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    ColeoEducao: Experincia e Sentido

    Jacques Rancire

    O mestre ignoranteCinco liessobre a emancipao intelectual

    Traduo

    Lilian do Valle

    a

    AutnticaBelo Horizonte

    2002

    O mestre ignoranteCinco liessobre a emancipao intelectual

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    "Le Maitre Ignorant" de Jacques Rancire

    Word copyright Librairie Artheme Fayard, 1987

    Projeto grfico da capaJairoAlvarenga Fonseca

    (Sobre O Nalrio rie Nice(1919), Amedeo Modigliani)

    Coordenadores da coleoJorge CarraraWalterKohan

    RevisoFnck Ramalho

    Rancire, Jacques

    R185m C) mestre ignorante - cinco lies sobre a emancipao

    intelectual/Jacques Rancire; traduo de Lilian do Valle-

    Belo Horizonte : Autntica, 2002.

    144p. (Educao: Experincia e Sentido, 1)

    ISBN 85-7526-045-6

    1. Filosofia da educao. I. Valle, Lilian do. II. Ttulo.III Srie.

    2002

    Todos os direitos no Brasil reservados pela Autntica Editora.

    Nenhuma parte desta publicao poder ser reproduzida,seja por meios mecnicos, eletrnicos, seja via cpia xerogrfica

    sem a autorizao prvia da editora.

    .0;al~

    CDU 37.01

    Autntica Editora

    Ru aJanuria, 437 - Floresta31110-060 - Belo Horizonte - MG

    PABX: (55 31) 3423 3022 - TELEVENDAS: 0800 2831322

    www.autenticaeditora.com.br

    e-mail autentica~rilautenticaeditora.com.br

    APRESENTAO DA COLEO

    Aexperincia, e no a verdade, o que d sentido escritura.

    Digamos, com Foucault, que escrevemospara transformar o que sabe-

    mos e nopara transmitir o j sabido. Se alguma coisa nos anima a

    escrever a possibilidade de que esse ato de escritura, essa experin-

    cia em palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a

    deixarmos de ser o que somos para ser outra coisa, diferentes do que

    vimos sendo.

    Tambm a experincia, e no a verdade, o que d sentido edu-

    cao. Educamosparatransformar o que sabemos, no para transmitir o

    jsabido. Se alguma coisa nos anima a educar a possibilidade de que

    esse ato de educao, essa experincia em gestos, nos permita liberar-

    nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos,para

    ser outra coisaparaalm do que vimos sendo.

    A coleo Educao: Experincia e Sentido prope-se a tes-

    temunhar experincias de escrever na educao, de educar na es-

    critura. Essa coleo no animada por nenhum propsito revela-

    dor, convertedor ou doutrinrio: definitivamente, nada a revelar,

    ningum a converter, nenhuma doutrina a transmitir. Trata-se de

    apresentar uma escritura que permita que enfim nos livremos das

    verdades pelas quais educamos, nas quais nos educamos. Quem

    sabe assim possamos ampliar nossa liberdade de pensar a educao

    e de nos pensarmos a ns prprios, como educadores. O leitor po-

    der concluir que, se a filosofia umgesto que afirma sem conces-

    ses a liberdade do pensar, ento esta uma coleo de filosofia daeducao. Qui os sentidos que povoam os textos de Educao:

    Experincia e Sentido possam testemunh-Io.

    Jorge Larrosa e Walter Kohan*

    Coordenadores da Coleo

    * Jorge Lanosa Professor de Teoria e Histria da Educao da Universidade deBarcelona e Walter Kohan 'Professor Titular de Filosofia da Educao da UERJ.

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    NDICE

    9 Prefcio edio brasileiraJacques Rancire

    15 Unia aventura intelectual

    Aordem explicadora, 17 O acaso e a vontade, 21 O

    mestre emancipador, 25 O crculo dapotncia, 27 .

    31 A lio do ignorante

    Ailhado livro, 32 Calipso e o serralheiro, 36O mes-

    tre e Scrates, 40O poder do ignorante, 42 Os negcios de

    cada um, 44 O cego e seu co, 49 Tudo est em tudo, 52.

    55 A razo dos iguais

    Crebros e folhas, 56 Um animal atento, 59 Uma von-

    tade servida por uma inteligncia, 64 O princpio da veraci-

    dade, 66 A razo e a lngua, 69 Eu tambm sou pintor, 74

    A lio dos poetas, 76 A comunidade dos iguais, 80.

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    83 Asociedade do desprezo

    As leis da gravidade , 84 A paixo da desigualdade, 88

    A loucura retrica, 91 Os inferiores superiores, 94 O rei

    filsofo e o povo soberano, 97 Como desrazoar razoavel-

    mente, 99 A palavra no Aventino, 104.

    107 Oemancipador e suas imitaes

    O mtodo emancipador e o mtodo socia], 1 08 Eman-

    cipao dos homens e instruo do povo, 1 1 1 O s homens doprogresso, 114 D e carneiros e homens, 118 O crculo dosprogressistas, 122 Sobre a cabea do povo, 127 O triunfo

    do Velho, 1 32 A sociedadepedagogizada, 135 Os contosda panecstica, 139 0 tmulo da emancipao, 14 3.

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    PREFCIO EDIO BRASILEIRA

    Qual o sentido de propor ao leitor brasileiro deste incio de

    terceiro milnio a histria de Joseph Jacotot seja, em aparncia, a

    histria de um extravagante pedagogo francs dos incios do sculo

    XIX? Mas haveria, j, qualquer sentido em prop-la, quinze anos

    mais cedo, aos cidados da Frana apesar de tudo, supostamente

    apaixonada por tudo quanto antigidade nacional?

    A histria da pedag

    ogia decerto conhece suas extravagncias. E, estas, por tanto

    quanto se devem prpria estranheza da relao pedaggica, foram

    freqentemente mais instrutivas do que as proposies mais racionais.

    No entanto, no caso deJoseph Jacotot, o que est em jogo bem mais

    do que apenas um artigo, entre tantos, no grande museu de curiosida-

    des pedaggicas. Pois trata-se, aqui, de uma voz solitria que, em um

    momento vital da constituio dos ideais, das prticas e das institui-

    es que ainda governam nosso presente, ergueu-se como uma disso-

    nncia inaudita como uma dessas dissonncias a partir das quais no

    se pode mais construir qualquer harmonia da instituio pedaggica e

    que, portanto, preciso esquecer, para poder continuar a edificar esco-

    las, programas e pedagogias, mas, tambm, como uma dessas disso-

    nncias que, em certos momentos, talvez seja preciso escutar ainda,

    para que o ato de ensinar jamais perca inteiramente a conscincia dos

    paradoxos que lhe fornecem sentido.

    Revolucionrio na Frana de 1789, exilado nos Pases Baixos

    quando da restaurao da monarquia, Joseph Jacotot foi levado atomar a palavra no exato momento em que se instala toda uma lgica

    de pensamento que poderia ser assim resumida: acabar a revoluo,

    no duplo sentido da palavra: por um termo em suas desordens, reali-

    zando a necessria transformao das instituies e mentalidades de

    que foi a encarnao antecipada e fantasmtica; passar da fase das

    febres igualitrias e das desordens revolucionrias constituio de

    uma nova ordem de sociedades e governos que conciliasse o pro-

    gresso, sem o qual as sociedades perdem o el, e a ordem, sem a qual

    elas se precipitam de crise em crise. Quem pretende conciliar ordem

    9

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    COLPO "Eooc+rno: EXPERT NC E SE, DO"

    e progresso encontra naturalmente seu modelo em uma instituioque simboliza sua unio: a instituio pedaggica, lugar material e

    simblico onde o exerccio da autoridade e a submisso dos sujei-

    tos no tm outro objetivo alm da progresso destes sujeitos, at oli mite de suas capacidades; o conhecimento das matrias do progra-

    ma para a maioria, a capacidade de se tornar mestre, por sua vez,para os melhores.

    Nesta perspectiva, o que deveria, portanto, arrematar a era das

    revolues era a sociedade da ordem progressiva: a ordem idntica autoridade dos que sabem sobre os que ignoram, ordem votada a redu-

    zirtanto quanto possvela distncia entre os primeiros e os segundos.

    Na Frana dos anos 1830, isto , no pas que havia feito a experincia

    mais radical da Revoluo e que, assim, se acreditava chamada porexcelncia a completar esta revoluo, por meio da instituio de uma

    ordem moderna razovel, a instruo tornava-se uma palavra de or-

    dem central: governo da sociedade pelos cidados instrudos e forma-

    o das elites, mas tambm desenvolvimento de formas de instruodestinadas a fornecer aos homens do povo conhecimentos necess-

    rios e suficientes para que pudessem, a seu ritmo, superar a distn-

    cia que os impedia de se integrarem pacificamente na ordem das

    sociedades fundadas sobre as luzes da cincia e do bom governo.

    Fazendo passar os conhecimentos que possui para o crebro

    daqueles que os ignoram. segundo uma sbia progresso adaptada

    ao nvel das inteligncias limitadas, o mestre era, ao mesmo tempo,

    um paradigma filosfico e o agente prtico da entrada do povo na

    sociedade e na ordem governamental modernas. Esse paradigma pode

    servir para pedagogos mais ou menos rgidos, ou para liberais. Mas

    estas diferenas no desmerecem em nada a lgica do conjunto do

    modelo, que atribui ao ensino a tarefa de reduzir tanto quanto poss-

    vel a desigualdade social. reduzindo a distncia entre os ignorantes eo saber. Foi sobre esta questo, exatamente, que Jacototfezescutar.para seu tempo e para o nosso, sua nota absolutamente dissonante.

    Ele preveniu: a distncia que a Escola c a sociedade pedagogi-

    zada pretendem reduzir aquela de que vivem e que no cessam dereproduzir. Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingi-do, a partir da situao de desigualdade, de fato a posterga at o

    infinito. A igualdade jamais vem aps, como resultado a ser atingi-

    10

    Prefcio

    do. Ela deve sempre ser colocada antes. A prpria desigualdade

    social j a supe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeira-

    mente. compreender a ordem dada e, em seguida, compreender que

    deve obedec-la. Deve, portanto, serj igual a seu mestre, para sub-

    meter-se a ele. No h ignorante que no saiba uma infinidade de

    coisas, e sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo

    ensino deve se fundar. Instruirpode, portanto, significar duas coisasabsolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo prprio

    ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forar uma capacidade

    que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as

    conseqncias desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se em-

    brutecimento e o segundo, emancipao. No alvorecer da marcha

    triunfal do progresso para a instruo do povo, Jacotot fez ouvir esta

    declarao estarrecedora: esse progresso e essa instruo so a eter-nizao da desigualdade. Os amigos da igualdade no tm que ins-

    truir o povo, para aproxim-lo da igualdade, eles tm que emancipar

    as inteligncias, tm que obrigar a quem quer que seja a verificar aigualdade de inteligncias.

