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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO
ANAIS de Evento I Jornada Científica e Tecnológica de Língua Brasileira de Sinais: Produzindo
conhecimento e integrando saberes. ISBN 978-85-923216-1-1 - 06 de julho 2017 –
NUEDIS – Núcleo de Estudos em Diversidade e Inclusão de Surdos
Website: http://nuedisuff.wixsite.com/nuedis
ORALIZAÇÃO DOS SURDOS: UM RECORTE ACERCA DAS
RELAÇÕES DE PODER
Bruna Helena Costa Leão*
Vitória Canto Suter Lins da Silva**
Gildete da Silva Amorim***
RESUMO: Este artigo tem por finalidade analisar e explicitar, através do documentário
Travessia do Silêncio, como o senso comum intervém nas relações interna e externa da
comunidade surda. Será abordado como o Congresso de Milão ainda interfere nessas
relações e como se dão as relações de poder entre ouvintes e surdos através da
oralização e da tentativa de “curar” e normalizar o indivíduo surdo, tratando sua
condição de existência como patologia.
Palavras-chave: Oralização, Surdez, Poder, Relações.
ABSTRACT
This article has as its finality analising and explaining, through the documentary
"travessia do silêncio", how the common sense intervenes in the relationships of deaf
community, internally and externally. It will be demonstrated how the Congress of
Milan still intervenes in these interactions and in the power exchange between listeners
and deaf people through the oralization, also the attempt of "healing" and normalazing
the deaf person, treating their condition of existence as a pathology.
Keywords: Oralization, Deafness, Power, interactions.
*Discente de Serviço Social – UFF, [email protected]
**Discente de Serviço Social – UFF, [email protected]
***Docente de Libras – UFF, [email protected]
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INTRODUÇÃO
A partir de análise ao documentário “Travessia do Silêncio”, de Dorrit Harazim,
aprofunda-se a preocupação no debate das relações de poder entre ouvintes e surdos que
ecoa na sociedade através da não aceitação da LIBRAS e da cultura surda como uma
comunidade.
Nota-se a partir dessa pesquisa como os ideais do Congresso de Milão
repercutem ainda hoje, influenciando a sociedade e perpetuando uma ideia de que a
forma de inclusão seria apenas com o surdo se adequando ao mundo ouvinte através da
oralização, negando assim, as particularidades da cultura surda.
Dessa forma, evidencia-se que a discussão acerca do surdo ainda é escassa,
mesmo depois da criação da Lei 10.436 de 2002, a qual reconhece a Língua Brasileira
de Sinais como meio legal de comunicação. Esta lei, relativamente nova, é um marco
na garantia de direitos e na afirmação e preservação da identidade surda.
Considerando que cada período histórico tem seus desafios e, embora o surdo
esteja ganhando maior visibilidade como sujeito de direitos, ainda há muito o que se
fazer pela consolidação desses direitos.
Este artigo visa contextualizar a história dos surdos, e pautar as diferenças entre
os termos comumente usados para definir sujeitos e/ou a comunidade surda. Aqui se
problematizará a imposição da oralidade ao sujeito surdo e as relações de poder entre
ouvintes e surdos intrínsecas a sociedade.
CONTEXTUALIZAÇÃO
Os Historiadores definem os períodos da História a partir de 4000 a.C, onde todo
período anterior a este é pré história, e posterior é dividido em: Idade Antiga, Idade
Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. Apesar das diversas problematizações
sobre esta divisão - como, por exemplo, a história não ocorre da mesma forma em
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sociedades distintas apenas por existirem no mesmo período de tempo, além dessa
divisão ser baseada na História da Europa, não correspondendo com o restante do
mundo – mesmo com essas peculiaridades, os livros de história trazem essas divisões
para situar o período a ser estudado.
Para compreender melhor a história dos surdos é preciso entender primeiramente
a diferença entre surdo e deficiente auditivo, e posterior, de comunidade surda e povo
surdo.
A surdez, habitualmente, é correlacionada à doença, incapacidade, “defeito”, a
uma condição patológica daquele indivíduo que deve ser tratada e curada, seja por
tratamentos fonoaudiólogos, próteses e métodos de oralização.
