organização e dinâmica psíquica na obesidade infantil · programa de pós-graduação em...

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO Departamento de Psicologia Programa de Pós-graduação em Psicologia Organização e dinâmica psíquica na obesidade infantil Carmem Gil Coury Ribeirão Preto (SP) - 2016 -

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, CINCIAS E LETRAS DE RIBEIRO PRETO

    Departamento de Psicologia

    Programa de Ps-graduao em Psicologia

    Organizao e dinmica psquica na

    obesidade infantil

    Carmem Gil Coury

    Ribeiro Preto (SP)

    - 2016 -

  • FACULDADE DE FILOSOFIA, CINCIAS E LETRAS DE RIBEIRO PRETO

    Departamento de Psicologia

    Programa de Ps-graduao em Psicologia

    Organizao e dinmica psquica na

    obesidade infantil

    Carmem Gil Coury

    Dissertao apresentada Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo, como parte das exigncias para a obteno do ttulo de Mestre em Cincias, rea: Psicologia.

    Orientadora: Profa. Dra. Sonia Regina Pasian

    Ribeiro Preto (SP)

    - 2016 -

  • Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho por qualquer meio

    convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

    Apoio: Capes.

    Coury, Carmem Gil

    Organizao e dinmica psquica na obesidade infantil. Ribeiro Preto, 2016. 170p. : Il. ; 30cm. Dissertao de Mestrado, apresentada Faculdade de Filosofia Cincias e Letras de Ribeiro Preto/USP. rea de concentrao : Psicologia.

    1. Obesidade infantil. 2. Avaliao psicolgica. 3. Mtodos projetivos. 4. Rorschach. 5. Desenho da Figura Humana. 6. Personalidade.

  • FOLHA DE APROVAO

    Carmem Gil Coury

    Ttulo: Organizao e dinmica psquica na obesidade infantil

    Dissertao apresentada a Faculdade de Filosofia, Cincias e

    Letras de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo para a

    obteno do titulo de mestre em Cincias.

    rea de Concentrao: Psicologia.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Profa. Dra.:

    _________________________________________________________________

    Instituio: ______________________________Assinatura:

    ________________________

    Profa. Dra.:

    _________________________________________________________________

    Instituio: ______________________________Assinatura:

    ________________________

    Profa. Dra.:

    _________________________________________________________________

    Instituio: ______________________________Assinatura:

    ________________________

  • s crianas e suas expresses. E aos adultos

    que se dedicam a ouvi-las.

  • Agradecimentos

    Ao Ivan, meu parceiro de vida, por acreditar em mim mesmo quando eu duvidava.

    Obrigada por ser sempre minha fonte de conforto e inspirao e me ajudar a manter-me

    firme em meu caminho. No h palavras para agradecer sua companhia e seu amor.

    A meus pais Helenice e Jos, que tendo trilhado estes caminhos to belamente em suas

    vidas, me encorajaram e estimularam a mim tambm me descobrir neles. Agradeo o

    carinho e pacincia que me ofereceram sempre que por qualquer motivo eu lhes tenha

    necessitado.

    Ao Francisco, meu irmo, que com seu bom humor carinhoso me ajudou a deixar o

    caminho mais leve. Obrigada por me mostrar outras formas de viver e trabalhar.

    Profa. Dra. Sonia Regina Pasian, por mais que me orientar, me acolher na casa que

    fez do CPP. E por ter pacincia com os tempos e ritmos desta orientanda. Agradeo o

    zelo e cuidado persistentes em cada etapa desta construo e pelos inestimveis

    conhecimentos que to generosamente pde partilhar comigo.

    Dra. Beatriz TronconBusatto, que pde me ouvir e acolher em seu consultrio,

    auxiliando de maneira inestimvel o meu desenvolvimento pessoal, ajudando-me a me

    tornar uma pesquisadora mais flexvel e amorosa.

    Stefani, minha amiga querida que partilhou as passadas desde o incio deste percurso.

    Agradeo sua presena viva nos momentos de angstia e nas identificaes que

    pudemos vivenciar nestes anos.

    Andressa e Paula, amigas queridas, pela torcida e confiana, por me ouvirem

    incansavelmente nos momentos de maior necessidade e por me receberem sempre com

    amizade e carinho.

    Fabiana, valioso presente deste Mestrado, pela bondade e generosidade sempre

    presentes em suas palavras e por tornar o percurso acadmico to mais prazeroso.

    ErikaTiemi Kato Okino, por sua pacincia e companhia e por dividir comigo seus

    pensamentos e experincia to valiosos.

    Ao Rodolfo, por seu companheirismo e energia, que tanto me auxiliaram a prosseguir e

    por todo o seu auxlio durante a coleta dos dados.

  • Aos amigos Ana Luisa Guimares e Nichollas Martins Arecco, por seu importante

    auxlio e amizade durante a construo deste trabalho.

    Aos colegas do Centro de Pesquisas e Psicodiagnstico (CPP), pela convivncia e

    pela troca de experincias e conhecimentos em vrios momentos da construo deste

    trabalho e de minha formao pessoal, sobretudo ao Jorge por sua generosidade em

    partilhar seus conhecimentos em estatstica.

    Profa. Dra. Sonia Regina Loureiro e Profa. Dra. Deise Matos do Amparo por

    suas cuidadosas contribuies construo deste trabalho oferecidas no Exame de

    Qualificao.

    s Instituies de Cuidado Sade e Educao das crianas que possibilitaram a

    realizao do estudo.

    Ao CAPES e ao Programa de Ps-Graduao em Psicologia da FFCLRP/USP, pelo

    apoio e subsdios financeiros necessrios a concretizao e divulgao cientfica deste

    trabalho.

    s crianas e suas famlias, que puderam fornecer

    sua valiosa ajuda realizao deste trabalho. Agradeo por

    partilharem comigo suas vivncias e sentimentos, que me

    enriquecerem enormemente.

  • Todos esto loucos, neste mundo? Porque a

    cabea da gente uma s, e as coisas que h e que esto

    para haver so demais de muitas, muito maiores

    diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a

    cabea, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o

    sentir forte da gente o que produz os ventos. S se pode

    viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo

    de dio, se a gente tem amor.

    (Joo Guimares Rosa)

  • RESUMO

    Coury, C. G. (2016). Organizao e dinmica psquica na obesidade infantil. Dissertao de Mestrado, Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto. Instrumentos de avaliao psicolgica constituem-se em mtodos sistemticos de investigao e de compreenso de componentes estruturais e funcionais do comportamento humano, com diversificados objetivos e estratgias tcnicas, respeitando-se especificidades das etapas do desenvolvimento. Em processos de avaliao psicolgica de caractersticas da personalidade, os mtodos projetivos, como o Mtodo de Rorschach e o Desenho da Figura Humana, so recursos amplamente utilizados, contribuindo para a compreenso e elaborao de intervenes teraputicas em variados campos de aplicao, como na rea da obesidade infantil. Nesse contexto, este trabalho teve por objetivo identificar e comparar caractersticas psicolgicas de crianas com obesidade em relao a eutrficas, a partir de mtodos projetivos de investigao da personalidade. Foram examinadas 60 crianas de sete a 11 anos de idade, sendo 30 crianas diagnosticadas como obesas e em tratamento especfico para o transtorno (Grupo 1 G1) e 30 crianas com peso normal (Grupo 2 G2), sem atraso acadmico, sem limites cognitivos e sem histrico de outras doenas fsicas. Os participantes de G1 foram recrutados em instituies de sade voltadas ao tratamento da obesidade infantil e G2 foi constitudo a partir de parceria estabelecida com instituio de ensino bem como a partir de contatos informais da pesquisadora e de seu grupo de pesquisa (tcnica da "bola de neve"), buscando-se balanceamento dos grupos por sexo e idade. Os seguintes instrumentos de avaliao psicolgica foram aplicados individualmente nas crianas: Teste das Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (critrio de seleo de participantes, incluindo-se na amostra apenas crianas com resultados intelectuais mdios ou superiores), o Desenho da Figura Humana e o Mtodo de Rorschach (Escola Francesa). Os pais das crianas participantes responderam ao Questionrio de Capacidades e Dificuldades (SDQ) para caracterizao da amostra. Os resultados foram examinados conforme padronizao especfica dos respectivos manuais tcnicos dos instrumentos, realizando-se anlises descritivas e inferenciais, a fim de examinar possveis associaes entre variveis clnicas e demogrficas e indicadores de caractersticas de personalidade das crianas. Foram efetuadas anlises correlacionais entre resultados no DFH e no Rorschach, considerando tambm a classificao nutricional da criana. Os achados permitem compreender caractersticas do funcionamento psquico envolvidas na obesidade infantil, de modo a favorecer estratgias futuras de interveno teraputica com crianas. (CAPES) Palavras-chave: Obesidade infantil; Avaliao psicolgica; Mtodos projetivos; Rorschach; Desenho da Figura Humana; Personalidade.

  • ABSTRACT

    Coury, C. G. (2016). Psychological organization and psychic dynamics in childhood obesity. Dissertation (Master Degree), Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto, University of So Paulo, Ribeiro Preto. Psychological assessment instruments consist in methods of systematic research and of understanding the structural and functional components of human behavior, with diverse goals and technical strategies, respecting the specificities of the development. Projective techniques such as the Rorschach Method and the Human Figure Drawing are widely used resources in psychological evaluation processes of personality characteristics, contributing to the understanding and development of therapeutic interventions in various application fields, such as in the childhood obesity area. In this context, this study aimed to identify and compare psychological characteristics of children with obesity compared with those of normal weight, using projective methods of personality assessment. In this study were examined 60 children aged seven to 11 years old, 30 children diagnosed as obese and under specific treatment for the disorder (Group 1 - G1) and 30 children with normal weight (Group 2 - G2), with no academic delay, without cognitive limitation and with no history of other physical ailments. G1 participants were recruited from health institutions devoted to treatment of childhood obesity and G2 was formed by a partnership established with a teaching institution and a research group, intending to balance some characteristics of the two groups (sex and age). The following psychological assessment instruments were applied individually in children: Ravens Coloured Progressive Matrices Test (constituted on selection criteria of participants, being included only the children sample with average intellectual results or higher), the Human Figure Drawing (DFH) and the Rorschach Method (French School). The parents of children answered the Strengths and Difficulties Questionnaire (SDQ) to characterize the sample. The results were examined according to specific standardization of the respective technical manuals of the instruments. Descriptive and inferential analyses were performed in order to examine possible associations between clinical and demographic variables and indicators of personality characteristics of the children. Correlation analyzes were made of the main results in DFH and Rorschach in accordance with the child's nutritional classification. The findings illuminate possible features of psychic functioning involved in childhood obesity process in order to facilitate future strategies for therapeutic intervention with children. (CAPES) Key words: Childhood obesity; Psychological Assessment; Projective Techniques; Rorschach; Human Figure Drawing; Personality.

