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DO BELO MUSICALUm Contributo para a Reviso da Esttica da Arte dos Sons

Eduard Hanslick

Tradutor: Artur Moro

1854www.lusosoa.net

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Covilh, 2011

F ICHA T CNICA Ttulo: Do Belo Musical. Um Contributo para a Reviso da Esttica da Arte dos Sons Autor: Eduard Hanslick Tradutor: Artur Moro Coleco: Textos Clssicos de Filosoa Direco da Coleco: Jos Rosa & Artur Moro Design da Capa: Antnio Rodrigues Tom Composio & Paginao: Jos M. Silva Rosa Universidade da Beira Interior Covilh, 2011

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Nota do tradutorA verso portuguesa, agora ofertada aos cibernautas, a reviso e a melhoria de duas edies anteriores de 1994 e 2001. Procedeu-se correco de umas quantas falhas e decincias e apurou-se mais o idioma. Trata-se, portanto, de uma terceira e mais vel edio em portugus, desta vez em suporte electrnico, do grande ensaio de esttica musical que foi publicado, pela primeira vez, em 1854. Eduard Hanslick, em vrias das edies subsequentes, acrescentou novos prefcios e fez algumas pequenas alteraes ou adendas que aqui se no tiveram em conta, porque o teor e a fora da tese, desenvolvida com grande brilho e eloquncia, permaneceram idnticos e inalterveis. Para quem conhea a lngua alem, o texto primitivo, com os restantes prefcios e os acrescentos ou modicaes do Autor, encontra-se no seguinte electro-stio: Eduard Hanslick: Vom Musikalisch Schnen. O leitor curioso achar na rede electrnica mundial diversos materiais sobre o famoso crtico musical austraco. Recomendam-se em especial os artigos esclarecedores do pianista e musiclogo brasileiro Mrio Videira, Formas sonoras em movimento: a natureza do belo musical segundo Hanslick e Eduard Hanslick e a polmica contra sentimentos na msica nos electro-stios seguintes: L. Mrio Videira e Eduard Hanslick e a Polmica contra os Sentimentos na Msica Artur Moro Loures, Maio de 2011

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Do Belo Musical Um Contributo para a Reviso da Esttica da Arte dos SonsEduard Hanslick ContedoPREFCIO 6 CAPTULO I 7 a) Ponto de vista no cientco da esttica musical anterior . . . 7 b) Os sentimentos no so o m da msica . . . . . . . . . . . . 9 CAPTULO II: Os sentimentos no so o contedo da msica 19 CAPTULO III: O belo musical 40 CAPTULO IV: Anlise da impresso subjectiva da msica 61 CAPTULO V: A percepo esttica da msica... 79 CAPTULO VI:As relaes entre a msica e a natureza 93 CAPTULO VII: Os conceitos de "contedo"e "forma"na... 105

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Outras obras de Eduard Hanslick alm de Vom Musikalisch-Schnen, Leipzig 1854: Geschichte des Konzertwesens in Wien, 2 vols., Viena 1869-70 Die moderne Oper, 9 vols., Berlim 1875-1900 Aus meinem Leben, 2 vols. Berlim 1894 Suite. Aufstze ber Musik und Musiker, Viena 1884

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PREFCIOO entendido dicilmente negar que a esttica da arte sonora at agora prevalecente carece de uma reviso geral. Apresentar os princpios que semelhante reviso teria de estabelecer na sua actividade crtica e construtiva a tarefa deste escrito. De todo afastada de mim est a arrogncia, quase epidmica nas monograas sobre esttica musical, de que nestas escassas folhas dormita uma esttica integral da arte dos sons. Para uma assim mesmo no sentido mais restrito em que a considero possvel no era de antemo suciente nem a inteno nem a fora. Basta que eu consiga trazer para o campo de batalha vitoriosos aretes contra a apodrecida esttica do sentimento e aprontar alguns alicerces para a futura reconstruo. A propsito das lacunas, de que sou muito consciente, da minha exposio tenho de recorrer esperana de algum dia me ser permitida uma discusso mais pormenorizada dos princpios aqui desenvolvidos. Se este ensaio puder contribuir para, na arte sonora, acercar a fruio e o conhecimento do belo do nico solo adequado (i.e., o esttico), ter assim plenamente compensado vrios desfavores nele patentes para o meu sentimento. Viena, 11 de Setembro de l854 Dr.Eduard Hanslick

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CAPTULO I a) Ponto de vista no cientco da esttica musical anteriorPassou o tempo dos sistemas estticos que abordavam o belo apenas em relao com as "sensaes"por ele suscitadas. O impulso para o conhecimento objectivo das coisas, tanto quanto inquirio humana concedido, devia abalar um mtodo que partia da sensao subjectiva para, aps um passeio pela periferia do fenmeno investigado, retornar mais uma vez sensao. Nenhuma senda leva ao centro das coisas, mas cada uma deve para l dirigir-se. A coragem e a capacidade de pressionar as coisas, de indagar aquilo que, separado das impresses muitssimo mutveis por elas exercidas sobre o homem, constitui o seu elemento permanente, objectivo e dotado de imutvel validade caracterizam a cincia moderna nos seus mais diversos ramos. Esta orientao objectiva no podia deixar de bem depressa se comunicar pesquisa do belo. O tratamento losco da esttica, que por uma via metafsica tenta aproximar-se da essncia do belo e regista os seus elementos ltimos, uma aquisio dos tempos modernos. Ao m e ao cabo, tambm no tratamento das questes estticas, se deveria agora preparar uma revoluo na cincia que, em vez do princpio metafsico, proporcionasse uma inuncia poderosa e um predomnio, ao menos temporal, a uma intuio congnere do mtodo indutivo das cincias naturais diante de ns esto os ltimos pncaros da nossa cincia e armam para sempre o mrito imperecvel de ter aniquilado o domnio da acientca esttica da sensao e explorado o belo nos seus elementos inerentes e puros.www.lusosoa.net

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Se os elementos do belo existissem uma vez na sua universalidade, cabia aos peritos indagar o modo especco como eles se realizam e especicam nas artes singulares. Foi necessrio que se adquirissem os princpios da pintura, da arquitectura, da msica e se desenvolvessem estticas especiais. Sem dvida, as ltimas no podem fundamentar-se mediante uma simples adaptao do conceito geral de beleza, porque este aceita em cada arte uma srie de novas distines. Cada arte deve ser conhecida nas suas determinaes tcnicas, quer ser compreendida e julgada a partir de si prpria. As estticas especiais, bem como os seus ramos prticos, as crticas da arte, devem todavia, em toda a diversidade dos seus pontos de vista, unir-se na nica e imperecvel convico de que, nas investigaes estticas, se deve sobretudo inquirir o objecto belo, e no o sujeito senciente. Devem romper com o mais antigo modo de intuio que empreendia a pesquisa tendo apenas em considerao e ateno os sentimentos por ele suscitados, e trouxe luz do dia a losoa do belo como uma lha da sensao (aisthesis). A intuio objectiva j no hoje uma aquisio simplesmente cientca, mas penetrou de uma maneira assaz geral na conscincia artstica. O moderno poeta ou pintor dicilmente se persuade de que tem de prestar contas acerca do belo da sua arte, ao indagar que "sentimentos"evocar no pblico esta paisagem, aquela comdia. Procura antes encontrar na estrutura peculiar da prpria obra de arte os elementos que a rotulam como algo de belo, e justamente como esta espcie determinada do belo. O simples facto do prazer despertado no lhe pode bastar: ele rastrear a fora imperativa da razo por que a obra agrada. Mas a arte sonora ainda no soube apropriar-se deste ponto de vista cientco e, na sua esttica, cou para trs das restantes artes. As "sensaes"trazem nela plena luz do dia o espectro antigo. Na vida e na literatura da arte dos sons, o belo musical , sem excepo, tratado pela vertente da sua impresso subjectiva, e livros, crticas, conversas podem diariamente comprovar que, de modo consensual, se reconhecem os sentimentos como a base que sustm o ideal desta arte, concentra

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os raios da sua operao e assinala os limites do juzo sobre a msica atravs dos seus.

b) Os sentimentos no so o m da msicaA msica assim nos ensinam no pode entreter o entendimento por meio de conceitos, como a poesia, nem tambm o olho mediante formas visveis, como as artes plsticas, ter portanto a vocao de actuar sobre os sentimentos do homem. "A msica tem a ver com os sentimentos."Este "ter a ver" uma das expresses caractersticas da esttica musical at agora existente. Mas em que consista a ligao da msica com os sentimentos, de determinadas peas musicais com determinados sentimentos, segundo que leis naturais ela actue, segundo que leis artsticas se deva congurar, a tal respeito deixam-nos de todo s escuras os que com isto "tm a ver."Se o olho se habituar um pouco a tal escurido, consegue-se descobrir que os sentimentos, na intuio musical predominante, desempenham um duplo papel. Primeiramente, prope-se como m e misso da msica suscitar sentimentos ou "sentimentos belos". Em segundo lugar, apontam-se os sentimentos como o contedo que a arte sonora exibe nas suas obras. Ambas as asseres tm a similaridade de tanto uma como a outra ser falsa. A primeira no deve ocupar-nos por muito tempo, pois a losoa mais recente h muito refutou o erro de que o m de algo belo reside em geral numa certa tendncia para o sentir dos homens. O belo tem em si mesmo o seu signicado, certamente belo apenas para o deleite de um sujeito da intuio, mas no graas a ele prprio. Tal como a serpente nos contos de Goethe, ele completa o seu crculo apenas em si, despreocupado com a fora mgica com que at o morto revive. O belo limita-se a ser belo, embora admita igualmente que ns, alm do intuir a actividade propriamente esttica tambm faamos algo de supruo no sentir e no percepcionar.www.lusosoa.net