Ou seja, o surdo deve ser reabilitado, seu corpo o qual está danificado, deve ser
normalizado, deve se encaixar no padrão ouvinte, sendo esta condição institucionalizada
e medicalizada.
Desta forma, o engajamento social e o empoderamento que vem ocorrendo em
volta da comunidade surda e da proteção da cultura surda, estabelece novas demandas
sociais, auxiliando a condição de surdez a ser percebida como uma forma de existir.
Comumente é utilizado o termo “deficiente auditivo” – o que ocorre de forma
equívoca, já que deficiente auditivo é caracterizado por aquele que não expressa uma
identidade surda, reconhecendo as práticas culturais e não necessariamente inserido na
LIBRAS . “Surdo” não é uma definição pejorativa, pelo contrário, é o termo mais
utilizado pela comunidade surda (NAKAGAWA, 2011).
Tem-se por “povo surdo” o grupo de indivíduos que compartilham da
linguagem, dos hábitos e dos valores culturais, e já “comunidade surda”, entende-se
pelo grupo não só de surdos, mas de familiares, amigos, professores, interpretes e todos
aqueles que compartilham em mesmo âmbito interesses e trocas de experiências
(STROBEL, 2009).
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Congresso de Milão
Para situar alguns retrocessos da história da cultura surda é necessário fazer o
recorte a partir do Congresso de Milão, que ocorreu em 1880 – deve-se levar em
consideração que ocorreu após o Congresso de Veneza, de 1872, onde foi decidido que
o meio de comunicação humano é oral, este tendo vantagens para o desenvolvimento do
intelecto e da linguística, e o surdo, se ensinado, irá falar e fazer leitura labial.
Visto isso, entende-se o contexto histórico do Congresso de Milão, onde o
comité era constituído por ouvintes, aprovando o oralismo como melhor técnica para a
educação dos surdos, perpetuando esta noção durante o final do século XIX e boa parte
do século XX.
Após essa elucidação, podemos ver na história dos surdos uma divisão temporal
em três fases, utilizando como referência o Congresso de Milão, o qual critica a
alfabetização em libras e coroando pressupostos oralistas (NAKAGAWA,2011).
Na primeira fase, a Revelação Cultural, a maioria dos surdos dominava a
escrita, sendo muitos deles sujeitos bem sucedidos nas mais diversas áreas de
conhecimentos. O isolamento cultural é a segunda fase, a qual foi marcada pela
proibição do acesso a língua de sinais na educação dos surdos em consequência ao
Congresso de Milão. Nesse período, a comunidade surda resiste a oralização imposta
pela sociedade. A partir dos anos 1960 ocorre a fase conhecida como o despertar
cultural, que destaca a aceitação da cultura surda e da língua de sinais que fora oprimida
tantos anos (WIDELL, 1992).
No Brasil, a Língua de Sinais ganhou espaço quando em 1857, Eduard Huet, um
francês que ficou surdo aos doze anos veio ao Brasil a pedido de D. Pedro II para fundar
o Imperial Instituto de Surdos Mudos, primeira escola para meninos surdos, atual INES
-Instituto Nacional de Educação de Surdos (ROCHA,1997).
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Apesar disso, a Língua de Sinais nem sempre foi/é aceita, gerando muitos
debates a cerca da educação e oralização de surdos.
Anos após o Congresso de Milão, ainda é possível identificar dificuldades de
aceitação e inclusão dos surdos na sociedade, e não só de forma geral, mas no âmbito da
família ainda existe resistência para inserção na comunidade de surdos, pois têm o
entendimento que esses teriam que se adequar a cultura ouvinte por ser a “comum”,
incentivando-os a não se comunicar através da libra e a não entrar na comunidade, dessa
forma dificultando sua inclusão social, já que esse indivíduo não pertence ao universo
do surdo nem do ouvinte.
Oralização como único e/ou principal meio de comunicação
O documentário “Travessia do Silêncio”, aborda diferentes olhares sobre a
surdez, tanto de ouvintes como de próprios surdos. Com este documentário pode-se
entender melhor as visões, os preconceitos e até mesmo as relações de poder existentes
entre ouvintes e surdos.
