertação e de opressão. Daí a importância de

uma teoria da ação dialógica, conforme ele nos apresenta na Pedagogia do oprimido, para que

a práxis, ao invés de oprimir, de tornar-se dysparaxia (má práxis), sirva à revolução, seja

euparaxia (boa práxis).

3.2 A essência da revolução: uma pedagogia para o oprimido

Ao reconhecer a importância da industrialização que o Brasil vive naquele momento, o

educador identifica nesse acontecimento, ao mesmo tempo, uma situação favorável de transição

da consciência, conforme indicamos, que fez com que o homem fosse lançado à vida pública,

mas também reconhece ele uma questão problemática, pois com a industrialização, segundo o

autor, a assistencialização ganha impulso. Dessa maneira, o clima cultural de industrialização

emergente no Brasil daquele momento, deve ser, para Freire, aproveitado no que tem de melhor,

ao mesmo tempo em que são atacados todos os seus problemas, a fim de atingir um

desenvolvimento social saudável no qual os indivíduos possam inserir-se. Sendo assim, o que

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pretende ele fazer é “aproveitar as forças positivas da industrialização – aquelas que

impulsionam o homem às posições participantes – e atacar todas as outras, de que decorra ou

possa decorrer a passividade ou passionalidade no comportamento do nosso homem” (FREIRE,

2003, p. 82).

Dito isto, encontramos a proposta que visa combater os problemas nacionais que Freire

identifica em sua época no terceiro capítulo de Educação e atualidade brasileira, também no

terceiro capítulo de Educação como prática da liberdade e em todos os capítulos de Pedagogia

do oprimido. Essa proposta tem como ponto de partida fazer uma “revisão de nosso processo

educativo de que surja o seu enraizamento na realidade local, ampliando-se aos planos regional

e nacional” (idem, p. 81). Assim, a primeira crítica que o autor vai tecer diz respeito exatamente

ao centralismo asfixiante do qual já comentamos. “É a ele que se deve, em grande parte, a

inorganicidade de nossa educação” (idem, p. 84), diz Freire, parafraseando Anísio Teixeira. Seu

entendimento é que essa maneira de organizar a educação está de acordo com a política colonial

paternalista, autoritária e vertical que geriu o Brasil ao longo de sua história e que só tem feito

com que a escola seja “inorgânica” por desconsiderar a realidade local ou regional em que a

instituição de ensino se encontra.

Ao tratar da escola inserida em um contexto, o autor acredita que o educando se

identificará com o tempo e o espaço específicos em que vive de maneira intersubjetiva, ou seja,

com outros viventes. Dessa maneira, a escola serviria como preparação para “a solidariedade

social e política” (idem, p. 84), já que, “culturalmente” no Brasil, para ele, a educação tem se

focado inteiramente no indivíduo, esquecendo-se da importante dimensão coletiva e grupal. Em

resumo, nos diz ele que, contrariamente ao centralismo asfixiante que identifica, “somente uma

escola centrada democraticamente no seu educando e na sua comunidade local, vivendo as suas

circunstâncias, integrada com seus problemas, levará os seus estudantes a uma nova postura

diante dos problemas de contexto” (idem, p. 85). Perceba, já o leitor, o quanto essa proposta

parece se assemelhar àquela que estudamos no capítulo anterior: a escola/universidade

(educação) centrada no aluno, sem desconsiderar seu entorno (circunstância), integrada com

seus problemas (desafios do tempo) para levar a uma nova postura (combater o homem-massa

através da cultura).

Dessa forma, faz-se necessário notar que, justamente por ser, para Freire, a educação

dialógica o meio para atingir a consciência crítica (Educação e atualidade brasileira e

Educação como prática da liberdade) e, depois, a libertação social (Pedagogia do oprimido e

outros), é que ela pode ser utilizada tanto para a libertação como para a opressão. Na verdade,

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o primeiro aponta para o segundo, que é o ponto culminante da defesa política de Freire. Quando

o “opressor”, no entender do autor, se vale desse meio, a educação se torna “bancarismo” e

serve à assistencialização e tornar-se desvirtuada, deturpada, assim como uma tesoura pode

cortar um caule e uma jugular. Por isso ele reconhece em Educação e atualidade brasileira:

seu trabalho educativo é nada mais que “política de planificação democrática” (idem, p. 83). É

o que se pode observar com clareza também nos trabalhos que relatam a convivência que Paulo

Freire tinha e as ações que destinava aos países africanos como Guiné-Bissau e São Tomé e

Príncipe. Neste último, observamos claramente em A importância do ato de ler, que na redação

dos Cadernos de Cultura Popular o que importava como objetivo central era fazer com que os

analfabetos compreendessem a “exploração” colonialista de Portugal, o que significava “unir-

se para libertar-se”, como se dava o pensar “certo” e como deveria ser o “homem novo e a

mulher nova” (FREIRE, 1989, p. 48) surgida da prática revolucionária na “sociedade nova”

(Idem, p. 38). Em outras palavras, é a significação de seu jargão conhecidíssimo: a leitura do

mundo precede a leitura da palavra. E, como implicação desse pensamento observado no texto

mencionado, nesse caminho político ir aprendendo a ler e escrever. Sendo assim, é possível

perceber que no pensamento freiriano, a Política, a verdadeira Política, é a motivação, causa e

consequência, de todo o processo educativo. Este, certamente, é um dos pontos de grande

divergência entre os autores que dão aporte a este trabalho, pois, como já dissemos, para Ortega

a política é apenas um dos muitos campos sociais e não pode ser interpretado como o único.

Desse modo, para Freire, “a consciência transitivo-crítica há de resultar de trabalho

formador, apoiado em condições históricas propícias” (FREIRE, 2003, p. 33). Esse “trabalho

formador”, a nosso ver, é o que Freire denominaria mais tarde “conscientização”.

Argumentaremos a este respeito no item 4.3 do quarto capítulo. Agora, contudo, é preciso dizer

que este trabalho formador, como trabalho educativo, tem de esforçar-se para permitir ao

homem ser capaz de se integrar em sua circunstância, percebendo-se ator dela, construtor de

cultura e preparado para enfrentar os desafios, o que só será possível se a atuação da “liderança

revolucionária”, única realmente responsável pela educação verdadeira (já apresentamos a

visão pessimista que Freire guarda das instituições de educação formal – embora a experiência

de Angicos que lhe dera notoriedade tenha sido liderada por um grupo de universitários) agir

baseado em uma teoria da ação dialógica, que é libertadora, contra uma teoria da ação

antidialógica, bancária e opressora, conforme lemos em Pedagogia do oprimido. Além disso,

as características inerentes da consciência transitivamente crítica que listamos acima em

citação, são também inerentes à democracia, de modo que o trabalho formador, ou educativo,

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tem de ser democrático, dialógico, pois os regimes democráticos “são flexíveis, inquietos,

devido a isso mesmo deve corresponder ao homem desses regimes maior flexibilidade

psicológica e mental [...]” (idem, p. 38). Democracia, mudança, flexibilidade, diálogo,

conscientização e libertação são características que percebemos como essenciais nas obras de

Paulo Freire. Portanto, podemos já perceber em suas obras iniciais, Educação e atualidade

brasileira e Educação como prática da liberdade, que para a alteração dessa condição, a saber,

a antinomia fundamental que reconhece naquele momento, é necessário uma prática educativa,

um novo tipo de pedagogia que, a nosso ver, virá sistematizada somente anos mais tarde, em

1968, com a publicação da Pedagogia do oprimido, portanto, quando para ele se esclarece,

como vimos em citação anterior, que a educação serve somente enquanto instrumento de

libertação e que, do contrário, é mais uma forma de dominação e opressão.

Assim, tendo sempre em vista o problema que Paulo Freire identifica em sua época, a

questão da transitividade da consciência se torna agravante da antinomia fundamental composta

pela inexperiência democrática/emersão do povo na vida pública. Segundo o autor, esse quadro

impede que o homem perceba-se capaz e responsável pelas mudanças na sociedade, condição

para o desenvolvimento da democracia. Então, Freire chama atenção para a dupla obrigação de

reformular a ação educativa necessária a esse desenvolvimento: cuidar da passagem saudável

da consciência transitivo-ingênua para a transitivo-crítica e, com isso, tratar da marcante

inexperiência democrática do Brasil daquele momento. O adjetivo “saudável” é utilizado aqui,

pois, para Paulo Freire, sem o equilíbrio necessário, a transitividade crítica pode assumir papel

contrário ao que dela se espera. Sobre isso, o autor nos diz que “o maior teor de razão contido

na consciência transitivo-crítica pode, se estimulado exageradamente, levar o homem a

posições super-racionais, que se identificam [...] com posturas míticas” (idem, p. 43) e mais

adiante que “a formação altamente especializada do homem que, enfatizando o

desenvolvimento de sua razão, pode torná-lo ‘super-racional’ e levá-lo a assumir posições

míticas. Paradoxalmente, esta postura estreitará seus horizontes, situando-o em uma quase

‘ingenuidade’ ou uma ‘ingenuidade’ às avessas” (Ibidem, aspas no original).

Poderíamos também dizer que é somente através da crítica e da ação dialógica por parte

da liderança revolucionária, como nos é apresentado em Pedagogia do oprimido, que se vale

de métodos críticos de alfabetização (o que significa uma alfabetização política), é que a classe

oprimida será capaz de engajar-se na luta pela libertação, de encontrar seu lugar e organizar-se

para a revolução.

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A reflexão sobre a autoridade interna e externa comentadas no item anterior leva Freire

a dizer que a antinomia fundamental atinge também as famílias, a escola primária, a escola

média e a própria universidade. Nas famílias, o que se observa, diz ele, é a predominância do

patriarcalismo, ou seja, da exacerbação ou da prática autoritária da autoridade externa. Nas

instituições de ensino mencionadas, a antinomia se expressa através de “um agir educativo

quase inteiramente ‘florido’ e sem consonância com a realidade” (FREIRE, 2003, p. 46, aspas

no original), que ele considera “academicamente oca, isto sim. Verbalista, ‘palavrosa’,

autoritariamente indiferente ao que nos cerca [...]” (idem, p. 47, aspas no original). Esse tipo de

educação, para ele, não poderá servir para suprir a necessidade social de técnicos e cientistas,

pois ele identificava em sua época, como um agravante da antinomia fundamental,

“preconceitos contra o trabalho técnico” (ibidem, itálico no original) que deitavam raízes no

desenvolvimento histórico do país. Segundo ele, o trabalho técnico e a industrialização

recordavam para os homens de seu tempo “a mancha desumanizante do trabalho escravo”

(idem, p. 48).

Em Pedagogia do oprimido, este tipo de educação será sistematizado sobre o conceito

de “bancarismo” e sofrerá uma crítica mais forte e mais concreta, já que, o destacamos

anteriormente, segundo o autor, a educação reflete a estrutura do poder. Para ele, é preciso

repensar o trabalho educativo para que ele se preocupe também com preparar o homem técnica

e cientificamente, pois é exatamente disso que a sociedade brasileira, naquele momento,

necessitava. Sendo assim, uma educação humanista, segundo Freire, não pode deixar de lado

estas duas preocupações, desde que aliadas àquela proposta de transitividade crítica da

consciência (idem, p. 50). É o que observamos na seguinte citação:

A superação desta antinomia fundamental, asfixiante da nossa marcha democrática,

não poderá ser feita se continuarmos a alimentar o seu primeiro termo – a

“inexperiência democrática” – através de procedimentos – inclusive em parte –

enraizados nele mesmo. Neste sentido é que uma educação para o desenvolvimento e

para a democracia, entre nós, tem que ser uma educação para o diálogo. Uma educação

pela participação, que desenvolva no homem brasileiro a sua criticidade (idem, p. 51,

aspas no original).

A ideia da educação para o diálogo estará presente de maneira extremamente marcante

na Pedagogia do oprimido, na qual Freire contrapõe a teoria da ação dialógica, própria da ação

pedagógica libertadora, à teoria da ação antidialógica, que serve ao “opressor” e é, portanto,

autoritária. Percebemos, então, que a educação pode servir ao mesmo tempo a quem liberta e a

quem “oprime”. Não é por acaso que nas duas vezes em que Freire aponta com clareza quem é

o opressor, em detrimento de todas as outras vezes em que não identifica claramente a quem se

refere, a primeira delas ele define como sendo o professor que pratica uma educação “bancária”.

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Diz ele: “o educador se põe frente aos educandos como sua antinomia necessária. Reconhece

na absolutização da ignorância daqueles a razão de sua existência” (FREIRE, 2016, p. 105).

Basta ter o mínimo de conhecimento da obra de Freire para perceber que, nesse caso específico,

“educador” e “educandos” estão substituindo “opressor” e “oprimidos”. Algo parecido também

encontramos em Extensão e comunicação, quando o recifense diz que “a expressão ‘extensão

educativa’ só tem sentido se se toma a educação como prática de ‘domesticação’. Educar e

educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a ‘sede do saber’, até a ‘sede da

ignorância’ para ‘salvar’, com este saber, os que habitam nesta” (FREIRE, 1983, p. 15, aspas

no original). Também neste trecho podemos identificar uma clara substituição semântica entre

“sede do saber” (opressor) e “sede da ignorância” (oprimido), termos que se referem

principalmente à atuação do professor, ou melhor, a um tipo de educação que Freire considera

“bancária”.

Na Pedagogia do oprimido vemos, em uma espécie de continuação da análise semântica

que Freire realizara em Extensão ou comunicação?, a oposição que o autor faz de “conquista”

à “co-laboração”, “divisão” à “união”, “manipulação” à “organização” e “invasão cultural” –

que é um dos “termos associativos” de “extensão” que, por sua vez, é oposto à “comunicação”

- à “síntese cultural”. Estes são conceitos constituintes principalmente do quarto capítulo da

Pedagogia do oprimido e que, como já dissemos antes, nos parece o capítulo central de toda

argumentação presente no livro. Por isso, acreditamos também que, com exceção da primeira

leitura, essa obra pode ser melhor compreendida se lida de trás para frente, isto é, do quarto

capítulo para o primeiro, já que é neste último que o autor esclarece conceitos fundamentais à

compreensão da obra.

Para Freire, naquele momento – e, nos parece, ainda hoje – o problema da educação

estava em “vir enfatizando cada vez mais em nós posições ingênuas, que nos deixam sempre

na periferia de tudo o que tratamos. Pouco, ou quase nada, o nosso processo educativo, que nos

leve a posições mais indagadoras, mais inquietas, mais criadoras” (FREIRE, 2003, p. 89). Isso

garante a posição da escola “em relação de antinomia com a emersão do povo na vida pública

brasileira. E, por isso mesmo, comprometedora de nossa democratização” (idem, p. 90). Além

de manter a “opressão” através da manutenção de uma postura antidialógica e “bancária”, ou

ainda, “extensionista” (FREIRE, 1983, p. 13). Mas o que ocorre na prática, a nosso ver, muito

distinta da bela teorização de conceitos, é que muitos professores que assumem estas ideias,

fazem isso com a condição de que o estudante não se valha delas para com eles, isto é, desde

que o aluno seja indagador, inquieto e criador na aula de outros professores ou, pelo menos,

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que “indague”, “questione” e “crie” de acordo com o que estes professores predeterminam ou

simplesmente aceitam. Em outras palavras, este tipo de professores parece aceitar que Paulo

Freire esteja certo em relação à sua própria atitude e dos estudantes, desde que isso não

“atrapalhe” a convivência, desde que o diálogo seja apenas concordante.

A escola que Freire propõe, ao contrário, deve permitir “oportunidades de participação

no próprio comando da escola, através de sugestões [...]” (FREIRE, 2003, p. 91). Deve ser

aberta, dinâmica, flexível e plástica e, por isso mesmo, democrática (idem, p. 92). Deve unir,

organizar e colaborar ao invés de dividir, manipular e dominar. Com estas características, frente

aos alunos, aos professores, a outras instituições (como a família), Paulo Freire acredita que a

escola será capaz de criar um clima propício de democracia que se refletirá na sociedade: “clima

eminentemente democrático, com que a escola, integrada com a nossa problemática e em

fidelidade às suas mais enfáticas notas, ajudará a diminuir o descompasso entre a dimensão

externa e a interna de nossa democracia” (idem, p. 93). Para o autor, ela “deve ser: ‘presença’

atuante. ‘Presença’ interferente no seu contexto. Algo vivo e organicamente integrado no seu

contexto” (idem, p. 96, aspas no original). Em outras palavras, a escola deve se fazer “centro

comunitário” (ibidem).

Sobre o ensino médio, antigo “secundário”, diz ele antevendo nossa atualidade: “seria

apenas um ‘corredor’, que levaria privilegiados às escolas superiores [...]” (idem, p. 104). Claro

está que isso ocorre, para ele, na perspectiva antidemocrática do ensino. Por causa disso, por

causa desse ensino que ele reconhece nada ter a ver com a realidade do estudante, o índice de

evasão do “ginásio” daquela época – seis em cada sete – é, para ele, resquício desse ensino

bacharelesco e vazio. Seu currículo, entende Freire, está, como está toda a educação, em

contradição com o clima cultural que ele identifica naquele momento. É preciso, percebemos,

o que ele já vem insistindo de longa data: “Que se faça vivo. Que se democratize. Que se faça

plástico em seu currículo. Que deixe de ser exclusivamente o ‘corredor’ para a universidade e

seja também, e sobretudo, a agência de educação de nossa juventude. De sua integração a seu

tempo e a seu espaço” (idem, p. 106, aspas no original).

Por fim, podemos perceber que existe coerência no modo em que Paulo Freire trata da

educação como meio de revolução, de libertação, tanto em Educação e atualidade brasileira,

como em Educação como prática da liberdade e Pedagogia do oprimido. Essa coerência nos

permite observar naqueles dois primeiros o que nos parece ser a “gestação” deste último, ideia

que justifica a escolha por apresentar as ideias de Freire, como o fizemos neste capítulo,

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partindo daquela primeira “obra”. Os trechos seguintes, retirados da obra de 1959 são

exemplificadores desta ideia:

Não há como concebermos uma educação, em uma sociedade democratizando-se, que

leve o homem a posições quietistas. Que não faça dele um ser cada vez mais

consciente de sua transitividade, que deve ser usada tanto quanto possível criticamente

ou com acento cada vez maior de racionalidade (FREIRE, 2003, p. 38).

O perigo está em que, em nome do império da autoridade interna ou da criticidade,

indispensável à democracia, se chegue à diluição da autoridade externa, sem que se

tenha operado no homem brasileiro, a sua “introjeção”, que lhe daria a criticidade ou

a autoridade interna. E se chegue assim, como se está chegando, a formas de

disciplinas não propriamente democráticas, mas de um novo e perigoso laissez-faire

(idem, p. 45, aspas e itálico no original).

Assim, julgamos ter indicado as razões que nos levam a crer que a finalidade da

educação, para Paulo Freire, é libertar o homem a partir de seu engajamento na luta de classes,

na luta contra a opressão e na superação da antinomia que tem duas faces: a que ele apresenta

em Educação e atualidade brasileira e a que inferimos em Pedagogia do oprimido, que embora

não se configure somente como emersão do povo na vida pública e inexperiência democrática,

se apresenta como a libertação do que há de opressor no oprimido. Sem a superação dessa

antinomia a revolução jamais será possível. Temos, então, nesta obra, uma preocupação política

acentuadíssima, cujo quarto capítulo é exemplo transparente. Assim, a educação se faz

libertação através do engajamento político com vistas à revolução, à prática dialógica que é a

revolucionária.

Terminamos este capítulo com a seguinte citação retirada de Educação e atualidade

brasileira e que parece ser aplicável tanto hoje quanto se aplicava outrora:

A grande tarefa de nosso agir educativo [...], para concluir, está centralmente aí – em

ajudar a nação brasileira a crescer nessa elaboração [da consciência]. Daí não ser

possível uma revisão fragmentária desse agir, mas total, em relação de organicidade

com as nossas atuais condições de vida (idem, p. 111).

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CAPÍTULO 4 - CONSCIENTIZAÇÃO: METODOLOGIA DE AÇÃO POLÍTICA

JUNTO ÀS MASSAS

Quando nos voltamos para o interesse público uma questão da maior

importância é entender o hiato que existe entre os interesses gerais e os

particulares. Não há simetria entre eles, a soma dos singulares interesses

dos grupos não resulta no interesse público. Esse último é muito mais

importante que o primeiro. Para o interesse público muito contribui a

opinião pública e a liberdade dos indivíduos. A opinião pública é o lugar

da disputa de opiniões, não da imposição de uma versão hegemônica.

Portanto, o desejável é que as diversas opiniões sejam examinadas à

exaustão, ninguém deve abandonar a sua visão do problema antes de

estar plenamente convencido de que a outra opinião é melhor e não há

um tempo previamente estabelecido para que este convencimento se

estabeleça (CARVALHO, 2007, p. 178).