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1: Distribuio (em frequncia simples) dos artigos excludos em funo dos critrios

    utilizados no levantamento da literatura cientfica realizada em 2014....................................... 41

    Tabela 2: Distribuio dos participantes do estudo em funo do sexo e idade. ....................... 71

    Tabela 3: Distribuio (em frequncia simples e em porcentagem) do desempenho intelectual

    das crianas em funo do grupo do estudo Grupo 1 (Clnico) e Grupo 2 (Comparao). ...... 72

    Tabela 4: Distribuio (em frequncia simples e porcentagem) dos participantes do estudo em

    funo do sexo e do ano escolar. ............................................................................................. 73

    Tabela 5: Distribuio (em frequncia simples e porcentagem) dos participantes em funo da

    classificao no SDQ (verso pais). ......................................................................................... 91

    Tabela 6: Resultados mdios (pontos brutos e percentis) do DFH e comparao estatstica em

    funo dos grupos de crianas. ................................................................................................ 93

    Tabela 7: Distribuio dos casos e sua comparao estatstica em funo do nmero de

    indicadores emocionais presentes no DFH dos dois grupos de crianas. ................................... 94

    Tabela 8: Caracterizao e comparao estatstica de resultados mdios na produtividade e

    ritmo no Rorschach em funo dos grupos de crianas. ........................................................... 95

    Tabela 9: Caracterizao e comparao estatstica de resultados mdios (em porcentagem) nos

    modos de apreenso no Rorschach em funo dos grupos de crianas. ..................................... 96

    Tabela 10: Caracterizao e comparao estatstica de resultados mdios nos determinantes das

    respostas no Rorschach em funo dos grupos de crianas. ...................................................... 97

    Tabela 11 Caracterizao e comparao estatstica de resultados mdios nos contedos,

    banalidades, reatividade cromtica e frmula de angstia do Rorschach, em funo dos grupos

    de crianas. ............................................................................................................................. 99

    Tabela 12: Distribuio e comparao estatstica das crianas de G1 e G2 de acordo com

    variveis selecionadas do Mtodo de Rorschach. ................................................................... 101

    Tabela 13: Distribuio e comparao estatstica das crianas de G1 e G2 de acordo com

    funcionamento lgico pelo Mtodo de Rorschach, em funo do nmero de indicadores

    emocionais no DFH. ............................................................................................................. 104

  • Tabela 14: Distribuio e comparao estatstica das crianas de G1 e G2 de acordo com

    funcionamento afetivo pelo Mtodo de Rorschach, em funo do nmero de indicadores

    emocionais no DFH. ............................................................................................................. 106

    Tabela 15: Distribuio e comparao estatstica das crianas de G1 e G2 de acordo com os

    relacionamentos interpessoais pelo Mtodo de Rorschach, em funo do nmero de indicadores

    emocionais no DFH. ............................................................................................................. 108

    Tabela 16: Resultados descritivos nos instrumentos na amostra total (n = 60) e sua comparao

    estatstica segundo o sexo...................................................................................................... 110

    Tabela 17: Resultados descritivos, comparao estatstica das principais variveis de cada

    instrumento avaliativo, e correlaes com IMC no grupo masculino (15 com obesidade e 15

    eutrficos)............................................................................................................................. 112

    Tabela 18: Resultados descritivos, comparao estatstica das principais variveis de cada

    instrumento avaliativo, e correlaes com IMC no grupo feminino (15 com obesidade e 15

    eutrficas). ............................................................................................................................ 114

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ........................................................................................................................21

    1.1. Avaliao Psicolgica e mtodos projetivos ............................................................. 23

    1.1.1. O Mtodo de Rorschach ................................................................................... 25

    1.1.2. O Desenho da Figura Humana ......................................................................... 27

    1.2. Obesidade Infantil ................................................................................................... 30

    1.3. Componentes psicolgicos da obesidade infantil ...................................................... 33

    2. OBJETIVOS .............................................................................................................................59

    2.1. Geral ....................................................................................................................... 61

    2.2. Especficos .............................................................................................................. 61

    3. MTODOS ...............................................................................................................................63

    3.1. Participantes ............................................................................................................ 65

    3.2. Materiais ................................................................................................................. 74

    3.2.1. Carta de apresentao da pesquisa ........................................................................ 74

    3.2.2. Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) ............................................... 74

    3.2.3. Termo de Assentimento .......................................................................................... 74

    3.2.4. Material para clculo do IMC ............................................................................... 75

    3.2.5. Teste das Matrizes Progressivas Coloridas de Raven ............................................. 75

    3.2.6. Questionrio de Capacidades e Dificuldades (SDQ) .............................................. 75

    3.2.7. Desenho da Figura Humana (DFH) ....................................................................... 76

    3.2.8. Mtodo de Rorschach ............................................................................................ 77

    3.2.9. Histrico mdico ................................................................................................... 78

    3.2.10. Recursos computacionais ..................................................................................... 78

    3.3. Procedimentos ......................................................................................................... 78

    3.3.1. Aspectos ticos ................................................................................................. 78

    3.3.2. Coleta de dados ............................................................................................... 80

    3.3.3. Anlise dos Resultados ..................................................................................... 83

    4. RESULTADOS.........................................................................................................................89

  • 4.1. Resultados descritivos e comparao de valores mdios ........................................... 91

    4.1.1. Questionrio de Capacidades e Habilidades (SDQ) ......................................... 91

    4.1.2. Desenho da Figura Humana (DFH) ................................................................. 92

    4.1.3. Mtodo de Rorschach ....................................................................................... 94

    4.2. Resultados relativos a variveis com significado clnico ................................................. 102

    4.3. Resultados relativos a anlises correlacionais ................................................................. 108

    4.4. Resultados em funo do sexo e da idade ....................................................................... 109

    4.5. Anlise comparativa do Rorschach com grupo normativo ............................................... 121

    5. DISCUSSO .......................................................................................................................... 127

    6. CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................. 143

    7. REFERNCIAS ...................................................................................................................... 147

    ANEXOS........................................................................................................................................ 157

    APNDICES .................................................................................................................................. 163

  • 21

    1. INTRODUO

  • 22

  • 23

    1.1. Avaliao Psicolgica e mtodos projetivos

    Avaliao psicolgica refere-se a uma rea do conhecimento psicolgico,

    constituindo processo de investigao cientfica relativo a condies psicolgicas de

    indivduo/grupo, a partir da utilizao de conjunto de procedimentos tcnico-cientficos,

    teoricamente fundamentados, e que consideram condies clnicas pregressas e atuais

    desse indivduo/grupo (Cruz, 2004). Segundo Urbina (2007), um dos recursos para

    processos de avaliao psicolgica so os testes psicolgicos, que se constituem

    enquanto procedimentos sistemticos para se obter amostras significativas de

    comportamentos relevantes ao funcionamento cognitivo ou afetivo, e da avaliao

    destas por meio de padres definidos. Desse modo, para que uma avaliao psicolgica

    seja considerada vlida e til, deve ser baseada em testes ou procedimentos

    meticulosamente programados de forma a serem uniformes, devendo seguir objetivos

    claros e justos, bem como serem passveis de demonstrao emprica. Da mesma forma,

    os padres para avaliao das amostras obtidas devem ser baseados em dados

    empricos, buscando compor adequado referencial para as anlises interpretativas dos

    indicadores obtidos.

    A avaliao psicolgica objetiva, em ltima instncia, buscar um conjunto de

    informaes necessrias tomada de decises sobre o indivduo/grupo avaliado. Tais

    decises situam-se nos mais variados contextos, tais como organizacional, jurdico,

    clnico/sade, entre outros (Fensterseifer & Werlang, 2008). No presente estudo,

    enfocar-se- sua utilizao em contextos de sade e tratamento, concordando com

    Capito, Scortegagna e Baptista (2005) ao afirmarem que a Psicologia atua como

    importante fator para a compreenso do adoecimento e, da mesma forma, das maneiras

  • 24

    de se permanecer saudvel. Como argumentam Baum e Posluszny (1999), a unio entre

    a Psicologia e as Cincias Mdicas propiciou notvel desenvolvimento de ambas as

    reas, expandindo o conhecimento e a compreenso de transtornos em suas facetas

    psicolgicas, fsicas e comportamentais, buscando sua integrao. Pensamentos,

    sentimentos e comportamentos afetam o bem-estar e a sade, devendo ser considerados

    em conjunto nos servios destinados ao cuidado de pessoas.

    As consideraes de Capito, Scortegagna e Baptista (2005) enfatizam a

    necessidade de abordagens multidisciplinares integradas no cuidado sade, sendo esta

    considerada no como ausncia de doena, mas como um estado multidimensional que

    engloba condies fsica, psicolgica e social do indivduo/grupo. Assim, do ponto de

    vista psicolgico, as prticas de avaliao psicolgica (enquanto processos de

    investigao e compreenso do funcionamento e organizao do psiquismo individual)

    podem funcionar como importantes ferramentas de auxlio no trabalho interdisciplinar

    em vrias frentes: tomadas de deciso referentes a diagnsticos, a tipos de interveno

    necessria, bem como sobre prognsticos.

    No contexto clnico, o processo de avaliao psicolgica com o objetivo de

    psicodiagnstico parte de pressupostos semelhantes, ao priorizar um enfoque

    compreensivo das mltiplas informaes geradas em um caso clnico, tomando aquilo

    que relevante e significativo na personalidade a fim de facilitar a indicao de recursos

    teraputicos e prever possveis respostas aos mesmos (Cunha, 2007). Nesse sentido,

    Arajo (2007) ao descrever as diversas abordagens tericas utilizadas no diagnostico e

    avaliao psicolgica aponta que uma enriquecedora concepo de personalidade seria a

    que pressupe a existncia de aspectos conscientes e inconscientes em sua dinmica e

    estrutura, cujo funcionamento encontra-se bem descrito pela teoria psicanaltica. O

    objetivo do psicodiagnstico, frente a isso, seria descrever e compreender a

  • 25

    personalidade do indivduo, buscando-se identificar seus elementos constitutivos e,

    principalmente, a explicao da dinmica dos elementos existentes, integrados em um

    quadro global (Ocampo & Arzeno, 1994).

