ordem econômica e financeira ministrante- marçal justen filho

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Caderno de Direito Constitucional – 2006 Marçal Justen Filho 2 ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO Direção Desembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon Conselho Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz Desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira Coordenador Científico do Módulo de Direito Constitucional Juiz Federal Jairo Gilberto Schäfer Assessoria Isabel Cristina Lima Selau ___________________________________________ CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL Organização Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling Revisão Leonardo Schneider Maria Aparecida Corrêa de Barros Berthold Maria de Fátima de Goes Lanziotti Capa e Editoração Alberto Pietro Bigatti Marcos André Rossi Victorazzi Rodrigo Meine Apoio Seção de Reprografia e Encadernação Contato: E-mail: [email protected] Fone: (51) 3213-3041, 3213-3043 e 3213-3042 www.trf4.gov.br/emagis

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Page 1: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Caderno de Direito Constitucional – 2006 Marçal Justen Filho

2

ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO

DireçãoDesembargador Federal Luiz Carlos de Castro Lugon

ConselhoDesembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz Desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira

Coordenador Científico do Módulo de Direito Constitucional Juiz Federal Jairo Gilberto Schäfer

AssessoriaIsabel Cristina Lima Selau

___________________________________________ CADERNO DE DIREITO CONSTITUCIONAL

OrganizaçãoMaria Luiza Bernardi Fiori Schilling

Revisão Leonardo Schneider Maria Aparecida Corrêa de Barros Berthold Maria de Fátima de Goes Lanziotti

Capa e Editoração Alberto Pietro Bigatti Marcos André Rossi Victorazzi Rodrigo Meine

ApoioSeção de Reprografia e Encadernação

Contato:E-mail: [email protected] Fone: (51) 3213-3041, 3213-3043 e 3213-3042 www.trf4.gov.br/emagis

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Caderno de Direito Constitucional – 2006 Marçal Justen Filho

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Apresentação

O Currículo Permanente criado pela Escola da Magistratura do

Tribunal Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS - é um curso realizado em

encontros mensais, voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes

federais substitutos da 4ª Região, que atende ao disposto na Emenda

Constitucional nº 45/2004. Tem por objetivo, entre outros, propiciar aos

magistrados, além de uma atualização nas matérias enfocadas, melhor

instrumentalidade para condução e solução das questões referentes aos casos

concretos de sua jurisdição.

O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto

desta Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender

às necessidades dos participantes.

O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como

artigos, jurisprudência selecionada e estudos de ilustres doutrinadores

brasileiros e estrangeiros compilados pela EMAGIS e destina-se aos

magistrados da 4ª Região, bem como a pesquisadores e público interessado

em geral.

Page 3: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Caderno de Direito Constitucional – 2006 Marçal Justen Filho

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Índice:

Ordem Econômica e Financeira Ministrante: Marçal Justen Filho

Ficha Técnica......................................................................................................................................... 02Apresentação......................................................................................................................................... 03

Texto: Capítulos 10, 11 e 12 - in “Curso de Direito Administrativo”, 2006 - 2ª edição, Editora Saraiva, São Paulo. Autor: Marçal Justen Filho

Os princípios da ordem econômica ................................................................................................... 05Capítulo X – Tipos de Atividade Administrativa: a regulação econômico-social

X.1 – Definição....................................................................................................................................... 07X.2 – A configuração de um Estado Regulador..................................................................................... 08X.3 – Regulação e poder de polícia....................................................................................................... 11X.4 – A competência regulatória............................................................................................................ 12X.5 – O instrumental jurídico para a regulação..................................................................................... 12X.6 – O âmbito subjetivo da regulação................................................................................................ 14X.7 – O âmbito de abrangência objetiva da regulação.......................................................................... 14X.8 – A intervenção estatal na Ordem Econômica................................................................................ 15X.9 – As finalidades da regulação: a regulação econômico-social...................................................... 18X.10 – As agências reguladoras independentes................................................................................... 22X.11 – O desempenho de atividades regulatórias setoriais.................................................................. 33

Capítulo XI – Tipos de atividade administrativa: serviço Público

XI.1 – Definição...................................................................................................................................... 35XI.2 – A natureza institucional do serviço público.................................................................................. 37XI.3 – Os três aspectos do conceito de serviço público........................................................................ 37XI.4 – O serviço público é uma intervenção estatal no domínio econômico.......................................... 38XI.5 – A qualificação da atividade como um serviço público................................................................. 40XI.6 – Os serviços públicos no direito brasileiro.................................................................................... 40XI.7 – O regime jurídico no serviço público........................................................................................... 43XI.8 – A chamada “crise do serviço público” e as tendências à renovação do instituto........................ 47XI.9 – A sobrevivência do serviço público............................................................................................. 53XI.10 – As classificações de serviço público......................................................................................... 53

Capítulo XII – Tipos de atividade administrativa: exploração direta de atividade econômica pelo Estado XII.1 – Definição..................................................................................................................................... 55XII.2 – A questão da ordem econômica................................................................................................. 56XII.3 – O desempenho direto de atividade econômica propriamente dita............................................. 56XII.4) Os pressupostos da atuação direta do Estado no domínio econômico....................................... 58XII.5) As entidades administrativas........................................................................................................ 60XII.6) Função administrativa e exercício direto de atividade econômica............................................... 60XII.7) A submissão ao regime de Direito Público................................................................................... 61

Anexo

Apresentação da aula em PowerPoint................................................................................................... 63

Page 4: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

IV.9.3) Os princípios da ordem econômica O desenvolvimento da atividade administrativa é potencialmente apto a interferir

com o desenvolvimento da atividade econômica. Aliás, há quem diga que alguns institutos

administrativos são manifestação da atividade econômica, tema ao qual se retornará

adiante. É relevante assinalar que a disciplina da ordem econômica não pode ser ignorada

pela administração pública, ao longo do desenvolvimento de seus encargos.

São considerados como princípios da ordem econômica (a) o capitalismo e a

propriedade privada, (b) a livre iniciativa, (c) a livre concorrência.

IV.9.3.1) O capitalismo e a propriedade privadaUm princípio fundamental da ordem econômica reside na propriedade privada,

inclusive dos meios de produção. O Brasil consagra sistema econômico capitalista,

caracterizado pelo reconhecimento da utilização pelos particulares dos bens econômicos

para obtenção de lucro e acumulação de riqueza (Constituição, art. 170).

Essa organização econômica se alicerça sobre a propriedade privada, protegida pela

Constituição em inúmeras passagens. O art. 5° faz referência a ela no seu caput e nos incs.

XXII a XXVI. O art. 170, inc. II, também alude à propriedade privada como princípio. Há

proteção indireta à propriedade por meio dos dispositivos contemplados nos arts. 5°, inc.

LIV, e 150, inc. IV.

IV.9.3.2) A livre iniciativa

A livre iniciativa é um princípio fundamental ao capitalismo. Consiste na vedação

ao Estado de impor compulsoriamente aos particulares a escolha quanto ao modo de

exploração econômica. Significa a liberdade de desempenho de atividades econômicas, de

modo que os particulares podem aplicar seus recursos econômicos como bem o

entenderem. A livre iniciativa está referida no art. 170, parág. único.

Lembre-se que a livre iniciativa não impede a existência de serviços públicos (art.

175), nem de monopólios estatais (tal como se vê nos arts. 176 e 177). Não se confundem

serviços públicos e monopólios estatais, tal como será exposto adiante.

Os serviços públicos são atividades essenciais à satisfação de necessidades

coletivas, retiradas do âmbito da livre iniciativa e cujo desempenho faz-se sob regime de

Direito Público. Já os monopólios são atividades de interesse econômico, que são

apropriadas pelo Estado por alguma razão de cunho político.

Mesmo no tocante às atividades econômicas propriamente ditas, admite-se a

subordinação da exploração privada à comprovação do preenchimento dos requisitos

mínimos, previstos em lei (art. 170, parág. único).

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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"Curso de Direito Administrativo"

2006 - 2ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, p. 456-577

Marçal Justen Filho

Page 5: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

livre concorrência está protegida no art. 170, inc. IV, da Constituição. Mas comporta

proteção por outras vias, tal como se constata do art. 174, que restringe a interferência

estatal no âmbito da competição econômica.

Por outro lado, há disciplina de extraordinária importância, contemplada no art. 173

e seu § 1°, da Constituição. Ali se faculta ao Estado o exercício direto de atividades

econômicas, desde que preenchidos determinados pressupostos. Mas se estabelece que,

quando assumir diretamente o desempenho de atividades econômicas, o Estado se sujeitará

ao regime de Direito Privado, sendo vedada a atribuição a ele de algum benefício ou

vantagem não assegurado igualmente aos demais particulares.

A livre concorrência não elimina o dever de intervenção estatal para reprimir abusos

e desvios (art. 173, § 4°).

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

IV.9.3.3) A livre concorrência

A livre concorrência significa a vedação à interferência estatal sobre os mecanismos

de competição econômica1. A atividade econômica sujeita-se aos mecanismos de mercado,

os quais influenciam a alocação de recursos e a formação dos preços. De modo direito, a

1 “Ofende o princípio da livre concorrência lei municipal que impede a instalação de estabelecimentos

comerciais do mesmo ramo em determinada área.” (Súmula 646 do STF).

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Page 6: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Capítulo X - Tipos de atividade administrativa: aregulação econômico-social

X.1) Definição A regulação econômico-social consiste na atividade estatal de intervenção

indireta sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados, de modo permanente e sistemático para implementar as políticas de governo e a realização dos direitos fundamentais.

X.1.1) A regulaçãoA utilização do vocábulo “regulação” não é casual e não pode ser substituído por

“regulamentação”.

Na terminologia consagrada entre nós, a expressão “regulamentação” corresponde

ao desempenho de função normativa infra-ordenada, pela qual se detalham as condições de

aplicação de uma norma de cunho abstrato e geral,2 tal como dispõe o art. 84, inc. IV, da

Constituição.

O conceito de “regulação” é muito mais amplo e qualitativamente distinto.

Eventualmente, a “regulação” pode se traduzir em atos de “regulamentação”. O

aprofundamento no conceito de regulação se fará adiante.

X.1.2) econômico-social Embora seja costumeira a alusão a “regulação econômica”, isso não significa que a

regulação seja dotada de uma única dimensão. Toda a regulação é concomitantemente

econômica e social. Isso significa que a intervenção estatal no âmbito econômico

corresponde sempre à promoção de valores sociais. Toda e qualquer atuação regulatória

consiste num conjunto de providências econômicas e sociais.

X.1.3) consiste na atividade estatal A regulação econômico-social é um dos tipos de atividade estatal, que se traduz no

desempenho tanto de função administrativa como legislativa, jurisdicional e de controle.

Portanto, seria um equívoco imaginar que a regulação corresponde apenas ao exercício de

atividade administrativa.

Ademais disso, a regulação econômico-social compreende atuações provenientes

das diversas órbitas federativas.

X.1.4) de intervenção indiretaUma característica essencial da regulação reside na sua natureza exclusivamente

2 Sob enfoque algo distinto, confira-se EROS GRAU, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, 3ª ed. São

Paulo: Malheiros, 2000.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 7: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

normativa. A regulação consiste na adoção de normas e outros atos estatais, sem se traduzir

na aplicação dos recursos estatais para o desempenho direto de alguma atividade no

domínio econômico-social. A regulação estatal consiste numa atuação jurídica, de natureza

repressiva e promocional, visando a alterar o modo de conduta dos agentes públicos e

privados.

X.1.5) sobre a conduta dos sujeitos públicos e privados,A regulação dirige-se a disciplinar preponderantemente a conduta dos particulares,

mas isso não exclui a submissão dos sujeitos públicos à regulação. Aliás, a submissão

inclusive das entidades estatais à regulação é uma característica marcante da concepção

regulatória. Isso se obtém pela consagração de entidades administrativas dotadas de forte

autonomia e de competência para vincular a própria administrativa direta centralizada.

X.1.6) de modo permanente e sistemático A regulação se caracteriza pela organização de meios materiais e humanos, com a

criação de estruturas administrativas especializadas, visando a desempenho contínuo e

racional. A regulação consiste não apenas na produção de normas e atos decisórios, mas na

produção ordenada de normas e atos decisórios.

Como afirmou SELZNICK, a regulação consiste em um controle permanente e

concentrado, exercido por uma autoridade pública sobre atividades dotadas de um certo

valor social.3

X.1.7) para implementar as políticas de governo e a realização dos direitosfundamentais

A regulação não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para promover

conscientemente os fins essenciais do Estado. A característica da racionalidade da

regulação se revela também nessa necessária vinculação entre as providências adotadas e os

fins políticos e os valores fundamentais buscados pelo Estado.

X.2) A configuração de um Estado Regulador Sempre se reconheceram poderes de natureza “regulatória” ao Estado, eis que a

natureza do Direito se relaciona diretamente com o conceito de “regulação”. Mas as

expressões “regulação” e “Estado Regulador” têm conteúdo muito específico4.

X.2.1) A regulação como a opção preferencial pela intervenção indireta A regulação consiste na opção preferencial do Estado pela intervenção indireta,

puramente normativa. Revela a concepção de que a solução política mais adequada para

3 Regulatory Policy and the Social Sciences, Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1985,

p. 363, apud GIANDOMENICO MAJONE, La Communauté européenne: un État régulateur, Paris:

Montcheristien, 1996, p. 16.4 Em sentido similar, CALIXTO SALOMÃO FILHO, Regulação da Atividade Econômica: Princípios e

Fundamentos Jurídicos, São Paulo: Malheiros, 2001, p. 13 e 14.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 8: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

obter os fins buscados consiste não do exercício direto e imediato pelo Estado de todas as

atividades de interesse público. O Estado Regulador reserva para si o desempenho material

e direto de algumas atividades essenciais e concentra seus esforços em produzir um

conjunto de normas e decisões que influenciem o funcionamento das instituições estatais e

não estatais, orientando-as em direção de objetivos eleitos.

Esse conjunto de normas chega a ser identificado como um ramo específico do

Direito, o Direito Econômico (ou o Direito Público da Economia).

X.2.2) A regulação não se confunde com o dirigismo estatal O modelo regulatório diferencia-se do dirigismo econômico que, visando à

realização do projeto de Bem-Estar, foi praticado em inúmeros países.

O dirigismo consiste na supressão da autonomia empresarial privada (senão a

eliminação da própria empresa privada), assumindo o Estado competências amplas e

ilimitadas no setor econômico. Esse modelo caracterizava-se pelo planejamento

centralizado e rejeitava espaços alheios ao Estado para a implantação de projetos com outra

configuração.

O dirigismo manifestava-se como um projeto estatal de dominação tanto sob um

ângulo de extensão como de intensidade. Sob o ângulo da extensão, o dirigismo conduzia a

submeter ao poder estatal todas as atividades relevantes para o interesse coletivo. Sob o

prisma da intensidade, acarretava a intromissão estatal no íntimo das decisões pertinentes às

diferentes unidades empresariais.5

Ainda que seja impossível reconhecer a existência de um único modelo de

regulação, sempre prevalece a concepção da subsidiariedade. Isso significa a consagração

dos princípios gerais da livre iniciativa e da livre empresa, reservando-se ao Estado o

instrumento da regulação como meio de orientar a atuação dos particulares à realização de

valores fundamentais.

Como assinala CARLOS ARI SUNDFELD, “A regulação é – isso, sim –

característica de um certo modelo econômico, aquele em que o Estado não assume

diretamente o exercício de atividade empresarial, mas intervém enfaticamente no mercado

utilizando instrumentos de autoridade. Assim, a regulação não é própria de certa família

jurídica, mas sim de uma opção de política econômica”.6

X.2.3) O modelo do “Estado Regulador” A relevância reconhecida à regulação conduziu a doutrina a afirmar a existência de

um novo modelo de Estado. O Estado Regulador foi objeto de teorização especialmente por

GIANDOMENICO MAJONE.7

Segundo esse enfoque, é possível afirmar que o Estado de Bem-Estar Social evoluiu

5Confira-se WASHINGTON PELUSO ALBINO DE SOUZA, Primeiras linhas de Direito Econômico, 2ª ed.

at. por Terezinha Helena Linhares, Belo Horizonte: FBDE, 1992, p. 147 e ss.6 Serviços Públicos e Regulação Estatal, em Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros –

SBDP, 2000, p. 23.7 Confira-se em La Communauté Européenne: un Etat Régulateur, Paris: Montchrestien, 1996. Mais recente e

sob enfoque mais amplo, há obra de GIANDOMENICO MAJONE em co-autoria com ANTONIO LA

SPINA, Lo Stato Regulatore, Bologna: Il Mulino, 2000.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 9: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

para transformar-se num Estado Regulador. Os poderes regulatórios externam não apenas

uma mera circunstância da existência do Estado como instituição política, mas lhe

asseguram natureza própria e inconfundível.

O modelo regulatório propõe a extensão ao setor dos serviços públicos de

concepções desenvolvidas na atividade econômica privada. Somente incumbe ao Estado

desempenhar atividades diretas nos setores em que atuação da iniciativa privada, orientada

à acumulação egoística de riqueza, colocar em risco valores coletivos ou for insuficiente

para propiciar a sua plena realização. O Estado deve manter sua participação no âmbito da

segurança, da educação e da seguridade social, evitando a mercantilização de valores

fundamentais.

O modelo regulatório apresenta algumas modificações fundamentais em face aos

modelos clássicos de Estado de Providência.

A primeira relaciona-se com o âmbito de abrangência das atividades sujeitas aos

regimes de Direito Público e de Direito Privado. Por um lado, há a transferência para a

iniciativa privada de atividades desenvolvidas pelo Estado, desde que dotadas de forte

cunho de racionalidade econômica. Por outro, há a liberalização de atividades até então

monopolizadas pelo Estado, para propiciar a disputa pelos particulares em regime de

mercado.

A segunda peculiaridade da concepção regulatória de Estado reside na inversão da

relevância do instrumento interventivo. Anteriormente, preconizou-se o exercício direto

pelo Estado de funções econômicas. O novo paradigma privilegia a competência

regulatória. O Estado permanece presente no domínio econômico, mas não mais como

exercente direto de atividades.

A terceira característica reside em que a atuação regulatória do Estado se norteia

não apenas pela proposta de atenuar ou eliminar os defeitos do mercado. Tradicionalmente,

supunha-se que a intervenção estatal no domínio econômico destinava-se a dar suporte ao

mecanismo de mercado e a eliminar eventuais desvios ou inconveniências. Já o modelo

regulatório admite a possibilidade de intervenção destinada a propiciar a realização de

certos valores de natureza política ou social. O mercado não estabelece todos os fins a

serem realizados pela atividade econômica. Isso se torna especialmente evidente quando o

mecanismo de mercado passa a disciplinar a prestação de serviços públicos. A relevância

dos interesses coletivos envolvidos impede a prevalência da pura e simples busca do lucro.

A quarta característica do Estado Regulador reside na institucionalização de

mecanismos de disciplina permanente das atividades reguladas. Passa-se de um estágio de

regramento estático para uma concepção de regramento dinâmico. Como apontam LA

SPINA e MAJONE, a regulação deve ser entendida “como um processo, em que interessa não apenas o momento da formulação das regras, mas também aqueles da sua concreta aplicação, e, por isso, não a abstrata mas a concreta modificação dos contextos de ação dos destinatários”.8

X.2.4) A disputa ideológica O modelo do Estado Regulador ainda está sendo produzido. Há um ponto comum

8 Lo Stato Regulatore, cit., p. 28.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 10: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

nas diversas propostas encontradas: a redução da atuação direta do Estado.

Mas existem divergências de grande extensão. Num extremo, encontram-se os

defensores do absenteísmo estatal, partidários de concepções qualificadas como neoliberais.

Antagonicamente a eles, posicionam-se os que propugnam por uma intervenção estatal

exaustiva, mesmo que regulatória.