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Antes de a nossa investigao poder comear, temos de distinguir com rigor "sentimento"e "sensao", dois conceitos que, sem cessar, so confundidos Sensao a percepo de uma determinada qualidade sensvel: de um som, de uma cor. Sentimento o tornar-se-consciente de uma incitao ou impedimento do nosso estado anmico, portanto de um bem-estar ou desprazer. Quando simplesmente percepciono o cheiro ou o sabor de uma coisa, a sua forma, a sua cor ou o seu som com os meus sentidos, percepciono, pois, estas qualidades; quando a melancolia, a esperana, a alegria ou o dio me elevam perceptivelmente acima do estado anmico habitual ou sob o mesmo me deprimem, tenho sentimento. (Nesta especicao conceptual os mais antigos lsofos concordam com os modernos silogos, e devemos preferi-la incondicionalmente s denominaes da escola hegeliana que, como se sabe, faz uma distino entre sensaes internas e externas.) O belo afecta primeiro os nossos sentidos. Tal caminho no lhe peculiar, partilha-o com todo o fenomnico em geral. A sensao o comeo e a condio do deleite esttico e constitui justamente a base do sentimento, que pressupe sempre uma relao e, muitas vezes, as mais complicadas relaes. A provocao de sensaes no necessita da arte, um nico som, uma simples cor consegue tal. Como se disse, as duas expresses trocam-se arbitrariamente mas, na maior parte dos casos, nas obras mais antigas, chama-se "sensao"ao que ns denominamos "sentimento". Por conseguinte, a msica, pretendem dizer aqueles escritores, deve despertar os nossos sentimentos e, alternadamente, encher-nos de devoo e amor, de jbilo e de melancolia. Mas, na verdade, semelhante especicao no a tem nem esta nem nenhuma outra arte. O rgo com que se acolhe o belo no o sentimento, mas a fantasia, enquanto actividade do puro intuir. (Vischer, Aesth. 384). Quase espanta como os msicos e os estetas mais antigos se movem apenas no interior do contraste entre "sentimento"e "entendimento", como se a questo principal no residisse precisamente no seio deste

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pretenso dilema. A pea sonora ui da fantasia do artista para a fantasia do ouvinte. Diante do belo, a fantasia no apenas um contemplar, mas um contemplar com entendimento, i.e., um representar e um julgar, este ltimo decerto com tal rapidez que os processos individuais no nos chegam conscincia e surge a iluso de que acontece imediatamente o que, na verdade, depende de mltiplos processos espirituais mediatos. Alm disso, a palavra "intuio", transferida h muito das representaes visuais para todos os fenmenos sensveis, corresponde de modo excelente ao acto do ouvir atento, que consiste numa considerao sucessiva das formas sonoras. A fantasia no , naturalmente, um mbito fechado: assim como extraiu a sua centelha vital das percepes sensveis, assim envia, por seu turno, rapidamente os seus raios actividade do entendimento e do sentimento. No entanto, estes so para a genuna concepo do belo apenas campos limtrofes. Se o ouvinte frui, na intuio pura, a pea sonora ressoante, deve estar longe dele todo o interesse material. Mas um interesse assim a tendncia para em si permitir a excitao dos afectos. A actuao exclusiva do entendimento por meio do belo comporta-se de uma maneira lgica e no esttica, um efeito predominante sobre o sentimento ainda dbio e at patolgico. Tudo o que h muito foi elaborado pela esttica geral vale de modo anlogo para o belo de todas as artes. Se, pois, a msica se trata como arte, importa reconhecer como instncia esttica sua a fantasia, e no o sentimento. Mas a premissa despretensiosa parece muito aconselhvel porque, na nfase importante que incansavelmente se pe na pacicao das paixes humanas a obter pela msica, muitas vezes, no se sabe se, de facto, se est a falar de uma medida policial, pedaggica ou medicinal. Mas os msicos no se encontram enredados no erro de pretender reivindicar igualmente todas as artes para os sentimentos; pelo contrrio, vem nisso algo de especicamente peculiar arte dos sons. A fora e a tendncia para actuar nos sentimentos do ouvinte seria justamente o que caracteriza a msica em face das restantes artes. Onde nem

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sequer se separou "sentimento"de "sensao"menos ainda se pode falar de uma compreenso mais profunda do primeiro: sentimentos sensveis e intelectuais, a forma crnica do humor, a forma aguda do afecto, a inclinao e a paixo bem como as coloraes peculiares desta enquanto "pathos"nos Gregos e "passio"nos modernos latinos, foram nivelados numa variegada mescla, e apenas se declarou a propsito da msica que ela em especial a arte de suscitar sentimentos. Mas do mesmo modo que no reconhecemos este efeito como a tarefa das artes em geral, assim tambm no podemos ver nele uma determinao especca da msica. Uma vez estabelecido que a fantasia o rgo genuno do belo, ter lugar em todas as artes um efeito secundrio destas sobre o sentimento. No nos move poderosamente uma grande pintura histrica? Que devoo suscitam as Madonas de Rafael, que estados de nimo nostlgicos e joviais despertam as paisagens de um Poussin? Ficar o espectculo da catedral de Estrasburgo ou das guras de mrmore gregas sem efeito sobre o nosso sentir? O mesmo se verica a propsito da poesia, mais ainda, de muitas actividades extra-estticas, por exemplo da edicao religiosa, da eloquncia, etc. Vemos que as restantes artes actuam igualmente com bastante fora sobre o sentimento. Havia, pois, que alicerar a sua diferena, alegadamente de princpio, quanto msica num mais ou menos deste efeito. De um modo em si inteiramente acientco, este expediente teria, ademais, de deixar convenientemente a cada qual a deciso de sentir com maior fora e profundidade numa sinfonia de Mozart ou numa tragdia de Shakespeare, num poema de Uhland ou num rond de Hummel. Mas se pretendermos dizer que a msica actua "imediatamente"sobre o sentimento, e as outras artes apenas graas mediao de conceitos, s se erra com outras palavras, porque, como vemos, os sentimentos hode tambm ocupar-se do belo musical s em segunda linha, e de modo imediato unicamente da fantasia. Salienta-se, inmeras vezes, nos ensaios musicais a analogia que, indubitavelmente, existe entre a msica e a arquitectura. Mas alguma vez um arquitecto sensato aprovou que a

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arquitectura tem o m de suscitar sentimentos, ou que estes constituem o seu contedo? Toda a verdadeira obra de arte se estabelecer numa qualquer relao com o nosso sentir, mas nenhuma num relao exclusiva. Por conseguinte, nada de decisivo se arma acerca do princpio esttico da msica quando esta caracterizada mediante o seu efeito no sentimento. No entanto, h quem pretenda captar a essncia da msica sempre a partir deste ponto. A crtica da uma obra sonora inicia-se sempre com a "sensao"que ela provoca, e determina-se o louvor ou a censura de acordo com a prpria afeco subjectiva. Como se algum explorasse a essncia do vinho quando se embebeda! O conhecimento de um objecto e a sua aco imediata sobre a nossa subjectividade so coisas diametralmente opostas, mais ainda, importa saber desenvencilhar-se da ltima justamente na medida em que se pretende aproximar-se do primeiro. O comportamento dos nossos estados emotivos perante um belo qualquer mais objecto da psicologia do que da esttica. Seja to grande ou to pequeno como se quiser o efeito da msica no permitido dele partir quando se empreende indagar a essncia desta arte. Hegel mostrou exaustivamente como o estudo das "sensaes"que uma arte desperta permanece numa total indeterminao e se abstm justamente do contedo genuno e concreto. "O que se sente diz ele persiste envolvido na forma da subjectividade mais abstracta, singular e, por isso, as diferenas da sensao tambm so inteiramente abstractas, e no diferena alguma da prpria coisa."(Aesthetik I, 42) Se arte dos sons , de facto, inerente uma fora especca da impresso (como dentro em breve iremos ver melhor), h ento que abstrair tanto mais cautamente de tal magia, a m de se chegar natureza da sua causa. Entrementes, confundem-se de modo incessante a afeco do sentimento e a beleza musical, em vez de se representarem separadamente pelo mtodo cientco. H quem se aferre ao efeito incerto dos fenmenos musicais em vez de penetrar no ntimo das obras e de, a partir das leis do seu prprio organismo, explicar que contedo o seu,

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em que consiste a sua beleza. Comea-se pela impresso subjectiva e segue-se para a essncia da arte. So ilaes do no-autnomo para o autnomo, do condicionado para o condicionante. Alm disso, a conexo de uma pea sonora com a moo emocional por ela suscitada no necessariamente causal. A mesma msica, em diferentes nacionalidades, temperamentos, idades e circunstncias, mais ainda, na igualdade de todas estas condies em diferentes indivduos, ter efeitos muito diversos. No precisamos de incomodar os ndios e os habitantes das Carabas, as habitualmente populares tropas regulares, quando se trata da "diversidade do gosto-- basta um pblico europeu frequentador de concertos: uma metade sente despertar as mais fortes e elevadas emoes nas Sinfonias de Beethoven, ao passo que a outra apenas a depara com "enfadonha msica intelectualista"e com a "ausncia de sentimentos". Em certos momentos, uma pea musical comove-nos at s lgrimas, outras vezes, deixa-nos frios, e milhares de outras coisas exteriores podem bastar para modicar ou anular de mil maneiras o seu efeito. A correlao das obras musicais com certas disposies anmicas no constitui sempre, em toda a parte e necessariamente, um imperativo absoluto. Mesmo quando inspeccionamos a impresso realmente presente, descortinamos nela, muitas vezes, o convencional em vez do necessrio. No s na forma e no costume, tambm no pensar e no sentir se constitui, no decurso dos tempos, muito de consensual, de tradicional, que se nos agura residir na prpria essncia das coisas e de que, todavia, a custo sabemos mais do que as letras do signicado que elas justamente para ns tm. o que acontece em particular com os gneros musicais, que esto ao servio de determinados ns exteriores como composies sacras, guerreiras e teatrais. Nas ltimas, encontrase uma verdadeira terminologia para os mais diversos sentimentos, uma terminologia que se tornou de tal modo corrente para os compositores e os ouvintes de uma poca que, num caso singular, no tm a seu respeito a mnima dvida. Mas desenvolvem-na pocas ulteriores. Sim, com frequncia, compreendemos com diculdade como que os nos-

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sos avs puderam ter esta srie sonora por uma expresso adequada justamente deste afecto. Cada poca, cada civilizao traz consigo um ouvir diferente, um sentir diverso. A msica permanece a mesma, muda to-s o seu efeito com o ponto de vista cambiante do preconceito convencional. Alm disso, as peas instrumentais com motes ou ttulos especcos indicam, entre outras coisas, com que facilidade e prontido se deixa enganar o nosso sentir, com os mais pequenos artifcios. Nos mais superciais trechos piansticos, onde nada h, "mero nada, para onde se viram os meus olhos", depressa surge a tendncia para reconhecer a "nostalgia do mar", " noite, antes da batalha", o "dia de Vero na Noruega"e outras absurdidades que tais, se a portada tiver apenas a ousadia de aduzir o seu pretenso contedo. Os ttulos proporcionam ao nosso representar e sentir uma orientao que, com demasiada frequncia, atribumos ao carcter da msica, uma credulidade contra a qual se no pode assaz recomendar a brincadeira de uma mudana de ttulo. O efeito da msica sobre o sentimento no tem, portanto, nem a necessidade nem a constncia nem, por m, a exclusividade que um fenmeno deveria apresentar para conseguir fundamentar um princpio esttico. No queremos de todo subestimar os prprios sentimentos fortes que a msica desperta da sua letargia, todos os estados de nimo doces ou dolorosos em que ela nos embala, semi-sonhadores. Entre os mistrios mais formosos e salubres conta-se precisamente o facto de a arte poder suscitar tais emoes sem causa terrena, como quem diz, por graa divina. Opomo-nos somente utilizao acientca destes factos em prol de princpios estticos. certo que a msica pode suscitar, em alto grau, o prazer e o pesar. Mas no os produzem, talvez em maior grau ainda, a obteno da sorte grande ou a doena mortal de um amigo? Se hesitamos em contar um bilhete de lotaria entre as sinfonias ou um boletim mdico entre as aberturas, tambm no h que tratar os afectos efectivamente produzidos como uma especialidade esttica da arte dos sons ou de uma determinada pea musical. Interessa,

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sim, unicamente o modo especco como semelhantes afectos so suscitados pela msica. Nos captulos IV e V, dedicaremos aos efeitos da msica sobre o sentimento a considerao mais atenta, e investigaremos os aspectos positivos desta relao singular. Aqui, no comeo do nosso escrito, no poderia realar-se com demasiada acutilncia o aspecto negativo, como protesto contra um princpio acientco.