No início do documentário apresenta-se o relato de um casal com dois filhos na
primeira infância, ambos surdos, que desde constatado o estado de surdez, os pais
preocupam-se em oralizá-los e em fazer implante coclear. A fala desses traz uma certa
culpa por seus filhos terem nascido surdos. O segundo caso que chama atenção é o de
dois irmãos (21 e 25 anos), surdos, estudantes e sonhadores. Ambos desde criança
foram instruídos a oralidade, passando por fonoaudióloga e estudando em escola
regular. Um dos irmãos, Valdo, tinha maior facilidade para se comunicar de forma
oralizada, mas o seu irmão mais velho Auleo apresentava dificuldade e até algumas
críticas a oralização. Auleo conta que quando criança, sua mãe o fazia falar e proibia de
“gesticular”, passando pelo mesmo impasse na fonoaudióloga.
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Em meados do filme, é apresentada a história de Esmeraldina e sua filha
Samanta, 16 anos, que nasceu surda e desde bebê sua mãe a levava em médicos, que
após uma série de exames, constataram que Samanta era surda e, diante do
questionamento de Esmeraldina sobre o que fazer, não souberam dar o devido
encaminhamento e esclarecimento sobre o que é/como é ser surdo. Apesar disso,
Esmeraldina entende que é mais fácil para ela inserir-se no mundo de sua filha e
compreender sua linguagem do que Samanta se inserir no mundo dos ouvintes.
Aos vinte e sete minutos de documentário, mostra-se a história de Pedro através
de uma entrevista com ele e sua mãe Sônia. Pedro, surdo desde os 20 meses, por um
erro médico, cresceu sendo oralizado e estudando em escola regular, onde sua mãe diz
não existir motivo para aprender libras para se comunicar com seu filho, e em sua visão,
o certo é seu filho se encaixar no mundo dos ouvintes, já que o mundo não irá mudar
nem ser preparado para ele, e ele que deve se preparar para o mundo. Pedro, apesar de
ser surdo, não se considera, inclusive não entendendo a existência do mundo do surdo
como a gama de identidades e complexidades específicas presentes.
Após a história de Sônia e Pedro, “Travessia do Silêncio” traz a vivência de
Stephan, cujo se encontra na mesma situação de Pedro: oralizado, sem incentivo
familiar para o estudo de LIBRAS e não se enxergando como membro da comunidade
surda.
Em ambos os casos percebe-se como a família é a principal norteadora de como
esse indivíduo surdo será educado e se apresentará perante a sociedade, indicando o
caminho que deve seguir e até mesmo o que deve pensar. Nesses casos, os jovens não se
sentem integrantes da comunidade surda e um deles não possui interesse em aprender a
língua de sinais. É evidente o preconceito por parte das mães, que tentam barrar o
contato dos filhos com a língua de sinais e o universo surdo, em que uma delas ao
contar que o filho namora uma surda, fala para ele não ter filhos surdos, pois já basta
ele.
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Uma das maiores dificuldades perceptíveis na fala de alguns familiares, é estes
mesmos não entenderem que não há apenas o universo do ouvinte a qual o surdo deve
se adaptar, mas que existe o universo do surdo, onde há linguagem, cultura e percepções
próprias. Um dos maiores equívocos na defesa somente de oralização é ignorar a
existência desse universo e das limitações que o surdo pode apresentar em relação à
oralização.
Esse tipo de postura, além de ressaltar o preconceito – o qual vem com uma
roupagem de “inclusão” quando na verdade é a maior expressão de exclusão – impacta
diretamente na consciência do surdo, este quando desde sempre é oralizado, estuda em
escolas regulares, sendo inserido no universo ouvinte e tendo essa inserção como única
alternativa, perde uma parcela de sua identidade, sendo surdo e tendo consciência disso,
porém não se percebendo como um indivíduo da comunidade surda.
Como vimos no documentário com a fala de Stephan e sua mãe Salimar, a
surdez acaba por ser vista como um problema individual, tratado como uma
particularidade e deficiência existente naquele ser humano. Nesses casos o
entendimento é que o surdo deve ter o esforço de se adaptar a esse mundo, pois o
mundo não está apto para recebê-lo. A problemática que percorre esse pensamento se
enquadra na medida em que o surdo não se reconhece como tal, por ter se adaptado aos
ouvintes. O que pode resultar em preconceitos embasados em desconhecimento da
cultura surda e a forma como a LIBRAS auxilia na construção de uma identidade e de
uma comunicação completa (MOURA, 1997).