    No se trata dc uma questo de mtodo, no sentido de formas

    particulares de aprendizagem, trata-se de uma questo propriamente

    filosfica: saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre a

    palavra do outro um testemunho de igualdade ou de desigualda-

    de. uma questo poltica: saber se o sistema de ensino tem por

    pressuposto unia desigualdade a ser "reduzida" , ou uma igualdade a

    ser verificada. por isto que o discurso de Jacotot o mais atual

    possvel. Se acreditei dever faz-lo ouvir ainda na Frana dos anos

    80, porque me pareceu que ele era o nico que poderia libertar a

    reflexo sobre a Escola do debate interminvel entre duas grandesestratgias de "reduo das desigualdades" . De um lado, a chega-

    da ao poder do Partido Socialista havia inscrito na ordem do dia as

    proposies da sociologia progressista que a obra de PierreBour-

    dieu, em particular, encarnava. Esta obra, como se sabe, instalava

    no mago da desigualdade escolar a violncia simblica imposta

    por todas as regras tcitas do jogo cultural, que asseguram a repro-

    duo dos "herdeiros " e a auto-eliminao dos filhos das classes

    populares. Mas ela retira dessa situao, c segundo a prpria lgi-ca do progressivismo, duas conseqncias contraditrias. Por um lado,

    t t

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    ColEDAO "EDUCAC.O: EXPERIENCInE SENTIDO"

    ela prope a reduo da desigualdade pela explicitao das regras dojogo e pela racionalizao das formas de aprendizagem. De outro,

    ela enuncia implicitamente a vanidade de qualquer reforma, fazendo

    dessa violncia simblica um processo que reproduz indefinidamente

    suas prprias condies de existncia. Os reformistas governamen-

    tais no esto, porm, muito interessados nesta duplicidade prpria

    a toda pedagogia progressista. Da sociologia de Pierre Bourdieu,

    eles extraram, portanto, um programa que visava reduzir as desi-

    gualdades da Escola, reduzindo a parte que cabia grande cultura

    legtima, tornando-a mais convivial, mais adaptada s sociabilida-

    des das crianas das camadas desfavorecidas, isto , essencial-

    mente, dos filhos de emigrantes. Este sociologismo restrito no fa-

    zia, infelizmente, seno afirmar melhor o pressuposto central do

    progressivismo, que determina que aquele que sabe se faa "aces-

    svel" aos desiguais confirmando, desta forma, a desigualdade

    presente, em nome da igualdade futura.

    Eis porque ele deveria rapidamente suscitar uma reao con-trria.Na Frana, a ideologia dita republicana reagiu prontamente,

    denunciando esses mtodos que, adaptados aos pobres, no podem

    ser jamais seno mtodos de pobres e que comeam por mergulhar

    os "dominados" na situao de que se tenta retir-los. Para essa ide-

    ologia, o poder da igualdade residia, ao contrrio, na universalidade

    de um saber igualmente distribudo a todos, sem consideraes deorigem social, em uma Escola bem separada da sociedade. Entre-

    tanto, o saber no comporta, por si s, qualquer conseqncia igua-

    litria. A lgica da Escola republicana de promoo da igualdade

    pela distribuio do universal do saber faz-se sempre, ela prpria,

    prisioneira do paradigma pedaggico que reconstitui indefinidamen-te a desigualdade que pretende suprimir. A pedagogia tradicional da

    transmisso neutra do saber, tanto quanto as pedagogias modernistas

    do saber adaptado ao estado da sociedade mantm-se de um mesmo

    lado, em relao alternativa colocada por Jacotot. Todas as duas

    tomam a igualdade como objetivo, isto , elas tomam a desigualdade

    como ponto de partida.

    As duas esto, sobretudo, presas no crculo da sociedade peda-

    gogizada. Elas atribuem Escola o poder fantasmtico de realizar aigualdade social ou, ao menos, de reduzir a "fratura social" . Mas

    12

    Prefcio

    este fantasma repousa, ele prprio, sobre uma viso da sociedade em

    que a desigualdade assimilada situao das crianas com retardo.

    As sociedades do tempo de Jacotot confessavam a desigualdade e a

    diviso de classes. A instruo era, para elas, um meio de instituiralgumas mediaes entre o alto e o baixo: um meio de conceder aos

    pobres a possibilidade de melhorar individualmente sua condio ede dar a todos o sentimento de pertencer, cada um em seu lugar, a

    uma mesma comunidade. Nossas sociedades esto muito longe desta

    franqueza. Elas se representam como sociedades homogneas, em

    que o ritmo vivo e comum da multiplicao das mercadorias e das

    trocas anulou as velhas divises de classes e fez com que todos par-

    ticipassem das mesmas fruies e liberdades. No mais proletrios,

    apenas recm-chegados que ainda no entraram no ritmo da moder-

    nidade, ou atrasados que, ao contrrio, no souberam se adaptar s

    aceleraes desse ritmo. A sociedade se representa, assim, como uma

    vasta escola que tem seus selvagens a civilizar e seus alunos em difi-

    culdade a recuperar. Nestas condies, a instruo escolar cada vezmais encarregada da tarefa fantasmtica de superar a distncia entre a

    igualdade de condies proclamada e a desigualdade existente, cada

    vez mais instada a reduzir as desigualdades tidas como residuais. Mas

    a tarefa ltima desse sobre-investimento pedaggico , finalmente, le-

    gitimar a viso oligrquica de uma sociedade-escola em que o governo

    no mais do que a autoridade dos melhores da turma. A estes "me-lhores da turma" que nos governam oferecida ento, mais uma vez,

    a antiga alternativa: uns lhes pedem que se adaptem, atravs de uma

    boa pedagogia comunicativa, s inteligncias modestas e aos proble-

    mas cotidianos dos menos dotados que somos; outros lhes requerem,ao contrrio, administrar, a partir da distncia indispensvel a qual-

    quer boa progresso da classe, os interesses da comunidade.

    Era bem isto que Jacotot tinha em mente: a maneira pela qual a

    Escola e a sociedade infinitamente se simbolizam uma outra, re-

    produzindo assim indefinidamente o pressuposto desigualitrio, em

    sua prpria denegao. No que ele estivesse animado pela perspec-

    tiva de uma revoluo social. Sua lio pessimista era, ao contrrio,

    que o axioma igualitrio no tem efeitos sobre a ordem social. Mes-

    mo que, em ltima instncia, a igualdade fundasse a desigualdade,

    ela no podia se atualizar seno individualmente, na emancipao

    1 3

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    COLEO "Eooc+~o: ERRERifNCA E SEa,IO"

    intelectual que deveria devolver a cada um a igualdade que a ordem

    social lhe havia recusado, e lhe recusaria sempre, por sua prprianatureza. Mas esse pessimismo tambm tinha seu mrito: ele marca-

    va a natureza paradoxal da igualdade. ao mesmo tempo princpio

    ltimo de toda ordem social e governamental, e excluda de seu fun-

    cionamento "normal". Colocando a igualdade fora do alcance dospedagogos do progresso, ele a colocava, tambm, fora do alcance

    das mediocridades liberais e dos debates s uperficiais entre aqueles

    que a fazem consistirem formas constitucionais e em hbitos da so-

    ciedade. A igualdade, ensinava Jacotot, no nem formal nem real.Ela no consiste nem no ensino uniforme de crianas da repblica

    nem na disponibilidade dos produtos de baixo preo nas estantes de

    supermercados. A igualdade fundamental e ausente, ela atual e

    intempestiva, sempre dependendo da iniciativa de indivduos e gru-

    pos que, contra o curso natural das coisas, assumem o risco de veri-

    fca-la, de inventaras formas, individuais ou coletivas, de sua verifi-

    cao. Essa lio, ela tambm, mais do que nunca atual.

    Jacques Rancire

    Maio de 2002

    CAPTULO PRIMEIRO

    Umaaventura intelectual

    No ano de 1 818, Joseph Jacotot, leitor de literatura francesana Universidade de Louvain, viveu uma aventura intelectual.

    Uma longa e movimentada carr eiradeveria, no entanto, t-lo res-

    guardado das surpresas: dezenove anos, comemorados em 1789. Ele,ento, ensinava Retrica em Dijon e se preparava para o ofcio deadvogado. Em 1792, havia servido como artilheiro nas tropas da Re-

    pblica. Em seguida, a Conveno o teve, sucessivamente, como ins-

    trutor na Seo das Plvoras, Secretrio do Ministro da Guerra e subs-

    tituto do Diretor da Escola Politcnica. De retorno a Dijon. ele havia

    ensinado Anlise, Ideologia e Lnguas Antigas, Matemticas Puras e

    Transcendentes e Direito. Em maro de 1815, a estima de seus compa-

    triotas o havia tornado, sua revelia, deputado. A volta dos Bourbons

    o conduzira ao exlio, onde obtivera da liberalidade do rei dos Pases-

    Baixos o posto de professor em meio perodo. Joseph Jacotot conhecia

    as leis da hospitalidade e contava passar, em Louvain, dias tranqilos.

    Mas o acaso decidiu outra coisa. Com efeito, ss lies do mo-

    desto leitor acorreram rapidamente os estudantes. E, entre aqueles que

    se dispuseram a delas bencliciar-se, um bom nmero ignorava o fran-

    cs. Joseph Jacotot, por sua vez, ignorava totalmente o holands. Noexistia, portanto, lngua na qual pudesse instru-los naquilo que lhe

    solicitavam. Apesar disso, ele quis responder s suas expectativas.

    Para tanto, era preciso estabelecer, entre eles, o lao mnimo de uma

    coisa comum. Ora, publicara-se em Bruxelas, naquela poca, umaedio hilnge do Telmaco: estava encontrada a coisa comum e,

    15

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    CQ!ECAC "EoVCACUO- EXPERIENCIA E SfNiIDO "

    Um a aventura intelectual

    dessa forma, Telmaco entrou na vida deJoseph Jacotot. Por meio

    de um intrprete, ele indicou a obra aos estudantes e lhes solicitou

    que aprendessem, amparados pela traduo, o texto francs. Quando

    eles haviam atingido a metade do livro primeiro, mandou dizer-lhes

    que repetissem sem pararo que haviam aprendido e, quanto ao resto,

    que se contentassem em l-lo para poder narr-lo. Era uma soluode improviso, mas tambm, em pequena escala, uma experincia fi-

    losfica, no gosto daquelas to apreciadas no Sculo das Luzes. E

    Joseph Jacotot, em 1818, permanecia um homem do sculo passado.

    No entanto, a experincia superou suas expectativas. Ele soli-

    citaraaos estudantes assim preparados que escrevessem em francs

    o que pensavam de tudo quanto haviam lido. "Ele estava esperando

    por terrveis barbarismos ou, mesmo, por uma impotncia absoluta.

    Como, de fato, poderiam todos esses jovens, privados de explica-

    es, compreender e resolver dificuldades de uma lngua nova para

    eles? De toda forma, era preciso verificar at onde esse novo cami-

    nho, aberto por acaso, os havia conduzido e quais os resultados des-se empirismo desesperado. Mas, qual no foi sua surpresa quando

    descobriu que seus alunos, abandonados a si mesmos, se haviam

    sado to bem dessa difcil situao quanto o fariam muitos france-

    ses!No seria, pois, preciso mais do que querer, para poder? Todos

    os homens seriam, pois, virtualmente capazes de compreender o que

    outros haviam feito e compreendido?"'