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NOTA Para o m presente, dicilmente nos parece necessrio acrescentar s opinies, cuja contestao nos ocupa, os nomes dos seus autores, j que tais concepes no so a orescncia de convices peculiares, mas antes a expresso de um modo de pensar tradicional e generalizado. Enumerar-se-o aqui somente algumas citaes de musicgrafos antigos e modernos, a m de demonstrar o amplo predomnio destes princpios. Mattheson: "Em cada melodia, devemos estabelecer como nalidade principal uma emoo (quando no mais de uma)."(Vollkomm. Capellmeister, p. 143.) Neidhardtt: "O m ltimo da msica suscitar todos os afectos mediante simples sons e o seu ritmo, a despeito do melhor orador."(Prefcio a "Temperatur".) J. N. Forkel entende por "guras na msicao mesmo que elas so na poesia e na oratria, a saber, a expresso das distintas maneiras em que se manifestam as sensaes e as paixes". ("Ueber die Theorie der Musik", Gotinga 1777, p. 26.) J. Mosel dene a msica como "a arte de expressar determinadas sensaes por meio de sons regulados".www.lusosoa.net

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C. F. Michaelis: "A msica a arte da expresso de sensaes mediante a modulao de sons. a linguagem dos afectos", etc. (Ueber den Geist der Tonkunst, 2. Versuch. 1800, p. 29) Marpurg: "O m que o compositor se deve xar no seu trabalho imitar a natureza... suscitar as paixes segundo a sua vontade... descrever as emoes da alma, as inclinaes do corao, de acordo com a vida."(Krit. Musikus, Tomo I, 1750, Seco 40) W. Heinse: "A meta fundamental da msica a imitao ou, melhor, a excitao das paixes."(Musik. Dialoge, 1805, p. 30) J. J. Engel: "Uma sinfonia, uma sonata, etc., deve conter a execuo de uma paixo, mas que se espraie em diversos sentimentos."(Ueber musik. Malerei, 1780, p. 29.) J. Ph. Kirnberger: "Uma frase meldica (tema) uma frase compreensvel da linguagem do sentimento, que faz sentir a um ouvinte sensvel o estado de nimo que a suscitou."(Kunst des reinen Satzes", II Parte, p. 152) Pierer, Universallexikon (2a edio): "A msica a arte pela qual se expressam, mediante sons belos, sensaes e estados de nimo. superior poesia, que s (!) capaz de representar disposies anmicas cognoscveis ao entendimento, j que a msica exprime sentimentos e anelos absolutamente inexplicveis." O Universallexikon der Tonkunst [Lxico Universal da Msica] de G. Schilling apregoa a mesma explicao no artigo "Msica". Koch dene a msica como a "arte de expressar um jogo agradvel das sensaes mediante sons". (Mus. Lexikon: "Musik"). Andr: "A msica a arte de produzir sons que descrevem, suscitam e sustentam emoes e paixes."(Lehrbuch der Tonkunst I) Sulzer:

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"A msica a arte de expressar, mediante sons, as nossas paixes, tal como no discurso por meio de palavras."(Theorie der schnen Knste.) J. W. Bhm: "Os sons harmoniosos das cordas no tm a ver com o entendimento ou a razo, mas unicamente com a faculdade emotiva."(Analyse des Schnen der Musik. Viena 1830, p. 62) Gottfried Weber: "A msica a arte de expressar os sentimentos por meio de sons."(Theorie der Tonsetzkunst, 2a ed., t.1, p. 15) F.Hand: "A msica representa sentimentos. Cada sentimento, cada estado de nimo tem em si e igualmente na msica o seu tom e ritmo peculiar. Pode atribuir-se msica uma muito mais vasta determinao (!) para a representao do que a que possui qualquer arte; pois os sentimentos no os consegue com tanta nitidez nem o pintor desenhar,...nem o mimo sugerir."(Aesthetik der Tonkunst, t.I, 24, 27) Amadeus Autodidactus: "A arte sonora surge e enraza-se unicamente no mundo dos sentimentos e das sensaes espirituais. Os sons musicalmente meldicos (!) no ressoam para o entendimento, que apenas descreve e analisa sensaes,... falam ao nimo", etc. (Aphorismen ber Musik. Lpsia 1847, p. 329) Fermo Bellini: "A msica a arte que exprime os sentimentos e as paixes por meio de sons."(Manuale alla Musica. Milo, Ricordi 1853.) Friedrich Thiersch, Allgemeine Aesthetik (Berlim 1846) 18, p. 101: "A msica a arte de expressar ou suscitar sentimentos e estados anmicos mediante a escolha e a combinao dos sons."

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CAPTULO II Os sentimentos no so o contedo da msicaEm parte como consequncia desta teoria, que v nos sentimentos o m ltimo do efeito musical, em parte como correctivo seu, estabelece-se a assero de que os sentimentos constituem o contedo que a arte dos sons deve representar. A investigao losca de uma arte impele indagao do seu contedo. A toda a arte peculiar um mbito de ideias, que ela representa com os seus meios de expresso: som, palavra, cor, pedra. A obra de arte individual encarna, pois, uma determinada ideia como o belo em manifestao sensvel. Esta ideia determinada, a forma que a corporica e a unidade de ambas so as condies do conceito de beleza, de que nenhuma inquirio cientca de qualquer arte pode j separar-se. O que constitui o contedo de uma obra da arte potica ou plstica pode expressar-se com palavras e reduzir-se a conceitos. Dizemos: este quadro representa uma orista, esta esttua um gladiador, aquele poema uma faanha de Rolando. A absoro mais ou menos perfeita do contedo assim determinado na manifestao artstica fundamenta, em seguida, o nosso juzo sobre a beleza da obra de arte. Como contedo da msica mencionou-se, com bastante unanimidade, toda a gama dos sentimentos humanos, porque neles se julgava ter encontrado o contraste da determinidade conceptual e, por conseguinte, a distino exacta do ideal das artes plstica e potica. Os sons e a sua combinao artstica seriam, pois, unicamente o material, o meio

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de expresso com que o compositor representa o amor, a coragem, a devoo, o arrebatamento. Estes sentimentos, na sua rica multiplicidade, seriam as ideias que se revestiram do corpo terreno do som para, como obras de arte musical, vaguearem pela terra. O que nos agrada e exalta numa melodia encantadora, numa harmonia engenhosa, no seriam elas prprias, mas o que signicam: o sussurro da ternura, o mpeto da combatividade. Para obtermos terreno rme devemos, antes de mais, separar sem contemplaes tais metforas velhas e compostas: O sussurro? Sim, mas de nenhum modo da "nostalgia". A impetuosidade? Sem dvida, mas no da "combatividade". De facto, a msica possui um sem o outro; pode sussurrar, trovejar, precipitar-se mas s o nosso prprio corao que nela introduz o amor e o dio. A representao de um sentimento ou afecto no reside, porm, na capacidade peculiar arte dos sons. Os sentimentos no existem isolados na alma de modo que se possam, por assim dizer, salientar por meio de uma arte qual est oclusa a representao das demais actividades espirituais. Pelo contrrio, dependem de pressupostos siolgicos e patolgicos, so condicionados por representaes, juzos, em suma, por todo o campo do pensar intelectual e racional, a que se contrape de to bom grado o sentimento como algo de antittico. Que que faz, pois, de um sentimento este sentimento determinado: nostalgia, esperana, amor? porventura a simples fora ou fraqueza, a agitao do movimento interior? Decerto que no. Esta pode ser idntica para sentimentos diferentes e, de novo, ser diversa para o mesmo sentimento em vrios indivduos e em momentos distintos. O nosso estado de nimo s pode obter concreo justamente neste sentimento determinado baseando-se numa quantidade de representaes e juzos talvez inconscientes no momento de um forte sentir. O sentimento da esperana inseparvel da representao de um estado mais feliz que deve ocorrer e que se compara com o estado actual. A melancolia coteja uma sorte passada com o presente. Trata-se de re-

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presentaes, de conceitos e juzos inteiramente determinados. Sem eles, sem este aparato de pensamentos, no pode chamar-se ao sentir presente nem "esperana"nem "melancolia", pois s ele os torna tais. Se dele se abstrair, permanece uma emoo indenida, quando muito, a sensao de um vago bem-estar ou incmodo. O amor no concebvel sem a representao de uma personalidade amada, individual, sem o desejo e o anelo da felicidade, da exaltao, da posse do objecto. O que o transforma em amor no a ndole da mera moo anmica, mas o seu cerne conceptual, o seu contedo real e histrico. Segundo a sua dinmica, tanto pode ser suave como arrebatador, apresentar-se ou como alegre ou como doloroso, e sempre permanece amor. Esta simples observao basta para demonstrar que a msica consegue expressar unicamente esses diversos adjectivos acompanhantes, nunca o substantivo, o prprio amor. Um sentimento determinado (uma paixo, um afecto) nunca existe como tal sem um contedo real, histrico, que se pode expor apenas mediante conceitos. Como se reconhece, a msica, enquanto "linguagem indeterminada", no pode reproduzir conceitos no ento psicologicamente irrefutvel a deduo de que tambm no consegue expressar sentimentos especcos? que a especicidade dos sentimentos radica precisamente no seu cerne conceptual. Mais adiante, ao falar-se da impresso subjectiva da msica, queremos indagar como possvel que ela consiga (mas no tenha de) despertar sentimentos como melancolia, alegria e quejandos. Aqui importava apenas estabelecer teoricamente se a msica , ou no, capaz de representar um sentimento determinado. A tal questo havia que responder negativamente, j que a especicidade dos sentimentos no se pode separar de representaes e de conceitos concretos que cam fora do mbito congurador da msica. A msica, pelo contrrio, com os seus peculiarssimos meios, pode representar de modo substancial um certo domnio de ideias. Tais so, em primeiro lugar, todas as ideias que se referem a modicaes audveis do tempo, da fora, das propores, portanto as ideias do crescimento, do esmorecer, da