Nos dois últimos capítulos, apresentamos a forma de refletir os problemas da sociedade

de seu tempo nos pensamentos de José Ortega y Gasset e Paulo Freire. É perceptível o fato de

que ambos dedicam à educação uma tarefa de extrema importância, ainda que façam de modo

diverso e desde que compreendamos que nenhum deles se refere à educação escolar, formal,

mas a este vocábulo, “educação”, significando o antiquíssimo “paideia”. Ela pode contribuir

para um ambiente coletivo mais culto, como disse o primeiro, ou para uma sociedade sem

opressão, como disse o segundo. Ainda que tenhamos já demarcado algumas diferenças (Ortega

y Gasset, um reformista, e Paulo Freire um revolucionário; o espanhol vê na universidade um

papel de destaque no processo e o brasileiro acredite que a verdadeira educação só pode vir da

liderança revolucionária) acreditamos ser possível traçar algumas aproximações entre as formas

de pensar de ambos os autores. A principal delas é o que chamamos de “metodologia de ação

política junto às massas” e que pode ser compreendida no conceito “conscientização”. Essa

ação junto às massas visa permitir ao povo, àqueles não estritamente envolvidos com os

problemas da nação, a possibilidade e as condições necessárias para o debate e para a crítica,

por meio de uma aliança entre educação e política.

Antes de iniciarmos, contudo, essa empreitada difícil que se avizinha, pedimos ao leitor

que entenda que apesar das infinitas diferenças que possam existir entre estes dois pensadores,

apesar de tudo aquilo que possa se interpor ao diálogo, para além de nossa questão inicial, nosso

objetivo é também apresentar em que medida esse diálogo pode ser pacífico e concordante. Este

é o desafio, esta é a natureza da pesquisa. Já apresentamos de modo sucinto no que consistem

as discordâncias mais gritantes entre eles. Agora, é necessário paciência para realizar com o

texto este diálogo e para compreender que sem assumir o nosso pressuposto, a saber, de que

uma concordância pode ser possível, a leitura se faz infrutífera, desgastante e problemática, e

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inteligência, pois o mais óbvio e superficial é a percepção e alarde da distinção entre cores, mas

somente o olhar atento pode enxergar em que ponto os matizes se misturam. A areia da praia

nunca está totalmente seca, nem totalmente molhada pelo mar.

4.1 Liderança social

Tendo, Ortega y Gasset, encontrado Rubín de Cendoya (personagem que o autor cria

para com ele dialogar e que lhe dedica sempre o título de “místico espanhol”), no salão de

conferências do Parlamento e se surpreendido com o fato, recebe, em resposta à sua expressão

de espavento, um comentário que, imagino eu, Cendoya fazia sem olhar para Ortega, como

quem, esquizofrenicamente, fala mais para si do que para outrem:

não há outro remédio [...] que nos dedicarmos todos à política; em outros países pode

o homem sem ambições de domínio desentender-se dos negócios públicos. Tais

sociedades se encontram em um estado mais avançado de diferenciação funcional. Na

Espanha, pelo contrário, tem que fazer cada um todos os misteres como no clã

primitivo. O indivíduo humano não é o indivíduo físico, senão o indivíduo da

sociedade; daí que quando a sociedade não está feita, o afã primordial de cada

aspirante a homem seja fazê-la. Assim acontece entre nós (ORTEGA Y GASSET,

1993a, p. 147).

Essa mesma ideia aparecerá também em outro texto deste mesmo ano, 1910, o já

mencionado La pedagogía social como programa político e, ainda antes, podemos ler algo

parecido em uma das cartas endereçadas a seu pai em dezembro de 1906, durante sua primeira

viagem à Alemanha. Ali ele diz que “hoje na Espanha não se tem direito de ser só periodista ou

só filósofo [referindo-se à posição destacada que seu pai ocupava na sociedade espanhola da

época]. Não vejo como se pode viver cada um metido em seu ofício e deixando o tempo passar,

quando se escutam cair sobre si as maldições de nossos netos, como nós maldizemos

justissimamente a nossos bisavôs” (ORTEGA Y GASSET, 1991, p. 269, Carta 87).

O “místico espanhol” poderia, a nosso ver, estar se referindo sem problemas à situação

política do Brasil atual: nossa nação não pode se eximir de fazer política (eis, portanto, a

motivação inicial e justificada desta dissertação). Por isso, acreditamos também que é preciso

atuar politicamente para transformar nossa realidade hodierna. Nosso modo de o fazer será a

partir da apresentação de alguns aspectos bem definidos que podem manter certa concordância

entre as ideias dos dois importantes pensadores que analisamos nos capítulos anteriores, já

longamente apresentados, e de como esse diálogo pode servir a este desígnio.

Isso não significa, necessariamente, como se poderia argumentar dado o inflamado

cenário político em que escrevemos, que seja necessário criar um estandarte com os nomes de

Ortega e Freire para seguir uma multidão enraivecida, seja de que lado ela esteja. O intelectual

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tem modos de agir diferentes da ação política para intervir na sociedade. Seguimos assim o

conselho de Ortega: “(...) cada indivíduo, cada geração, se quer ser útil à humanidade, tem de

começar a ser fiel a si mesma” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 270). Na defesa de nossa

opção de “militância intelectual”, citamos Freire e isto parece bastar:

é possível que algumas destas críticas se façam pretendendo retirar de nós o direito de

falar sobre a matéria (...) em torno de que nos falta uma experiência participante.

Parece-nos, contudo, que o fato de não termos tido uma experiência no campo

revolucionário não nos retira a possibilidade de uma reflexão sobre o tema (FREIRE,

2008, p. 213).

Para iniciar uma aproximação de determinados e bem definidos aspectos das propostas

de atuação política que Ortega y Gasset e Paulo Freire preconizam, começaremos, por dizer que

o filósofo espanhol – que influencia os integrantes do já mencionado grupo conhecido como

“geração de 1914” — reconhece no seu tempo que não só a Espanha, mas a própria Europa

padecia de uma crise de ideologia política. Essa crise se refere ao fato de que o governo daqueles

dias era considerado por alguns intelectuais incapaz de sustentar a si mesmo. Juan Samper, em

seu artigo La generación política de 1914, lembra o discurso de Manuel Azaña aos quatro de

fevereiro de 1911 intitulado El problema español, no qual o orador exorta a geração nascente a

“correr em missão à terra espanhola querendo persuadir a nossos concidadãos que há uma pátria

que redimir e refazer pela cultura, pela justiça e pela liberdade” (SAMPER, 2001, p. 180). Tal

exortação se justifica também pelo que reconhece Ortega em Meditaciones del Quijote três anos

mais tarde, quando diz: “eu suspeito que, a mercê de causas desconhecidas, a morada íntima

dos espanhóis foi tomada há tempos pelo ódio, que permanece ali artilhado, movendo guerra

contra o mundo” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 312).

Era, portanto, um governo que ruía e prejudicava a nação, conforme se lê: “o partido

que agora governa patrocina a incompetência, fabrica inércias e discute chefaturas. Como

espanhóis, só podemos lhe desejar uma morte feliz” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 306).

Diante disso, alguns intelectuais se reuniram na criação de um movimento liberal que tinha

simpatia pela esquerda espanhola, embora se considerasse de cariz socialista não dogmático (o

que, para Ortega, significava “não marxista”), em outras palavras, seu fundamento e atuação

visava um liberalismo renovado. Esse movimento foi intitulado de Liga de Educación Política

Española, e tinha dois objetivos fundamentais: a democracia e a nacionalização da Espanha.

Diga-se de passagem, os mesmos objetivos que Ortega defendera em Meditaciones del Quijote,

España invertebrada e La rebelión de las masas.

Segundo Samper, a fundação da Liga data exatamente do dia 23 de março de 1914, que

é a data da conferência pronunciada por Ortega y Gasset intitulada Vieja y nueva política e que

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nos parece ser o texto central para as discussões que aqui pretendemos fazer. Sobre isso,

comenta Ortega: “É preciso [...] fazer uma chamada enérgica a nossa geração, e se não a chama

quem tenha positivos títulos para chamá-la, é forçoso que a chame qualquer um, por exemplo,

eu” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 270). Segundo Taltavull no artigo La liga de educación

política española como instrumento de nación: desde la autonomía hasta la reconversión y el

fracasso (1913 – 1916), “as Ligas foram instituições comuns na Europa dos começos do século

XX” (TALTAVULL, 2015, p. 145). Maurice Duverger, no clássico Os partidos políticos, as

classifica como associações que se constituem tendo por objetivo determinadas finalidades

políticas, mas que operam de modo distinto dos partidos: “os partidos agem sempre no terreno

eleitoral e parlamentar, se não exclusivamente, pelo menos muito amplamente; ao contrário, as

ligas não apresentam candidatos às eleições e não procuram agrupar deputados: são unicamente

máquinas de propaganda e agitação” (DUVERGER, 1987, p. 29). De modo que, devido à

aproximação a determinados partidos políticos por parte da Liga de Educação Política

Espanhola, podemos perceber que ela se organizava de modo diferente das ligas francesas, por

exemplo, cuja distância do “terreno eleitoral e parlamentar” era uma característica definidora.

Contudo, Duverger chama atenção para um fato importante: “a evolução natural das ligas é [...]

a de se transformarem em partidos extremistas: de fato, alguns destes tiveram um caráter de

liga antes de se tornarem verdadeiros partidos políticos, notadamente o Partido Fascista

italiano” (ibidem). Sobre o partidarismo ou apartidarismo desse movimento na Espanha,

consideramos os seguintes comentários: Samper reconhece que essa nova formação política, de

certa forma, “estava vinculada ao Partido Reformista” (SAMPER, 2001, p. 181). Aliás, o

próprio Ortega, algumas semanas depois da fundação do movimento, se filiará a Junta Nacional

del Partido Reformista. Para Taltavull, “os sucessos de 1913 mudaram sua percepção, e em

abril de 1914 se uniu ao Partido, vendo-o como instrumento de nação complementar à Liga”

(TALTAVULL, 2015, p. 151). Ao contrário, Margarida Amoedo reforça o não envolvimento

partidário da Liga ao dizer que “declarando-se liberais, os membros da Liga demarcaram-se

tanto do internacionalismo do PSOE [...], como do restante dos partidos existentes em Espanha”

(AMOEDO, 2002, p. 71).

O caso é que, embora fosse formada por intelectuais, entendidos como o faz Cerezo em

Experimentos de nueva España como o “profissional qualificado que tem a obrigação de

colaborar socialmente com sua preparação científico-técnica” (Cerezo, 1997, p. 114), a Liga

compreendia o termo “política” – e a prática ligada a esse conceito — não como algo que se

faça somente pelo intelecto ou pela ação individual, mas, pelo contrário, entendia, como

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podemos ler em Vieja y nueva política que “só há política onde intervém as grandes massas

sociais, que só para elas, com elas e por elas existe toda a política” (ORTEGA Y GASSET,

1993a, p. 268). Outro comentário que justifica a afirmação de que a Liga não era um movimento

apenas “teórico” é o que faz Margarida Amoedo na primeira parte de seu estudo Ortega y

Gasset: a aventura filosófica da educação. Para ela, não se pode compreender a atuação

orteguiana na sociedade através de uma separação do papel que ele ocupava como filósofo do

que ocupava como homem público, principalmente depois de assumir o cargo de professor de

metafísica na Universidad Central de Madri. Ela ressalta que “[...] não basta uma lógica

interpretativa vulgar, é necessário recorrer à racionalidade vital e histórica que a sua filosofia

configurou” (AMOEDO, 2002, p. 44, itálicos no original) para compreender suas “empresas

políticas” (Ibidem). E continua mais adiante, ao dizer que o pensamento orteguiano é “um

pensamento plurifacetado, o que [...] ilegitima que se tome uma das dimensões de Ortega,

esquecendo as restantes: não é correcto a seu respeito separar o publicista do político, o escritor

do pensador, o educador do filósofo” (Idem, p. 68). Esse comentário só faz sentido quando nos

lembramos de que, para Ortega, a política era apenas um dos modos de funcionamento da

sociedade: não o único, nem o fundamental. Além disso, é preciso lembrar que o grupo político

que ora analisamos tinha Ortega y Gasset como porta-voz e defendia, quase de modo idêntico,

as mesmas ideias políticas que, naquela época, estavam presentes na meditação orteguiana. Para

esclarecer qualquer dúvida a respeito da posição concreta de atuação da Liga, citamos o

seguinte comentário:

a organização nacional é um trabalho concretíssimo; não consiste em um problema

genérico, senão em cem questões de detalhe: nesta instituição e aquela comarca, este

povo e aquela pessoa, esta lei e aquele artigo. A organização nacional nos parece

justamente o contrário da retórica. Não pode fundar-se mais que na competência

(ORTEGA Y GASSET, 1993, p. 304).

Dessa maneira, percebemos que o objetivo inicial desse movimento socialista que tinha

Ortega y Gasset como porta-voz, como dissemos, e principal membro era fazer com que uma

minoria fosse responsável por educar politicamente a massa, desde que consideremos a

concepção orteguiana de “minorias” e “massas”, que julgamos ter sido devidamente explicada

anteriormente. Esse objetivo fica esclarecido inequivocamente na seguinte citação:

estas palavras de solicitação dirigimos hoje aos espanhóis que por dedicarem-se ao

trabalho científico e literário, à indústria, à técnica administrativa e comercial, estão

mais obrigados a ter uma ideia serena e grave dos problemas nacionais. Não querem

ser um manifesto destinado ao grande público e fogem de formular um programa

circunstanciado (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 307).

Margarida Amoedo reconhece ainda na redação deste texto a importância das ideias

desenvolvidas na meditação filosófica de Ortega y Gasset:

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no Prospecto de la Liga de Educación Política Española é fácil identificar que os

problemas nacionais aí mencionados como preocupações da Liga são os mesmos que

Ortega vinha diagnosticando, praticamente desde os seus primeiros artigos, apesar de

agora a procura de soluções para eles ser representada como um tarefa colectiva e

irrecusável (AMOEDO, 2002, p. 70).

Já neste momento acreditamos ser necessário apontar o que, à primeira vista, o leitor

poderia considerar outra diferença ou incompatibilidade de ideias nas formas de pensar de

Ortega e de Freire. Entretanto, a argumentação que faremos a seguir, visa apontar que, a nosso

ver, isso pode ser visto como uma aproximação, desde que admitamos a possibilidade deste

ponto de vista, isto é, desde que estejamos abertos a fazer este trabalho de aproximação.

Nossa argumentação se inicia da seguinte maneira: considerando a perspectiva

orteguiana de organização da sociedade, entre minorias e massas, sua proposta inicial se

concentra, e isso é, de fato, muito diferente da proposta freiriana, em “fomentar a organização

de uma minoria encarregada da educação política das massas” (ORTEGA Y GASSET, 1993a,

p. 302, itálico no original). Essa proposta nos é explicada em Vieja y nueva política, texto no

qual percebemos que o que os integrantes da Liga se propõem inicialmente a fazer é dirigir-se

“aos novos homens privilegiados da injusta sociedade – aos médicos e engenheiros, professores

e comerciantes, industriais e técnicos” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 286). Aqui podemos

perceber o caráter universitário dessa geração que integra a Liga, o que é também confirmado

na leitura do artigo La generación política de 1914 e o que explica também alguns aspectos

estruturais, além do caráter reformista do ensaio Misión de la Universidad (1930), como já

vimos anteriormente. Ora, dentre esses “homens privilegiados”, encontram-se alguns que, no

linguajar freiriano — não sem razão, já que a atuação do movimento ficou conhecida na

Espanha daquela época como “radicalismo democrático burguês” (SAMPER, 2001, p. 183),

além do caráter claramente elitista da universidade espanhola daquela época — poderíamos

classificar de “elite opressora” se seguirmos a lógica que Freire adota em sua reflexão, e que,

precisamos dizer, não é exatamente clara a respeito da identidade do “opressor” ou da existência

de um suposto, mas indefinido no texto, “inimigo comum” (FREIRE, p. 180, in TORRES,

2014). Portanto, eis aí a diferença que podemos encontrar em um primeiro momento.

Entretanto, acreditamos que o seguimento de nossa argumentação pode apresentar uma nova

perspectiva sobre esse ponto problemático.

Em oposição a isso - e este é o nosso esforço de aproximação - encontramos na

Pedagogia do oprimido momentos em que Paulo Freire nos diz que “[...] a formação técnico-

científica não é antagônica à formação humanista dos homens, desde que ciência e tecnologia,

na sociedade revolucionária, devem estar a serviço de sua libertação permanente, de sua

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humanização” (FREIRE, 2008, p. 181). Aliás, não podemos esquecer que a atuação do recifense

em Angicos se deu no âmago de um trabalho que poderíamos classificar hoje como “extensão

universitária”, ou seja, que partiu de um grupo ligado à Universidade de Pernambuco. O ponto

de vista que defendemos é que existe a possibilidade de considerar que a proposta de Freire não

se distancia tanto do modo propugnado pela Liga e que apresentamos no parágrafo anterior a

respeito do trabalho do que podemos chamar de “liderança social”. A proposta freiriana deve

ser aplicada à sociedade desde que não perca seu caráter libertário, no sentido de autonomia do

sujeito, nem de humanização, no sentido humanista. Ao fazer este exercício de pensamento,

podemos assemelhar essa perspectiva ao que defende Ortega y Gasset em Misión de la

Universidad. Na verdade, a proposta orteguiana que vinha se solidificando desde seu retorno

da primeira ida à Alemanha era a defesa da educação e da liberdade, algo muito semelhante ao

que visaria Freire em sua atuação política. Embora por meios e modos de atuação diferentes,

em nosso modo de ver, a finalidade parece ser a mesma em ambos. Eis como podemos justificar

esse argumento.

Em vários momentos da Pedagogia do oprimido podemos ler comentários sobre a

“liderança revolucionária” – e, em outros momentos, sobre uma “vanguarda revolucionária”

(FREIRE, p. 180, in TORRES, 2014) - e é justamente uma liderança social o que Ortega está

propondo como ponto central de reforma política. Talvez o que mais se assemelhe à ideia disto

que o espanhol chama de “minoria” seja o que faz Paulo Freire ao reconhecer que os verdadeiros

líderes “estão em correspondência com a forma de ser e de pensar a realidade de seus

companheiros, mesmo que revelando habilidades especiais que lhes dão o status de líderes”

(FREIRE, 2008, p. 162, itálico nosso). Portanto, a interpretação de um marxismo ortodoxo

presente na obra de Freire nos parece equivocada, pois o brasileiro, ao contrário de Marx, não

parece propor uma sociedade em que o “bom senso” por si só seja capaz de organizar o

funcionamento social. Pelo contrário, o que estamos tentando apontar ao leitor, é que Freire

reconhecia a necessidade e a importância da liderança. E esse reconhecimento o aproxima de

Ortega.

Acreditamos que os exemplos seguintes nos confirmam esta afirmação e podem nos

auxiliar na explicação desta nova perspectiva: na Pedagogia da esperança, Freire nos relata

que, durante uma visita a um assentamento da reforma agrária no Chile, ao conversar com

alguns dos integrantes do “círculo de cultura”, subitamente um silêncio se fez, ao que foi

precedido pelo comentário de um dos integrantes se desculpando por manter o diálogo, pois,

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disse ele, “o senhor é que podia falar porque o senhor é o que sabe. Nós não” (FREIRE, 2006,

p. 46). A que, como sábio chinês, respondeu Freire:

“Muito bem”, disse em resposta à intervenção do camponês. “Aceito que eu sei e

vocês não sabem. De qualquer forma, gostaria de lhes propor um jogo que, para

funcionar bem, exige de nós absoluta lealdade. Vou dividir o quadro-negro em dois

pedaços, em que irei registrando, do meu lado e do lado de vocês os gols que faremos

eu, em vocês; vocês, em mim. O jogo consiste em cada um perguntar algo ao outro.

Se o perguntado não sabe responder, é gol do perguntador (...)” (idem, p. 48).

Assim, o autor dirige dez perguntas aos camponeses (“o que é a maiêutica socrática?

Qual a importância de Hegel no pensamento de Marx?”) e recebe de volta dez questões dos

trabalhadores (“o que é curva de nível? Para que serve a calagem do solo?”). Ao final, o

resultado do jogo é assim apresentado pelo brasileiro: “Fizemos um jogo sobre saberes e

empatamos dez a dez. Eu sabia dez coisas que vocês não sabiam e vocês sabiam dez coisas que

eu não sabia” (idem, p. 9). O que o recifense pretendia com isso era mostrar que não

necessariamente significa que o educador, por ser educador, deixa de ser educando; nem que o

educando, por ser educando, não possa ser educador. Ideia que ele aprendeu na terceira tese

sobre Feuerbach (FREIRE, p. 178, in TORRES, 2014; FREIRE, 1981, p. 76). Em outras

palavras, que não há “absolutização” da ignorância, nem tampouco do saber, que ninguém sabe

tudo nem ignora tudo, que sempre há algo a que se aprender e ensinar, por fim, que o movimento

educativo é dialético e aberto. Poderíamos dizer ainda, aproveitando uma sugestão da banca de

qualificação, que o que existe aqui é “uma circularidade entre liderança e povo, o saber e a

ignorância estão dos dois lados ali”. Nesse caso, exatamente o mesmo que propõe Ortega ao

compreender a sociedade como uma organização de massa e minoria, pois em nenhum

momento se afirma nos escritos do espanhol – e também não o fizemos aqui – que a relação

existente entre estes dois modos de ser seja imutável. Pelo contrário, chamamos a atenção em

vários momentos para o fato de que a classificação de um sujeito como pertencente à massa ou

à minoria varia de assunto para assunto e que um mesmo sujeito que seja massa em determinado

assunto pode ser minoria em outro.