Os excessos de ambas as posições devem ser atenuados. A democracia exige a

garantia da autonomia individual e da sociedade civil, mas a realização dos valores

fundamentais a um Estado Social impõe a participação de todos os segmentos sociais.

É necessário promover a redução da intervenção direta do Estado, porque o custo

econômico pode se transformar em insuportável para a sociedade. Mas essa redução

somente pode ser admitida quando acompanhada da funcionalização de poderes

reconhecidos à iniciativa privada.

A retirada da atuação direta do Estado não equivale à supressão da garantia de

realização dos direitos fundamentais, mas apenas à modificação do instrumental para tanto.

Somente se admite a privatização na medida em que existam instrumentos que garantam

que os mesmos valores buscados anteriormente pelo Estado serão realizados através da

atuação da iniciativa privada.

Como assevera um autor, “as tarefas de ‘garantia’ e ‘regulação’ aumentam em

medida diretamente proporcional à diminuição da produção ‘direta’ de bens e serviços;

quanto mais o Estado se afasta dos fatores da produção, tanto mais deve reforçar as funções

orientadas a suprir a supressão das garantias legais inerentes ao sistema de produção

pública de bens e serviços”.9

X.3) Regulação e poder de políciaSob um certo ângulo, a regulação consiste na utilização permanente, racional e

intensificada das competências de poder de polícia.

X.3.1) O poder de polícia como instrumento da atuação estatal repressiva Na concepção clássica, o poder de polícia era visto como uma competência estatal

orientada a reprimir o exercício de faculdades privadas, visando a assegurar a ordem

pública. A ampliação da complexidade sócio-econômica conduziu à necessidade de

ampliação do âmbito de intervenção estatal.

A regulação é um estágio posterior nessa evolução, em que o Estado restringe a

autonomia dos particulares, visando a constrangê-los ou a induzi-los a produzir as condutas

reputadas como socialmente úteis ou indispensáveis.

X.3.2) A regulação e a concepção promocional do direito A regulação vale-se não somente da imposição da repressão (deveres de abstenção),

mas incorpora a promoção (deveres de fazer) como solução indispensável para atingir os

resultados pretendidos pelo Estado.

9 PAOLO LAZZARA, Autorità independenti e discrezionalità, Padova: Cedam, 2001, p. 72.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 11: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

No modelo regulatório, o Estado restringe sua atuação direta e as necessidades

coletivas são satisfeitas pela atuação apenas dos próprios particulares. A regulação estatal

perde sua conotação apenas repressiva e adquire contornos claramente promocionais.10

A distinção entre função repressiva e função promocional do direito é bastante

útil. BOBBIO assinalou que o Direito do séc. XIX preocupava-se, essencialmente, com a

repressão das condutas indesejáveis, elegendo a sanção como instituto fundamental. Ao

longo do séc. XX, tornou-se evidente que a concretização dos objetivos sociais depende da

mudança dos padrões de comportamento individuais. Não basta a abstenção, é necessária a

ação positiva de todos os sujeitos para realizar os valores fundamentais. As sanções

clássicas são incapazes de produzir essa transformação e surgem novos instrumentos

jurídicos destinados a incentivar a adoção das condutas desejáveis.

Surgem, então, as chamadas sanções positivas ou premiais. A norma jurídica

contempla, no mandamento, a determinação de que o sujeito terá direito a receber um

benefício. Ou seja, o esquema normativo visa não a punir, mas a premiar. Aquele que

cumprir uma certa conduta terá direito a um benefício em face do Estado.

A consagração desses novos modelos normativos representou uma alteração

significativa para o Direito Administrativo. Assim, por exemplo, admite-se que o sujeito

seja autorizado a edificar além dos limites normais se ele praticar uma determinada conduta

socialmente desejável.

X.4) A competência regulatória Tal como se passa com as demais atividades administrativas, a regulação é atribuída

à competência dos diversos entes federativos e a discriminação de competências obedece

aos critérios constitucionais gerais. A competência regulatória envolve tanto competências

legislativas como administrativas11

, tal como discriminadas constitucionalmente.

X.5) O instrumental jurídico para a regulação A regulação compreende novos instrumentos jurídicos de intervenção estatal.

X.5.1) A multiplicação dos instrumentos regulatórios Na visão clássica, o instrumento jurídico mais utilizado era a norma jurídica,

interpretada como um padrão de conduta de observância obrigatória sob coerção estatal.

Segundo essa concepção, as normas têm de ser dotadas de sanção, consistente numa

conseqüência de cunho negativo respaldada pelo poder estatal. A ausência de sanção

configura um defeito normativo. Essa proposta se relaciona com uma concepção de

intervenção estatal predominantemente autoritativa. Sob esse prisma, o Estado impõe e

10 A distinção entre funções repressiva e promocional do Direito reporta-se imediatamente ao pensamento de

NORBERTO BOBBIO. Seus escritos acerca do tema são clássicos e incomparáveis. Vale a pena consultar a

coletânea Dalla Struttura alla Funzione, Milano: Ed. di Comunità, 1977, especialmente os ensaios

compreendidos entre as p. 13 a 122.11

Não sendo absurda a tese de que a regulação se produz também por meio da intervenção jurisdicional.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 12: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

exige comportamentos, os quais devem ser satisfeitos pelos particulares sob pena de sofrer

punições derivadas do exercício dos poderes de império público.

O Estado Regulador se vale, em larga medida, do instrumental normativo clássico.

Mas, adicionalmente, também recorre a outras vias para influenciar o comportamento

humano. Trata-se não apenas da já referida concepção promocional do Direito, em que a

obtenção das condutas desejadas é induzida por meio de sanções ditas positivas ou

premiais. Além disso, torna-se extremamente relevante um instrumento normativo que

poderia ser qualificado como atenuado.

Há manifestações estatais de incentivo, orientação, sugestão. Em muitos casos, o

Estado não determina, mas solicita a adoção de certos parâmetros. Em outros, há soluções

negociadas, em que se compõem os interesses através de avenças de cunho bilateral.

É problemático reconduzir essas espécies de providências estatais ao esquema

normativo tradicional. Perante esse, essas fórmulas de atuação estatal são classificadas

como “não jurídicas” ou meras manifestações irrelevantes. No entanto, constata-se que

esses instrumentos prestam-se a influenciar, de modo efetivo, a conduta dos seres humanos

e das empresas. Generalizou-se, em doutrina, a denominação “soft-law” (direito suave)

para indicar “uma declaração cujo intento é normativo (no sentido de dirigir-se a influenciar a conduta dos destinatários), as mais das vezes adotadas pela Administração Pública ou por organizações internacionais, mas definidas (geralmente pelos próprios autores) como carentes de uma plena força jurídica vinculante”.12

Tal como exposto ao

início desta obra, essas figuras são consideradas por alguns como uma das características do

chamado Direito pós-moderno.13

X.5.2) Ainda a questão do poder, da violência e da democracia A integração desse novo instrumental no direito depende da compreensão de que o

Estado se relaciona com a sociedade não apenas por via da violência. Tal como exposto no

começo desta obra, o poder é produzido pela atuação conjunta de diversos sujeitos. Na

sociedade democrática, a autoridade é gerada pelo reconhecimento do próximo como um

co-partícipe no processo de governança.

A regulação é uma concepção de governo que depende da afirmação de uma

democracia republicana. O Estado, atuando isoladamente, não é capaz de produzir todo o

bem necessário à satisfação das necessidades coletivas. É necessário o concurso dos

particulares para a redução das desigualdades. Mas a sociedade não assumirá sua parcela de

atuação se for tutelada pelo Estado por meio da pura e simples violência.

O Direito Administrativo incorpora a integração de esforços e compromissos entre o

Estado e a sociedade. Há mecanismos autoritativos, em que o Estado impõe unilateralmente

e mediante o monopólio da violência, certos objetivos e determinados padrões de conduta.

Mas os grandes objetivos e as mudanças radicais apenas podem ser obtidos por meio do

consenso, refletido em figuras jurídicas que não traduzem o exercício da violência.

12 LA SPINA – MAJONE, Lo Stato Regulatore, cit., p. 87.

13 Confira-se JACQUES CHEVALLIER, L’État post-moderne, Paris: L.G.D.J., 2004, p. 127 e ss.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 13: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

X.6) O âmbito subjetivo da regulação A regulação é dirigida preponderantemente a disciplinar a conduta dos particulares.

Mas também as entidades estatais são subordinadas a elas.

X.6.1) A vinculação estatal espontânea A atividade regulatória pode traduzir-se em planos, compromissos e deveres

jurídicos assumidos espontaneamente pelos órgãos estatais.

Esses deveres destinam-se a assegurar aos particulares segurança quanto às

perspectivas políticas futuras, reduzindo os riscos de certas atividades socialmente

desejáveis. Assim se passa, por exemplo, quando o Estado assume contratualmente o dever

de reduzir a tributação incidente sobre certas operações.

X.6.2) A atribuição de competência regulatória a entidades independentes Mas uma alternativa inafastável é a atribuição da competência regulatória a

entidades administrativas autônomas em face do poder político, usualmente conhecidas

como agências reguladoras independentes. Essa opção se destina a atenuar a utilização dos

poderes normativos estatais para fins políticos imediatos.

O surgimento das autoridades administrativas independentes (aí abrangidas também

as agências) é uma experiência comum a todos os demais países ocidentais14

. São entidades

integrantes da estrutura estatal, mas que apresentam peculiaridades que as diferenciam das

entidades administrativas tradicionalmente conhecidas nos países de tradição continental.

X.7) O âmbito de abrangência objetiva da regulação No passado, chegou a se pensar que a regulação era uma solução adotada apenas

para as atividades econômicas e visando exclusivamente os valores econômicos. É

indispensável reconhecer que a regulação se desenvolve em vista de todas as atividades

desenvolvidas por particulares. Assim, alude-se a regulação do meio-ambiente, regulação

da educação, regulação da saúde e assim por diante.

A fragmentação do poder de polícia, fenômeno acima referido, conduz à

intervenção do Estado nos diversos setores da autonomia privada. Essas intervenções

setoriais, quando se traduzem em órgãos especializados dotados de atuação permanente e

continuada, configuram-se como uma forma de regulação estatal.

14 LA SPINA – MAJONE chegam a afirmar que a instituição de autoridades reguladoras, dotadas de uma

margem de autonomia, é indispensável para a instauração de um Estado regulador. Confira-se em Lo StatoRegolatore, cit., p. 61. Sob um enfoque similar, CARLOS ARI SUNDFELD assevera que “A opção por umsistema de entes com independência em relação ao Executivo para desempenhar as diversas missõesregulatórias é uma espécie de medida cautelar contra a concentração de poderes nas mãos do Estado,inevitável nos contextos intervencionistas” (Serviços Públicos e Regulação Estatal, em DireitoAdministrativo Econômico, São Paulo: Malheiros – SBDP, 2000, p. 25).

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

14

Page 14: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

X.8) A intervenção estatal na Ordem EconômicaMas a regulação exercitada no âmbito da Ordem Econômica apresenta especial

relevância.

X.8.1) A disciplina constitucional da Ordem EconômicaA Constituição de 1988 consagrou sistema capitalista, fundado na propriedade

privada dos meios de produção e no livre exercício das atividades econômicas. Mas foi

atribuída ao Estado a competência para intervir no domínio econômico.

O esquema abaixo facilita a compreensão da questão.

Indireta (art. 174)

Serviço Público15

Intervenção estatal (art. 175)

Direta

Regime de concorrência

Atividade econômica

(em sentido próprio)16

(art. 173) Regime de monopólio

X.8.1.1) A intervenção indireta ou normativaA intervenção indireta ou normativa na ordem econômica consiste no exercício pelo

Estado de sua competência legislativa e regulamentar para disciplinar o exercício de

atividades econômicas, desempenhadas na órbita pública ou privada. Seu fundamento

constitucional direto está no art. 174.

A regulação consiste na opção pela intervenção indireta. Mas intervenção estatal

indireta não é sinônimo de regulação. Regulação é uma forma de intervenção indireta que

se caracteriza somente quando o Estado organiza um conjunto de órgãos especializados

para promover intervenção de modo permanente e sistematizado.

X.8.1.2) A intervenção direta17

A intervenção direta na ordem econômica é o desenvolvimento por meio de uma

entidade administrativa de atividades de natureza econômica, em competição com os

15 O instituto do serviço público será estudado no Capítulo XI, abaixo.

16 O exercício de atividade econômica (em sentido próprio) pelo Estado será examinado no Capítulo XII,

adiante.17

A intervenção direta do Estado na Ordem Econômica será objeto de análise nos Capítulos subseqüentes.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

15

Page 15: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

particulares ou mediante atuação exclusiva.

A intervenção direta na ordem econômica comporta duas vertentes fundamentais.

Pode configurar serviço público ou atividade econômica propriamente dita.

O serviço público existe quando uma atividade econômica é necessária de modo

direto e imediato à satisfação de direitos fundamentais. Como decorrência, essa atividade é

atribuída à titularidade do Estado e submetida ao regime de Direito Público. Isso acarreta a

não aplicação dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. O art. 175 da

Constituição disciplina a matéria.

A atividade econômica propriamente dita reside no desempenho pelo Estado de

atividades que não são diretamente vinculadas à satisfação de direitos fundamentais. Essas

atividades podem ser desempenhadas sob duas modalidades. Ou o Estado as desempenha

em competição com os particulares ou atua sob regime de monopólio.

A regra é o desempenho da atividade econômica propriamente dita pelo Estado sob

regime de concorrência com os particulares (art. 173, caput e § 1°). Mas a Constituição cria

casos de monopólio, que se configuram como exceção e que estão relacionados,

basicamente, no art. 177.

X.8.1.3) Atividade econômica e serviço públicoNão há uma distinção intrínseca entre atividade econômica e serviço público. O

serviço público consiste na organização de recursos escassos para satisfação de

necessidades individuais. Portanto, trata-se de uma atividade de natureza econômica.

Logo, o serviço público não pode ser diferenciado de modo absoluto de atividade

econômica, porque apresenta igualmente natureza e função econômicas. É possível

diferenciar serviço público de uma concepção mais restrita de atividade econômica. Logo,

atividade econômica é um gênero, que contém duas espécies, o serviço público e a

atividade econômica (em sentido estrito). Isso não significa que a evolução do cenário

jurídico esteja completa e encerrada. Existem atividades cujo enquadramento em uma das

duas categorias é problemática e que podem ser referidas como atividades de interesse

coletivo.

X.8.1.3.1) A diferença entre serviço público e atividade econômica Sempre que uma necessidade humana for uma manifestação direta e imediata dos

direitos fundamentais (em especial, a dignidade humana), sua satisfação será imposta ao

Estado como um serviço público. Não é possível deixar que a satisfação da necessidade

seja subordinada à livre iniciativa e às leis de mercado. Se não existisse o serviço público,

haveria o risco de que as necessidades de muitas pessoas não fossem satisfeitas, tal se passa

por exemplo com o fornecimento de água tratada, energia elétrica, coleta e tratamento de

lixo, etc.

Por isso, as atividades materiais necessárias ao suprimento dessa necessidade e a

titularidade da competência para desempenho são atribuídas ao Estado. O serviço público

resulta da obrigatoriedade da satisfação de certa necessidade, independentemente da

capacidade econômica do interessado.

Em contrapartida, cogita-se de atividade econômica propriamente dita quando a

necessidade a ser satisfeita não envolver de modo imediato e direto os direitos

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

16

Page 16: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

fundamentais, tal como ocorre com as atividades empresariais conhecidas

(comercialização de comestíveis, prestação de serviços não essenciais etc).

Nesse caso, há uma facultatividade na satisfação do interesse.

X.8.1.3.2) Serviço público e racionalidade econômicaA exploração dos recursos escassos necessários ao atendimento às necessidades

fundamentais envolve uma racionalidade muito mais intensa do que se passa a propósito

das demais atividades. Afinal, trata-se de servir às demandas mais essenciais dos seres

humanos – logo, devem ser adotadas todas as decisões que ampliem a eficácia na utilização

dos recursos, propiciando a melhor satisfação para o mais amplo número de beneficiários.

O desempenho das atividades materiais pertinentes à satisfação dessas necessidades

refletirá certos princípios imperiosos e inafastáveis.

X.8.1.3.3) O campo das atividades econômicas em sentido restrito A atividade econômica em sentido estrito peculiariza-se pela possibilidade de

exploração econômica lucrativa, voltada à apropriação privada dos benefícios. A satisfação

dessas necessidades, caracterizada por uma relevância secundária em face dos direitos

fundamentais, envolve a livre alocação dos recursos. Cada sujeito privado poderá escolher a

atividade econômica propriamente dita a que se dedicará e para cujo desempenho alocará

seus recursos. Como decorrência, admite-se não apenas que o sujeito privado aplique

livremente seus recursos no desempenho da atividade econômica propriamente dita como

também que dela extraía a maior lucratividade possível, segundo princípios norteadores da

atividade empresarial. O núcleo do conceito de atividade econômica em sentido estrito é a

racionalidade econômica, visando à obtenção do lucro, segundo o princípio do utilitarismo.

De início, o conceito de atividade econômica em sentido estrito pressupõe a utilização

especulativa da propriedade privada, visando precipuamente à realização do interesse

egoístico dos particulares empreendedores.

O conceito de atividade econômica em sentido estrito se fundamenta, portanto, nos

princípios da exploração empresarial, da livre iniciativa e da livre concorrência. Pressupõe

que os sujeitos possam organizar os fatores da produção para obtenção de resultados não

predeterminados pelo Estado, com apropriação privada do lucro.

X.8.1.4) O surgimento de uma terceira categoria: o“serviço de interesse coletivo”A análise jurídica permite apontar uma terceira espécie, que não está formalmente

referida na Constituição, mas que resulta do sistema jurídico. Trata-se de um conceito

intermediário entre serviço público e atividade econômica em sentido restrito. Abrange

atividades que apresentam características peculiares a ambos os conceitos e cujo regime

jurídico não é integral ou exclusivamente de Direito Público nem de Direito Privado.

X.8.1.4.1) O antigo conceito de serviços públicos virtuais No passado, costumava-se aludir a serviços públicos virtuais para aludir a um grupo

de atividades econômicas muito similares aos serviços públicos, cuja regulação estatal era

muito intensa. Eram atividades econômicas privadas mas de interesse coletivo, que não

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

17

Page 17: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

eram nem monopolizadas pelo Estado nem subordinadas a um regime jurídico

integralmente de Direito Público. Assim se passava, por exemplo, com hotéis, táxis,

farmácias, padarias e outros empreendimentos similares.

Essa categoria apresentava um cunho de residualidade, albergando atividades

bastante díspares entre si e destituídas de relevância econômica maior18

.

X.8.1.4.2) A proposta da existência de “serviços de interesse coletivo” A antiga figura dos serviços públicos virtuais não merece aceitação porque era uma

simples forma de justificar o tratamento diferencial para certas atividades, heterogêneas

entre si.

A categoria de serviços de interesse coletivo abrange um conjunto de atividades de

satisfação de interesses coletivos, mas destituídas de uma carga de essencialidade

imediatamente referida à satisfação da dignidade da pessoa humana. Não há necessidade ou

cabimento de submissão ao regime característico do serviço público. Até se pode

reconhecer que tais atividades continuam na titularidade do Estado e que, portanto, seu

exercício não se enquadra propriamente no âmbito da livre iniciativa. Mas é possível seu

desempenho por uma pluralidade de agentes econômicos, competindo entre si e gerando

um mercado de oferecimento de utilidades, capaz de produzir benefícios e vantagens para

os usuários.