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pressa, da hesitao, do articiosamente intrincado do simples acompanhamento e coisas semelhantes. Alm disso, a expresso esttica de uma msica pode dizer-se graciosa, suave, violenta, enrgica, elegante, fresca; simples ideias que podem encontrar nas combinaes sonoras a correspondente manifestao sensvel. Podemos, pois, empregar directamente tais adjectivos ao falar de criaes musicais, sem pensar no signicado tico que tm para a vida anmica do homem, e que uma predominante associao de ideias to rapidamente combina com a msica, mais ainda, costuma confundi-la, no poucas vezes, com as propriedades puramente musicais. As ideias que o compositor representa so sobretudo, e em primeiro lugar, puramente musicais. sua fantasia apresenta-se uma determinada melodia bela. Esta nada mais deve ser do que ela prpria. Mas assim como cada fenmeno concreto aponta para o seu conceito especco superior, a ideia que, em primeiro lugar, o realiza, e deste modo sucessivamente sempre cada vez mais alto, at ideia absoluta, assim acontece tambm com as ideias musicais. Por exemplo, este adgio que esmorece harmoniosamente suscitar a manifestao bela da ideia do suave, do harmonioso em geral. A fantasia universal, que relaciona de bom grado as ideias da arte com a vida anmica humana prpria conceber semelhante esmorecimento de um modo superior, por exemplo, como a expresso da resignao de um nimo consigo mesmo conformado, e pode assim chegar ao anelo do absoluto. Tambm a poesia e a arte plstica representam, antes de mais, algo de concreto. O quadro de uma orista s pode sugerir imediatamente a ideia mais geral da conformidade e da modstia de uma donzela, e um quadro de cemitrio, a ideia da transitoriedade terrestre. De modo anlogo, s que com uma interpretao incomparavelmente mais vaga e caprichosa, pode o ouvinte extrair desta pea musical a ideia da satisfao juvenil, daquela a ideia da fugacidade; mas, tal como nos quadros mencionados, estas ideias abstractas no constituem o contedo da obra musical; e muito menos ainda se pode falar de uma represen-

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tao do "sentimento da transitoriedade", do "sentimento da satisfao juvenil". H ideias que so perfeitamente representadas pela arte sonora e, apesar de tudo, no ocorrem como sentimento, tal como, ao invs, h sentimentos que podem agitar o nimo de modo to disperso que no encontram a sua representao adequada em nenhuma ideia representvel pela msica. Por conseguinte, que que a msica pode representar dos sentimentos, se no expuser o seu contedo? S o que neles h de dinmico. Pode reproduzir o movimento de um processo fsico segundo os momentos: depressa, devagar, forte, fraco, crescendo, decrescendo. Mas o movimento apenas uma propriedade, um momento do sentimento, no o prprio sentimento. Comummente, julga-se delimitar assaz a capacidade representativa da msica quando se arma que ela de nenhum modo pode designar o objecto de um sentimento, mas o prprio sentimento, por exemplo, no o objecto de um amor determinado, mas o "amor". Na verdade, tambm isso no consegue. No pode descrever o amor, mas apenas um movimento que pode ocorrer no amor ou noutro afecto, e que sempre o inessencial do seu carcter. "Amor" um conceito abstracto, tal como "virtude"e "imortalidade". A asseverao dos tericos de que a msica no pode representar conceitos abstractos suprua, pois nenhuma arte de tal capaz. evidente que s as ideias, isto , conceitos vivicados, podem ser o contedo da encarnao artstica1 . Mas as obras instrumentais tambm no podem representar as ideias do amor, da ira, do temor, porque no existe uma relao necessria entre aquelas ideias e as belas combinaes sonoras. Qual , pois, o momento dessas ideias de que a msica sabe, na realidade, to ecazmente apoderar-se? o movimento (decerto no sentido mais amplo que apreende como "movimento"tambm1 Vischer dene (Aesthetik, 11 Nota) as ideias determinadas como domnios da vida, sempre que se considere a sua realidade como correspondente ao seu conceito. De facto, a ideia designa sempre o conceito presente, de modo puro e ecaz, na sua realidade.

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o crescendo e o decrescendo de um som ou acorde individual). Ele constitui o elemento que a msica tem em comum com os estados de nimo e que consegue congurar de um modo criativo em mil matizes e contrastes. Alm disso, o que na msica nos parece pintar determinados estados anmicos de todo simblico. Tal como as cores, os sons possuem j por natureza, e na sua individuao, signicado simblico, que actua fora e antes de toda a inteno artstica. Cada cor respira um carcter peculiar: no para ns uma simples cifra que obtm apenas um lugar mediante o artista, mas uma fora posta j pela natureza em relao simpattica com certas disposies de nimo. Quem no conhece as interpretaes das cores, corrente na sua simplicidade ou elevada por espritos mais selectos ao renamento potico? Associamos o verde ao sentimento da esperana, o azul delidade. Rosenkranz reconhece no alaranjado "a dignidade graciosa", no violeta "a amabilidade", etc. (Psychologie, 2a ed., p.102). De modo anlogo, os materiais elementares da msica tonalidades, acordes e timbres so j em si caracteres. Temos tambm uma arte de interpretao demasiado diligente para o signicado dos elementos musicais; sua maneira, a simblica das tonalidades de Schubart proporciona o equivalente da interpretao das cores levada a cabo por Goethe. No entanto, aqueles elementos (sons, cores), na sua aplicao artstica, seguem leis inteiramente diversas, como expresso da sua manifestao isolada. Assim como num grande quadro histrico nem todo o vermelho nos sugere alegria, nem todo o branco inocncia, assim tambm numa sinfonia nem todo o L bemol maior nos despertar um estado de nimo exaltado, nem todo o Si menor uma disposio misantrpica, nem cada acorde perfeito satisfao, nem todo o acorde de stima diminuta, desespero. No terreno esttico, tais autonomias elementares neutralizam-se sob a comunidade de leis superiores. Semelhante relao natural ca muito longe de todo o expressar ou representar. Demos-lhe o nome de "simblica", porque jamais representa imediatamente o contedo, antes continua a ser uma forma

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essencialmente distinta daquele. Se no amarelo vemos o cime, no Sol maior alegria, no cipreste a tristeza, tal interpretao tem uma relao siolgico-psicolgica com peculiaridades desses sentimentos, mas s a tem a nossa interpretao, e no a cor, a planta, o tom em si e por si. No pode, pois, dizer-se de um acorde em si que representa um sentimento determinado, e menos ainda o faz na tessitura da obra de arte. Para l da analogia do movimento e do simbolismo dos sons, a msica no dispe de nenhum outro meio para o suposto m. Se, deste modo, fcil deduzir da natureza dos sons a sua incapacidade para representar determinados sentimentos, agura-se quase incompreensvel que tal no tenha penetrado muito mais rapidamente ainda, pela via da experincia, na conscincia geral. Tentar algum, a quem uma pea instrumental faz vibrar todas as bras sentimentais, demonstrar com claras razes que afecto constitui o seu contedo? A prova indispensvel. Escutemos, por exemplo, a Abertura de Prometeu de Beethoven.

O que o ouvido atento do afeioado arte percebe em sucesso ininterrupta , mais ou menos, o seguinte: os sons do primeiro compasso rolam para a frente com rapidez e delicadeza, repetem-se exactamente no segundo; o terceiro e quarto compassos insistem no mesmo andamento em maior extenso, as gotas da fonte atiradas para o alto rolam caindo para, nos quatro compassos seguintes, executarem a mesma gura e o mesmo desenho. Perante o sentido interior do ouvinte constriwww.lusosoa.net

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se, pois, na melodia a simetria entre o primeiro compasso e o segundo, em seguida, entre estes dois e os dois seguintes, por m, entre os quatro primeiros compassos, como um grande arco estendido para outro igual em extenso e correlativo aos quatro compassos ulteriores. O baixo que marca o ritmo assinala o comeo dos trs primeiros compassos com um golpe de cada vez, o quarto, com dois golpes, e de igual modo nos quatro compassos seguintes. O quarto compasso constitui, pois, aqui uma diferena perante os trs primeiros; tal diferena tornase simtrica pela repetio nos quatro compassos ulteriores e alegra o ouvido como um rasgo de novidade no velho equilbrio. A harmonia do tema mostra-nos, por seu turno, a correspondncia de um arco grande com dois pequenos: ao acorde de D maior dos quatro primeiros compassos corresponde o acorde de segunda no quinto e no sexto, em seguida, o acorde de quinta e sexta nos compassos stimo e oitavo. Esta correspondncia recproca entre melodia, ritmo e harmonia produz um quadro simtrico e, no obstante, variado que obtm ainda luzes e sombras mais ricas por meio dos timbres dos diversos instrumentos e da mudana da intensidade do som. No conseguimos reconhecer no tema mais contedo do que o justamente expresso, e muito menos ainda mencionar um sentimento que ele deveria representar ou despertar no ouvinte. Semelhante anlise faz de um corpo em or um esqueleto, capaz de destruir toda a beleza, mas tambm toda a falsa interpretao. O que se passa com este motivo escolhido de modo inteiramente casual ocorre tambm com qualquer outro tema instrumental. Um vasto sector de afeioados msica tem por decincia caracterstica da msica "clssica"apenas a averso aos afectos, e reconhece de antemo que ningum poderia, num dos quarenta e oito preldios e fugas do Cravo Bem-Temperado de J. S. Bach, demonstrar um sentimento que constitusse o seu contedo. Bem caria assim j estabelecida a prova de que a msica no deve suscitar sentimentos ou t-los por objecto. Ficaria eliminado todo o domnio da msica gurada. Mas se necessrio ignorar os grandes gneros artsticos, histrica e esteticamente funda-