Continuando os exemplos a respeito da liderança social, no relato que tiramos de Cartas

à Guiné-Bissau, Freire nos diz que, ao chegar ao país e antes de começar sua atuação junto ao

povo, fez contato “inicialmente, com as diferentes equipes do Comissário de Educação”

(FREIRE, 1978, p. 15). Ora, se não há o privilégio de uma minoria, no sentido de uma liderança

que ocupa esse lugar por qualificar-se de algum modo especial, por que não dirigir-se

diretamente ao povo?

Outro exemplo que elencamos se encontra no livro A importância do ato de ler. Nesta

obra há um artigo anteriormente publicado na Harvard Educational Review em fevereiro de

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1981 intitulado O povo diz sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe18. No texto,

Freire apresenta a metodologia utilizada por ele como assessor do órgão governamental MLSTP

(Movimento pela libertação de São Tomé e Príncipe), bem como os Cadernos de Cultura que

serviam como instrumento de alfabetização e pós-alfabetização destinado à aprendizagem dos

nacionais. Em um destes materiais, sob o título “Ninguém ignora tudo, ninguém sabe tudo”, o

autor escreve o seguinte:

Ninguém ignora tudo. Ninguém sabe tudo. Todos nós sabemos alguma coisa. Todos

nós ignoramos alguma coisa. Pedro, por exemplo, sabe colher cacau muito bem.

Aprendeu, na prática, desde menino, como colher a cápsula do cacau sem estragar a

árvore. Basta olhar e Pedro já sabe se a cápsula está em tempo de ser colhida. Mas

Pedro não sabe imprimir jornal. Antônio aprendeu, na prática, desde muito cedo,

como se deve trabalhar para imprimir jornal. Antônio sabe imprimir jornal, mas não

sabe colher cacau. Colher cacau e imprimir jornal são práticas igualmente necessárias

à reconstrução nacional. Os conhecimentos que Pedro ganhou da prática de colher

cacau não bastam. Pedro precisa conhecer mais. Pedro tem o direito de conhecer mais.

Pedro pode conhecer mais. A mesma coisa podemos dizer de Antônio. Os

conhecimentos que Antônio ganhou da prática de imprimir jornal não bastam.

Antônio precisa conhecer mais. Antônio tem o direito de conhecer mais. Antônio pode

conhecer mais. Estudar para servir ao Povo não é só um direito mas também um dever

revolucionário. Vamos estudar! (FREIRE, 1989, 39).

É facilmente perceptível a relação que este pensamento guarda com o relato da

Pedagogia da esperança comentado acima. Além disso, podemos observar que é possível

utilizar desta mesma explicação e deste mesmo texto para explicar os conceitos de “massa” e

“minoria” presentes na filosofia orteguiana. Massa é Freire quando tem de falar sobre curva de

nível ou Pedro quando tem de opinar sobre a melhor forma de imprimir um jornal e os

camponeses quando tem de se pronunciar sobre a maiêutica socrática e Antônio sobre a melhor

hora para colher a cápsula do cacau; minoria são ambos quando tergiversam sobre o assunto

que dominam, massa são ambos quando agem do lado oposto. Nesse sentido, para que Pedro,

possa aprender mais, de acordo com o seu direito, ele precisa da docilidade e da humildade

necessárias para reconhecer que não sabe. Este é o significado de “massa dócil” na meditação

de Ortega. Se concordamos ou não com esta perspectiva, é outra história, e a argumentação da

defesa ou acusação deve ser feita de maneira sólida e fundamentada sem se ignorar não só os

escritos de Ortega como também a produção atual dos comentadores a respeito dela. Todavia,

o que nos importa aqui é reconhecer, a partir de nossa argumentação, que utilizando conceitos

diferentes, tanto Freire quanto Ortega estão dizendo a mesma coisa: se todos agirem como

detentores do saber, a sociedade é inviável; se todos acreditarem que são incapazes de aprender,

a sociedade é inviável. É preciso encontrar o equilíbrio do saber. Eu aprendo com você o que

não sei e também te ensino o que você diz não saber. Dessa maneira, é preciso que esteja claro

18 Eis o título da publicação original: Education as Transformation: Identity, Change and Development.

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que os dois autores parecem perceber que a sociedade é um constante encontro destes dois

aspectos.

Ora, ainda que possamos querer e trabalhar para uma sociedade melhor para nossos

netos, se ela for constituída por seres humanos parece impossível afirmar que haverá uma

universalização do saber ou da ignorância. O que significa que a sociedade continuará a se

organizar com sábios e ignorantes aqui que se tornam ignorantes e sábios ali, que ensinam cá,

que aprendem acolá. Se admitirmos a hipótese onírica de que poderá haver, no futuro, uma

sociedade em que todas as pessoas serão “sabedoras de tudo” ou, pelo menos, “não ignorantes

de nada”, teremos de a) assumir a existência de um senso moral inquestionável, pois a educação

não será mais necessária (é o que Kant procurou argumentar na Crítica da Razão Prática e o

que Marx sonhava para a sociedade sem classes no Manifesto); b) assumir a possibilidade de

um extermínio mútuo, devido à incapacidade de colocar-se no lugar do outro e de reconhecer

que se está errado (o que parece ser o destino mais provável da humanidade); c) assumir a

existência de um mundo de silêncio, pois o diálogo perderá sua essência, ou assumir a existência

de um mundo monológico, onde haverá muita linguagem, mas nada a ser dito. É por estes

motivos que não acreditamos na afirmação de que Freire “visa exatamente acabar com a

massa”. Na perspectiva orteguiana da qual partimos, isso, se fosse possível, exterminaria a

sociedade pelos motivos apresentados acima e é algo que nossa leitura cuidadosa dos pilares da

obra freiriana não mostra. Agora, se Freire “visa acabar com esse conceito de povo concebido

como massa”, é preciso realizar um estudo sobre o conceito de “massa” utilizado pelo brasileiro

e como ele conceberia uma sociedade em que não houvesse ignorantes (no sentido de “ainda

não possuidores de um determinado conhecimento”). Esperamos que esta nossa pesquisa possa

contribuir para aquele que se propuser a realizar esta outra.

Outro exemplo é o seguinte trecho do texto Obrigado, professor19, que Frei Betto dedica

a Paulo Freire:

Foi o senhor que nos fez entender que ninguém é mais culto do que outro por ter

freqüentado a universidade ou apreciar as pinturas de Van Gogh e a música de Bach.

O que existe são culturas paralelas, distintas, e socialmente complementares. O que

sei eu dos circuitos eletrônicos deste computador no qual escrevo? O que sabia

Einstein sobre o preparo de um bom feijão tropeiro? No entanto, a cozinheira pode

passar a vida sem nenhuma noção das leis da relatividade. Mas Einstein jamais pôde

prescindir dos conhecimentos culinários de quem lhe preparava a comida (BETTO,

2004).

Como último exemplo, podemos citar o reconhecimento de um problema a que Freire

chega no texto Conscientização e libertação. Ao comentar a respeito da ação pedagógica que

19 Disponível em: http://www.correiocidadania.com.br/.

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se espera da “vanguarda revolucionária” e do “partido revolucionário” em relação à tomada de

consciência de classe por parte da classe oprimida, ele se vê “[...] diante de um problema difícil.

Por um lado, a consciência de classe não se gera espontaneamente separada da práxis

revolucionária. Por outro, essa práxis implica uma consciência clara do papel histórico

desempenhado pelas classes oprimidas” (FREIRE, p. 181, in TORRES, 2014). Vemos, então,

que existe um problema circular, que em Filosofia chamamos “aporia”. Para Freire, no

comentário que se segue ao reconhecimento deste problema, Marx resolve a situação em A

Sagrada Família. Não queremos discutir aqui a natureza do argumento marxiano da atuação da

“crítica crítica” no seio do operariado, mas elegemos este exemplo para apontar a importância

da liderança social em sua tarefa de romper, ou pelo menos colocar em observação, este círculo

por meio da conscientização da “classe oprimida”.

Nestes relatos, podemos encontrar uma dinâmica exemplificação da sociologia

orteguiana, percebendo a essência de uma sociedade “vertebrada”, solidamente sustentada: a

minoria exemplar que se reconhece minoria; a massa dócil, que se reconhece como tal. O que

queremos dizer é que ainda que as motivações sejam distintas para ambos os pensadores,

podemos ignorá-las por um momento para perceber que, em certa medida – e somente em certa

medida -, ambos propõem uma mesma coisa que é tão normal quanto óbvia: para que uma

sociedade possa existir e se manter de pé, o que significa lidar com o problema dos

trabalhadores, da reforma agrária, da acessibilidade, da corrupção, da laicidade do Estado, da

ciência, da sustentabilidade e de todas as demais inumeráveis questões que devem ser encaradas

para que possamos viver coletivamente e para que esse coletivo jamais se torne um problema

de hegemonia deste ou daquele grupo em detrimento de um terceiro, a legitimidade da opinião

deve ser exercida por aqueles preparados para tal e reconhecida por aqueles que não se

qualificaram para se enquadrar no grupo dos que podem dirigir.

A questão pode parecer polêmica se pensamos somente em relação às decisões políticas

ou, melhor dizendo, ao que diz respeito ao coletivo onde as intersubjetividades se encontram,

campo em que dificilmente conseguimos distinguir quem realmente sabe o que está dizendo.

Nesse ambiente, claramente todos podemos e devemos opinar, mas o peso das opiniões deve

ser medido não só por quem ouve a opinião, mas principalmente por quem opina. É uma questão

moral. Contudo, se encararmos o problema de outro ângulo, ele se torna de uma obviedade e

de uma clareza desconcertantes. Consideremos a situação hipotética em que o leitor se vê

padecendo de uma série de incômodos na região lombar. Como as dores persistem com o passar

dos dias, ele pensa em procurar ajuda. Sua avó, que lhe vê reclamar dos constantes incômodos,

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lhe sugere um xarope milagroso feito de ervas, combinado a uma pomada de cartilagem de

tubarão que solucionarão os problemas da coluna. O leitor, então, sabiamente desconfia dela e

procura um clínico geral que rapidamente lhe dirá, após ouvir os sintomas, que provavelmente

as dores se originam nos rins e não na coluna. Após este diagnóstico superficial, o leitor é

convidado a procurar um especialista para confirmar ou negar a opinião do primeiro médico.

Nesta imagem tão simples quanto habitual que propusemos como exemplo é perceptível

como a opinião de três pessoas diferentes nos parecem mais ou menos legítimas em

determinado caso. A questão que incomoda é: por que seria inaceitável que a opinião de um

advogado seja a mais importante sobre determinado elemento de uma cirurgia cardíaca de alto

risco e, ao mesmo tempo, aceitável que qualquer um – a ideia é bem esta – que qualquer um

possa se acreditar no direito de decidir em assuntos relacionados à política ou à educação, por

exemplo? As propostas de lei e emendas constitucionais voltadas ao campo educativo que

temos visto pulular no atual governo é uma prova dessa aceitabilidade. Poderia se objetar,

contudo, que a avó hipotética do exemplo anterior tem a seu favor “todo o peso da vivência e

das experiências adquiridas com a idade para autorizá-la a sugerir o lenitivo ao queixante”.

Disso não discordamos, nem parece que alguém possa dizer que Ortega discorde, se se o lê.

Embora uma sociedade primitiva possa organizar-se valorizando os conhecimentos vividos

frente aos avanços inegáveis da ciência e assim funcionar de maneira “vertebrada”, a sociedade

em que vivemos desde há algum tempo é outra. Ela depende da ciência e não estamos apenas

nos referindo às ciências exatas ou da saúde. Será possível negar em nossa sociedade atual a

importância do outro na constituição do “eu”? O “eu” continua a ser compreendido como algo

solipsista como queria a meditação cartesiana no despontar da modernidade? Não. (Parece que)

evoluímos. Ainda que a simpática e prestimosa velhinha possa ter razão, a sociedade, como se

organiza hoje, não pode mais se valer apenas de sua palavra. A culpa é da idosa? Claro que não.

É daqueles que utilizaram da força do discurso da vivência e da experiência para autorizar sua

ditadura pessoal. A história está recheada de exemplos. As instituições foram obrigadas a

evoluir para certificar e autorizar os discursos, como é o caso da Universidade, em um momento

em que nelas se depositava confiança. Ortega chama atenção para o fato de que vivemos, desde

o início do século XX, uma crise das instituições, e crise, já o sabemos, é quando perdemos a

fé, quando não sabemos no que crer. Ainda que o problema possa ser interpretado de uma

infinidade de perspectivas, concordamos com as de Freire e Ortega, que embora sejam distintas

e até opostas em muitos aspectos, neste parecem concordar: é preciso restaurar a fé na educação.

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E, como já dissemos aqui, quando nos referimos à educação, não estamos querendo dizer uma

educação formal, da escola, mas a educação como formação do homem.

Desse modo, acreditamos que tanto na visão orteguiana quanto nos exemplos retirados

das obras de Freire, o que podemos observar é que, para uma sociedade funcionar corretamente,

é preciso que aqueles a quem cabe a opinião com caráter de liderança assumam essa

responsabilidade de modo autêntico, isto é, eticamente, comprometidos não só consigo

mesmos, mas com os outros que com ele dividem o ambiente coletivo. Eis a importância da

liderança social, do exercício legítimo da autoridade e de seu dócil, humilde, reconhecimento

por parte dos liderados. Isso significa que é preciso existir uma contrapartida de quem não pode

opinar com vistas a dirigir sobre determinado aspecto - tema, problema, questão, decisão -, é

preciso reconhecer-se humildemente incapaz de o fazer, a não ser que se qualifique para tal.

Em outras palavras, nada impede em nosso exemplo que a senhora que sugeriu o xarope possa

vir a ter uma opinião tão ou mais verdadeira que a do médico especialista, mas, para isso ocorrer

de modo autêntico, isto é, sem subverter o modo de funcionamento saudável que se espera em

uma sociedade, ela precisaria sentir-se pessoalmente motivada para tal e buscar os meios sociais

para legitimar seu diagnóstico e sua prescrição do medicamento, como formar-se em medicina

por exemplo. Isso não significa necessariamente que o xarope de ervas e a pomada de

cartilagem de tubarão serão descartadas como “lenitivos” para a dor lombar, mas sim que agora

ela será capaz de reconhecer quando a “dor nas costas” é, na verdade, problema nos rins e que,

ao invés de um simples “lenitivo”, ela pode sugerir um tratamento. Nesse caso específico,

podemos ver claramente o papel social da universidade, mas este requisito não tem caráter de

necessidade. Basta relembrar o exemplo de Frei Betto: Einstein, do alto de sua genialidade e

competência teórico-imaginativa, era (supostamente) incapaz de fazer um feijão tropeiro. Meu

pai, do alto de sua ignorância físico-filosófico-política deve ser considerado minoria, deve ter

seu discurso valorizado, se perguntasse aos nossos doutores honoris causa Ortega y Gasset e

Paulo Freire, integrantes da massa nesse momento, se é melhor tirar areia no rio antes ou depois

da chuva. Mas deveria também reconhecer-se como massa quando um engenheiro ambiental

lhe questionasse sobre o estrago ecológico que essa prática implica. O erro está em acreditar

que os papeis sejam fixos; tanto Ortega quanto Freire afirmam isso; ninguém ignora tudo,

ninguém sabe tudo; a docilidade da massa e a responsabilidade da minoria.

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4.2 Esperança e fatalismo

A Liga de Educação Política Espanhola, ao identificar a crise política nacional e

europeia daquela época, percebe que a “mocidade deslizou-se em um ambiente ruinoso e

sórdido. Não temos tido mestres nem se nos ensinaram a disciplina da esperança” (ORTEGA

Y GASSET, 1993a, p. 303). Ora, ao proporem um movimento que visava pensar os problemas

da Espanha para preparar uma minoria que intervisse para conscientização das massas,

pretendem, dessa forma, transformarem-se em mestres que possam purificar esse “ambiente

sórdido” ensinando a disciplina da esperança. Em termos orteguianos, a assumir a

responsabilidade como minoria dirigente e mesmo encontrar na massa aqueles que querem

tornar-se minoria.

Paulo Freire, dá muita importância a essa virtude à medida que ela se torna fundamento

para o diálogo, como podemos observar no terceiro capítulo da Pedagogia do oprimido.

Diálogo que é, nada menos, “exigência existencial” (FREIRE, 2008, p. 91), ou seja, é nele que

os homens se encontram para realizar-se; para o que ele chama de ser mais. De modo que “se

os sujeitos do diálogo nada esperam do seu quefazer, já não pode haver diálogo. O encontro é

vazio e estéril” (Idem, p. 95). Henry Giroux no Dicionário Paulo Freire assim define a

esperança na visão do autor:

Para Freire a esperança era uma prática de testemunho, um ato de imaginação moral

que possibilitava que educadores/as progressistas e outras pessoas pensassem de

maneira diferente para atuar de maneira diferente. A esperança necessitava estar

ancorada a práticas transformadoras, e uma das tarefas do/a educador/a progressista

era “mostrar possibilidades para a esperança, sem importar quais fossem os

obstáculos” (GIROUX, 2016, p. 145, aspas no original).

É importante salientar que nenhum dos dois pensadores tratam da esperança de maneira

despregada da realidade, utópica, no sentido de vazia, mas de uma esperança muito concreta de

melhora de condições nacionais que permitam ao homem a sua plena realização como indivíduo

que se sabe socialmente responsável. Esperança, portanto, ativa, que se dá na criação, que é o

que Freire chama “esperançar”. Para Samper, a proposta da Liga é que “os cidadãos devem ter

esperança política e esta esperança se baseia na participação” (SAMPER, 2001, p. 192). É o

que também se nota no comentário que Margarida Amoedo tece sobre o claro posicionamento

que Ortega y Gasset revelava em suas atitudes políticas. Posicionamento que não era

exclusivamente político, nem mesmo educativo, mas que se traduzia por sua própria meditação

filosófica, sem fazer dele um idealista. Nos dizeres da autora:

Em Ortega encontramos, justamente, o modelo intelectual que se subordina ao

imperativo de enfrentar com coragem, não no mero discurso, mas na práxis, a

incompetência, o relaxamento e a debilidade dos que não querem, ou não podem

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cuidar do seu aperfeiçoamento; e isso como professor de Filosofia e como filósofo

(AMOEDO, 2002, p. 21, itálico no original).

Essa perspectiva se coloca diante da negação de uma posição fatalista por ambos os

pensadores. Para Freire, “quase sempre este fatalismo está referido ao poder do destino ou da

sina ou do fado – potências irremovíveis – ou a uma distorcida visão de Deus” (FREIRE, 2016,

p. 90). No Prospecto de la “Liga de Educación Política Española” lemos que os integrantes

não se sentiam de “temperamento fatalista: ao contrário, pensamos que os povos renascem e se

constituem quando tem dele a indômita vontade. Todavia mais: quando uma parte desse povo

se nega regiamente a fenecer” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 304). Além dessa posição

contrária ao fatalismo referir-se à ação mesma do homem, como ser que se faz, como constante

quehacer, com alguém que se pre-ocupa em e do viver, conforme já explicamos, refere-se

também à própria atuação política, no sentido de que nega qualquer política que se baseie no

tradicionalismo (idem, p. 282), mas que atente para os problemas do momento, da época.

Portanto, a esperança como luta, como atitude positiva na política, é o segundo aspecto

em que podemos notar uma semelhança nos discursos de Freire e Ortega. Agora que

argumentamos que tanto os conceitos de “liderança” como o de “esperança” parecem se

assemelhar, podemos apontar em que medida a ideia de “conscientizar” e a prática ligada a este

conceito em ambos os pensadores nos parece seguir o mesmo caminho.

4.3 Definindo e analisando o conceito em Freire

O conceito de “conscientização” é tão presente e tão importante nos escritos de Freire

que até se acreditou que ele tivesse sido seu criador. Entretanto, o recifense esclarece que a

cunhagem deste termo está ligada aos estudos de Álvaro Vieira Pinto e Guerreiro Ramos e às

reflexões realizadas no Instituto Superior de Estudos do Brasil (ISEB). O equívoco comum se

deve ao fato de que o próprio Freire reconhece que este termo é “um conceito central em minhas

ideias sobre educação” (FREIRE, p. 73, in TORRES, 2014). Sendo ele, talvez atrás somente de

Dom Helder Câmara, o maior divulgador da ideia. Por vezes, nos parece, este termo se

apresenta como “ação cultural para a libertação/liberdade” ou “processo de clarificação

ideológica” (idem, p. 182). Aliás, em resumo, fica claro para nós a significação do conceito no

título e subtítulo de um de seus livros: Conscientização: teoria e prática da libertação (1979).

Eis portanto, em poucas palavras, o que o recifense compreende pelo termo. Entretanto, para

conseguirmos compreendê-lo de maneira mais sistemática e concreta, recorreremos a uma série

de definições encontradas em diversos textos de sua autoria e que podem nos ajudar nesse

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trabalho de compreensão. Antes de iniciarmos é preciso dizer que não apresentamos as

definições a seguir como individuais, isoladas ou distintas, mas como diferentes no sentido de

complementares.

Uma primeira definição do conceito encontramos no texto Conscientizar para libertar:

noções sobre a palavra conscientização e também no livro sobre o qual acabamos de comentar

(FREIRE, 1979, p. 15) é a seguinte:

A conscientização implica a substituição da esfera espontânea de apreensão da

realidade por uma esfera crítica em que a realidade se apresenta, agora, como um

objeto cognoscível em que o homem assume uma posição epistemológica, em que o

homem busca conhecer. A conscientização é, assim, o teste de ambiente, da realidade.