    Tal foi a revoluo que essa experincia do acaso provocou em

    seu esprito. At ali, ele havia acreditado no que acreditam todos os

    professores conscienciosos: que a grande tarefa do mestre transmitir

    seus conhecimentos aos alunos, para elev-los gradativamente sua

    prpria cincia. Como eles, sabia que no se tratava de entupir os alu-nos de conhecimentos, fazendo-os repetir como papagaios, mas, tam-

    bm, que preciso evitar esses caminhos do acaso, onde se perdem

    os espritos ainda incapazes de distinguir o essencial do acessrio;

    e o princpio da conseqncia. Em suma, o ato essencial do mestre

    era explicar, destacar os elementos simples dos conhecimentos e

    ' Flix e Victor Ratier, "Enseignement universel. Emancipation intellectuelle",

    Journal dephilosophie pansa tique, 1838, p. 155.

    harmonizar sua simplicidade de princpio com a simplicidade de fato,

    que caracteriza os espritos jovens e ignorantes. Ensinar era, em um

    mesmo movimento, transmitir conhecimentos e formar os espritos,

    levando-os, segundo uma progresso ordenada, do simples ao com-

    plexo. Assim progredia o aluno, na apropriao racional do saber e na

    formao do julgamento e do gosto. at onde sua destinao social o

    requeria, preparando-se para dar sua educao uso compatvel com

    essa destinao: ensinar, advogar ou governar para as elites; conceber,

    desenhar ou fabricar instrumentos e mquinas para as novas vanguar-

    das que se buscavam, agora, arrancar da elite do povo; fazer, na carrei-

    ra das cincias, novas descobertas para os espritos dotados desse g-

    nio particular. Sem dvida, o procedimento desses homens de cincia

    divergia sensivelmente da ordem razoada dos pedagogos. Mas no se

    extraa da qualquer argumento contra essa ordem. Ao contrrio, pre-

    ciso haver adquirido, inicialmente, uma formao slida e metdica,

    para dar vazo s singularidades do gnio.Post hoc, ergo propter hoc.

    Assim raciocinam todos os professores conscienciosos. Assim

    havia raciocinado e agidoJoseph Jacotot, em trinta anos de oficio.

    Porm, eis que um gro de areia vinha, fortuitamente, se introduzir na

    engrenagem. Ele no havia dado a seus "alunos" nenhuma explicao

    sobre os primeiros elementos da lngua. Ele no lhes havia explicado a

    ortografia e as conjugaes. Sozinhos, eles haviam buscado as pala-

    vras francesas correspondentes quelas que conheciam, e as razes de

    suas desinncias. Sozinhos eles haviam aprendido acombin-Ias, para

    fazer, por sua vez, frases francesas: frases cuja ortografia e gramtica

    tornavam-se cada vez mais exatas, medida em que avanavam na

    leitura do livro; mas, sobretudo, frases de escritores, e no de inician-

    tes. Seriam, pois, suprfluas as explicaes do mestre? Ou, se no oeram, para que e para quem teriam, ento, utilidade?

    A ordem explicadora

    Uma sbita iluminao tornou, assim, brutalmente ntida, noesprito deJoseph Jacotot, essa cega evidncia de todo o sistema de

    ensino: a necessidade de explicaes. No entanto, o que haveria demais seguro do que essa evidncia? Ningum nunca sabe, de fato, o

    16

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    CO,ECAO "EDUCAO: EAFEAINCN fSErvDO"

    que compreendeu. E, para que compreenda, preciso que algum

    lhe tenha dado uma explicao, quea palavra do mestre tenha rompi-

    do o mutismo da matria ensinada.

    Essa lgica no deixa, entretanto, de comportar certa obscuri-

    dade. Eis, por exemplo, um livro entre as mos do aluno. Esse livro

    composto de um conjunto de raciocnios destinados a fazer o alunocompreender uma matria. Mas, eis que, agora, o mestre toma a pa-

    lavra para explicar o livro. Ele faz um conjunto de raciocnios para

    explicar o conjunto de raciocnios em que o livro se constitui. Mas,por que teria o livro necessidade de tal assistncia? Ao invs de pa-

    gar um explicador, o pai de familia no poderia, simplesmente, dar olivro a seu filho, no poderia este compreender, diretamente, os racio-

    cnios do livro? E, caso no o fizesse, por que, ento, compreenderia

    melhor os raciocnios que lhe explicaro aquilo que no compreen-

    deu? Teriam esses ltimos uma natureza diferente? E no seria ne-

    cessrio, nesse caso, explicar, ainda, a forma de compreend-los?

    A lgica da explicao comporta, assim, o princpio de umaregresso ao infinito: a reduplicao das razes no tem jamais razo

    de se deter. O que detm a regresso e concede ao sistema seu funda-

    mento , simplesmente, que o explicador o nicojuiz do ponto em

    que a explicao est, ela prpria, explicada. Ele o nicojuiz dessa

    questo, em si mesma vertiginosa: teria o aluno compreendido os

    raciocnios que lhe ensinam a compreender os raciocnios? a que

    o mestre supera o pai de famlia: como poderia esse ltimo assegu-rar-se de que seu filho compreendeu os raciocnios do livro? O que

    falta ao pai de famlia, o que sempre faltar ao trio que forma com a

    criana e o livro, essa arte singular do explicador: a arte da distn-cia. O segredo do mestre saber reconhecer a distncia entre a mat-

    ria ensinada e o sujeito a instruir, a distncia, tambm, entre apren-der e compreender. O explicador aquele que impe e abole a

    distncia, que a desdobra e que a reabsorve no seio de sua palavra.

    Esse statusprivilegiado da palavra no suprime a regresso aoinfinito, seno para instituir unia hierarquia paradoxal. Na ordem do

    explicador, com efeito, preciso uma explicao oral para explicar a

    explicao escrita. Isso supe que os raciocnios so mais claros

    imprimem-se melhor no esprito do aluno quando veiculados pela

    palavra do mestre, que se dissipa no instante, do que no livro, onde esto

    1x

    Uma aventura intelectual

    inscritas para sempre em caracteres indelveis. Como entender esse pri-

    vilgio paradoxal da palavra sobre a escrita, do ouvido sobre a vista?

    Que relao existiria, pois, entre o poder da palavra e o do mestre?

    Mas, a esse paradoxo logo segue-se outro: as palavras que a

    criana aprende melhor, aquelas em cujo sentido ela penetra mais fa-

    cilmente, de que se apropria melhor para seu prprio uso, so as queaprende sem mestre explicador, antes de qualquer mestre explicador.

    No rendimento desigual das diversas aprendizagens intelectuais, o que

    todos os filhos dos homens aprendem melhor o que nenhum mestre

    lhes pode explicar a lngua materna. Fala-se a eles, e fala-se em torno

    deles. Eles escutam e retm, imitam e repetem, erram e se corrigem,

    acertam por acaso e recomeam por mtodo, e, em idade muito tenra

    para que os explicadores possam realizar sua instruo, so capazes,

    quase todos qualquer que seja seu sexo, condio social e cor de pele

    de compreender e de falar a lngua de seus pais.

    E, ento, essa criana que aprendeu a falar por sua prpria inte-

    ligncia e por intermdio de mestres que no lhe explicam a lngua,

    comea sua instruo, propriamente dita. Tudo se passa, agora, como

    se ela no mais pudesse aprender com o recurso da inteligncia que

    lhe serviu at aqui, como se a relao autnoma entre a aprendiza-

    gem e a verificao lhe fosse, a partir da, estrangeira. Entre uma e

    outra, uma opacidade, agora, se estabeleceu. Trata-se de compreen-

    dere essa simples palavra recobre tudo com um vu: compreender

    o que a criana no pode fazer sem as explicaes fornecidas, emcerta ordem progressiva, por um mestre. Mais tarde, por tantos mes-

    tres quanto forem as matrias a compreender. A isso se soma a estra-nha circunstncia, de que as explicaes, depois que se iniciou a era

    do progresso, no cessam de se aperfeioar para melhor explicar,

    melhor fazer compreender, melhor ensinar a aprender, sem que ja-mais se possa verificar um aperfeioamento correspondente na dita

    compreenso. Antes pelo contrrio, comea a erguer-se um triste ru-

    mor, que no mais deixar de se amplificar, de um contnuo declnio

    na eficcia do sistema explicativo, a carecer, evidentemente, de novo

    aperfeioamento para tornar as explicaes mais fceis de serem com-

    preendidas por aqueles que no as compreendem...

    A revelao que acometeu Joseph Jacotot se relaciona ao se-

    guinte: preciso inverter a lgica do sistema explicador. A explicao

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    COLECAO "E DV CA SA O: N CI A SENTIDO"

    no necessria para socorrer uma incapacidade de compreender. ,

    ao contrrio, essa incapacidade, a fico estruturante da concepoexplicadora de mundo. o explicador que tem necessidade do inca-

    paz, e no o contrrio, ele que constitui o incapaz como tal. Explicar

    alguma coisa a algum , antes de mais nada, demonstrar-lhe que no

    pode compreend-la por si s. Antes de ser o ato do pedagogo, a expli-cao o mito da pedagogia, a parbola de um mundo dividido em

    espritos sbios e espritos ignorantes, espritos maduros e imaturos,

    capazes e incapazes, inteligentes e bobos. O procedimento prprio do

    explicador consiste nesse duplo gesto inaugural: por um lado, ele de-

    creta o comeo absoluto somente agora tem incio o ato de aprender;

    por outro lado, ele cobre todas as coisas a serem aprendidas desse vu

    de ignorncia que ele prprio se encarrega de retirar. At ele, o peque-

    no homem tateou s cegas, num esforo de adivinhao. Agora, ele vai

    aprender. Ele escutava palavras e as repetia. Trata-se, agora, de ler, e

    ele no escutar as palavras, se no escuta as silabas, e as silabas, se

    no escuta as letras que ningum poderia faz-lo escutar, nem o livro,

    nem seus pais somente a palavra do mestre. O mito pedaggico,

    dizamos, divide o mundo em dois. Mas, deve-se dizer, mais precisa-

    mente, que ele divide a inteligncia em duas. H, segundo ele, uma

    inteligncia inferior e uma inteligncia superior. A primeira registra as

    percepes ao acaso, retm, interpreta e repete empiricamente, no es-treito crculo dos hbitos e das necessidades. a inteligncia da crian-

    cinha e do homem do povo. A segunda conhece as coisas por suasrazes, procede por mtodo, do simples ao complexo, da parte ao todo.

    ela que permite ao mestre transmitir seus conhecimentos, adaptan-

    do-os s capacidades intelectuais do aluno, e verificar se o aluno en-

    tendeu o que acabou de aprender. Tal o princpio da explicao. Tal

    ser, a partir da, para Jacotot, o princpio do embrutecimento.

    Entendmo-lo bem e, para isso, afastemos as imagens feitas.

    O embrutecedor no o velho mestre obtuso que entope a cabea de

    seus alunos de conhecimentos indigestos, nem o ser malfico que pra-

    tica a dupla verdade, para assegurar seu poder e a ordem social. Ao

    contrrio, exatamente por ser culto, esclarecido e de boa-f que ele

    mais eficaz. Mais ele culto, mais se mostra evidente a ele a distan-

    cia que vai de seu saber ignorncia dos ignorantes. Mais ele escla-

    recido, e lhe parece bvia a diferena que h entre tatear s escuras e

    20

    Uma aventura intelectual

    buscar com mtodo, mais ele se aplicar em substituir pelo esprito

    a letra. pela clareza das explicaes a autoridade do livro. Antes de

    qualquer coisa, dir-se-, preciso que o aluno compreenda e, para

    isso, que a ele se forneam explicaes cada vez melhores. Tal apreocupao do pedagogo esclarecido: a criana est compreenden-

    do? Ela no compreende? Encontrarei maneiras novas de explicar-lhe, mais rigorosas em seu princpio, mais atrativas em sua forma; e

    verificarei que ele compreendeu.