Não negando a importância das políticas públicas de inclusão social, mas deve-
se fomentar o debate acerca de até onde há políticas de inclusão que realmente auxiliam
o surdo e quando que estas passam a agir como artifício de normalização e “cura”,
perpetuando a sobreposição da oralização e do encaixe ao universo do ouvinte a
aceitação do surdo visto como indivíduo pertencente a uma comunidade com
linguagem, cultura e identidade próprias (LOPES, 2004).
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O surdo deve ser visto como sujeito de direitos e ter suas particularidades
respeitadas, não sendo tratadas como deficiência – já exposto neste artigo as diferenças,
e articulando, dessa forma, a inclusão social e não apenas ignorando a identidade do
povo surdo para adequá-lo ao mundo ouvinte.
Relações de poder
Quando aponta-se a discussão acerca das relações de poder, não pode-se deixar
de colocar que essas relações são inerentes às relações sociais. As relações de poder se
dão através de toda e qualquer relação de domínio do mais forte em detrimento do mais
fraco – seja na política, na economia e/ou nas relações sociais.
Como visto em Gramsci (apud COUTINHO,1989), sob a ótica da totalidade, o social e
o político/econômico estão atrelados, não podendo ser desvencilhados. Desta forma
conseguimos compreender melhor como surgem as relações de poder.
Seguindo essa perspectiva, entendemos a sociedade como em dois planos: o
primeiro, infra-estrutura, representa a base econômica, englobando as relações do
homem com a natureza no sentido de manter e gerar os elementos necessários para sua
própria existência.
O segundo plano, a superestrutura, apresenta-se como a base político-ideológica,
representada pelo Estado e pelos demais aparelhos ideológicos (como as religiões, a
ciência, a educação).
Visto isso, temos a superestrutura determinada pela infra-estrutura, onde a base
econômica é essencial para corroborar o pensamento da classe dominante em cima do
Estado e dos diversos aparelhos ideológicos, garantindo a supremacia da classe
dominante.
Em Marx (1863-1866), essas relações básicas de poder da sociedade humana são
relações de produção, pautadas pela divisão social do trabalho, onde temos o
trabalhador/proletário como a classe dominada – tendo essa reafirmação e alienação
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através dos aparelhos do Estado e dos grupos ideológicos – e o burguês, o patrão, o
dono dos meios de produção constitui a classe dominante, a qual se utiliza do Estado e
dos aparelhos ideológicos para garantir seu status quo.
Essas relações de poder se concretizam através da constante luta de classes: onde
o proletário aspira por melhor remuneração de sua força de trabalho enquanto o burguês
detém o capital, indo oposto a esse proletário, explorando sua força de trabalho para
gerar maior mais-valia. Essa luta de classes tende sempre para o lado da classe
dominante, visto que esta detém o capital e controla a classe dominada diretamente –
através da relação patrão x empregado – e indiretamente – por meio da igreja, da escola,
dos veículos midiáticos, do Estado.
Relações de poder entre ouvintes e surdos
Levando em conta todos os fatores explicitados até o presente momento neste
artigo e tendo em base entendimento do que são relações de poder no sistema capitalista
segundo Gramsci e Marx (2004), percebe-se que as relações de poder podem ser
estudadas para além da contradição capital x trabalho, ainda levando em conta os
conceitos de classe dominante e classe dominada, neste tópico sendo abordado como
grupo dominante e grupo dominado.
Desta forma podemos analisar as relações entre os ouvintes e os surdos/a
comunidade surda, percebendo a existência de uma relação de poder onde temos os
surdos como grupo dominado em função dos ouvintes, o grupo dominante.
Não temos a intenção de exaltar o ouvintismo – termo por Skliar (1999) – em
razão da cultura surda neste presente artigo, mas oposto a isso, temos como finalidade
analisar as relações de poder existentes e como isso afeta o surdo e a comunidade surda,
trazendo reflexos do Congresso de Milão.