Quanto mais alguém se conscientiza, mais desvela a realidade, mais penetra na

essência fenomênica do objeto a ser analisado (Idem, p. 76, itálicos no original).

Há duas coisas que podemos perceber neste primeiro momento: a) a influência da leitura

dos fenomenólogos na escrita do brasileiro e b) a presença da concepção que sabemos ter sido

desenvolvida em Educação e atualidade brasileira que distingue a consciência intransitiva, que

aqui ele chama de “esfera espontânea de apreensão da realidade”, da consciência transitivo-

crítica, cuja citação acima refere como “posição epistemológica”. Isso também nos leva a duas

suposições iniciais: a) que Freire e Ortega compartilham leituras e influências advindas da

fenomenologia, embora suas ideias nãos estejam restritas a este campo e b) que embora o termo

“conscientização” não se confunda com a ideia de “consciência de” da fenomenologia, Freire

parte dela e a atualiza, pois atribui à conscientização a necessidade não só do distanciamento,

que em suas obras por vezes aparece como “ad-mirar”, mas também da atuação direta no

mundo.

Além disso, o termo que ora analisamos, em Freire, está intimamente ligado a outro

conceito que é o de “utopia”, que por vezes ele também chama de “viabilidade histórica” (idem,

p. 179). Em poucas palavras, ao contrário da ideia comum que se tem de utopia e que fora

estabelecida em grande medida por Thomas Morus em seu livro homônimo, para o recifense,

ser utópico é ter esperança ativa na realização da libertação por meio dos atos de anúncio (como

projeto) e de denúncia (como reconhecimento de algo problemático). Para ele, todo

revolucionário é utópico e profético. Seus exemplos são Marx e Guevara. A relação

conscientização/utopia fica clara nos seguintes trechos: “quanto mais conscientizados estamos,

tanto mais somos anunciadores e denunciadores, pelo compromisso de transformação que

assumimos” (FREIRE, p. 77, in TORRES, 2014) e “o processo de conscientização é, em si, um

processo utópico” (idem, p. 92).

Como se dá o processo de conscientização?, pergunta-se o brasileiro. Ele mesmo

responde ao dizer que a conscientização só pode ocorrer se se utiliza da “educação como

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instrumento de libertação” ao invés de se valer dela como “instrumento de dominação” (Idem,

p. 78). É o mesmo argumento que encontramos em O processo de alfabetização, com a

diferença que Freire vai reconhecer nesse texto que “não que por si só a educação possa libertar

o homem, mas ela contribui para esta libertação ao conduzir os homens a adotar uma atitude

crítica frente a seu meio” (FREIRE, 1981, p. 72). Assim, percebemos que o ponto central da

conscientização ou a sua mais completa significação, em Freire, não é somente concentrar-se

em identificar a realidade, mas alterá-la, transformá-la, pois “para a consciência oprimida [...]

não há nada a fazer para além da situação-limite” (FREIRE, p. 80, in TORRES, 2014). Isso

também ocorre pelo fato de que Freire reconhece que “toda transformação radical e profunda

de um sistema educativo só pode produzir-se (e então, inclusive, não automática nem

mecanicamente) quando a sociedade mesma se encontrar também radicalmente transformada”

(FREIRE, 1990, p. 168). Ora, basta ter olhos para ver que uma mudança educativa, no visar de

Freire, necessita, com todo o peso dessa palavra, que exista previamente uma mudança da

sociedade; mudança essa que se faz, o sabemos, somente através do engajamento político. Note-

se bem que este é o cerne da proposta freiriana da Pedagogia do oprimido, qual seja,

transformar a educação através da transformação política e não o contrário, pois políticos são

seus objetivos, como ele próprio diz em La naturaleza politica de la educación (1990, p. 168).

Aliás, seria leviano, por parte de Freire, a utilização deste termo, “natureza”, no título do livro?

Acreditamos que não.

Poderíamos dizer, com base no que sabemos até agora em nosso trabalho de definição

do conceito, que para Freire é preciso que o homem se reconheça não só em uma determinada

realidade, mas com ela, sem ignorar que essa situação complementa seu ser no mundo, pois

somente através da transformação da realidade é que o homem pode ser mais, pode ser si

mesmo. Ora, não é este o mesmíssimo significado do pensamento fundante da filosofia

orteguiana? Ortega nos disse em Meditaciones del Quijote que eu só me constituo como “eu”,

como humano, a partir do momento em que me vejo em uma circunstância, em um tempo-

espaço delimitado, que reconheço que esta realidade é de mim inseparável e que preciso

transformá-la para realizar a minha vocação, o chamado de meu núcleo insubornável, aquilo

que sou em meu ser autêntico. Embora a ideia e seu modo de realização em ambos os

pensadores sejam idênticos, não ignoramos que tanto o objetivo quanto o fundamento desta

mesma ideia sejam distintos. O que nos interessa aqui é delimitar o conceito de conscientização

e apontar as relações possíveis.

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Assim, a conscientização, para Freire, visa a libertação política através do combate ao

medo da liberdade, tão característico, acredita Freire, da práxis opressora. É o medo da

liberdade muitas vezes o responsável pelo “cruzar de braços” dos homens diante da sua

realidade, aquilo que Kant chamava de “covardia e preguiça” ou “menoridade”. Por isso, Freire

reconhece que a conscientização é um parto doloroso, pois “implica, também, um momento

perturbador, tremendamente perturbador, no ser que começa a se conscientizar, momento em

que o ser começa a renascer. Porque a conscientização exige morrer para nascer de novo”

(FREIRE, p. 81, in TORRES, 2014).

Em uma palestra ministrada em Cuernavaca, em 1971, sob o título Desmitificação da

conscientização, Paulo Freire reconhece três modos distintos e deturpados de compreensão da

palavra conscientização e de sua realidade no mundo com os homens. A mesma ideia

encontramos analisada no último capítulo do livro La naturaleza politica de la educación. O

primeiro deles acredita que “conscientizar”, ao contrário de um conceito científico é uma ideia

mágica, ou pelo menos, somente psicológica, que serviria como alívio emocional para certos

grupos de pessoas. O segundo, para Freire continua ainda nessa perspectiva “mágica” do

conceito, pois acredita que basta a divulgação da ideia para que ela, por si só, realize “a

transformação revolucionária” (ibidem). Este modo é considerado pelo autor como objetivista.

O terceiro e último modo que o brasileiro analisa como sendo responsável por uma deturpação

da ideia de conscientização é aquele que acredita no poder “conciliador” do termo: é o idealista.

Vejamos como Freire o define:

Essa problemática acontece a partir das soluções conciliatórias: esses grupos são

eminentemente cristãos, mitologizados por ilusões idealistas, entre as quais a ilusão

de que é possível transformar o homem sem transformar o mundo, é possível

humanizar e libertar os homens deixando, entretanto, intocável, virgem, a realidade

social que proíbe que os homens sejam. Essas pessoas correm ávidas, gulosas,

inquietas, ansiosas e felizes aos centros de conscientização para serem saciadas com

a palavra salvadora que vai evitar a luta de classes (ibidem, itálicos no original).

Esses modos são também o que ele chama de “ações de aspirina”, praticados por pessoas

que “no fundo, são iludidas, são ideologizadas pela estrutura de dominação sem o saberem”

(FREIRE, p. 85, in TORRES, 2014). Estas mesmas ideias - “ação aspirina” e “é ilusão

transformar o coração dos homens e das mulheres, deixando virgens e intocáveis as estruturas

sociais” (FREIRE, 1978, p. 12) - encontramos em um pequeno livro de 1978, cujo sugestivo

título, Os cristãos e a libertação dos oprimidos, nos parece ser uma referência ao famoso

chamado de Jesus em Mateus 11, 28. O que percebemos, então, nessa crítica que Freire

endereça às pessoas que compreendem a conscientização de modo “deturpado” ou “falso” é a

afirmação do que já expomos anteriormente: de que não basta o homem viver alienado de sua

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realidade, sem ter em mente que é preciso transformá-la para que ele possa realizar-se

plenamente como ser, como humano. Ao contrário, para as pessoas que defendem uma

conscientização “conciliadora”, como diz Freire, “a conscientização aparece como um

instrumento de enfatização do masoquismo; isto é, em nome do amor, eu preciso me tornar

masoquista para amar a própria estrutura que me faz não ser, esperando que, com minha

paciência, eu venha um dia a gozar o céu” (FREIRE, p. 85, in TORRES, 2014, itálicos no

original).

Ao contrapor essa perspectiva “falsa”, encontramos uma segunda definição do conceito

no pensamento de Freire e que, além desse texto que vimos analisando, está presente também

nos livros Conscientização: teoria e prática da libertação (1979, p. 15) e La naturaleza politica

de la educación: cultura, poder y liberación (1990, p. 87). Aqui ele considera “conscientização”

[...] como a base fundamental de um processo de educação libertadora, considerando

a conscientização como um esforço dialético de compreensão entre a subjetividade e

a objetividade ou, em outras palavras, entre consciência e mundo, ou, em outras

palavras ainda, entre homem e mundo. Não dicotomiza essas duas dimensões

(ibidem).

Essa definição nos parece ser melhor explicada no texto Conscientização e libertação

(1973):

a conscientização, identificada com a ação cultural para a libertação, é o processo pelo

qual, na relação sujeito-objeto [...], o sujeito consegue captar criticamente a unidade

dialética entre o eu e o objeto. Por isso, reafirmamos que não existe conscientização

fora da práxis, fora da teoria-prática. Reafirmamos a unidade da reflexão-ação (idem,

p. 179).

Ela é comentada também em O processo de alfabetização política (1974):

a conscientização não está baseada sobre uma consciência aqui e um mundo acolá e

não tenta nunca fazer uma tal distinção. Ao contrário, ela é baseada na correlação da

consciência e do mundo. [...] A conscientização, que se produz num momento dado,

deve prosseguir no momento que segue, no curso do qual a realidade transformada

faz aparecer novos perfis (FREIRE, 1981, p. 80).

E reforçada no livro Os cristãos e a libertação dos oprimidos (1978):

[...] é preciso sublinhar que a ação através da qual a consciência se transforma não é

pura ação, mas sim a ação e a reflexão. Surge daí a unidade entre a prática e a teoria,

na qual ambas vão se constituindo, fazendo-se e refazendo-se num movimento

permanente que nos leva da prática à teoria e desta a uma nova prática. [...]

Exatamente por isto, a práxis teórica só é autêntica na medida em que não se

interrompe o movimento dialético entre ela e a práxis subsequente que vai ser

realizada num contexto concreto (FREIRE, 1978, p. 16).

Portanto, percebemos aqui que existem, no visar do brasileiro, três formas “falsas” ou

“deturpadas” de se compreender a conscientização, a que ele opõe uma visão “correta” de que

como o conceito e a prática ligada a ele deve ser encarada e que se refere a um “quarto grupo”,

nem objetivista, nem idealista, mas crítico e dialético, do qual a definição acima é retirada, e

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que em O processo de alfabetização política Freire atribui uma “natureza dialogal” (FREIRE,

1981, p. 73). Há, entretanto, um quinto grupo que interpreta a conscientização ou a prática de

conscientizar de modo distinto, segundo Freire. Não só distinto como oposto: “é o grupo que

considera a conscientização como a satanização” (FREIRE, p. 86, in TORRES, 2014). Esta

“satanização” – “[...] ainda que, no fundo, seja sinônimo de comunismo para esta ideologia da

dominação” (ibidem) - está relacionada ao fato de que este grupo conhece e compreende o poder

da conscientização e, por isso mesmo, vê seus interesses prejudicados ou simplesmente

ameaçados. Sendo assim, para Freire, esse grupo manipula a “opinião pública” para atribuir à

conscientização um caráter maligno. De modo que é necessário desvelá-lo, desnudá-lo,

desmitificá-lo. Parece importante notar que, embora Freire não utilize a expressão, lemos nas

entrelinhas que esse grupo pode ser classificado como “classe opressora”, mas algo a esse

respeito também é comentado na transcrição de uma entrevista com o recifense no ano de 1973,

em Genebra, no qual lemos que a “fonte ideológica” de várias expressões que vão contra a ideia

da dialética consciência-mundo é “‘a pequena burguesia’” (idem, p. 174, aspas no original),

embora Freire não explique essas palavras. Vejamos, então, que esta segunda definição do

conceito que encontramos no pensamento de Freire, ao contrário do caráter, poderíamos dizer,

ontológico (portanto, metafísico, embora isso não signifique de nenhuma maneira um

afastamento do contexto social e político) da primeira, tem uma forte conotação social e

política, portanto, ideológica (o que não significa também que esteja despregada da concepção

ontológica do homem que ele traz da fenomenologia). Essa análise é retomada e atualizada mais

tarde, em 1978, no livro Os cristãos e a libertação dos oprimidos.

Ainda nesta mesma palestra, Desmitificação da conscientização, encontramos uma

terceira definição que nos parece ser exatamente uma síntese da primeira e da segunda: a

conscientização “é um processo humano que se instaura precisamente quando a consciência se

torna reflexiva. [...] É um aprofundamento da tomada de consciência” (FREIRE, p. 89, in

TORRES, 2014). É interessante notar nesse momento que a argumentação que leva Freire a

tecer essa terceira definição tem como fundamento a distinção que ele realizara em Educação

e atualidade brasileira, que tratava dos “níveis” de consciência, apresentada por nós no terceiro

capítulo, e que retorna com grande força no sexto capítulo do livro La naturaleza politica de la

educación (1990), publicado incialmente em Massachusetts, em 1985, sob o título The politics

in education: Culture, Power and Liberation. A partir, portanto, dessa terceira definição, Freire

conclui três aspectos a respeito do conceito que analisamos: 1) a conscientização não pode

ocorrer através de uma transferência ou “bancarismo”, mas de atitude lógica diante do mundo

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que se observa, da visão de mundo que se tem; 2) ela não frutifica no idealismo (consciência

isolada), nem no objetivismo (mundo isolado), mas no movimento dialético entre consciência

e mundo; 3) o processo conscientizador que desvela o mundo mas não altera a realidade é um

processo frustrado.

Para este terceiro aspecto se concretizar, Freire reconhece a necessidade da tomada de

posição, da construção ou escolha de uma opinião. Vejamos como ele mesmo o diz, pois essa

última conclusão é importante para nossa análise:

A partir do momento em que dizemos que o processo de conscientização implica a

prática de transformação da realidade, ou não é conscientização, estamos

necessariamente afirmando que esse processo propõe, antes de tudo, uma opção de

minha parte. Isso é, tenho que ter uma opção que muitos chamam de ideológica. Ainda

que essa palavra não me agrade muito, direi que se eu não tenho essa opção ideológica

anterior, a conscientização como esforço de transformação do mundo pode-se [sic]

frustrar, porque ela deixa de ser um esforço de transformação para ser e converte-se

em um esforço de manutenção, conforme minha opinião (FREIRE, p. 91, in TORRES,

2014, itálico no original).

A nosso ver, é aqui que compreendemos a importância da conscientização na obra

freiriana, pois esse argumento resumiria o primeiro capítulo de Pedagogia do oprimido, que é

sua justificativa. Ora, já argumentamos que Pedagogia do oprimido se apresenta para o leitor

como a construção de uma teoria revolucionária que visa fundamentar uma prática

transformadora/libertadora. Todavia, somente agora estamos aptos a compreender

concretamente que essa obra se apresenta como uma “opção ideológica anterior” que se

estabelece, através do estudo desenvolvido, em “teoria revolucionária” e que, por sua vez,

fundamenta a conscientização, considerando que a conscientização vai além somente da ideia,

mas que exige, como vimos acima, a prática transformadora. Notamos, então, que para Freire,

é necessário definir muito bem o fundamento teórico da ação, pois “a conscientização como

manifestação utópica ou como instrumento dessa utopia tem que ser um quefazer que implica

uma opção ideológica de nossa parte do começo ao fim” (idem, p. 94). Não é por acaso que um

dos seus livros que trata exclusivamente sobre o tema tem como subtítulo “teoria e prática da

libertação”. Para ele, é preciso “definir-se para não pôr a perder a tarefa da conscientização”

(ibidem). Ideia que também observamos no texto Conscientização e libertação:

Se não ocorre nenhuma transformação radical das estruturas sociais que defina a

situação objetiva em que se encontram os camponeses, estes continuam na mesma

condição: explorados do mesmo jeito. Pouco importa que alguns deles cheguem a

compreender por que sua realidade é como é. Realmente, desmascarar a realidade sem

uma ação de orientação claramente política diante dessa mesma realidade

simplesmente não tem sentido (idem, p. 176, itálico nosso).

Nesse momento é possível percebermos, assim como temos estudado neste item a

respeito do termo “conscientização” no pensamento de Freire, que Ortega - embora ele mesmo

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não tenha comentado em nenhum momento nada a respeito, isto é, o que estamos dizendo vem

de nossa interpretação de seus escritos - também parte de uma opção ideológica bastante clara.

Esta opção já a apresentamos anteriormente, é justamente sua compreensão de que uma

sociedade só pode existir de modo saudável se houver equilíbrio entre minoria e massa. A opção

ideológica de Freire está bastante aparente no que foi dito: a sociedade é dividida entre classe

dominadora, que oprime, e classe dominada, que é oprimida. Nossa pretensão aqui não é avaliar

qual das duas formas de encarar o problema é a mais correta: as duas nos parecem fazer sentido.

Por isso mesmo é que acreditamos poder tecer uma aproximação entre determinadas ideias.

Dentre elas, escolhemos a de “conscientização” por acreditar que, seja a sociedade analisada

por Freire, seja a sociedade da perspectiva orteguiana, ambos acreditam, como já dissemos, que

é preciso que o homem se torne autônomo, se reconheça como ator de sua própria vida e

transformador de sua própria realidade. Isso é o que também nós acreditamos ser necessário

nos dias de hoje e é essa a grande relação e atualidade que enxergamos no pensamento de

ambos.

É também neste texto, Conscientização e libertação, que podemos encontrar a quarta

definição do conceito. Ela trata o termo “conscientização” de modo estritamente político e sua

prática é atribuída unicamente ao partido revolucionário. Nessa entrevista, Freire diz que existe

um “contexto concreto no qual [as classes oprimidas] se encontram submersas na alienação que

constitui sua vida diária: não chegam a tomar consciência de si, no sentido de ‘classe em si’”

(idem, p. 177, aspas no original). Ao que o entrevistador questiona: “estaria certo dizer que é

exatamente este o papel do partido revolucionário?” (ibidem). A resposta de Freire é exatamente

esta outra definição da prática conscientizadora: “em última análise, esta é uma das tarefas

fundamentais de qualquer partido revolucionário que pretenda uma organização consciente das

classes oprimidas para que estas superem o plano da ‘classe em si’ e atinjam o de ‘classe para

si’” (idem, p. 178, aspas no original).

Contudo, Freire reconhece aí um problema complicado de se resolver, um impasse, pois

para que se tenha uma “consciência revolucionária” é preciso uma “práxis revolucionária”, mas

essa práxis implica (portanto, necessita, requer necessariamente) consciência de classe. Para

ele, esse problema é resolvido por Marx em A Sagrada Família. A nosso ver – e já apresentamos

este argumento no primeiro item deste capítulo – a existência deste problema é mais um

reconhecimento da presença e da importância da liderança social (que Freire chama

“revolucionária”).

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Uma sexta definição encontramos no texto O processo de alfabetização política que

compõe o livro Ação cultural para a liberdade. Ali o recifense nos diz que “conscientização –

[é] o nome que eu dou ao processo pelo qual os homens se preparam eles próprios para inserir-

se de modo crítico numa ação de transformação” (FREIRE, 1981, p. 77, itálico no original).

Pouco antes, nesse mesmo texto, Freire nos diz também o que ele entende por “educação

libertadora” que, nos parece, é utilizado por ele como um sinônimo de “conscientização”.

Vejamos como ele o diz:

Nós devemos ultrapassar este tipo de educação [“como pura transferência”] e

substituí-lo por outro tipo no qual conhecer a realidade e transformar a realidade serão

questões recíprocas. Desta maneira, a educação em vista duma libertação, enquanto

práxis autêntica, é simultaneamente um ato de conhecimento e um método para a

transformação que os homens devem exercer sobre a realidade que procuram conhecer

(idem, p. 75).

Ora, perceba-se que em oposição a uma educação bancária, baseada na transferência, o

autor propõe um novo tipo de fazer educativo ou de ação educadora que tem como fundamento

não só o conhecimento da realidade como também a sua transformação. E não é exatamente

isso que as definições do conceito “conscientização” que temos apresentado até o momento nos

ensinam? De que conhecer e transformar são lados de uma mesma moeda, ocorrem

dialeticamente, na experiência crítica? Desse modo, acreditamos que educação libertadora,

conscientização e alfabetização política aparecem no pensamento de Freire como sinônimos.

Sobre este último termo, o recifense diz o seguinte: “o processo de alfabetização política [...]

pode servir quer à domesticação quer à libertação dos homens. No primeiro caso, de nenhuma

maneira o exercício de conscientização é possível; no segundo, é ele próprio a conscientização”

(FREIRE, 1981, p. 80; 1979, p. 16; 1990, p. 85).