    Nobre preocupao. Infelizmente, essa pequena palavra, exa-

    tamente essa palavra de ordem dos esclarecidos compreender a

    causadora de todo o mal. ela que interrompe o movimento da ra-

    zo, destri sua confiana em si, expulsa-a de sua via prpria, ao

    quebrar em dois o mundo da inteligncia, ao instaurar a ruptura entre

    o animal que tateia e o pequeno cavalheiro instrudo, entre o senso-

    comum e a cincia. A partir do momento em que se pronuncia essa

    palavra de ordem da dualidade, todo aperfeioamento na maneira de

    fazer compreenderessa grande preocupao dos metodistas e dosprogressistas se torna um progresso no embrutecimento. A crianaque balbucia sob a ameaa das pancadas obedece frula, eis tudo:

    ela aplicar sua intelignciaem outra coisa. Aquele, contudo, que foi

    explicado investir sua inteligncia em um trabalho do luto: compre-

    ender significa, para ele, compreender que nada compreender, a me-

    nos que lhe expliquem. No mais frula que ele se submete, mas hierarquia do mundo das inteligncias. Quanto ao resto, ele perma-

    nece to tranqilo quanto o outro: se a soluo do problema muito

    difcil de buscar, ele ter a inteligncia de arregalar os olhos. O mes-

    tre vigilante e paciente. Ele notar quando a criana j no estiver

    entendendo, e a recolocar no bom caminho, por meio de uma re-

    explicao. Assim, a criana adquire uma nova inteligncia a dasexplicaes do mestre. Mais tarde, ela poder, por sua vez, conver-ter-se em um explicador. Ela possui os meios. Ela, no entanto, os

    aperfeioar: ela ser um homem do progresso.

    O acaso e a vontade

    assim que corre o mundo dos explicadores explicados. E como

    correria, tambm, para o professor Jacotot, se o acaso no o houvesse

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    COLEO "buv.cAO: ExpreiErvon E SENpJo"

    colocado em presena de um fato e Joseph Jacotot pensava que

    todo raciocnio deve partir dos fatos e ceder diante deles. Porm, no

    concluamos, com isso, que se tratava de um materialista. Ao contr-

    rio: como Descartes, que provava o movimento ao andar, mas tam-

    bm como seu contemporneo, o muito realista e religioso Maine de

    Biran, ele tinha osfatos do espirito que age e que toma conscinciade sua atividade como mais seguros do que qualquer coisa material.

    E era bem disso que se tratava: ofato era que alguns estudantes seensinaram a falar e a escrever em francs, sem o socorro de suas

    explicaes. Ele nada lhes havia transmitido de sua cincia, nada

    explicado quanto aos radicais e as flexes da lngua francesa. Ele

    nem mesmo havia procedido maneira desses pedagogos reforma-

    dores que, como o preceptor do Emilio, perdem seus alunos, para

    melhor gui-los e balizam astuciosamente todo um percurso com

    obstculos que precisam superar sozinhos. Ele os havia deixado ss

    com o texto de Fnelon, uma traduo nem mesmo interlinear, como

    era uso nas escolas e a vontade de aprender o francs. Ele somentelhes havia dado a ordem de atravessar uma floresta cuja sada ignora-

    va. A necessidade o havia constrangido a deixar inteiramente de fora

    sua inteligncia, essa inteligncia mediadora do mestre que une a

    inteligncia impressa nas palavras escritas quela do aprendiz. E, ao

    mesmo tempo, ele havia suprimido essa distncia imaginria, que o

    princpio do embrutecimento pedaggico. Tudo se deu, a rigor, entrea inteligncia de Fnelon, que havia querido fazer um certo uso da

    lngua francesa, a do tradutor, que havia querido fornecer o equiva-lente em holands, e a inteligncia dos aprendizes, quequeriam apren-

    der a lingua francesa. E ficou evidente que nenhuma outra intelign-

    cia era necessria. Sem perceber, ele os havia feito descobrir o que

    ele prprio com eles descobria: todas as frases e, por conseguinte,

    todas as inteligncias que as produzem so de mesma natureza. Com-

    preender no mais do que traduzir, isto , fornecer o equivalente deum texto, mas no sua razo. Nada h atrs da pgina escrita, ne-

    nhum fundo duplo que necessite do trabalho de unia inteligncia ou-

    tra, a do explicador; nenhuma lingua do mestre, nenhuma lingua da

    lingua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razo das

    palavras e frases de um texto. E disso os estudantes flamengos ha-

    viam fornecido a prova: para falar do Telemaco, eles no tinham

    22

    Uma aventura intelectual

    sua disposio seno as palavras do TeMmaco. Bastam, portanto, as

    frases de Fnelon para compreender as frases de Fnelon e para dizer

    o que delas se compreendeu. Aprender e compreender so duas ma-

    neiras de exprimir o mesmo ato de traduo. Nada h aqum dostextos, a no ser a vontade de se expressar, isto , de traduzir. Se eles

    haviam compreendido a lngua ao aprender Fnelon, no era sim-plesmente pela ginstica que compara uma pgina esquerda comuma pgina direita. No a aptido de mudar de coluna que conta,

    mas a capacidade de dizer o que se pensa nas palavras de outrem. Se

    eles haviam aprendido isso com Fnelon, porque o ato de Fnelon

    escritor era, ele prprio, um ato de tradutor: para traduzir uma lio

    de poltica em um relato legendrio, Fnelon havia transposto, em

    francs do seu sculo, o grego de Homero, o latim de Virglio e a

    lingua, culta ou primitiva, de cem outros textos, do conto infantil

    histria erudita. Ele havia aplicado a essa dupla traduo a mesma

    inteligncia que eles empregavam, por sua vez, para relatar com fra-

    sesde seu livro o que pensavam desse livro.

    Mas a inteligncia que os fizera aprender o francs emTelmaco

    era a mesma que os havia feito aprender a lingua materna: observando

    e retendo, repetindo e verificando, associando o que buscavam apren-

    der quilo que j conheciam, fazendo e refletindo sobre o que haviam

    feito. Eles haviam procedido como no se deve proceder, como fazem

    as crianas, poradivinhao. E a questo, assim, se impunha: no se-

    ria necessrio inverter a ordem admitida dos valores intelectuais? No

    seria esse mtodo maldito, da adivinhao, o verdadeiro movimento

    da inteligncia humana que toma posse de seu prprio poder? E sua

    proscrio no marcaria, na verdade, a vontade de dividir em dois o

    mundo da inteligncia? Os metodistas opem o mtodo mau, do aca-

    so, ao caminho da razo. Mas eles se do, antecipadamente, aquilo

    que querem provar. Eles supem um pequeno animal que, se chocan-

    do com as coisas, explora um mundo que ainda no capaz de ver,mas que essas coisas, precisamente, lhe ensinaro a discernir. Mas

    o filhote de homem , antes de qualquer outra coisa, um ser de

    palavra. A criana que repete as palavras aprendidas e o estudante

    flamengo "perdido" emseuTelmaco no se guiam pelo acaso. Todo

    o seu esforo, toda a sua explorao tencionada pelo seguinte:

    uma palavra humana lhes foi dirigida, a qual querem reconhecer e

    23

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    Co mau "EoucAAoi ExaFeiFNCwe SENT vO ''

    qual querem responder no na qualidade de alunos, ou de sbios,

    nias na condio de homens; como se responde a algum que vos fala,

    e no a quem vos examina: sob o signo da igualdade.

    O fato estava l: eles haviam aprendido sozinhos e sem mestre

    explicador. Ora, o que se d uma vez sempre possvel. De resto,

    essa descoberta deveria ser responsvel por uma reviravolta nos prin-cpios doprofessorJacotot. Mas o homem Jacotot estava mais pre-

    parado para reconhecer a variedade daquilo que se pode esperar de

    um homem. Seu pai havia sido aougueiro, antes de cuidar das con-

    tas de seu av, o carpinteiro que havia enviado seu neto ao colgio.

    Ele prprio era professor de retrica, quando escutou ecoar o apelo

    s armas, em 1792. O voto de seus companheiros o havia feito capi-

    to de artilharia e ele se distinguira como um notvel artilheiro. Em

    1793, na Seo das Plvoras, esse latinista havia se tornado instrutor

    de qumica para a formao acelerada dos operrios que seriam en-

    viados para aplicarem todos os cantos do territrio as descobertas de

    Fourcroy. Na casa desse mesmo Fourcroy ele havia conhecido Vau-quelin, filho de campons que se dera uma formao em qumica s

    escondidas de seu patro. Na Escola Politcnica, ele tinha visto che-

    gar jovens que comisses improvisadas haviam selecionado, com base

    no duplo critrio de vivacidade de esprito e de patriotismo. E ele oshavia visto tornarem-se muito bons matemticos, menos pela matem-

    tica que Monge ou Lagrange lhes explicava, do que por aquela que

    praticavam diante deles. Ele prprio havia, aparentemente, aproveita-

    do suas funes administrativas para construir uma competncia de

    matemtico que, mais tarde, exerceria na Universidade de Dijon. As-

    si m como havia acrescentado o hebraico s lnguas antigas que ensina-

    va e composto um Ensaio sobre a gramtica hebraica. Ele pensava

    s Deus sabe a razo que essa lngua tinha futuro. Enfim, ele havia

    construdo para si, a contragosto, mas com o maior rigor, uma compe-

    tncia de representante do povo. Em suma, ele sabia que a vontade dos

    indivduos e o perigo da Ptria poderiam fazer nascer capacidades

    inditas em circunstncias em que a urgncia obrigava a queimar as

    etapas da progresso explicativa. Ele pensava que este estado de ex-

    ceo, comandado pelas necessidades da Nao, em nada diferia, em

    seu princpio, da urgncia que rege a explorao do mundo pela

    criana, ou dessa outra exigncia que rege a via singular dos sbios e

    24

    Uma aventura intelectual

    dos inventores. Por meio da experincia da criana, do sbio e do

    revolucionrio, o mtodo do acasopraticado com sucesso pelos es-

    tudantes flamengos revelava seu segundo segredo. Esse mtodo da

    igualdade era, antes de mais nada, um mtodo da vontade. Podia-se

    aprender sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pela

    tenso de seu prprio desejo ou pelas contingncias da situao.

    O mestreemancipador

    Essas contingncias haviam tomado, na circunstncia, a forma

    de recomendao feita por Jacotot. Disso advinha uma conseqncia

    capital, no mais para os alunos, mas para o Mestre. Eles haviam

    aprendido sem mestre explicador, mas no sem mestre. Antes, no

    sabiam e, agora, sim. Logo, Jacotot havia lhes ensinado algo. No

    entanto, ele nada lhes havia comunicado de sua cincia. No era,portanto, a cincia do Mestre que os alunos aprendiam. Ele havia

    sido mestre por fora da ordem que mergulhara os alunos no crculode onde eles podiam sair sozinhos, quando retirava sua inteligncia

    para deixar as deles entregues quela do livro. Assim se haviam disso-

    ciado as duas funes que a prtica do mestre explicador vai religar,

    a do sbio e a do mestre. Assim se haviam igualmente separado,

    liberadas uma da outra, as duas faculdades que esto em jogo no ato

    de aprender: a inteligncia e a vontade. Entre o mestre e o aluno se

    estabelecera uma relao de vontade a vontade: relao de domina-

    o do mestre, que tivera por conseqncia uma relao inteiramente

    livre da inteligncia do aluno com aquela do livro inteligncia dolivro que era, tambm, a coisa comum, o lao intelectual igualitrio

    entre o mestre c o aluno. Esse dispositivo permitia destrinchar as

    categorias misturadas do ato pedaggico e definir exatamente o em-

    brutecimento explicador. H embrutecimento quando uma intelign-

    cia subordinada a outra inteligncia. O homem e a criana, em

    particular pode ter necessidade de um mestre. quando sua vontade

    no suficientemente forte para coloc-la e mant-la em seu caminho.