Essa terceira espécie seria integrada por atividades que, anteriormente,

configuraram-se como serviços públicos e por outras que, originalmente privadas,

acabaram adquirindo relevância para fins coletivos. O regime jurídico aplicável a elas passa

a ser o de Direito Privado, mas fortemente impregnado por princípios restritivos da

autonomia privada. As competências fiscalizatórias estatais exercem-se de modo intenso

sobre essa categoria de atividades, impondo limites mínimos de qualidade, garantias de

desempenho, fiscalização em defesa dos usuários e assim por diante. Não há a pura e

simples submissão dessas atividades ao Direito Privado. Enquadra-se nessa categoria a

hipótese de “serviço público sob regime de Direito Privado”, a que se aludiu acima.

Somente podem ser submetidas ao regime intermediário algumas atividades,

aquelas que possam ser desempenhadas sem risco de comprometimento dos direitos

fundamentais. Há setores que exigem a manutenção do regime de Direito Público – ou mais

precisamente, há setores que exigem a manutenção do serviço público.

X.9) As finalidades da regulação: a regulação econômico-social Na doutrina econômica, é usual apontar a regulação estatal como instrumento para

suprir as deficiências do mercado. Essa visão foi sendo alterada ao influxo dos

acontecimentos, especialmente na segunda metade do séc. XX. No entanto, pode dizer-se

18 CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO reconhece que existem “atividades exercidas por

particulares, sem concessão, mas que se entendeu deveriam estar sob o impacto de regras publicísticas”(Curso de direito Administrativo, cit., p. 621 e ss.).

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

18

Page 18: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

que a alteração consistiu muito mais numa ampliação da dimensão da regulação19

do que

numa revisão essencial das concepções iniciais.

X.9.1) A proposta da auto-regulação do mercado Algumas escolas econômicas afirmam que os mecanismos de mercado seriam aptos

a produzir, por si só e autonomamente, a realização dos fins de interesse público. Ainda que

cada agente econômico oriente sua atuação à obtenção da solução egoística mais

satisfatória, o resultado conjunto seria a satisfação do bem-comum.20

Sob esse ângulo,

regulação consiste no oposto ao livre funcionamento do mercado.

Essa concepção somente pode ser interpretada como uma formulação teórica. Nunca

se verificou concretamente, em país algum. Mais precisamente, a intervenção estatal é

condição de possibilidade da existência do mercado.21

X.9.2) A regulação exclusivamente econômica – a primeira “onda regulatória” Mas a proposta regulatória se orienta a interferir sobre o mercado, de modo a alterar

a evolução normal dos fatos. Numa etapa inicial, a regulação se caracterizou como a

intervenção estatal destinada exclusivamente a suprir as deficiências e as insuficiências do

mercado.22

A regulação estatal se torna necessária (e legítima) quando não houver

condições de funcionamento satisfatório (eficiente) do mercado, o que se passa

essencialmente nos casos de ausência de concorrência perfeita.

As deficiências de mercado23

envolvem as hipóteses de (a) deficiência na

concorrência, (b) os chamados bens coletivos, (c) externalidades, (d) assimetrias de

informação, (e) desequilíbrio econômico.24

Ou seja:

19 Como observa BURKARD EBERLEIN, “na prática, a regulação de primeira ordem, orientada à

eficiência, é suplementada por uma regulação de segunda ordem, social ou política, que, muitofreqüentemente, relaciona-se com a correção de efeitos indesejados do mercado muito mais do que com acorreção de defeitos do mercado” (Regulating Public Utilities in Europe: Mapping the Problem, Florença:

European University Institute, EUI Working Paper RSC n° 98/42, p. 15).20

Sobre o tema, confira-se MARIA ROSARIA FERRARESE, Diritto e Mercato, Torino: Giappichelli, 1992,

p. 3-76.21

Nesse sentido, MARIA ROSARIA FERRARESE afirma que “A institucionalização do mercado é, então,impensável se prescindir da existência de um garante externo, seja ele a moral ou o direito” (Diritto eMercato, cit., p. 72). Em sentido similar, EROS GRAU, O Discurso Neoliberal e a Teoria da Regulação em

Desenvolvimento Econômico e Intervenção do Estado na Ordem Constitucional. Porto Alegre: Sergio Fabris

Editor, 1995, p. 63. Esse autor, aliás, evidencia como os Estados pretensamente partidários de um enfoque

neoliberal adotam políticas fortemente protecionistas.22

Como afirma CALIXTO SALOMÃO FILHO, “A regulação não visa a eliminar falhas do mercado, massim a estabelecer uma pluralidade de escolhas e um amplo acesso ao conhecimento econômico, que jamaisexistirá em um mercado livre” (Regulação da Atividade Econômica..., cit., p. 42).23

Sobre o tema, confira-se ANA MARIA DE OLIVEIRA NUSDEO, A Regulação e o Direito da Concorrência, em Direito Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros – SBDP, 2000, p. 163 e ss. Da

mesma autora, para um estudo mais amplo e aprofundado, Defesa da Concorrência e GlobalizaçãoEconômica: o Controle da Concentração de Empresas, São Paulo: Malheiros, 2002.24

Nesse sentido, GIANDOMENICO MAJONE, La Communauté européenne: un Etat régulateur, cit., p. 76.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

19

Page 19: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

deficiência na concorrência

bens coletivos (satisfação de necessidades essenciais)

deficiências

de externalidades

mercado

assimetria de informação

desequilíbrio econômico

X.9.2.1) Deficiência na concorrênciaA deficiência na concorrência caracteriza-se quando não existe disputa suficiente e

equilibrada no mercado, o que impede que a concorrência econômica produza seus efeitos

positivos. A deficiência de mercado pode derivar de inúmeros fatores. O caso mais evidente

reside no monopólio.

Costuma-se denominar de direito anti-truste o conjunto de normas destinadas a

prevenir e a reprimir a deficiência na concorrência. No Brasil, a matéria está disciplinada

predominantemente pela Lei n° 8.884/1993.

X.9.2.2) Bens coletivos (satisfação de necessidades essenciais)O mercado não pode satisfazer necessidades fundamentais, tal como se passa na

área de saúde, educação e assim por diante. Os mais desvalidos não dispõem de condições

de obter essas utilidades através do funcionamento espontâneo do mercado. O direito tem

de regular essas atividades, se não for o caso de transformá-las em serviço público.

X.9.2.3) ExternalidadesExternalidade é uma circunstância econômica cujo custo não está contido nos

preços praticados. Usualmente, consiste na transferência (intencional ou não) para terceiros

de custos inerentes à atividade econômica25

. Assim se passa quando o Estado (ou alguns

agentes econômicos determinados) são obrigados a suportar despesas decorrentes da

poluição causada por uma indústria. A regulação se orienta a evitar os efeitos danosos das

externalidades.

X.9.2.4) Assimetria na informaçãoA assimetria de informação significa, então, que os diversos agentes que participam

do processo econômico detêm diferentes graus de informação, o que significa que alguns

dispõem de melhor condição de escolha do que outros. A grande massa de sujeitos participa

das relações econômicas (e de outra natureza) sem dispor de conhecimento equivalente, de

modo que suas decisões são imperfeitas ou inadequadas. Um exemplo é o consumidor, que

costuma ser o maior prejudicado pelo fenômeno da assimetria de informações.

25 Nada impede, contudo, que a externalidade apresente um aspecto positivo, na acepção de que um operador

econômico seria beneficiado por circunstâncias alheias ao processo produtivo propriamente dito.

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Page 20: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

A regulação estatal tenta neutralizar o fenômeno. Lembre-se, no entanto, que o

problema da assimetria de informações atinge ao próprio Estado. Muitas vezes, a

informação é tão privilegiada e secreta que o próprio Estado sequer dela tem ciência e deixa

de adotar as providências adequadas por absoluto desconhecimento.

X.9.2.5) Desequilíbrio de mercadoOutro tema relacionado com a regulação envolve o processo de desequilíbrio

próprio do mercado. O processo de acumulação de riquezas, inerente ao capitalismo,

propicia movimentos cíclicos. Há períodos de desenvolvimento a que se seguem épocas de

crise e assim por diante. A atividade empresarial conduz ao lucro e à sua incorporação ao

patrimônio privado. Como efeito, há tendência à redução do ritmo de crescimento, o que

acarreta desemprego – fenômeno agravado pelo acesso permanente de novos sujeitos ao

mercado de trabalho.

A alternância de ciclos é inerente ao capitalismo e não deriva de eventos externos

marcantes. Isso conduz à concepção de que o Estado deve adotar as providências

necessárias a eliminar o desequilíbrio, evitando as causas que conduzem à crise e

propiciando fatores para o desenvolvimento.

X.9.3) A regulação social – a segunda “onda regulatória” Essas concepções foram objeto de intensa revisão, a propósito do que se poderia

identificar como uma segunda onda intervencionista. Trata-se da regulação social, que

assume outras propostas. Constatou-se que o mercado, ainda que em funcionamento

perfeito, pode conduzir à não realização de certos fins de interesse comum.

A realização de inúmeros outros fins, de natureza sócio-política, também é buscada

pela regulação, que não pode restringir-se a preocupações meramente econômicas.

É necessário proteger o meio-ambiente, por exemplo. A racionalidade econômica

imediatista conduz à destruição do meio-ambiente.

A regulação também se orienta a garantir direitos de minorias e a promover outros

valores políticos, sociais e culturais.

X.9.4) A desregulação e a re-regulação No início da década de 80, alguns países constataram que a atuação desordenada da

intervenção estatal ultrapassara o limite do cabível. A pluralidade de regras, contraditórias

ultrapassadas, dificultava a realização dos valores buscados. As finalidades essenciais

buscadas pelo Estado eram frustradas não pela sua omissão, mas por razões opostas. Havia

um excesso de regulação, o que impedia a obtenção dos melhores resultados.

Cada atividade era subordinada a um grande número de posturas, muitas delas

inúteis, contraditórias ou arcaicas. Surgiu a expressão custo regulatório, indicando o efeito

econômico que o cumprimento de posturas governamentais (muitas vezes, desnecessárias

ou inúteis) gerava.

Produziu-se, nos diversos países, uma reforma do Estado comprometida com a

desregulação e a re-regulação.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

21

Page 21: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Como acentuou PAOLO LAZZARA, “o fenômeno da desregulação explica-se não

tanto como uma diminuição quantitativa das prescrições, mas, sobretudo em termos de

clareza, transparência e previsibilidade das normatizações”.26

Isso tudo produziu um movimento de “re-regulação”, o que significa a defesa da

substituição das regras inadequadas por outras, mais compatíveis com a nova realidade

social e tecnológica, menos onerosas para a sociedade em seu conjunto e produzidas

segundo parâmetros de participação da sociedade civil.

X.10) As agências reguladoras independentes A adoção de um modelo regulatório de Estado conduz à fragmentação das

competências normativas e decisórias estatais. Surgem entidades administrativas

encarregadas da gestão setorial. Alguns afirmam que se produz o surgimento de um Estado

“policêntrico”, cuja configuração pode ser melhor representada como uma “rede

governativa”27

. Nesse cenário, uma instituição fundamental consiste na agência reguladora.

NICOLE CECOOPMAN entende que a criação de agências reguladoras representa

uma modalidade de desregulação, no sentido da implementação de modos de intervenção

mais suaves. Ou, como assevera outro autor, “de empresário privilegiado, o Estado se transforma em garantidor imparcial das regras do mercado”.28

X.10.1) Pressupostos de estudo do instituto das agências A compreensão da figura da agência pressupõe pelos menos duas cautelas

fundamentais. A primeira envolve a ausência de um perfil jurídico único para as agências.

A segunda se vincula à necessidade de submissão da modelagem das agências ao sistema

jurídico pátrio.

X.10.1.1) A heterogeneidade do fenômenoNão há um perfil único para “agência reguladora”. Cada agência apresenta

estrutura, função e regime jurídico próprio. Essa diversidade se verifica não apenas na

comparação entre os diferentes países, mas também ao interno de cada país.

A asserção é válida inclusive para o Brasil, cuja experiência vem repetindo as

características do processo de difusão das agências nos outros países.

O vocábulo agência é utilizado no Brasil para indicar figuras muito diversas. EGON

BOCKMANN MOREIRA observou que a expressão “agência” é utilizada “ora em sentido vulgar (agência telegráfica, agência do correio, agência das capitanias dos portos), ora em sentido específico (Agência Nacional de Telecomunicações-ANATEL...),ora em sentido técnico indefinido (Agência Espacial Brasileira e Agência de Água).

29

26 PAOLO LAZZARA, Autorità independenti e discrezionalità, Padova: Cedam, 2001, p. 70.

27 Substitui-se, assim, o modelo piramidal, de influência napoleônica. Confira-se em L’État post-moderne,

Paris: L.G.D.J., 2004, p. 76-77.28

PAOLO LAZZARA, Autorità indipendenti e discrezionalità, cit., p. 69.29

Agências Administrativas, Poder Regulamentar e o Sistema Financeiro Nacional, RDA 218/95, out/dez.

1999.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

22

Page 22: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

X.10.1.2) A adaptação do modelo estrangeiro à ordem jurídica nacionalA adoção de um modelo estrangeiro exige a sua adaptação aos princípios e regras

que estruturam o direito nacional30

. Logo, as agências brasileiras não podem ser idênticas

às norte-americanas.

X.10.2) As agências reguladoras e executivas31

A tentativa de reforma do Estado brasileiro, na metade da década de 1990, conduziu

à difusão de agências.

Veja-se que o importante não é a denominação de agência, mas as características

jurídicas adotadas32

.

É necessário diferenciar agência reguladora e agencia executiva. São duas figuras

diversas.

X.10.3) A distinção entre agências reguladoras e executivas A distinção entre agências executivas e reguladoras foi copiada do direito norte-

americano, onde essa diferença tem algum sentido.

No Direito brasileiro, não é possível apontar precisamente as características que

identificam uma agência executiva. Trata-se de uma autarquia em geral. A Lei Federal nº

9.649/98 previu a possibilidade de qualificação de agência executiva a ser atribuída a

autarquias (ou fundações) que atendessem a certas exigências, especificamente a adoção de

um plano estratégico e a pactuação de um contrato de gestão.33

Agência executiva se identifica por um critério negativo: agência executiva seria

uma autarquia destituída de competências regulatórias, dedicada a desenvolver atividades

administrativas clássicas, inclusive a prestação de serviços públicos.

A Lei pretendeu reservar a expressão agência executiva para as autarquias

subordinadas a um plano estratégico e a um contrato de gestão. Isso não produz nenhum

regime jurídico peculiar, dotado de consistência suficiente para diferenciar uma autarquia

das demais.

Em face do Direito brasileiro, a expressão agência executiva poderia ser

considerada equivalente a autarquia especial. O aspecto distintivo que conduzisse ao

reconhecimento de uma agência executiva seria exatamente aquela que produziria o

surgimento de uma autarquia especial.De modo diverso se manifesta PAULO MODESTO, que assevera que “A novidade

das agências executivas é que elas introduzem no Direito brasileiro um mecanismo flexível

de modificar o regime de autonomia ou independência de autarquias e fundações públicas

30 O fenômeno da globalização não eliminou esse obstáculo, embora possa conduzir a panorama distinto no

futuro. A superação das barreiras econômicas e a comunhão das experiências culturais poderão redundar

numa uniformização das ordens jurídicas, com efeitos benéficos e maléficos evidentes.31

O autor dedicou atenção específica e mais aprofundada ao tema das agências na obra O Direito dasAgências Reguladoras Independentes, São Paulo: Dialética, 2002.32

Pode haver agência denominada como comissão, conselho, tribunal ou qualquer outra expressão. Mas

também pode não se caracterizar como agência uma entidade que assim seja denominada.33

Acerca do contrato de gestão, confira-se a exposição adiante realizada.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

23

Page 23: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

mediante um simples ato administrativo de qualificação”.34

Sob esse enfoque, a peculiaridade da agência executiva não residiria em

competências ou organização peculiares, mas na forma mais simples de atribuição de um

regime jurídico especial.

X.10.4) A agência reguladora independente no Direito brasileiro A figura das agências reguladoras se insere no processo de dissociação entre a

prestação de serviços públicos e sua regulação. Mais ainda, é resultado da proposta de

assegurar que a disciplina dos serviços públicos seja norteada por critérios não

exclusivamente políticos.

É usual considerar as agências reguladoras como um fenômeno inovador. E alguns

reprovam tais novidades, imputando-lhe o cunho de inconstitucionalidade. No entanto, as

inovações trazidas, isoladamente consideradas, são muito reduzidas.

A maior parte das “novidades” já se encontrava em instituições administrativas

brasileiras muito antigas. Talvez a grande inovação trazida pela proposta das agências

reguladoras seja a concentração, em uma única instituição autárquica, de diversas

características que existiam isoladamente em certos órgãos.

X.10.5) DefiniçãoAgência reguladora independente é uma autarquia especial, sujeita a regime

jurídico que assegure sua autonomia em face da administração direta e investida de competência para regulação setorial.

X.10.5.1) Agência reguladora independente é uma autarquiaUma agência reguladora independente consiste, primeiramente, em uma autarquia.

Trata-se de uma entidade integrante da administração indireta, dotada de personalidade

jurídica de Direito público e sujeita ao regime jurídico correspondente a essa categoria.

X.10.5.2) especial, sujeita a regime jurídico que assegure sua autonomia em face daadministração direta

A agência reguladora independente não é apenas uma autarquia. Trata-se de uma

autarquia especial, o que significa que a lei instituidora prevê algumas peculiaridades no

regime jurídico aplicável à entidade, propiciando uma margem de autonomia jurídica que

não se encontra na maior parte das entidades autárquicas. Isso envolve a redução do grau de

subordinação da entidade em face da administração direta.

Há um regime especial de investidura e demissão dos administradores das agências,

os quais são providos em cargos em comissão por prazo certo e sujeitos à demissão apenas

em virtude da prática de atos irregulares (tal como adiante será mais bem examinado).

34 Agências Executivas: a organização administrativa entre o casuísmo e a padronização, Revista Diálogo

Jurídico, Salvador, Centro de Atualização Jurídica, 2001, nº 6, p. 3. Disponível em

http://www.direitopublico.com.br. Acesso em 08 de outubro de 2001. O estudo contempla uma análise

minuciosa e profunda sobre as características do instituto da agência executiva, sem paralelo na doutrina

pátria.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

24

Page 24: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Além disso, a agência reguladora independente não se sujeita à revisão de seus atos por

autoridade integrante da administração direta, mas apenas perante o Poder Judiciário.

Ademais disso, pode configurar-se um regime de autonomia econômico-financeira,

por meio de receitas próprias destinadas a dotar a entidade de meios para o desempenho de

suas funções.

Mas não existe homogeneidade na configuração do regime jurídico das diversas

agências reguladoras independentes. Isso permite, inclusive, a variação de intensidade e da

extensão da sua autonomia.

A categoria é integrada por entidades dotadas de características não uniformes,

variáveis dentro de determinados limites. Sob esse ângulo, figuras novas e antigas podem

ser enquadradas nessa categoria. Assim, podem ser referidas a Agência Nacional de

Energia Elétrica – ANEEL, a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, a

Agência Nacional de Petróleo – ANP. Mas também seria possível fazer referência a

autarquias criadas há muito tempo, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica

– CADE e à Comissão de Valores Mobiliários – CVM.

X.10.5.3) e investida de competência para regulação setorialA agência reguladora independente é titular de competência regulatória setorial. Isso

significa o poder de editar normas abstratas infralegais, adotar decisões discricionárias e

compor conflitos num setor econômico. Esse setor pode abranger serviços públicos e (ou)

atividades econômicas propriamente ditas. E as decisões adotadas são vinculantes para os

diversos setores estatais e não estatais, ressalvada a revisão jurisdicional.

X.10.6) Considerações gerais sobre o regime jurídico das agências reguladoras independentes

As agências reguladoras independentes não são um Poder à parte, além daqueles já

existentes. Tal deriva da ausência de estruturação orgânica e funcional em nível

constitucional. Afirma-se que o Ministério Público e o Tribunal de Contas são dotados de

autonomia em face dos três Poderes porque, na Constituição, há princípios e regras que dão

a essas duas instituições um status próprio. O mesmo não se passa com as agências

reguladoras.