Encontramos também no livro Os cristãos e a libertação dos oprimidos, sob o qual já

comentamos, uma outra definição do conceito – que em nossa conta, é a sétima - e que se

assemelha àquela que identificamos no texto Conscientização e libertação e que traz para si um

forte caráter político:

a conscientização20, associada ou não ao processo de alfabetização (pouco importa),

não pode ser um “blá-blá-blá” alienante, mas sim um esforço crítico de pôr a claro a

realidade, o que implica, necessariamente, um compromisso político. Não existe

conscientização se a prática não nos leva à ação consciente dos oprimidos como classe

social explorada na luta pela sua libertação (FREIRE, 1978, p. 17, parênteses e aspas

no original).

Uma oitava definição podemos ler no livro Conscientização: teoria e prática da

revolução e que aparece também em alguns dos textos analisados neste item, mas que, depois

20 Como o livro foi publicado em Lisboa, o termo conscientização aparece no livro como “consciencialização”

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das definições apresentadas, nos parece ser melhor compreensível sendo apresentada neste

momento. Ali Paulo Freire diz que “[...] a conscientização é um compromisso histórico. É

também consciência histórica: é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o

papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os sujeitos criem sua existência com

um material que a vida lhes oferece” (FREIRE, 1979, p. 15). O mesmo pensamento

encontramos em um pequeno e desconhecido texto intitulado La historia es posibilidad.

Sabemos, portanto, que esse “compromisso histórico” não se dá apartado de uma ação dialética

da práxis (teoria e prática), nem também do compromisso político da classe oprimida na busca

pela própria libertação. Essa ideia está de acordo com o que ele chama de “vocação ontológica

do homem” (idem, p. 16) e que é a vocação de ser sujeito - o que em outros momentos ele

chamaria ambiguamente de “ser mais”. Isso nos lembra o seguinte comentário de Ortega nas

Meditaciones del Quijote: “o ato especificamente cultural é o criador, aquele em que extraímos

o logos de algo que todavia era insignificante (i-logico). A cultura adquirida só tem valor como

instrumento e arma de novas conquistas” (ORTEGA Y GASSET, 1997, p. 321).

No livro La naturaleza politica de la educación, sobre o qual já comentamos,

encontramos uma definição do conceito bastante interessante e que nos remete à reflexão sobre

os níveis de consciência que Freire havia realizado em Educação e atualidade brasileira e que

procuramos analisar no capítulo 3. Nesse livro lemos que “a conscientização é uma defesa

frente a outra ameaça: uma mistificação potencial da tecnologia que a nova sociedade necessita

para transformar atrasadas estruturas” (FREIRE, 1990, p. 106). Ora, percebemos, então, que

em acordo com as outras definições que temos encontrado em diversos textos, muito mais do

que somente uma questão de alfabetização política, ou pós-alfabetização, a conscientização

toma um caráter ativo na sociedade, agindo não só sobre a consciência transitivo-ingênua com

finalidades de ajudá-la a criticizar-se, mas também sobre a própria consciência transitivo-

crítica, como uma espécie de antivírus que impediria o problema da mistificação, ou das

interpretações mágicas do mundo. Nesse caso, especificamente, como podemos ler nos

parágrafos precedentes do livro em questão, a “nova sociedade” a que Freire se refere é aquela

na qual se instaurou a sua almejada realidade revolucionária. Portanto, como dissemos no

terceiro capítulo, a transitividade da consciência de ingênua para crítica, por si só, é incapaz de

manter o homem no caminho de sua vocação (de ser sujeito), de modo que é necessário que a

educação, ou a conscientização continue a exercer influência. É interessante notar que, para

além do que foi dito em Educação e atualidade brasileira, Freire reconhece neste texto de 1990

que a assistencialização evolui para englobar também os avanços tecnológicos que, ele entende,

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muitas vezes limitam a capacidade de decisão, a partir de um olhar da produção e do lucro,

senão implícito e velado em Pedagogia do oprimido, explícito neste livro.

Estas definições que nosso estudo de textos “laterais” da obra freiriana nos permitiram

compreender que sem a conscientização, que por vezes aparece como sinônimo de “educação

libertadora”, é impossível, para Freire, a libertação dos oprimidos, a revolução cultural e a

instauração da realidade revolucionária. O que podemos resumir de todas as nove definições

encontradas é o seguinte: a) o homem é consciência de si e de sua realidade, b) o homem está

no mundo, é histórico, portanto encontra-se numa situação espaço-temporal na qual encontra

outros homens, c) essa relação não pode ser separada (objetividade-subjetividade), mas se dá

de modo dialético, d) e o trabalho da conscientização tem de voltar-se para a transformação

da realidade, que significa no pensamento de Freire engajar-se na luta política pela libertação

dos oprimidos enquanto classe social.

O fato de termos escolhido estas definições, que, como dissemos no início deste item,

não são excludentes, mas complementares, não significa que elas esgotam a compreensão do

conceito na obra de Freire. Entretanto, estas nos pareceram interessantes principalmente por

estarem em textos pouco conhecidos e reforçarem o que podemos encontrar em Pedagogia do

oprimido e Pedagogia da autonomia, por exemplo, obras que são amplamente estudadas. Além

disso, percebemos que todas as definições apresentadas guardam um caráter comum: a

indissociabilidade teoria-prática e a decorrente necessidade de libertação dos oprimidos.

Para finalizarmos este estudo, apresentaremos dois comentários de estudiosos de Freire

e sua compreensão do termo que ora analisamos na obra do brasileiro. O primeiro deles está

presente no pequeno texto dedicado ao conceito no Dicionário Paulo Freire. A análise, bastante

rápida, diga-se de passagem, ficou a cargo de Ana Lúcia Souza de Freitas e se concentra,

basicamente, no reconhecimento de três momentos distintos em que o conceito é empregado

(STRECK, 2016, p. 107). Para ela, o primeiro deles é a utilização do termo como significando

a finalidade da educação, o segundo, principalmente nos anos 70, em que Freire reflete sobre a

falta e a deturpação de seu significado e o terceiro é quando o recifense o atualiza em Pedagogia

da autonomia ao se referir sobre o contexto neoliberal, reforçando que a prática educativa tem

uma natureza política. O segundo comentário é feito por Carlos Alberto Torres no primeiro

capítulo do livro Diálogo e práxis educativa. Embora retiremos de lá essa referência, a autoria

do comentário é de Julio Barreiro e está presente em seu livro Educación popular y processo

de conscientización. Eis como Torres o apresenta:

1. “... la concientización como descubrimiento de la dimensión de la persona y como

compromiso con sus consecuencias”;

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2. “... la concientización como conquista de la consciencia transitivo crítica a lo largo

de una escala progresiva de descubrimientos relacionales”;

3. “... la concientización como pasaje de la consciencia oprimida hacia la consciencia

de opresión”;

4. “... la concientización como emergencia de la existencia oprimida hacia la

consciencia del oprimido” (BARRREIRO apud TORRES, 2014, p. 36).

O estudo empreendido neste item tinha como objetivo mapear a utilização e a

significação do termo “conscientização” em alguns dos textos de Freire de modo bastante geral,

mas confiando que o conceito segue uma mesma linha lógica e não varia em sua essência. Com

isso, damos por encerrado esse estudo e passamos à tentativa de aproximação do conceito em

Ortega y Gasset, nosso outro interlocutor. Já dissemos, mas não há problema em repetir, que o

espanhol não utiliza o conceito (não poderia, já que, segundo Freire, ele é uma criação brasileira

de 1964), mas que tem, acreditamos, ideias parecidas ao que encontramos nas definições

apresentadas anteriormente. A diferença maior entre os dois reside nisso: Ortega acredita que a

política é apenas um dos variados campos sociais e não o mais importante, como faz Freire, de

modo que atribuir ao trabalho educativo (conscientização) uma “natureza política” é manter o

conceito amarrado em apenas uma das muitíssimas facetas da realidade radical que é a vida em

primeira pessoa. Sendo assim, não precisamos defender uma ou outra ideia, ambas parecem ter

problemas (que não serão apresentadas nem discutidas nesse trabalho), mas o que nos importa

é perceber em que pontos específicos de seu pensamento podemos encontrar uma aproximação.

Argumentaremos a esse respeito nos itens que seguem, mas já é possível perceber essa

aproximação, neste magnífico comentário de Freire:

Todos nós estamos involucrados em um processo permanente de conscientização, em

tantos seres pensantes em relação dialética com uma realidade objetiva sobre a qual

atuamos. O que varia no tempo e no espaço são os conteúdos, os métodos e os

objetivos da conscientização. Sua fonte original é aquele ponto longínquo no tempo

que Teilhard de Chardin denomina “hominização”, quando os seres humanos vieram

a ser capazes de revelar sua realidade ativa, conhecendo-a e compreendendo o que

conheciam (FREIRE, 1990, p. 169, aspas no original).

4. 4 Aproximando o conceito em Ortega

Pelo que já foi dito em itens anteriores, indicamos que a proposta política de Ortega y

Gasset e da Liga de Educação Política Espanhola é reformista, na medida em que propõe a

política como “uma atitude histórica” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 276, itálico no original)

de regeneração social, que “inclua em si todas as formas, princípios e instintos de socialização”

(idem, p. 275). Em suma, aquilo que Ortega chama de “vitalidade social” (idem, p. 276), ou

seja, “a livre espontaneidade da sociedade” (Idem, p. 277). Isso significa que diante de uma

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política decadente, é preciso surgir uma nova atitude que vá além de qualquer manifestação

partidária ou governativa, mas que adentre no mais íntimo das ações pessoais e, portanto,

sociais e que perceba na sociedade as outras instituições que não são propriamente governativas

ou políticas e que também têm que assumir sua responsabilidade social, bem como a

compreensão de que o homem é um ser que se faz na história.

Daqui que a perspectiva orteguiana da sociedade difere da marxista, já que nem tudo se

encaixa na dicotomia infra/superestrutura e da de Freire, na dicotomia opressores/oprimidos.

Isso significa que se identificamos uma forma decadente de organização estatal, essa triste e

perigosa situação está menos associada à própria organização social, institucional do Estado,

que da própria atitude dos cidadãos que compõem essa organização. Era, como vimos na

apresentação que fizemos da biografia de Ortega, um problema reconhecido pela

intelectualidade espanhola: a renovação dos espanhóis. Daí o reconhecimento da importância e

aproximação da Liga ao partido socialista e ao movimento sindical na construção dessa nova

atitude política, pois consideram esses movimentos políticos como “as únicas potências de

modernidade que existem hoje na vida pública espanhola” (ibidem). Essa atitude orteguiana,

que faz uma espécie de combinação entre o liberalismo e o socialismo não-dogmático, é muito

bem explicada por Elvira Alonso Romero em seu artigo Nueva política y poder: ideas políticas

de Ortega a partir de Vieja y nueva política. Ali ela diz que o

primeiro terço do século XX é, como adverte Ortega em Vieja y nueva política, um

momento de crise das ideias políticas. É um momento, para o liberalismo, de

transformação. É o momento da crise do Estado liberal, surgido das grandes

revoluções políticas que encerram a modernidade. É o momento da transformação do

Estado liberal em Estado social, pelo déficit igualitário do primeiro modelo, no sentido

político (democracia) e social (igualdade material). (...) este socialismo do primeiro

Ortega é uma posição comum entre os intelectuais ocidentais deste período

(ROMERO, 2015, p. 14, parênteses no original).

O próprio Ortega reconhece em 1910, no texto La pedagogía social como programa

político, que “é hoje uma verdade científica adquirida para in aeternum que o único estado

social moralmente admissível é o estado socialista: se bem que não hei de afirmar que o

verdadeiro socialismo seja o de Karl Marx, nem muito menos que os partidos operários sejam

os únicos partidos altamente éticos” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 518, itálico no original).

Em La generación política de 1914, encontramos uma explicação dessa forma de pensar. Para

Samper, os integrantes desse movimento

se consideram próximos às ideias sociais e políticas do socialismo e do movimento

sindical e se integrariam nesses movimentos políticos se não fosse por seu excessivo

caráter dogmático. Do socialismo, deveríamos dizer socialdemocracia, tomam o

componente social e socializante (o estado ao serviço da nação) que deve orientar todo

governo, a preocupação pelo bem-estar da classe trabalhadora e inclusive pretender

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copiar o sistema de organização [...] baseado em juntas ou representações locais [...]

(SAMPER, 2001, p. 191).

Isso demonstra a abertura dialógica e o caráter político da Liga, que, aliás, tinha como

signatários muitos dos componentes da fracassada “Sociedade Fabiana” francesa, de 1907,

muito ligada ao Partido Socialista (SAMPER, 2001, p. 182). Aliás, mais tarde, a partir da

república de 1931, vai se desmembrar de modo a se unir novamente a esse partido, já sem a

participação orteguiana. Mas, como vimos, a contribuição do movimento socialista é parcial,

pois há nele uma prática que impede sua total parceria, a saber: “credos dogmáticos com todos

os inconvenientes para a liberdade que tem uma religião doutrinal” (ORTEGA Y GASSET,

1993a, p. 277). Samper nos diz que a opção de afastamento do marxismo se dá “por considerá-

lo excessivamente dogmático” (SAMPER, 2001, p. 185). Problema que vários outros autores

reconhecem e que pode ser sintetizado nos dizeres de Maurice Duverger no seu clássico Os

partidos políticos: “realmente, esse dualismo [burguesia e proletariado] é bem aproximativo, e

os sociólogos marxistas o sabem tão bem quanto seus adversários. A estratificação social tem

muito mais nuanças do que sugere esse maniqueísmo grosseiro” (DUVERGER, 1987, p 15).

Mesmo o jovem Ortega, contando então com 26 anos (1909), ao pronunciar uma conferência

para um auditório de trabalhadores na Casa del Pueblo, sede do Partido Socialista Obrero

Español (PSOE), intitulada La ciencia y la religión como problemas políticos, explica a razão

de não poder filiar-se àquele partido: ele diz que por “socialismo” corresponde “humanidade”

e “cultura”, claramente criticando a redução de todo socialismo a marxismo, esclarecendo aos

integrantes do partido que “somente um adjetivo nos separa: vós, sois socialistas marxistas; eu,

não sou marxista” (ORTEGA Y GASSET, 1998a, p. 120). Para Margarida Amoedo, Ortega

concebe “[...] o socialismo como um ideal de cultura, de trabalho e de justiça que se confunde

com os ideais da humanização e da democracia (AMOEDO, 2002, p. 67, itálicos no original).

Além disso, seu afastamento também se dá pela “defesa da espontaneidade e da liberdade em

que se traduz o seu espírito liberal” (Idem, p. 75) que nada tem a ver com o Partido Liberal da

Espanha (Ibidem), já que seu posicionamento é um liberalismo ético e não econômico (GUY,

1984, p. 41).

Vicente Cacho Viu, no prólogo do livro Cartas de un jovem español, esclarece que a

simpatia de Ortega “pelo socialismo se adscreve a uma dessas zonas ‘grises’, integradoras, da

teorização política europeia, a que se estende entre o novo liberalismo e o socialismo

reformista” (VIU, 1991, p. 32, aspas no original) e que ele espera que “o socialismo seja um

coadjuvante eficaz para o trabalho moralizador que atribui, prioritariamente, ao cultivo da

ciência e à difusão da cultura” (Idem, p. 33). Em outras palavras, poderíamos traduzir o

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pensamento de Vicente Cacho dizendo que o que esperava Ortega y Gasset do socialismo era

uma forma de atingir uma atitude verdadeiramente, autenticamente educativa ou cultural,

principalmente porque estas duas tarefas – cultivo da ciência e transmissão de cultura –

compõem, como vimos, o fundamental daquilo que o espanhol considerava como a missão da

universidade. Dessa maneira, se consideramos Paulo Freire um socialista não marxista, como é

comum se argumentar, isso faz com que as ideias de ambos sejam ainda mais parecidas neste

aspecto: o socialismo se apresenta como caminho eficaz, dentre vários possíveis, para atingir a

formação do homem que, por sua vez, também é um meio para a renovação cultural da nação.

Daí é perceptível sua relação com a educação que, repetimos ad nauseum, não se refere à

educação formal.

Entretanto, o que há de distinto entre as duas perspectivas é que, para Ortega, sendo a

política um modo de, a sociedade é compreendida como algo que transcende a própria política,

sendo ela (a política) apenas um elemento social. Em Paulo Freire observamos que política,

Estado e sociedade se confundem. Além disso, o termo “política”, para Freire, abarca toda a

manifestação humana no mundo; para Ortega, a cultura é muito mais ampla e engloba todas as

ações humanas, sejam elas políticas, científicas, religiosas, etc. A questão, nos parece, é a de

que o primeiro compreende a sociedade através de um enfoque político, dando a ela soberania,

de modo que todas as demais questões hão de se submeter: os estudos linguísticos (de como o

signo tem caráter ideológico) e cognitivos (de como a compreensão da frase afeta o sujeito) na

reflexão de “Ivo viu a uva” têm de manter necessária relação com a

conscientização/alienação/opressão; o segundo, por sua vez, acredita que a política é apenas um

dos muitos campos sociais: em “Ivo viu a uva” estão distintos e não necessariamente

interligados os campos cognitivo (os limites da compreensão do indivíduo), linguístico (a

formação das palavras e sua relação intersubjetiva) e político (o uso que porventura se faça da

frase com esse fim). Mais uma vez esclarecemos que o que se procura indicar com estas

afirmações é apenas que são duas perspectivas distintas, ambas com graus de verdade e

falsidade, que podem ser positiva e negativamente valorados e que não temos a pretensão de

argumentar ou advogar sobre a validade desta ou daquela. O que nos importa é apenas perceber

os pontos de aproximação e distanciamento para que possamos, a partir de nossa perspectiva,

que difere da de ambos, realizar uma tessitura possível de uma nova interpretação.

O importante é perceber, para além dessas diferentes perspectivas, que para ambos a

política comprometida e a educação autêntica, que liberta (na acepção filosófica da palavra) são

dimensões inseparáveis do agir humano para um fim último que é a construção de um mundo

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melhor. O que nos importa é somente demarcar os pontos de aproximação e distanciamento, o

viável e o inviável, para que possamos tecer uma ulterior interpretação a partir desse estudo.

Nesse sentido, podemos dizer que a forma de compreender a política que Ortega nos

propõe é, ao final das contas, uma ação pedagógica na medida em que é um movimento

conscientizador, portanto, libertador, pois visa a formação do homem e sua emancipação. Diz

ele em Meditaciones del Quijote: “o homem rende o máximo de sua capacidade quando adquire

a plena consciência de suas circunstâncias. Por elas comunica com o universo” (ORTEGA Y

GASSET, 1993a, p. 319).

Percebemos que a preocupação orteguiana – e não só sua, como também de todo

movimento político, principalmente universitário, que vinha se desenvolvendo em finais do

século XIX e início do XX na Espanha – era a defesa da liberdade e da educação. A esse

respeito, Margarida Amoedo comenta que

é claro para Ortega que, para além do reconhecimento legal do direito à liberdade, é

necessário educar a consciência da liberdade e que a incapacidade que um povo

manifesta de intervir na vida pública – nomeadamente de manifestar em liberdade as

suas posições em relação aos acontecimentos políticos da nação – é sintoma de

problemas educacionais (AMOEDO, 2002, p. 66).

Note-se o quanto este comentário aproxima por si só os modos de encarar os problemas

de seu tempo que tem tanto Ortega y Gasset quanto Paulo Freire. Seria suficiente apenas

substituir algumas expressões dessa citação por outras para que isso se tornasse mais evidente:

lembremo-nos dos conceitos freirianos de “antinomia fundamental”, “transitivação da

consciência” e “inexperiência democrática”, conforme apresentamos no capítulo anterior. Os

pontos estruturais de semelhança, especificamente nesse caso, são: a falta de capacidade do

cidadão para tecer uma posição inteligentemente crítica sobre os problemas nacionais de seu

tempo e sua relação direta, quase simbiótica, com a educação.

Entretanto, é forçoso notar que podemos apenas inferir da leitura das obras de Ortega y

Gasset o termo “conscientização”, pois ele não utiliza esse conceito em nenhum momento,

embora defina “preocupação política” como “a consciência e atividade do social” (ORTEGA

Y GASSET, 1993a, p. 320). Se considerarmos o que diz o espanhol no Prospecto de la “Liga

de Educación Política Española”, podemos começar a traçar algumas semelhanças com o

modo de entendimento do brasileiro. Ali, Ortega entendia que é preciso fazer renascer “violenta

a fé no poder que o homem tem sobre seus próprios destinos. A nova maneira de pensar conduz

a um afã de dinamismo e à exigência de intervir com nossa vontade no contorno” (idem, p.

307). Além disso, embora o madrileno não se detenha em explicar o conceito “conscientização”,

a partir da pesquisa empreendida, percebe-se que ele se refere a isso como sendo o movimento

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educativo que permite ao homem ser um homem culto. Em poucas palavras, por “cultura” o

filósofo entende o repertório de convicções do qual o homem se vale para viver na perene

encruzilhada em que sempre se encontra. A cultura, nessa perspectiva, mais que somente um

conjunto de ideias é construída principalmente de crenças que permitem ao homem fazer-se a

cada instante de existência. Portanto, da cultura faz parte também a irracionalidade, de maneira

que para localizar-se espaço-temporalmente, para perceber seu lugar no mundo e na história, o

homem se vale não só de conhecimentos racionais – as ideias – mas também de uma herança

histórica e irracional – as crenças — que é o subsolo de sua própria existência e dos que o

rodeiam. É esse subsolo que, juntamente às ideias, permite ao homem escolher nas

circunstâncias, realizar ou não sua vocação.

