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Orientação Substancial do Direito de Conflitos Contemporâneo Song Xiao A evolução do direito de conflitos a nível mundial durante o século XX não foi plena. O percurso dessa evolução traduziu-se pela "estabilidade - revolução - desenvolvimento - estabilidade progressiva". A revolução conflitualista americana denunciou indubitavelmente a grave crise que o direito de conflitos clássico enfrentava. Depois da revolução conflitualista, quais as características globais e a tendência da evolução do direito de conflitos contemporâneo? É esta a questão que o presente texto vai abordar. 1. A regra "cega" e a revolução conflitualista (1) O método do bilateralismo no direito de conflitos contemporâneo A função fulcral das normas de conflito reside em resolver os conflitos entre as normas do direito privado de diferentes países e em regular as relações jurídicas internacionais em matéria civil e comercial. F. C. von Savigny derrotou o unilateralismo na teoria dos estatutos que tinha quinhentos anos de história, propondo um novo método que consistia no bilateralismo das normas de conflito. 1 A sua doutrina "the natural seat of legal relation" tem orientado muitos países europeus que tomam as regras de conflito bilaterais como ideologia fundamental, Doutorando em direito privado internacional do Instituto de Estudos do Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Wuhan. 1 Os métodos do unilateralismo e do bilateralismo são dois métodos fundamentais para resolver o conflito de leis. O unilateralismo parte da natureza e conteúdo das regras concretas do direito privado do próprio país, analisando o alcance dos seus efeitos dentro e fora do país; o bilateralismo parte da relação jurídica que provoca o conflito, procurando-lhes as normas competentes razoáveis. Para a discrição pormenorizada dos métodos do unilateralismo e do bilateralismo consultar: F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours (1992 - II), p. 32 - 43. 1

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Page 1: Orientação Substancial do Direito de Conflitos Contemporâneo · (3) Contributos da revolução conflitualista americana A revolução conflitualista americana iniciou-se no século

Orientação Substancial do Direito de Conflitos Contemporâneo

Song Xiao∗

A evolução do direito de conflitos a nível mundial durante o século XX não foi plena. O percurso dessa evolução traduziu-se pela "estabilidade - revolução - desenvolvimento - estabilidade progressiva". A revolução conflitualista americana denunciou indubitavelmente a grave crise que o direito de conflitos clássico enfrentava. Depois da revolução conflitualista, quais as características globais e a tendência da evolução do direito de conflitos contemporâneo? É esta a questão que o presente texto vai abordar.

1. A regra "cega" e a revolução conflitualista (1) O método do bilateralismo no direito de conflitos

contemporâneo

A função fulcral das normas de conflito reside em resolver os conflitos entre as normas do direito privado de diferentes países e em regular as relações jurídicas internacionais em matéria civil e comercial. F. C. von Savigny derrotou o unilateralismo na teoria dos estatutos que tinha quinhentos anos de história, propondo um novo método que consistia no bilateralismo das normas de conflito.1 A sua doutrina "the natural seat of legal relation" tem orientado muitos países europeus que tomam as regras de conflito bilaterais como ideologia fundamental, ∗ Doutorando em direito privado internacional do Instituto de Estudos do Direito

Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Wuhan. 1 Os métodos do unilateralismo e do bilateralismo são dois métodos fundamentais

para resolver o conflito de leis. O unilateralismo parte da natureza e conteúdo das regras concretas do direito privado do próprio país, analisando o alcance dos seus efeitos dentro e fora do país; o bilateralismo parte da relação jurídica que provoca o conflito, procurando-lhes as normas competentes razoáveis. Para a discrição pormenorizada dos métodos do unilateralismo e do bilateralismo consultar: F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours (1992 - II), p. 32 - 43.

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construindo ramos de direito independentes. As normas de conflito anglo-saxónicas começaram a ser implementadas tardiamente. Estas normas foram orientadas pela teoria dos direitos adquiridos de Dicey e Beal, e com base nelas foram desenvolvidas pouco a pouco muitas regras de conflito bilaterais que tiveram o elemento geográfico como elemento de conexão. Os dois sistemas jurídicos acabaram por atingir o mesmo objectivo.

Na história das normas de conflito, o método do bilateralismo marcou uma época. Pela primeira vez foi tratado com igualdade o direito privado dos vários países. A lei do foro deixou de ter prevalência e ficou numa posição neutra. Sob a orientação das regras de conflito bilaterais, o direito privado dos diferentes países ultrapassou as fronteiras e foi aplicado noutros países.2 O "carácter internacional" das normas de conflito foi assim posto em destaque, o que constituiu uma exigência intrínseca do seu objecto, i.e., a relação jurídica civil ou comercial internacional. Outra contribuição muito importante do método do bilateralismo foi a superação da rigidez da aplicação jurídica da teoria dos estatutos. A teoria dos estatutos partia geralmente das regras do direito privado local, explorando o seu âmbito espacial e temporal de aplicação. No entanto, as regras concretas do direito privado de um determinado país quase nunca previam expressamente o seu âmbito espacial e temporal de aplicação internacional, o que tornava difícil presumir qual o seu âmbito de aplicação. Além disso, muitas relações jurídicas civis e comerciais a nível internacional não encontraram as regras de direito privado correspondentes no sistema do direito privado local. O método do bilateralismo partiu da relação jurídica que originava o conflito e procurou para cada relação jurídica um sistema do direito privado com competência razoável, tendo superado a rigidez da teoria dos estatutos. O método do bilateralismo estabeleceu as bases do direito de conflitos contemporâneo.

(2) As regras cegas No século XX, a partir da década de trinta, os estudiosos

americanos do direito de conflitos iniciaram, por influência da escola do direito realista, uma revolução sobre o direito de conflitos moderno (clássico). Essa censura atingiu o topo depois da segunda guerra

2 F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours

(1992-II), p. 3.