    Dentre as tcnicas de avaliao de personalidade, destacam-se os mtodos

    projetivos que, sob o referencial de base psicodinmica, possibilitam o reconhecimento

    de fenmenos projetivos ao considerar que a percepo externa que um indivduo tem

    de certo estmulo determinada e influenciada por seu mundo interno. Assim, este se

    torna passvel de ser conhecido a partir de suas expresses em produes incitadas por

    estmulos pr-estabelecidos, em geral pouco estruturados (Anzieu, 1986; Fensterseifer

    & Werlang, 2008). Apesar da diversidade de instrumentos existentes, figuram entre

    mtodos projetivos muito utilizados, no Brasil e no mundo, o Mtodo de Rorschach e o

    Desenho da Figura Humana (DFH) (Herzberg & Mattar, 2008), sendo ambos aplicveis

    a diferentes grupos etrios, tnicos e socioeconmicos. Esses instrumentais sero

    brevemente abordados a seguir.

    1.1.1. O Mtodo de Rorschach

    O Mtodo de Rorschach, desenvolvido pelo psiquiatra suo Herman Rorschach

    e publicado em 1921, constitui-se por pranchas contendo borres de tinta imprecisos,

    cuja interpretao proposta ao respondente. As respostas resultantes dessa tarefa

    devem ser consideradas como indicadores da personalidade do indivduo, acessada a

    partir de suas projees. Dessa forma, os estmulos pouco estruturados dificultam que o

    indivduo se utilize de respostas estereotipadas, geradas por estmulos ambientais

    comuns, facilitando a expresso livre da individualidade de sua personalidade (Yazigi,

    2010). Essa liberdade de respostas geradas permite que o indivduo expresse aspectos

    mais primitivos de seu psiquismo, pouco acessveis, reprimidos e inconscientes, alm

  • 26

    dos aspectos da personalidade conscientes e observveis no comportamento (Jardim-

    Maran, Pasian & Okino, 2015).

    O Mtodo de Rorschach baseado na percepo e comunicao verbal

    elementar, mostrando-se sensvel e eficiente na captao de elementos do psiquismo

    humano (Rausch de Traubenberg, 1998). Pelo tipo de material e atividade pode ser

    aplicado a diferentes faixas etrias, sendo que reflexes tericas envolvidas no processo

    interpretativo permitem situar o indivduo em seu contexto de desenvolvimento,

    relativizando suas respostas em relao a seus pares e s caractersticas de cada etapa do

    crescimento.

    Enquanto um dos mtodos mais utilizados no mundo para avaliao da

    personalidade (Azoulay et al., 2007), o Rorschach foi um dos primeiros mtodos com

    esta finalidade a receber anlises e procedimentos tcnicos que visassem estabelecer sua

    cientificidade, expandindo sua credibilidade no cenrio internacional (Fenstersifer &

    Werlang, 2008). A literatura contempornea, como descrevem Pasian e Loureiro (2010),

    apresenta evidncias claras de validade e da preciso tcnica do Mtodo de Rorschach.

    Entretanto, para ser possvel descrever a personalidade individual, preciso poder

    contextualizar seus traos especficos dentro do grupo ao qual pertence, bem como a

    poca e o contexto scio cultural que os circunscrevem, o que tende a ser retratado nos

    estudos normativos (Jardim-Maran, Pasian & Okino, 2015).

    Este cuidado tcnico relativo a padres normativos baseados em dados

    estatsticos cuida para que, alm da teoria de personalidade que embasa as

    interpretaes do Rorschach, possa tambm existir cuidado com o significado destes

    resultados em termos adaptativos no ambiente cultural do indivduo (Weiner, 2000).

    Assim, suas respostas ao mtodo ficam contextualizadas na distribuio de um grupo

    considerado como de referncia (Pasian & Loureiro, 2010). A possibilidade de

  • 27

    aprofundada compreenso do dinamismo e estruturao psquica do indivduo, bem

    como sua adaptao no contexto scio cultural, permitem que se possa realizar, com

    maior preciso e validade, inferncias sobre o comportamento e encaminhamentos para

    intervenes mais adequadas s demandas.

    1.1.2. O Desenho da Figura Humana

    Da mesma forma, outro importante recurso de acesso a processos psicolgicos

    latentes intervenientes no funcionamento global da personalidade, incluindo os modos

    de pensar sentir ou agir (Villemor-Amaral & Pasqualini-Casado, 2006), so as tcnicas

    grficas de avaliao psicolgica. Destaque se faz ao Desenho da Figura Humana

    (DFH), que se aproveita de uma forma de comunicao humana primordial

    (grafismo/desenho) para levantar elementos para a anlise e avaliao da personalidade

    (Weschler, 2003).

    Hutz e Bandeira (1995) descrevem que desde 1926 o DFH utilizado para

    acessar o desenvolvimento da inteligncia, por meio dos critrios de Goodenough

    (1951), posteriormente revisados por Harris em 1963. Como coloca Arteche (2006), a

    compreenso do desenho enquanto expresso de aspectos desenvolvimentais pressupe

    um ciclo infantil tpico, observvel tambm a partir da produo grfica. Ainda que

    existam controvrsias quanto linearidade, bem como s fases do desenvolvimento, a

    maioria dos autores reconhece estgios tpicos deste processo. No Brasil, o DFH

    utilizado para a avaliao de aspectos cognitivos pelos sistemas avaliativos de

    Weschsler (2003) e Sisto (2006), aprovados pelo Conselho Federal de Psicologia (uso

    restrito a psiclogos).

    Outra linha de investigao dos desenhos infantis foi iniciada por Machover em

    1949, recorrendo ao DFH para avaliar a personalidade (Rosa & Alves, 2014). Neste

  • 28

    sentido, como aponta Hammer (1991), o desenho entendido como mtodo projetivo de

    avaliao psicolgica na medida em que aspectos do inconsciente so expressos no

    grafismo, indicando aquilo que a criana sente, em lugar do que a criana v. Assim, as

    produes pictricas permitiriam criana colocar no papel suas preocupaes,

    angstias, desejos, problemas e satisfaes, bem como apontar s estruturas bsicas que

    delineiam sua personalidade.

    Em 1968, uma terceira linha investigativa sobre desenhos de crianas,

    integrando o DFH como tcnica projetiva na investigao da personalidade e tambm

    como avaliao cognitiva, foi desenvolvida por Elisabeth Koppitz a partir de sua

    experincia clnica. Para esta pesquisadora (Koppitz, 1966), o desenho infantil refletiria

    uma espcie de fotografia do estgio maturacional, bem como do estado emocional da

    criana em um dado momento. Koppitz desenvolveu um sistema avaliativo do DFH

    constitudo por itens evolutivos baseados nas propostas de Goodenough-Harris, cuja

    presena aumenta na medida em que a criana envelhece e se desenvolve; e indicadores

    emocionais, embasados no pensamento de Machover e Hammer, que teriam sua

    ocorrncia independentemente da idade da criana, e seriam indicadores de dificuldades

    e preocupaes emocionais destas (Kobayashi, 2015). Segundo Koppitz (1966), a

    presena de dois ou mais indicadores emocionais seria altamente sugestiva da presena

    de problemas emocionais e relaes interpessoais problemticas.

    Segundo Saur, Pasian e Loureiro, (2010) a abordagem de Koppitz tem se

    mostrado vlida e til para processos de avaliao psicolgica, permitindo informaes

    referentes imagem corporal do indivduo, entre outros componentes da personalidade.

    Desta forma, vrias possibilidades interpretativas dos indicadores do DFH foram

    desenvolvidas ao longo de dcadas de estudos, cabendo ao avaliador optar pelo sistema

    avaliativo que atenda aos seus objetivos em cada situao (Saur, Pasian & Loureiro,

  • 29

    2010). Como apontam Lilienfeld, Wood e Garb (2000), os mtodos avaliativos

    envolvendo DFH tm a vantagem de apresentarem aplicaes rpidas e pouco

    dispendiosas, adotando, de forma geral, um sistema de classificao e anlise especfico

    para as produes dos indivduos.

    Apesar da grande utilizao do DFH pelos profissionais em sua prtica clnica,

    Hutz e Bandeira (1995) apontam para o baixo nmero de estudos que se ocuparam

    sistematicamente da validao do uso deste teste com crianas brasileiras. Ainda, mais

    recentemente, Arteche (2006) complementa que as instrumentaes projetivas quando

    avaliadas em suas propriedades psicomtricas no apontam resultados satisfatrios,

    sobretudo em sua validade e fidedignidade. No Brasil, essa pesquisadora se apoia nas

    consideraes de Safran (1996) para afirmar que estudos que visam avaliar a validade

    do DFH devem empreg-lo em conjunto a um instrumento controle ou a um mtodo

    projetivo com maiores evidncias de validade, como o Mtodo de Rorschach, proposta

    implementada no presente trabalho.

    Dentro da imensa variabilidade de contextos de aplicao dos mtodos

    projetivos de avaliao psicolgica, relevante apontar sua grande contribuio para as

    prticas em Sade, sobretudo Sade Mental. Ao circunscrever esse amplo tema nas

    discusses da Sade Pblica, em mbito mundial, focalizaremos as possibilidades de

    contribuio dos processos projetivos de avaliao psicolgica para compreender e

    pensar sobre intervenes junto crescente incidncia da obesidade e do sobrepeso.

    Destaca-se, em especial, o aumento dos ndices de obesidade infantil (World Health

    Organization - WHO, 2012), a seguir explorada em seus aspectos mais gerais e, em

    seguida, em algumas particularidades psicolgicas.

  • 30

    1.2. Obesidade Infantil

    Obesidade e sobrepeso so definidos pela WHO (2012), como acmulo de

    gordura anormal ou excessivo que pode prejudicar a sade. Estudos tm mostrado alta

    correlao entre obesidade na infncia e sua ocorrncia na idade adulta, bem como o

    desenvolvimento de sndromes metablicas nesta fase (Sun, Liang, Huang, Daniels,

    Arslanian, Liu, Grave & Siervogel, 2008; Guo, Wu, Chumlea & Roche, 2001). Nesse

    sentido, diversos trabalhos apontam para a importncia do tratamento e preveno da

    obesidade ainda na infncia, favorecendo a manuteno de hbitos e cuidados saudveis

    durante toda a vida (Hesketh & Campbell, 2010).