X.10.6.1) A previsão constitucional de órgãos reguladoresNa Constituição Federal, existem apenas duas disposições atinentes a agências. O

art. 21, inc. XI, estabelece que cabe à lei criar um órgão regulador dos serviços de

telecomunicação. E o art. 177, § 2°, inc. III, prevê que a lei disciplinará a estrutura e as

atribuições do órgão regulador do monopólio federal sobre as atividades relacionadas a

petróleo. Esses dois dispositivos constitucionais não discriminam competências, nem

dispõem sobre a estrutura dos órgãos reguladores. Deles não se pode extrair que alguma das

competências previstas como de titularidade dos Poderes Legislativo e Judiciário teriam

sido reservadas para as agências reguladoras.

Logo, as agências reguladoras – inclusive aquelas explicitamente referidas nos dois

dispositivos constitucionais indicados – são instituições infraconstitucionais, sem a

dimensão de um Poder. Sem lei que as institua, organize e discipline, não haverá agências

reguladoras.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 25: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Mas não há obstáculo constitucional a que a lei (federal ou estadual, de acordo com

a esfera de atuação) crie e institua agências reguladoras, dando-lhes forma autárquica e

incluindo-as no âmbito do Poder Executivo.

X.10.6.2) A titularidade de competências administrativasNo exterior, afirma-se que as agências exercitam competências “quase-legislativas”

e “quase-jurisdicionais”. A afirmativa até poderia valer para o Direito brasileiro: basta

reconhecer que, sob uma aparência de atividades legislativas e jurisdicionais, existe apenasa titularidade de funções administrativas.

A agência reguladora desempenha funções administrativas de diversa ordem. É

titular de competências regulamentares para editar normas em abstrato. Dispõe de

competência decisória para solucionar casos concretos. E lhe incumbe dirimir conflitos com

e entre particulares.

A agência reguladora desempenha atividade administrativa, a qual tanto pode ser

disciplinada legislativamente em termos vinculados como de modo discricionário. Isso

significa que a agência não é investida de competência para editar normas de cunho

legislativo. E seus atos são revisáveis pelo Poder Judiciário, nos limites em que cabe o

controle jurisdicional para atos administrativos.

Dito de outro modo, a existência de agências reguladoras não significa a inovação

sobre a distribuição do poder político estatal, tal como delineada constitucionalmente.

Todas as disputas sobre a atuação das agências são mera repetição das controvérsias que

existiam antes de sua instituição por lei infraconstitucional.

Isso não equivale a afirmar que as agências não importam efeitos relevantes na

organização do Poder Executivo. Esse é o ponto central: as agências representam uma

inovação significativa quanto ao desempenho da função administrativa.

X.10.6.3) A primeira peculiaridade das agências: a titularidade de competências privativasO primeiro ponto relevante reside em que as competências atribuídas por lei às

agências reguladoras são retiradas da administração direta. Ou seja, a atribuição de

competências administrativas privativas em prol das agências equivale a reduzir os poderes

da administração centralizada. Isso significa que o Presidente da República, embora titular

do mais alto posto da República, não poderá deliberar sobre assuntos de competência das

agências.

Isso significa, inclusive, a ausência de revisibilidade ministerial dos atos praticados

pelas agências. Não cabe “recurso hierárquico” para o ministério, relativamente às decisões

praticadas pelas agências.

X.10.6.4) A segunda peculiaridade das agências: a titularidade de competênciaregulamentar

Por outro lado, a agência é investida na competência para editar normas

regulamentares. A competência para editar regulamentos não é privativa do Presidente da

República, mas se distribui entre as diversas entidades integrantes da administração

pública. A redação do art. 84, inc. IV, da Constituição não significa uma reserva

constitucional privativa para o Presidente da República editar regulamentos. Não está

determinado que o único titular de competência para regulamentar as leis é o Presidente da

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

26

Page 26: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

República.

Acolher o argumento da impossibilidade de atribuição de competências normativas

abstratas para outras autoridades administrativas acarretaria um verdadeiro caos para a

atividade administrativa do Estado, eis que seria impossível que o Presidente da República

concentrasse em suas mãos a competência para editar todos os regulamentos

administrativos.

A atividade administrativa teria de ser totalmente centralizada, incumbindo a todas

as demais autoridades – que não o Chefe do Executivo – produzir atos de natureza concreta.

Em sentido similar, ainda que com uma ressalva a propósito da questão

terminológica, LUÍS ROBERTO BARROSO reconhece que órgãos e entidades integrantes

da administração pública “titularizam, em certos casos, competências para expedir atosadministrativos normativos – gênero do qual o regulamento é espécie”.35

Na mesma linha, CAIO TÁCITO defende que a regulação estatal no domínio

econômico faz-se nos termos da lei. “Nada impede que, ao fazê-lo, a lei reserve aos órgãos

administrativos incumbidos da gestão da política adotada, uma parcela secundária de poder

normativo, de modo a ajustar os meios de ação às cambiantes manifestações da atividade

econômica, de difícil previsão”.36

X.10.6.5) A terceira peculiaridade das agências: a titularidade de competênciadiscricionária

As agências reguladoras são investidas de competências discricionárias para decidira solução mais adequada em face do caso concreto. Trata-se de competência própria da

administração e que já foi referida e examinada acima. Essa competência discricionária

compreende inclusive questões técnicas e regulatórias, no tocante à prestação de serviços

públicos e disciplina de atividades econômicas.

O que merece destaque é que essa competência é de titularidade privativa da

agência, de modo a impedir interferências de outros órgãos externos a ela.

X.10.6.6) A quarta peculiaridade das agências: cargo em comissão com prazo determinadoA administração da agência é atribuída a titulares de cargo em comissão, mas

investidos de mandato com prazo determinado, excluída a exoneração a qualquer tempo,

senão em face da comprovação de um elenco específico de causas.

Ou seja, há cargos cuja investidura se faz sem concurso público, exigindo-se o

preenchimento pelo interessado de determinados requisitos. A investidura se faz por prazo

determinado, com eventual possibilidade de recondução. O procedimento de nomeação

comporta participação de diversos órgãos ou autoridades. Uma vez empossados, os

administradores têm garantia contra exoneração fundada em simples critério de

conveniência. Somente se admite sua demissão, mediante demonstração de ação ou

omissão incompatível com os deveres inerentes à função.

O modelo foi objeto de impugnação por alguns doutrinadores. Para sumariar a

35 Princípio da Legalidade – Delegações Legislativas – Poder Regulamentar – Repartição Constitucional dasCompetências Legislativas, reproduzido em BDA, jan 1997, p. 23.36 Temas de Direito Público (Estudos e Pareceres), Rio de Janeiro: Renovar, 2º vol., 1997, p. 1.089.

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Page 27: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

controvérsia, argumentou-se com a limitação constitucional à existência de apenas duas

categorias de cargos públicos. O art. 37, inc. II, da Constituição prevê que a investidura em

cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público, ressalvadas

as nomeações para cargo em comissão (que comporta livre nomeação e exoneração). Logo,

haveria apenas dois regimes jurídicos compatíveis com a Constituição. Existem os cargos e

empregos cuja investidura se faria mediante concurso. Quanto a esses, poderia cogitar-se de

limitações ou restrições à faculdade de exoneração. Além desses, há cargos de livre

nomeação, independentemente da realização de algum tipo de concurso. O regime jurídico

para esses cargos compreende a faculdade de livre exoneração do ocupante, a qualquer

tempo.

Essa esquematização constitucional excluiria a possibilidade de conjugar-se a livre

investidura no cargo (sem concurso), por prazo determinado e com garantia contra

demissão discricionária.

Rejeita-se esse entendimento, remetendo-se o leitor ao exame do tema, no Capítulo

XIII, que versa sobre os agentes estatais. Tal como lá exposto, reputa-se que a Constituição

permite que a investidura em cargos em comissão seja condicionada a determinados

requisitos, tal como também autoriza restrições à livre exoneração de seus ocupantes.

X.10.6.6.1) A solução consagrada na Lei n° 9.986 A Lei n° 9.986 dispôs sobre os servidores das agências reguladoras. Qualificou os

cargos de diretoria como cargos comissionados de direção (CD I e CD II). Incorporou-se,

desse modo, a concepção de que cargos em comissão podem ser providos por prazo

determinado, subordinada a demissão à motivação e procedimento formal.

X.10.6.6.2) A demissibilidade dos administradores das agências Insista-se em que os administradores podem ser demitidos, desde que comprovado

(mediante processo administrativo ou judicial) a infração a determinados deveres ou a

perda de requisitos essenciais para o exercício do cargo. O que não se admite é sua

exoneração ao sabor das conveniências políticas.

X.10.6.7) A quinta peculiaridade: a autonomia financeiraO modelo de agências reguladoras comporta a atribuição de autonomia financeira,

por meio da garantia de receitas vinculadas. Isso significaria a possibilidade de manutenção

de sua estrutura e de seu funcionamento sem dependência de disputas políticas sobre

distribuição de verbas orçamentárias.

Mas essa característica depende do setor em que a agência atua e das circunstâncias,

nem sempre se revelando possível sua existência.

X.10.6.8) Os limites da autonomia das agências reguladorasUma preocupação marcante reside na adoção de instrumentos de controle da

atuação das agências reguladoras.

Há limites de diversa ordem. A autonomia não significa independência em face aos

demais Poderes e órgãos de controle.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 28: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Ademais disso, há limites mais precisos. É impossível a agência assumir a

formulação de políticas ou concentrar competências decisórias sobre questões essenciais ao

destino da Nação.

Um instrumento de controle das agências é o contrato de gestão.

X.10.7) Autonomia das agências e contrato de gestão A referência constitucional ao contrato de gestão foi introduzida pela E. C. n° 19,

que deu nova redação ao § 8° do art. 3737

.

X.10.7.1) A interpretação contratualista para a figuraAdotar interpretação literal para o art. 37, § 8°, acarreta a inconstitucionalidade da

disposição introduzida pela Emenda.

A administração indireta se produz por atos infraconstitucionais, de cunho

legislativo, tal como está no art. 37, caput e inc. XIX, da Constituição Federal. Daí deriva a

impossibilidade de ampliação de competências por via de um contrato. Ou a matéria está

contida e determinada em lei ou não o está. No segundo caso, a matéria não poderia ser

objeto de regulamentação por via contratual.

X.10.7.2) A interpretação conforme: “contratualização” em acepção amplaO dispositivo do art. 37, § 8°, Constituição Federal merece interpretação conforme.

Nenhuma ampliação de competências poderá fundar-se em uma avença de natureza

contratual, infralegislativa. Incumbirá à lei determinar, nos limites da Constituição, a

autonomia assegurada aos órgãos integrantes da administração indireta. Qualquer ato

infralegal, denominado de contrato de gestão, será uma mera via de concretização de

determinações exaustivamente previstas em lei.

Nesse ponto, vale considerar a sistematização produzida pela doutrina francesa

acerca da matéria, envolvida num processo de contratualização da atividade administrativa.

No âmbito da doutrina francesa, a expressão contratualização da atividade administrativa indica uma pluralidade de fenômenos distintos entre si.

Essa expressão indica, primeiramente, o incremento de um conjunto muito

conhecido de relações jurídicas, pactuadas entre a administração e particulares, para

prestação de serviços, aquisição de bens e assim por diante. Esse é o campo mais conhecido

dos chamados contratos administrativos.

Mas também se indica um processo distinto, consistente na substituição de relações

de autoridade por vínculos de natureza consensual. A esse propósito, desempenham grande

importância os chamados contratos de gestão. Busca-se aplicar ao âmbito das organizações

estatais todo o aparato de estruturação das relações entre particulares.

37 O dispositivo tem a seguinte redação: “A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e

entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ouentidade, cabendo à lei dispor sobre: I – o prazo de duração do contrato; II – os controles e critérios deavaliação de desempenho, direitos, obrigações e responsabilidade dos dirigentes; III – a remuneração dopessoal”.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 29: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

YVONE FORTIN alude à existência de diversas figuras, muito distintas entre si,

referidas como espécies do contrato de gestão38

. Uma dessas figuras foi adotada, no Brasil,

a propósito das agências reguladoras independentes. É o que, na Europa, costuma ser

denominado contrato interno de gestão, também conhecido como contrato de performance.

É uma avença pactuada ao interno de uma estrutura administrativa, entre dois níveis

hierárquicos distintos e produzindo vinculação entre ambos. Usualmente, relaciona-se com

a dissociação entre núcleos que desempenham funções estratégicas e os encarregados de

atividades de gestão.

A categoria de “contrato interno de gestão” é desprovida de natureza contratual, em

sentido tradicional. “A utilização quase universal do termo ‘contrato’ para qualificar esses

acordos de gestão reflete a intenção de traduzir certas mudanças essenciais apresentadas

como uma ruptura profunda com o modo de gestão anterior, afetando as relações

hierárquicas entre as partes”.39

Uma característica essencial desse novo modelo consiste na relativa igualdade entre

as partes, o que se reflete na necessidade de negociação e formulação de estimativas

conjuntas acerca dos correspondentes desempenhos. Surge uma certa estabilidade na

eleição dos objetivos a atingir, eliminando-se um cunho de personalismo que era inerente a

um sistema napoleônico de condução dos corpos administrativos.

A sistemática dos contratos de gestão abrange, ademais disso, a substituição (total

ou parcial) de métodos tradicionais de controle, de natureza apriorística, por sistemas de

avaliação de desempenho. A nova modelagem envolve a verificação do atingimento de

certos resultados, com ampliação da margem de autonomia da autoridade administrativa

para seleção dos meios para melhor cumprir seus encargos.

X.10.7.3) A dimensão político-jurídica do fenômenoUma análise crítica desses enfoques é produzida por JACQUES CHEVALLIER,

para quem a chamada pós-modernidade jurídica propicia inovações contraditórias e

inovadoras, inclusive com a redução da distância entre os conceitos de ato jurídico

unilateral e contrato administrativo.40

Isso se verifica no âmbito da própria regulamentação

do funcionalismo, que presenciou na França a adoção de acordos entre administração e

servidores.

CHEVALLIER assinala que essas vinculações raramente se configuram como

contratos, no sentido tradicional da expressão. A situação legal e estatutária da maior parte

dos envolvidos atribui à avença uma mera condição de promessa. Em muitos casos, as

entidades envolvidas sequer dispõem de personalidade jurídica própria e distinta, do que

deriva a impossibilidade jurídica de um contrato sem sujeitos. Ocorre a consagração de um

novo modelo de gestão da coisa pública.

38 Introduction, em La Contractualisation dans le secteur public des pays industrialisés depuis 1980, Paris –

Montréal: L’Harmattan, 1999, p. 12-14.39

YVONE FORTIN, Administrations Centrales et Gestion des Systèmes Contractuels: Les cas de laFinlande, de la France, de la Norvège, du Royaume-Uni et de la Suède, em La Contractualisation dans lesecteur public des pays industrialisés depuis 1980, Paris – Montréal: L’Harmattan, 1999, p. 53.40 Synthèse, em La Contractualisation dans le secteur public des pays industrialisés depuis 1980, Paris –

Montréal: L’Harmattan, 1999, p. 398.

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Page 30: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

A concepção monolítica, piramidal e hierárquica da administração pública é

sucedida por uma visão em que os diferentes agentes são também sujeitos: funcionários

públicos, empresas, usuários, cidadãos e podem interferir sobre o desenvolvimento da

atividade administrativa, que deixa de ser o reflexo da vontade discricionária, subjetiva e,

mesmo, inconseqüente da autoridade administrativa de mais elevada hierarquia.

A contratualização assegura a flexibilidade da atuação administrativa, permite a

participação dos diversos agentes sociais e amplia a responsabilidade dos diversos sujeitos

envolvidos. É instrumento de coordenação, para evitar que a pluralidade de instâncias

administrativas se traduza numa atividade contraditória e desordenada.

X.10.7.4) A interpretação adequada para o “contrato de gestão” brasileiroEsses subsídios podem ser utilizados para a interpretação do contrato de gestão

brasileiro. Deve reputar-se que a expressão não foi utilizada em uma acepção técnico-

jurídica por parte da Constituição (art. 37, §8º, CF). Cabe tentar reconstruir a figura,

inclusive para apontar algumas virtudes.

X.10.7.4.1) Ausência de natureza contratual Deve asseverar-se, primeiramente, a ausência de natureza contratual para a figura. A

figura examinada apresenta natureza consensual, mas não contratual. Não se trata de um

acordo de vontades destinado a gerar direitos e obrigações para uma ou ambas as partes,

com natureza ampliativa do universo de relações jurídicas de que participam.

Os partícipes da avença não podem sequer ser considerados como partes distintas e

autônomas. São sujeitos integrantes de uma mesma órbita jurídica, sem qualquer

contraposição ou dissociação de interesses.

X.10.7.4.2) Amplitude de efeitos O dito contrato de gestão não é adequado a gerar direitos ou obrigações, com cunho

inovador. Versa sobre matérias subordinadas ao princípio da legalidade, o que significa que

todos os direitos e deveres atribuídos às partes derivam de previsão em lei. Logo, o

contrato de gestão não institui deveres ou direitos além daqueles já consagrados

legislativamente.

A lei fixará limites máximos de poderes e competências, cuja delimitação se fará

por meio de ato consensual posterior, de natureza infralegal. Usualmente, incumbiria à

autoridade superior, por meio de ato unilateral, disciplinar a extensão do poderes

reconhecidos às autoridades inferiores ou entidades sob seu controle. O que a Emenda

Constitucional previu foi a contratualização desse ato de aplicação da lei.

Ou seja, ao invés de produzir-se um ato administrativo unilateral, produz-se um ato

convencional, pelo qual autoridades superior e inferior pactuam o modo de aplicar a lei.

Logo, o contrato de gestão não é destituído de efeitos jurídicos – ainda que se possa

reconhecer que sua relevância se evidencia muito mais no plano político.

Não se podem admitir, no entanto, duas alternativas. A primeira é a substituição da

existência de lei por um ato de natureza convencional. O contrato de gestão pressupõe uma

lei estabelecendo os marcos específicos e explícitos sobre os temas que versará.

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A segunda é o contrato de gestão ultrapassar os limites fixados em lei. Como é

evidente, a submissão da figura ao princípio da legalidade acarreta a invalidade de um

contrato de gestão contra legem.

X.10.7.4.3) Fixação de objetivos e metas concretos: as virtudes do contrato de gestão O contrato de gestão deve ser entendido como uma avença concertada entre

autoridades públicas, derivada do exercício de competências discricionárias versando sobre

determinado setor de atuação estatal. Trata-se da individualização e especificação de metas

concretas, estratégias determinadas e políticas específicas assumidas pelas autoridades

públicas encarregadas da gestão de um segmento delimitado de atividades. Por meio do

contrato de gestão, as autoridades produzem uma forma de regulamentação setorial,

exaurindo sua competência discricionária sobre o tema.

Sob diversos ângulos, a figura do contrato de gestão merece aplausos.

X.10.7.4.3.1) Virtudes do contrato de gestão

Em primeiro lugar, o contrato de gestão amplia a transparência administrativa.

Exterioriza-se, de modo formal, uma relação de compromissos do Estado. Indicam-se

objetivos, metas e estratégias, o que permite conhecimento (e, portanto, controle) por parte

da sociedade civil e de outros órgãos.

Depois, a definição formal de objetivos, metas e políticas produz a fixação de uma

política setorial. Isso importa o dever de racionalização das atividades estatais. Portanto,

surge uma espécie de instrumento norteador da atuação governamental estatal. Há o dever

de congruência das decisões posteriores em face daquelas adotadas em período pretérito.

Além de tudo, o contrato de gestão produz uma pauta de controle da atuação

concreta dos ocupantes de cargos públicos. Torna-se possível examinar se os objetivos

foram atingidos, se os compromissos foram cumpridos, se o desempenho foi satisfatório.