    Mas a sujeio puramente de vontade a vontade. Ela se torna embru-

    tecedora quando liga uma inteligncia a uma outra inteligncia. No

    ato de ensinar e de aprender, h duas vontades e duas inteligncias.

    Chamar-se- embrutecimento sua coincidncia. Na situao

    25

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    CoieCAO "EDUGrJAO- E}PEFiNCIA e SE

    experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vonta-

    de, a de Jacotot, e a uma inteligncia, a do livro, inteiramente distin-

    tas. Chamar-se- emancipao diferena conhecida e mantida entre

    as duas relaes, o ato de uma inteligncia que no obedece seno a

    ela mesma, ainda que a vontade obedea a uma outra vontade.

    Essa experincia pedaggica abria, assim, uma ruptura com algica de todas as pedagogias. A prtica dos pedagogos se apia na

    oposio da cincia e da ignorncia. Eles se distinguem pelos meios

    escolhidos para tornar sbio o ignorante: mtodos duros ou suaves,

    tradicionais ou modernos, passivos ou ativos, mas cujo rendimento se

    pode comparar. Desse ponto de vista, poder-se-ia, numa primeira apro-

    ximao, comparar a rapidez dos alunos de Jacotot com a lentido dos

    mtodos tradicionais. Mas, na verdade, nada havia a a comparar. Oconfronto dos mtodos supe um acordo mnimo, no que se refere aos

    fins do ato pedaggico: transmitir os conhecimentos do mestre ao alu-

    no. Ora, Jacotot nada havia transmitido. O mtodo era, puramente, o

    do aluno. E aprender mais ou menos rapidamente o francs , em simesmo, uma coisa de pouca conseqncia. A comparao no mais se

    estabelecia entre mtodos, mas entre dois usos da inteligncia e entre

    duas concepes da ordem intelectual.Avia rpida no era a melhorpedagogia. Ela era uma outra via, a da liberdade, via que Jacotot havia

    experimentado nos exrcitos no ano Il, na fabricao das plvoras ou

    na instalao da Escola Politcnica: a via da liberdade respondendo

    urgncia do perigo, mas, tambm, confiana na capacidade intelectu-

    al de cada ser humano. Por detrs da relao pedaggica estabelecida

    entre a ignorncia e a cincia, seria preciso reconhecer a relao filo-

    sfica, muito mais fundamental, entre o embrutecimento e a emancipa-

    o. Havia, assim, no dois, mas quatro termos em jogo. O ato de

    aprender podia ser reproduzido segundo quatro determinaes diver-

    samente combinadas: por um mestre emancipador ou por um mestre

    embrutecedor; por um mestre sbio ou por um mestre ignorante.

    Altima proposio era a mais dura de suportar. Passa, ainda,

    a idia de que um sbio deve se dispensar de toda a explicao sobre

    sua cincia. Mas como admitir que um ignorante possa ser causa de

    cincia para um outro ignorante?A prpria experincia de Jacotot

    era ambgua, no que se refere sua condio de professor de francs.

    Mas j que ela havia, ao menos, mostrado que no era o saber do

    26

    Urna aventura intelectual

    mestre que ensinava ao aluno, nada o impedia de ensinar outra coisa

    alm de seu prprio saber: ensinar o que ignorava. Joseph Jacototdedicou-se, ento, a variar as experincias, a repetir, de propsito, o

    que o acaso havia uma vez produzido. Ele se ps, assim, a ensinar

    duas matrias em que sua incompetncia era patente, a pintura e o

    piano. Os estudantes de Direito queriam, ainda, que lhe fosse atribu-da uma ctedra que estava livre em sua faculdade. Mas a Universi-dade de Louvain j se inquietava demais em relao a esse leitor

    extravagante por quem os alunos desertavam dos cursos magistrais,

    para espremer-se, noite, em uma sala muito pequena e apenas ilu-

    minada por duas velas e ouvi-lo dizer: " preciso que eu lhes ensine

    que nada tenho a ensinar-lhes.''2 De modo que a autoridade consulta-

    da respondeu no reconhecer nele ttulos que o habilitassem para tal

    ensino. Mas, poca, ele se ocupava precisamente de experimentar a

    distncia entre o ttulo e o ato.Ao invs, pois, de fazer em francs um

    curso de direito, ele ensinou os estudantes a pleitear em holands. Eles

    o fizeram muito bem, mas ele continuava a ignorar o holands.

    O crculo da potncia

    A experincia pareceu suficiente a Jacotot para esclarec-lo:

    pode-se ensinar o que se ignora, desde que se emancipe o aluno;

    isso , que se force o aluno a usar sua prpria inteligncia. Mestre

    aquele que encerra uma inteligncia em um crculo arbitrrio do qual

    no poder sair se no se tornar til a si mesma. Para emancipar um

    ignorante, preciso e suficiente que sejamos, ns mesmos, emanci-

    pados; isso . conscientes do verdadeiro poder do esprito humano.O ignorante aprender sozinho o que o mestre ignora, se o mestre

    acredita que ele o pode, e o obriga a atualizar sua capacidade: crculo

    dapotncia homlogo a esse crculo da impotncia que ligava o

    aluno ao explicador do velho mtodo (que denominaremos, a partir

    daqui, simplesmente de o Velho). Mas a relao de foras bem par-

    ticular. O crculo da impotncia est sempre dado, ele a prpria mar-

    cha do mundo social, que se dissimula na evidente diferena entre a

    ' S o m maire des leFons pnbllqnes drAl. Jacobitnr lesprincipr.rde l'enseignement nniuecel,publicado porJ. S. Van de Weyer, Bruxelas, 1822, p. I.

    27

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    COLLUO "EoocACAo. EGEkENCI e S

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    COTO,'EDUGG o- ExPtRIENOA E SENTIDO

    dimenso dc sua capacidade intelectual e decidir quanto a seu uso.

    Os amigos da instruo asseguravam que era essa a condio de uma

    verdadeira liberdade. Em seguida, reconheciam dever ao povo essa

    instruo, e estavam prontos a brigar entre si para fixar aquela que

    the deveria ser concedida. Jacotot no via que liberdade podia resul-

    tar, para o povo, dos deveres de seus instrutores. Ele pressentia, aocontrrio, que estava em jogo uma nova forma de embrutecimento.

    Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa no tem

    que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele

    aprender o que quiser, nada, talvez. Ele saber que pode aprender

    porque a mesma inteligncia est em ao em todas as produes

    humanas, que um homem sempre pode compreender a palavra de um

    outro homem. O impressor de Jacotot tinha um filho que era dbil

    mental. Todos se preocupavam por no poder fazer nada a respeito.

    Jacotot lhe ensinou o hebraico, e a criana tornou-se um excelente

    litgrafo. A lngua, evidente, jamais lhe serviu para nada a no

    ser para saber o que as inteligncias mais bem dotadas e mais instru-das ainda ignoravam, e no se tratava do hebraico.

    As coisas es tavam, portanto, muito claras : no se tratava a de

    um mtodo para instruir o povo, mas da graa a seranunciada aos

    pobres: eles podiam tudo o que pode um homem. Bastava anunciar.

    Jacotot decidiu consagrar-se a isso. Ele proclamou que se pode ensi-

    nar o que se ignora e que um pai de famlia pobre e ignorante capaz,

    se emancipado, de fazer a educao de seus filhos sem recorrer a

    qualquer explicador. E indicou o meio de se realizar esse Ensino

    Universal: aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto,

    segundo o princpio de que todos os homens tm igual inteligncia.

    Houve comoo em Louvain, em Bruxelas e em Haia; tomou-se carruagem em Paris e Lion; da Inglaterra e da Prssia se veio

    escutar a boa nova, quc, depois, foi levada a So Petersburgo e a

    Nova Orleans. A novidade chegou at o Rio de Janeiro. Durante

    alguns anos. a polmica instalou-se e a Repblica do s aber tremeu

    em suas bases.

    E tudo isso porque um homem de esprito, um sbio renoma-

    do e um pai de famlia virtuoso havia enlouquecido, por no saber

    o holands.

    30

    CAPTULOSEGUNDO

    A l i o do ignorante

    Desembarquemos, pois, juntamente com Telmaco, na Ilha deCalipso. Penetremos com um desses visitantes no antro do Touco: na

    instituio de Mademoiselle Marcellis, em Louvain; em casa de Mon-

    sieur Deschuyfeleere, um curtumeiro de quem ele fez um latinista; na

    Escola Normal M ilitar de Louvain, onde o prncipe filsofo Frederickd'Orange encarregou o fundador do Ensino Universal de instruir os

    futuros instrutores militares: "Imaginai recrutas sentados nos bancos

    escolares e sussurrando, todos ao mesmo tempo: Calipso, Calipso no

    etc. etc.; dois meses depois, eles sabiam ler, escrever e contar [...] Du-

    rante essa educao primria, ns aprendamos, um, o ingls, outro, o

    alemo, esse, fortificao, aquele, qumica etc. etc.

    Mas o Fundador sabe tudo isso?

    Nem um pouco, mas ns lhe explicvamos e eu vos asseguro

    que ele aproveitou lindamente a escola normal.

    Estou confuso: ento, todos vs sabeis qumica?

    No, mas ns ap rendamos e lhe ens invamos. Eis o Ensino

    Universal. o discpulo que faz o mestre."'

    H uma ordem na loucura, como em toda coisa. Comecemos

    pelo comeo: Telmaco. Tudo est on tudo, diz o louco. E a malcia

    pblica acrescenta: e tudo est no Telmaco. Pois Telmaco , aparen-

    temente, o livro que serve para tudo. O aluno quer aprender a ler? Quer

    Ensegrremm nt"Memel rNatGmattgaes, 2` ed., Paris, 1829, p. 50-51.

    31

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    A haro do ignorante

    aprender o ingls, ou o alemo, a arte de pleitear, ou a de combater?

    O louco colocar, imperturbvel, um Telmaco em suas mos e o

    aluno comear a repetirCalipso, Calipso no, Calipso no podia, e

    assim em diante, at que ele saiba o nmero prescrito de livros do

    Telmaco e que possa relatar os outros. De tudo que ele aprende a

    forma das letras, o lugar ou as terminaes das palavras, as imagens,os raciocnios, os sentimentos dos personagens, as lies de moral

    lhe ser pedido que fale, que diga o que ele v, o que pensa disso, oque faz com isso. Somente uma condio ser imperativa: de tudo o

    que disser dever demonstrar a materialidade no livro. Ser-lhe- so-

    licitado que faa composies e improvisaes nas mesmas condi-

    es: ele dever empregar as palavras e as maneiras do livro para

    construir suas frases; dever mostrar, no livro, os fatos relacionados

    com seus raciocinios. Em suma, de tudo o que dir, o mestre dever

    poder verificar a materialidade no livro.