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mundial. A escola do direito realista foi a corrente filosófica americana que exerceu maior influência no século XX. Esta corrente censura o conceptualismo e o formalismo do direito e defende um estudo profundo da verdadeira função e dos efeitos práticos do direito na vida social. As regras de conflito bilaterais foram censuradas radicalmente devido às suas deficiências intrínsecas. Todo o percurso da revolução conflitualista foi no sentido de defender que as regras de conflito bilaterais clássicas podiam ser consideradas regras "cegas", pois não permitiam encontrar os resultados materiais eventuais do caso. A "cegueira" devia-se às deficiências do método do bilateralismo, tais como:

A falta dum pressuposto O bilateralismo caracterizava-se pela igualdade de tratamento do

direito privado dos diferentes países. O direito do local do foro ocupava uma posição neutra e as regras do direito privado dos diferentes países podiam trocar-se e aplicar-se. No entanto, Savigny, fundador do método do bilateralismo, tinha como pressuposto teórico o conceito da "homogeneidade ocidental". "Ele considerava que os países cujo direito tinha origem no direito romano estavam ligados por um laço que facilitava a aplicação interna do direito estrangeiro. A religião cristã também fortalecia essa homogeneidade. Para Savigny, a religião cristã e o direito romano são dois factores que contribuíram para a homogeneidade das nações ocidentais." 3 Pela homogeneidade do direito, Savigny deduz que os países têm a obrigação de reconhecer o regime jurídico dos outros países. É precisamente com base neste entendimento que ele consegue abandonar radicalmente a tradição do territorialismo da teoria dos estatutos e preconizar a aplicação das regras de conflito bilaterais para resolver os problemas de conflitos de leis existentes nos países com tradição cristã e com origem no direito romano. Por isso, a visão da igualdade do direito privado de Savigny caracteriza-se por sinais do centralismo do continente europeu (ou pelo menos do centralismo ocidental).

As duas guerras mundiais derrotaram o conceito hegemónico e centralizador da Europa ocidental. Os países orientais e outros de tradição jurídica e religiões diferentes penetraram na concepção dos ocidentais sobre o "mundo". Perante os conflitos do direito privado

3 H. Batiffol, Droit International Privé, tradução por Chen Hongwu e outros, Editora

de Traduções Zhong Guo Dui Wai, 1989, p. 331.

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alargados bruscamente a todo o mundo, os países de religião cristã e com influência do direito romano deixaram de tratar com igualdade o direito privado dos diferentes países. Segundo o pensamento de Savigny o âmbito de aplicação das normas de conflito ultrapassava os países de religião cristã e cujo direito tinha origem no direito romano, por isso tornou-se demasiadamente idealista e deixou de ser prático. Os estudiosos do direito realista puseram em questão profunda as normas de conflito clássicas por causa desta falta de pressuposto.

Valorização do procedimento e desvalorização do direito material Através dum elemento de conexão territorial, as regras de conflito

bilaterais submetiam a relação jurídica em matéria civil e comercial internacional ao sistema de direito privado de certos países. O elemento de conexão era uma concretização do "seat" da relação jurídica. A escola de Savigny considerou que esse elemento revelava a relação de conexão ou subordinação efectivamente existente entre uma determinada relação jurídica e o direito de certo território4. O elemento de conexão fazia parte do facto jurídico e a relação jurídica baseava-se no facto jurídico. Assim um elemento de conexão adequado podia revelar a natureza de toda a relação jurídica. O sistema do direito privado orientado pelo elemento de conexão era mais adequado. Mas isto era a situação ideal, porque na realidade na maior parte das relações jurídicas, todos os factos jurídicos se misturavam, por isso não era fácil extrair a parte dos factos jurídicos que tinha um significado determinante, não sendo possível também encontrar um elemento de conexão com significado determinante. Na relação jurídica civil e comercial internacional, os factos jurídicos com significado determinante dispersavam-se geralmente por diversos países e não se concentravam num só. Por isso, as regras de conflito bilaterais de Savigny continham um forte componente de préexaminismo.

Como faltava à relação jurídica legitimidade quanto à pertença a determinado sistema de direito privado, existia uma barreira insuperável entre a escolha do direito e a aplicação concreta do direito material. As regras de conflito bilaterais uma vez que valorizavam apenas o procedimento para a escolha do direito, mas davam pouca

4 Ver F. C. von Savigny, Conflito de Leis e Âmbito de Aplicação Espacial e

Temporal das Regras Jurídicas, tradução por Li Shuangyuan e outros, Editora Fa Lu, 1991, p. 67.

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importância à aplicação do direito material, não podiam assim garantir uma aplicação justa do direito material. O defeito das regras de conflito bilaterais era valorizar o procedimento e desvalorizar o direito material, sendo claras quanto ao procedimento e cegas quanto ao direito material. Estas foram as causas que levaram Cavers a iniciar uma revolução conflitualista. Segundo Cavers, "Tanto as regras de conflito teóricas como as regras de conflito práticas tentaram na medida do possível colocar os problemas jurídicos no âmbito da competência territorial e não no âmbito da resolução justa de determinadas causas,…a atribuição do tribunal não é a livre escolha do direito, mas sim a resolução de determinados litígios…, se não se ultrapassar a questão de saber de que forma uma escolha jurídica pode afectar a resolução de conflitos, como é possível fazer uma opção sensata?"5 As regras de conflito bilaterais não conseguem prever o resultado concreto dos casos. Esta natureza "cega" pode ser considerada um defeito fundamental das normas de conflito clássicas.

Problema técnico na aplicação das regras de conflito bilaterais No percurso da aplicação das regras de conflito bilaterais,

existiram muitos problemas técnicos insuperáveis que agravaram o seu grau de "cegueira". As regras de conflito bilaterais eram adequadas para os territórios onde coexistiam as tradições do direito romano e da religião cristã. Existia uma homogeneidade entre os diferentes direitos privados desses territórios, por isso quando se aplicavam em transposição, os processos de determinação e interpretação da lei competente eram semelhantes. O alargamento da visão ocidental do "mundo" provocou mudanças nos conceitos jurídicos, no pensamento e até mesmo em toda a tradição jurídica a nível mundial. Para resolver os conflitos de lei em casos concretos, as regras de conflito bilaterais enfrentaram conflitos maiores e mais difíceis de superar. Relativamente a isto, as regras de conflito bilaterais são incompetentes. Além disso, através do elemento de conexão, as regras de conflito bilaterais não apontaram para a lei competente concreta mas para todo o sistema de direito privado de um país, que era considerado "a leap into

5 D. F. Cavers, A Critique of the Choice-of-Law Problem, 47 Harv. L. Rev., 1933.

Ver também G. Parra-Aranguren, General Course of Private International Law, Recueil des cours, 1988-III, p. 161.