X.10.7.4.3.2) Eventual relevância jurídica do contrato de gestão

Não se pode excluir a relevância jurídica de contratos de gestão. Pode ocorrer que

terceiros impugnem decisões concretas adotadas pelos órgãos administrativos sob

fundamento de infração ao contrato de gestão. A incompatibilidade com o contrato de gestão prévio pode autorizar a invalidação de decisão administrativa posterior, que se

revela incompatível com os planos de governo consagrados ou com os limites de

competência avençados.

Relevância equivalente apresenta como instrumento de controle interno e externo à

própria administração. Os órgãos parlamentares, os tribunais de contas e o próprio

Judiciário podem verificar a validade de decisões administrativas em face dos termos

constantes de contratos de gestão.

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X.10.8) A tentativa de uniformização da disciplina jurídica das agências No Brasil, contrariamente ao que se passa em todos os demais países que adotaram

o modelo de agências41

, pretende-se impor uma disciplina jurídica uniforme para as

agências reguladoras independentes. Esse é um esforço destinado ao fracasso, que se inicia

pela inútil pretensão de produzir um elenco de agências reguladoras independentes.

A heterogeneidade das figuras e a diversidade das características setoriais em que

atuam impedem a sua submissão a um regime único e uniforme. Portanto, as regras

aplicáveis a todas as agências são irrelevantes.

Outro fator relevante para a superação da disciplina uniforme já foi anteriormente

apontado. Uma lei geral das agências é uma lei ordinária. Cada agência é disciplinada por

lei de igual hierarquia. Isso significa que a lei própria de cada agência pode introduzir

inovações no âmbito da lei geral das agências.

X.11) O desempenho de atividades regulatórias setoriais As atividades regulatórias são desenvolvidas não apenas por meio de agências

independentes, mas por via de inúmeros órgãos administrativos. Existem atividades

regulatórias setoriais, desenvolvidas pela atuação permanente e harmônica de inúmeros

órgãos estatais. É possível aludir não apenas à regulação econômica propriamente dita, mas

também a outros setores regulatórios.

Assim, há uma atividade regulatória estatal de meio-ambiente, que se traduz num

conjunto ordenado de atos normativos e de órgãos estatais orientados à defesa da ecologia e

à proteção do patrimônio natural. Inúmeros diplomas disciplinam o tema, nas diversas

órbitas federativas. No âmbito federal, pode lembrar-se a Lei n° 6.938/1981, que dispôs sob

a Política Nacional de Meio Ambiente.

Existe uma atividade regulatória estatal de defesa do consumidor, alicerçada na

Constituição e no Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/1990), que instituiu o

Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 105 e seguintes) e que é integrado por

órgãos de todas as esferas federativas.

Há uma atividade regulatória no setor cultural, que se manifesta inclusive pela

institucionalização de mecanismos de incentivo fiscal.

Por outro lado, a Lei Federal n° 10.257/2001 instituiu o chamado “Estatuto da

Cidade”, sistematizando competências municipais e impondo o seu desempenho segundo

políticas e planejamento predeterminados. A regulação urbana se caracteriza, inclusive, por

uma concepção de gestão democrática da cidade, o que reflete a tendência à superação dos

modelos autoritários do passado.

O peculiar em todos esses casos reside em que a atividade administrativa não se

dirige, de modo direto e imediato, a produzir o fornecimento de bens ou utilidades para

satisfação de interesses essenciais. Os mecanismos de Direito Administrativo são utilizados

para reprimir condutas indesejáveis e promover modificações nas estruturas sociais. Em

41 Além dos EUA, as agências reguladoras independentes se disseminaram de modo generalizado nos países

industrializados europeus.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 33: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

inúmeras hipóteses, a administração pública assume uma função de “defesa da sociedade”,

identificando e reprimindo condutas individuais abusivas, visando a evitar que a busca da

satisfação egoística do interesse privado redunde no prejuízo aos interesses transindividuais

difusos e coletivos. Em inúmeros casos, a administração pública é investida inclusive da

legitimação ativa para propositura de ações coletivas, tal como se vê no art. 82, incs. II e

III, e 91 e seguintes do Código de Defesa do Consumidor.

Essa disciplina gera uma situação peculiar. Em inúmeros casos, os instrumentos

processuais utilizados para controle da administração pública podem ser utilizados por

provocação pela própria administração visando à repressão de condutas da iniciativa

privada.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 34: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

Capítulo XI - Tipos de atividade administrativa: serviçopúblico

O conceito de serviço público desenvolveu-se na França, onde é utilizado para

indicar, de modo amplo, todas as atividades estatais. No Brasil, adota-se conceito mais

restrito, que não abrange inúmeras atividades estatais.

XI.1) DefiniçãoServiço público é uma atividade pública administrativa de satisfação concreta

de necessidades individuais ou transindividuais, materiais ou imateriais, vinculadasdiretamente a um direito fundamental, destinada a pessoas indeterminadas e executada sob regime de Direito Público.

XI.1.1) Serviço público é uma atividade O serviço público é uma atividade, o que significa a necessidade de estruturas

humanas e materiais para atuação permanente e sistemática. Sem essas estruturas

organizacionais não existe serviço público.

XI.1.2) pública A natureza funcional da atividade de serviço público e a indisponibilidade dos

direitos fundamentais acarreta usualmente a atribuição da titularidade do serviço público

ao Estado. Essa é uma opção do direito positivo. Quando tal ocorre, o direito pode

autorizar a delegação do serviço público à prestação por particulares. Mas isso não

desnatura a existência de um serviço público, o qual será prestado por particulares

delegados do Estado.

Há uma forte tendência, apontada ao longo desta obra, de que o serviço público

seja desempenhado também por particulares. A sociedade civil assume o compromisso

de promover os direitos fundamentais e surgem organizações não estatais

comprometidas com atividades equivalentes às estatais. Tal como já afirmado, essas

atividades sofrerão a influência dos princípios fundamentais do serviço público.

XI.1.3) administrativa O serviço público é uma atividade administrativa, o que exclui as atividades

legislativas e jurisdicionais. Prestar um serviço público não abrange compor

jurisdicionalmente um litígio nem produzir uma lei.

XI.1.4) de satisfação concreta de necessidadesO serviço público é uma atividade administrativa, mas nem todas as

competências do Executivo são serviço público. O serviço público é a satisfação

concreta de necessidades. Por isso, não abrange o exercício de competências políticas

inerentes à organização política do Estado, que traduzam o monopólio estatal da

violência e outras competências reflexas, que se relacionam à concepção de que “Todoo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente...” (Constituição, art. 1º, parágrafo único). Não se constituem em serviço

público, por exemplo, as funções políticas do Chefe do Poder Executivo, a execução de

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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sanções (inclusive penais), a fiscalização e arrecadação tributárias, os serviços de

segurança pública (interna e externa).

XI.1.5) individuais ou transindividuais,O serviço público produz a satisfação de necessidades individuais, homogêneos

ou não, assim como a interesses transindividuais (coletivas ou difusas).

Isso significa não adotar a concepção de que apenas existiriam serviços públicos

quando fossem produzidas utilidades fruíveis individualmente pelo usuário. Reputa-se

que existem serviços públicos fruíveis individualmente e outros cuja fruição se faz

coletivamente. Varrer as ruas é um serviço público, que não é fruível individualmente.

Já o fornecimento doméstico de energia é um serviço público que atende interesses

difusos, coletivos e individuais. Aliás, há forte tradição em classificar os serviços

públicos em fruíveis uti singuli e uti universi, que influencia, inclusive, a disciplina

tributária42

.

XI.1.6) materiais ou imateriais, O serviço público traduz-se numa atuação comissiva, que gera inovações no

mundo natural. Não se configura numa omissão estatal nem na imposição pelo Estado

de vedações à conduta individual.

A atividade de serviço público consiste num fazer, que pode eventualmente

abranger também um dar. Exterioriza-se na prestação de utilidades materiais ou

imateriais.

Quando o Estado fornece cestas básicas para carentes, está prestando um serviço

público. Mas também está prestando serviço público quando fornece assistência

psicológica a pessoas portadoras de moléstias mentais. Outro exemplo é o serviço de

radiodifusão de sons e imagens. As atividades de rádio e de televisão se configuram

como serviço público, sem que se traduzam na oferta de utilidades materiais.

XI.1.7) vinculadas diretamente a um direito fundamental,A atividade de serviço público é um instrumento de satisfação direta e imediata

dos direitos fundamentais, entre os quais avulta a dignidade humana. O serviço público

existe porque os direitos fundamentais não podem deixar de ser satisfeitos.

Isso não significa afirmar que o único modo de satisfazer os direitos humanos

seja o serviço público, nem que o serviço público seja a única atividade estatal norteada

pela supremacia dos direitos fundamentais.

Todas as atividades estatais, mesmo as não administrativas, são um meio de

promoção dos direitos fundamentais. Mas o serviço público é o desenvolvimento de

atividades de fornecimento de utilidades necessárias, de modo direto e imediato, à

satisfação dos direitos fundamentais. Isso significa que o serviço público é o meio de

assegurar a existência digna do ser humano. O serviço de atendimento a necessidades

fundamentais e essenciais para a sobrevivência material e psicológica dos indivíduos.

Há um vínculo de natureza direta e imediata entre o serviço público e a

satisfação de direitos fundamentais. Se esse vínculo não existir, será impossível

42 Assim, o art. 145, inc. II, da Constituição reflete essa concepção, ao restringir a abrangência das taxas

de serviço público aos serviços públicos específicos e divisíveis. A jurisprudência dos tribunais, com base

nessa disposição, rejeita a cobrança de taxa vinculada a serviços públicos genéricos e não divisíveis – o

que significa admitir sua existência.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 36: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

reconhecer a existência de um serviço público.

A advertência é relevante porque há atividades estatais que não se orientam a

promover, de modo direto e imediato, os direitos fundamentais. Essas atividades não

são serviço público e, bem por isso, não estão sujeitas ao regime de Direito Público. O

exemplo é a atividade econômica em sentido restrito, desenvolvida com recursos

estatais e sob regime de Direito Privado.

XI.1.8) destinada a pessoas indeterminadas O serviço público destina-se ao atendimento de necessidades de sujeitos

indeterminados. Trata-se de um serviço ao público em geral. Não é serviço público a

atividade em que os benefícios não sejam oferecidos a um número indeterminado de

potenciais beneficiários.

XI.1.9) e executada sob regime de Direito PúblicoA atividade de serviço público é um meio de realizar fins indisponíveis para a

comunidade. Os direitos fundamentais não podem deixar de ser realizados. Por isso, as

atividades necessárias à sua satisfação direta e imediata são subordinadas ao regime de

Direito Público. A atividade de serviço público é subordinada ao regime de Direito

Público como conseqüência de sua natureza funcional.

Há um fim a ser atingido, o que exige a outorga dos meios necessários. O regime

de Direito Público é o meio formal para assegurar a satisfação dos direitos

fundamentais. Esse regime será estudado neste capítulo, de modo sumário,

especialmente tomando em vista o muito que já se escreveu nesta obra sobre o tema.

O regime de Direito Público próprio da prestação do serviço público

compreende competências anômalas.

Alguns autores têm cogitado de serviços públicos prestados sob regime de

Direito Privado, o que se traduziu concretamente na regulação dos serviços de

telecomunicação. Rigorosamente, serviço público sob regime de Direito Privado é uma

contradição em termos. A aplicação do regime de Direito Privado desnatura o serviço

público. A expressão serviço público sob regime de Direito Privado indica serviços

privados subordinados a uma regulação jurídica intensa, tema que será adiante referido.

XI.2) A natureza institucional do serviço público O serviço público é uma instituição, constituindo-se em uma estrutura social

produzida pelos esforços conjuntos de uma pluralidade indeterminada de sujeitos, que

conjugam permanentemente seus esforços em vista de um conjunto de valores e ideais.

O serviço público institucionalizado transcende a identidade e a existência das

pessoas físicas e jurídicas, passando a ser um elemento formador da vida social. Como

uma instituição social, o serviço público norteia a conduta das pessoas.

Por isso, o serviço público é um atributo da sociedade, ainda que a competência

para sua organização e regulamentação seja formalmente atribuída ao Estado. Mas o

Estado não é “proprietário” do serviço público. Se fosse possível aludir a “propriedade

do serviço público”, certamente sua titularidade seria de toda a sociedade.

XI.3) Os três aspectos do conceito de serviço público Afirma-se, tradicionalmente, que o conceito de serviço público se integra pela

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 37: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

presença de três aspectos.

Sob o ângulo material ou objetivo, o serviço público consiste numa atividade

de satisfação de necessidades individuais de cunho essencial.

Sob o ângulo subjetivo, trata-se de atuação desenvolvida pelo Estado (ou por

quem lhe faça as vezes).

Sob o ângulo formal, configura-se o serviço público pela aplicação do regime

jurídico de Direito Público.

A qualificação formal é logicamente dependente das outras duas. O serviço

público se peculiariza pela existência de um regime jurídico específico. Mas a aplicação

desse regime depende da presença de certos requisitos. Todo serviço público está sujeito

ao regime de Direito Público, mas nem toda atividade (estatal ou privada) é um serviço

público. Uma questão fundamental, portanto, reside em determinar quando e porque

uma atividade pode (ou deve) ser considerada serviço público e, desse modo, submeter-

se a um regime jurídico peculiar. Então, o regime jurídico fornece subsídios para

responder à pergunta “como está disciplinado o serviço público”, mas não propicia

elementos para outra indagação fundamental, sobre “o que pode ser considerado como serviço público”.

Há certos requisitos necessários para uma atividade ser qualificada como serviço

público e, desse modo, sujeitar-se ao regime jurídico correspondente.

Raciocínio similar se aplica ao ângulo subjetivo do conceito de serviço público.

O serviço público é de titularidade do Estado mas daí não se segue que todo e qualquer

serviço prestado pelo Estado seja “serviço público”. Nem é correto (ao menos, perante

o Direito brasileiro) afirmar que o serviço se qualifica como público porque de

titularidade do Estado. Ao contrário, o serviço é de titularidade do Estado por serpúblico. Portanto, atribuição da titularidade de um serviço ao Estado é decorrência de

seu reconhecimento como serviço público. Sob o prisma lógico jurídico, o serviço é

público antes de ser estatal.

Essa formulação deve ser complementada para apontar-se a tendência à

afirmação da prestação do serviço público por entidades não estatais, que atuam em

nome próprio e não por delegação pública. Surgem serviços públicos não estatais, o que

não significa o desaparecimento de serviços públicos privativos do Estado. Alguns dos

mais relevantes serviços públicos continuam a ser de titularidade exclusiva do Estado.

O aspecto material ou objetivo é mais relevante do que os outros dois, sob o

ponto de vista lógico. Os outros dois aspectos dão identidade ao serviço público, mas

são decorrência do aspecto material. Uma certa atividade é qualificada como serviço

público em virtude de dirigir-se à satisfação direta e imediata de direitos fundamentais.

Como conseqüência, essa atividade é submetida ao regime de Direito Público e, na

maior parte dos casos, sua titularidade é atribuída ao Estado.

Em síntese: um serviço é público porque se destina à satisfação de direitos

fundamentais e não por ser de titularidade estatal nem por ser desenvolvido sob regime

de Direito Público. Essas duas são conseqüências da existência de um serviço público.

XI.4) O serviço público é uma intervenção estatal no domínio econômico

O serviço público é uma intervenção estatal no domínio econômico.

Em primeiro lugar, a prestação do serviço público pressupõe a utilização de

recursos limitados para satisfação de necessidades entre si excludentes. Isso envolve a

utilização de recursos econômicos.

Em segundo lugar, a qualificação de uma atividade como serviço público exclui

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 38: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

a aplicação do regime próprio do Direito Privado. A submissão de uma atividade ao

âmbito do serviço público acarreta a redução da órbita da livre iniciativa. Quanto mais

amplo o universo dos serviços públicos, menor é o campo das atividades de Direito

Privado. E a recíproca é verdadeira.

XI.4.1) O serviço público reflete decisões políticas fundamentaisDiscutir serviço público conduz a enfrentar questões políticas e jurídicas

essenciais. Trata-se de definir a função do Estado, seus limites de atuação e o âmbito

reservado à livre iniciativa dos particulares. Essa é uma questão histórica e cada Estado

desenvolve um modelo peculiar. O elenco de serviços públicos reflete uma determinada

concepção política. A Constituição de cada país identifica a disciplina adotada para o

serviço público e a atividade econômica.

XI.4.2) Serviço público e controle do poder Há serviço público quando a atividade se destina a satisfazer necessidades

relacionadas direta e imediatamente com os direitos fundamentais. Costuma-se pensar

que essa atividade é reservada ao Estado por deter ele as melhores condições de seu

exercício. Alude-se à exclusão dessa atividade do universo da atuação facultada à livre

iniciativa porque o Estado poderia desincumbir-se tão ou mais adequadamente dela do

que o faria a própria iniciativa privada.

Mas o serviço público reflete também uma decisão política relacionada com a

distribuição do poder na sociedade. Relaciona-se com a eficiência no modo de

satisfazer necessidades essenciais, mas também com o controle do poder econômicoprivado.

Uma atividade é qualificada como serviço público por ser relacionada direta e

imediatamente com os direitos fundamentais. Mas essa qualificação deriva não apenas

da pressuposição de que o Estado disporia de melhores condições do que a iniciativa

privada para desempenhar certa função. Também pode ocorrer que a relevância das

atividades propicie tamanha quantidade de poder (político, econômico, cultural etc.) ao

exercente da atividade que se imponha como necessária a intervenção estatal para

produzir o equilíbrio social.

O exemplo mais evidente nesse campo é a televisão. No Brasil, configura-se um

serviço público, mas o Estado não pretende (nem nunca o pretendeu) assumir direta e

imediatamente o desempenho das comunicações televisivas. A atuação estatal brasileira

no âmbito dos serviços de televisão é absolutamente secundária. O que se pretende é

uma intervenção regulatória destinada a restringir o poder produzido a partir do controle

dos meios de comunicação de massa.43

Sob esse ângulo, adquire pleno sentido a afirmação de JUAREZ FREITAS de

que serviço público “é todo aquele essencial para a realização dos objetivos

fundamentais do Estado Democrático”.44

Trata-se de formulação especialmente

adequada ao modelo constitucional brasileiro de 1988.

A definição de “objetivo fundamental do Estado Democrático” permite variada

43 Isso não equivale a admitir que o Estado possa qualificar como serviço público, livremente, qualquer

atividade econômica, simplesmente para instituir controles públicos sobre o seu desempenho. Somente

podem ser consideradas como serviço público as atividades destinadas a satisfazer necessidades

relacionadas, de modo direto e imediato, ao princípio da dignidade da pessoa humana.44

JUAREZ FREITAS, Estudos de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 33.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 39: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

extensão. No Brasil atual, retrata a necessidade de promover democracia política,

econômica, social. O serviço público, no Brasil, tem de assegurar condições de

progresso econômico e eliminação de desigualdades regionais, respeitando os limites

constitucionais para intervenção estatal no domínio econômico.

XI.5) A qualificação da atividade como um serviço público A instituição de um serviço público depende do reconhecimento jurídico da

pertinência daquela atividade para a satisfação dos direitos fundamentais. Costuma-se

aludir a publicatio ou publicização para indicar o ato estatal formal necessário à

qualificação de uma atividade como serviço público.

Esse ato de publicização deverá constar de uma lei. A instituição de um serviço

público por meio de ato administrativo é ilegal.

Essa consideração é de extrema relevância porque significa que, na ausência da

publicização legislativa, a atividade não é considerada serviço público, presumindo-se

sua qualificação como atividade econômica em sentido restrito.

XI.6) Os serviços públicos no Direito brasileiro Na maior parte dos países, a Constituição é omissa sobre os serviços públicos

em espécie, cabendo sua determinação à lei. No Brasil, há inúmeras referências

constitucionais a serviço público.