    Usualmente, a classificao nutricional para adultos realizada pelo ndice de

    Massa Corporal (IMC), calculado a partir da diviso do valor do peso do indivduo, em

    quilogramas, pelo valor de sua altura, em metros, ao quadrado. O resultado ento

    classificado, segundo WHO (2012) nas categorias: baixo peso (IMC < 18,5kg/m),

    eutrofia (18,5kg/m IMC < 25 kg/m), sobrepeso (25kg/m IMC < 30kg/m) e

    obesidade (IMC 30kg/m). Existem, entretanto, diversos outros ndices e mtodos

    para avaliao e acesso da gordura corporal e classificao nutricional, com variaes

    de acordo com idade e finalidade avaliativa, como medidas de pregas cutneas e de

    circunferncia abdominal. Na infncia, a avaliao nutricional com base em faixas pr-

    estabelecidas de IMC, como feito para a idade adulta, inadequada devido aos

    problemas gerados pela comparao da altura da criana com aquela esperada para sua

    idade, o que altamente varivel (Melo, 2011).

    Alternativamente, outras formas de classificao nutricional existentes permitem

    melhor compreenso e avaliao do estado nutricional em crianas. O Ministrio da

    Sade adota as recomendaes da Organizao Mundial da Sade (OMS) em relao

  • 31

    utilizao de curvas de referncia para essa avaliao, segundo as quais crianas

    menores de cinco anos devem seguir a referncia internacional da OMS de 2006. J em

    relao a crianas com cinco anos ou mais, bem como adolescentes, recomendado o

    uso da referncia internacional da OMS lanada em 2007 (Sociedade Brasileira de

    Pediatria - Avaliao nutricional da criana e do adolescente: Manual de Orientao,

    2009). Nestes referenciais, a classificao do IMC varivel segundo a faixa de

    crescimento especfica a idade e sexo da criana, diferentemente da classificao

    nutricional de adultos que se baseia em faixas de IMC pr-estabelecidas.

    De acordo com dados da WHO (2012), a obesidade classifica-se em quinto lugar

    entre os maiores riscos para mortes globais, sendo que 2,8 milhes de adultos morrem a

    cada ano por problemas decorrentes desse fenmeno. Alm disso, a obesidade predispe

    o indivduo a inmeras comorbidades (diabetes, problemas cardacos, certos tipos de

    cncer, entre outros), afetando todas as etnias e camadas socioeconmicas. Da mesma

    forma, a obesidade infantil tambm apontada como um dos mais srios desafios

    sade, sendo que, em 2010, o nmero de crianas obesas ou com sobrepeso superava a

    faixa de 42 milhes, mundialmente.

    No Brasil, apesar do histrico envolvendo a desnutrio, principalmente na

    regio nordeste do pas, a tendncia tem sido a mesma observada em termos

    internacionais, no sentido da inverso nutricional a favor da prevalncia da obesidade

    (Ferreira & Magalhes, 2006). Avaliaes antropomtricas realizadas pelo Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) em famlias selecionadas de todo o Brasil,

    em regies urbanas e rurais no perodo entre 2008 e 2009, mostraram excesso de peso

    em 33,5% das crianas entre cinco a nove anos, sendo que 16,6% dos meninos tambm

    eram obesos; entre as meninas, a obesidade apareceu em 11,8%. A prevalncia de

    excesso de peso variou entre 25% a 30% nas Regies Norte e Nordeste (correspondendo

  • 32

    a um valor mais que cinco vezes superior ao dficit de peso) e de 32% a 40% nas

    Regies Sudeste, Sul e Centro-Oeste (mais do que 10 vezes a prevalncia do dficit de

    peso). O excesso de peso tendeu a ser mais frequente em reas urbanas, em particular

    nas Regies Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. A prevalncia da obesidade

    mostrou distribuio geogrfica semelhante observada para o excesso de peso, em

    menores magnitudes.

    Frente ao preocupante contexto descrito, inmeros estudos buscam compreender

    a obesidade infantil em suas mltiplas facetas, de forma a desenvolver estratgias

    interventivas mais eficientes para cuidar desse fenmeno e suas consequncias. Os

    resultados tm mostrado a complexidade do quadro, acompanhado de diversas variveis

    de difcil identificao, acarretando achados contraditrios na literatura cientfica.

    Entretanto, como aponta a reviso de literatura de De Niet & Naiman, (2011), parece

    haver concordncia no tocante a multideterminao da obesidade, pautada por fatores

    inerentes ao indivduo (como herana gentica e aspectos psicolgicos), bem como

    aspectos ambientais (externos ao indivduo). So, assim, mltiplos os determinantes do

    quadro de obesidade, destacando-se a forte associao a comportamentos alimentares e

    estilos de vida.

    Os fatores externos, tais como a influncia dos pares e do comportamento

    alimentar parental, especialmente o materno, bem como transtornos psicopatolgicos

    maternos e estresse prolongado na infncia, parecem estar associados ao sobrepeso da

    criana (Puder & Munsch, 2010). Ainda que tais fatores assumam grande importncia

    na determinao da obesidade infantil, ainda no so suficientes para explic-la de

    modo global.

    Em relao s caractersticas psicolgicas estudadas, na literatura cientfica

    ganham destaque os fatores referentes expresso internalizada e externalizada de

  • 33

    dificuldades emocionais (Puder & Munsch, 2010). Em relao ao primeiro grupo, so

    descritos problemas relacionados depresso, ansiedade, somatizaes, baixa

    autoestima, insatisfao com o corpo e dificuldades de socializao. Quanto a

    expresses de externalizao de vivncias psquicas, so referenciadas dificuldades em

    funo do controle da impulsividade, geralmente relacionadas a comportamentos

    alimentares compulsivos em crianas, bem como hiperatividade e at mesmo

    agressividade, apesar de tais resultados no se mostrarem conclusivos em revises de

    literatura sobre o tema (Braet, 2005; De Niet & Naiman, 2011; Incledon, Wake & Hay,

    2011; Puder & Munsch, 2010).

    Evidenciam-se importantes avanos na compreenso da obesidade infantil, ainda

    que existam controvrsias entre achados. Grande parte dos estudos nesse tema

    focalizou, at o momento, questes psicopatolgicas e suas possveis relaes causais,

    como pode ser visto em detalhes no prximo tpico. Assim, muito ainda precisa ser

    feito no sentido de explorar e descrever a organizao e funcionamento psquico desses

    indivduos. Tais investigaes possuem importante potencial na compreenso desse

    quadro clnico, possibilitando o desenvolvimento de intervenes baseadas em recursos

    psquicos desses indivduos, otimizando seu desenvolvimento.

    1.3. Componentes psicolgicos da obesidade infantil

    Com objetivo de organizar e sistematizar informaes referentes aos elementos

    psicolgicos associados obesidade infantil, foram realizados dois levantamentos da

    literatura cientfica dessa rea, em momentos distintos durante desenvolvimento do

    presente estudo, respectivamente em maro de 2013 e aps um ano (abril de 2014). O

    primeiro levantamento objetivou analisar os principais achados que relacionassem a

  • 34

    obesidade a fatores psicolgicos, enfocando-se estudos que utilizaram o Mtodo de

    Rorschach. Decidiu-se incluir nas buscas a terminologia Imagem Corporal visando

    auxiliar na compreenso dos aspectos da percepo do corpo, visto que se trata de um

    transtorno que afeta largamente esta dimenso individual. Para tanto, optou-se pela

    utilizao das palavras-chave: Childhood obesity; Body image; Psychological

    Assessment e Rorschach, em combinaes pareadas. Foram selecionadas para a

    realizao da busca trs importantes bases de dados bibliogrficos, a saber: PsycINFO,

    Biblioteca Virtual em Sade (BVS) e PubMed, acessadas em 20/02/2013, com

    preferncia por trabalhos publicados nos ltimos 10 anos (2003-2013). Dessa forma,

    realizaram-se um total de 21 consultas cujos resultados mostraram um total de 1.573

    artigos, sendo 942 publicados entre 2003-2013. Deste montante, foram selecionados

    para anlise os trabalhos que tratassem de caractersticas psicolgicas de crianas com

    obesidade, ou revises de literatura que fornecessem informaes mais gerais sobre o

    tema, porm tambm envolvendo algum instrumento de avaliao psicolgica.

    Aplicados esses critrios de seleo de trabalhos foram identificados 107 estudos

    publicados. Esse total de pesquisas foi examinado em seus respectivos resumos, de

    modo a admitir no levantamento da literatura cientfica os trabalhos que tratassem

    efetivamente de obesidade infantil e mtodos projetivos de avaliao psicolgica.

    A partir desses procedimentos iniciais, 19 artigos foram considerados pertinentes

    para a proposta do atual trabalho, sendo apenas um deles anterior a 2003, selecionado

    por sua vinculao ao tema em estudo. A anlise pormenorizada desses 19 artigos

    cientficos revelou a seguinte distribuio: nove trabalhos realizaram reviso

    (sistematizada ou no) da literatura cientfica referente s temticas abordadas; um

    estudo de coorte; oito estudos transversais quantitativos; e um estudo transversal

    qualitativo.

  • 35

    Antes de seguir com a descrio de seus principais achados a partir de sua data

    de publicao, um primeiro destaque se faz para a diversidade de hipteses e evidncias

    empricas relativas aos indicadores psicolgicos vinculados obesidade em crianas.

    Assim, as revises bibliogrficas que discutem a depresso (Braet, 2005; De Niet &

    Naiman, 2011; Fabricatore & Wadden, 2004; Harriger & Thompson, 2012; Incledon,

    Wake & Hay, 2011; Puder & Munsch, 2010; Wardle & Cooke, 2005) e autoestima

    (Cornette, 2008; De Niet & Naiman, 2011; Incledon, Wake & Hay, 2011; Harriger &

    Thompson, 2012; Wardle & Cooke, 2005) apontam para hipteses divergentes no

    tocante a fatores psquicos associados obesidade infantil. Alguns estudos apontam a

    depresso como o problema psicopatolgico mais prevalente em crianas obesas

    (Harriger & Thompson, 2012), enquanto outros no apontam existncia de qualquer

    associao entre as variveis (De Niet & Naiman, 2011; Incledon, Wake & Hay, 2011).

    Por sua vez, Incledon, Wake e Hay (2011), alm de Wardle e Cooke (2005), sinalizam,

    em suas revises, associao um pouco diferente, no sentido de que a presena de

    sintomas depressivos sinaliza possvel aumento do IMC, hiptese sustentada

    empiricamente.

