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Onde está Dilma? A presidente perdida entre o ministério e o ajuste liberal
por Fernando de Barros e Silva
“Juntos, chegaremos lá.” Era esse o slogan da campanha de Guilherme Afif Domingos,
candidato à Presidência da República pelo então Partido Liberal em 1989. Foi o ano em
que surgiu o “Lula lá”. “Brilha uma estrela, cresce uma esperança, o Brasil criança” –
quem não se lembra? O lá chegou. Aqui estão eles, juntos.
Remanescente do primeiro mandato de Dilma Rousseff, Afif Domingos é um ministro
periférico. Mal se pode notá-lo na foto oficial do gabinete interminável da presidente
reeleita. Responsável pela pasta da Micro e Pequena Empresa, ele é tido como um
militante incansável da causa liberal, um soldado do consumidor indefeso contra a
voracidade do Estado. Voracidade, no caso, só a dele, que conseguiu a proeza de ser ao
mesmo tempo vice-governador de Geraldo Alckmin e ministro de Dilma, transformando-
se, na prática, em algo como um representante modelo flex do velho patrimonialismo,
egresso ainda por cima da escola malufista.
Gilberto Kassab entrou para a política pelas mãos de Afif. Elegeu-se vereador no início
dos anos 90 pelo mesmo PL do padrinho. Os dois foram secretários da prefeitura do
finado Celso Pitta, mais uma obra de Paulo Maluf. Kassab ainda era um profissional
obscuro da política quando José Serra o catapultou a uma altura que jamais poderia
alcançar pelas próprias pernas. São Paulo ficou sob seu comando durante mais de seis
anos. Foi a lástima que se sabe.
Quando Kassab saiu, sua popularidade estava lá embaixo, mas ele não tinha as mãos
vazias. O cargo, entre tantas oportunidades, serviu-lhe para realizar um grande negócio:
o Partido Social Democrático, que ele criou e comanda desde 2011. Tornou-se um político
de peso. Quase não tem votos, mas isso pouco importa. O PSD conseguiu eleger a quarta
maior bancada da Câmara. Resultado: o afilhado de Afif virou ministro das Cidades.
Nascido no malufismo e cevado por Serra, já os deixou para trás – seu sustento agora
está nas águas profundas do petismo. Ele também chegou lá.
O dublê de ministro e fazedor de partidos está agora empenhado em ressuscitar o PL.
Quatro anos depois de conceber e parir o PSD em tempo recorde – um partido que
segundo ele próprio não é nada, “nem de esquerda nem de centro nem de direita” –,
Kassab articula outra legenda, em estágio avançado de gestação. A intenção é cooptar
quadros da oposição e atrair políticos insatisfeitos da base governista para aumentar o
seu cacife no comércio partidário – simples assim. O DEM e o PMDB são os principais
alvos do assédio. A manobra tem a simpatia do Planalto, que vê a possibilidade de
diminuir sua dependência do partido de Eduardo Cunha – em relação ao qual Kassab e
o PSD já operam como uma espécie de medicamento genérico.
O líder ruralista Ronaldo Caiado não se conteve diante de tamanha disposição para
procriar. Com a sinceridade rude do homem do campo, o senador pelo DEM goiano
afirmou que Kassab, “em vez de se comportar como ministro, adota postura de cafetão e
acha que deputados são garotas de programa”. Quando vingar, o novo-velho Partido
Liberal será a 33ª legenda do país – uma prova viva de que na política brasileira tudo se
cria, tudo se perde e nada se transforma.
O PL desapareceu oficialmente em 2006, ano em que se fundiu ao Prona de Enéas
para dar origem ao Partido da República. Seu presidente era Valdemar Costa Neto, um
dos peixes graúdos condenados no mensalão, na cadeia até outro dia. Desde que Lula
chegou ao poder, em 2003, o PL/PR está instalado no Ministério dos Transportes.
Descobriu-se em 2011, enfim, que havia algo de podre no feudo. O ministro Alfredo
Nascimento acabou afastado por Dilma Rousseff. A crônica política, à época encantada
com a seriedade e os modos circunspectos da nova mandatária, aplaudiu nos jornais o
empenho pela ética. Dilma foi logo batizada de “faxineira” (era, em certo sentido, um
sinal de boas-vindas da elite local à empregada eficiente e discreta que chegava para
substituir aquele abusado sem educação).