    A ilha do livro

    O livro. Telmaco ou um outro. O acaso colocou Telmaco

    disposio de Jacotot, a comodidade o aconselhou a guard-lo. Tel-

    maco est traduzido em muitas lnguas e facilmente disponvel naslivrarias. No uma obra-prima da lngua francesa. Mas seu estilo

    puro, o vocabulrio variado, a moral severa. Aprende-se a mitologia

    e geografia. Escuta-se a, atravs da "traduo" francesa, o latim de

    Virglio e o grego de Homero. Trata-se, enfim, de um livro clssico,

    um desses em que uma lngua apresenta o essencial de suas formas e

    de seus poderes. Um livro que um todo; um centro ao qual se pode

    associar tudo o que se aprender de novo; um crculo no interior do

    qual possvel compreender cada uma dessas novas coisas, encon-

    trar os meios de dizer o que se v, o que se pensa disso, o que se faz

    com isso. Este o primeiro princpio do Ensino Universal: preciso

    aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto. Para come-

    ar, preciso aprenderqualquer coisa. O Palice diria a mesma coi-

    sa? O Palice, talvez, maso Velho, quanto a ele, diz: preciso apren-

    der tal coisa, e depois tal outra e ainda uma outra tal. Seleo,

    progresso, incompletude, esses so os princpios. Aprendem-se

    32

    algumas regras e alguns elementos, que so aplicados a alguns tre-

    chos escolhidos de leitura, alguns exerccios correspondendo aos ru-

    dimentos adquiridos. Em seguida, passa-se a um nvel superior: ou-

    tros rudimentos, outro livro, outros exerccios, outro professor... A

    cada etapa, cava-se o abismo da ignorncia que o professor tapa,

    antes de cavar um outro. Fragmentos se acrescentam, peas isoladas

    de um saber do explicador que levam o aluno a reboque de um mes-tre que elejamais atingir. O livro nunca est inteiro, a lio jamais

    acabada. O mestre sempre guarda na manga um saber, isto , uma

    ignorncia do aluno. Entendi isso, diz o aluno, satisfeito. Isso o

    que voc pensa, corr ige o mestre.Na verdade, h uma dificuldade de

    que, at aqui, eu o poupei. Ela ser explicada quando chegarmos

    lio correspondente. O que quer dizerisso? pergunta o aluno, curi-

    oso. Eu poderia lhe explicar, responde o mestre, masseriaprematu-

    ro: voc no entenderia. Isso lhe ser explicado no ano que vem. H

    sempre uma distncia a separar o mestre do aluno, que, para ir mais

    alm, sempre ressentir a necessidade de um outro mestre, de expli-

    caes suplementares. Assim, Aquiles triunfante passeia, em torno deTria, com o cadver de Heitor amarrado sua carruagem. A progres-

    so racional do saber uma mutilao indefinidamente reproduzida.

    "Todo homem que ensinado no seno uma metade de homem."'

    No nos perguntemos se o pequeno cavalheiro instrudo sofre

    dessa mutilao. A virtude do sistema transformar a perda em pro-

    veito. O pequeno cavalheiroavana. Foi-lhe ensinado algo, logo, ele

    aprendeu, logo, ele pode esquecer. Atrs de si escava-se, novamente,

    o abismo da ignorncia. Eis, no entanto, a maravilha da coisa: essa

    ignorncia, a partir da, a dos outros. O que ele esqueceu, ele ul-

    trapassou. Ele no est mais em situao de soletrar e a gaguejar como

    as inteligncias grosseiras e os pequeninos da turma infantil. No hpapagaios em sua escola. No se sobrecarrega a memria, forma-se a

    inteligncia.Eu compreendi,diz a criana, no sou um papagaio. Mais

    ela esquece, mais lhe parece evidente que compreendeu. Mais ela se

    torna inteligente, mais pode contemplar do alto aqueles que deixou

    para trs, os que permanecem na antecmara do saber, diante do livro

    mudo, aqueles que repetem, por no serem suficientemente inteligentes

    Log?da/bne4itrnrdel'enrefgnenent nnirerrelan gnrn/1nfnllte, Louvain, 1829, p. 6.

    33

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    COLEO "EDUCAAOI EXPERINCIA E SENTIDO"

    para compreender. Eis a virtude dos explicadores: o ser que inferiori-

    zaram, eles o amarram pelo mais slido dos laos ao pas do embrute-

    cimento: a conscincia de sua superioridade.

    Essa conscincia, de resto, no mata os bons sentimentos. O

    pequeno cavalheiro instrudo se comover, talvez, com a ignorncia

    do povo e pretender trabalhar para sua instruo. Saber que a coisa difcil, diante de crebros que a rotina endureceu, ou que a falta demtodo perdeu. Mas, se ele devotado, ele saber que h um tipo de

    explicaes adaptado para cada categoria, na hierarquia das inteli-

    gncias: ele buscar se colocara seu nvel.

    Passemos, agora, uma outra histria. O louco o Fundador, como

    o chamam seus sectrios entra em cena com seu Telmaco, um livro,

    uma coisa. Toma e l, diz ele ao pobre. Eu no sei ler, responde o

    pobre. Como compreenderia eu o que est escrito no livro? Da forma

    como compreendeste todas as coisas, at aqui: comparando dois fatos.

    Vou te relatar um fato, a primeira frase do livro: Calipso, Calipso no...

    Eis, agora, um segundo fato: as palavras esto escritas a. No reconhe-

    ces nada? A primeira palavra que te disse era Calipso, no ser tambm

    a primeira palavra na folha? Olha bem, at que estejas certo de reconhe-

    c-la em meio a uma multido de outras palavras. Para tanto, ser preci-

    so que me digas tudo o que vs. H a signos que a mo traou sobre o

    papel, cujos chumbos a mo reuniu na grfica. Conta-me essa palavra.

    Faze-me "o relato das aventuras, isto , das idas e vindas, dos desvios,

    em uma palavra, dos trajetos da pena que escreveu essa palavra sobre o

    papel ou do buril que a gravou sobre o cobre".' Saberias tu reconhecer a

    a letra O que um de meus alunos serralheiro de profisso denomina

    a redonda, a letra L que ele chama de o esquadro?Conta-me a forma de

    cada letra como descreverias as formas de um objeto ou lugar desconhe-

    cido. No digas que no podes. Tu sabes ver, tu sabes falar, tu sabesmostrar, tu podes te lembrar. O que mais preciso? Uma ateno abso-

    luta, para ver e rever, dizer e redizer. No procures me enganar e te

    enganar. Foi bem isso que viste? O que pensas disso?No s um ser

    pensante? Ou acreditas ser apenas corpo? "O fundador Sganarelle mu-

    dou tudo isso [...] tens uma alma, como eu."'

    journal de Pmmtpation intellectuelle, t. III, 1835-1836, p. 15.

    ' Journd/de/'namcipation nte!/ectnel/e, t. l ]I, 1835-1836, p. 380.

    34

    A lio do ignorante

    Falar-se-, em seguida. do que fala o livro: o que pensas de

    Calipso, da dor, de uma deusa, de uma primavera eterna? Mostra-

    me o que te faz dizer o que dizes.

    O livro uma fuga bloqueada: no se sabe que caminho traar o

    aluno, mas sabe-se de onde ele no sair do exerccio de sua liberda-

    de. Sabe-se, ainda, que o mestre no ter o direito de se manter longe,mas sua porta. O aluno deve ver tudo por ele mesmo, comparar in-

    cessantemente e sempre responder trplice questo: o que vs? o que

    pensas disso? o que fazes com isso? E, assim, at o infinito.

    Mas esse infinito no mais um segredo do mestre, a marcha

    do aluno. O livro, quanto a ele, est pronto e acabado. E. um todo que

    o aluno tem em mos, que ele pode percorrer inteiramente com um

    olhar.No h nada que o mestre lhe subtraia, e nada que ele possa

    subtrair ao olhar do mestre. O crculo abole a trapaa. E, antes de mais

    nada, essa grande trapaa, que a incapacidade: eu no posso, eu no

    compreendo... No h nada a compreender. Tudo est no livro. Basta

    relatar a forma de cada signo, as aventuras de cada frase, a lio decada livro. preciso comear a falar. No digas que no podes. Tu

    sabes dizereu no posso. Diga, em seu lugar, Calipso no podia...E

    ters comeado. Ters comeado por um caminho que j conhecias e

    que devers, daqui por diante, seguir sem dele te afastares. No digas:

    eu no posso dizer. Ou, ento, aprende a diz-lo maneira de Calipso,

    ou de Telmaco, de Narval ou de Idomenia. O outro circulo j foi

    comeado, o da potncia. No cessars de encontrar maneiras de dizer

    eu no possoe, cedo, poders dizer tudo.

    Viagem em um crculo. Compreende-se que as aventuras do fi-

    lho de Ulisses sejam, para isso, o manual, e Calipso, a primeira pala-

    vra. Calipso, a escondida. preciso, justamente, descobrir que nadah de escondido, no h palavras por trs das palavras, lngua que diga

    a verdade da lngua. Aprendem-se signos e, ainda, signos; frases e,

    ainda, frases. Repetem-se: frasespmntas. Decoram-se: livros inteiros.

    E o Velho indigna-se: eis o que significa, para vs, aprender qualquer

    coisa. Primeiramente, vossas crianas repetem como papagaios. Elas

    cultivam uma s faculdade, a memria, enquanto ns exercemos a in-

    teligncia, o gosto e a imaginao. Vossas crianas decoram. Este

    vosso primeiro erro. E eis o segundo: vossas crianas no aprendem

    35

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    COIKAO "EJUCACAO: EYP3ifNCA e SFMioo"

    de cor. Dizeis que elas o fazem, mas impossvel. Os crebros huma-

    nos so incapazes de tal esforo de memria.

    Argumento viciado. Discurso de um crculo a um outro crculo. O

    Velho diz que a memria infantil incapaz de tais esforos, porque a

    i mpotncia em geral uma palavra de ordem. Ele diz que a memria

    no a mesma coisa que a inteligncia ou a imaginao, porque usa aarma comum queles que pretendem reinar sobre a ignorncia: a divi-

    so. Ele cr que a memria fraca, porque no cr no poder da intelign-

    cia humana. Ele a cr inferior, porque cr em inferiores e superiores. Em

    suma, seu duplo argumento , mais ou menos, o seguinte: h seres infe-

    riores e superiores; os inferiores no podem o que podem os superiores.

    s o que o Velho conhece. Ele tem necessidade do desigual,

    mas no desse desigual estabelecido pelo decreto do prncipe, seno

    do desigual por si s, que est em todas as mentes e em todas as

    frases. Para tanto, dispe de uma arma branca, a diferena: issono aquilo, tal coisa completamente diferente de tal outra, no se

    pode comparar..., a memria no inteligncia; repetir no saber;comparao no razo; h o fundo e a forma... Qualquer farinha

    pode ser moda no moinho da distino. O argumento pode, assim,

    se modernizar, tender ao cientfico e ao humanitrio: h etapas no

    desenvolvimento da inteligncia; uma inteligncia infantil no a

    inteligncia de um adulto; preciso no sobrecarregar a inteligncia

    da criana, seno pode-se comprometer sua sade e colocarem risco

    o desenvolvimento de suas faculdades... Tudo o que o Velho pede

    que se lhe concedam suas negaes e diferenas: isso no , isso

    diferente, isso mais, isso menos. Eis o que amplamente suficien-

    te para erigir todos os tronos da hierarquia das inteligncias.