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darkness"6 (uma queda na escuridão). No vasto sistema do direito privado estrangeiro, é difícil encontrar uma lei competente que oriente as regras de conflito, uma vez que estão em causa tradições jurídicas diferentes. Por isso, as regras de conflito bilaterais apenas ajudam o juiz a orientar-se numa pequena parte do percurso.

Os problemas gerais das regras de conflito bilaterais, que incluem a qualificação, o reenvio, a questão do pressuposto e a adaptação da lei competente, são demasiadamente abstractos e difíceis de dominar, podemos dizer que existe mesmo uma grande barreira que se ergueu entre as regras de conflito e a lei competente concreta. Mesmo no Ocidente, as normas de conflito clássicas são uma grande torre de marfim. Por tudo isto podemos imaginar quais foram as influências dessas normas de conflito clássicas na prática judicial da China, que é um país que só há pouco tempo recebeu o direito ocidental.

(3) Contributos da revolução conflitualista americana A revolução conflitualista americana iniciou-se no século XX, nos

anos 30, e terminou nos anos 70 com o segundo "restatement of the conflict of laws". Surgiram entretanto vários estudiosos famosos das normas de conflito, tais como Cavers, Currie, Ehrenzweig e Reese. Estes estudiosos fizeram uma censura radical às normas de conflito clássicas que tinham como sujeito as regras de conflito bilaterais, e apresentaram as suas doutrinas.7

A "revolução" representou muitas vezes destruição mais do que construção. As teorias da revolução conflitualista americana relativamente à escolha do direito acabaram por se alinhar todas sem excepção no direito do foro, era a chamada "homeward trend" (tendência para casa). Um tratamento igual para o direito privado de todos os países e a colocação do direito do foro numa posição neutra

6 F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours,

1992-II, p. 36. 7 B. Currie apresentou a "doutrina da análise dos interesses estaduais". O objectivo

da doutrina de A. A. Ehrenzweig era considerar a aplicação do direito do foro como princípio fundamental das normas de conflito, era a chamada "nova doutrina do direito do foro". W. L. M. Reese apresentou o famoso "princípio da conexão mais estreita". Para uma descrição mais pormenorizada em chinês sobre a revolução conflitualista americana, ver Li Hao Pei: A Revolução Americana do Direito Internacional Privado, in Obras Escolhidas de Li Hao Pei, Editora Direito, edição de 2001, p. 390-423.

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trouxeram a vitalidade às normas de conflito. Indubitavelmente, a "homeward trend" (tendência para casa) significou a decadência das normas de conflito clássicas e também uma escolha provisória das normas de conflito durante o período transitório entre a destruição revolucionária e a reconstrução racional. No mundo contemporâneo, os sistemas de direito privado dos diferentes países gozam ainda de autonomia e independência, tendo a relação jurídica do direito civil e comercial internacional um desenvolvimento mais significativo do que anteriormente. Os conflitos do direito privado aumentaram em vez de diminuírem. As normas de conflito clássicas precisam de uma reforma, assumindo um maior significado histórico.

O significado mais importante da revolução conflitualista americana residiu em possibilitar às regras de conflito clássicas, cujo sujeito são as regras de conflito bilaterais, o reconhecimento da sua maior deficiência, que é a valorização do procedimento para a escolha do direito em detrimento do resultado da aplicação do direito material. É impossível eliminar radicalmente a "cegueira" das normas de conflito no quotidiano em que existe ainda uma exclusão entre a cultura jurídica e a tradição jurídica, mas as próprias normas de conflito têm que se esforçar nesse sentido. De facto, a revolução conflitualista não abalou nem destruiu o fundamento das normas de conflito clássicas. Pelo contrário, as normas de conflito clássicas deram uma resposta activa tendo sido criadas novas hipóteses com esta revolução. Nos últimos vinte anos, muitos países atingiram o auge da produção legislativa no direito internacional privado;8 baseando-se numa certa manutenção da tradição do bilateralismo reformulado e absorvendo a excelente doutrina desenvolvida pela revolução conflitualista. A tendência geral dos últimos vinte anos tem sido ultrapassar os vícios das "regras cegas" e diminuir a distância entre o procedimento para a escolha do direito e o 8 As legislações internas mais representativas são: as duas "Restatements of the

Conflict of Laws" dos Estados Unidos de 1971, alteradas em 1986; O Direito Internacional Privado da Áustria em 1978; o Capítulo VIII dos Princípios Gerais do Direito Civil da China em 1986; as duas alterações à Lei de Aplicação do Código Civil da Alemanha em 1986 e 1999; o Direito Internacional Privado Federal da Suíça de 1987; a Lei de Aplicação das Leis Contratuais da Inglaterra em 1990; as Propostas de Lei do Direito Internacional Privado da Inglaterra em 1995, etc. Quanto às legislações internacionais, para além duma série de convenções internacionais produzidas nos últimos vinte anos pela Conferência do Direito Internacional Privado de Haia, existe ainda a Convenção do Direito Internacional Privado de Montevidia de 1979 e a Convenção de Roma de 1980 sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais.

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resultado da aplicação do direito material. É esta a orientação substancial do direito de conflitos contemporâneo.

2. Primeira orientação substancial: exclusão

limitada das regras bilaterais Partindo da perspectiva do direito de conflitos, o sistema jurídico

dum país divide-se em três tipos de regras: o primeiro tipo de regras afastam completamente as orientações das regras de conflito e não admitem que as regras de conflito lhe delimitem o âmbito temporal e espacial - são as regras do direito público e do direito processual - que têm assim um componente de territorialidade; o segundo tipo de regras precisa das regras de conflito para lhes delimitar o âmbito de aplicação temporal e espacial a nível internacional - são as regras do direito privado; o terceiro tipo são as próprias regras de conflito.

Para superar o problema da "valorização do procedimento e da desvalorização do direito material", as normas de conflito contemporâneas fizeram uma pequena alteração à delimitação atrás referida. Esta alteração consistiu em extrair uma pequena parte das regras do segundo tipo, i.e., as regras do direito privado, que se aplicavam directamente para afastar a aplicação das regras de conflito bilaterais, garantindo assim a concretização do resultado substancial. Do ponto de vista da "doutrina da análise dos interesses estaduais", esta parte das regras representa os grandes interesses do Estado e deve ser aplicada com prevalência. A clássica cláusula da ordem pública era um método indirecto desta exclusão, agora temos mais dois métodos de exclusão directa, que são a exclusão pela restrição constitucional e a exclusão pelas leis de aplicação imediata.