O ministro caiu, mas o PR continuou lá. Quatro anos depois, eis que a presidente coroa
a pantomima da limpeza nomeando o republicano Antonio Carlos Rodrigues para o
cargo. O novo titular dos Transportes chegou ao Senado na garupa do PT, como suplente
de Marta Suplicy. Nascido em berço malufista (também ele), liderou durante anos um
agrupamento multipartidário da vereança paulistana que se intitulava Centrão Futebol
Clube. Era um time da várzea da política. Aguerrido e numeroso o bastante para negociar
o placar de cada jogo no Legislativo municipal travado contra ou a favor do governo de
turno. É essa a expertise que o craque dos Transportes agrega à seleção escalada por
Dilma Rousseff.
A trajetória desses personagens de rodapé pode parecer ociosa, mas serve, no mínimo,
para ilustrar como a política vem se remendando na prática enquanto suas lideranças, a
cada escândalo ou período eleitoral, procuram embromar a plateia com a conversa fiada
sobre a urgência de reformá-la. No que depender do governo e seus sócios, não há
reforma no horizonte. O que existe é a foto acima.
“Venceu o sistema de Babilônia e o garção de costeleta.” A fórmula de Oswald de
Andrade continua atualíssima. Kátia Abreu, em seu modelo verde-pamonha, está aí para
não deixar o modernista falar em vão. Já em seu discurso de posse, a agroministra
decretou que não existe latifúndio no Brasil. Aldo Rebelo, seu colega comunista, foi além.
O aquecimento global, segundo ele, é como o latifúndio – não existe. “Não há
comprovação científica das projeções do aquecimento global, e muito menos de que ele
estaria ocorrendo por ação do homem”, escreveu o novo ministro da Ciência e Tecnologia
em 2010, no curso de uma polêmica sobre o Código Florestal. Para não deixar dúvidas,
dizia ainda que “o chamado movimento ambientalista internacional nada mais é, em sua
essência geopolítica, que uma cabeça de ponte do imperialismo”. Entre as suas novas
atribuições, Rebelo terá que assinar os relatórios que o governo encaminha ao Painel de
Mudanças Climáticas das Nações Unidas, responsável pelo monitoramento do problema
em âmbito global. Mas podemos dormir tranquilos: tudo não passa de panfletagem a
serviço de Tio Sam e seus satélites. Sistema de Babilônia é isso.
George Hilton, por exemplo, apesar do nome, que pode evocar alguma cadeia de hotel
inspirada no federalismo americano, pertence ao Partido Republicano Brasileiro, mas
representa na verdade a bancada evangélica no governo. Foi escolhido ministro por ser
pastor da Igreja Universal. Calhou de ficar com os Esportes. Em 2005, a Polícia Federal
o flagrou com 600 mil reais em espécie no aeroporto de Belo Horizonte. Sua
familiaridade com o universo olímpico resume-se a essa modalidade de carregamento. O
feito lhe rendeu a expulsão do PFL. O STF, registre-se, depois arquivou o caso.
O Ministério da Pesca (o peixinho feio da Esplanada) foi concedido a Helder Barbalho,
filho de Jader, um dos quadros notórios do PMDB, cuja especialidade eram as rãs. A lista
de sapos do gabinete é inesgotável. Os disparates se acumulam em compromissos com o
atraso, figuras ineptas, conveniências da pior espécie – a sensação de que chegou a hora
da xepa é incontornável diante do retrato oficial do ministério. De fato, quase tudo aqui
soa como ridicularia. Mas é difícil saber o que é periférico e o que é central quando a
própria presidente dá a impressão de habitar o escalão inferior de seu governo.
Dilma não formou uma equipe; parece, antes, conformada (ou deformada) por ela.
Cercada de amigos da onça por todos os lados, provavelmente nunca esteve tão só. Em
artigo para a Folha, o cientista político André Singer escreveu, ainda sob o primeiro
impacto da divulgação do ministério: “A presidente parece uma personagem de Kafka,
condenada a cumprir papel que sabe não ter sentido.” A questão talvez seja saber se
Dilma ainda tem alguma noção de seu papel – e qual é ele.
As concessões aos partidos que parasitam o Estado se explicariam pela necessidade de
criar um cordão político capaz de preservar a presidente o mais distante possível do
escândalo do petrolão. O ministério é uma estrutura montada em boa medida para
resolver as demandas do próprio governo, e não para enfrentar problemas do país.
Quanto mais vulnerável for a presa, no caso Dilma, maior é a ousadia dos predadores. É
assim que funciona. E todos, inclusive os predadores, estão sob ameaça. Em parte porque
o ecossistema alimentado pelo lulismo chegou ao limite de sua capacidade. Em parte,
também, porque há muita gente aliada ao governo implicada na pilhagem bilionária da
Petrobras. O cerco vai apertar, todos sabem.