Nessa forma de pensar, a ação de “conscientizar” inferida da leitura dos textos de

Ortega, significa que é preciso que o homem saiba que essa cultura recebida por herança deve

não só ser mantida, mas recriada constantemente para atender aos desafios de cada época.

Dentre esses desafios encontram-se os da prática política. Além disso, a ideia de

“conscientização”, se assemelha à defesa do verdadeiro nome de “verdade”, ou seja, aletheia,

que Ortega faz em Meditaciones del Quijote. Ali ele diz, “quem quiser ensinar-nos uma verdade

que não no-la diga: simplesmente que aluda a ela com um breve gesto, gesto que inicie no ar

uma ideal trajetória, deslizando-nos pela qual cheguemos nós mesmos aos pés da nova verdade”

(idem, p. 335). E reforça mais adiante: “quem quer ensinar-nos uma verdade, que nos situe de

modo que a descubramos nós” (idem, p. 336). Dessa forma, o movimento de conscientização

que percebemos em Ortega parece ser muito parecido com o que percebemos em Freire: não

fala de, nem sobre, mas com, algo que ele já reconhecia em La pedagogía social como

programa político (1910): “eis aqui o valor ético da pedagogia social: se todo indivíduo social

tem de ser trabalhador na cultura, todo trabalhador tem direito a que se dote da consciência

cultural” (idem, p. 518).

Sendo assim, enquanto para Paulo Freire “conscientização” opõe-se à

“alienação/opressão/mutismo”, para Ortega y Gasset “conscientização” opõe-se à incultura,

trazendo uma forte conotação neokantiana de “consciência da consciência” de sua formação em

Marburgo, que, é importante dizer, ele abandonará mais tarde. Aliás, segundo Taltavull, é em

grande medida por essa influência que Ortega interpretará a circunstância de seu país através

de “uma atitude que concebe a Espanha em oposição a um ideal ante a qual adaptá-la”

(TALTAVULL, 2015, p. 141), o que o comentador chama de “patriotismo utópico” (Ibidem).

Entretanto, essa perspectiva é abandonada por Ortega, no olhar de Taltavull, por volta de 1912,

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quando acontece uma espécie de “giro fenomenológico” (Idem, p. 143) que leva o autor a

abandonar essa perspectiva utópico/revolucionária para encarar a política como experimentação

da realidade. Sem deixar de reconhecer, como fez Taltavull, outras duas determinantes dessa

mudança: “(...) a publicação de Del sentimiento trágico de la vida de Unamuno, que provoca a

sistematização do raciovitalismo com as Meditaciones del Quijote (...); e a fundação do Partido

Reformista” (idem, p. 155).

Sendo assim, este mesmo comentador (Idem, p. 145) nos diz que, inicialmente, a

proposta orteguiana era construir uma nação inexistente, mas, a partir de 1913, passa a ser

reformá-la, principalmente por causa da perspectiva fenomenológica que ele adquire. É o que

podemos observar em Meditaciones del Quijote, quando diz Ortega que “havendo negado uma

Espanha, nos encontramos no passo honroso de achar outra” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p.

328). Sobre esse assunto, que já analisamos anteriormente, dissemos o seguinte:

Os estudos contemporâneos indicam que até 1912 Ortega está claramente marcado

pelo neokantismo incorporado pela sua formação na universidade alemã. Sobre a

conferência Sensación, construción y intuición, Javier Martín comenta, em La

recepción de la Fenomenologia y su Filosofia en torno a El tema de nuestro tempo,

que este foi o texto com o qual o filósofo se apresentou em público, pela primeira vez,

como fenomenólogo. Trata-se de referência importante porque é o início do diálogo

que o filósofo iniciou com a fenomenologia e que foi predominante até 1929, quando

as interpretações idealistas das Investigações Lógicas de Husserl o levaram a querer

ir além da fenomenologia. A conferência Sensación, construción y intuición, assim

como as lições de Sistema de la Psicología, integram o momento inicial de

aproximação com a fenomenologia que parece alcançar o ponto culminante no livro

El tema de nuestro tempo, que data do início dos anos 20. Nessa última obra, que o

filósofo considerava representativa do seu pensamento até então, Ortega desenvolve

a mesma linha argumentativa utilizada na conferência de 1913, cuidando primeiro de

negar o positivismo, depois o culturalismo de Heidelberg para afirmar, por fim, a

razão vital como uma variação da fenomenologia de Husserl (CARVALHO;

TOMAZ, 2014, p. 131).

4.5 Apontando algumas relações

Tendo interpretado determinados aspectos da obra orteguiana para encontrar nela a

presença, ainda que não literal, do conceito de “conscientização” ou da ideia “conscientizar”, e

tendo identificado algumas definições do termo no pensamento de Freire, passaremos agora a

argumentar como, a partir de nossa perspectiva, essa ideia pode vir a se relacionar em

determinados aspectos àquilo que podemos ler nas obras do brasileiro que já analisamos

anteriormente.

Em primeiro lugar, voltaremos à proposta política da Liga de Educação Política

Espanhola, para distinguir nela duas fases, o que é resumido na seguinte citação de Vieja y

nueva política:

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a política é tanto como obra de pensamento como obra de vontade; não basta com que

suas ideias passem galopando por umas cabeças; é mister que socialmente se realizem,

e para que se ponham realmente a seu serviço as energias mais decididas de amplos

grupos sociais (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 269)

Na interpretação de Samper, isso se refere a uma soma de organização (vontade) e

extensão da ação política (amplos grupos sociais), “duas ideias que serão chaves para o grupo

que pretende formar a sociedade para a participação diária na vida pública” (SAMPER, 2001,

p. 192). Para Taltavull, essa dualidade de atuação política da Liga apresenta-se como “a

organização da intelectualidade e a constituição do povo espanhol em nação a partir de sua ação

pedagógica” (TALTAVULL, 2015, p. 140). Dualidade que poderíamos relacionar com a práxis

ou seja, no movimento dialético ação-reflexão que encontramos também no pensamento de

Freire. Portanto, a primeira fase, que já indicamos, se concentraria em cuidar das minorias

dirigentes – o que é também e, principalmente, a tarefa da instituição universitária, no olhar

orteguiano. Para esse fim, Ortega irá se filiar, logo após a fundação da Liga, à Junta Nacional

del Partido Reformista, que também tinha a preocupação de ser um “partido da

intelectualidade”. Essa aproximação é examinada por Juan Bagur Taltavull no artigo José

Ortega y Gasset en el movimiento reformista: la Liga de Educación Política Española como

proyección del “patriotismo fenomenológico” (1913 – 1916)21.

Mas somente tratar da política dessa maneira não basta e é justamente na segunda fase,

a partir da formação especial dedicada às minorias para que possam atuar exemplarmente diante

da massa dócil – converter homens em cidadãos, digamos com Taltavull — que podemos

começar a traçar as semelhanças com o pensamento freiriano e, mais que isso, procurar mostrar

como as duas propostas, se observadas do modo como aqui propomos, não são excludentes

entre si, além de ser possível também retirar delas uma síntese fecunda de pensamentos.

O fato de as minorias se organizarem para atuar juntos às massas parte do princípio de

que é um dever de todos intervir na política de maneira vigorosa e consciente (ORTEGA Y

GASSET, 1993a, p. 300). Ora, é o que poderíamos chamar, a partir do que já sabemos a respeito

do pensamento freiriano, de transformação da realidade. Essa tarefa da Liga é explicitada por

Ortega y Gasset na conferência Vieja y nueva política. Ali, ele nos diz que, longe de ser um

movimento cuja preocupação programática se importe apenas com o alcance do poder pelo

próprio partido, a Liga teria a tarefa de infundir “breves e simples ideais políticos, capazes de

acender na chama da fé viva os corações de todo um povo” (idem, p 285), já que se entende

que

21 (Ab Initio, n. 10, p. 153 – 188, 2014, disponível em www.ab-initio.es).

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uma nação não se faz somente com um verso, com um raciocínio ou com um parágrafo

que ocorre a um orador; é um trabalho de todos os dias, de todos os instantes; trabalho

sobre o qual há que estender como um calor, como um amor que faça frutificar a seu

tempo a semente e a acompanhe em sua expansão (idem, p. 292).

Dessa maneira, o que o movimento dos intelectuais espanhóis objetivava não era outra

coisa que “introduzir a atuação política nos hábitos das massas” (idem, p. 302), partindo da

preparação das minorias que, como vimos, seriam responsáveis por intervir nelas, por

conscientizá-las e fazê-las assumir a criticidade de si e de seu lugar na sociedade, já que o

movimento entendia que “enquanto o operário na urbe, o lavrador no campo, a classe média no

povoado [villa] e nas capitais não tenham aprendido a impor a vontade áspera de seus próprios

desejos, por um lado; e a desejar um porvir claro, concreto e sério, por outro” (ibidem) não seria

possível esperar que qualquer mudança política viesse a ocorrer. Parece claro para nós que

“introduzir a atuação política nos hábitos das massas” é justamente o que Freire pretende com

sua atuação político-pedagógica que podemos encontrar descrita desde Educação e atualidade

brasileira até Pedagogia da autonomia. Poderíamos desenvolver esse pensamento, apoiando-

nos nos dizeres de Pedagogia do oprimido: “o que temos de fazer, na verdade, é propor ao

povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como

problema que, por sua vez o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual,

mas no nível de ação (FREIRE, 2008, p. 100) e completar dizendo que “será a partir da situação

presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo que poderemos

organizar o conteúdo programático da educação ou da ação política” (ibidem).

Para nós, ao analisarmos estas propostas, considerando o que já foi dito até aqui, é

possível perceber uma semelhança ou pelo menos uma aproximação no objetivo da educação

como conscientização política. Este é o ponto principal de nossa pesquisa: tendo realizado um

recorte necessário na obra de ambos, e que já foi apresentado ao leitor em capítulos anteriores,

perceber em que aspectos os dois pensadores dizem coisas parecidas a respeito da educação

política. A argumentação que se seguirá tem como objetivo fortalecer este argumento para que

possamos desenvolver, nas considerações finais, embora seja uma argumentação presente ao

longo de todo nosso trabalho, que a atuação política junto às massas é extremamente necessária

para o desenvolvimento humano e saudável da sociedade, para combater a inexperiência

democrática e o império do homem-massa.

Assim como para o primeiro intento Ortega filiou-se à Junta Nacional del Partido

Reformista, para atingir a “segunda etapa” de seu projeto político, que era a nacionalização

através do que ele chamava de “pedagogia social”, ele vai realizar uma parceria com o

semanário España, que visava discutir os mais diversos assuntos relativos ao país, de Economia

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à Filosofia, apresentando fatos e dados dos acontecimentos nacionais da época, com o objetivo

de fomentar nos espanhóis a vontade e a prática da discussão política por meio “da organização

em cada povo de um ‘núcleo de colaboração’” (TALTAVULL, 2015, p. 152, aspas no original),

com o único intuito de que as minorias “deviam entusiasmar o povo para constituir-se juntos

em nação” (Idem, p. 153). O que está de acordo com o caráter cívico e não étnico da ideia que

Ortega y Gasset faz de “nação”. A definição da ideia de nação que tem Ortega y Gasset “é de

caráter cívico e não étnico, posto que considera que a nacionalidade é, antes que um conjunto

de tradições, costumes ou caracteres raciais, a união de elite e massa” (idem, p. 156).

Essa forma de atuação está em profunda comunhão com a frase mais famosa da filosofia

orteguiana e que resume todo o seu pensamento, conforme interpretação comum de seus

comentadores mais importantes: “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me

salvo yo” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 322). Ora, não pode salvar-se da circunstância

quem não a conhece, quem não a identifica. O mesmo reconhece Freire ao dizer que “eu não

posso denunciar a estrutura desumanizante sem penetrá-la para conhecê-la. Não posso anunciar

se não a conheço” (FREIRE, p. 77, in TORRES, 2014), que “a conscientização é isso: um

apoderar-se da realidade” (Idem, p. 78, itálico no original) e que “[...] a conscientização é a

aproximação crítica, a maior possível, da realidade, desvelando-a para conhecê-la [...]”

(ibidem). Essa ideia entrevemos também em Ortega na leitura de A una edición de sus obras,

na qual o filósofo diz que é preciso “[...] desmascarar esse enigma circundante de que eu mesmo

formo parte: saber com quem trato e de quem depende minha vida; conhecer, de uma vez para

sempre, os desígnios e conduta do mundo porque só assim posso descobrir qual é meu autêntico

quefazer nele” (ORTEGA Y GASSET, 1993b, p. 351, itálicos no original). Ora, lemos na

Pedagogia do oprimido a mesma ideia: “se os homens são seres do quefazer é exatamente

porque seu fazer é [...] transformação do mundo” (FREIRE, 2016, p. 195), “[...] transformação

da cultura (idem, p. 245). E ainda: “o diálogo autêntico – reconhecimento do outro e

reconhecimento de si, no outro - é decisão e compromisso de colaborar na construção do mundo

comum. [...] os homens não se humanizam, senão humanizando o mundo” (FIORI, p. 51, in

FREIRE, 2016).

O conceito de “circunstância” em Ortega pode referir-se às circunstâncias em que me

encontro individualmente – como um hábito ruim, por exemplo -, mas também se aplicam ao

coletivo, ao social, de modo que a atuação da Liga visava algo como “esclarecer” ao povo

espanhol a circunstância política identificada por eles. Isso é de extrema importância, pois,

como já dissemos, Ortega está convencido de que “o homem rende o máximo de sua capacidade

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quando adquire a plena consciência de suas circunstâncias” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p.

319). Do mesmo modo e pelo mesmo motivo, podemos perceber a preocupação de Paulo Freire,

antes de mais nada, em desvelar a situação em que se encontram os oprimidos, em fazê-los “ler

o mundo”, em compreender sua situação humana em um contexto mais amplo, para poderem

engajar-se na luta política, objetivo da educação libertadora. Aliás, se ignorássemos por um

instante que aquela citação acima provém de A una edición de sus obras, facilmente, nos parece,

poderíamos atribuí-la à Pedagogia do oprimido, no qual encontramos uma forte argumentação

e conceitos muito parecidos com o desmascaramento da realidade e o autêntico quefazer. Ideia

que nos parece a mesma defendida por Freire no texto Conscientizar para libertar no qual ele

nos diz que os camponeses do Nordeste do Brasil, “[...] pelo fato de serem homens, necessitam

explicar a realidade em que vivem” (FREIRE, p. 74, in TORRES, 2014).

É possível perceber, então, que, em primeiro lugar, em ambos os pensadores, busca-se

construir um conjunto de ideias políticas (teoria) que deem à prática uma sustentação

suficientemente forte para que a atuação da minoria preparada no seio dessa concepção possa

intervir junto às massas, no linguajar orteguiano; ou que permita à liderança revolucionária

construir dialogicamente o conteúdo programático, na linguagem de Freire. É exatamente essa

criação de ideias políticas para rebater a crise que impede a nação de viver, pois tolhe toda

perspectiva do porvir, que Ortega vai chamar de Nueva política22 e que o educador brasileiro

chamará de Pedagogia do oprimido.

Portanto, pudemos compreender, até o momento, o modo como a teoria que dá

sustentação à ação no pensamento dos dois pensadores se assemelha de alguma forma. Mas

acreditamos que também o modo de atuação política – que, juntamente com a teoria,

poderíamos chamar “conscientização”, baseando-nos em nossa argumentação nos itens

anteriores deste capítulo — imaginado por ambos os pensadores também parece se aproximar.

Eis, para a Liga de Educación Política Española, a perspectiva de atuação da minoria dirigente

no seio das massas, ou seja, de como a prática educativo-conscientizadora deveria ocorrer junto

ao povo para sua libertação — sem nos esquecermos que Ortega está se referindo à Espanha de

sua época (1914):

vamos inundar com nossa curiosidade e nosso entusiasmo os últimos rincões da

Espanha: vamos olhar para a Espanha e semeá-la de amor e de indignação. Vamos

22 “Experimento demasiado amor, tenho demasiada fé e conheço demasiado as dificuldades que se encerram nessa

frase: “nova política”. Ouvis bem? Nova – portanto, desde suas bases até seus cimos, desde seus axiomas a seus

últimos corolários, desde suas emoções até seus termos -, nova” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 285, aspas no

original). Em grande medida, segundo Taltavull, o conceito de “nueva política”, bem como o de “España real” —

que não tratamos aqui, mas que está presente no texto de Vieja y nueva política – são influenciados pela leitura

dos Discursos à nação alemã de Fichte (TALTAVULL, 2015, p. 149).

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percorrer os campos em apostólica algazarra, viver nas aldeias, escutar as queixas

desesperadas ali de onde manam; vamos primeiro ser amigos de quem logo viremos

a ser condutores. Vamos criar neles fortes laços de sociabilidade – cooperativas,

círculos de mútua educação; centros de observação e de protesto. [...] Vamos fazê-los

saber a esses espíritos fraternos, perdidos na inércia provincial, que tem em nós

auxiliares e defensores. Vamos estender uma rede de nós de esforço por todos os

âmbitos espanhóis, rede que por sua vez será órgão de propaganda e órgão de estudo

do fato nacional; rede, enfim, que forme um sistema nervoso pelo qual corram ondas

vitais de sensibilidade e automáticas, poderosas correntes de protesto (ORTEGA Y

GASSET, 1993a, p. 285).

Chamamos atenção para o fato de que é preciso ler o trecho com cuidado cirúrgico para

que não se interprete a proposta orteguiana através do prospecto da Liga de Educação Espanhola

pelo viés apontado por Freire na Pedagogia do Oprimido. Ali somos avisados de que acercar-

se “das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem corresponder à sua visão do

mundo, mas não necessariamente à do povo” (FREIRE, 2008, p. 98) trabalha na contramão da

libertação. A proposta de Ortega y Gasset poderia ser interpretada, partindo da visão freiriana,

como existindo na linha tênue que separa o que poderíamos chamar de revolucionário autêntico,

coerente, e o revolucionário ingênuo que se deixa cair, sem aperceber-se disso, em uma prática

reacionária.

Em Vieja y nueva política encontramos uma explicação ligeiramente mais detalhada

dessa metodologia:

nós iremos aos povoados e às aldeias, não só pedir votos para obter atas de legisladores

e poder de governantes, senão que nossas propagandas serão por sua vez criadoras de

órgãos de sociabilidade, de cultura, de técnica, de mutualismo, de vida, enfim, humana

em todos os seus sentidos: de energia pública que se levante sem gestos precários

frente à tendência fatal em todo Estado de assumir em si a vida inteira de uma

sociedade (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 276).

Nota-se, portanto, que a) a proposta de atuação política dos intelectuais integrantes da

Liga, cujo porta-voz é Ortega y Gasset, é uma proposta liberal - aliás, “radicalmente liberal”,

como o autor se coloca no texto -, pois reconhece a autonomia da sociedade frente ao Estado;

b) que quando Ortega propõe a atuação política junto aos camponeses, visando a criação de

laços de sociabilidade e círculos de mútua educação, ele está professando sua fé na prática

educativa para responder ao problema político que ele identifica na Espanha de sua época23.

23 Ortega y Gasset não abandona essa reflexão e em El hombre y la gente podemos ver sua forma sistematizada.

Nessa obra, ao analisar a sociedade, o filósofo dirá que o fato social ou comportamento humano é um fato da vida

humana, realidade radical. E que, dada a solidão característica do homem, o social surge da convivência e não da

vida íntima. Dentre os tipos de convivência, os usos (comportamentos aprendidos, impessoais e irrefletidos

adotados na convivência social) constituem o que é imposto. Ademais, os usos sociais têm três aspectos

fundamentais: 1) mantém-se por pressão social, 2) são irracionais e 3) são atividades extraindividuais. Os efeitos

produzidos pelo uso: a) permitem uma pseudoconvivência com qualquer indivíduo, b) propiciam ao homem

progredir, pois os usos são veículos de herança cultural acumulada e c) sendo irracionais, determinam de antemão

algumas atitudes sociais do homem, permitindo a ele criar, o que é o núcleo da vida autêntica (Cf. CARVALHO;

TOMAZ, 2016, p. 168 ss).

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Ora, isso nos lembra o que disse Freire em Cuernavaca em 1971: “uma das grandes tarefas da

educação libertadora é convidar as massas a tornarem-se utópicas, isto é, denunciantes”

(FREIRE, p. 93, in TORRES, 2014).

Esse método de atuação da Liga espanhola, em nossa perspectiva, se assemelha ao que

Freire propõe já em Educação como prática da liberdade. Ali, lemos que, para ele, não basta

ir ao povo com fórmulas prontas, mas que seria necessário construir com eles o método de

atuação para que a educação, ou, diríamos, essa conscientização, fizesse sentido. Eis o que o

recifense no diz sobre isso:

Nunca [...] abandonamos a convicção que sempre tivemos, de que só nas bases

populares, e com elas, poderíamos realizar algo de sério e autêntico para elas. Daí

jamais admitirmos que a democratização da cultura fosse a vulgarização, ou, por outro

lado, a doação ao povo do que formulássemos nós mesmos, em nossa biblioteca, e

que a ele entregássemos como prescrições a serem seguidas (FREIRE, 2014, p. 134)

Essa proposta pode ser vista também ao longo de toda a Pedagogia do oprimido,

principalmente no terceiro capítulo, no qual Freire nos apresenta desde o modo de

comportamento do investigador junto ao investigado, até os tipos de canais de decodificação

— visual, tátil ou auditivo — que podem ser utilizados. Como exemplo, poderíamos nos

perguntar o que significa “viver nas aldeias” conforme propõe a Liga. Podemos dizer, a partir

do que diz a Pedagogia do oprimido, que isso pode significar

[...] que os investigadores, em sua fase, surpreendam a área em momentos distintos.