(1) Exclusão indirecta pela cláusula da ordem pública Quando as regras de conflito bilaterais apontam para a lei

competente do país estrangeiro, mas em consequência da sua aplicação são violados os princípios morais e os princípios fundamentais do direito do foro, afasta-se imediatamente aquela lei, o que representa a exclusão indirecta da aplicação das regras de conflito bilaterais. Nas normas de conflito clássicas, todos os resultados substanciais das normas bilaterais são controlados e analisados por uma única cláusula da ordem pública. No entanto, a cláusula da ordem pública é ambígua o que dá ao juiz um grande poder discricionário e

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geralmente é controlada pelas normas de conflito dos diferentes países. Caso contrário, a utilização abusiva da cláusula da ordem pública representaria a derrota do fundamento do bilateralismo e a eliminação das normas de conflito.

Nestes termos, não é ideal utilizar a cláusula da ordem pública para aumentar o efeito substancial das normas de conflito. Apesar da aplicação da cláusula da ordem pública ter afastado indirectamente as regras de conflito bilaterais, prevenindo o resultado substancial do desagrado do país do foro, qual será a lei aplicada depois da exclusão da lei estrangeira competente? Ainda não existe uma resposta lógica, mas na prática esta matéria é alvo de discussão. A cláusula da ordem pública serve como medida passiva de prevenção em casos muito excepcionais e não consegue obter um resultado substancial específico. É exactamente o contrário do que acontece com a restrição constitucional e com as " leis de aplicação imediata".

(2) Exclusão pela restrição constitucional Em alguns âmbitos do direito privado, para conseguir

determinados objectivos políticos ou resultados substanciais, o país do foro afasta a orientação das normas bilaterais e aplica as disposições concretas da Constituição. A Constituição é a lei suprema no sistema jurídico de um país e as normas de conflito são apenas um ramo de direito. As cláusulas concretas da Constituição podem, portanto, afastar as correspondentes normas de conflito. Existem dois tipos de restrição e exclusão das normas de conflito pela Constituição. Um tipo de restrição é exercida pelos países em que não existe uma unificação entre o direito privado e as normas de conflito, e que têm como objectivo fazer face às necessidades de defesa e consolidação das políticas federais; outro tipo é a restrição exercida pelos países onde existe um direito privado unificado, e cujo objectivo é reforçar as cláusulas substanciais da Constituição relativamente à protecção dos direitos humanos fundamentais9.

Os Estados Unidos é um exemplo típico do primeiro tipo. Cada Estado tem o seu sistema de direito privado e as suas normas de conflito. A Constituição Federal constitui uma restrição às normas de conflito dos diferentes Estados. As cláusulas mais famosas são a "Full

9 P. E. Herzog, Constitutional Limits on Choice of Law, Recueil des cours (1992-III),

p.249-257.

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Faith and Credit Clause" do nº 1 do artigo 4º e a "Due Process Clause" do nº 1 do artigo 14º da Constituição Federal revista. Os objectivos principais destas duas cláusulas são defender e consolidar os Estados federais, coordenando o seu direito privado e proteger os interesses do arguido de forma a evitar que lhe seja aplicado um direito privado que não tenha nenhuma relação com ele. Actualmente, existe uma tendência para a uniformização dos critérios de aplicação das duas cláusulas. No caso "Allstate Insurance Co. V. Hague"10, o tribunal apresentou o seguinte critério: "Para que o direito material de um Estado seja escolhido e aplicado de acordo com a Constituição, esse Estado tem que ter uma conexão ou uma série de conexões importantes com aquele caso processual e a aplicação da norma jurídica tem que defender simultaneamente os interesses desse Estado para evitar uma escolha jurídica arbitrária e uma injustiça radical"11. Assim, podemos ver que o critério de aplicação dos dois princípios da Constituição Federal absorveu a doutrina da análise dos interesses estaduais de Currie e o princípio da conexão mais estreita de Reese. Se alguma regra de conflito dum Estado vier contrariar esses dois princípios, deve ser afastada, aplicando-se directamente os princípios constitucionais.

Por sua vez, a Alemanha é o exemplo clássico do país com um direito privado unificado, cuja Constituição restringe e afasta as normas de conflito. Depois da Segunda Guerra Mundial, por influência da revolução conflitualista americana, a Alemanha começou a dar atenção à restrição e exclusão das normas de conflito pela Constituição como forma de obter efeitos substanciais directos. Isto está representado plenamente nas cláusulas da lei básica da Alemanha que atribuem direitos fundamentais aos cidadãos, que são aplicadas directamente, afastando ou alterando as regras do direito de conflitos clássicas. No âmbito do direito da família, como as regras de conflito consideravam a nacionalidade ou o domicílio do marido como o único elemento de conexão e negligenciavam as normas constitucionais sobre a igualdade entre homem e mulher, foram imediatamente afastadas. Do mesmo modo, as normas de conflito que foram determinadas por factores relacionados com os pais e negligenciavam os interesses dos filhos, foram substituídas pela lei básica da Alemanha.12

10 Allstate Insurance Co. V. Hague, 449US (1981). 11 Peter Hay, Conflict of Laws (2ª edição), West Publication Co. (1994), p.223-234. 12 F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours

(1992-II), p.97.

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Como existem no nosso país quatro zonas jurídicas, coexistem quatro sistemas de direito privado e de normas de conflito que se confrontam. Devido a razões históricas, não existem na Constituição nem nas Leis Básicas de Hong Kong e de Macau disposições que coordenem o direito privado e as normas de conflito dessas quatro zonas jurídicas, o que constitui uma lacuna da nossa Constituição e das duas Leis Básicas. Estamos na fase inicial da judicialização da Constituição e por isso a questão relativa à exclusão das regras de conflito pelas cláusulas constituicionais para conseguir efeitos substanciais merece uma profunda discussão.