A hostilidade aberta que Dilma enfrenta dentro do próprio PT é inédita. Em direções
opostas, contra e a favor da nova política econômica, gente como José Dirceu e Marta
Suplicy cospem fogo na presidente. Alguém dirá que o primeiro é um condenado pela
Justiça e a segunda é uma estrela cadente no céu do petismo. Tudo bem. Mas se o
presidente fosse Lula seria impensável ouvir da boca de figuras como eles (ou de peso
político equiparável) a décima parte do que disseram.
Dilma entrincheirou-se no Planalto com sua patota do PT gaúcho, à qual se junta Aloizio
Mercadante, o cavaleiro do bigode solitário. Ao contrário do que se disse, ao expelir do
núcleo físico do poder os remanescentes do lulismo e transplantar a sua aldeia gaulesa
dos pampas para Brasília, Dilma paradoxalmente reforça a sensação de acuamento. Eles
de fato estão em minoria no PT e não há poção mágica de João Santana capaz de dar
conta do recado. O constrangimento e a tensão da presidente, sua dificuldade de elocução
na primeira reunião ministerial, mesmo no ambiente controlado de um pronunciamento
oficial, foram muito mais significativos do momento atual do que as palavras
burocráticas e ocas que ela conseguiu proferir diante de uma plateia igualmente
desconfortável.
O maior incômodo de Dilma, entre tantos, está na percepção generalizada de que virou
coadjuvante do ministro da Fazenda. Ou, talvez, menos do que isso, personagem
secundária, cuja principal qualidade seria justamente a de não interferir onde não é
chamada. O regozijo diante da rendição da petista, até anteontem estatólatra, ao
programa liberal do candidato tucano, de quem Joaquim Levy era colaborador, está
estampado diariamente nos jornais. Revive-se em certa medida a fantasia da faxina de
2011, agora em relação ao saneamento da economia.
E assim o estranho no ninho petista se vê convertido em dono do ninho. Apontado pela
gerente-geral do FMI como um perfeito Davos man, Joaquim Levy arrancou suspiros
aliviados da seleta plateia dos Alpes suíços ao frisar que sua missão é “restaurar a
confiança” no Brasil. Confiança – nem foi preciso dizê-lo – que a política econômica
ruinosa sustentada na marra pela presidente durante o primeiro mandato tratou de
destruir. Ela foi inclusive orientada a não ir a Davos. Para não atrapalhar os negócios,
bem entendido.
Enquanto Levy falava ao PIB global, Dilma também enfrentava o ar rarefeito das grandes
altitudes, mas em La Paz, onde prestigiou a posse do terceiro mandato de Evo Morales.
“Na Bolívia, não mandam os Chicago Boys”, disse o líder bolivariano, punhos cerrados
ao lado da presidenta. O Brasil está entregue a um deles, justamente. Afinal, aqui
também a candidata de esquerda venceu a eleição, e fazendo da luta de classes o seu mote
principal.
O novo operador das finanças brilha por contraste. É uma espécie de liberal no
zoológico. Experimenta mais uma vez o sucesso que teve na gestão austera de Sérgio
Cabral, o homem do guardanapo. O salvador da pátria está, na verdade, mais para
funileiro ou síndico de falências: seu trabalho lembra o daqueles profissionais que
recebem a carcaça de empresas quebradas e as remodelam para torná-las novamente
atraentes ao mercado. Às vezes, quando é possível, recupera-se a massa falida. Outras
vezes o melhor a fazer é negociar as partes desmembradas do monstrengo.
Quando iniciou, em 2003, seu ajuste fiscal, um dos mais severos da história brasileira,
Lula tinha muito cacife político. O mensalão não existia, ele contava com enorme
respaldo social e acreditava, além disso, na necessidade do que fazia. Joaquim Levy, o
Mão de Tesoura, à época pertencia ao segundo escalão – era só um Palocci boy.
Dilma não tem quase nenhum cacife político. O PT é um partido coberto de óleo,
moralmente corrompido. A presidente não tem nenhuma convicção de suas ações,
entrou à força num enredo que não sabe representar. E Joaquim Levy virou galã. Tudo,
no ajuste atual, lembra um filme B, uma versão degradada do original.
Recessão, apagão, falta d’água, Lava Jato – difícil, por ora, diante do caldo social que
engrossa a cada dia, acreditar que a presidente terá condições de evitar o desmanche em
curso. Saberemos melhor quando chegar a hora da revenda do país, em 2018. Talvez
antes.