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dos, para proporcionar sub-repticiamente solidez a uma teoria, ento esta falsa. Um barco afundar-se-, logo que tenha ainda que seja um s rombo. A quem tal no bastar, poder, ao m e ao cabo, abalar-lhe todo o fundamento. Toque o tema de qualquer sinfonia de Mozart ou de Haydn, de um adgio de Beethoven, de um scherzo de Mendelssohn, de uma pea para piano de Schumann ou Chopin, o tronco da nossa msica mais signicativa; ou tambm os motivos mais populares das aberturas de Auber, Donizetti, Flotow. Quem se aproximar e ousar assinalar um sentimento determinado como contedo destes temas? Um dir "amor". possvel. Outro opina "nostalgia". Talvez. O terceiro sente "recolhimento". Ningum tal consegue refutar. E assim sucessivamente. Mas pode dizer-se que se representa um sentimento determinado quando ningum sabe o que, em rigor, representado? A propsito da beleza ou belezas de uma pea musical todos, provavelmente, pensaro de modo conforme, mas cada qual tem uma opinio distinta acerca do contedo. Representar, porm, signica produzir clara e intuitivamente um contedo, p-lo diante dos nossos olhos. Como pode ento considerar-se o representado por uma arte aquilo que, enquanto seu elemento mais incerto e ambguo, est submetido a uma eterna disputa? Escolhemos intencionalmente movimentos instrumentais como exemplos. De facto, s o que se pode armar acerca da msica instrumental vale para a arte sonora como tal. Quando se investiga qualquer peculiaridade geral da msica, algo que caracterize a sua essncia e a sua natureza, que determine os seus limites e a sua orientao, s pode falar-se da msica instrumental. Do que a msica instrumental no consegue jamais se pode dizer que a msica o consegue; pois s ela a arte dos sons pura, absoluta. Mas se preferirmos a msica vocal ou a instrumental pelo seu valor e efeito um procedimento acientco, no qual quase sempre tem a palavra o arbtrio supercial dever admitir-se sempre que o conceito de "arte sonora"no desabrocha puramente numa pea musical composta sobre um texto. Numa composio vocal, a eccia

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dos sons nunca se pode separar da das palavras, da aco e da decorao com tanta exactido que seja possvel separar estritamente a parte que cabe s distintas artes. Devemos at recusar peas musicais com determinados ttulos ou programas, em que se trata do "contedo da msica". A unio com a arte potica amplia o poder da msica, mas no os seus limites. Na composio vocal temos perante ns um produto indivisivelmente fundido em que j no possvel determinar a grandeza dos factores individuais. Quando se trata do efeito da arte potica, a ningum ocorrer aduzir a pera como prova; necessita-se de uma maior retractao, mas s da mesma compreenso, para fazer algo de semelhante nas determinaes fundamentais da esttica musical. A msica vocal ilumina o desenho do poema2 . Nos elementos musicais reconhecemos cores da maior sumptuosidade e delicadeza e, alm disso, de signicado simblico. Transformaro talvez um poema medocre em revelao ntima do corao. Contudo, no so osPodemos aqui utilizar como correcta esta conhecida expresso gurada em que, prescindindo de toda a exigncia esttica, se trata apenas da relao abstracta entre a msica e o texto em geral e, por isso, da deciso de qual destes dois factores parte a determinao autnoma, decisiva, do contedo (objecto). Porm, logo que j no se trate do qu, mas do como da realizao musical, aquela frase deixa de ser adequada. O texto s o principal, e a msica o acessrio, no sentido lgico (estamos quase para dizer "jurdico"); a exigncia esttica imposta ao compositor vai muito mais longe, reclama a beleza musical independente (embora inseparvel). Por conseguinte, quando j no se pergunta abstractamente o que a msica faz, ao tratar as palavras do texto, mas como o deve fazer no caso concreto, j no se pode banir a sua dependncia do poema para os mesmos limites estreitos, como o desenhador assinala ao colorista. Desde que Gluck, na grande reaco necessria contra os excessos meldicos dos italianos, regressou, no ao justo meio, mas atrs dele (exactamente como Richard Wagner faz nos nossos dias), repete-se sem cessar a frase contida na dedicatria de Alceste, segundo a qual o texto "o desenho correcto e bem executado"que a msica apenas tem de colorir. Se esta ltima no trata o poema num sentido muito mais grandioso do que no mero sentido do colorir, se ela prpria ao mesmo tempo desenho e cor no traz algo de totalmente novo que, com a peculiarssima fora da beleza, transforma as palavras em simples trepadeira, ento conseguiu, quando muito, o grau do exerccio estudantil ou a alegria do diletante, mas nunca o puro cimo da arte.2

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sons que representam numa pea de canto, mas o texto. O desenho, e no o colorido, que determina o objecto representado. Apelamos para a capacidade de abstraco do ouvinte a m de imaginar de um modo exclusivamente musical uma melodia qualquer de efeito dramtico, isenta de toda a determinao potica. Tomemos, por exemplo, o tema do segundo nal de Os Huguenotes:

No h aqui nenhuma outra expresso psquica a no ser a de um movimento precipitado e passional. O texto "Schndlich ist es, unerhrt, ha, wie konnten sie es wagen!" que se ajusta de modo esplndido, poderia, sem a mnima ofensa para com a expresso da msica, substituirse justamente pelo contrrio e, no sentido da conhecida poesia do libreto, soar assim: "O Geliebte, ich habdich wieder, welche Wonne, welch Entzcken!" Por conseguinte, acerca deste motivo de tanto efeito dramtico, pode apenas armar-se que no contradiz o seu texto, mas no que a ira e a raiva constituem o seu contedo, porque um afecto inteiramente oposto encontra a uma expresso igualmente correcta. O tema do dueto entre Florestn e Leonora no Fidlio de Beethoven, que sobressai como modelo de alegria cheia de vivacidade, pode proporcionar uma expresso s mais diferentes paixes e, com sons de todo idnticos em que Florestn rejubila: "O namenlose Freude!" [ alegria indizvel!],

Pizarro poderia explodir de dio: "Er soll mir nicht entkommen!" [Ele no h-de escapar-me!].www.lusosoa.net

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As mais expressivas passagens do canto, isoladas do seu texto, permitir-nos-o, quando muito, adivinhar que sentimento elas expressam. Assemelham-se a silhuetas, cujo original comummente s reconhecemos quando nos dito de quem se trata. O que aqui se mostrou em pormenor comprova-se igualmente nas obras de maior volume e da mxima envergadura. Muitas vezes, substituiuse o texto de peas de canto inteiras. Quando se representa a pera Os Huguenotes de Meyerbeer, com mudana de cenrio, de poca, das personagens, da aco e das palavras, como os "Gibelinos em Pisa", causa decerto alguma perturbao a disposio pouco hbil, a paralisia dramtica, de semelhante transposio, mas no se lesa no mnimo a expresso puramente musical. E, no entanto, o sentimento piedoso, o fanatismo religioso devia constituir a mola dos Huguenotes que de todo desaparece nos "Gibelinos". No deve aqui objectar-se com o coral de Lutero, pois uma citao. Como msica, ajusta-se a toda a consso. Nunca o leitor ouviu o Allegro fugado da abertura de A Flauta mgica executado como quarteto vocal de comerciantes judeus entre si altercando? A msica de Mozart, de que no se modicou uma s nota, adapta-se terrivelmente bem ao texto cmico vulgar, e na pera no se pode fruir de modo mais cordial a seriedade da composio do que rir-se aqui da sua comicidade. Poderiam aduzir-se at ao innito tais demonstraes da conscincia liberal de todo o motivo musical e de todo o afecto humano. A disposio de recolhimento religioso surge, com razo, como uma das que menos se prestam profanao musical. No entanto, h inmeras igrejas alems de aldeia ou vila em que a sagrada transubstanciao acompanhada ao rgo com Corne alpino de Proch ou a ria nal de A Sonmbula (com o pcaro salto de dcima "para os meus braos") ou coisa semelhante. Todo o alemo que vai Itlia ouvir com espanto, nas igrejas, as melodias mais famosas das peras de Rossini, Bellini, Donizetti e Verdi. Estas e outras peas ainda mais mundanas, contanto que ressoem apenas com carcter medianamente suave, longe de molestarem a comunidade no recolhimento, costumam, pelo contrrio, deix-la extremamente edicada.

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Se a msica fosse em si capaz de representar o recolhimento religioso como contedo, semelhante quid pro quo seria to impossvel como se o pregador recitasse no plpito, em vez de uma exortao, uma novela de Tieck ou uma acta parlamentar. V-se que a msica vocal, cuja teoria nunca pode determinar a essncia da arte sonora, tambm no capaz de desmentir na prtica os princpios derivados do conceito da msica instrumental. Ademais, a proposio que combatemos insinuou-se to intimamente na concepo esttico-musical corrente que tambm todos os seus descendentes e colaterais gozam da mesma imunidade. Entre eles conta-se a teoria da imitao de objectos visveis ou no musicalmente audveis por meio da arte dos sons. Na questo da "msica descritiva"[Tonmalerei onomatopeia], assegura-se uma e outra vez, com uma prudncia erudita, que a msica de nenhum modo pode pintar os fenmenos alheios ao seu mbito, mas apenas o sentimento que por eles em ns despertado. Ocorre justamente o contrrio. A msica s pode imitar a aparncia externa, mas nunca o sentir especco por ela provocado. S posso pintar musicalmente a queda dos ocos de neve, o esvoaar das aves, o nascer do sol, produzindo impresses auditivas anlogas pelo seu dinamismo a esses fenmenos. Na altura, na intensidade, na velocidade e no ritmo dos sons, oferece-se ao ouvido uma gura cuja impresso tem analogia com a impresso visual determinada, que reciprocamente podem alcanar sensaes de gnero diverso. Assim como siologicamente um sentido pode, at certo ponto, substituir outro, assim tambm existe, no plano esttico, uma certa substituio de uma impresso sensorial por outra. Visto que entre o movimento no espao e no tempo, entre a cor, a delicadeza e a grandeza de um objecto e a altura, o timbre e a intensidade de um som, impera uma analogia bem fundada, pode de facto pintar-se musicalmente um objecto mas pretender descrever com sons o "sentimento"que em ns desperta a neve que cai, o galo que canta, o ziguezague do relmpago simplesmente ridculo. Embora, se bem me lembro, todos os tericos musicais sigam e

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se baseiem tacitamente no princpio de que a msica pode representar sentimentos determinados, um sentimento correcto impede muitos deles de o reconhecerem. Perturbava-os a falta de uma especicao conceptual na msica, levando-os a modicar o princpio no sentido de que a arte sonora no tinha de suscitar e representar, porventura, sentimentos denidos, mas sim "sentimentos indeterminados". Pode assim, de modo sensato, opinar-se apenas que a msica deve conter o movimento do sentir, abstraindo do seu contedo, o sentido; ou ainda, o que denominmos o dinmico dos afectos e que cabalmente concedemos msica. Mas este elemento da arte dos sons no uma "representao de sentimentos indeterminados". Pois "representar"o "indeterminado" uma contradio. As moes anmicas enquanto movimentos em si, sem contedo, no so objecto de encarnao artstica, porque esta no pode proceder sem a pergunta: Que que se move ou movido? O que h de correcto na frase, a saber, a exigncia inversa de que a msica no deve descrever nenhum sentimento denido, um momento simplesmente negativo. Mas que o positivo, o criativo, na obra de arte musical? Um sentir indeterminado como tal no um contedo; se uma arte houver de dele se apossar, tudo depende de como ganha forma. Toda a actividade artstica consiste, porm, em individualizar ideias gerais, na concreo do denido a partir do indenido, do particular a partir do universal. A teoria dos "sentimentos indenidos"requer precisamente o contrrio. Est-se aqui numa situao ainda pior do que na primeira frase; ser preciso crer que a msica representa algo e, no entanto, ningum sabe o qu? A partir daqui muito simples o pequeno passo para o reconhecimento de que a msica no representa quaisquer sentimentos, nem determinados nem indenidos. Mas que msico desejaria abandonar este rico domnio da sua musa, conseguido por uma posse j imemorial3 s absurdos a que conduz o princpio errneo de que em cada pea musical se deve encontrar a representao de um sentimento determinado, e o princpio ainda mais falso que impe a cada gnero de formas artsticas musicais um sentimento3