(3) Exclusão pelas "leis de aplicação imediata" No sistema de direito privado de qualquer país, existem algumas

regras materiais que, por causa da sua natureza e objectivo legislativo, têm de afastar-se das regras de conflito bilaterais para serem aplicadas directamente. Savigny analisou este facto e considerou esta questão a mais complicada de toda a sua doutrina sobre o direito de conflitos. A partir daí, o sector do direito privado internacional de França e da Itália considerou isto uma representação da função activa da ordem pública13. Depois da Segunda Guerra Mundial, houve um súbito aumento das intervenções nacionais nas respectivas económicas. Nesta altura surgiram muitas regras que ficavam na fronteira entre o direito público e o direito privado clássicos, e que excluiam a aplicação das normas de conflito para serem aplicadas imediatamente nos casos civis e comerciais internacionais. No entanto, a aplicação das cláusulas da ordem pública está geralmente sujeita a restrições rigorosas, cujo conteúdo está relacionado com a moralidade básica e com os princípios jurídicos fundamentais. Além disso, a sua função passiva de negação é mais valorizada. As cláusulas da ordem pública mal conseguiram enfrentar as novas regras que surgiram depois da Segunda Guerra Mundial.

Assim, o estudioso francês Francescakis apresentou em 1958 a doutrina da lei da aplicação imediata que, na sua opinião, compreende quatro características: a) a sua aplicação não resulta da orientação das regras de conflito; b) o seu alcance é definido pelo legislador de acordo com o método do unilateralismo (i.e., de acordo com a sua natureza, o

13 G. Parra-Aranguren, General Course on Private International Law, Recueil des

cours (1998-III), p.121-123.

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seu contexto e o objectivo legislativo); c) as leis de aplicação imediata tanto podem ser de carácter pessoal como de carácter territorial (do ponto de vista clássico da teoria dos estatutos); d) são regras excepcionais para regular as relações do direito privado e desempenham uma função importante na protecção dos interesses do Estado.14

Compete às leis de aplicação imediata afastar as regras de conflito bilaterais, exigindo uma aplicação directa aos casos civis e comerciais internacionais. Elas consagram os interesses estaduais do local do foro e as políticas materiais, representando ainda a orientação substancial do direito de conflitos contemporâneo.

A maior dificuldade para o desenvolvimento da doutrina das leis de aplicação imediata reside na sua consagração concreta, porque as normas jurídicas de um país raramente prevêem expressamente a sua aplicação imediata aos casos civis e comerciais internacionais, sujeitando-se ao julgamento do juiz conforme a sua natureza, contexto e objectivo legislativo. Em geral, as leis de aplicação imediata compreendem as seguintes regras: regras reguladoras da ordem mercantil, tais como a lei contra a concorrência desleal, a lei de monopólio, as regras de controle das importações e exportações, as regras de controle cambial, as regras de revelação de informações sobre os títulos, etc.; leis sobre a protecção dos interesses das terras nacionais, tais como as regras que proíbem os estrangeiros de comprar terras nacionais, as regras sobre a protecção dos campos cultivados; outras regras de protecção em matéria laboral e de ambiente. Por um lado estas regras representam os interesses estaduais, por outro prejudicam em grande medida os interesses dos particulares.

As leis de aplicação imediata aumentaram também na área das leis contratuais, sendo chamadas muitas vezes de "normas imperativas". As normas contratuais imperativas contrapõem-se às normas contratuais facultativas, não podendo o efeito das primeiras ser diminuído através do contrato. No entanto, nem todas as normas contratuais imperativas são leis de aplicação imediata. As normas contratuais imperativas dividem-se em normas imperativas internas e normas imperativas internacionais.15 As normas imperativas internas

14 G. Parra-Aranguren, General Course on Private International Law, Recueil des

cours (1998-III), p.129. 15 T. Hartley, Mandatory Rules in International Contracts: The Common Law

Approach, (266) Recueil des cours (1997), p.346.

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estão no âmbito de orientação das normas de conflito, o que quer dizer que as partes contratuais internas não podem diminuir os seus efeitos através de contratos. As partes contratuais internacionais, por seu turno, podem excluir os seus efeitos através das regras de conflito. Como as normas imperativas internacionais não podem ser excluídas pelas partes contratuais internacionais através dum acordo de escolha da lei contratual competente, são leis de aplicação imediata no âmbito do direito contratual.

Se as regras de conflito apontam para o direito privado dum país estrangeiro, em primeiro lugar devem ser aplicadas as leis de aplicação imediata desse país. Se, para além do país do foro e do país da lei competente, um terceiro país tiver uma conexão estreita com o caso, as leis de aplicação imediata desse terceiro país deverão também ser consideradas? Relativamente a esta questão, são constantes as discussões doutrinais e a legislação concreta é conservadora.16

Acabámos de analisar três casos de exclusão das regras de conflito que revelam a orientação substancial do direito de conflitos contemporâneo. Quanto à ordem pública, a exclusão é clássica e indirecta. Relativamente à aplicação das cláusulas da ordem pública, a atitude tomada a nível internacional é cada vez mais rigorosa e cautelosa. A restrição constitucional e a exclusão das leis de aplicação imediata são formas de exclusão imediata que apareceram depois da Segunda Guerra Mundial e que revelam directamente a procura de efeitos materiais concretos pelo país do foro. No entanto, comparando com a aplicação das regras de conflito, as duas últimas formas de exclusão são excepcionais e limitadas. A sua aplicação abusiva afectará com certeza o valor fundamental das normas de conflito.

3. Segunda orientação substancial: transformação das

regras de conflito bilaterais

16 Apesar do artigo 7º, nº 1 da Convenção de Roma de 1980, da CEE, sobre a Lei

Aplicável às Obrigações Contratuais ter previsto a consideração das leis de aplicação imediata dum terceiro país, alguns países como a Inglaterra, França e Alemanha não concordaram. Em 1985, quando o Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado elaborou a Convenção das Nações Unidas sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, decidiu não aceitar na Convenção a aplicação das "leis de aplicação imediata" dum terceiro país. Ver G. Parra-Aranguren, General Course on Private International Law, Recueil des cours (1998-III), p. 133.

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A estrutura das regras de conflito bilaterais clássicas, que é muito simples, é composta apenas por duas partes: o "âmbito" e a "conexão".17 As relações jurídicas civis e comerciais internacionais têm um âmbito limitado e a conexão inclui o elemento territorial e o sistema de direito privado apontado por esse elemento. Podemos ver, com base nesta estrutura, que as regras bilaterais clássicas valorizam a escolha do sistema do direito privado entre os países que têm uma relação com o caso, e não a escolha do direito material concreto para resolver os conflitos. Existe ainda uma distância entre o sistema de direito privado de um país e a lei competente que produz efeitos substanciais concretos. As regras bilaterais clássicas não ultrapassaram esta problemática, o que fazia com que o juiz que aplicava as normas de conflito "caísse na escuridão". Por isso as normas bilaterais clássicas são regras "cegas".