    Da mesma forma, estudos aqui analisados, referentes relao entre autoestima

    e obesidade infantil, tambm no relataram resultados consensuais entre si. A reviso

    bibliogrfica de Harriger e Thompson (2012) relata estudos que afirmam ser o nvel de

    gordura corporal preditivo de baixa autoestima em anos posteriores. J, segundo as

    revises de Incledon, Wake e Hay (2011) e Cornette (2008), baixa autoestima parece

    predizer a incidncia de obesidade em crianas e adolescentes. De forma interessante,

    Wardle e Cooke (2005) concluem, com base em seu levantamento da literatura

    cientfica, que nveis de insatisfao corporal tendem a ser mais altos em amostras de

  • 36

    crianas e adolescentes obesos (em relao aos indivduos eutrficos), sendo

    insignificante a diferena entre eles para ndices de depresso e baixa autoestima.

    Embora realizado na dcada de 1990, o estudo de Dreyfus (1993) foi

    incorporado no presente levantamento de literatura cientfica, visto seu carter

    integrador e impacto para a rea. O trabalho parte da concepo da obesidade enquanto

    sndrome multifatorial, exigindo abordagem multidisciplinar e vrios instrumentos

    avaliativos para sua adequada compreenso. Utilizou entrevistas, tcnicas grficas e o

    Mtodo de Rorschach enquanto instrumentos de coleta de dados, apontando a

    necessidade de ampla investigao de caractersticas de personalidade, em construo

    nessa etapa do desenvolvimento. Seus resultados apontam que a obesidade infantil seria

    uma forma de expresso da organizao psicolgica, exigindo intervenes especficas

    para o adequado cuidado desses casos clnicos.

    Com objetivo de examinar variveis envolvidas no desajustamento psicolgico

    de crianas e adolescentes com obesidade, Zeller, Saelens, Roehrig, Kirk e Daniels

    (2004) avaliaram 121 voluntrios clnicos (45 meninos e 75 meninas), de 11 a 17 anos,

    bem como o grau em que fatores maternos, demogrficos e da juventude estavam

    correlacionados ao ajustamento psicolgico dos participantes do estudo, avaliados pelo

    instrumento Behavior Assessment System for Children (BASC), que inclui medidas de

    autorrelato e escala respondida por pais. Os resultados apontam maior percepo de

    desajustamento psicolgico proveniente das descries maternas do que dos prprios

    jovens. Os autores discutem que as correlaes do estudo reafirmam a associao entre

    o autorrelato do jovem sobre ajustamento psicolgico com o nvel de sofrimento

    psicolgico materno, destacando essa varivel para a compreenso do desenvolvimento

    infanto-juvenil.

  • 37

    Hilbert, Winfried, Tuschen-Caffier, Zwaan e Czaja (2009) enfocaram a

    alimentao compulsiva em 59 crianas de oito a treze anos, recorrendo metodologia

    de entrevistas, a fim de investigar pensamentos e sentimentos vivenciados por crianas

    com obesidade antes e depois de eventos de alimentao com caractersticas de

    descontrole. Apontam que episdios de alimentao descontrolada, com ingesto

    calrica significativamente elevada em relao a alimentaes cotidianas, tendem a ser

    precedidos e sucedidos por cognies a respeito de comida/alimentao e relacionados

    imagem corporal, com mnimas evidncias de estados de humor negativos antecedendo

    a perda de controle. Concluem afirmando a necessidade de investigao aprofundada

    entre dificuldades de regulao do afeto e comportamento alimentar em crianas.

    Com base em estudo qualitativo, Mriaux, Berg e Hellstrm (2010) descreveram

    experincias cotidianas de vida, corpo e bem-estar de crianas com sobrepeso,

    entrevistando 16 voluntrios de 10 a 12 anos. Seus dados apontam adequada imagem

    corporal nas crianas, embora preocupadas com o corpo e conscientes de estilos de vida

    saudveis, ainda que no planejassem coloc-los em prtica.

    Certos trabalhos indicam ainda relao entre sobrepeso e problemas de

    socializao, como atitudes agressivas e antissociais, alm de maior ndice de

    apresentao de Transtorno do Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH) (Puder &

    Munsch, 2010). A reviso de estudos qualitativos com crianas inglesas, realizada por

    Rees, Oliver, Woodman e Thomas (2011), apresenta contedos de falas de crianas com

    sobrepeso. Evidenciam autopercepes de mudanas negativas no prprio

    comportamento, com relatos de experincias de bullying como estopim para atitudes de

    retaliao e agressividade repentina, levando muitas vezes a punies na escola. Nesse

    sentido, ao discutir a incidncia de baixa autoestima, Harriger e Thompson (2012)

    retomam discusses que indicam no ser a condio de peso, em si, que influenciaria a

  • 38

    autoestima, mas sim fatores sociais, relacionados ao peso, que poderiam estabelecer

    essas possveis associaes.

    Apesar da grande disparidade de resultados entre possvel associao da

    obesidade e componentes psicolgicos, importantes variveis intervenientes foram

    identificadas. Trabalhos que enfocaram diferenas entre gnero/sexo (Cornette, 2008;

    De Niet & Naiman, 2011; Fabricatore & Wadden, 2004; Incledon, Wake & Hay, 2011;

    Harriger & Thompson, 2012; Wardle & Cooke, 2005) apontam existncia de maior

    suscetibilidade de meninas baixa autoestima, bem como a sintomas depressivos e

    insatisfao corporal. A reviso de Rees, Oliver, Woodman e Thomas (2011),

    enfocando as prprias percepes de crianas, aponta para presses da mdia e dos

    ideais sociais de beleza feminina como fontes das prprias percepes infantis,

    sugerindo que as crianas tendem a formar forte ligao entre magreza e feminilidade, o

    que precisa ser examinado em novas investigaes.

    Em relao idade, a autoestima, mas no a depresso, estabeleceria maior

    associao com a obesidade na adolescncia. Segundo Incledon, Wake e Hay (2011), a

    obesidade no seria preditora de baixa autoestima na infncia, podendo, contudo, existir

    mudanas em anos posteriores. A autoimagem e autoestima sofreriam, segundo os

    autores, maior impacto de variaes de peso corporal durante a adolescncia.

    Em termos de evidncias empricas com delineamento de coorte, White,

    Nicholls, Christie, Cole e Viner (2012) buscaram estudar aspectos da hiperatividade e

    capacidade de ateno na infncia e o risco para obesidade ao longo da vida (coorte

    britnico de 1970). Os 16.567 participantes do estudo foram acompanhados em

    diferentes momentos da vida: com cinco anos, 10 anos, 16 anos, 26 anos, 29-30 anos e

    34 anos (n = 9.316), utilizando-se escalas adaptadas e respondidas por pais e professores

    sobre os aspectos estudados, e as mes tiveram seu bem-estar psicolgico avaliado. Os

  • 39

    resultados indicam consistente relao entre crianas com problemas psicolgicos em

    geral, particularmente hiperatividade e problemas de ateno, com a obesidade na vida

    adulta. Os autores discutem seus resultados com base na associao j estabelecida na

    literatura cientfica entre impulsividade e comportamento alimentar compulsivo,

    acarretando aumento do IMC.

    A partir do levantamento aqui realizado h que se comentar que o delineamento

    transversal e quantitativo foi mais frequente na literatura cientfica da rea. Esses

    estudos utilizaram prioritariamente faixas de IMC para sobrepeso ou obesidade como

    critrio de incluso nas amostras, bem como escalas de figuras de silhuetas humanas

    para o acesso imagem corporal ou o uso de inventrios para exame dos quadros

    clnicos estudados.

    Notou-se, da mesma forma, a priorizao de instrumentos objetivos para

    avaliao de sintomatologia depressiva, em especial o Inventrio de Depresso Infantil

    (CDI), utilizado nos trabalhos de Caldern, Forns e Varea (2010), com 281 adolescentes

    clnicos entre 11 e 17 anos; Li, Ma, Schouten, Hu, Cui, Wang e Kok (2007), com 3.886

    crianas chinesas de nove e dez anos; Shin e Shin (2008), contando com 413 crianas

    do quinto e sexto ano escolar; e tambm em Young-Hyman, Tanofsky-Kraff, Keil,

    Cohen, Peyrot e Yanovski (2006). Outra varivel enfocada nesses estudos foi o nvel de

    ansiedade infantil, avaliado tambm por instrumentos objetivos, como o Inventrio de

    Ansiedade Estado-Trao (STAI) e sua forma infantil, Inventrio de Ansiedade Estado-

    Trao para Crianas (STAIC), utilizado nos trabalhos de Caldern, Forns e Varea

    (2010) e Young-Hyman, Tanofsky-Kraff, Keil, Cohen, Peyrot e Yanovski (2006),

    respectivamente. Ainda, o trabalho de McCullough, Muldoon e Dempster (2009), com

    211 crianas escolares, examinou a possvel associao entre autoestima e obesidade

    infantil a partir da Escala de Autopercepo de Harter.

  • 40

    Como apontado nas citadas revises da literatura cientfica, os resultados

    empricos confirmaram fatores intervenientes na relao entre obesidade e

    sintomatologia depressiva/ansiedade e autoestima, porm com variadas nfases nos

    pesos dessas variveis. Foram destacados como relevantes para tendncia obesidade

    infantil: indicadores de comportamentos alimentares compulsivos, presena de

    insatisfao corporal, bullying e provocaes sociais referentes ao peso corporal, alm

    de claras diferenas em funo do sexo.

    Cerca de um ano mais tarde (abril de 2014), realizou-se novo levantamento da

    literatura cientfica sobre o tema da obesidade infantil, de modo a acompanhar os

    estudos dessa rea. Efetuou-se a opo pelas seguintes bases de dados: LILACS (visando

    representar de maneira mais direta publicaes nacionais, literatura Latino-Americana e

    do Caribe em Cincias da Sade,); PubMed e PsycInfo (base de dados da Associao

    Psicolgica Americana - APA, escolhida por representar de maneira mais contundente a

    produo internacional de estudos da rea da Psicologia). Optou-se, neste levantamento,

    pelas seguintes palavras-chave, consideradas apropriadas ao objetivo da busca:

    "childhood obesity" (obesidade infantil); personality (personalidade); "psychological

    assessment" (avaliao psicolgica) body image (imagem corporal); "psychological

    aspects" (aspectos psicolgicos); e "projective techniques" (tcnicas projetivas). A

    busca em cada base determinou que alteraes especficas fossem efetuadas nas

    combinaes entre as palavras, visando acessar de modo mais apropriado cada base de

    dados.