XI.6.1) A previsão constitucional quanto a serviços públicos Ao discriminar competências dos diversos entes federados, a Constituição

refere-se a certas atividades como serviços públicos. O art. 21 contém diversas

previsões acerca de serviços públicos (incs. X, XI e XII), o que conduziu parte

substancial da doutrina a reconhecer tais atividades como serviços públicos por

inerência.45

Quanto a eles, não haveria margem de qualquer inovação ou modificação

por parte do legislador infraconstitucional.

Esse entendimento é rejeitado. Reputa-se que as atividades referidas nos

diversos incisos do art. 21 da Constituição poderão ou não ser qualificadas como

serviços públicos, de acordo com as circunstâncias.

Existirá serviço público apenas quando as atividades referidas na Constituição

envolverem a prestação de utilidades destinadas a satisfazer direta e imediatamente os

direitos fundamentais.

Se houver cabimento de oferta de utilidades desvinculada da satisfação dos

direitos fundamentais, existirá uma atividade econômica em sentido estrito (ou um

serviço de interesse coletivo).

Essa interpretação se fundamenta em quatro argumentos: a subordinação a

requisitos previstos na lei ordinária, a previsão constitucional de “autorização”, a

discriminação de competências federativas, e a autonomia legislativa infraconstitucional

para a criação do serviço público.

XI.6.1.1) A subordinação a requisitos previstos na lei ordináriaEm primeiro lugar, a interpretação literal do art. 21 conduziria a resultados

45 Esse entendimento, aliás, era professado anteriormente pelo próprio autor.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 40: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

indefensáveis. Considere-se, para exemplificar, o dispositivo do art. 21, inc. XII, al.

“a”. Ali se determina que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons eimagens. Se esse dispositivo impusesse a qualificação como serviço público de toda e

qualquer atividade relacionada à radiodifusão sonora e de sons e imagens, o resultado

seria despropositado. Qualquer atividade de transmissão de som por meio de ondas de

rádio seria um serviço público. Assim não o é, conforme interpretação mansa e pacífica.

Mesmo os defensores da tese de serviços públicos por inerência constitucional

reconhecem que nem todos os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens são

serviços públicos.

Idêntica interpretação prevalece a propósito de todas as previsões contempladas

no art. 21. É pacífico que o elenco do art. 21 tem de ser interpretado no sentido de que

haverá serviço público somente se presentes alguns requisitos específicos e

determinados – sobre os quais o aludido art. 21 silencia.

Exige-se o oferecimento de utilidades a pessoas indeterminadas, a exploração

permanente da atividade e outros requisitos fixados em lei ordinária.

Portanto, não basta a existência da norma constitucional para o surgimento do

serviço público. Mais ainda, a lei ordinária pode estabelecer que algumas atividades,

subsumíveis ao modelo constitucional, não serão serviço público, e nisso não haverá

qualquer inconstitucionalidade.

XI.6.1.2) A previsão constitucional de “autorização”A interpretação é corroborada por um outro elemento literal, de não pequena

relevância. Os incs. X, XI e XII do art. 21 se referem à competência da União para

outorgar concessão, permissão ou autorização para o desempenho daquelas atividades.

Ora, a expressão autorização é incompatível com a existência de um serviço

público. Não se outorga autorização de serviço público – fórmula verbal destituída de

sentido lógico-jurídico. Somente se cogita de autorização para certas atividades

econômicas em sentido restrito, cuja relevância subordina seu desempenho à

fiscalização mais ampla e rigorosa do Estado. Sendo outorgada autorização, não existirá

serviço público. Logo e como o art. 21, incs. X a XII, da Constituição refere-se

expressamente tanto à concessão como à autorização a propósito de certas atividades,

tem de concluir-se que elas comportam exploração sob ambas as modalidades jurídicas.

Então, as atividades indicadas na Constituição configurarão, em alguns casos,

serviço público. Mas isso não elimina a possibilidade de sua qualificação como

atividade econômica em sentido restrito.

XI.6.1.3) A discriminação de competências federativasAdemais, as disposições constitucionais referidas (em especial, o art. 21) não se

destinam a diferenciar serviço público e atividade econômica em sentido restrito. Sua

finalidade é promover a discriminação de competências entre os diversos entes federais.

A disciplina da atividade econômica (em sentido amplo) não foi consagrada no art. 21,

mas em outro Título Constitucional.

Mesmo reconhecendo a natureza sistêmica e orgânica da disciplina

constitucional e rejeitando argumentos meramente topológicos, não se pode deixar de

atentar para a finalidade dos diversos dispositivos constitucionais.

XI.6.1.4) A sistemática constitucional quanto a atividades de grande essencialidadePor fim, essa sistemática foi admitida expressamente pela Constituição quanto a

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 41: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

serviços públicos de elevado grau de essencialidade. No Título VIII – Da Ordem Social,

inúmeros dispositivos reconhecem que os particulares são investidos na autonomia de

desenvolverem, sob regime de Direito Privado (fortemente regulado), atividades

equivalentes ao serviço público. Isso se passa com a assistência à saúde (art. 199),

previdência privada (art. 202), educação (art. 209). Ainda no silêncio da Constituição, é

evidente o cabimento de atuação privada no âmbito da assistência social, cultura,

desporto, ciência e tecnologia.

Esses serviços públicos sociais e culturais são tão ou mais essenciais que os ditos

comerciais e industriais. Não teria cabimento que a solução constitucional para os

serviços públicos sociais e culturais fosse diversa daquela contemplada para os serviços

comerciais e industriais.

Não atende ao princípio da razoabilidade que o Estado seja obrigado a manter

escolas públicas mas que um particular possa valer-se de escola privada – e que idêntica

solução seja vedada no tocante à energia elétrica, por exemplo.

XI.6.2) A autonomia legislativa infraconstitucional para a criação do serviço público

Em suma, cabe à lei ordinária determinar a publicização de uma certa atividade e

as hipóteses em que configurará serviço público. Isso não equivale a reconhecer uma

autonomia ilimitada para o legislador ordinário. Não é indiferente para a Constituição

que as atividades referidas nos incs. X a XII do art. 21 sejam tratadas como serviço

público ou como atividade econômica em sentido restrito. Tese dessa ordem é

indefensável e infringe os arts. 170, 173 e 175 da Constituição.

A Constituição determinou que as atividades referidas no art. 21, incs. X a XII,

serão qualificadas como serviço público quando estiver presente o pressuposto

necessário: a satisfação imediata de direitos fundamentais.

A aplicação prática da tese permite compreender melhor a orientação adotada.

Suponha-se o caso da energia elétrica. Considerando o atual estágio tecnológico e

cultural, é indispensável à dignidade da pessoa humana a ligação de cada residência à

rede de energia elétrica, de modo a assegurar o acesso a utilidades fundamentais.

Portanto, a infra-estrutura necessária ao atendimento a essa exigência e à prestação

dessas utilidades configura serviço público. Mas isso não significa que toda e qualquer

atividade relacionada à geração ou à oferta de energia elétrica caracterizará

necessariamente serviço público.

Se um sujeito produz energia elétrica para o próprio consumo – por exemplo,

para fins industriais –, a atividade não configurará serviço público. Quando muito,

haverá a fiscalização por parte do Estado. Essa conclusão é perfilhada de modo

incontroverso por parte da doutrina tradicional, a qual afirma que, no caso, estaria

ausente um pressuposto do serviço público (consistente no oferecimento de utilidades

para pessoas indeterminadas).

Uma empresa privada pode aplicar seus recursos para produzir energia elétrica,

colocando essa mercadoria no mercado, segundo as regras da livre-iniciativa. Não estará

obrigada a atender a todos os usuários possíveis, mas apenas que com ela quiserem

contratar. Essa alternativa não era técnica e economicamente viável há quarenta anos.

Existem duas situações inconfundíveis. Há o dever estatal de assegurar o

fornecimento de energia elétrica a todos os domicílios. Mas isso não significa que toda e

qualquer atividade de geração de energia elétrica seja um serviço público. Além da

geração da energia elétrica como um serviço público, pode haver geração como

atividade econômica privada.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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O Estado é obrigado a promover a estruturação de um sistema de serviço público

de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. Mas, uma vez existindo essa

estrutura de serviço público, é cabível o aproveitamento de situações marginais sob o

regime de Direito Privado, como atividade econômica em sentido restrito.

Essa característica deriva da própria evolução tecnológica, apta a ampliar a

produção de utilidades muito além das essencialmente indispensáveis à sobrevivência

ou à satisfação de necessidades básicas. A ampliação do conhecimento tecnológico

propicia novas configurações para o conteúdo dos serviços públicos, tal como

anteriormente apontado.

XI.6.3) Serviços públicos e a opção legislativa infraconstitucional Segundo a tese ora adotada, a configuração de atividades como serviço público

faz-se essencialmente a partir do critério da referibilidade direta e imediata aos direitos

fundamentais. Algumas utilidades apresentam intensa pertinência a tanto, motivo pelo

qual foram referidas constitucionalmente. Isso não significa que a Constituição teria

transformado em serviço público toda e qualquer atuação relacionada a tais atividades.

Sempre se impõe como indispensável a vinculação com os direitos fundamentais.

Por outro lado, não se pode reputar que todos os possíveis serviços públicos

teriam sido referidos exaustivamente na dimensão constitucional.

Excluídos dois campos - aquilo que é obrigatoriamente serviço público e aquilo

que não pode ser serviço público – existe possibilidade de o legislador

infraconstitucional determinar outras atividades como tais, respeitados os princípios

constitucionais.

XI.7) O regime jurídico do serviço público O regime jurídico do serviço público envolve a aplicação de princípios e regras

específicos, usualmente englobados na expressão regime de serviço público. Há uma

tendência à alteração dos pressupostos tradicionais.

XI.7.1) A titularidade estatal do serviço Segundo os conceitos clássicos do Direito Administrativo, o serviço público é de

titularidade do Estado, ainda que sua gestão possa ser atribuída a particulares. Não se

aplicam os princípios de livre iniciativa, eis que a prestação do serviço público incumbe

ao Estado. Nem se poderia cogitar de livre concorrência, pois a titularidade estatal se

retrata no monopólio estatal. O fundamento constitucional dessa disciplina se encontra

no art. 175.

É costumeiro reconhecer que certas atividades são serviços públicos não

monopolizados pelo Estado. Quando desempenhados pelo Estado, serão serviços

públicos. Porém os particulares podem assumir essas atividades, hipótese em que

haveria atividade econômica. Assim se passa com as atividades de educação, de saúde,

de assistência social.

Tal como inúmeras vezes apontado, a titularidade estatal do serviço público não

impede o desenvolvimento de instituições da sociedade civil, que assumem a prestação

de algumas atividades de serviço público. Essas atividades equivalentes ao serviço

público deverão sujeitar-se a regime jurídico similar. As atividades de educação e de

saúde, embora desempenhadas por particulares, estão sujeitas a regime jurídico próximo

ao serviço público. Por isso, há a tendência a reconhecer que, em alguns setores, o

serviço público pode ser exercitado por particulares.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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XI.7.2) A exclusividade na prestação do serviço A exclusividade na prestação do serviço é, em princípio, uma decorrência do

monopólio estatal. Se determinado serviço público é de titularidade exclusiva do

Estado, sua prestação tende a ser promovida em regime de exclusividade.

Porém, poderá cogitar-se de ausência de exclusividade nos casos de serviços

públicos exercitados por particulares.

XI.7.3) Os chamados “princípios de serviço público” É usual indicar alguns princípios fundamentais do serviço público, retratando

uma construção de ROLLAND.46

Diz-se que o serviço público é norteado pelos

princípios da continuidade, da igualdade e da mutabilidade.

XI.7.3.1) A continuidadeA continuidade significa que a atividade de serviço público deverá desenvolver-

se regularmente, sem interrupções. Dele derivam inúmeras conseqüências jurídicas,

entre as quais a impossibilidade de suspensão dos serviços por parte da administração

ou do delegatário e a responsabilização civil do prestador do serviço em caso em falha.

A continuidade do serviço público também justifica a utilização do poder de

coação estatal, para assegurar a supressão de obstáculos a tanto ou para produzir

medidas necessárias a manter a atividade em funcionamento.

Há uma contrapartida para a continuidade, que se traduz na intangibilidade da

equação econômico-financeira para o delegatário do serviço público, e para o usuário, o

direito a ser indenizado por todos os prejuízos decorrentes da descontinuidade da

prestação do serviço em situação de normalidade.

Lembre-se que o art. 37, inc. VII, da Constituição assegurou o direito de greve

aos servidores públicos, remetendo o tema à disciplina legislativa. Existem as Leis n°

7.783/1989 e 10.277/2001 que dispõem sobre providências atinentes à continuidade de

serviços públicos, em caso de greve.

XI.7.3.2) A igualdadeA igualdade envolve o tratamento não discriminatório e universal para todos os

usuários. Não se pode restringir o acesso aos benefícios do serviço público para os

sujeitos que se encontrem em igualdade de condições. Nesse ponto, o intérprete se

depara com a conhecida dificuldade inerente ao princípio da isonomia, relacionada ao

problema de identificar os limites da igualdade.

Os desdobramentos da igualdade são a universalidade e a neutralidade.

XI.7.3.2.1) A universalidade A universalidade significa que o serviço público deve ser prestado em benefício

de todos os sujeitos que se encontrem em situação equivalente, de modo indeterminado.

Admite-se, como é da essência da isonomia, a discriminação fundamentada em critérios

46 Conforme JACQUES MOREAU, Droit Administratif, Paris: PUF, 1989, p. 333, sobre cujo texto se

assenta a exposição sobre o pensamento de ROLLAND. Acerca da questão, examine-se LAUBADÈRE,

VENEZIA e GAUDEMET, Traité de Droit Administratif, 15ª ed., Paris: L.G.D.J, t. 1, 1999, p. 905 e ss.

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adequados.

XI.7.3.2.2) A neutralidade A neutralidade consiste em vedar a prestação do serviço a qualquer circunstância

individual incompatível com o postulado da isonomia. Assim, não é possível produzir

privilégios fundados em sexo, raça, credo religioso ou local de domicílio, exceto quando

tais circunstâncias refletirem valores distintos, que demandem diferenciação.

XI.7.3.2.3) A isonomia e as tarifas A igualdade se aplica também à formulação das tarifas, que devem ser fixadas

em valores idênticos para os usuários em situação idêntica. BERTRAND DU MARAIS

lembra que é válida a discriminação tarifária de pedágios de rodovias fundada na

intensidade do tráfego47

. Por igual, admite-se a variação tarifária em função do horário

de fruição do benefício, desde que isso não inviabilize a prestação do serviço e haja

transparência de critérios na fixação dos valores.

XI.7.3.3) A mutabilidade ou adaptabilidadeA mutabilidade retrata a vinculação do serviço público à necessidade a ser

satisfeita e às concepções técnicas de satisfação. É da essência do serviço público sua

adaptação conforme a variação das necessidades e a alteração dos modos possíveis de

sua solução. Há um dever para a administração de atualizar a prestação do serviço,

tomando em vista as modificações técnicas, jurídicas e econômicas supervenientes. Isso

significa ausência de direito adquirido dos prestadores do serviço e dos usuários à

manutenção das condições anteriores ou originais48. Nessa linha, JEAN-FRANÇOIS

LACHAUME destaca que “A adaptação permanente do serviço público é analisada, então, em função da necessidade de fazer evoluir os serviços públicos, em sua organização e seu funcionamento, de tal modo que, em todos os momentos, eles apresentem em face da satisfação do interesse geral a máxima eficácia”.49

XI.7.4) Os novos postulados do serviço público O regime dos serviços públicos vai sendo ampliado, de modo a integrar outros

princípios fundamentais, que refletem a integração da pessoa do usuário no âmbito do

instituto.

Podem ser lembrados a adequação do serviço, a transparência e a participação do

usuário, a ausência de gratuidade e a modicidade de tarifas

XI.7.4.1) A adequação do serviçoA adequação do serviço é um pressuposto da própria mutabilidade. Consiste no

dever de prestar o melhor serviço possível, em vista das circunstâncias. Respeitado o

47 Droit public de la régulation économique, Paris: Presses de Sciences PO/Dalloz, 2004, p. 109.48

Como afirma MOREAU, “o princípio da mutabilidade não pode não afetar a situação daqueles aosquais o serviço fornece satisfação, conseqüência que põe em plena luz a questão do ‘estatuto’ dousuário” (Droit Administratif, cit., p. 341).49 Grands Services Publics, Paris: Masson, 1989, p. 263.

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limite da possibilidade técnica e econômica, é obrigatório prestar o melhor serviço. O

Estado ou o delegatário tem o dever de eficiência, de pontualidade, de aperfeiçoamento

do serviço - enfim, estão juridicamente obrigados a promover um serviço adequado.

XI.7.4.2) A transparência e a participação do usuárioO usuário é interpretado como sujeito interessado na prestação do serviço e

alçado à condição de titular de interesses na sua concepção e organização. Ao invés de

um terceiro beneficiário de uma liberalidade estatal, o usuário é integrado como sujeito

responsável pelo serviço.

Por isso, o usuário passa a integrar as relações jurídicas atinentes à organização

do serviço e à própria delegação à iniciativa privada. Esse princípio significa o dever de

o Estado e o prestador do serviço fornecerem ao usuário todos os esclarecimentos e

admitirem a participação de representantes dos usuários na estrutura organizacional do

serviço público.

XI.7.4.3) A ausência de gratuidadeA essencialidade dos serviços e seu vínculo imediato com os direitos

fundamentais não acarretam sua gratuidade. Isso não significa afirmar que a fruição do

serviço público dependa de condições econômicas, mas consiste em reconhecer um

princípio geral de capacidade contributiva.

Todo o usuário deve contribuir para os serviços, na medida de suas

possibilidades, tomando em vista a intensidade dos benefícios auferidos e da própria

riqueza individual.

Por isso, os indivíduos carentes terão acesso aos serviços públicos, mas o

custeio das prestações realizadas em proveito deles deverá ser arcado por outrem. Isso

significa a existência de subsídios (provenientes dos cofres públicos ou da remuneração

exigida dos demais usuários).

XI.7.4.4) A modicidade tarifária A modicidade tarifária significa a menor tarifa possível, em vista dos custos

necessários à oferta do serviço. A modicidade tarifária pode afetar a própria decisão

quanto à concepção do serviço público. Não terá cabimento conceber um serviço tão

sofisticado que o custo torne inviável aos usuários fruírem dos benefícios.

XI.7.5) Ausência de vínculo contratual e as competências anômalas O serviço público é prestado porque assim o impõe a lei, que fixa as condições

gerais atinentes à prestação e à fruição. Essas condições são detalhadas por atos

administrativos e podem ser alteradas a qualquer tempo. A fruição do serviço público

não envolve um vínculo contratual entre o usuário e o prestador do serviço, mas uma

situação jurídica de natureza unilateral.

O usuário do serviço manifesta sua vontade no sentido de fruir os benefícios e de

subordinar-se ao regime jurídico pertinente ao serviço público. Não há acordo de

vontades, mas uma manifestação de vontade individual que é condição para a fruição do

serviço.

Assim e ao contrário do que imaginava o Direito Privado do séc. XIX, não existe

“contrato de prestação de serviço de transporte público”, nas hipóteses de serviço

público.

XI.7.6) As competências anômalas

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 46: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

O regime de serviço público comporta competências anômalas, que se externam

no relacionamento com os particulares, usuários ou não, do serviço público. Essas

competências anômalas se traduzem em deveres-poderes de diversa natureza, cujo

surgimento e exercício não dependem de concordância concreta do usuário.

A democratização dos serviços públicos conduz à intervenção de representantes

dos usuários na concepção das medidas, como instrumento de aperfeiçoamento da

atividade estatal e de redução do arbítrio.