A revolução conflitualista americana tentou abolir radicalmente as regras "cegas" mas não conseguiu. A par disso, noutros lugares, especialmente na Europa, foram feitas transformações progressivas aos sujeitos censurados pelos Estados Unidos e foram obtidos bons resultados. 18 A transformação das regras de conflito bilaterais consistiu em reduzir a distância entre estas e os efeitos materiais e transformar as regras de conflito bilaterais em normas de orientação substancial. Esta transformação reflectiu-se em concreto na aplicação plena de três novos tipos de regras de conflito bilaterais e cláusulas de excepcão:

(1) Regras de conflito facultativas As regras de conflito facultativas são constituídas por dois ou

mais elementos de conexão, em que se pode escolher o direito privado orientado por um deles para regular a relação jurídica em matéria civil e comercial internacional. A aplicação das normas de conflito facultativas tem como objectivo: alargar os requisitos formais ou materiais para a validade de certos actos jurídicos, tais como fazer testamento, contrair matrimónio e celebrar contratos em geral; facilitar o estabelecimento de certas relações, tais como a legitimação da filiação da mãe solteira ou outros tipos de filiação e a relação entre os

17 Ver Wang Jin, Direito Internacional Privado, Editora Direito, 1999, p. 233. 18 Symeon C. Symneonides, Private International Law at the End of the 20th Century:

Progress or Regress? General report, Kluwer law International (1988), p.26.

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cônjuges, etc.; ou até para facilitar a dissolução de certas relações, tal como o divórcio. Em suma, desde que o sistema de direito privado orientado por um dos elementos de conexão satisfaça os efeitos substanciais previstos pelo país do foro, não é necessário ter em conta que o sistema do direito privado orientado por outros elementos de conexão tenha previsto ou não efeitos substanciais em contrário.

(2) Regras de conflito sobrepostas As regras de conflito sobrepostas opõem-se às regras de conflito

facultativas. Quando existem dois ou mais elementos de conexão, os direitos privados de dois ou mais países orientados por eles devem ser aplicáveis também às relações jurídicas em matéria civil e comercial num determinado país. O objectivo da aplicação das regras de conflito sobrepostas é controlar certos efeitos substanciais. Só quando se satisfaz simultaneamente as normas do direito privado de dois ou mais países é que se consegue produzir certos efeitos substanciais. Geralmente, quando se faz a aplicação sobreposta do direito privado de dois ou mais países, um deles é o direito privado do foro. Certas políticas substanciais do foro não preenchem o critério das "leis de aplicação imediata" da ordem pública, mas aparecem nas normas de conflito sobrepostas.

(3) Regras de conflito protectivas O direito privado contemporâneo concede, sem excepção, uma

protecção especial às pessoas numa posição social ou económica desfavorável. Geralmente, são objecto desta protecção os detentores de direitos especialmente lesados, consumidores, empregados e alimentados, que são reconhecidos juridicamente como a parte fraca. A política de protecção no direito privado estendeu-se também ao âmbito das normas de conflito, que atribui à parte fraca o direito de escolher o direito privado que lhe é mais favorável, através das normas de conflito facultativas, podendo ao mesmo tempo realizar a finalidade de protecção. As normas de conflito protectivas são as normas de conflito que prevêem expressamente a aplicação do direito privado mais favorável ou tendencialmente mais favorável à parte fraca. As leis do país que tem uma conexão mais estreita unilateralmente com a parte fraca, tais como as leis do país da nacionalidade e do domicílio habitual são geralmente consideradas o direito privado tendencialmente

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mais favorável à parte fraca e portanto é exigida a sua aplicação com prioridade ou em sobreposição.

Quanto à estrutura dos três tipos de regras de conflito referidos e comparando-as com as regras de conflito bilaterais clássicas com uma única estrutura, estas podem ser designadas como "regras de conflito bilaterais amplas". Quanto ao contexto, essas regras esforçaram-se por superar a "cegueira" das regras de conflito bilaterais clássicas, procurando realizar as políticas materiais determinadas pelo país do foro. No entanto, as políticas substanciais procuradas por esses três tipos de regras de conflito devem ser as políticas reconhecidas plenamente a nível internacional,19 que não podem ser aplicadas em sentido restrito para defender os interesses do próprio país ou dos particulares do próprio país, prejudicando os interesses do outro país ou dos particulares do outro país.

(4) As cláusulas de excepção Perante a realidade duma sociedade que está sempre em mudança,

a lei possui inevitavelmente um certo grau de automatismo e rigidez. Desde que as normas de conflito tenham como fundamento os princípios bilaterais da igualdade dos direitos privados, por maior que seja o esforço para a sua transformação não se pode eliminar radicalmente o automatismo e a rigidez das regras. Quando o tribunal não estiver satisfeito com o resultado do direito material orientado pelas suas próprias regras de conflito, pode recorrer aos meios legislativos para evitar esse resultado, aparecendo nestas situações as cláusulas de excepção no direito de conflitos.

As cláusulas de excepção das normas de conflito clássicas Duma forma rigorosa, as cláusulas de excepção das normas de

conflito clássicas consistiam apenas nas cláusulas da ordem pública que excluíam indirectamente as normas de conflito que deveriam ser aplicadas para realizar a finalidade de exclusão. No entanto, as cláusulas da ordem pública só podem ser aplicadas em determinadas condições. Portanto, os tribunais procuram sempre outros meios para realizar a finalidade de exclusão, tais como o regime do reenvio e da

19 F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours

(1992-II), p. 121.

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qualificação20. No entanto, a intenção legislativa do reenvio e da qualificação não é essa. Esta prática desonesta já foi abandonada pelos países.

As cláusulas de excepção das normas de conflito contemporâneas Sendo simultaneamente um princípio fundamental e a principal

cláusula de excepção das normas de conflito contemporâneas, o princípio da conexão mais estreita tem sido aceite gradualmente pela doutrina e pelos actos legislativos de diversos países. Em qualquer ramo de direito, os princípios fundamentais são mais susceptíveis de serem cláusulas de excepção para superar a rigidez das regras, uma vez que os princípios são mais flexíveis e amplos e as regras concretas são consideradas uma realização dos princípios. Quando necessário, os princípios podem corrigir o resultado injusto das regras 21 . Isto acontece também com o princípio da conexão mais estreita no âmbito das normas de conflito. Quando o tribunal não está satisfeito com o direito material orientado pelas regras de conflito concretas, considera por suposição que existiam num país leis com uma conexão mais estreita com o caso concreto e aplica as leis daquele país.