    Optou-se por incluir apenas artigos cientficos, que representam a produo

    cientfica divulgada nos peridicos indexados s bases bibliogrficas pesquisadas. Estes

    artigos deveriam referir-se primordialmente temtica psquica da obesidade infantil,

    ou seja, estudar aspectos do psiquismo da criana de zero a 12 anos de idade e com

  • 41

    obesidade, alm de estar disponvel nos idiomas portugus, ingls, espanhol e francs.

    Foram excludos os trabalhos repetidos entre as bases bibliogrficas; estudos que

    envolvessem validaes/avaliaes de instrumentos ou programas especficos de

    interveno; e trabalhos que enfocassem exclusivamente a percepo ou peso parentais.

    O resultado deste segundo levantamento de literatura cientfica, realizado em

    abril de 2014, totalizou 805 trabalhos. Entretanto, vrios textos foram excludos por

    encontrarem-se repetidos entre as bases ou de acordo com os critrios de

    excluso/incluso estabelecidos, como pode ser visto na Tabela 1.

    Tabela 1: Distribuio (em frequncia simples) dos artigos excludos em funo dos

    critrios utilizados no levantamento da literatura cientfica realizada em 2014.

    Critrio de excluso Nmero excludos

    Repetidos 96

    Abordar transtornos alimentares (e no a obesidade) 22

    No abordar a temtica psquica 222

    Estudos com casos de comorbidades fsicas e mentais na criana 22

    Estudos com grupos especficos (traumas, diferenas raciais) 18

    No ser artigo cientfico 35

    Avaliaes/validaes de instrumentos especficos 22

    Avaliaes de programas interventivos para perda de peso 78

    No estarem publicados em ingls/portugus/espanhol/francs 17

    Fatores relacionados exclusivamente a percepes/peso parentais 26

    No abordar obesidade/obesidade infantil 46

    No descrever faixa-etria infantil (0-12 anos) 139

  • 42

    Total 743

    O total de artigos efetivamente excludos nesse segundo levantamento

    corresponde a 726 manuscritos, visto que alguns trabalhos preencheram mais de um

    fator de excluso. Com relao aos estudos excludos devido lngua de publicao,

    encontraram-se seis trabalhos em italiano, quatro estudos em alemo, dois em polaco,

    um trabalho em noruegus, um em chins, um trabalho em rabe, um em hngaro e um

    estudo em russo.

    Assim, foram selecionados para anlise 79 trabalhos considerados pertinentes

    aos objetivos dessa reviso da literatura cientfica, optando-se por descrev-los em

    funo de algumas variveis a fim de facilitar sua compreenso e posterior discusso.

    Para tanto, foi necessrio realizar a busca do trabalho na ntegra, o que resultou em 60

    trabalhos disponveis. Para os 19 estudos no resgatados de modo integral, as

    informaes presentes no resumo disponibilizado pelos autores foram consideradas, de

    modo a caracterizar o conjunto de artigos cientficos identificados nesse segundo

    momento.

    Em termos de distribuio das publicaes cientficas realizadas por ano,

    observou-se que no perodo de 1973 a 1994 houve um ou dois artigos anuais, taxa que

    se elevou nos anos de 1995 a 2000 (trs a quatro trabalhos anuais), decrescendo depois

    ao patamar inicial (anos 2001 a 2004). Em 2005 foram identificados nove artigos sobre

    o tema em foco, taxa que sofreu alguma variao desde ento, porm desde 2009 h oito

    a dez trabalhos publicados por ano, at 2013. Ou seja, h tendncia a maior divulgao

    cientfica sobre o tema da obesidade infantil nos ltimos anos.

    O acesso ao pas de origem da publicao foi disponibilizado somente nos

    trabalhos resgatados de modo integral, totalizando 60 artigos. Os EUA figuram na

  • 43

    primeira posio com 22 trabalhos, seguido pelo Brasil (com nove artigos publicados),

    Reino Unido (seis estudos), Canad (quatro trabalhos) e Austrlia (trs artigos). A partir

    da figuram (com dois artigos publicados sobre o tema) os seguintes pases: Noruega,

    Espanha, Portugal, Alemanha, Coria do Sul e Blgica. Seguem, por fim, os pases com

    um trabalho publicado no perodo examinado: Frana, Sua, Sucia e Itlia.

    Ainda, com relao aos delineamentos das pesquisas, optou-se por classific-los

    em: a) estudos descritivos (trabalhos empricos de observao de uma amostra e sua

    caracterizao, 26%); b) estudos descritivos comparativos (trabalhos empricos com

    grupos distintos pr-determinados cujos resultados foram comparados, 45%); c) estudos

    tericos ou de reviso sistemtica da literatura (22%); d) estudos longitudinais (7%).

    Optou-se tambm pela anlise do construto psicolgico abordado nos estudos,

    destacando que um mesmo trabalho poderia abordar vrios elementos. Dessa forma, os

    construtos foram pontuados de forma independente (nmero de vezes que cada aspecto

    psicolgico foi abordado), e no referentes ao nmero total de manuscritos pesquisados.

    A Figura 1 descreve os dados de 76 artigos, sendo que trs artigos (no resgatados de

    forma integral) no disponibilizaram informaes suficientes para a categorizao dos

    construtos em estudo.

  • 44

    Figura 1: Distribuio (frequncia simples) dos construtos psicolgicos abordados em

    76 artigos da reviso da literatura cientfica.

    Observa-se que, alm do construto imagem corporal e personalidade, que

    foram propositadamente inseridos na busca bibliogrfica, os elementos autoestima,

    depresso, ansiedade, qualidade de vida, autoconceito,

    comportamento/conduta e atitudes/habilidades para atividades fsicas,

    temperamento, lcus de controle, dficit de ateno/hiperatividade e

    vitimizao/bullying tambm aparecem como aspectos avaliados nas crianas e seus

    pais. Foi possvel notar, ao longo do perodo pesquisado, que o tema da Imagem

    Corporal constante nos estudos, bem como caractersticas de personalidade. Ao longo

    dos anos, houve interesse mais especfico em alguns construtos, a saber: autoestima,

    ansiedade e depresso, menos frequentes at a dcada de 1980.

    Outro elemento de interesse para o presente trabalho voltou-se aos instrumentos

    de avaliao psicolgica utilizados nesses estudos. O resultado desta anlise baseou-se

    em 60 trabalhos, visto que 14 estudos no utilizaram instrumentos especficos de

    avaliao, bem como outros cinco estudos no disponibilizaram esta informao em

  • 45

    seus resumos. Um mesmo estudo pode utilizar mais de um instrumento avaliativo, de

    forma que os dados se referem frequncia com que estes foram utilizados,

    independentemente no nmero total de manuscritos examinados. Os principais

    instrumentos de avaliao identificados nos estudos foram: escalas de autorrelato

    (28%); escalas de silhuetas (19%); questionrios (19%); inventrios (18%);

    instrumentos projetivos (8%); checklists (5%); entrevistas (2%) e observaes (1%).

    Optou-se por separar escalas de autorrelato diversas de escalas de imagem corporal

    (compostas de figuras de silhuetas humanas com diferentes ndices de massa corporal)

    para possibilitar maior discernimento na anlise.

    Finalmente, para o mbito do presente estudo, julgou-se pertinente especificar o

    mtodo projetivo utilizado nos 10 estudos que fizeram uso desse recurso tcnico. Em

    ordem de maior utilizao encontrou-se o Desenho de Figura Humana (DFH) em sete

    estudos, o Mtodo de Rorschach em dois trabalhos, o Holtzman Inkblot Technique (um

    estudo) e o Teste de Apercepo Infantil (CAT, um estudo). Em um desses trabalhos o

    Desenho da Figura Humana (DFH) e o CAT foram utilizados conjuntamente.

    A partir das anlises descritivas dos dados encontrados nessa reviso da

    literatura cientfica, pode-se apontar o gradual aumento das pesquisas na rea, cujo

    primeiro trabalho selecionado foi publicado em 1973. A elevao do nmero de

    investigaes cientficas sobre o tema da obesidade infantil pode estar relacionada

    crescente preocupao dos rgos de Sade Pblica com esse quadro clnico e suas

    implicaes, segundo a Organizao Mundial da Sade (WHO, 2014). Tambm cada

    vez mais aceita a multidisciplinaridade e multidimensionalidade envolvida na

    compreenso da obesidade infantil e de processos interventivos eficazes (Carvalho,

    Cataneo, Galindo & Malfar, 2005; Gonalves, Silva & Antunes, 2012). Esta

  • 46

    perspectiva permite o investimento em outros aspectos da sade da criana alm do

    clnico-nutricional, como o mbito psicolgico.

    Com relao origem das publicaes, percebe-se que a grande maioria dos

    trabalhos foi realizado na Amrica do Norte, sobretudo nos Estados Unidos. Em

    seguida, destaca-se o Brasil, mas preciso considerar que a escolha das bases de dados

    relativiza tal resultado. Com menor destaque, porm alta qualidade metodolgica,

    aparecem a Austrlia, pases europeus e a Coria do Sul. O alto ndice de trabalhos

    concentrados nos Estados Unidos pode refletir a preocupao particular deste pas com

    a elevada incidncia da obesidade. Segundo Ogden, Carroll, Kit e Flegal (2014), desde a

    dcada de 1970 o ndice de obesidade mais que dobrou nos Estados Unidos, sendo que

    hoje 68,5% dos adultos com mais de 20 anos apresentam peso elevado, dos quais 34,9%

    esto obesos. O mesmo estudo encontrou que, dentre as crianas americanas (dois a 19

    anos), 31,8% esto acima do peso, sendo que destas 16,9% preenchem critrios para

    obesidade.

    importante ressaltar, no entanto, que existem dados contrastantes com relao

    aos ndices de obesidade e sobrepeso de diferentes pases, como apontado em pesquisa

    realizada pelo rgo de Sade Pblica do Reino Unido (2012), englobando achados de

    diversas instituies internacionais, comparando a prevalncia da obesidade em adultos.

    Os extremos da comparao mostram que, no ano de 2010, os Estados Unidos

    apresentavam ndice de 35,9% de obesidade, enquanto o Japo apresentava 3,5% de

    prevalncia desse quadro clnico e, a Coria do Sul, 4,1%. Este apontamento

    indicativo da importncia das ressalvas culturais inerentes ao pas onde se realiza o

    estudo sobre a obesidade.