É preciso que a visitem em horas de trabalho no campo; que assistam a reuniões de

alguma associação popular, observando o procedimento de seus participantes, a

linguagem usada, as relações entre diretorias e sócios; o papel que desempenham as

mulheres, os jovens. É indispensável que a visitem em horas de lazer; que presenciem

seus habitantes em atividades esportivas; que conversem com pessoas em suas casas

[...] (FREIRE, 2008, p. 122).

Ora, nos parece plausível completar a proposta de atuação da Liga de Educação Política

Espanhola, através de um exercício intelectual, com o que encontramos na obra de Freire,

principalmente citando dois trechos específicos da Pedagogia do oprimido:

a nossa preocupação [...] é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece

constituir o que vimos chamando de pedagogia do oprimido: aquela que tem de ser

forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de

recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas

objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na

luta por sua libertação [...] (idem, p. 34).

Esta prática implica, por isto mesmo, que o acercamento às massas populares se faça,

não para levar-lhes uma mensagem “salvadora”, em forma de conteúdo a ser

depositado, mas, para, em diálogo com elas, conhecer, não só a objetividade em que

estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; os vários níveis de percepção

de si mesmos e do mundo em que e com que estão (idem, p. 99, aspas e itálico no

original).

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Com estas citações e exemplos estamos apenas querendo apresentar ao leitor nosso

modo de interpretar o pensamento educativo, político e cultural dos dois autores, percebendo

nele uma aproximação, conforme vimos argumentando. Nos parece, é preciso esclarecer, que

ambos se baseiam em uma mesma teoria - a de que é preciso fazer com que o povo reflita sobre

sua situação/circunstância - e pretendem uma mesma prática – atuação nessa

situação/circunstância com vistas a alterá-la através da cultura.

Podemos perceber ainda que a forma de atuação em que se baseia a Liga poderia se

enquadrar naquilo que Freire entende como sendo o objetivo fundamental de uma pedagogia

do oprimido, que é “lutar com o povo pela recuperação da humanidade roubada” (idem, p. 98),

pois “quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual

elas devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se ‘inserem’ nela criticamente” idem,

p. 44, aspas no original), ensinamento que provavelmente aprendeu em seus anos nos

Movimentos de Cultura Popular no Recife de Miguel Arraes (1960), já que em Cartas à

Cristina, ele nos diz:

o MCP se inscrevia entre quem pensava a prática educativo-política e a ação político-

educativa como práticas desocultadoras, desalienadoras, que buscavam um máximo

de consciência crítica com que as classes populares se entregassem ao esforço de

transformação da sociedade brasileira. Se uma sociedade perversa, injusta, autoritária,

para outra, menos perversa, menos injusta, mais aberta, mais democrática (FREIRE,

1994, p. 172).

Essa nos parece uma preocupação semelhante a que Samper reconhece na atuação da

Liga ao dizer que seu objetivo era fazer “ver a realidade tal e como é para saber o que se quer

de maneira que não se condenem à esterilidade histórica” (SAMPER, 2001, p. 182), com a

diferença de que o problema, para Ortega, não se resume a um antagonismo entre opressores e

oprimidos, classe dominante e classe dominada, embora ele reconheça que essa dicotomia

exista, ela não pode ser representativa da totalidade da organização social que é de natureza

muito mais complexa, pois, como já dissemos, o espanhol não compreende a política como o

ápice das ações humanas, mas apenas um modo de vida dentre diversos outros.

Ora, continua Freire, “pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato desta

libertação é transformá-los em objeto que se devesse salvar de um incêndio” (FREIRE, 2008,

p. 59), pois “a ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, ‘ação cultural’ para a

liberdade, por isto mesmo, ação com eles” (idem, p. 60, aspas no original). Ideia que já

despontava muito antes em Educação e atualidade brasileira, como se lê:

o que importa, realmente, ao se ajudar o homem é ‘ajudá-lo a ajudar-se’. É promovê-

lo. É fazê-lo agente de sua própria recuperação. É, repitamos, pô-lo em uma postura

conscientemente crítica diante de seus problemas e dos problemas de sua comunidade

(FREIRE, 2003, p. 16, aspas no original).

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Algo que também encontramos em um dos primeiros escritos de Ortega: Meditaciones

del Quijote. Com o perdão da repetição, conforme já apresentamos anteriormente, ele nos diz

nesta obra que “quem quiser ensinar-nos uma verdade que não no-la diga: simplesmente que

aluda a ela com um breve gesto, gesto que inicie no ar uma ideal trajetória, deslizando-nos pela

qual cheguemos nós mesmos aos pés da nova verdade” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 335).

Essa prática que tem como incidência da ação a transformação da própria realidade, é, para

Freire, a de um “educador humanista” (FREIRE, 2008, p. 98) e parte, como lemos no quarto

capítulo da Pedagogia do oprimido, de uma teoria dialógica da educação que se configura como

teoria revolucionária.

Há aqui, algo que é preciso olhar com cuidado para evitar um equívoco de interpretação:

podemos notar uma diferença ao ter em mente que o brasileiro chama atenção para o fato de

que “a questão não está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas sobre

a sua ação” (idem, p. 44). Explicar às massas é o que parece propor Ortega na Liga,

principalmente por causa do seu entendimento da relação minoria-massas, que já explicamos

anteriormente, o que fica claro na seguinte citação: “pelo periódico, o folheto, o comício, a

conferência e a conversação privada faremos penetrar nas massas nossas convicções e

tentaremos que se disparem correntes de vontade” (ORTEGA y GASSET, 1993a, p. 304).

Nenhum destes modos de acercar-se das massas parece ter, note-se bem, inicialmente,

primeiramente, um caráter de “construção conjunta”, como propõe a pedagogia de Freire, já

que para ele, se lê em Educação e atualidade brasileira, a questão “não está, realmente, em que

as classes dirigentes, superpostas ao povo, lhe apresentem e imponham a solução de seus

problemas” (FREIRE, 2003, p. 22). Portanto, aqui seria possível fazer o apontamento de uma

clara diferença entre o modo de pensar dos dois autores, mas acreditamos que essa distinção

não é, realmente, uma diferença concreta, principalmente pelo fato de que por “classe dirigente”

Paulo Freire entende algo muito diferente de Ortega, isto é, compreende a expressão como uma

definição social e não individual (ontológica), como faz o espanhol. Além disso, o fato de que

Ortega e os integrantes da Liga não compreendessem o verbo “explicar” de modo pejorativo

como encontramos em Freire, não significa que o que estavam propondo era uma

opressão/ditadura de ideias.

Ora, note-se, a atuação da Liga, embora possa vir a apresentar determinadas soluções

ao povo, não a faz impositivamente ou através de uma educação do tipo “bancária”, pois

podemos perceber em diversos momentos que a preocupação da Liga é desenvolver a

autonomia da massa, conscientizando-a sobre sua própria realidade, ou seja, como massa, e,

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como vimos, através do diálogo com ela. Do mesmo modo, a nosso ver, ainda que Freire

defenda que o conhecimento deva ser construído conjuntamente com o povo, ele parte de um

“método”, de um meio de atuação que foi pensado “para eles” e não “com eles”, mas que –

recorrendo a uma expressão muito antiga, esteja isto claro como o sol do meio dia – não

significa que seja imposta de nenhuma maneira. O que quero dizer, sem meias palavras, é o

seguinte: Paulo Freire, ainda que atuasse em comunhão com o povo para construir o conteúdo

programático a que estariam eles sujeitos, partia já de pressupostos, de determinadas convicções

adquiridas com a experiência que teve em outros lugares, como lemos em seus textos de caráter

autobiográfico e que procuramos tratar no capítulo dedicado à sua biografia, o que significa que

a construção conjunta, a priori – e isso significa necessariamente – deveria partir de algo que

antecedesse a construção conjunta, ainda que a coleta das palavras e dos temas geradores fosse

feita na comunidade a que o método se destinava. É o que notamos no quarto capítulo de

Educação como prática da liberdade, no qual nos são apresentadas cinco fases do método,

sendo que somente a primeira conta com a participação do grupo de pessoas a quem se destina.

Nos outros quatro momentos, as palavras geradoras são escolhidas a partir de uma série de

categorias que são criadas e analisadas não pelo povo a qual são destinadas, mas pelo grupo

universitário a que Freire pertencia, sem, portanto, serem escolhidas por aqueles a quem eram

destinadas (FREIRE, 2014, p. 149). Ademais, somente após o estudo e avaliação deste grupo

universitário sobre quais seriam as melhores palavras, elas voltavam ao povo, de modo que,

embora partisse inicialmente deles, o método de Freire transcendia essa relação. O que não só

é bastante óbvio como natural, pois é claro que uma relação de ensino/aprendizagem tem de

considerar um saber mais e um saber menos, o que não significa que estes sejam papeis fixos,

que não se alterem.

Para apresentar outro argumento que justifique a utilização do termo “explicação”

presente na prática referente à atuação da Liga, podemos citar o que diz Freire sobre Lukács na

Pedagogia do oprimido. O filósofo húngaro propõe também como metodologia o “explicar” às

massas, reconhecendo que o pensar dialético da práxis está implícito em seu pensamento, pois

sabemos que ele parte da noção marxista de organização social, embora reconheça na

infraestrutura não só a economia como também a educação. Vejamos como Freire analisa a

presença do termo problemático “explicar”:

Expliquer aux masses leur propre action é esclarecer e iluminar a ação, de um lado,

quanto à relação com os dados objetivos que a provocam; de outro, no que diz respeito

às finalidades da própria ação [...]. [...] de qualquer forma, o dever que Lukács

reconhece ao partido revolucionário de “explicar às massas sua ação” coincide com a

exigência que fazemos da inserção crítica das massas na sua realidade através da

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práxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a si mesma (FREIRE, 2016, p.

77 e 78, aspas no original, negrito nosso).

Aliás, Freire diz logo em seguida que esta é justamente a raiz da “pedagogia do

oprimido”, fazer com que os homens “se saibam ou comecem criticamente a saber-se

oprimidos” (Idem, p. 78). Algo que podemos notar justificado no seguinte comentário da

Pedagogia do oprimido, no qual lemos a importância de fazer com que os “despolitizados”

reflitam sobre a própria realidade/situação/circunstância: “ao terem a percepção de como antes

percebiam, percebem diferentemente a realidade, e, ampliando o horizonte do perceber, mais

facilmente vão surpreendendo, na sua ‘visão de fundo’, as relações dialéticas entre uma

dimensão e outra da realidade” (FREIRE, 2008, p. 127, aspas no original). O que poderíamos

completar dizendo como Ortega em La rebelión de las masas: “surpreender-se, estranhar-se, é

começar a entender. [...] Tudo no mundo é estranho e maravilhoso para umas pupilas bem

abertas” (ORTEGA Y GASSET, 1994b, p. 376). Portanto, o verbo “explicar” que poderia ser

utilizado para definir a tarefa inicial da Liga em sua metodologia de ação política junto às

massas parece seguir o mesmo sentido do proposto por Lukács e, assim, aproxima-se, mais do

que se afasta, do preconizado por Freire. Tendo esclarecido este aspecto problemático,

continuemos nosso exercício que visa apontar relações entre a atuação política junto às massas,

ou simplesmente conscientização, que podemos encontrar nas obras de Ortega y Gasset e de

Paulo Freire.

Notamos que a proposta da Liga em criar um “órgão de estudo do fato nacional” nos

campos e aldeias, já conta com a influência fenomenológica que Ortega y Gasset recebe por

volta de 1912/1913, o que leva Taltavull a afirmar que “a fenomenologia da nação significa

assim estudar a Espanha para conhecer sua situação real e partir daí para construir a nação

cívica” (TALTAVULL, 2015, p. 146). Ora, isso nos parece ser outro ponto de aproximação ao

que Paulo Freire denomina, no quarto capítulo da Pedagogia do oprimido, de “formas focalistas

de ação” (FREIRE, 2008, p. 161). Ali podemos ler que

quanto mais se pulverize a totalidade de uma área em “comunidades locais”, nos

trabalhos de “desenvolvimento de comunidade”, sem que estas comunidades sejam

estudadas como totalidades em si, que são parcialidades de outra totalidade (área,

região etc.) que, por sua vez, é parcialidade de uma totalidade maior (o país, como

parcialidade de uma totalidade continental), tanto mais se intensifica a alienação

(ibidem, aspas e parênteses no original).

Esse método de conscientização na perspectiva freiriana faz com que seja “lícito esperar

que os indivíduos passem a comportar-se em face de sua realidade objetiva da mesma forma,

do que resulta que deixe de ser ela um beco sem saída para ser o que em verdade é: um desafio

ao qual os homens têm que responder” (idem, p. 113).

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Um aspecto importante que encontramos na prática política que ambos os autores

parecem defender, é a importância do diálogo. Ainda que Ortega y Gasset não se dedique a

tratar especificamente do diálogo na tarefa da Liga, podemos inferir sua valorização na leitura

dos textos apresentados até o momento – em citação anterior, lemos que é preciso “escutar as

queixas desesperadas”, “ser amigos de quem viremos a ser condutores” e “criar fortes laços de

sociabilidade” como cooperativas, círculos de mútua educação e centros de observação e de

protesto. Portanto, não parece ser de outra maneira que os integrantes do movimento pretendiam

atingir seus objetivos políticos, a não ser dialogicamente.

Dito isto, compreendendo a importância dessa espécie de “teoria da ação comunicativa”,

bem aos moldes habermasianos, e partindo da hipótese central de nosso trabalho deixar indicado

como as teorias de Ortega e Paulo Freire têm pontuais aspectos em que acreditamos haver

semelhança, não podemos deixar de fazer um breve comentário sobre a necessidade

fundamental e essencial que tem o diálogo como elemento dessa metodologia de ação política

conscientizadora. E já que Freire se dedica a tratar especificamente do tema, pediremos licença

a Ortega y Gasset para fazer de nosso conterrâneo o porta-voz desse elemento que notamos

também, embora não explicitamente, no procedimento utilizado pela Liga de Educação Política

Espanhola e em toda ação política que Ortega empreende até seu abandono em 1932.

A importância do diálogo, para o brasileiro, se explicita na definição do conceito de

práxis que ele empresta do marxismo. Assim como para Marx, dizer a “palavra verdadeira” –

isso que ele chama de ação/reflexão – é o mesmo que transformar o mundo (FREIRE, 2008, p.

90). Em outras palavras, a práxis é, por definição, não só a própria ação política — “não há

denúncia verdadeira sem compromisso de transformação” (ibidem) – como a própria realização

do ser humano individualmente – “existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-

lo” (ibidem, itálico no original) – e também socialmente – “dizer a palavra verdadeira (...) não

é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém

pode dizer a palavra verdadeira sozinho (...)” (ibidem). É aquilo que Paulo Freire denominará,

em diversos momentos, de “vocação do ser mais”. Essa ideia se nos parece assemelhar com a

reflexão orteguiana sobre a linguagem realizada em El hombre y la gente. Ali, ele diz:

são curiosos esses pesadíssimos livros que chamamos dicionários, vocabulários,

léxicos: neles estão todas as palavras de uma língua e, sem embargo, o autor deles é o

único homem que quando as escreve não as diz. Quando, escrupuloso, anota os

vocábulos “estúpido” e “ridículo”, não os diz de ninguém a ninguém. O qual nos

coloca diante do mais imprevisto paradoxo: que a linguagem, quer dizer, o

vocabulário, o dicionário, é todo o contrário à linguagem e que as palavras não são

palavras senão quando são ditas por alguém a alguém. Só assim, funcionando como

concreta ação, como ação vivente de um ser humano sobre outro ser humano, tem

realidade verbal. E como os homens entre os quais as palavras se cruzam são vidas

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humanas e toda vida se acha em todo instante em uma determinada circunstância ou

situação, é evidente que a realidade “palavra” é inseparável de quem a diz, de para

quem é falada, e da situação em que isto acontece. Tudo o que não seja tomar assim a

palavra é convertê-la em uma abstração, é desvirtuá-la, amputá-la e ficar só com um

fragmento exânime dela. Assim, ao pronunciar eu as vezes “amor meu”, ao não ser

ditas a ninguém, não seriam um dizer e, ao não sê-lo, tampouco uma autêntica ação

verbal. Seriam só som, o que os linguistas chamam fonema. (ORTEGA Y GASSET,

1997a, p. 242 – 243, itálicos e aspas no original).

Compreendemos, então, considerando que para o recifense a ideia de uma atuação

política junto aos “oprimidos” é a de agir com eles e não sobre eles, o diálogo é elemento não

só necessário, como o mais eficaz, justamente por ser o diálogo - assim como já salientavam

autores de referência na formação de Freire, como Marx e Buber - a única via de realização do

ser, a única forma de realização da vocação de ser mais do homem. A relação com o sociólogo

alemão fica clara se nos lembrarmos dos seguintes trechos de A ideologia alemã: “[A

consciência] se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em uma

palavra, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência

real, prática” (MARXS, ENGELS, 2001, p. 24). Além disso, é possível encontrar também em

O Capital a preocupação com o diálogo e a variação necessária da linguagem para alcançar

diferentes “níveis” da consciência e mesmo para iniciar um projeto político. Ali ele diz: “os

representantes e dirigentes políticos da classe dos fabricantes ordenavam uma atitude diferente

e uma linguagem diferente em face dos trabalhadores” (MARX, 1996, p. 395). Em Marxismo

e filosofia da linguagem, Bakhtin nos explica exatamente a importância dessa ação, pois “a

consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso

de suas relações sociais” (BAKHTIN, 1988, p. 35). Dessa maneira, o diálogo se torna

importante nessa metodologia de ação política junto às massas, justamente porque, para

proporcionar a consciência de, o que quer dizer, nesse caso, de pertencimento a, de vivência em

– engajamento em Freire, cultura em Ortega – é preciso antes partir de uma comunidade

semiótica da qual a linguagem é ponto central. Dessa maneira, percebemos o motivo pelo qual

Freire dá tanto valor ao diálogo.

Assim, para que o diálogo venha a existir e, também, como podemos perceber, para que

a própria mudança política possa ocorrer (se admitirmos, como o faz Freire, que a práxis é

“palavra verdadeira”) é preciso que o diálogo se condicione a uma série de virtudes, como amor,

humildade, fé nos homens, esperança e o que ele chama de “pensar verdadeiro ou crítico”

(FREIRE, 2008, p. 95)24. E talvez, por nossa conta, devamos acrescentar a coragem. Coragem

24 Cf. Educação e atualidade brasileira, p. 141. Em nota de rodapé, Freire apresenta as “virtudes” necessárias para

o diálogo. Virtudes que aparecem mais tarde também no capítulo 3 e 4 de Pedagogia do oprimido. Este é um dos

pontos em que percebemos a cristandade de Freire, já que estas “virtudes” são as mesmas que encontramos na

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que homens da ação como Paulo Freire e Ortega y Gasset demonstraram ao trabalhar no sentido

da autonomia dos “menores” (no sentido kantiano), enfrentando um sistema político repressor

ou mesmo a opressão do mutismo e da ignorância.

Em termos mais específicos, percebemos que a perspectiva do diálogo em Paulo Freire

fundamenta sua prática política, pois, para dialogar – sem esquecer das condições apresentadas

– é preciso que o interlocutor tenha voz, mais que isso, tenha voz própria, autêntica e coerente,

portanto, autônoma. De modo que uma educação que tem o “bancarismo” como metodologia,

não pode, nunca, ser libertadora, pois impede que o sujeito pronuncie a palavra verdadeira. Daí

destaca-se outra aproximação com o pensamento orteguiano, já que a proposta da Liga — e,

digamos, muito mais, é a preocupação de toda a filosofia de Ortega – é justamente a

autenticidade, a autonomia, a liberdade como proposta de solução dos problemas individuais e

sociais, compreendendo essa relação em perene dialeticidade. Se quiséssemos dizer como

Martin Buber, é somente quando existe um reconhecimento de que o outro é um “Tu” e não

simplesmente um “Isso”, que a libertação e autenticidade podem vir a existir.

O silenciamento, o cerceamento da fala, parecem ser a grande opressão denunciada por

Freire. Daí a proposta das palavras e temas geradores. Metódo que ele provavelmente empresta

de Frank Laubach, convidado por Vargas a realizar uma intervenção pedagógica no Brasil em

1943, tendo ministrado diversas palestras no Recife neste mesmo ano e que procura alfabetizar

politicamente através do diálogo nascido de uma atitude crítica e que, ao mesmo tempo,

proporciona criticidade, definição que o brasileiro aprende e atualiza de Jaspers (FREIRE,

2014, p. 141). Essa proposta tem importância ímpar para a compreensão da atuação política de

Freire. Na Pedagogia do oprimido lemos que “investigar o tema gerador é investigar [...] o

pensar dos homens referindo à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua

práxis” (FREIRE, 2008, p. 114). É justamente aí que o diálogo fortemente se apresenta como

método verdadeiro, pois “[...] a dialogicidade da educação começa na investigação temática”

(idem, p. 133). Não é por acaso, conforme vimos apontando, que Freire dedica toda a obra a

discutir o que nos apresentou no quarto capítulo, no qual disseca a teoria de ação antidialógica,

que, segundo ele, serve ao opressor, e a teoria da ação dialógica, libertadora e revolucionária.