A aplicação de uma parte do princípio da conexão mais estreita utilizado como uma cláusula de excepção pelas normas de conflito contemporâneas, revela indubitavelmente a intenção do foro de procurar determinado resultado substancial. No entanto, a aplicação do princípio da conexão mais estreita como cláusula de excepção deve ter um carácter excepcional, porque a sua aplicação abusiva enfraqueceria o fundamento das normas de conflito.

20 Por exemplo, as regras de conflito do país do foro A apontam para o país B.

Como o país do foro não está satisfeito com o resultado da aplicação da lei competente de B, aproveita as regras de conflito do B para apontar de novo para o país A ou C para obter um resultado material satisfatório para o foro. Nisto consiste o aproveitamento do reenvio para realizar a finalidade de exclusão. Outro exemplo: uma questão civil e comercial internacional deveria ser identificada como sendo uma relação jurídica do tipo I, mas como a lei competente orientada pelas regras de conflito do país do foro para regular a relação jurídica I não é satisfatória para o país do foro, este qualifica intencional e erradamente a relação jurídica I como relação jurídica do tipo II, obtendo assim um resultado material satisfatório para o país do foro. Nisto consiste o aproveitamento da qualificação para realizar a finalidade de exclusão.

21 Por exemplo, o princípio da boa fé é utilizado muitas vezes como uma cláusula de excepção para as regras concretas da lei contratual.

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4. Terceira orientação substancial: alargamento do âmbito da autonomia da vontade

A liberdade contratual é um princípio fundamental reconhecido

pelo direito privado dos diversos países. A liberdade contratual é representada, no âmbito das normas de conflito, pelo princípio da autonomia da vontade, i.e., através do acordo das partes, estas escolhem autonomamente o direito material aplicável aos contratos civis e comerciais internacionais. A autonomia da vontade é o princípio fundamental no direito de conflitos dos diversos países para a escolha da lei contratual. Ela pode prever directamente o resultado jurídico nas transacções comerciais internacionais e as partes de diferentes países podem negociar acerca do resultado previsto, diminuindo assim os custos transaccionais e aumentando a estabilidade das transacções. Além disso, a autonomia da vontade evita o perigo da sujeição simultânea dos contratos internacionais mais complexos a tribunais de diferentes países e à jurisdição do direito privado de diferentes países. Graças às virtudes da autonomia da vontade, há uma tendência para o alargamento contínuo do seu âmbito de aplicação nas normas de conflito contemporâneas.

(1) Alargamento do princípio da autonomia da vontade no

âmbito das normas de conflito clássicas A autonomia da vontade aplica-se principalmente no âmbito dos

contratos. Relativamente à autonomia da vontade nos contratos gerais em matéria comercial, a principal tendência actual é diminuir as restrições que lhe dizem respeito. Isto reflecte-se principalmente no facto de haver cada vez mais países a admitir tacitamente as cláusulas facultativas e a admitir que as partes escolham um direito que não tem nada a ver com o contrato ou com as partes contratuais. Assim, facilita-se às partes a escolha do direito que lhes é mais favorável e maximizam-se os proveitos do contrato. Mas isto não implica que a autonomia da vontade no âmbito contratual não tenha limites. As razões para a exclusão das normas de conflito gerais também servem para excluir o direito escolhido pelas partes. Além disso, o princípio da autonomia da vontade também é limitado por algumas regras de conflito protectivas (e.g. as regras de conflito protectivas nos contratos laborais). Duma forma geral, o âmbito do alargamento é obviamente maior que o âmbito de restrição.

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A autonomia da vontade está também a alargar o seu âmbito de aplicação fora do âmbito contratual. Se o que está em causa num determinado caso são apenas os interesses entre as partes e não os interesses de terceiros, não há razão para impedir que as partes escolham por acordo o direito material para acelerar a resolução dos seus conflitos. Além disso, a igualdade entre o direito privado de diversos países é o valor fundamental das normas de conflito. A escolha das partes entre o direito privado de diversos países que se encontrem ao mesmo nível corresponde à procura dos valores das normas de conflito. As duas razões acima referidas são fundamentos razoáveis para o alargamento da autonomia da vontade para fora do âmbito do direito contratual.22 Actualmente, no âmbito da violação de direitos, do direito da família, do direito das sucessões e do fideicomisso, apareceram normas que apontam para a aplicação do princípio da autonomia da vontade.23 É de referir em especial que, comparando com a autonomia da vontade no âmbito dos contratos, as restrições à sua aplicação são maiores. A autonomia da vontade não é o principal meio de escolha jurídica nesses âmbitos, limitando-se as partes a escolher livremente entre alguns sistemas jurídicos que têm uma conexão estreita com o caso.

(2) Alargamento do princípio da autonomia da vontade no

âmbito das "leis de aplicação imediata" e do direito público As normas de conflito contemporâneas estão a enfrentar uma

difícil problemática teórica, que é a aplicabilidade do direito público estrangeiro. Esta problemática surgiu do reforço do controlo e da intervenção económicos dos países depois da Segunda Guerra Mundial, altura em que foi criada uma zona jurídica na fronteira entre o direito público e o direito privado com um carácter misto de direito público e direito privado. O direito público clássico foi excluído desde sempre do sistema das normas de conflito pela teoria dos estatutos,24 exclusão

22 F. Vischer, Gerneral Course on Private International Law, Recueil des cours

(1992-II), p. 127. 23 Ver Xiao Yongping, Das Normas de Conflito, Editora Universidade Wuhan, 1999,

p. 194-198. 24 A teoria de estatutos de Bartolus distinguiu em primeiro lugar o direito público, o

direito processual e o direito privado, considerando que o direito público e o direito processual não produzem efeitos externos. Só depois é que fez uma distinção entre o "direito das pessoas" e o "direito das coisas" no direito privado, abordando

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essa que ainda se mantém hoje em dia. A problemática reside na questão de se aplicar ou não, no próprio país, o direito estrangeiro que exerce controlo e intervém na vida económica. No fundo esta questão faz parte da problemática das "leis de aplicação imediata" acima referidas.