    Outro aspecto que se destaca a partir do presente levantamento da literatura

    cientfica relativo ao delineamento das pesquisas. Devido ao carter clnico do objeto

  • 47

    de estudo, grande parte dos trabalhos emprico-descritiva ou descritivo-comparativa,

    ou seja, visa descrever caractersticas psicolgicas de um grupo de indivduos e

    compar-las a posteriori. Exemplo desse tipo de pesquisa o trabalho de Li, Ma,

    Schouten, Hu, Cui, Wang e Kok (2007), onde um grupo representativo de crianas

    chinesas foi caracterizado em funo do peso corporal e de componentes psicolgicos.

    Outro exemplo de estudo realizado com frequncia na rea o delineamento de

    comparao de caractersticas de dois grupos pr-selecionados (por exemplo, um grupo

    de obesos e outro de no obesos, como realizado no estudo de Luiz, Gorayeb &

    Liberatore Jnior, 2010). Apesar de tais metodologias mostrarem-se adequadas ao

    contexto, no se pode deixar de apontar limitaes nesses trabalhos, uma vez que, ao

    descreverem covariaes, no conseguem determinar relaes de causa e efeito entre os

    aspectos estudados e a obesidade. Esta peculiaridade propicia alguns vieses

    interpretativos a serem devidamente ponderados a respeito desse tipo de achados, antes

    de concluses sobre o tema em foco. Estudos longitudinais, por sua vez, evitariam este

    tipo de problema, mas tendem a ser pouco utilizados, possivelmente por seu alto custo

    financeiro e temporal.

    Alm do aumento das publicaes ao longo das ltimas dcadas, pode-se

    observar tambm diversificao e flexibilizao dos construtos enfocados, alargando o

    leque das hipteses de variveis envolvidas no processo da obesidade. Esta mudana

    possibilita investigar mltiplos fatores que determinam, influenciam ou alteram o curso

    da obesidade.

    Em relao aos construtos psicolgicos focalizados, a imagem corporal se

    apresenta como objeto de pesquisa constante desde o incio da produo cientfica do

    campo, o que pode explicar a grande variedade de instrumentos e escalas destinados a

    esta investigao. A preocupao com a autoestima das crianas e sua relao com o

  • 48

    transtorno aparece um pouco depois, mas assume tambm significativo espao nos

    trabalhos realizados. Como aponta Cobreros (2008), a obesidade constitui-se em doena

    crnica visvel e, por isso, alvo de estigmas que estariam de alguma forma associados

    elevada autoexigncia e baixa autoestima em crianas portadoras dessa sndrome.

    Alm disso, observa-se o surgimento e rpido crescimento de estudos enfocando

    aspectos psicopatolgicos associados obesidade, que se apresentam em publicaes

    mais recentes (a partir dos anos 2000), sendo estes representados prioritariamente pelos

    sintomas depressivos e de ansiedade, e que, da mesma maneira que a autoestima, j

    conquistaram considervel nmero de estudos. Entretanto, os resultados das associaes

    entre tais sintomas e a obesidade mostram-se complexos e muitas vezes contraditrios.

    Tais discordncias puderam ser constatadas tanto dentro dos resultados das prprias

    revises, como tambm entre diferentes trabalhos aqui analisados (Cornette, 2008;

    Incledon, Wake & Hay Me, 2011; Puder & Munsch, 2010), o que tambm foi detectado

    no primeiro levantamento da literatura cientfica realizado nesse trabalho. Nesse

    sentido, tem-se hipotetizado que a relao destes aspectos psicopatolgicos com a

    obesidade pode estar sendo mediada por outras variveis, tais como baixa autoestima,

    bullying, insatisfao com o corpo, gnero, entre outros (Cornette, 2008; De Niet &

    Naiman, 2011; Incledon, Wake & Hay, 2011; Harriger & Thompson, 2012; Wardle &

    Cooke, 2005).

    Considerou-se importante aos propsitos deste trabalho analisar os tipos de

    instrumentos mais utilizados para acessar os construtos psicolgicos, uma vez que cada

    instrumental permite informaes peculiares. Notou-se uso prioritrio de escalas e

    questionrios, possivelmente pela objetividade e clareza dos resultados oferecidos por

    estes instrumentos. J a metodologia projetiva, entrevistas e observaes, que fornecem

    dados de natureza descritiva e a partir de princpios psicodinmicos, tiveram uso menos

  • 49

    frequente entre os trabalhos identificados no levantamento da literatura cientfica.

    Dentre estes ltimos, o Desenho da Figura Humana (DFH) foi o mtodo projetivo com

    maior uso, seguido pelo mtodo de Rorschach, o teste de manchas de Holtzman e o

    Teste de Apercepo Temtica Infantil (verso animal - CAT-A). Ou seja, envolvem

    poucos instrumentos projetivos, configurando-se como campo relativamente pouco

    explorado quando comparado com os demais mtodos de avaliao ao psiquismo

    infantil.

    Ao focalizar a anlise em artigos voltados ao tema da obesidade e possveis

    associaes com caractersticas de personalidade, identificam-se nove trabalhos

    integralmente recuperados, com distintas linhas tericas e delineamentos. Destes, sete

    so estudos empricos e dois so trabalhos tericos, sinteticamente explorados a seguir,

    conforme sua cronologia.

    Dentre os trabalhos empricos, os estudos de Carvalho (2001) e Cardoso e

    Carvalho (2007) realizaram ampla avaliao psicolgica, no s de caractersticas de

    personalidade, mas tambm construtos como ansiedade, autoconceito, ndices

    emocionais e cognitivos (a partir do Desenho de Figura Humana). Em Carvalho (2001),

    a ansiedade e lcus de controle foram acessados por meio de escalas, alm de avaliao

    quantitativa e qualitativa do DFH visando averiguar problemas emocionais. Comparou

    seus resultados a um grupo controle, no encontrando diferenas significativas. J

    Cardoso e Carvalho (2007) utilizaram instrumento avaliativo da ansiedade-trao e da

    ansiedade-estado, escala para lcus de controle e DFH. Identificaram em seus

    participantes produo compatvel com os parmetros mdios do grupo de referncia,

    sem particularidades nas crianas com obesidade.

    Ao adotar abordagem psicanaltica para sua pesquisa, Cobreros (2008) utilizou o

    Questionario de Personalidad para Nios como instrumento de coleta de dados,

  • 50

    permitindo classificao pautada em extremos: reservado/aberto; baixa inteligncia/alta

    inteligncia; afetado por sentimentos/emocionalmente estvel; calmo/excitvel;

    submisso/dominante; sbrio/entusiasta; despreocupado/consciente;

    coibido/empreendedor; sensibilidade dura/sensibilidade branda; seguro/irresoluto;

    simples/astuto; sereno/apreensivo; pouco/muito integrado; relaxado/tenso. Alm disso,

    possibilita identificao dos seguintes fatores de segunda ordem: ansiedade alta/baixa;

    introverso/extroverso; calma/excitabilidade-dureza. Foram includos na amostra desse

    estudo, trs grupos de crianas: com obesidade, eutrficas e com diabetes. Consegue,

    ento, comparar traos de personalidade comuns em ambos os quadros clnicos crnicos

    em relao ao grupo eutrfico saudvel, identificando algumas especificidades. No

    grupo obeso os pesquisadores encontraram sinais de adaptao pessoal, porm com

    maior insatisfao consigo e menor autoestima. No foram observados traos

    especficos de personalidade no grupo com obesidade. As diferenas encontradas

    distanciam os grupos de crianas com patologias crnicas (diabticos e obesos) do

    grupo de crianas saudveis eutrficas. Neste sentido, o grupo com quadros clnicos

    apresentava plo mais negativo na varivel inteligncia, indicando intelectualidade

    deficitria e pensamento concreto, com aprendizagem e compreenso lentas. Os fatores

    de sensibilidade, integrao e excitabilidade tambm demonstraram diferena

    significativa, sendo que as crianas com obesidade ou com diabetes sinalizaram carter

    mais dependente, impressionvel, submisso, prudente, sentimental, autodisciplinado,

    socialmente escrupuloso, pouco expressivo e elevado controle emocional. J o grupo

    saudvel eutrfico mostrou-se mais independente, autoconfiante, entusiasta, vital,

    obstinado, perspicaz, calculista e descuidado das regras sociais. Frente aos achados, os

    autores refletem sobre a possibilidade de padres de personalidade prprios de crianas

    com enfermidades crnicas em lugar de padres especficos de cada patologia.

  • 51

    O trabalho de Mishima e Barbieri (2009) aborda a personalidade, assim como o

    estudo de Cobreros (2008), a partir do referencial psicanaltico. Entretanto, utilizam-se

    dos mtodos projetivos CAT-A e DFH para acessar a dinmica psquica, aqui entendida

    sob o referencial de Winnicot como o processo de interao entre o mundo interno do

    indivduo e o mundo externo. Por se tratar de estudo de caso, os resultados trazem dados

    minuciosos e hipotticos a respeito da organizao psquica especfica da criana

    examinada, elementos de difcil generalizao e comparao com os demais achados da

    atual reviso da literatura cientfica.

    O estudo de Hartmann, Czaja, Rief e Hilbert (2010) trabalha com o modelo de

    personalidade biossocial de Cloninger, segundo a qual temperamento e carter so

    distintos. Temperamento envolve aspectos estveis da personalidade, biologicamente

    determinados, enquanto o carter, por sua vez, seria desenvolvido a partir da interao

    entre o temperamento e o ambiente. O instrumento utilizado nesse estudo foi um

    inventrio respondido pelos pais das crianas participantes, visando acessar quatro

    dimenses do temperamento (busca pelo novo; evitao de danos; dependncia de

    recompensa e persistncia) e trs dimenses do carter (auto direcionamento;

    cooperativismo; auto transcendncia). Alm disso, as crianas responderam a um

    inventrio sobre impulsividade, comportamentos de risco e empatia, considerados pelos

    autores como complementares ao estudo da personalidade. Os resultados sugerem

    padro especfico de traos de personalidade para crianas com episdios de

    alimentao compulsiva (LOC Lost Of Control over eating). O grupo com LOC

    apresentou menor auto direcionamento e cooperativismo do que o grupo de

    comparao. Da mesma forma, crianas com LOC foram significativamente mais

    impulsivas. As dimenses da personalidade foram significativamente correlacionadas

    com maior ndice de psicopatologias em geral, mas no a transtornos alimentares ou a

  • 52

    presena de LOC. Os pesquisadores hipotetizam a existncia de um padro distinto de

    comportamento alimentar em crianas com LOC, vinculado a seus traos de

    personalidade, porm sugerem estudos longitudinais para examinar se certos padres de

    personalidade nesta populao contribuem para diferenas em possveis manifestaes

    psicopatolgicas em momentos posteriores da vida da criana.