    Calipso e o serralheiro

    Deixemos falar o Velho. Examinemos os fatos. H uma vontade

    que rege e uma inteligncia que obedece. Chamemos de ateno o ato

    que faz agir essa inteligncia sob a coero absoluta de uma vontade.

    Esse ato no diferente, quer se trate da forma de uma letra a ser

    reconhecida, de uma frase a ser memorizada, de uma relao a estabe-

    lecer entre dois seres matemticos, dos elementos de um discurso a ser

    36

    A lio do ignorante

    composto. No h uma faculdade que registra, uma outra que com-

    preende, uma outra que julga... O serralheiro que denomina o Ode

    redonda e o L de esquadro j pensa por meio de relaes. E inventar

    da mesma ordem que recordar. Deixemos que os explicadores "for-

    mem" o "gosto" e a "imaginao" dos pequenos cavalheiros, deixe-mos que dissertem sobre o "gnio" dos criadores. Ns nos contentare-

    mos emfazercomo esses criadores: como Racine, que aprendeu de

    cor, traduziu, repetiu e imitou Eurpides, Bossuet que fez o mesmo

    com Tertuliano, Rousseau com Amyot, Boileau com Horcio e Juve-

    nal; como Demstenes, que copiou oito vezes Tucdides, Hooft, que

    leu cinqenta e duas vezes Tcito, Sneca, que recomenda a leitura

    sempre renovada de um mesmo livro, Haydn, que repetiu indefinida-

    mente seis sonatas de Bach, Miguelangelo, sempre ocupado em refa-

    zer o mesmo torsos ... A potncia no se divide. No h seno um

    poder, o de ver e de dizer, de prestar ateno ao que se v e ao que se

    diz. Aprendem-se frases e, ainda, frases; descobrem-se fatos, isto ,

    relaes entre coisas e, ainda, outras relaes, que so de mesma natu-

    reza; aprende-se a combinar letras, palavras, frases, idias... No sedir que adquirimos a cincia,, que conhecemos a verdade, ou que nos

    tomamos gnios. Saberemos, contudo, que, na ordem intelectual, po-

    demos tudo o que pode um homem.

    Eis o que quer dizer Tudo est em tudo: a tautologia a po-

    tncia. Toda a potncia da lngua est no todo de um livro. Todo

    conhecimento de si como inteligncia est no domnio de um livro,

    de um captulo, de uma frase, de uma palavra. Tudo est em tudo e

    tudo est em Telmaco, arrebentam-se de rir os provocadores, pe-

    gando os discpulos de surpresa: tudo est, tambm, no primeiro

    livro de Telnraco? E em sua primeira palavra? As matemticas

    esto no Telmaco? E na primeira palavra de Telmaco? E o disc-pulo sente o solo desaparecer sob seus ps e chama o mestre em seu

    socorro: o que se deve responder?

    "Era preciso dizer que vs acreditais que todas as obras hu-

    manas esto na palavra Calipso, porque essa palavra uma obra da

    inteligncia humana. Aquele que fez a adio de fraes o mesmo

    ser intelectual que o que fez a palavra Calipso. Este artista sabia o

    Gonod, Nowt/le exposition de la mthode de Joseph Jamtol, Paris, 1830, p. 12-13.

    37

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    Co.eCAO "EDUCAO: E.4ERIENCiA E SENTIDO"

    grego; escolheu uma palavra que significaardilosa, escondida. Esteartista assemelha-se quele que imaginou os meios de escrever a

    palavra da qual se trata. Ele se assemelha quele que fez o papel

    sobre o qual se escreve, quele que emprega a pena nessa tarefa,quele que talha as penas com um canivete, quele que fez o cani-

    vete com o ferro, quele que forneceu o ferro a seus semelhantes,quele que fez a tinta, quele que imprimiu a palavra Calipso, quele

    que fez a mquina de impresso, quele que explica os efeitos detal mquina, quele que generalizou essas explicaes, quele que

    fez a tinta de impresso, etc. etc. etc... Todas as cincias, todas asartes, a anatomia e a dinmica etc. etc.. so frutos da mesma inteli-

    gncia que fez a palavra Calipso. Um filsofo, abordando uma ter-ra desconhecida, adivinhou que ela era habitada ao ver uma figura

    geomtrica na areia. "So passos de homem", disse. Seus camara-

    das acreditaram que estava louco, porque as linhas que ele lhes

    mostrava no se pareciam com passos. Os sbios do aperfeioado

    sculo XIX arregalam os olhos, abestalhados, quando se lhes mos-

    tra a palavra Calipso e que lhes dito: "H a dedo humano". Euaposto que o representante da escola normal francesa dir, olhandoa palavra Calipso: "Ele pode diz-lo e repeti-lo, mas isso no tem aforma de um dedo". Tudo est en, tudo."'

    Eis tudo o que est em Calipso: a potncia da inteligncia, que

    est presente em toda manifestao humana. A mesma inteligncia faz

    os nomes e os signos matemticos. A mesma inteligncia faz os signos

    e os raciocnios. No h dois tipos de espritos. H desigualdade nas

    manifestaes da inteligncia, segundo a energia mais ou menos gran-de que a vontade comunica inteligncia para descobrir e combinar

    relaes novas, mas no h hierarquia de capacidade intelectual. a

    tomada de conscincia dessa igualdade de natureza que se chama eman-cipao, e que abre o caminho para toda aventura no pas do saber.

    Pois se trata de ousar se aventurar, e no de aprender mais ou menos

    bem, ou mais ou menos rpido. O "mtodo Jacotot" no melhor,

    diferente. Por isso, os procedimentos colocados em prtica importampouco, neles mesmos. o Telmaco, mas poderia ser qualquer outro.

    Comea-se pelo texto, e no pela gramtica, pelas palavras inteiras, e

    Lugue maternelle, p. 464-465.

    38

    A lio do ignorante

    no pelas slabas. No queseja precisoaprender assim para aprender

    melhor, e que o mtodo Jacotot seja o ancestral do mtodo global.

    De fato, vai-se mais rpido comeando porCalipso, e no por B, A,

    BA. Mas a rapidez no seno um efeito da potncia adquirida, uma'

    conseqncia do princpio emancipador. "O antigo mtodo faz co-

    mear pelas letras porque dirige os alunos segundo o princpio dadesigualdade intelectual e, sobretudo, da inferioridade intelectual das

    crianas. Acredita que as letras so mais fceis de distinguir do que

    as palavras: um erro, mas, enfim, ele assim o cr. Ele cr que uma

    inteligncia infantil no est apta seno a aprender C, A, CA, e que

    preciso uma inteligncia adulta, isto , superior, para aprender

    Calipso.' Em suma, B, A, BA, tal como Calipso, uma bandeira:

    incapacidade contra capacidade. Soletrar um ato de contrio, antes

    de ser um meio de aprender. por isso que se poderia mudar a ordem

    dos procedimentos sem nada mudar quanto oposio dos princ-

    pios. "Um dia o Velho talvez pensar em fazer ler por palavras e,

    ento, talvez ns fizssemos nossos alunos soletrarem. No que resul-

    taria essa modificao aparentemente significativa? Nada. Nossosalunos no deixariam de ser emancipados e os do Velho no seriam

    menos embrutecidos [...] O Velho no embrutece seus alunos ao faz-

    los soletrar, mas ao dizer-lhes que no podem soletrar sozinhos; por-

    tanto, ele no os emanciparia, ao faz-los ler palavras inteiras, por-

    que teria todo o cuidado em dizer-lhes que sua jovem inteligncia

    no pode dispensar as explicaes que ele retira de seu velho cre-

    bro. No , pois, o procedimento, a marcha, a maneira que emancipa

    ou embrutece, o princpio. O princpio da desigualdade, o velho

    princpio, embrutece no importa o que se faa; o princpio da igual-

    dade, o princpio Jacotot, emancipa qualquer que seja o procedimen-

    to, o livro, o fato ao qual se aplique."'O problema revelar uma inteligncia a ela mesma. Qualquer

    coisa serve para faz-lo. Telmaco; mas pode ser uma orao ou

    unia cano que a criana ou o ignorante saiba de cor. H sempre

    alguma coisa que o ignorante sabe e que pode servir de termo de

    comparao, ao qual possvel relacionar uma coisa nova a ser

    lonromlde Pmm);cif~a//ou intellechrelle, t . III, 1835-1836, p. 9.

    "lonrna/de fmiwdpatmr intellechrel/e, p. 11.

    39

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    Co.ecw"EUQ1 CAO: EXPENDN(T IA SENTIDO"

    conhecida. Disso testemunha o serralheiro que arregala os olhos quan-do lhe dito que ele pode ler. Ele no conhece sequer as letras. Noentanto, se ele colocar os olhos nesse calendrio, ser que no sabe aordem dos meses e qu e n o pode, assim, adivinhar janeiro, fevereiro,maro... Ele s sabe contar um pouco. Mas quem o impede de con-

    tar bem lentamente, seguindo as linhas para reconhecer escrito at oque j sabe? Ele sabe que se chama Guillaume e que o dia de seusanto padroeiro 16 de janeiro. Ele saber perfeitamente encontrar a

    palavra. Ele sabe que fevereiro s tem vinte e oito dias. Ele v clara-

    mente uma coluna que mais curta que as outras e, assim, ele reco-

    nhecer 28. E assim por diante. H sempre alguma coisa que o mes-

    tre pode lhe pedir que descubra, sobre a qual pode interrog-lo e

    verificar o trabalho de sua inteligncia.

    O mestree Scrates

    Com efeito, so esses os dois atos fundamentais do mestre: eleinterroga, provoca uma palavra, isto , a manifestao de uma inteli-

    gncia que se ignorava a si prpria, ou se descuidava. Ele verificaque o trabalho dessa inteligncia se faz com ateno, que essa pala-vra no diz qualquer coisa para se subtrair coero. Dir-se- que,para isso, preciso um mestre muito hbil e muito sbio? Ao contr-

    rio, a cincia do mestre sbio torna muito difcil para ele no arrui-nar o mtodo. Conhecendo as respostas, suas perguntas para elas

    orientam naturalmente o aluno. o segredo dos bons mestres: com

    suas perguntas, eles guiam discretamente a inteligncia do aluno

    to discretamente, que a fazem trabalhar, mas no o suficiente para

    abandon-la a si mesma. H um Scrates adormecido em cada expli-cador. E preciso admitir que o mtodo Jacotot isso , o mtodo do

    aluno difere radicalmente do mtodo do mestre socrtico. Por suas

    interrogaes, Scrates leva o escravo de Mnon a reconhecer as

    verdades matemticas que nele esto. H a, talvez, um caminho para

    o saber, mas ele no em nada o da emancipao. Ao contrrio.

    Scrates deve tomar o escravo pelas mos para que esse possa reen-

    contrar o que est nele prprio. A demonstrao de seu saber , ao

    mesmo tempo, a de sua impotncia: jamais ele caminhar sozinho e,

    A lio do ignorante

    alis, ningum lhe pede que caminhe, seno para ilustrar a lio do

    mestre. Nela, Scrates interroga um escravo que est destinado a

    permanecer como tal.