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especco como contedo necessrio, podem observar-se em obras de homens to brilhantes como Mattheson. De acordo com o seu princpio - "em cada melodia, devemos estabelecer como nalidade principal uma moo anmica- ensina, no seu Vollkommener Kapellmeister (p. 230 ss.): "A paixo que se deve representar numa courante a esperana. "A sarabanda no tem de expressar nenhuma outra paixo a no ser a ambio. "No concerto grosso, domina a voluptuosidade."A chaconne deveria expressar "saciedade", e a abertura, "nobreza"? O nosso resultado d, porventura, lugar opinio de que a representao de determinados sentimentos seria um ideal da msica, que ela jamais seria capaz de todo alcanar, mas do qual poderia e deveria sempre aproximar-se mais. As mltiplas expresses engenhosas sobre a tendncia da msica para romper as barreiras da sua indeterminao e se transformar em linguagem concreta, as loas populares msica em que se percepciona ou julga percepcionar tal aspirao revelam a efectiva difuso de semelhante concepo. S que, com maior deciso ainda do que na contestao da possibilidade da representao musical dos sentimentos, temos de rejeitar a opinio de que aquela poderia alguma vez proporcionar o princpio esttico da arte sonora. O belo na msica tambm no coincidiria com a justeza da representao dos sentimentos, se esta fosse possvel. Suponhamos por um instante tal possibilidade, a m de nos convencermos no plano prtico. No podemos decerto indagar esta co na msica instrumental, a qual, por si s, impede a comprovao de determinados afectos, mas s na msica vocal, a que corresponde a acentuao de estados anmicos preestabelecidos. Aqui, as palavras que o compositor tem diante de si especicam o objecto a descrever; a msica tem o poder de o animar e comentar, de lhe emprestar em maior ou menor grau a expresso da interioridade individual. F-lo mediante a caracterstica mais exequvel do movimento e o mximo apuro do simbolismo inerente aos sons. Se aceita como ponto de vista principal o texto, e no a peculiar beleza impressa, pode

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conseguir uma alta individualizao e at a aparncia de que s ela representa efectivamente o sentimento que j surgia de modo inconfundvel nas palavras, embora ainda susceptvel de aumento. Esta tendncia obtm, no seu efeito, algo de parecido pretensa "representao de um afecto como contedo de uma pea musical determinada."No caso de a fora efectiva e a fora suposta da arte sonora serem congruentes, de a representao de sentimentos ser possvel e constituir o contedo da msica, designaramos, portanto, como mais perfeitas as composies que solucionam o problema do modo mais determinado. Mas quem no conhece obras musicais de suprema beleza sem tal contedo? Ao invs, h composies vocais que procuram retratar do modo mais exacto, dentro dos limites justamente xados, um sentimento determinado, e para as quais a verdade dessa descrio est acima de qualquer outro princpio. Um exame mais pormenorizado leva-nos ao resultado de que a adaptao inconsiderada de semelhante descrio musical est quase sempre em relao inversa com a beleza autnoma, ou seja, que a exactido declamatria dramtica e a perfeio musical s percorrem juntas a metade do caminho, separando-se em seguida. Isto manifesta-se com particular evidncia no recitativo, a forma que mais directamente e at ao acento da palavra individual se ajusta expresso declamatria, nada mais visando do que a cpia el de estados anmicos determinados, quase sempre de rpida mudana. Como verdadeira consubstanciao daquela teoria, deveria ser a msica suprema e mais perfeita; na realidade, porm, esta rebaixa-se no recitativo ao papel de serva, perde todo o signicado autnomo. Eis uma prova de que a expresso de determinados processos psquicos no coincide com a tarefa da msica, mas, em ltima instncia, se lhe ope como um obstculo. Execute-se um recitativo longo com a omisso das palavras, e pergunte-se ento pelo seu valor e signicado. Mas toda a msica deve resistir a semelhante demonstrao, se houvermos de unicamente a ela atribuir o efeito produzido. No s nos recitativos, mas tambm nas frmulas artsticas mais elevadas e completas encontraremos a mesma conrmao de que a

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beleza musical est sempre inclinada a fugir do especialmente expressivo, porque aquela exige um desdobramento independente, e este uma negao servil. Ao princpio declamatrio do recitativo corresponde o dramtico na pera. Os nais das peras de Mozart encontram-se na mais correcta consonncia com o seu texto. Quando se escutam sem este ltimo, permanecem talvez obscuras algumas passagens intermdias, mas as partes principais e o seu conjunto so em si uma msica bela. com razo e toda a gente sabe que a satisfao proporcionada das exigncias musicais e dramticas se considera como o ideal da pera. Todavia, tanto quanto sei, nunca assaz se demonstrou que a essncia da pera se transforme numa luta contnua entre o princpio da exactido dramtica e o da beleza musical, uma concesso interminvel de um ao outro. No a inconsistncia de todas as personagens actuantes cantarem que torna oscilante e difcil o princpio da pera semelhantes iluses aceita-as a fantasia com grande facilidade , mas a posio forada que obriga a msica e o texto a excessos ou concesses incessantes faz que a pera, como um Estado constitucional, se funde numa luta permanente entre dois poderes legtimos. Esta luta, em que o artista tem de fazer vencer ora este princpio, ora o outro, o ponto em que nascem todas as insucincias da pera e de que devem derivar todas as regras artsticas que pretendem estabelecer para ela algo de decisivo. Seguidos nas suas consequncias, o princpio musical e o dramtico tm necessariamente de se cruzar entre si. Mas ambas as linhas so assaz compridas para ao olho humano parecerem paralelas, ao longo de uma considervel extenso. O mesmo vale para a dana, como podemos observar em qualquer bailado. Quanto mais se afasta da rtmica bela das suas formas para se tornar expressiva com a gesticulao e a mmica, para expressar determinados pensamentos e sentimentos, tanto mais se aproxima do signicado informe da mera pantomima. A intensicao do princpio dramtico na dana transforma-se em igual medida numa leso da sua beleza plstica e rtmica. Uma pera nunca se aguenta de todo s por

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si, como um drama falado ou uma pura obra instrumental. Por isso, a ateno do genuno compositor de peras ser sempre, pelo menos, uma combinao e conciliao incessante, e jamais um predomnio relativo, por princpio, de um ou outro momento. Em caso de dvida, porm, decidir-se- pela preferncia da exigncia musical, pois a pera , em primeiro lugar, msica, e no drama. Tal pode comprovar-se facilmente na prpria inteno, muito distinta, com que se vai ver um drama, ou uma pera com o mesmo tema. A negligncia da parte musical afectar-nos- de forma muito mais sensvel4 . O maior signicado, do ponto de vista da histria da arte, da famosa disputa entre os gluckistas e os piccinistas reside, para ns, no facto de que nela se expressou, pela primeira vez de um modo pormenorizado, o conito intrnseco da pera, graas disputa entre os seus dois factores, o musical e o dramtico. certo que tal aconteceu sem que, no plano dos princpios, se tivesse conscincia cientca do incomensurvel signicado da deciso. Quem, como o escritor destas linhas, se no arrepende do esforo recompensador de recorrer s fontes dessa disputa musical5 comprovar que, na rica escala entre a grosseria e a adulao, domina toda a engenhosa habilidade esgrimista da polmica francesa, mas ao mesmo tempo percepcionar uma tal imaturidade na concepo da parte relativa aos princpios, uma tal carncia de saber profundo, que desses debates prolongados durante anos se no obteve nenhum resultado para a esttica musical. As cabeas mais privilegiadas Richard Wagner, no seu Lohengrin, segue uma tendncia especicamente dramtica, em oposio musical. Comprazer-nos-emos na acentuao brilhante da expresso e da palavra prescritas, mas no sem conhecimento de que a msica, separada do seu texto, garante uma satisfao muito menor. o que acontecer em toda a parte onde a caracterizao do individual faz explodir a grande forma. Segundo o seu princpio, inconsideradamente dramtico, Wagner deve tambm declarar o Lohengrin como a sua melhor obra. Atribuimos incondicionalmente uma posio superior ao Tannhuser, em que o compositor no atingiu ainda a ideia da beleza genuinamente musical, mas, graas a Deus, tambm ainda no a superou. 5 Os libelos mais importantes encontram-se na colectnea Mmoires pour servir lhistoire de la Rvolution opre dans la musique par Mr. le chevalier Gluck , Naples et Paris 1781.4

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Suard e Abb Arnaud, no lado de Gluck, Marmontel e La Harpe, entre os seus adversrios ultrapassaram decerto repetidamente a crtica de Gluck para elucidar o princpio dramtico da pera e a sua relao com o princpio musical; mas abordaram essa relao como uma propriedade da pera entre muitas outras, e no como o seu princpio vital mais ntimo. No tinham suspeio alguma de que da deciso dessa relao dependia a existncia inteira da pera. Surpreende ver quo perto estiveram por vezes, sobretudo os adversrios de Gluck, do ponto a partir do qual se pode abarcar e superar perfeitamente o erro do princpio dramtico. Assim, de la Harpe diz no Journal de Politique et de Litrature, de 5 de Outubro de 1777: "On objecte, quil nest pas naturel, de chanter un air de cette nature dans une situation passione, que cest un moyen darrter la scne et de nuir leffet. Je trouve ces objections absolument illusoires. Dabord, ds quon admet le chant, il faut ladmettre le plus beau possible, et il nest pas plus naturel de chanter mal, que de chanter bien. Tous les arts sont fondes sur des conventions, sur des donnes. Quand je viens lopra, cest pour entendre la musique. Je nignore pas, quAlceste ne faisait ses Adieux Admte en chantant un air; mais comme Alceste est sur le thtre pour chanter, si je retrouve sa douleur et son amour dans un air bien melodieux, je jouirai de son chant en mintrssant son infortune." [Objecta-se que no natural cantar uma ria desta natureza numa situao apaixonada, que um meio de obstruir a cena e de prejudicar o efeito. Acho que tais objeces so absolutamente ilusrias. Em primeiro lugar, desde que se admite o canto, preciso admiti-lo o mais belo possvel, e no mais natural cantar mal do que cantar bem. Todas as artes se fundam em convenes, em dados. Quando vou pera, para ouvir msica. No ignoro que Alceste nunca se despediria de Admeto cantanto uma ria; mas como Alceste est no teatro para cantar,www.lusosoa.net