As "leis de aplicação imediata" do próprio país devem excluir as normas de conflito e ser aplicadas com prioridade. Quando as normas de conflito apontam para uma determinada lei estrangeira, devem também ter em conta as "leis de aplicação imediata" do próprio país. Relativamente ao estatuto das "leis de aplicação imediata" de terceiro país, actualmente os vários países tomam uma atitude reservada. Agora a questão reside em saber se as partes podem acordar em escolher as "leis de aplicação imediata" de um certo país, nomeadamente aquela parte das leis que representam um controlo e uma intervenção económicos.

Em certos países como os Estados Unidos, a resposta é afirmativa quanto à questão da aplicação das leis de arbitragem internacional. Existe um entendimento acerca dos processos nos tribunais segundo o qual se deve fazer uma distinção entre os casos dos países desenvolvidos e dos países em vias de desenvolvimento. O regime jurídico sobre o controlo económico dos países desenvolvidos é mais completo, por isso estes não devem admitir que as partes escolham, podendo excluir uma parte das leis, o que prejudicaria os seus interesses públicos. Pelo contrário, o regime jurídico sobre o controlo económico dos países em vias de desenvolvimento é mais atrasado, existindo uma grande quantidade de lacunas em certas áreas, pelo que esses países devem admitir que as suas partes escolham, podendo assim ser introduzido o regime jurídico dos países desenvolvidos. Por isso esta atitude deve ser apoiada e promovida.25

Este ponto de vista, que evidenciou a distância entre a formação do regime jurídico sobre o controlo económico dos países em vias de desenvolvimento e dos países desenvolvidos, é obviamente objectivo. Também pode acontecer que, quando os países em vias de

separadamente os seus efeitos externos. Ver H. Batiffol, Droit International Privé, tradução por Chen Hongwu e outros, Companhia de Tipografia e Tradução Zhong Guo Dui Wai, 1989, p. 303-308. As normas de conflito posteriores seguiram esta prática e excluíram sempre o direito público e o direito processual.

25 P. J. Mcconnaughay, The Scope of Autonomy in International Contracts and its Relation to Economic Regulation and Development, Columbia Journal of Transnational Law, Vol. 39, No. 3, 2001, p. 655-656.

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desenvolvimento admitem a autonomia da vontade das partes, introduzam directamente o regime jurídico dos países desenvolvidos. No entanto, este ponto de vista segue indubitavelmente a posição do centralismo ocidental. Os países em vias de desenvolvimento só poderiam resolver definitivamente os problemas através duma aprendizagem esforçada do regime jurídico sobre o controlo económico dos países desenvolvidos, com o qual tivessem uma certa homogeneidade, que lhes permitisse elaborar e aperfeiçoar as próprias leis correspondentes. A introdução das leis através da autonomia da vontade das partes só pode resolver o problema naquele momento. Numa perspectiva de longo prazo, o direito do próprio país fica numa posição subordinada, o que impede o seu aperfeiçoamento. Portanto, não compensa.

Por isso, o princípio da autonomia da vontade só deve ser aplicado no âmbito da arbitragem comercial internacional e não deve ser alargado para o âmbito do direito público e das "leis de aplicação imediata".

(3) Orientação substancial trazida pelo alargamento da

autonomia da vontade O alargamento do princípio da autonomia da vontade ao âmbito

das leis de conflito contratuais e doutras normas de conflito exclui mais uma vez as regras de conflito bilaterais rígidas, possibilitando às partes a previsão do resultado jurídico substancial. O alargamento da autonomia da vontade é um método importante para a orientação substancial das normas de conflito contemporâneas.

No entanto, a orientação substancial trazida pela autonomia da vontade não tem o mesmo significado que os outros métodos. Recorrendo à exclusão das normas de conflito e à transformação das regras bilaterais clássicas, o país do foro tem em conta as suas políticas fundamentais para a orientação substancial das normas de conflito. Quando um país admite a autonomia da vontade das partes, não realiza com isto as suas próprias políticas substanciais. Pelo contrário, as partes escolhem de acordo com os seus interesses materiais.26 A autonomia da vontade acaba por fazer com que os direitos privados de diversos países, incluindo o direito do país do foro, fiquem numa

26 Symeon C. Symneonides, Private International Law at the End of the 20th Century:

Progress or Regress? General Report, Kluwer Law International (1988), p. 40.

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posição concorrencial. 5. Conclusão Os defeitos intrínsecos da "cegueira" das regras de conflito

clássicas resultaram na revolução conflitualista americana. A revolução não abalou nem estragou o fundamento do direito de conflitos clássico. Pelo contrário, o direito de conflitos clássico deu uma resposta positiva, tendo sido introduzidas algumas novidades. A orientação substancial do direito de conflitos contemporâneo é o resultado principal desta resposta.

A orientação substancial do direito de conflitos contemporâneo é composta por três aspectos, que são: a exclusão limitada das regras de conflito, a transformação das regras de conflito bilaterais e o alargamento do âmbito da autonomia da vontade. Estão implícitos nos primeiros dois aspectos as políticas substanciais do país do foro e no terceiro aspecto a escolha autónoma do resultado substancial pelas partes.

A orientação substancial das normas de conflito contemporâneas permitiu um aumento formal do grau de flexibilidade na escolha jurídica. Em termos de valores de orientação, passou-se de uma justiça conflitual para uma justiça material. A primeira valoriza a escolha jurídica e procura uma uniformidade no resultado da sentença; a segunda salienta mais a realização das aspirações razoáveis das partes e a resolução justa do caso.

O resultado da orientação substancial das normas de conflito contemporâneas alterou simultaneamente a estrutura plana e uniforme das normas de conflito clássicas, mormente das regras de conflito bilaterais. Além das regras de conflito bilaterais, as normas de conflito contemporâneas também incluem regras novas, tais como as cláusulas restritivas constitucionais, as "leis de aplicação imediata", as regras de conflito bilaterais facultativas, repetitivas e protectivas, as cláusulas da autonomia da vontade com âmbito de aplicação alargado e as cláusulas de excepção. Em suma, as normas de conflito após a revolução conflitualista tornaram-se num ramo de direito com regras abundantes e múltiplos níveis e estruturas. Esta é também uma orientação para o esforço do direito de conflitos contemporâneo da China.