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Skliar quando usa o termo “ouvintismo”, explicita que nesta concepção o surdo é
induzido a perceber-se e narrar-se como se fosse ouvinte, vivendo como tal, se
comunicando de forma oral, sendo educado em escolas regulares e passando por uma
série de instrumentos para “tratar” sua condição biológica, dessa forma o surdo é
assistido através de uma ótica antropológica e histórica-social.
O autor reafirma a noção de existência de uma ideologia dominante imposta pela
cultura oral, ou seja, o mundo ouvinte, que através do ouvintismo impõe normas e
padrões aos surdos, tratando o surdo e sua condição de existência como algo que foge
da normalidade, um desvio biológico e patológico presente naquele indivíduo.
A partir desse recorte, pode-se entender que as relações de poder já apresentadas
não ocorrem sempre de forma explícita, podendo passar despercebidas por meio de uma
roupagem de “inclusão”. A compreensão da surdez como uma incapacidade que
necessita de cura leva a uma série de práticas pelo “bem-estar” e pela inclusão do
indivíduo surdo. Supondo o que é felicidade e bem estar para o surdo, o mundo ouvinte
esforça-se para curar e apresentar formas de superação a surdez, como tratamentos de
fala, implantes cocleares e diversos outros dispositivos para assemelhar esse sujeito
cada vez mais a “normalidade”ouvinte. Essa imposição a “normalidade’ muitas vezes
ocorre de forma sutil, confundindo-se com inclusão o que seria uma forma de
preconceito e/ou dominação, como explicitado por Silva:
“A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o
poder se manifesta no campo da identidade e da diferença.
Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma
identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as
outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. (…) A força
da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como
uma identidade, mas simplesmente como a identidade”
(SILVA,2000, p.83).
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A partir dessa concepção de como se dá a normalização e a adequação do sujeito surdo
arbitrariamente induzida pelos ouvintes, passa a existir um debate sobre como também
tenta-se padronizar o sujeito, como se existisse apenas um modelo de surdo que seria
rotulado como normal ou ideal, dessa forma constituindo-se dois debates pertinentes: a
padronização de uma comunidade heterogênea em sua totalidade e o incentivo
ouvintista de tornar aquele surdo um sujeito oralizado que passa a se perceber e se
portar como um ouvinte (LUNARDI; MACHADO, 2007).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deve-se atentar para o fato de que mesmo que hoje existam movimentos sociais
que lutam contra o ouvintismo e para dar visibilidade à cultura surda, ainda é difícil
definir ou classificar a comunidade surda como homogênea, visto que dentro dela
existem muitas divergências de pensamentos e modos como se deve lidar com a surdez
e com a sociedade como um todo, como por exemplo, a diferença de pensamento entre
os surdos oralizados e os não oralizados que se comunicam apenas através da linguagem
de Sinais, como pode-se perceber no documentário “Travessia do Silêncio”, é comum o
surdo oralizado não estar presente na comunidade surda, não se identificando como um
membro nem tampouco compartilhando das mesmas questões que envolvem o surdo
não oralizado.
A questão pontuada não é que o surdo oralizado não vive as mesmas
dificuldades e nem as expressões de preconceito e exclusão do surdo não oralizado, mas
sim que este surdo oralizado por muitas vezes não se vê pertencente a esse grupo
enquanto um indivíduo que sofre uma relação de dominação, tendo sua existência como
condição patológica, e muitas vezes, tão pertencente ao mundo dos ouvintes, reproduz
os ideários da cultura oral, concordando com a surdez como uma patologia, um defeito.
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Por fim, tenciona-se ratificar o interesse em incitar um debate acerca das
relações de poder entre ouvintes e surdos e em como o ouvintismo atinge o povo surdo.
Não se tem por objetivo aqui esgotar este debate, visto que a finalidade é trazer
um recorte e fomentar a discussão, propondo novos olhares sobre o ouvintismo e
visando desconstruir a concepção clínico-terapêutica da surdez além da ideia de “cura”
e reabilitação desse indivíduo.
REFERÊNCIAS
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Libras.
BRASIL, Decreto nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no 10.436,
de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art.
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