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se reencontro a sua dor e o seu amor numa ria muito melodiosa, fruirei do seu canto, interessando-me pelo seu infortnio.] Dever crer-se que o prprio de la Harpe no via que se encontrava magnicamente em solo rme? Com efeito, logo a seguir, ocorre-lhe arremeter contra o dueto entre Agammnon e Aquiles na Ignia, "porque no condiz em absoluto com a dignidade desses dois heris o facto de ao mesmo tempo falarem". Abandonou e atraioou assim aquele solo rme, o princpio da beleza musical, reconhecendo tacitamente, mais ainda, de modo inconsciente, o princpio do adversrio. Quanto mais consequentemente se pretende manter puro o princpio dramtico na pera, subtraindo-lhe o sopro vital da beleza musical, tanto mais este se extingue, como uma ave sob uma campnula de vidro. H que por fora regressar ao drama puramente falado; e teremos assim, ao menos, a prova de que a pera de facto impossvel, se nela no se conceder a prioridade ao princpio musical (com plena conscincia da sua natureza adversa realidade). Na verdadeira prtica artstica, nunca se negou esta verdade, e at o dramaturgo mais severo, Gluck, estabelece a falsa teoria de que a msica operstica deveria ser apenas uma declamao sublimada; mas no exerccio e na aco irrompe, muitas vezes, a natura musical do compositor e, decerto, sempre em grande benefcio da sua obra. O mesmo se pode dizer de Richard Wagner que, construindo sobre os princpios de Gluck, poderia ter poupado a si prprio muito palavreado intil se, nos escritos da polmica musical gluckiana, se tivesse informado de quanto j h muito se falara e se levara a cabo acerca da questo. Os princpios artsticos de Richard Wagner depararam, no segundo volume da Histria da Literatura nacional alem de Julian Schmidt, com uma crtica de tal modo excelente que de bom grado nos podemos a ela referir. Para o nosso contexto, importa apenas realar com rigor que se baseia num erro o princpio fundamental de Wagner, formulado assim no primeiro tomo de pera e Drama: "O erro da pera como gnero artstico consiste em que um meio (a msica) se transforma em m, e o m (o drama), pelo contrrio,

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em meio". De facto, uma pera em que a msica se emprega sempre e apenas como meio da expresso dramtica um absurdo musical. Quanto mais de perto observamos este casamento morgantico que a beleza musical contrai com o contedo que lhe previamente determinado e prescrito, tanto mais falaz nos parece a sua indissolubilidade. Como se explica que, nos exemplos tirados de Fidlio, dos Huguenotes, etc., possamos efectuar uma pequena alterao que, no enfraquecendo no mnimo a justeza da expresso sentimental, destri, no entanto, imediatamente a beleza do motivo? Tal seria impossvel se esta ltima residisse na primeira. Como se explica que muitas peas de canto, as quais expressam de modo irrepreensvel o seu texto, nos parecem intoleravelmente ms? No possvel abord-las do ponto de vista do sentimento. Que resta, pois, como princpio do belo na arte sonora, aps termos eliminado os sentimentos como insucientes? Um elemento autnomo, de todo diverso, que de imediato queremos considerar com maior pormenor.

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CAPTULO III O belo musicalAt agora, abordmos as obras de um modo negativo e tentmos apenas rejeitar o pressuposto errneo de que o belo musical poderia consistir na representao de sentimentos. Devemos agora acrescentar o contedo positivo desse esboo, ao responder questo sobre a natureza do belo na arte sonora. algo de especicamente musical. Entendemos por ele uma beleza que, independente e no carecida de um contedo trazido de fora, radica unicamente nos sons e na sua combinao artstica. As relaes signicativas de sons, em si atractivos, a sua harmonia e contraposio, o seu fugir e o seu alcanar-se, o seu elevar-se e o seu apagar-se eis o que se apresenta nossa intuio espiritual em formas livres e o que nos agrada como formoso. O elemento originrio da msica o som agradvel, a sua essncia o ritmo. Ritmo no grande, como a consonncia de uma construo simtrica, e ritmo no pequeno, como o movimento regularmente alternado de membros separados na medida do tempo. O material de que se serve o compositor, e cuja riqueza nunca se poder supor assaz sumptuosa, so os sons no seu conjunto, com a possibilidade, neles nsita, para distintas combinaes de melodia, harmonia e ritmo. Innda e inesgotvel, domina sobretudo a melodia, como gura fundamental da beleza musical; a harmonia oferece sempre novos fundamentos com os seus milhares de possibilidades de transformao, de inverso

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e reforo; move-as a ambas concertadamente o ritmo, a artria da vida musical e d-lhes colorido o encanto de mltiplos timbres. Se agora se perguntar o que se h-de expressar com este material sonoro, a resposta reza assim: ideias musicais. Mas uma ideia musical trazida inteiramente manifestao j um belo autnomo, m em si mesmo, e de nenhum modo apenas meio ou material para a representao de sentimentos e pensamentos, embora possa possuir em alto grau aquela sugestividade simblica, reectora das grandes leis csmicas, com que deparamos em todo o belo artstico. O nico e exclusivo contedo e objecto da msica so formas sonoras em movimento. O modo como a msica nos pode proporcionar formas belas sem o contedo de um afecto determinado mostra-no-lo incisivamente j um dos ramos da ornamentao nas artes plsticas: o arabesco. Vemos linhas ondulantes, inclinando-se aqui suavemente, elevando-se alm atrevidas, encontrando-se e separando-se, correspondendo-se em arcos grandes ou pequenos, aparentemente incomensurveis, mas sempre bem articulados, saudando em toda a parte uma pea frontal ou lateral, uma coleco de pequenos pormenores e, no entanto, uma totalidade. Imaginemos agora um arabesco, no inanimado e esttico, mas surgindo aos nossos olhos em contnua autoformao. Como surpreendem sempre de novo o olho as linhas grossas e nas que se perseguem, se elevam de uma pequena curvatura a magnicente altura, recaindo em seguida, ampliando-se, contraindo-se em engenhosa alternncia de repouso e tenso! A imagem torna-se j ento mais alta e digna. Imaginemos sobretudo este arabesco vivo como evio activo de um esprito artstico, que verte incessantemente toda a plenitude da sua fantasia nas veias deste movimento: no se aproximar muito esta impresso da que prpria da msica? Cada um de ns, como criana, ter-se- deleitado no varivel jogo de cores e formas de um caleidoscpio. A msica esse caleidoscpio, mas a um nvel de manifestao innitamente mais elevado. Produz formas e cores belas em constante e progressiva alternncia, ora em

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transio suave, ora em contraste pronunciado, sempre simtricas e em si cumuladas. A diferena fundamental consiste em que semelhante caleidoscpio sonoro, apresentado ao nosso ouvido, se oferece como emanao directa de um esprito artstico criador, ao passo que o ptico surge como um engenhoso brinquedo mecnico. Quando se pretende proceder, no apenas em pensamentos mas na realidade, elevao da cor msica, e se incorporam os meios de uma arte nos efeitos da outra, chega-se ao passatempo inspido do "piano de cores"ou do "rgo ptico", cuja inveno demonstra, no entanto, que o aspecto formal de ambos os fenmenos se funda em base idntica. Se algum sensvel amador da msica achar que a nossa arte foi humilhada mediante analogias como as acima estabelecidas, replicarlhe-emos que apenas interessa se as analogias so, ou no, correctas. Nada se degrada em virtude de melhor se conhecer. Se no se conseguiu compreender a plenitude de beleza que vive no puramente musical, muita da culpa cabe depreciao do sensvel, com que deparamos em estticas mais antigas em prol da moral e do nimo, em Hegel a favor da "Ideia". Toda a arte parte do sensvel e nele se tece. A "teoria do sentimento"ignora tal, passa inteiramente por alto o ouvir e vai logo para o sentir. A msica cria para o corao, dizem eles, mas o ouvido uma coisa trivial. De acordo, quanto ao que eles chamam ouvido para o "labirinto"ou para a "trompa de Eustquio"nenhum Beethoven compe. Mas a fantasia, organizada para sensaes auditivas e para a qual o sentido signica algo de totalmente diverso de um simples funil na superfcie dos fenmenos, saboreia com consciente sensibilidade as guras sonoras, os sons que se vo estruturando, e vive livre e imediatamente na sua contemplao. Constitui uma diculdade extrema descrever o belo autnomo na arte dos sons, o especicamente musical. Como a msica no possui nenhum modelo na natureza nem expressa qualquer contedo conceptual, a ela s se pode fazer referncia com especicaes tcnicas secas ou com ces poticas. O seu reino, de facto, "no deste mundo".

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Todas as descries fantasiosas, caractersticas, parfrases de uma obra musical so guradas ou errneas. O que descrio em qualquer outra arte , na msica, j metfora. A msica pretende ser apreendida como msica, e s pode compreender-se a partir dela prpria, fruir-se em si mesma. O "especicamente musical"de nenhum modo se deve entender como simples beleza acstica ou dimenso proporcional ramos que contm em si como subordinados , e menos ainda se pode falar de um "jogo de sons que faz ccegas no ouvido"e designaes semelhantes, com que se costuma realar a falta de animao espiritual. Ao insistirmos na beleza musical, no exclumos o contedo espiritual, pelo contrrio, reclamamo-lo. Com efeito, no reconhecemos beleza alguma sem esprito. Mas, ao transferirmos o belo na msica essencialmente para as formas, insinuou-se j que o contedo espiritual se encontra na mais estreita relao com estas formas sonoras. O conceito da "forma"encontra na msica uma realizao inteiramente peculiar. As formas constitudas por sons no so vazias mas cheias, no so simples delimitao linear de um vazio, mas esprito que se congura a partir de dentro. Em face do arabesco, a msica , pois, na realidade um quadro, mas um quadro cujo objecto no podemos expressar em palavras e submeter aos nossos conceitos. Na msica, h sentido e consequncia, mas musical; uma linguagem que falamos e entendemos, mas que no somos capazes de traduzir. H um conhecimento profundo em aludir tambm a "pensamentos"nas obras sonoras e, como no falar, o juzo dextro distingue aqui facilmente pensamentos verdadeiros de simples palavrrio. Reconhecemos de igual modo o fechamento racional de um grupo de sons, ao dar-lhe o nome de "frase". que sentimos exactamente o mesmo que em qualquer perodo lgico, onde termina o seu sentido, embora a verdade de ambos se mantenha incomensurvel. O elemento satisfatoriamente racional que em si e por si pode residir nas formaes musicais funda-se em certas leis bsicas primitivas que a natureza implantou na organizao do homem e nos fenmenos sonoros externos. A lei originria da "progresso harmnica" o que,