XI.7.7) A aplicação subsidiária do direito do consumidorEsse é o fundamento pelo qual o direito do consumidor se aplica

subsidiariamente aos serviços públicos. O direito do consumidor foi concebido como

instrumento de defesa daquele que se encontra subordinado ao explorador de atividades

econômicas, organizadas empresarialmente para a produção e apropriação do lucro. O

serviço público é um instrumento de satisfação dos direitos fundamentais, em que as

condições unilateralmente fixadas pelo Estado refletem o modo de satisfazer o maior

número de sujeitos, com o menor custo possível.

O regime de Direito Público, que se traduz em competências estatais anômalas, é

indispensável para assegurar a continuidade, a generalidade, a adequação do serviço

público. Se cada usuário pretendesse invocar o maior benefício individual possível, por

meio das regras do Direito do Consumidor, os efeitos maléficos recairiam sobre outros

consumidores.

Em suma, o Direito do Consumidor não pode ser aplicado integralmente no

âmbito do serviço público em virtude de uma espécie de solidariedade entre os usuários,

em virtude da qual nenhum deles pode exigir vantagens especiais cuja fruição

acarretaria a inviabilização de oferta do serviço público em favor de outros sujeitos.

Aliás e não por acaso, o art. 27 da E.C. n° 19/1998 previra que seria elaborada,

no prazo de 120 dias, uma lei de defesa do usuário de serviços públicos. A regra

reconhecia, então, a inviabilidade de aplicação automática e indiferenciada do Código

de Defesa do Consumidor ao âmbito dos serviços públicos.

XI.8) A chamada “crise do serviço público” e as tendências à renovação do instituto

Ao longo do tempo, o instituto do serviço público tem experimentado seguidas

crises. Nos últimos anos, chegou a se proclamar sua morte. A concepção deve ser

entendida como a necessidade de adequação do instituto às circunstâncias sociais e

econômicas.

XI.8.1) A evolução tecnológica e seus efeitosA relatividade do conceito de serviço público é propiciada inclusive por

variações tecnológicas, que produzem o surgimento ou a extinção de necessidades

comuns a todos os seres humanos.

Isso permite compreender a variação ocorrida ao longo do séc. XX. O conceito e

o elenco dos serviços públicos foram definidos no início daquele século, especialmente

em vista das grandes invenções e descobertas. Muitas décadas depois, o progresso

tecnológico gerou novos modos de atender às antigas necessidades tanto quanto

produziu novas demandas e exigências.

Um exemplo marcante é o dos chamados monopólios naturais, tradicionalmente

considerados como serviços públicos.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 47: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

XI.8.1.1) O conceito de monopólio naturalMonopólio natural é uma situação econômica em que a duplicação de

operadores é incapaz de gerar a redução do custo da utilidade. O monopólio natural

envolve, geralmente, as hipóteses de custos fixos (atinentes à infra-estrutura necessária

à produção da utilidade) muito elevados. A duplicação das infra-estruturas conduziria a

preços unitários mais elevados do que a exploração por um único agente econômico.50

Ou seja, quanto maior o número de usuários do sistema, menor o custo para fornecer

outras prestações.

Nos casos de monopólio natural, a exploração econômica mais eficiente é aquela

desenvolvida por um único operador. A existência de dois operadores conduz à redução

da participação de cada um deles no mercado e gera preços mais elevados.

Os exemplos de monopólios naturais são os serviços prestados em rede, tal como

a energia elétrica, a telefonia fixa, a distribuição de água e coleta de esgoto, as ferrovias

etc.

Desde o final do séc. XIX até meados do séc. XX, houve forte tendência à

transformação dos monopólios naturais em serviço público.

XI.8.1.2) A evolução tecnológica e as inovaçõesA evolução tecnológica produziu inovações no âmbito econômico,

especialmente no tocante aos monopólios naturais. É o caso da energia elétrica. O

modelo econômico de oferta da utilidade “energia elétrica” foi construído a partir da

idéia de ciclo completo, em que uma única e mesma empresa dominava todas as

atividades pertinentes (desde a geração até a comercialização de energia). Mas o

progresso científico, ao longo das últimas duas décadas, propiciou alteração radical.

Novas tecnologias permitem a geração de energia por processos muito mais baratos e

com elevadíssima eficácia. Há plena possibilidade de competição no plano da geração

da energia.

Ou seja, a realidade contemporânea apresenta um panorama econômico-material

distinto daquele do início do Século XX.

O Direito reflete (também) o conhecimento científico e o domínio da técnica

vigentes em uma sociedade. Não é possível dissociar os institutos jurídicos da realidade

que os produziu e para a qual foram gerados.51

Em suma, as concepções clássicas sobre serviço público necessitam ser

adaptadas à realidade econômica e cultural.

XI.8.2) A influência comunitária européiaPor outro lado, a crise do serviço público foi incentivada pela inovações

derivadas da evolução da União Européia. Há uma proposta comunitária para revisão do

50 Na definição de ANA MARIA DE OLIVEIRA NUSDEO, o monopólio natural se configura quando

“os custos de produção por uma única empresa – em um determinado nível absorvível pelo mercado –são decrescentes à medida que sua produção aumenta, seguindo essa tendência até alcançar toda aprodução do mercado” (Defesa da Concorrência e Globalização Econômica, cit., p. 40).51

Nesse ponto, aliás, o autor mantém a postura epistemológica que o levou a propor uma revisão do

conceito de pessoa jurídica Confira-se o discurso inicial em A desconsideração da personalidadesocietária no Direito brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.

Caderno de Direito Constitucional - 2006Marçal Justen Filho

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Page 48: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

regime jurídico dos serviços qualificados como públicos.52

A concepção francesa de

serviço público não foi recepcionada no âmbito comunitário, o qual optou por uma

solução de feição mais próxima às concepções anglo-saxônicas. No direito comunitário

europeu, sequer existe referência formal a serviço público. Fala-se em serviçoseconômicos de interesse geral, determinando-se, como regra geral, sua submissão ao

regime jurídico das atividades privadas mas se admitindo, em face de circunstâncias

específicas, a adoção de regime jurídico diverso.53

A influência comunitária atenuou a distinção entre os regimes jurídicos de

atividade econômica privada e serviço público. Há uma forte tendência à uniformização

do regime jurídico ou ao surgimento de uma síntese dialética superadora de ambas as

soluções.

No modelo comunitário, rejeita-se a concepção de titularidade estatal dos

serviços públicos e, de modo muito especial, a configuração monopolista de sua

prestação. Mas o Tratado de Amsterdã de 1997 reconheceu formalmente que certas

atividades relacionadas à satisfação de necessidades econômicas gerais envolvem

diretamente valores de solidariedade social. A função solidarística dos serviços

econômicos de interesse geral ultrapassa os limites da mera dimensão econômica e foi

consagrada expressamente no nível comunitário.

A difusão comunitária desse novo modelo de atendimento às necessidades

coletivas não pode ser incorporada de modo automático ao Direito brasileiro.

XI.8.3) A dissociação entre a regulação e a prestação do serviço públicoUma característica marcante do novo serviço público reside na dissociação entre

as atividades de regulação e de prestação do serviço público. A competência regulatória

do serviço público é retirada dos órgãos encarregados de sua prestação. São criadas

entidades administrativas dotadas de autonomia mínima, a quem incumbe disciplinar o

desempenho dos serviços, visando a assegurar a imparcialidade, a democratização e a

transparência na gestão dos serviços.

XI.8.4) A extinção da uniformidade jurídicaOutra inovação é a extinção da uniformidade de regime jurídico. Torna-se

impossível aludir a “o serviço público”, em virtude da afirmação de uma multiplicidade

de serviços públicos, cada qual com regime jurídico diferenciado. Surge o direito das

52 Sobre o tema, entre nós, confira-se DINORÁ A. M. GROTTI, Teoria dos Serviços Públicos e sua

transformação, em direito Administrativo Econômico, São Paulo: Malheiros – SBDP, 2000, p. 39-71.53

A expressão “serviço econômico de interesse geral” foi utilizada no Tratado de Roma e que ainda é

mantida no Tratado de Amsterdã de 1997. A exposição acerca da evolução do instituto do serviço público

no cenário comunitário extravasa largamente os limites desta exposição. O tema gerou enorme produção

bibliográfica. Há duas coletâneas de qualidade excepcional acerca da matéria, ambas derivadas de

colóquios produzidos na França. Uma tem o título Service Public et Communauté européenne: entrel’intérêt général et le marché (Actes du colloque de Strasbourg 17-19 octobre 1996, sous la direction de

ROBERT KOVAR et de DENYS SIMON, Paris, La Documentation Française, 1998, dois volumes). A

outra é denominada Services Publics comparés en Europe: exception française, exigence européenne(École nationale d’administration, Promotion Marc Bloch 1995-1997, Paris, La Documentation Française,

1997, dois volumes). Para um exame das posições mais recentes, consulte-se o excelente L’idée deservice public dans le droit des États de l’Union Européenne, organizado por FRANCK MODERNE e

GÉRARD MARCOU, Paris: L’Harmattan, 2001.

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Page 49: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

telecomunicações, o direito da energia elétrica, o direito da educação e assim por diante.

XI.8.5) A diferenciação qualitativa entre os serviçosO efeito fundamental dessa multiplicação reside na impossibilidade de

generalizações. Muitas das características clássicas dos serviços públicos continuam a

ser aplicáveis, mas apenas a alguns tipos de serviços. O rigor do regime publicístico

alcança os serviços mais essencialmente vinculados aos direitos fundamentais: os

relacionados à saúde, à assistência e à educação.

XI.8.6) A questão da exclusividade na prestação do serviço público Um ponto nuclear das propostas de reforma do serviço público consiste na

proposta de eliminação da exclusividade na prestação.

Reconhece-se que o monopólio estatal é indesejável, mas que o monopólio

privado é insuportável. Portanto, qualquer transferência de serviço público para a

prestação de particulares deve conduzir a esquemas competitivos.

O art. 16 da Lei nº 8.987 fez referência à ausência de exclusividade em

concessões e permissões de serviço público.54

Inúmeros diplomas posteriores

reafirmaram a orientação, a propósito de setores específicos. A Lei Geral de

Telecomunicações e a legislação pertinente ao setor elétrico insistiram na concepção de

um sistema em que a prestação de serviços públicos não se traduzisse na configuração

de exploração monopolística, especialmente em face da ampliação da participação da

iniciativa privada nesses segmentos.

Como se extrai do art. 16 da Lei n° 8.987, a delegação do serviço público deverá

se fazer, em regra, com ausência de exclusividade. A determinação se orienta a

promover a competição e ampliar a eficiência na prestação dos serviços pelo

concessionário (permissionário). Ademais, pode refletir concepção característica do

direito do consumidor, atinente à liberdade de escolha por parte do usuário (art. 7°, inc.

III).

A exclusividade dependerá da impossibilidade material ou econômica de

desempenho do serviço público em regime de competição.

XI.8.7) O tratamento jurídico peculiar para os serviços em redeUm conjunto de providências foi implantado a propósito dos serviços públicos

cuja prestação pressupõe uma infra-estrutura em rede, tal como se passa com a energia

elétrica, as telecomunicações, as ferrovias e as rodovias.

XI.8.7.1) Fragmentação (dissociação) das atividades de serviço públicoUm ponto marcante das propostas de revisão do conceito de serviço público se

relaciona com a dissociação das atividades de serviço público. Seja por fatores de cunho

tecnológico, seja pela sofisticação da atividade econômica, tornou-se possível (senão

necessário) seccionar em vários núcleos autônomos a atuação de fornecimento das

utilidades.

O conceito clássico de serviço público considerava de modo unitário todas as

54 Sobre a matéria, assim dispôs o art. 16: “A outorga da concessão ou permissão não terá caráter de

exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou econômica justificada no ato a que se refere o art. 5° desta Lei”.

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Page 50: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

atividades necessárias à prestação de uma certa utilidade. A inovação reside em

verificar se existem atividades heterogêneas e, em caso positivo, diferenciá-las entre si,

aplicando a cada qual regras distintas. Reconhece-se inclusive que nem todos os

segmentos das atividades exigem exploração sob regime próprio de serviço público.

Produz-se a dissociação da atividade, inclusive para evitar que sua exploração

conjunta conduza a efeitos de abuso de poder econômico e dominação de mercado. Essa

tese se aplicou no âmbito da energia elétrica, tal como acima já referido.

XI.8.7.2) A ampliação da competiçãoO novo regime do serviço público busca ampliar a competição econômica, como

instrumento de limitação do poder econômico e de ampliação da eficiência na gestão

dos recursos necessários. OS efeitos positivos da competição econômica dificilmente se

verificariam se um mesmo sujeito dominasse as diversas etapas. É necessário evitar o

fenômeno de subsídio cruzado, pelo qual o agente econômico transfere custos da etapa

competitiva para aquela monopolizada, eliminando os efeitos positivos da competição55

.

A fragmentação conduziu não apenas à dissociação de tratamento jurídico para

as diversas etapas econômicas componentes de uma certa atividade mas também à

introdução de mecanismos orientados a impedir o exercício cumulativo por um mesmo

e único sujeito de atividades de natureza distinta. Esses mecanismos consistem na

vedação ao desempenho das diversas atividades ou na imposição de rigorosa

dissociação de tratamento entre elas.

XI.8.7.3) A dissociação entre propriedade e exploração da redeOs serviços públicos em rede configuram, usualmente, monopólios naturais. Isso

significa a impossibilidade econômica da duplicação da rede. Mas isso não impede a

competição. A primeira providência consiste na vedação a que o proprietário seja o

explorador da rede.

O proprietário da rede obterá resultados econômicos em virtude de sua utilização

por terceiros, não incumbindo a ele o monopólio de sua exploração.

XI.8.7.4) O compartilhamento da redeAdemais, é perfeitamente possível que uma pluralidade significativa de

empresas se valham de uma mesma infra-estrutura, oferecendo utilidades diversas aos

usuários. O exemplo característico é a utilização da infra-estrutura de transmissão de

energia elétrica por uma pluralidade de empresas.

XI.8.7.5) O compartilhamento compulsórioPrevalece o dever de compartilhamento compulsório. O titular de uma infra-

estrutura econômica não pode invocar a propriedade como fundamento para negar sua

utilização por competidores, especialmente quando existente capacidade ociosa de

exploração. É a ele assegurada uma remuneração compatível e adequada pela primazia

na concepção do empreendimento – mas não o impedimento à livre competição.

A teoria foi desenvolvida no estrangeiro e é conhecida como essential facilities e

55 Assim, o usuário paga menos pela atividade prestada em regime de competição, mas seu benefício

desaparece por ser obrigado a pagar muito mais pelos serviços monopolizados.

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51

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Third Party Access (TPA)56

. Não equivale a uma modalidade de desapropriação, eis que

o particular mantém o núcleo essencial das faculdades inerentes ao domínio. Não se

admite compartilhamento de infra-estruturas quando o proprietário delas necessita

integralmente para sua exploração empresarial. Ademais, a utilização não se faz

gratuitamente, mas mediante remuneração – a qual deverá ser orientada pelo princípio

da proporcionalidade, vedando-se a prática de preços abusivos como forma indireta de

inviabilizar o compartilhamento.

XI.8.7.6) O dever de interconexão e a atenuação do efeito de redeOutro postulado é a vedação a padrões técnicos excludentes da competição,

questão extremamente relevante em vista do chamado “efeito de rede”. Há uma

ampliação geométrica da rentabilidade econômica com a ampliação da rede.

O grande exemplo se relaciona com os serviços de telefonia. Existindo conexão

entre apenas dois sujeitos, a utilidade da telefonia é reduzida. A ampliação do número

de terminais telefônicos produz a multiplicação geométrica das ligações. Por isso, a

competição depende do acesso conjunto e integrado de todos os competidores à rede de

telefonia. Um operador não pode adotar padrões técnicos excludentes do ingresso de

novos competidores no mercado.

XI.8.7.7) Submissão do tratamento dos prestadores de serviço a padrões comparativosSão introduzidos instrumentos técnico-jurídicos de simulação da competição,

especialmente quando o serviço público é prestado em regime de monopólio. Costuma-

se denominar essa hipótese de regulação por padrão de comparação (“yardstickregulation”). Elege-se o prestador de serviço com o melhor desempenho e se subordina

todos os demais a tratamento equivalente, de modo a constrangê-los a ampliar a

qualidade (aí abrangida a eficiência) de sua atuação.

XI.8.7.8) Redução da intervenção estatal e produção de efeitos de competiçãoTodas as soluções acima referidas refletem a redução da intervenção estatal na

disciplina do serviço público. Em inúmeros países, constatou-se que a intervenção

estatal para disciplinar a prestação de serviços públicos acaba gerando novos problemas,

sem resolver os antigos. Produz-se um círculo vicioso regulatório, em que a tentativa de

eliminar problemas cria outros, o que demanda novas intervenções estatais que agravam

ainda mais a questão.

Aplicam-se instrumentos desenvolvidos na atividade econômica privada não por

reputar-se que o “mercado” é melhor do que o Estado – comparação destituída de

sentido e que nunca conduziria a alguma conclusão consistente. O único fundamento

apto para justificar juridicamente a redução da intervenção estatal, a supressão de

monopólios e exclusividades e a introdução de mecanismos de mercado reside na

constatação prática de que tais soluções ampliam os benefícios para coletividade e

produzem resultados mais satisfatórios do que qualquer outra alternativa.

56 Uma ampla exposição acerca da teoria (pouco conhecida no Brasil, mas largamente difundida no

estrangeiro), pode ser encontrada em MARIO SIRAGUSA e MATTEO BERETTA, La dottrina delleessential facilities nell diritto comunitario ed italiano della concorrenza, Contratto e impresa/Europa,

anno quarto, vol. 1, 1999, CEDAM, p. 260-348.

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XI.9) A sobrevivência do serviço públicoNão há cabimento em afirmar a morte do serviço público, proclamada por

autores de nomeada tal como ARIÑO ORTIZ. O instituto permanece existente como

manifestação direta e imediata da concepção política consagrada por cada povo.

A sociedade produz os meios de satisfação solidarística das necessidades

individuais e coletivas. Isso compreende institutos cuja estruturação não se subordina

integralmente à disciplina reservada para as atividades econômicas propriamente ditas.

Em todos os países do mundo, diferencia-se o regime jurídico privado, reservado para a

exploração econômica em sentido restrito, daquele aplicável às atividades relacionadas

com o interesse coletivo. As denominações reservadas para essas diferentes hipóteses

variam de país a país, tal como o conteúdo do regime jurídico correspondente e sua

extensão de abrangência. Mas sempre existe um núcleo reconduzível ao que se

denomina, entre nós, de serviço público.

A tendência à redução das tarefas atribuídas ao Estado deve ser examinada

segundo a dimensão dos princípios jurídicos fundamentais. A atividade estatal é

necessária e indispensável para a realização de valores fundamentais. Portanto, a morte

do serviço público apenas pode ser entendida como a extinção de atividades estatais

secundárias e irrelevantes, que foram indevidamente enquadradas como serviço público.

O serviço público somente desaparecerá se e quando houver viabilidade de

satisfação dos direitos fundamentais mediante atuação privativa da iniciativa privada,

sem a intervenção estatal – alternativa que não se afigura como plausível, pois conduz

ao desaparecimento da justificativa da existência do próprio Estado.

XI.10) As classificações de serviço público Os serviços públicos podem ser classificados segundo diversos critérios,

tomando em vista a competência federativa, o grau de essencialidade e a necessidade a

ser satisfeita.

XI.10.1) Serviços públicos quanto à competência federativaOs serviços públicos podem ser diferenciados em vista do ente federativo que os

titulariza. A classificação é relevante não apenas para individualizar o ente federativo

que deverá assumir a prestação do serviço como também a competência legislativa

correspondente.