O diálogo e a revolução, para o autor, são lados de uma mesma moeda, caracteristicamente

impossíveis de serem cindidos, principalmente se considerarmos a definição que ele tece em

Extensão ou comunicação?:

Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 13. É necessário ressaltar apenas o seguinte: que todas estas “virtudes” só

existem no diálogo oprimido-oprimido, já que o diálogo oprimido-opressor é impossível.

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Se o sujeito “A” não pode ter no objeto o termo de seu pensamento, uma vez que este

é a mediação entre ele e o sujeito “B”, em comunicação, não pode igualmente

transformar o sujeito “B” em incidência depositária do conteúdo do objeto sobre o

qual pensa. Se assim fosse – e quando assim é -, não haveria nem há comunicação.

Simplesmente um sujeito estaria (ou está) transformando o outro em paciente de seus

comunicados (FREIRE, 1983, p. 45, aspas, parênteses e itálico no original).

Isso nos leva a fazer um esclarecimento: é preciso chamar a atenção para o fato de que,

segundo a redação de Pedagogia do oprimido, o diálogo só pode acontecer entre oprimido-

oprimido ou oprimido-liderança revolucionária (que pertence também à classe oprimida). O

advérbio de modo “indiscutivelmente”, que aparece onze vezes na Pedagogia do oprimido, se

refere sempre ao diálogo entre oprimido-opressor/opressor-oprimido. Além disso, conforme já

destacamos, o termo “impossível”, das também onzes vezes em que é utilizado ao longo da

obra, sete se referem ao diálogo oprimido-opressor/opressor-oprimido, quer dizer, de sua

impossibilidade. Este é um exemplo — do qual deixamos de lado suas variações como “não é

possível” ou “não pode existir” que também aparecem relacionadas ao diálogo — de que,

embora Freire dê imenso valor ao diálogo, essa forma de ação é restrita aos integrantes da classe

oprimida com seus companheiros. “Por isto”, o recifense está convencido, “é que somente os

oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe que oprime, nem

libertam, nem se libertam” (FREIRE, 2016, p. 82), pois “qual é o futuro do opressor além da

preservação de seu presente de opressor?” (FREIRE, p. 77, in TORRES, 2014). Outro exemplo

encontramos em Extensão ou comunicação?, no trecho em que Freire diz que “o diálogo não

pode travar-se em uma relação antagônica” (FREIRE, 1983, p. 27). O motivo pelo qual ele

acredita ser assim está claro no que já foi dito: para Freire, o “opressor” ou “a classe opressora”

é incapaz das virtudes necessárias ao diálogo: amor, humildade, fé nos homens, esperança e o

“pensar verdadeiro ou crítico”. Diz ele que “este encontro amoroso, não pode ser, por isso

mesmo, um encontro de inconciliáveis” (Ibidem), que “os homens reacionários, os homens

opressores, não podem ser utópicos, não podem ser proféticos e, porque não podem ser

proféticos, não podem ter esperança” (FREIRE, p. 77, in TORRES, 2014), e ainda que “é óbvio

e impressionante, mas a conscientização para a libertação jamais poderá ser desenvolvida pelos

opressores [...]” (Idem, p. 78, itálico nosso). Lemos também na palestra Desmitificação da

conscientização, sobre a qual já comentamos que “aqueles que não querem transformar o

mundo só podem me considerar satânico e eu tenho que reconhecê-los reacionários. Como

poderia haver conciliação entre eles e eu?” (FREIRE, p. 91, in TORRES, 2014).

Dessa maneira, acreditamos ter apresentado ao leitor os momentos em que

compreendemos existir uma aproximação entre as ideias de Paulo Freire e Ortega y Gasset no

que diz respeito à metodologia de ação política junto às massas que ocorre a partir de um diálogo

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entre educação e política. Essa expressão, temos utilizado como relativo ao conceito de

“conscientização” para poder fazê-la pertencer a ambos os pensadores. Buscamos também

elucidar os argumentos que nos levam a acreditar nessa aproximação, embora reconheçamos

que o diálogo existente entre as ideias de ambos é mais discordante que concordante, pois

partem de interpretações distintas e até antagônicas da sociedade. Além disso, reconhecemos

que muito mais poderia ser dito a esse respeito e que nosso trabalho é apenas um modo de

interpretação desse diálogo que se manteve fiel à sua perspectiva. Resta-nos, finalmente,

algumas considerações finais nas quais apresentaremos rapidamente como se pode perceber o

seguimento das ideias políticas na vida de Ortega e Freire para além do período que recortamos

para esta pesquisa e buscaremos tecer um argumento final que retome a justificativa do estudo

que empreendemos nestas páginas, sem esquecer o que nos ensinou Ortega: “a originalidade é

o erro e uma espécie de frivolidade. Todo o discreto foi pensado já uma vez – disse Goethe -;

só nos resta ensaiar uma expressão nova e mais precisa” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p.

149).

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DIÁLOGO: PARTICÍPIO E GERÚNDIO

“Vejo na crítica um fervoroso esforço para potenciar a

obra elegida. [...] Procede [o crítico] a orientar a crítica

em um sentido afirmativo e dirigi-la, mais que a corrigir

o autor, a dotar o leitor de um órgão visual mais perfeito.

A obra se completa completando sua leitura” (ORTEGA

Y GASSET, 1993a, p. 325)

Através de um exercício de transposição espaço-temporal que não ignora o contexto ao

qual essas ideias se aplicam, podemos encontrar no que viemos intitulando de metodologia de

ação política junto às massas - que se mostrou relativo ao conceito de “conscientização” em

uma relação entre educação e política - uma reflexão que nos parece de atualidade indiscutível,

desde que com algumas considerações, como veremos, além de momentos de abertas

semelhanças entre a forma de pensar de ambos os autores, conforme procuramos deixar

indicado e que discutiremos adiante. Em outras palavras, acreditamos que nossa argumentação

seguiu o caminho de mostrar que seria possível assemelhar determinados aspectos dos modos

de agir em que ambos os autores se baseiam, de maneira a atingir uma proposta aparentemente

eficaz de atuação pedagógica como mudança social, o que significa que tentamos aproximar o

discurso dos dois no sentido da relação entre educação e política. Entretanto, isso não quer dizer

que essa atuação deva ser feita exatamente do modo como eles pensavam, pois vivemos em

outro tempo e em outro lugar. O que parece não ter mudado, contudo, é, juntamente à relação

educação/política, a importância da abertura dialógica ao sujeito para fazer com que ele garimpe

justamente o tesouro de sua autonomia, de sua autenticidade, de sua humanidade sem se

esquecer do compromisso moral que mantém com seus companheiros de existência, com a

alteridade. Isso, a nosso ver, é uma das grandes contribuições de nossos autores para pensar a

educação na atualidade, que continua, acreditamos, predominantemente inautêntica e

antidialógica. A aproximação destas duas propostas pode servir ainda para que o trabalhador,

em suas questões específicas, se engaje na luta por seus direitos, para que as instituições

assumam sua responsabilidade social, para que as minorias se tornem exemplares e as massas

dóceis a seu exemplo, dizendo com Ortega, e para que possamos nos alfabetizar politicamente,

falando com Freire. Assim, talvez seja possível fazer da sociedade um ambiente saudável para

o homem. Nesse sentido, eles se completam mutuamente, pois tanto na perspectiva orteguiana

até os anos 30, como na de Paulo Freire, “a verdadeira educação nacional é esta educação

política” (ORTEGA Y GASSET, 1993a, p. 302) que faz com que o mundo não seja “o que se

fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da educação, a incidência da ação

transformadora dos homens, de que resulte a sua humanização” (FREIRE, 2008, p. 87).

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Portanto, ainda que encontremos inúmeras diferenças entre as duas formas de encarar o

problema, nossa pesquisa se concentrou em esclarecer que estes distanciamentos não nos

impedem de realizar uma síntese para retirar daí reflexões a respeito não só da educação, como

da própria política, e, diríamos mais, da própria vida. Poderíamos, como queria Ortega y Gasset,

preparar uma elite consciente, responsável, autêntica e exemplar para que ela intervisse nas

massas e, como sonhava Freire, pensar essa intervenção a partir dos “círculos de cultura”, da

ação dialógica e autônoma. Mesmo com as diferenças que procuramos apontar, podemos ainda

encontrar o elo de união justamente na concepção que ambos guardam da educação como

transformadora da realidade social e política, como proporcionadora das condições de postura

histórica para a vitalidade nacional, como diz Ortega y Gasset, ou como práxis libertadora,

como propõe Paulo Freire. A frase de Juan Marichal se encaixa muito bem aqui: “junto ao

periodista o pedagogo”.

Antes, contudo de partirmos para as considerações finais desta pesquisa, gostaríamos de

tratar de uma questão em especial: a de mostrar como se deu o caminho político em Ortega y

Gasset após a década de 30, pois, o sabemos, ele abandona a atuação no campo político. Em

relação a Freire, considerando que sua vida e sua obra se confundem em muitos aspectos,

consideraremos que o comentário sobre o seguimento de suas ideias políticas para além do

período que delimitamos nessa pesquisa já tenha sido realizado no capítulo em que tratamos de

sua biografia. No que diz respeito a Ortega, é preciso tratar do tema com um pouco mais de

vagar, mas ainda brevemente, iniciando pela exposição dos caminhos tomados pela Liga de

Educación Política Española.

Esse grupo de intelectuais, mesmo com – e talvez por causa das — suas parcerias com

a Junta Nacional del Partido Reformista e com o semanário España, desfez-se pouco tempo

depois, em 1916. O motivo parece não destoar da causa da maioria dos fracassos políticos: uma

cisão dentro do movimento, que colocava “políticos” de um lado e seguidores de Ortega de

outro (TALTAVULL, 2015, p. 153). Por discrepâncias de ideias, Ortega também se desliga do

semanário em junho de 1915 e do Partido Reformista em finais do mesmo ano. Segundo

Taltavull,

o herdeiro da Liga, o binômio Partido Reformista-España, fracassa porque os

intelectuais não abandonaram o utopismo intelectual. Contra o otimismo de Vieja y

nueva política, em maio de 1915, considera Ortega que os prejuízos não se encontram

unicamente nos conservadores, senão também entre os reformistas (Idem, p. 154).

Esse “fracasso” culminará na fundação de El Espectador, cuja importância na obra do

filósofo espanhol é indicada pelo professor José Maurício de Carvalho em El problema del

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conocimiento en El Espectador de Ortega y Gasset25. Nesse momento, “entra Ortega em uma

fase de ‘ensimesmamento’ que se traduz não unicamente em seu alheamento momentâneo do

intento de direção dos intelectuais, senão também em seu abandono da pedagogia social” (Idem,

p. 156, aspas no original), que sabemos ser o abandono da política. Algum tempo depois (1931),

como dissemos, Ortega volta ao campo político como deputado, mas se decepciona mais uma

vez. Esta decepção o faz abandonar definitivamente a política, algo que a nosso ver já vinha se

apresentando em sua meditação, principalmente a partir de Mirabeau o el político (1927), no

qual ele explicita a diferença entre o homem da política e o intelectual. Paulo Freire, por sua

vez, não parece ter tido decepções deste tipo, já que sua biografia (e sua bibliografia) nos

mostram que ele continuou a defender com coragem, esperança e compromisso seus objetivos

político-pedagógicos com implicações sociais até o fim da vida.

José Ortega y Gasset percebe, não sem antes ter se aventurado o suficiente, que através

da política não seria possível uma transformação nacional, nem mesmo educacional. Aliás,

poderíamos dizer, neste momento Ortega parece reconhecer que seu erro foi ter confundido

educação e política como se fossem apenas uma coisa. É a conclusão de um tecelão de que

aquele tear já não serve mais como meio de transformação de ideias em figuras no tapete. Ao

contrário, o tear de Freire continuou funcionando e lhe servindo muito bem. Não nos importa

tecer uma peça utilizando nem um, nem outro, mas apenas reaproveitar alguns dos fios

restantes, tendo aprendido com os erros e acertos daqueles artesãos para nos arriscar

ousadamente a errar e acertar por nossa conta, a criar nossa própria obra de arte.

Ao longo deste trabalho, pudemos perceber que em ambos os autores existe uma espécie

de elasticidade vital que leva para fora sem despregar-se de um centro subjetivo e que este é o

pressuposto de compreensão do homem – portanto, antropológico - que estará como pano de

fundo para a compreensão da vida humana na sociedade. A conscientização, nesse sentido,

compreendida como a tentativa de ajudar os seres humanos a compreender-se como seres

inacabados, portanto, responsáveis por si e pelo outro, inclusive na construção de um ambiente

coletivo, não pode preterir da discussão sobre a autenticidade, pois, para Ortega, a vida

inautêntica é consequência da vida inculta, característica determinante do homem-massa e,

portanto, deve ser combatida pela cultura, e, para Freire, a vida inautêntica é ação irrefletida e

reflexão não praticada, é ação antidialógica, opressora e alienante e, portanto, deve ser

combatida pela educação libertadora e transformadora. Além disso, temos a intuição de que

25 Estúdios Orteguianos (Madrid: Fundación Ortega-Marañón, n. 29, 99-114, 2014).

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vivemos em uma época de radical inautenticidade que se reflete não só na vida íntima de cada

qual, mas na vida social e coletiva, significada nas instituições sociais. Concordamos, assim,

com ambos, pois parecem certos ao propor a educação como principal combatente nessa arena

sangrenta, o que não significa que ela seja a única responsável. Como utilizamos a alegoria da

arena, que aprendemos de Bakhtin, sabemos que ali ocorrem alianças, visando um objetivo

comum. Nesse aspecto, a educação parece ser nossa principal aliada: para nós, seres sem

natureza, seres vazios que precisam fazer-se a cada instante, que precisam criar-se e recriar-se

a cada desafio. Vivemos uma época de intenso desafio na esfera política, não só em nosso país,

e nos agarramos no que podemos para tentar salvar a nós mesmos e à situação. Ortega e Freire

nos apontam um caminho a seguir e, embora este caminho, como a divina parábola, venha a ser

estreito, difícil e perigoso, pode nos conduzir a um modo eficaz de compreensão da realidade.

Portanto, percebemos que a conscientização, a metodologia de ação política junto às

massas, isto é, uma ação educativa e libertadora, se traduz, no pensamento de ambos, mas

somente a partir de nosso exercício de síntese, em um modo de relação entre educação e política

que visa a atuação na sociedade. Essa atitude pode contribuir para a melhoria do ser humano e,

consequentemente, da sociedade em que vive, enquanto ambiente coletivo de encontro das

subjetividades. Ao longo de nossa argumentação também encontramos problemas específicos

e que talvez sejam mais motivo de afastamento que de aproximação. Entretanto, nosso objetivo

não foi - e continua a não ser - a tentativa de equiparar os dois autores que convidamos a dialogar

nesse trabalho. Isso, parece claro, é impossível por uma série de razões que não nos concerne

aqui, mas que talvez possamos tratar em outro momento.

Resta, agora, voltar à nossa questão norteadora: identificar e elucidar em que medida

o diálogo entre algumas ideias filosófico-pedagógicas do filósofo espanhol e do educador

brasileiro, em suas semelhanças e diferenças, pode contribuir para pensar o papel da

educação na prática política conscientizadora, libertadora, que não ignora a importância

da formação do indivíduo, nem seu caráter de ser histórico que se faz na sociedade. Em

resumo, como é possível pensar, a partir de ambos, uma metodologia de ação política

junto às massas a partir de um viés educativo?

Nossa argumentação, nos capítulos anteriores, nos levou a apresentar ao leitor o modo

como compreendemos uma aproximação, apesar de todas as diferenças existentes, no modo

como Paulo Freire e Ortega y Gasset compreendem a atuação conscientizadora ou educativa

junto aos despolitizados, aos analfabetos políticos. Como então, após ter realizado essa

aproximação, poderíamos pensar uma metodologia de ação que possa aliar os interesses

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pedagógicos e políticos? Embora nos baseemos nas interpretações dos dois autores, nos parece

necessário uma atualização, um balanço do que neles se encontra, pois Ortega comentava de

uma Espanha do início do século XX e Freire deteve-se a interpretar uma sociedade brasileira

em transição que era muito diferente da de hoje. Com isso em mente, elegemos seis aspectos

fundamentais que acreditamos poderem constituir uma semelhança no modo de compreender a

relação entre educação e política, visando a mudança da realidade social, que ambos possuem.

Em primeiro lugar, parece ser essencial considerar a visão antropológica que ambos

compartilham e que sabemos vir da fenomenologia: o homem é uma dualidade dialética, é

consciência de si e do mundo, das circunstâncias, das situações que o rodeiam. Essa dualidade

é inseparável.

Em segundo lugar, retomamos a perspectiva histórica de ambos: a educação, entendida

como formação do homem, deve considerar que, com base na visão antropológica, o homem é

construtor de mundo, transformador da realidade; que ele só se faz, só é si mesmo quando

transforma o mundo, quando age na história. Portanto, o homem é histórico. Sua vida, sua razão,

constitui-se historicamente.

Em terceiro lugar, deve ser considerada a importância da alteridade no processo, ideia

que encontramos em nossos dois autores: a presença do outro está patente na minha definição

enquanto sujeito, seja para aprender comigo, seja para ensinar-me. Além disso, preciso, ao agir,

ter em mente que meu semelhante também age, que somos ambos subjetividades em um

ambiente coletivo comum e que nossas ações têm implicações para todos nesse ambiente

intersubjetivo. Na importância do outro, está implícita a ação dialógica.

Em quarto lugar, o estabelecimento e a capacitação da liderança, que argumentamos

ser possível encontrar no pensamento do espanhol e do brasileiro. Desde que se considere os

três tópicos anteriores, não faz diferença de que modo esta liderança é estabelecida: se por voto

universal, se por indicação, se deve ser apenas um representante ou um grupo deles. O que nos

parece importante é que é preciso haver uma autoridade estabelecida no que diz respeito aos

assuntos relativos à coletividade enquanto grupo pertencente a um mesmo espaço comum, que

seja respeitada de modo verdadeiro: não através da imposição, mas do reconhecimento. Não se

pode olvidar, contudo, que, em ambos os autores, encontramos, como aspecto importante, a

ideia de que estes papeis não são fixos. O que importa aqui não é o estabelecimento de um papel

social, mas do reconhecimento de uma autoridade.

Nestes quatro pontos que elencamos, acreditamos estar a essência do movimento e da

ação de conscientização que apresentamos no capítulo anterior. Portanto, são também a

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circunferência de aproximação que delimitamos entre os autores de referência de nosso estudo.

Percebemos que dessa síntese, que embora seja derivada de nosso exercício científico, já está

presente nas obras consultadas, é possível retirar lições para pensar um novo tipo de agir

educativo que não é nem o proposto por Ortega, nem o proposto por Freire, já que ambos

viveram em outras épocas e não enfrentaram os mesmos desafios que hoje enfrentamos. Isso

significa que, em nossa perspectiva, é isso o que há neles de atual e é isso que o fazer educativo

focado em seu pensamento deve preconizar.

Entretanto, reconhecemos que há mais dois aspectos a serem acrescentados e que são

são específicos de cada um dos autores. Assim, juntamente aos quatro anteriormente

mencionados, adicionamos um quinto elemento retirado exclusivamente da filosofia orteguiana

e que é a revalidação do papel da Universidade através do estabelecimento da sua missão.

Acreditamos que o processo educativo não pode deixar de considerar o ensino superior que,

ainda que se estabeleça como educação formal, é hoje indispensável ao desenvolvimento social,

seja através de sua ação na comunidade, seja através do fomento de grupos de discussões sobre

os problemas atuais do país. Acreditamos, portanto, ser necessário definir a missão da

Universidade e as suas tarefas, do modo proposto por Ortega: o centro de cultura, a preparação

profissional e o desenvolvimento científico. Desde que tenhamos aqueles quatro aspectos por

base, acreditamos ser possível trazer de volta à Universidade, enquanto instituição formal de

constituição de profissionais e cientistas, o papel importante de contribuição e apoio ao homem

que quer transformar a realidade.

A este aspecto ligamos outro que se torna dele indistinto e que retiramos

especificamente do pensamento de Freire e que é a crítica à educação bancária ou bancarismo.

De nada adiantaria uma base solidificada de compreensão do homem e do processo educativo,

inclusive da missão e papel da Universidade, se a educação (que nada tem a ver aqui com escola

ou outro ambiente “formal”) se transformasse, como diz Freire, em “verbalismo”, em palavras

vazias, em simplesmente depósito de conhecimento, em educação passiva. Ora, a crítica à

educação bancária está pautada nos quatro aspectos anteriores: considera o entendimento

antropológico baseado na dualidade consciência-mundo do homem, sua historicidade, a

importância da alteridade e a autoridade reconhecida da liderança. Sem essa crítica, sem evitar

cair nesse tipo falso de educação, não é possível que a Universidade seja centro de cultura, nem

prepare bons profissionais e cientistas.

Dessa maneira, acrescentamos dois aspectos que são específicos das ideias de cada um

de nossos autores a este exercício de síntese que procuramos fazer, tendo em vista que um modo

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de refletir sobre a educação em nossos dias, se quiser tornar-se uma meditação efetiva, uma

prática real no mundo, deve considerar a antropologia e a pedagogia como fizeram, por

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