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de preferncia, analogamente forma circular nas artes plsticas, traz em si o germe dos desenvolvimentos mais importantes e a explicao por desgraa, quase inexplicada das diferentes relaes musicais. Todos os elementos musicais se encontram entre si em conexes e anidades electivas misteriosas, fundadas em leis naturais. Estas anidades electivas, que dominam o ritmo, a melodia e a harmonia de um modo invisvel, exigem o seu cumprimento na msica humana e qualicam de arbitrria e feia toda a combinao que lhes contrria. Vivem, embora no na forma da conscincia cientca, instintivamente em todo o ouvido culto que, por conseguinte, percepciona o orgnico, o carcter racional de um grupo de sons ou o seu carcter absurdo e no natural mediante a simples contemplao, sem que um conceito lgico fornea o critrio ou o tertium comparationis. Nesta racionalidade negativa, intrnseca, que imanente ao sistema sonoro por lei natural, radica a sua ulterior capacidade para a assimilao de um contedo de beleza positivo. O compor um trabalho do esprito em material susceptvel de espiritualidade. Assim como achamos abundante este material musical, assim elstico e penetrvel ele se revela para a fantasia artstica. Esta no constri, como o arquitecto, com pedras brutas e pesadas, mas com o efeito ulterior de sons que j se desvaneceram. De natureza mais espiritual e delicada do que toda a outra matria artstica, os sons de bom grado acolhem em si qualquer ideia do artista. Visto que as combinaes sonoras, em cujas relaes se baseia o belo musical, no se conseguem mediante a justaposio mecnica, mas por meio da criao livre da fantasia, a fora espiritual e a peculiaridade dessa determinada fantasia estampam-se no seu produto como carcter. Criao de um esprito pensante e senciente, uma composio musical possui, pois, em alto grau a capacidade de ela prpria ser espiritual e sensvel. Exigiremos semelhante contedo espiritual em toda a obra de arte musical, mas no pode transferir-se para nenhum outro momento seu a no ser para as prprias formaes sonoras. A nossa opinio sobre a sede do peculiar esprito e sentimento de uma composio est para a opinio

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corrente assim como o conceito de imanncia para a transcendncia. Toda a arte tem por objectivo trazer manifestao externa uma ideia que cobrou vida na fantasia do artista. Este elemento ideal na msica sonoro, e no algo de conceptual, que importaria primeiro traduzir em sons. O ponto decisivo de que parte toda a ulterior criao de um compositor no o propsito de descrever musicalmente uma paixo, mas a inveno de uma determinada melodia. Graas ao poder primitivo e misterioso, em cuja ocina no penetra nem jamais penetrar o olho humano, ressoa no esprito do compositor um tema, um motivo. No podemos remontar alm da origem desta primeira semente, temos de aceitar isso como simples facto. Uma vez insinuado na fantasia do artista, comea o seu labor que, partindo desse tema principal e referindo-se sempre a ele, persegue o objectivo de o expor em todas as suas relaes. A beleza de um simples tema independente manifesta-se no sentimento esttico com aquela imediatidade que no suporta qualquer outra explicao a no ser, quando muito, a convenincia intrnseca do fenmeno, a harmonia das suas partes, sem referncia a um terceiro que exista no exterior. Agrada-nos em si como o arabesco e como a coluna ou como os produtos do belo natural, como a folha e a or. Nada mais errneo e frequente do que a opinio que distingue entre "msica bela"com e sem contedo espiritual. Imagina a forma artisticamente composta como algo de por si autnomo, a alma vertida nela tambm como algo de independente e, em seguida, divide consequentemente as composies em garrafas de champanhe vazias e cheias. Mas o champanhe musical tem a peculiaridade de crescer juntamente com a garrafa. Uma ideia musical determinada por si, e sem mais, engenhosa, e outra trivial; esta cadncia nal soa dignamente e, por meio da mudana de duas notas, torna-se vulgar. Designamos, com toda a razo, um tema musical como grandioso, gracioso, terno, inspido, banal; mas todas estas expresses indicam o carcter musical da passagem. Para caracterizar a expresso musical de um motivo, escolhe-

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mos amide conceitos da nossa vida anmica como: orgulhoso, malhumorado, afectuoso, esforado, anelante. Mas podemos igualmente ir buscar as designaes a outras esferas fenomnicas e falar de uma msica "aromtica, primaveril, nebulosa, gelada". Para a designao do carcter musical, os sentimentos so, pois, apenas fenmenos como outros que a tal respeito proporcionam analogias. Podem usar-se semelhantes eptetos com a conscincia da sua plasticidade, mais ainda, no possvel deles prescindir, importa apenas precaver-se de dizer: esta msica descreve o orgulho. A considerao exacta de todas as peculiaridades musicais de um tema convence-nos, porm, de que apesar de toda a insondabilidade das razes ltimas, ontolgicas existe, no entanto, um nmero de causas mais imediatas, com as quais a expresso espiritual de uma msica se encontra em exacta relao. Cada elemento musical individual (ou seja, cada intervalo, timbre, acorde, ritmo, etc.) possui a sua prpria sionomia, o seu modo determinado de actuar. O artista insondvel, a obra de arte, explorvel. O mesmo tema ressoa de modo diferente no acorde perfeito ou num acorde de sexta, um salto meldico para a stima tem um carcter inteiramente distinto do que tem para a sexta; o ritmo que acompanha um motivo, seja forte ou suave, deste ou daquele timbre, modica a sua colorao especca; em suma, todo o factor musical singular de uma passagem contribui por fora para que esta adopte justamente esta expresso espiritual, impressionando o ouvinte assim, e no de outro modo. O que torna bizarra a msica de Halvy e graciosa a de Auber, o que suscita a peculiaridade pela qual reconhecemos de imediato Mendelssohn ou Spohr, tudo isto se pode reduzir a determinaes puramente musicais, sem apelar para o enigmtico sentimento. Porque que os frequentes acordes de quinta e de sexta, os reduzidos temas diatnicos de Mendelssohn, o cromatismo e a enarmonia de Spohr, os breves ritmos bipartidos de Auber, etc., produzem precisamente esta impresso determinada, inconfundvel eis aquilo a que decerto nem a psicologia nem a siologia consegue responder.

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Mas quando se indaga a causa determinante mais prxima e o que em especial importa na arte , o efeito passional de um tema no se deve dor pretensamente excessiva do compositor, mas aos seus intervalos desmedidos, no radica no tremor da sua alma, mas no trmulo dos timbales, no na sua nostalgia, mas no cromatismo. No se deve ignorar de modo algum a conexo de ambos, pelo contrrio, h que consider-la logo com maior pormenor; h-de armar-se, porm, que investigao cientca sobre o efeito de um tema s esto imutvel e objectivamente patentes aqueles factores musicais, nunca a pretensa disposio de nimo que se apossava do compositor. Se inferirmos directamente desta para o efeito da obra, ou se explicarmos esta a partir daquela, a concluso pode talvez resultar correcta, mas saltou-se por cima do termo mdio mais importante da deduo, a saber, a prpria msica. O compositor eciente tem o conhecimento prtico do carcter de cada elemento musical, quer seja de um modo mais instintivo quer mais consciente. Mas a explicao cientca dos diversos efeitos e impresses musicais exige um conhecimento terico dos mencionados caracteres e da sua riqussima combinao at ao ltimo elemento discriminvel. A impresso denida com que uma melodia obtm poder sobre ns no apenas um "milagre misterioso, enigmtico", que s podemos "sentir e suspeitar", mas a consequncia indefectvel de factores musicais que actuam nessa combinao denida. Um ritmo conciso ou amplo, uma progresso diatnica ou cromtica tudo tem a sua sionomia caracterstica e o seu modo particular de nos impressionar; por isso, o msico culto ter uma concepo incomparavelmente mais clara da expresso de uma obra que lhe estranha, de que h nela demasiados acordes de stima diminuta e trmulos, e no a descrio potica das crises sentimentais por que o relator passou. A indagao da natureza de cada elemento musical singular, da sua relao com uma impresso determinada ( s o facto, e no o fundamento ltimo ), por m, a reduo destas observaes especiais a leis gerais: tal seria a "fundamentao losca da msica"que tantos

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autores anelam, sem nos comunicar de passagem o que por ela entendem. Mas nunca se elucida o efeito psquico e fsico de cada acorde, de cada ritmo, de cada intervalo, ao dizer-se que este vermelho, aquele verde, estoutro esperana e aqueloutro mau humor, mas apenas mediante a subsuno das propriedades musicais especcas em categorias estticas gerais, e estas num princpio supremo. Explicados assim os distintos factores individuais no seu isolamento, seria necessrio ainda demonstrar como se determinam e modicam nas mais diversas combinaes. A maior parte dos investigadores musicais atribuiu harmonia e ao acompanhamento contrapontstico uma posio preferente em relao ao contedo espiritual da composio. Mas procedeu-se com esta vindicao de um modo demasiado supercial e atomstico. Estabeleceu-se a melodia como inspirao do gnio, como portadora da sensibilidade e do sentimento ( nesta oportunidade concedeu-se aos italianos um elogio magnnimo ); em contraste com a melodia, apresentou-se a harmonia como portadora do contedo slido, como susceptvel de ser aprendida e como produto da reexo. estranho que um modo de ver to pobre tenha podido satisfazer durante tanto tempo. A ambas as armaes est subjacente algo correcto, mas elas no valem nesta generalidade nem se apresentam em tal isolamento. O esprito um s e tambm uma s a inveno musical de um artista. A melodia e a harmonia de um tema nascem simultaneamente numa mesma armadura da cabea do compositor. Nem a lei da subordinao nem a do contraste atingem a essncia da relao entre harmonia e melodia. Ambas podem aqui exercer uma fora simultnea de desdobramento e, alm, submeter-se de bom grado uma outra num e noutro caso pode conseguir-se a mxima beleza espiritual. porventura a harmonia (de todo ausente) dos motivos principais da abertura Coriolano de Beethoven, e da abertura Hbridas de Mendelssohn, o que lhes d a expresso de meditao profunda? Acrescentar-se-ia mais esprito ao tema de Rossini " Matilde"ou a uma cano popular napolitana, se a carente estrutura harmnica se substitusse por um basso continuo ou por complicadas sucesses de acordes? Esta melodia deveria conceber-

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se ao mesmo tempo com esta harmonia, com este ritmo e este timbre. O contedo espiritual s corresponde ao conjunto de todos eles, e a mutilao de um membro lesa tambm a expresso dos restantes. O predomnio da melodia, da harmonia ou do ritmo favorece o todo, e