    Os instrumentos usados nos estudos desenvolvidos por Romo, Coffec e

    Guilmin-Crepon (2012) e Vollrath, Hampson e Juliusson (2012) tm por base a teoria

    dos cinco grandes fatores da personalidade (modelo Big Five), sendo eles neuroticismo

    ou instabilidade emocional, extroverso, amabilidade ou benevolncia, escrupulosidade

    ou conscienciosidade, e abertura para a experincia ou imaginao. Tal modelo permite

    aos autores discutir seus objetivos em funo das vantagens e desvantagens que os

    traos de personalidade apresentados pelos participantes facilitam ou dificultam a

    motivao mudana de hbitos (Romo, Coffec & Guilmin-Crepon, 2012) ou uma

    propenso ao tipo de consumo alimentar (Vollrath, Hampson & Juliusson, 2012).

    interessante apontar que, em ambos os trabalhos, estes inventrios so preenchidos

    pelos pais das crianas, ainda que em Romo, Coffec e Guilmin-Crepon (2012) tenha

    sido aplicado um instrumento avaliativo tambm nas crianas. Os resultados do estudo

    supracitado no encontraram relao entre traos de personalidade dos pais e sobrepeso

    dos filhos. J a avaliao de personalidade das crianas discutida com cautela, com

    indicadores de aumento do neuroticismo podendo testemunhar aumento da sensibilidade

    a afetos negativos em crianas com obesidade. Da mesma forma, a elevao da

    extroverso, abertura, e conscienciosidade seriam fatores positivos interveno

    teraputica em quadros de obesidade infantil.

    A pesquisa desenvolvida por Vollrath, Hampson e Juliusson (2012) comparou

    ndices dos cinco grandes fatores de personalidade com hbitos alimentares de crianas,

  • 53

    controlando idade e escolaridade materna. Descrevem que crianas menos benevolentes

    consumiam mais bebidas doces, e meninas menos conscienciosas e mais neurticas

    ingeriam menos bebidas adocicadas. Meninos e meninas mais benevolentes e

    imaginativos consumiam mais frutas e vegetais, assim como meninos mais

    extrovertidos, conscienciosos e menos neurticos. Ao controlar a educao materna, os

    autores encontraram que meninos e meninas menos extrovertidos e meninas menos

    benevolentes e conscienciosas e mais neurticas tinham maior propenso a estarem com

    sobrepeso ou com obesidade. Os autores concluem que os traos de personalidade das

    crianas exercem importante e ainda pouco compreendido papel nas dietas alimentares e

    sugerem novos estudos para auxiliar esta compreenso.

    Finalmente, os estudos desenvolvidos por Braet (2005) e De Niet e Naiman

    (2011) constituem-se como trabalhos tericos, descrevendo aspectos psicolgicos gerais

    concernentes obesidade infantil, apresentando subtpicos que abordam brevemente a

    personalidade. De Niet e Naiman (2011) descrevem a personalidade em traos,

    enfocando, sobretudo, os achados referentes a impulsividade e busca por diverso em

    casos de obesidade. Na mesma linha, Braet (2005) descreve a personalidade como fator

    que desempenha forte papel no desenvolvimento ou manuteno da obesidade. Destaca

    tambm escores mais altos em questionrios para impulsividade e fatores de

    externalizao (descrito como maior responsividade a estmulos externos, como

    cheiros e imagens, em detrimento de sensaes internas como saciedade) como traos

    de personalidade em casos de obesidade em crianas, ainda que aponte a inexistncia de

    consenso terico e emprico sobre o tema.

    A partir dos estudos identificados no levantamento da literatura cientfica sobre a

    obesidade infantil foi possvel notar uma definio polissmica para o construto

  • 54

    personalidade, influenciada pela perspectiva terica de cada investigador. Depreendeu-

    se estudos que consideraram aspectos isolados da personalidade, como trao de

    ansiedade, lcus de controle (Carvalho, 2001; Cardoso & Carvalho, 2007), ao lado de

    trabalhos que buscaram descrio global do indivduo a partir de traos principais de

    sua personalidade (Cobreros, 2008; Hartmann, Czaja, Rief & Hilbert, 2010; Romo,

    Coffec & Guilmin-Crepon, 2012; Vollrath, Hampson & Juliusson, 2012) e um trabalho

    cuja caracterizao do psiquismo foi descrito pela dinmica de suas relaes, no se

    caracterizando por traos especficos (Mishima & Barbieri, 2009).

    Aps esse trabalho, buscou-se identificar pesquisas com o tema da obesidade

    infantil e que tivessem trabalhado com tcnicas grficas de investigao psicolgica,

    sobretudo o Desenho de Figura Humana (DFH). Desse modo, foram detectados trs

    estudos adicionais que utilizaram o DFH como ferramenta para acessar a personalidade

    de crianas com obesidade e sero apresentados em ordem cronolgica.

    Azevedo (2003) props-se a investigar, a partir da abordagem psicossomtica

    (que considera a obesidade como sintoma e expresso inconsciente de transtornos

    emocionais), a personalidade de 30 crianas com obesidade e 30 crianas de peso

    normal, de sete a 13 anos de idade. Sistematizou a presena dos Indicadores Emocionais

    (IE) de Koppitz (1966) na produo dos DFH desses participantes. A autora encontrou

    significativo maior nmero de IEs e escores mais altos nas crianas com obesidade,

    corroborando a viso de Koppitz de que o aumento desses indicadores est associado ao

    comprometimento emocional da criana. Os IEs evidenciariam sinais de conflito no

    psiquismo e, como tal, revelaram evidncias de ansiedade. Nesse sentido, as crianas

    com obesidade apresentaram mais indicadores de dificuldades emocionais do que as de

    peso normal.

  • 55

    Os indicadores Figura Inclinada, Omisso do Nariz e Braos Curtos

    apareceram com maior frequncia no grupo com obesidade. Tais indicadores, segundo

    Koppitz (1966), seriam mais frequentes em desenhos de crianas com transtornos

    psicossomticos. A omisso do nariz est associada conduta tmida e retrada, com

    ausncia de agressividade manifesta e reduzido interesse social. J a presena de braos

    curtos relacionada tendncia ao retraimento, ao fechamento sobre si e inibio de

    impulsos; enquanto o desenho inclinado associado a insegurana, instabilidade. As

    pesquisadoras comentam que, segundo Koppitz (1966), crianas menos impulsivas ou

    reprimidas poderiam redirecionar sua agressividade para si prprias, tendendo a

    desenvolver sintomas psicossomticos quando frustradas e ressentidas, diferentemente

    de crianas agressivas, as quais revelariam menor controle de impulsos, voltando-os

    para fora.

    Uma investigao mais recente nessa rea foi desenvolvida com objetivo de

    investigar a relao entre a sintomatologia depressiva e a obesidade em crianas

    (Kitamura, Delvan, Schlsser & Lanoni-Jr., 2013). Para tanto oito crianas entre sete e

    11 anos, diagnosticadas com obesidade, responderam ao Inventrio de Depresso

    Infantil (CDI) e realizaram o DFH, avaliado pelos Itens Evolutivos e Indicadores

    Emocionais de Koppitz, enquanto os pais responderam a um questionrio e a anamnese.

    Como resultados os pesquisadores encontraram ausncia de sintomatologia depressiva

    nas crianas avaliadas. Entretanto, sete das oito crianas avaliadas apresentaram mais

    que dois IEs, sugerindo problemtica emocional. Os indicadores mais presentes entre as

    crianas foram braos curtos e assimetria grosseira dos membros. Este ltimo

    indicador, como descrevem os autores, estaria possivelmente associado falta de

    coordenao e pobreza de controle muscular fino, mas tambm poderia refletir o

    sentimento da criana de no estar bem coordenada e sem adequado equilbrio interno.

  • 56

    Ainda pautado na produo infantil a partir do DFH, o estudo de Haldelzalts e

    Ben-Artzy-Cohen (2014) objetivou estudar as caractersticas altura, largura e

    incluses/omisses de detalhes dos desenhos e sua relao com a imagem corporal

    medida por escala de autorrelato (Escala de Imagem Corporal de Gray) e

    comportamentos de dieta e IMC. Avaliaram 54 estudantes de Psicologia do sexo

    feminino, de 20 a 27 anos de idade, subdivididas de acordo com seu relato sobre dietas

    alimentares (27 mulheres relataram nunca terem feito dieta alimentar, 27 mulheres com

    relato de dieta alguma vez na vida, das quais 13 reportaram terem estado em dietas tanto

    no passado como no presente, e 14 mulheres reportaram estar em dieta no presente). Os

    resultados apontam que os desenhos das mulheres em dieta para perda de peso foram

    menores que as demais, porm no de maneira significativa. Entretanto, as dimenses

    mensuradas do DFH mostraram significativa e positiva correlao com os resultados da

    escala de autorrelato, na medida em que figuras maiores estavam associadas a melhor

    imagem corporal. No foram encontradas diferenas estatisticamente significativas

    entre os grupos de mulheres no tocante a incluses / omisses no DFH.

    Pode-se notar que o DFH foi e ainda se constitui como relevante instrumento

    avaliativo para captao de caractersticas relativas ao psiquismo, quer em crianas ou

    em adultos, atravessando dcadas e diferentes perspectivas tericas. Como atesta a

    literatura cientfica, pode ser bastante til e econmico para se compreender

    caractersticas internas dos indivduos, sobretudo em quadros clnicos, como no caso da

    obesidade.

    Frente aos achados de reviso da literatura cientfica a respeito da obesidade em

    crianas e seus componentes psicolgicos realizadas neste trabalho, detectam-se poucos

    estudos com viso integradora do psiquismo, que o entenda como multifacetado e que

    busque relacionar diversos construtos, com predomnio de pesquisas que recorreram a

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    instrumentos de acesso objetivo a variveis especficas, tais como ansiedade e

    depresso. Entretanto, como bem apontam Villemor-Amaral e Pasqualini-Casado

    (2006), tais tipos de instrumento de avaliao psicolgica possuem alcance delimitado,

    dif