Poderiam ser diferenciados os serviços públicos de competência comum e os de

competência privativa. Os de competência comum são aqueles atribuídos a todos os

entes federativos em conjunto, tal como a educação e a saúde. Já os de competência

privativa são de titularidade de determinada órbita federativa. A diferenciação se faz

segundo os critérios gerais de discriminação de competências federativas ou em vista de

regra constitucional específica.

Assim, a Constituição indica, de modo expresso, alguns serviços públicos como

de titularidade da União (art. 21, incs. X a XII). Outros serviços são identificados

segundo os critérios gerais. Assim, o transporte urbano de passageiros é de competência

municipal. O transporte de passageiros interurbano estadual é de titularidade do Estado-

membro. E a União é titular do transporte de passageiros interestadual e internacional.

XI.10.2) Serviços públicos quanto ao grau de essencialidade É costumeiro diferenciar serviços públicos essenciais e não-essenciais. Trata-se

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de uma diferenciação muito problemática, eis que todos os serviços públicos são,

teoricamente, essenciais. Mas a diferença pode ser admitida em vista da característica da

necessidade a ser atendida. Há necessidades cujo atendimento pode ser postergado e

outras que não comportam interrupção.

A distinção apresenta pertinência no tocante ao regime jurídico, especialmente

quanto à impossibilidade de interrupção.

XI.10.3) Serviços públicos quanto à natureza da necessidade a ser satisfeitaQuanto à natureza da necessidade satisfeita, os serviços públicos podem ser:

sociais: aqueles que satisfazem necessidades de cunho social ou

assistencial, tal como a educação, a assistência, a seguridade;

comerciais e industriais: aqueles que envolvem o oferecimento de

utilidades materiais necessárias à sobrevivência digna do indivíduo, tal

como a água tratada, a energia elétrica, as telecomunicações;

culturais: os que satisfazem necessidades culturais, envolvendo o

desenvolvimento da capacidade artística e o próprio lazer, tais como

museus, cinema, teatro.

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Capítulo XII - Tipos de atividade administrativa:exploração direta de atividade econômica pelo Estado

O art. 173 da Constituição faculta ao Estado a exploração direta de atividade

econômica, submetendo a hipótese a pressupostos especiais e a regime jurídico próprio.

Esse tipo de atividade administrativa foi objeto de referência em inúmeras

oportunidades anteriormente.

XII.1) Definição O exercício de atividade econômica pelo Estado consiste no desempenho por

entidade administrativa, sob forma e regime de Direito Privado, de atividadeeconômica propriamente dita, nas hipóteses previstas na Constituição ou em lei, quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou à satisfação de relevante interesse coletivo.

XII.1.1) desempenho por entidade administrativa,A função administrativa traduz-se numa atividade atribuída a uma entidade

administrativa, integrante de qualquer uma das três órbitas da federação – ressalvadas as

hipóteses em que a própria Constituição dispôs diversamente. Assim, por exemplo, o

art. 177 impôs o monopólio da União para certas atividades.

XII.1.2) sob forma e regime de Direito Privado, O art. 173, § 1°, da Constituição proíbe que a administração direta se dedique à

atividade econômica propriamente dita, impondo a adoção de forma de Direito Privado.

O inc. II do mesmo dispositivo determina que se produzirá a sujeição ao regime jurídico

próprio das empresas privadas. O § 2° exclui a possibilidade de empresas públicas e

sociedades de economia mista gozarem de privilégios não extensíveis a entidades

privadas.

XII.1.3) de atividade econômica propriamente dita, A Constituição diferencia o serviço público e a atividade econômica

propriamente dita, subordinando-os a regras diversas.

A atividade econômica propriamente dita se sujeita aos princípios da livre

iniciativa e da livre concorrência.

XII.1.4) nas hipóteses previstas na Constituição A própria Constituição contempla um elenco de situações em que o Estado

exercerá atividade econômica. Esses casos constam dos arts. 176 e 177.

XII.1.5) ou em lei,O desempenho direto pelo Estado no domínio econômico, em hipóteses não

previstas na Constituição, depende de autorização legislativa.

Normalmente, essa autorização legislativa está contida na própria lei que

autoriza a criação de uma entidade administrativa dotada de personalidade jurídica de

direito privado. Como visto acima, a criação da entidade de direito privado depende de

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autorização legislativa (Constituição, art. 37, incs. XIX e XX). Essa lei, ao identificar o

âmbito de atuação da entidade estatal, contemplará implicitamente a autorização para

sua atuação.

Aplicam-se os comentários acima realizados, relativos à impossibilidade de

outorga, de autorização ilimitada e indeterminada. Não é constitucional delegar para a

entidade o poder de escolher as atividades às quais se dedicará. Quando muito, admite-

se a autorização atinente a um segmento delimitado de atividades.

XII.1.6) quando necessário aos imperativos da segurança nacional Admite-se a atuação direta do Estado no domínio econômico quando tal se

impuser como imperativo de segurança nacional. A questão envolve três aspectos.

O primeiro consiste em tornar mais preciso um conceito indeterminado como o é

a segurança nacional. No período não democrático, invocava-se genericamente a

segurança nacional para legitimar as decisões políticas. No atual regime, essa solução é

inadmissível, o que não equivale a negar a existência nem a importância de razões de

segurança nacional. Mas é indispensável evidenciar um conteúdo específico para a

cláusula “segurança nacional”, evitando decisões fundadas em avaliação puramente

subjetiva e insuscetível de controle dos governantes.

O segundo se relaciona com as hipóteses em que uma atividade econômica se

relaciona com a segurança nacional. Em muitos casos, a segurança nacional se traduz

em atividades públicas propriamente ditas, relacionadas com o monopólio estatal da

violência. Nesses casos, não há cabimento de atuação econômica privada. Mas pode

haver casos em que uma certa atividade econômica se relacionará com a segurança

nacional. Cabe uma determinação mais precisa quanto a isso.

Por fim, é necessário determinar se a atividade econômica propriamente dita,

relacionada com a segurança nacional, será desempenhada segundo o regime jurídico

comum ou não.

XII.1.7) ou à satisfação de relevante interesse coletivo Tal como “segurança nacional”, o “relevante interesse coletivo” é um conceito

indeterminado. Mas isso não gera uma espécie de presunção de legitimidade de

qualquer decisão política orientada a produzir a atuação estatal direta.

XII.2) A questão da “ordem econômica” Tal como apontado em capítulos anteriores, é problemático definir “ordem

econômica”. A grande dificuldade reside na pluralidade de sentidos que o vocábulo

“econômico” apresenta. Muitas discussões refletem a divergência sobre o que se

entende por “econômico”.

Numa acepção ampla, bem econômico é todo o recurso escasso apto a satisfazer

uma necessidade humana, que comporte diferentes e excludentes utilizações. A

Constituição parece ter adotado essa concepção, especialmente porque dispôs sobre os

serviços públicos no Título VII, que versa sobre a Ordem Econômica e Financeira.

XII.3) O desempenho direto de atividade econômicapropriamente dita

O desempenho direto de atividade econômica propriamente dita pelo Estado se

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Page 56: Ordem Econômica e Financeira Ministrante- Marçal Justen Filho

configura como excepcional.

XII.3.1) O capitalismo e a atuação econômica privada A Constituição consagrou um regime capitalista, fundado nos princípios da livre

iniciativa e da livre concorrência. Os serviços públicos são excluídos do âmbito desses

princípios.

Se o Estado pudesse assumir o desempenho direto das atividades econômicas

propriamente ditas e a elas aplicar privilégios e benefícios, estaria destruída a distinção

básica. Então, todas as atividades poderiam ser transformadas em serviço público,

inclusive aquelas destituídas de cunho essencial.

Assim não o é, eis que não se admite que o Estado qualifique como serviço

público atividade não vinculada diretamente aos direitos fundamentais. Não pode fazê-

lo nem mesmo por via do expediente de atribuir a si próprio benefícios no exercício de

uma certa atividade econômica.

Ou seja, a atividade econômica se sujeita a regras uniformes, que se aplicam a

todos os agentes – sejam eles particulares ou entidades administrativas estatais.

Para manutenção da ordem econômica constitucionalmente consagrada, é

indispensável que o Estado não goze de privilégios ou vantagens quando desempenhar

atividade econômica propriamente dita. Se assim não o for, haverá a destruição da livre

concorrência e o Estado eliminará as empresas privadas, não por ser mais eficiente mas

porque as leis a ele asseguram benefícios desiguais.

A criação de benefícios desiguais em favor do Estado, no desempenho de

atividades econômicas, é uma decisão política, somente admissível se autorizada

constitucionalmente. Um ponto relevante reside em que os Estados que adotaram essa

solução passaram a sofrer sérias dificuldades de ausência de eficiência econômica.

A solução constitucional brasileira não deixa margem de dúvida. Somente em

situações excepcionais o Estado desempenhará atividade econômica propriamente dita.

E, quando o fizer, será inconstitucional criar qualquer privilégio em seu próprio

benefício.

XII.3.2) O princípio da subsidiariedade A atuação direta do Estado não é justificável mediante a mera invocação de

algum interesse público relevante. É necessário evidenciar que a intervenção direta do

Estado é a solução adequada e necessária para a satisfação de necessidades

determinadas. Aplica-se o princípio da proporcionalidade, o que significa que somente

se legitimará a intervenção estatal se outra alternativa não for mais satisfatória. Sob esse

prisma, o princípio da proporcionalidade se manifesta como princípio da

subsidiariedade.

O princípio da subsidiariedade impõe o dever de intervenção supletiva do Estado

no domínio econômico, intervenção essa que se legitima apenas quando a iniciativa

privada for incapaz de solucionar de modo adequado e satisfatório uma certa

necessidade.

XII.3.2.1) A concepção funcional e a democracia republicanaDeve ter-se em vista que os recursos públicos são escassos e limitados. Não há

cabimento de aplicar recursos públicos de modo inadequado, ignorando a prioridade

derivada da supremacia dos direitos fundamentais. Os recursos públicos não podem ser

destinados ao desenvolvimento de atividades secundárias, irrelevantes – mesmo que

lucrativas. A perspectiva da lucratividade não é uma justificativa suficiente para a

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assunção direta de uma atividade por parte do Estado.

O Estado recebe uma massa de recursos provenientes da sociedade para o

atendimento de necessidades essenciais. A exploração direta pelo Estado de uma

atividade econômica tem natureza funcional e, por isso, configura atividade

administrativa.

XII.4) Os pressupostos da atuação direta do Estado no domínio econômico

A atuação direta do Estado no domínio econômico ocorre em três casos (art.

173).

casos previstos na Constituição

Desempenho direto pelo Estado imperativo de segurança nacional

relevante interesse coletivo

XII.4.1) Os casos previstos na ConstituiçãoOs casos previstos na Constituição de atuação direta do Estado no domínio

econômico são, basicamente, aqueles previstos no art. 25, § 2° (gás canalizado local) e

no art. 177. Nesses casos, a Constituição impõe que o Estado atue no domínio

econômico em regime de monopólio. Trata-se de uma aparente contradição, somente

admitida em virtude da previsão constitucional do art. 177.

XII.4.1.1) Atividade econômica e monopólio estatalUm princípio inerente à ordem econômica é a livre iniciativa e a livre

concorrência para as atividades econômicas propriamente ditas. Estabelecer que uma

certa atividade se configura como econômica em sentido próprio e impor monopólio

estatal é uma contradição aparente.

A Constituição afastou a livre iniciativa e a livre concorrência quanto a certas

atividades, em virtude de sua relevância política e econômica. As atividades referidas no

art. 177 não são destinadas a satisfazer direitos fundamentais, no entanto foram

reservadas ao monopólio estatal porque podem produzir reflexos sobre a soberania

nacional ou outros valores essenciais. O monopólio estatal reflete uma decisão política.

XII.4.1.2) Monopólio estatal e serviço públicoO monopólio estatal não se confunde com o serviço público porque não se

destina a satisfazer, de modo direto e imediato, direitos fundamentais. No monopólio

estatal, existe uma atividade econômica que, por razões políticas, é atribuída ao Estado.

A grande distinção reside no regime jurídico da exploração. O serviço público é

prestado sob regime de serviço público, o que envolve competências anômalas

destinadas a permitir a satisfação dos direitos fundamentais. A atividade econômica

monopolizada é exercitada sob regime de Direito Privado.

Logo, o Estado não se beneficia, nas atividades econômicas monopolizadas, de

competências anômalas. Não pode invocar a necessidade de satisfação de direitos

fundamentais para restringir direitos ou interesses alheios.

Por outro lado, os particulares não podem invocar os princípios do serviço

público a propósito das atividades econômicas monopolizadas. Assim, ninguém pode

exigir que a si seja fornecido um derivado de minério nuclear, contrariamente ao que se

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passa com uma utilidade objeto de serviço público.

XII.4.1.3) A questão do gás canalizado localEssas considerações evidenciam que a hipótese contemplada no art. 25, § 2°, da

Constituição configura um caso de monopólio e não de serviço público. Ali se previu

incumbir ao Estado-membro explorar os serviços locais de gás canalizado. A referência

a “concessão” induz a existência de um serviço público, mas esse entendimento é

incorreto.

O fornecimento de gás é uma atividade econômica em sentido próprio. Ninguém

tem um direito fundamental a ser satisfeito mediante o fornecimento de gás, muito

menos de gás canalizado.

O dispositivo indica uma atividade econômica em sentido próprio, que foi

reservada constitucionalmente ao monopólio do Estado-membro, quando desenvolvida

localmente.

XII.4.2) O imperativo de segurança nacional O imperativo da segurança nacional autoriza a intervenção estatal da União,

mediante a edição de lei.

XII.4.2.1) O conceito de segurança nacionalA segurança nacional consiste no conjunto de condições necessárias e

indispensáveis à existência e manutenção da soberania estatal e ao funcionamento das

instituições democráticas. Não é integrado por fatores precisos e predeterminados, mas

é o resultado da conjugação de circunstâncias, que variam segundo as condições

históricas.

A segurança nacional é um conceito relativo. Cada país apresenta circunstâncias

diversas no tocante à questão da segurança. Enfim, porque cada momento histórico

condiciona diversamente o tema da segurança nacional.

XII.4.2.2) O conceito de segurança nacional é indeterminadoSegurança nacional é um conceito indeterminado, o que acarreta a já apontada

característica de qualificação da realidade em três segmentos distintos. Há eventos

inquestionavelmente relacionados com a segurança nacional. Há aqueles que não se

relacionam com ela e existem hipóteses em que é incerta a qualificação. As dificuldades

surgem em relação a esse terceiro grupo de eventos.

Daí se infere a inconstitucionalidade de uma lei que pretendesse autorizar o

exercício de atividade econômica pelo Estado em hipótese claramente não referida à

segurança nacional.

XII.4.2.3) O núcleo do conceito de segurança nacionalA expressão “segurança nacional” indica uma situação de fato, caracterizada

pela existência e independência do Estado brasileiro, com a preservação dos valores

fundamentais da Nação. Portanto, a segurança nacional se relaciona com a soberania

estatal e com a preservação da nacionalidade.

XII.4.2.4) As atividades necessárias à segurança nacionalSão indispensáveis à segurança nacional as atividades aptas à preservação da

soberania e da integridade da Nação, tal como aquelas cujo desenvolvimento possa

importar o surgimento de situações de risco.

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XII.4.2.5) A dificuldade da aplicação ao caso concretoA aplicação da hipótese no caso concreto não é fácil. São poucas as atividades

econômicas em sentido próprio relacionadas à segurança nacional, que não tenham sido

desde logo apontadas pela Constituição.

XII.4.2.6) A promoção das atividades de segurança nacional é de competência daUnião

A União é titular das competências políticas e administrativas relacionadas com

a promoção da segurança nacional. Os demais entes federativos detêm competência

quanto à segurança local. Logo, a previsão examinada apenas justifica a atuação

econômica direta da própria União.

XII.4.3) O relevante interesse coletivo Muito mais freqüente é a utilização da cláusula do relevante interesse coletivo.

Essa fórmula é suficientemente ampla para abrigar as mais diversas decisões políticas,

cujo controle é admitido de modo teórico, mas com pouca aplicabilidade prática.

XII.4.3.1) A existência de um interesse coletivo relevanteInteresse coletivo relevante, tal como segurança nacional, é um conceito jurídico

indeterminado.

Para o fim do dispositivo, o interesse coletivo consiste na existência de uma

necessidade supra-individual, comum a um número relevante de pessoas, cuja satisfação

possa ser proporcionada pela atuação direta do Estado.

Anote-se que a Constituição aludiu a interesse coletivo relevante, qualificação

que não pode ser ignorada. Em tese, qualquer atividade econômica pode satisfazer o

interesse coletivo. Isso não basta, porque é indispensável um interesse coletivo

significativo, importante.

XII.4.3.2) A necessidade da intervenção estatal para sua satisfaçãoSegundo o princípio da subsidiariedade, somente se legitima a atribuição da

atividade econômica ao desempenho de uma entidade estatal na medida em que essa

seja a solução adequada e necessária para a satisfação do interesse coletivo relevante.

XII.5) As entidades administrativasO exame das entidades administrativas constituídas para exercitar atividade

econômica propriamente dita ocorreu no Capítulo V, acima, .

Lembre-se que nem todas as entidades estatais dotadas de personalidade jurídica

de direito privado exercem atividade econômica em sentido próprio. Há aquelas que

atuam no setor dos serviços públicos (o que abrange, inclusive, as entidades

administrativas de apoio).

XII.6) Função administrativa e exercício direto de atividade econômica

É indispensável ter em vista que o exercício de atividade econômica diretamente

pelo Estado continua a ser uma atividade administrativa, dotada de cunho funcional.

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A atuação concreta da entidade tem de ser orientada por sua natureza funcional,

consistente na produção de utilidades para a coletividade.

Isso não significa negar às entidades estatais a autorização para buscarem o

lucro. Tal seria um despropósito, por dois motivos.

Primeiro, porque a ausência de lucratividade significaria a necessidade de

ampliação dos investimentos públicos. Uma estatal permanentemente deficitária deve

ser extinta, a não ser que exista uma forte justificativa para que o Estado e a sociedade

continuem a custear seu funcionamento.

Depois, porque a atuação deficitária perturba o mercado e pode configurar

prática incompatível com a competição. Se uma empresa estatal ofertar bens no

mercado por preços irrisórios, acabará por destruir a concorrência. A médio prazo, o

resultado será muito danoso para a economia em seu conjunto.

Mas a lucratividade da entidade estatal tem de ser compatível com a sua natureza

funcional. A entidade deverá produzir benefícios para a sociedade, satisfazendo

interesses coletivos relevantes e promovendo a segurança nacional.

Ademais disso, deverá ser um instrumento – indireto - de cumprimento por parte

do Estado a seus compromissos com a sociedade. Não é admissível que uma entidade

estatal, na busca do lucro, transforme-se numa via de destruição dos valores prezados

pela sociedade.

XII.7) A submissão ao regime de Direito Público É vedado atribuir às empresas estatais, no desempenho de suas atividades, algum

privilégio não extensível aos particulares. Mas, no seu funcionamento, as empresas

estatais estão subordinadas ao regime de Direito Público, justificado pela natureza

funcional de sua atuação e na origem estatal dos recursos que movimentam.

Tal como antes exposto, isso se traduz na obrigatoriedade de observância de

licitação nas suas contratações administrativas, ressalvadas as hipóteses de atividades-

fim.

É possível afirmar que o regime jurídico pertinente à discricionariedade se aplica

às entidades administrativas exercentes de atividade econômica em sentido próprio. Sua

criação importa a atribuição de autonomia para a realização de escolhas empresariais,

que têm de refletir a busca da solução mais satisfatória para os interesses gerais.

A sociedade estatal deve privilegiar a satisfação dos valores e interesses

coletivos, deixando em segundo lugar a satisfação do interesse dos acionistas,

administradores e empregados.

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ANEXO

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