    O socratismo , assim, uma forma aperfeioada do embruteci-

    mento. Como todo mestre sbio, S crates interroga para instruir. Ora,

    quem quer emancipar um homem deve interrog-lo maneira doshomens e no maneira dos sbios, para instruir-se a si prprio e no

    para instruir um outro. E, isto, somente o far bem aquele que, de

    fato, no sabe mais do que seu aluno, que jamais fez a viagem antes

    dele, o mestre ignorante: este no poupar criana o tempo que lhe

    for necessrio para dar-se conta da palavra Calipso. Mas, algum

    poder perguntar, o que tem ela a ver com Calipso e quando sequerela ouviria falar disso? Deixemos, ento, Calipso de lado. Mas que

    criana no ouviu falar do Pai-Nosso, no sabe de cor a orao?

    Nesse caso, a coisa est dada e o pai de famlia pobre e ignorante,que quer ensinar seu filho a ler no estar embaraado. Ele sempre

    encontrar em sua vizinhana alguma pessoa atenciosa e suficiente-

    mente letrada, capaz de copiar para ele essa orao. Com isso, o paiou a me pode comear a instruo de seu filho, perguntando-lhe onde

    est o Pai. "Se a criana atenta, ele dir que a primeira palavra que

    est no papel deve ser o "Pai", pois a primeira na frase. "Nosso"

    ser, ento, necessariamente, a segunda palavra; a criana poder

    comparar, distinguir, conhecer essas duas palavras e reconhec-Ias

    em qualquer parte."' Que pai ou me no saberia perguntar criana,

    s voltas com o texto da orao, o que ele v, o que com isso podefazer, ou o que disso pode dizer, ou o que pensa sobre o que disse ou

    fez'? Faz-lo da mesma forma como interrogaria um vizinho sobre o

    instrumento que tem em mos, e sobre o uso que d ao objeto? Ensi-

    nar o que se ignora simplesmente questionar sobre tudo que seignora. No preciso nenhuma cincia para fazer tais perguntas. O

    ignorante pode tudo perguntar, e somente suas questes sero, para o

    viajante do pas dos signos, questes verdadeiras, a exigir o exerc-

    cio autnomo de sua inteligncia.

    Que seja! diz o contraditor. Mas, o que faz a fora do interroga-

    dor faz tambm a incompetncia do verificador. Como saber ele

    ' Jwmnaldr l'mmndnation intellyduelle, t. VI, 1841-1842, p. 72.

    40 41

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    COLEO"EDUCAO: EXPERIENCIAESENTIDO"

    que a criana no divaga? O pai ou a me sempre podero pedir

    criana:Mostra-me Pai, ou Cus. Mas como podero eles verificar

    se a criana indica corretamente a palavra solicitada? A dificuldade

    s crescer medida em que a criana avana se ela avana em

    sua aprendizagem. O mestre e o aluno ignorantes no estariam, nesse

    caso, representando a fbula do cego e do paraltico?

    O poder do ignorante

    Comecemos por tranqilizar o contraditor: no se far do igno-

    rante o depositrio da cincia infusa, sobretudo dessa cincia do

    povo que se oporia dos sbios. preciso ser sbio para julgar os

    resultados do trabalho, para verificar a cincia do aluno. O ignoran-

    te, por sua vez, far menos e mais, ao mesmo tempo. Ele no verifi-

    car o que o aluno descobriu, verificar se ele buscou. Ele julgar se

    estava atento. Ora, basta ser homem para julgar do fato do trabalho.

    To bem quanto o filsofo, que "reconhece" passos de homem naslinhas na areia, a me sabe ver "nos olhos, em toda a expresso de

    seu filho, quando ele faz um trabalho qualquer, quando ele mostra

    palavras de uma frase, se ele est atento ao que faz." O que o

    mestre ignorante deve exigir de seu aluno que ele prove que estu-

    dou com ateno. pouco? Vejamos, ento, tudo o que essa exi-

    gncia tem, para o aluno, de uma tarefa interminvel. Vejamos, tam-

    bm, a inteligncia que ela pode dar ao examinador ignorante:"Quem impede essa me ignorante, mas emancipada, de observar,

    a cada vez que pergunta onde estPai, se a criana mostra sempre

    a mesma palavra; quem se opor a que ela esconda essa palavra e

    pergunte: qual a palavra que est debaixo de meu dedo? Etc. etc."

    Imagem piedosa, receita de mulheres... Esse foi o julgamento

    do porta-voz oficial da tribo dos explicadores: "Pode-se ensinar o que

    se ignora ainda uma mxima de dona de casa."' Ao que se respon-

    der que a "intuio maternal" no exerce aqui nenhum privilgio

    " ' Jsoma/ de fmanripntion intellectuelle, p. 73.

    I I Idem.

    '2 Lorain, Rfutation de /a mthodeJacotot, Paris, 1830, p. 90.

    42

    A lio do ignorante

    domstico. O dedo que esconde a palavraPai o mesmo que est em

    Calipso, a escondida ou a ardilosa: a marca da inteligncia humana,a mais elementar das astcias da razo humana a verdadeira, aquela

    que prpria a cada um e comum a todos, essa razo que se manifes-

    ta exemplarmente ali, onde o saber do ignorante e a ignorncia domestre, agindo, fazem a demonstrao dos poderes da igualdade in-

    telectual. "O homem um animal que distingue perfeitamente bem

    quando aquele que fala no sabe o que diz... Essa capacidade o

    lao que une os homens."" A prtica do mestre ignorante no um

    simples expediente que permite ao pobre que no tem tempo, nem

    dinheiro, nem saber, instruir seus filhos. a experincia crucial que

    libera os puros poderes da razo, l onde a cincia no pode mais vir

    a seu socorro. O que um ignorante pode uma vez, todos os ignoran-

    tes podem sempre. Pois no h hierarquia na ignorncia. E o que os

    ignorantes e os sbios podem, comumente, a isso que se deve cha-

    mar o poder do ser inteligente, como tal.

    Poder de igualdade que , ao mesmo tempo, de dualidade e de

    comunidade. No h inteligncia onde h uma agregao, ligadurade um esprito a outro esprito. H inteligncia ali onde cada um age,

    narra o que ele fez e fornece os meios de verificao da realidade de

    sua ao. A coisa comum, situada entre as duas inteligncias, a

    cauo dessa igualdade, e isso em um duplo sentido. Uma coisa ma-

    terial , antes de mais nada, "o nico ponto de comunicao entre

    dois espritos". 14 A ponte a passagem, mas tambm a distncia

    mantida. A materialidade do livro mantm a igual distncia os dois

    espritos, enquanto a explicao anulao de um pelo outro. Mas a

    coisa , igualmente, uma instncia sempre disponvel de verificao

    material: o ato do examinador ignorante de ''levar o examinado aos

    objetos materiais, s frases, s palavras escritas em um livro, a umacoisa que ele possa verificar com seus sentidos." 1 5 O examinado est

    sempre sujeito a uma verificao no livro aberto, na materialidade de

    cada palavra, na trajetria de cada signo. A coisa, o livro, exorciza a

    " (.touecunleruel%, p. 271, e Journal de l'mnnripation in/e0ednel%, t. III, 1835-1836, p. 323.

    loomed de l'Enmircipalion intellerhrelh t . lit, 1835-1836, p. 253.I'Journal de l'mmrcipaliare inte/ler/pelle, r . III, 1835-1836, p. 259.

    43

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    COICAo "EaVCnGAO: EXPERIENCIA e SfNIIpO "

    cada vez a trapaa da incapacidade, e aquela do saber. Por isso, o mes-

    tre ignorante poder, eventualmente, estender sua competncia at a

    verificao no tanto da cincia do pequeno cavalheiro instruido, mas

    da ateno que ele d ao que diz e faz. "Vs podeis, por esse meio, at

    mesmo prestar servio a um de vossos vizinhos que se encontra, por

    circunstncias independentes de sua vontade, forado a enviar seu fi-lho ao colgio. Se o vizinho vos pede para verificar o que sabe o pe-

    queno colegial, no estareis em nada embaraado com essa requisio,

    ainda que no tenhais estudos. O que estais aprendendo,jovem amigo,

    direis criana. Grego. O qu? Esopo O qu? As Fbulas Que fbula conheceis? A primeira Onde est a primeira palavra?

    Ei-la aqui. Passai-me vosso livro. Recitai-me a quarta palavra. Colo-

    cai-a por escrito. O que escrevestes no se parece com a quarta palavra

    do livro. Vizinho, essa criana no sabe o que diz saber. Essa uma

    prova de que lhe faltou ateno, quando estudava ou quando indicou o

    que diz saber. Aconselhai-o a estudar. Voltarei a passar, e vos direi se

    est aprendendo o grego, que ignoro, que sou incapaz de ler."

    assim que o mestre ignorante pode instruir tanto aquele que

    sabe quanto o ignorante: verificando se ele est pesquisando conti-

    nuamente. Quem busca, sempre encontra. No encontra necessaria-

    mente aquilo que buscava, menos ainda aquilo que preciso encon-

    trar. Mas encontra alguma coisa nova, a relacionar coisa que j

    conhece. O essencial essa contnua vigilncia, essa ateno que

    jamais se relaxa sem que venha a se instalar a dcsrazo em queexcelem tanto aquele que sabe quanto o ignorante. O mestre aquele

    que mantm o que busca em seu caminho, onde est sozinho a procu-

    rar e o faz incessantemente.

    Os negciosde cada um

    Mas ainda preciso, para verificar essa procura, saber o que

    quer dizer procurar. Esse o cerne de todo o mtodo. Para emanci-

    par a outrem, preciso que se tenha emancipado a si prprio. pre-ciso conhecer-se a si mesmo como viajante do esprito, semelhante a

    Journa/de l'mancpe/ionhrtelleNme/%, t. IV, 1836-1837, p. 280.

    44

    Alio do ignorante

    todos os outros viajantes, como sujeito intelectual que participa da

    potncia comum dos seres intelectuais.

    Como se tem acesso a esse conhecimento de si? "Um campo-

    ns, um artista (pai de famlia) se emancipar intelectualmente se

    refletir sobre o que e o que faz na ordem social."" A coisa pare-

    cer simples, c mesmo simplria, para quem desconhece o peso dovelho mandamento que a filosofia, pela voz de Plato, instituiu como

    destino para o arteso: No faas nada alm de teu prprio negcio,

    que no de pensar no que quer que seja, mas simplesmentefazer

    essa coisa que esgota a definio dc teu ser: se tu s sapateiro, cala-

    dos e crianas que sero sapateiros. No a ti que o orculo dlfico

    recomenda conhecer-se. E, mesmo se a divindade, brincalhona, se di-

    vertisse em semear na alma de teu filho um pouco do ouro do pensa-

    mento, raa de ouro, aos guardies daplis que incumbiria a tarefa

    de educ-lo, para torn-lo um deles.

    bem verdade que a era do progresso pretendeu abalar a rigi-

    dez do velho mandamento. Com os enciclopedistas, decretou quenada mais se fizesse como rotina, nem mesmo o trabalho dos arte-

    sos. E sabia que no h ator social, por mais nfimo que seja, que

    no se constitua, ao mesmo tempo, em um ser pensante. O cidado

    Destutt de Tracy relembrou, no alvorecer do novo sculo: "Todo

    homem que fala tem idias de ideologia, de gramtica, de lgica e

    de eloqncia. Todo homem que age tem princpios de moral pri-

    vada e de moral social. Todo ser, apenas por vegetar, desenvolve

    suas noes de fsica e de clculo; e, somente pelo fato de viver

    com seus semelhantes, desenvolve sua pequena coleo de fatos

    histricos e sua maneira dejulg-los.""

    I mpossvel, portanto, que os sapateiros faam apenas calados que no sejam tambm, sua maneira, gr